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Conselho Federal de Medicina

Sociedade Brasileira de Bioética

BIOÉTICA CLÍNICA
(MEMÓRIAS DO XI CONGRESSO BRASILEIRO DE BIOÉTICA,
III CONGRESSO BRASILEIRO DE BIOÉTICA CLÍNICA E
III CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE O ENSINO DA ÉTICA)

Brasília
2016
Bioética clínica: memórias do XI Congresso Brasileiro de Bioética, III Congresso Brasileiro
de Bioética Clínica e III Conferência Internacional sobre o Ensino da Ética
Conselho Federal de Medicina, Sociedade Brasileira de Bioética (SBB)

Conselho Federal de Medicina – CFM


SGAS 915 - Lote 72
CEP 70390-150 – Brasília/DF – Brasil
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Sociedade Brasileira de Bioética – SBB


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CEP 70719-900 – Brasília/DF – Brasil
Fone/Fax: 55 61 3964 8464
http://www.sbbioetica.org.br/

Organizadores
José Eduardo de Siqueira, Elma Zoboli, Mário Sanches e Leo Pessini
Supervisão editorial
Paulo Henrique de Souza
Revisão e copidesque
Stéphanie Roque e Luan Maitan (Tikinet)
Projeto gráfico e diagramação
Portal Print Gráfica e Editora Ltda-ME / Leandro Rangel
Ilustração de capa
Victória Romano
Tiragem
5.000 exemplares

Catalogação na fonte: Eliane Maria de Medeiros e Silva – CRB 1a Região/1678

Bioética clínica: memórias do XI Congresso Brasileiro de Bioética, III Congresso


Brasileiro de Bioética Clínica e III Conferência Internacional sobre o Ensino da
Ética / Organização de José Eduardo de Siqueira, Elma Zoboli, Mário Sanches, Leo
Pessini. - Brasília: CFM/SBB; 2016.
326 p.; 14x21cm.

ISBN 978-85-87077-43-1

1. Bioética clínica. 2. Congresso I. Siqueira, José Eduardo de, org. II. Zoboli,
Elma, org. III. Sanches, Mário, org. IV. Pessini, Leo, org.
CDD 174.9574
Agradecimentos

Agradecemos ao Conselho Federal de Medicina (CFM)


por todos esses anos de parceria com a Sociedade
Brasileira de Bioética (SBB) e de contribuição para
a Bioética nacional e internacional. Somos gratos,
em particular, à Gestão 2014-2019 no apoio aos
congressos e na elaboração desta publicação.
Agradecemos, também, aos professores José
Eduardo de Siqueira, Elma Zoboli, Mário Sanches e
Leo Pessini pelo importante trabalho na organização
deste livro.
SUMÁRIO

Apresentação ........................................................................................... 11
Prefácio ....................................................................................................... 15
Parte I: Questões de Fundamentação
1. O conflito público-privado na assistência à
saúde (Regina Parizi) .............................................................................. 21
2. Bioética clínica, biopolítica e exclusão social
(Márcio Fabri dos Anjos) ......................................................................... 37
3. Justiça sanitária como tema de reflexão para
a bioética clínica (Elma Lourdes Campos Pavone
Zoboli e José Roque Junges) ............................................................... 55
4. Bioética de intervenção – uma breve síntese
de seus fundamentos e aplicações em tempos
de globalização e desigualdades sociais (Volnei
Garrafa e Leandro Brambilla Martorell)............................................. 73
5. Mistanásia: um novo conceito bioético que
entra na agenda da bioética brasileira (Leo Pessini
e Luiz Antonio Lopes Ricci) ................................................................... 95
6. Bioética e espiritualidade (Waldir Souza)................................ 123

Parte II: Questões de Ética Aplicada


7. Tomada de decisão em Bioética Clínica
(Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli) ............................................ 149
8. Reflexão bioética sobre a responsabilidade
cidadã e o ato de cuidar (José Eduardo de Siqueira) ................ 177
9. Conflitos éticos presentes no início da vida
(Mário Antônio Sanches e Evandro Arlindo de Melo) ................. 207
10. Reflexões bioéticas sobre a vida e a morte na
UTI (Leo Pessini e José Eduardo de Siqueira) ................................. 229
11. Bio(po)ética narrativa: literatura, teatro
e poesia como ferramentas no ensino e na
aprendizagem da bioética (Jan Helge Solbakk) ........................ 253
12. Comitês de bioética clínica (Elcio Luiz Bonamigo,
Bruno Rodolfo Schlemper Junior e Maria Teresa
Campos Velho) .......................................................................................... 283
Posfácio ...................................................................................................... 307
Sobre os autores ..................................................................................... 312
Sobre as entidades ................................................................................ 322
Apresentação

A publicação deste livro tem um significado muito importante


para a bioética brasileira, pois traduz parte do sucesso que foi
o XI Congresso Brasileiro de Bioética, realizado na Pontifícia
Universidade Católica de Curitiba (PUCPR), em setembro de 2015.

No evento, que também reuniu o III Congresso Brasileiro de


Bioética Clínica e a III Conferência Internacional sobre o Ensino da
Ética, foram comemorados os 20 anos de fundação da Sociedade
Brasileira de Bioética (SBB) e homenageados grandes nomes da
área, como o professor Giovanni Berlinguer, bioeticista italiano
que muito contribuiu para o Brasil, e o professor Paulo Fortes,
presidente da SBB (gestão 2009/2011); ambos falecidos em 2015.

Portanto, a Sociedade Brasileira de Bioética e o Conselho Federal


de Medicina, realizadores do evento, diante da importância e da
qualidade técnica de que se revestiram as diversas conferências
e palestras, aprovaram a publicação deste material do congresso
relativo à bioética clínica.

O livro foi organizado em duas partes, sendo que na primeira


prevalecem questões que integram a fundamentação da bioética
clínica, ou seja, fatores e posicionamentos que repercutem na
concepção da saúde e da doença, como a prática clínica baseada
em critérios de justiça sanitária, a mistanásia sob o olhar bioético,
os conflitos éticos interpostos nas formas de assistência à saúde, as
desigualdades sociais como fatores determinantes das condições
de vida e saúde, entre outros.

A segunda parte do livro, por sua vez, trata da aplicação das


questões éticas e bioéticas – como de início e final de vida,
doenças de grande impacto epidemiológico e com pouca
atenção ou investimento –, bem como de determinados recursos,
metodologias e instrumentos que podem nos auxiliar em escolhas
e decisões marcadas por sofrimentos morais.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 11


Assim, nós da SBB agradecemos, mais uma vez, a contribuição
dos colegas, que além de prepararem suas palestras e/ou
conferências, ainda se dispuseram a escrever os capítulos deste
livro. Aos leitores desejamos uma ótima leitura.

Regina Parizi
Presidente da Sociedade Brasileira de Bioética

12 Bioética Clínica
Prefácio

A ética das virtudes, ao longo da evolução histórica e filosófica


da humanidade, recebeu diversas e importantes contribuições,
como a do pastor alemão Fritz Jahr, que, em 1927, construiu um
pensamento com características imperativas: “respeite todos os
seres vivos como um fim em si mesmo e trate-os como tal, se
possível”.

O neologismo “bioética” foi utilizado, pela primeira vez, em


1970, pelo bioquímico norte-americano Van Rensselaer Potter.
Decorridos 46 anos, a bioética se apresenta, na atualidade,
como a fronteira de um novo pensamento científico. Esse maior
status epistemológico vem de sua transversalidade por temas
específicos e limites entre os extremos, como nascer/não nascer
(aborto), morrer/não morrer (eutanásia), saúde/doença (ética
biomédica) e bem-estar/mal-estar (ética biopsicológica).

Nos tempos contemporâneos, a bioética se insere em diferentes


perspectivas de análise, nos campos de dilemas provocados pelas
mudanças ocorridas nas relações sociais de um novo mundo,
de extrema racionalidade, técnico e científico, e pelo avanço do
conhecimento − como a clonagem (ética genética), os confrontos
entre jovens e idosos (ética de gerações) e as agressões ao meio
ambiente (ecoética).

A bioética passou a tratar das relações humanas, da prevenção e


solução de conflitos, da atenção à saúde e à vida, com ênfase na
dignidade do ser humano e em sua autonomia, em um contexto
de convivência das liberdades.

No âmbito da medicina, a bioética clínica – uma das áreas


de aplicação desse método científico – proporciona, hoje,
a oportunidade de reflexão e avaliação do melhor percurso
profissional, na busca do resgate de um caráter humanista e

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 15


humanitário e do crédito e respeito entre o médico e o paciente,
submersos em um caldo de insumos materialistas.

Bernard Lown, um dos mais destacados cardiologistas do


século XX, com base em sua experiência de ensino e assistência
profissional, observou que o conceito do médico como
conhecedor do homem passou ao do médico, como conhecedor
de uma técnica operativa sobre um órgão ou uma patologia.

De fato, a prática médica se tornou uma atividade em que o volume


dos conhecimentos e a pluralidade das técnicas impuseram, com
maior vigor, a exigência da especialização. Sem dúvida, a ânsia
pelo saber radical pôs em risco uma acurada visão de conjunto do
organismo humano e o sentido do próprio saber.

Professor emérito de Harvard, em seu livro A arte perdida de curar,


Lown chama a atenção para o foco desproporcional das escolas
médicas no tecnicismo em detrimento da arte de ser médico. Para
ele, a verdadeira “sabedoria médica” é adquirida pela capacidade
de compreender um problema clínico a partir da integralidade do
indivíduo.

Na procura desse elo perdido, no mister de cuidar do ser humano,


de um ser em constante renovação nas relações consigo mesmo
e com o meio que o cerca, de um ser em permanente vir a ser,
o Conselho Federal de Medicina (CFM), com as suas normas e,
particularmente, com o Código de Ética Médica, tenta estimular
uma prática orientada por princípios fundamentais, que preservem
a medicina como profissão a serviço da saúde do indivíduo, da
coletividade, e exercida sem discriminação de nenhuma natureza.

O compartilhamento de esforços do CFM com a Sociedade


Brasileira de Bioética (SBB) nas realizações, em setembro de 2015,
do XI Congresso Brasileiro de Bioética, do III Congresso Brasileiro
de Bioética Clínica e da III Conferência Internacional sobre o
Ensino da Ética é relevante ao futuro que precisa ser planejado e
construído para ser justo.

16 Bioética Clínica
Eventos dessa envergadura, cuja síntese de palestras e debates
preenche essas páginas que chegam ao leitor, são oportunidades
ímpares para o fortalecimento dos compromissos hipocráticos,
em um paradigma benigno-humanitário.

Temas como justiça sanitária, mistanásia, desigualdades


sociais, doenças raras e negligenciadas, entre outros trabalhos
produzidos por alguns dos mais renomados bioeticistas nacionais
e internacionais, foram apresentados com maturidade, sapiência
e humildade, indispensáveis às melhores reflexões.

Por fim, nesta edição de Bioética Clínica, há de ser feita uma


homenagem ao cirurgião e professor William Saad Hossne, falecido
em 13 de maio de 2016. Conhecido como “pai da bioética” no
Brasil, Hossne fundou a SBB e ajudou a criar a Comissão Nacional
de Ética em Pesquisa (Conep), coordenada por ele entre 1996 e
2007, um marco histórico na proteção dos direitos dos sujeitos de
pesquisa.

Culto, eloquente, comprometido com a profissão, com o ser


humano e, sobretudo, com a ética, Hosnne certamente figura no
mesmo panteão ocupado por Potter, Jahr e alguns poucos outros
que defenderam, sem concessões, o respeito à autonomia, à
justiça, à beneficência, à não maleficência e à equidade, princípios
de base nos quais a bioética fixa residência como patrimônio
universal e público da humanidade.

Carlos Vital Tavares Corrêa Lima


Presidente do Conselho Federal de Medicina

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 17


PARTE I
QUESTÕES DE FUNDAMENTAÇÃO
O conflito público-privado na
assistência à saúde

Regina Parizi1

No século XX, os debates sobre saúde – especificamente,


assistência à saúde – assumiram diferentes enfoques mediante
a conjuntura econômica e política mundial, principalmente
nos países mais desenvolvidos. Assim, no período pós-guerra
predominou um discurso solidário, de reconstrução dos países e
elaboração de políticas que amparassem os cidadãos vulnerados
pelos conflitos. No campo da saúde, a proposta foi criar sistemas
universalistas, financiados com tributos estatais ou por intermédio
do sistema de seguridade social, através da contribuição do
trabalhador.

Entretanto, a partir da década de 1980, com o movimento


neoliberal e de globalização da economia cresceram os conflitos
na área da saúde, sobretudo diante do aumento de gastos
(devido à grande incorporação de biotecnologia) e de demanda
por serviços, em consequência do envelhecimento populacional.
Dessa forma, enquanto para o setor público a saúde representava
um ônus orçamentário cada vez maior, para o setor privado ela
passou a ser uma das áreas de negócios mais lucrativos.

Aprofunda-se, pois, o principal conflito ético que vem integrando


esse debate: considerar a saúde um direito humano fundamental.
A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da
Unesco, de 2005, aponta a necessidade de o Estado regular essa
área; enquanto os teóricos neoliberais defendem que ela não é
uma obrigação estatal (mas que o Estado é responsável pelos
mais pobres) e que o cidadão deve ser provedor de sua própria
saúde.

1. Presidente da Sociedade Brasileira de Bioética.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 21


Marco regulatório
No Brasil, o direito à saúde foi consubstanciado pelos artigos
196 e 200 da Constituição Federal, e regulamentado pela Lei nº
8.080, de 1990, que criou o Sistema Único de Saúde (SUS). No
entanto, esse mesmo arcabouço jurídico deixou livre à iniciativa
privada a assistência à saúde, permitindo inclusive a dedução da
contribuição fiscal com a assistência privada, conforme a Lei nº
7.713, de 1988.

Esse cenário, embora não exclusivo da realidade brasileira, é


produtor de conflitos que repercutem em diferentes setores da
saúde, como na definição de fontes de financiamento, modelos
assistenciais, distribuição da rede de serviços e profissionais, entre
outros.

É importante ressaltar que, com a crise econômica dos países mais


desenvolvidos iniciada na década passada (a qual se espraiou
para os países mais pobres), a área da saúde é a que tem sofrido
mudanças mais fortes no marco regulatório.

As reformas na legislação têm ocorrido especialmente no


incremento de restrições no acesso à assistência à saúde nos
sistemas universalistas – de maneira direta para o imigrante e
indireta na instituição de taxas de copagamentos no momento do
atendimento –, conforme se verifica, por exemplo, nas reformas
introduzidas na legislação da Espanha (PERPIÑAN, 2013) e de
outros países.

Esses debates, portanto, estão centrados nas dificuldades


financeiro-orçamentárias dos países, cujas despesas crescentes
acompanham o envelhecimento populacional e o aumento de
custos com a agregação de tecnologias na saúde; enquanto a
discussão dentro do campo ético é de que a saúde, assim como
a educação, é um direito de cidadania, devendo para tanto ser
universal, sem qualquer discriminação de raça, credo ou condição
socioeconômica.

22 Bioética Clínica
Modelo assistencial
Os conflitos dessa área têm forte repercussão no campo do
consumo de serviços, uma vez que o setor privado é baseado em
doenças/procedimentos (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE,
1992), sofrendo forte influência da oferta de novas tecnologias e
produtos de saúde disponibilizados no mercado. Considerando
esse contexto, Lucien Sfez (1995) publicou “Saúde Perfeita”,
pesquisa desenvolvida com segmentos da classe média alta da
França, dos Estados Unidos e do Japão em que foi observado
alto grau de confiança desse extrato da população em relação à
tecnologia para resolver seus problemas de saúde.

Por outro lado, na década de 1990, cresceu dentro do setor


público – especialmente nos países com sistemas universalistas
– o debate sobre um modelo assistencial voltado para toda a
família, priorizando ações de promoção da saúde, com estímulos à
adoção de hábitos saudáveis, envelhecimento ativo, entre outros.
Um modelo, portanto, voltado para a promoção da saúde em
contraposição ao modelo assistencial preconizado pelo mercado,
que estimula o consumo excessivo de medidas de prevenção
às doenças, sobretudo na realização de exames e utilização de
medicamentos.

Outro debate importante, também implementado a partir desse


período, é referente à estruturação dos serviços, que necessita de
amplo acesso e cobertura assistencial. Desse modo, programas
como os de saúde da família (MENDES, 2015) e regionalização
da rede diagnóstica e hospitalar são propostas elaboradas para
garantir a entrada no sistema de saúde, e referência para organizar
o acesso a ações e tecnologias mais complexas.

Vários estudos2 mostram que essa incorporação de tecnologia


– tanto no setor público como no privado, com os planos de
2. Como Os planos de saúde nos tribunais: uma análise das ações judiciais movidas
por clientes de planos de saúde, relacionadas à negação de coberturas assistenciais
no estado de São Paulo, de Mário Scheffer, e Demandas jurídicas por coberturas
assistenciais: estudo de caso: CASSI, de José Antonio Diniz de Oliveira.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 23


saúde –, nos últimos anos, vem sofrendo influência crescente
de um fenômeno denominado “judicialização da saúde”, que
ocorre em diversos países. Nesse fenômeno, o setor judiciário
intervém no sistema público de saúde ou de planos privados,
determinando o acesso a exames e/ou medicamentos para
um paciente ou, de forma mais ampla, para a sociedade no
programa de assistência em questão.

As críticas sobre o modelo assistencial baseado em interesses do


mercado vêm aumentando (MENDES, 2015), pois ele desequilibra
os fatores de demanda e oferta na saúde, dificulta o acesso e cria
vieses na assistência. Assim, preconizam a criação de redes de
atenção à saúde, nas quais as ações e os serviços são regulados
pelos programas de atenção primária, que priorizam as medidas
de promoção à saúde e não somente as de prevenção de doenças.

A equidade tem sido o princípio norteador no debate e na


formulação desses programas, conforme discutido pela
Bioética da Intervenção (GARRAFA; PORTO, 2003) e da Proteção
(SCHRAMM, 2008). São as características dos agravos de saúde e
as necessidades das pessoas que devem definir as prioridades de
acesso aos serviços e não o poder aquisitivo, como é determinante
nos modelos de mercado.

Questões administrativo-operacionais
Grande parte dos conflitos que surgem nessa área é em decorrência
do modelo assistencial e da disputa entre o setor público e o
privado. Um exemplo disso é a migração dos profissionais da
saúde para programas, setores e/ou países que oferecem melhor
remuneração.

Esse fator tem uma influência tão grande atualmente que


acabou se transformando em um dos problemas estruturais mais
debatidos mundialmente: a formação de recursos humanos na
saúde. Assim, vários países e o Brasil, hoje, estão às voltas com
os conflitos e com a discussão de como equacionar a relação

24 Bioética Clínica
quantitativa e qualitativa do perfil dos profissionais versus
necessidade da população.

O Brasil, em particular, apresenta uma distribuição bastante


heterogênea da rede de serviços e dos profissionais de saúde.
Carvalho (2013) já mostrava que havia uma grande concentração
dessa rede na região sudeste do país, que ultrapassava mais de
50% dos médicos, serviços e operadoras de planos de saúde,
que movimentavam a assistência e o mercado privado de saúde
no país.

Essa questão ganha maior relevância quando avaliamos que,


embora o Brasil conte com um sistema universalista de saúde como
o SUS, ele não dispõe de uma rede de profissionais e serviços que
garanta a assistência no setor público, o que determina a compra
de serviços no mercado e, também, os conflitos entre os modelos
público e privado de assistência à saúde.

Recentemente, a crise do Programa Mais Médicos – que foi


elaborado diante do deficit desses profissionais no Programa
de Saúde da Família (PSF) – ganhou proporções nacionais. É
importante lembrar que o PSF foi concebido como contraproposta
ao modelo assistencial baseado na lógica de mercado, com o
objetivo de atuar na promoção da saúde e prevenção de doenças
dos diferentes integrantes da família, nas diferentes etapas da
vida e regiões do país.

O PSF sempre apresentou deficit de médicos, e, por isso, em 2013,


o governo federal passou a admitir médicos de outros países para
preencher as lacunas dos editais de contratação. Isso resultou
em uma grande revolta dos médicos brasileiros, pois o governo
dispensou a necessidade de equivalência do diploma estrangeiro,
ferindo, assim, uma regra de reciprocidade que é praticamente
universal na área da educação.

O grande conflito estabelecido é que uma parcela da população


– sobretudo moradores de periferias, estados menos abastados e

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 25


municípios de pequeno porte – apoia a medida, pois precisa de
médicos; enquanto a outra discorda, defendendo o sistema de
equivalência de diplomas, que visa à segurança da sociedade em
relação à qualidade dos cursos de medicina realizados no exterior.

Do ponto de vista ético e político é necessário buscar uma solução.


Para tanto, é fundamental que o governo e os profissionais de
saúde, principalmente os médicos, elaborem propostas que
atendam às necessidades da população em relação ao acesso
à atenção, mantendo, por outro lado, as regras de segurança
relativas à formação médica.

Questões econômico-financeiras
Tanto a globalização como a crise econômica, que foi sendo
espraiada para diferentes países após 2008, impulsionaram o
aumento da desigualdade com o incremento do desemprego e
da concentração de renda, ampliando, assim, o contingente de
pessoas vulneradas.

Diante da crise, vários países (sobretudo os europeus e com


sistemas universalistas de saúde, como Espanha, Portugal, Grécia)
fizeram cortes orçamentários, como medida de contenção
de despesa, sendo a área da saúde uma das mais afetadas. A
justificativa é a mesma: o crescimento acentuado de custos
em decorrência da grande incorporação de biotecnologias, do
aumento da demanda em função do envelhecimento populacional
e dos fortes movimentos migratórios naquela região.

Por outro lado, mesmo os países em desenvolvimento, como o


Brasil (que ainda apresenta um grande contingente populacional
na margem da pobreza e da exclusão social), não aumentaram
significativamente o investimento no setor público de saúde,
como é possível observar na tabela a seguir, que apresenta as
despesas da área em relação ao Produto Interno Bruto (PIB).

26 Bioética Clínica
Percentual das despesas públicas e privadas na saúde em
relação ao PIB, nos anos 2000 e 2010

% PIB Despesas % PIB Despesas % PIB Despesas


Despesas Públicas Privadas Totais2
Países
2000 20101 2000 20101 2000 20101
Alemanha 8,2 8,91 2,1 2,7 10,3 11,6
África do Sul 3,4 3,4 5,0 5,1 8,4 8,5
Brasil 2,9 4,1 4,3 4,9 7,2 9,0
Canadá 6,2 8,1 2,6 3,4 8,8 11,5
China 1,8 2,3 2,9 2,3 4,7 4,6
Espanha 5,2 7,0 2,0 2,5 7,2 9,5
Estados Unidos 5,9 8,3 7,8 9,1 13,7 17,4
Fed. Russa 3,2 3,5 2,2 1,9 5,4 5,4
França 8,0 9,2 2,1 2,6 10,1 11,8
Índia 1,1 1,4 3,3 2,8 4,4 4,2
Itália 5,8 7,4 2,2 2,1 8,0 9,5
México 2,4 3,1 2,7 3,3 5,1 6,4
Nova Zelândia 5,9 8,3 1,7 2,0 7,6 10,3
Reino Unido 5,6 8,2 1,5 1,6 7,1 9,8
1
Dados de 2009.
2
Totalização dos dados pela autora.
Fonte: ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (2012).

Algumas informações da tabela merecem ser ressaltadas, como


o crescimento generalizado da despesa com saúde, na década
analisada, em países de diferentes continentes. As despesas, para
a maioria dos países, cresceram tanto no setor público quanto no
privado, mas os que adotaram sistemas públicos universalistas,
como Canadá e Reino Unido, conseguiram conter mais os
gastos em relação ao PIB do que aqueles que adotaram sistemas
predominantemente privados, como os Estados Unidos.

Observa-se, também, que os países em desenvolvimento, como


Brasil, China, Índia e México, apresentam, em sua maioria, um
maior percentual de despesa privada de saúde em relação ao PIB,

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 27


mesmo quando contam com sistemas universalistas de saúde,
como é o caso brasileiro.

Essa questão aumenta o grau de sofrimento e vulnerabilidade


econômica das famílias, pois estudos de 2010 do IBGE mostram
que as despesas com a saúde foram um dos itens de maior peso
no orçamento familiar, chegando naquela época a 5,9% das
despesas nas famílias de renda média e 7,3% nas de renda baixa.

O impacto dos gastos com a assistência à saúde para as famílias


tem sido tão relevante que a Organização Mundial da Saúde (2012)
divulgou um relatório mostrando que, somente no ano anterior,
mais de 150 milhões de pessoas estavam pagando sua assistência
do próprio bolso. Dessas, 100 milhões de pessoas foram à falência
e empurrados para a linha da pobreza.

A saúde, portanto, que deveria ser um setor de distribuição de


renda e de inclusão social, passou a ser um fator produtor de
iniquidades ao gerar e ampliar diferenças injustas. Diante disso, a
OMS apontou, nesse mesmo documento, que a pauta prioritária
seria a discussão sobre financiamento e cobertura universal na
assistência à saúde.

Apesar de haver maior consenso na discussão sobre financiamento


– que também apresenta um intenso debate sobre a necessidade
de aperfeiçoar a gestão para coibir desvios, desperdícios e
ineficiências –, é na questão da cobertura universal que se
estabelece o maior conflito e debate ético.

Os críticos sobre o posicionamento da OMS apontam que, embora


a necessidade de universalização da cobertura assistencial seja
também um consenso, há uma divergência importante sobre
se essa expansão se daria mediante financiamento público
ou privado, uma vez que em alguns países essa ampliação da
assistência tem se dado pelo crescimento dos planos e seguros
privados de saúde, inclusive com subsídios estatais.

28 Bioética Clínica
Assim como está evidenciado na tabela anterior, essa tem sido
a realidade no Brasil, uma vez que há maior participação do
financiamento privado, o qual cresceu bastante na década
passada, chegando a uma cobertura de 50 milhões de brasileiros,
em setembro de 2009 (BRASIL, 2009). No entanto, com a crise
econômica, assim como nos países europeus, esses números
começaram a diminuir, dado que a maioria dos planos privados
de saúde são coletivos empresariais, ou seja, dependem do nível
de emprego no país.

Os conflitos sob a perspectiva bioética


A bioética é uma disciplina que preconiza a ética aplicada à
análise dos fenômenos e das condições de vida de todos os seres,
inclusive do ambiente que habitamos, tendo como horizonte a
responsabilidade para com as gerações atuais e futuras. Seus
estudos tratam de valores éticos e morais que devem ser agregados
ao desenvolvimento econômico dos povos, em conjunto com as
dimensões humanas e sociais, as quais são imprescindíveis na
área da saúde.

Essa disciplina é uma ferramenta cuja aplicação se dá tanto na


discussão e elaboração de políticas quanto na orientação de
instituições que prestam serviços e de pessoas nos cuidados e
decisões, sobretudo no campo sanitário.

A bioética tem como base a transparência das informações, o


reconhecimento dos interesses diversos, o respeito às divergências,
a mediação de conflitos, a formulação e reformulação de acordos,
considerando que muitas verdades são transitórias em função
das desigualdades, da diversidade e da complexidade da vida
contemporânea.

Na assistência à saúde, há uma variedade de fatores que


interferem nos resultados. Todos eles são igualmente importantes
e se retroalimentam, como as questões éticas que vão balizar

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 29


políticas – que por sua vez vão estabelecer direitos na legislação,
baseados nos conhecimentos técnico-científicos da área. Assim,
ao se avaliar políticas e setores dessa área assistencial, é preciso
levar em consideração se há uma conjugação coerente entre os
elementos acima mencionados e se os resultados encontrados
são culturalmente aceitáveis.

No Brasil, a saúde foi considerada, do ponto de vista ético, como um


direito fundamental de todo cidadão, que deveria ser construído
em um sistema lastreado no princípio ético da equidade, tendo
como horizonte a universalidade e a integralidade da atenção, de
maneira que fizesse frente às diferentes condições de saúde da
população em decorrência das desiguais condições de vida da
sociedade brasileira.

Grande parte dos países no mundo, hoje, adotam a equidade e


a solidariedade como princípios norteadores das suas políticas
de saúde, explicitados na Declaração Universal sobre Bioética e
Direitos Humanos, da Unesco.

No Brasil e com as ideias expandidas para a América Latina, Garrafa


e Porto (2003), desde a década dos anos de 1990, vêm apontando
a equidade como princípio fundamental nas discussões das
políticas sociais e na mediação de conflitos que ocorrem na
assistência à saúde. Os autores preconizam, em decorrência
do cenário da globalização, a utilização de uma corrente crítica
denominada “Bioética de Intervenção” (BI), que tem a equidade
como eixo central das políticas na redução das desigualdades
produzidas pelos sistemas econômicos.

Nessa linha de pensamento, para a BI, os investimentos e as ações


do Estado devem priorizar as populações mais necessitadas,
dentro de um lógica utilitarista, consequencialista e solidária que,
a partir de decisões e ações concretas, busquem a obtenção dos
melhores resultados possíveis, para o maior número de pessoas,
pelo maior espaço de tempo e que resultem nas melhores
consequências coletivas.

30 Bioética Clínica
Atualmente, a crise econômica dos países mais desenvolvidos,
gerada pela globalização do ideário neoliberal com repercussões
nas políticas de bem-estar social, sobretudo nos países europeus,
tem colocado o princípio da equidade no centro do debate,
auxiliando na formulação de políticas sustentáveis que procurem
combinar o desenvolvimento econômico, social e humano com a
preservação das condições de vida no planeta.

Ao avaliar a participação do setor privado na saúde, por outro


lado, poderíamos considerar que do ponto de vista econômico,
do financiamento da assistência, seria uma medida equitativa a
participação do empresariado brasileiro (uma vez que mais de
70% dos planos são coletivos empresariais) e de determinadas
faixas socioeconômicas da população na contribuição de maiores
percentuais para assistência à saúde. Nessa linha de reflexão, o
setor público, no caso o SUS, poderia aplicar maiores recursos na
atenção à população mais necessitada.

Alguns estudiosos, como Carvalho (2010), no entanto, refutam


essa sugestão ao apontar o benefício da renúncia fiscal permitida
pelo Estado brasileiro na assistência privada de saúde, que
resultaria em um menor pagamento de impostos por parte das
pessoas e do empresariado que utilizam a assistência privada de
saúde. O Estado, nesse caso, perceberia um menor recolhimento
de impostos, diminuindo o poder de investimentos no setor
público, ou seja, para os mais necessitados.

A aplicação do princípio da equidade na contribuição tributária é


fundamental, pois além de promover maior justiça fiscal e social
na distribuição de recursos, no caso da saúde brasileira ela pode
permitir a constituição de patrimônio público na construção da
rede de serviços. Essa possibilidade não ocorre no financiamento
direto, indireto e/ou na compra de serviços privados, além de
aumentar a dificuldade do Estado na regulação do mercado,
sobretudo porque este não é o maior financiador e nem o maior
prestador direto de serviços de saúde no Brasil.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 31


Além disso, determinadas regras assistenciais do setor
privado, quando compatibilizadas com questões de equilíbrio
financeiro e margem de lucro, podem gerar desigualdades,
conflitos e distinções na atenção à saúde, como na questão do
envelhecimento ou na interferência da autonomia do profissional,
situações nem sempre compatíveis com os valores éticos e morais
da sociedade.

Na bioética o entendimento é de que essas parcelas mais


vulneráveis da coletividade não estão relacionadas somente com
as de menor poder aquisitivo, mas também com pessoas expostas
a condições de maior fragilidade, como crianças, gestantes, idosos,
pessoas com deficiências, entre outros.

Tais condições, portanto, não podem ser objeto de negociação


em relação a fatores que possam aumentar a condição de
fragilidade, pois a saúde (definida como um direito do cidadão e
dever do Estado) tem sua assistência financiada pela população,
seja mediante contribuição de impostos ao poder público ou
pagamento ao setor privado, tanto para diminuir os riscos de
agravos à saúde como para contribuir com a dignidade da vida
humana.

A bioética, portanto, tem se mostrado uma ferramenta de análise


essencial nos debates dos sistemas de saúde, pois ao tratar de
questões pontuais tem a capacidade de estender a análise para
temas mais gerais, mantendo coerência com princípios éticos e,
ao mesmo tempo, permitindo a discussão do contraditório, que,
conforme Habermas (1987), nada mais é que a outra face da
mesma razão.

O mundo como se apresenta, entretanto, com tantas diferenças


e desigualdades entre os povos e as pessoas, demanda aplicação
de princípios que possibilitem a abrangência dessa diversidade,
sendo a equidade um dos poucos que se revestem dessa
capacidade. Pois, como tão bem ressalta Ribeiro (2006, p. 8):

32 Bioética Clínica
Quando definimos se queremos uma sociedade de ampla
liberdade individual e de escassa solidariedade, ou uma que
tenha muita solidariedade, mas limite a liberdade de empreender,
esta é uma grande escolha – uma escolha política. É a escolha,
digamos, entre o egoísmo esclarecido e a solidariedade.

Os debates sobre a universalização do acesso à saúde, não só no


Brasil como no mundo, vêm refletindo essa tensão, tanto com o
aumento, em um primeiro momento, do financiamento privado
na saúde em decorrência da expansão do projeto neoliberal e
da globalização econômica, como da sua crise com retração do
financiamento nas últimas décadas.

Assim, bioeticistas, profissionais de saúde e organismos


multilaterais, como a Unesco e a OMS, têm se debruçado sobre
esses conflitos e a questão da cobertura universal na saúde, que
permanece como um dos grandes desafios para a humanidade
neste novo século.

O Brasil pode e deve aprofundar os debates em relação ao modelo


de atenção, da melhor regulação público-privada entre o SUS e
o setor privado de assistência, não se limitando a intervenções
pontuais e fragmentadas, diante do agravamento dos problemas.
Uma melhor governança desses setores, no entanto, exige
posicionamento ético, diretriz e metas, que no Brasil devem
concorrer para o acesso universal da população à saúde.

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informação da saúde suplementar: beneficiários, operadoras e planos de
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Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 35


Bioética clínica, biopolítica e
exclusão social

Márcio Fabri dos Anjos1

Em bioética clínica, tratar de exclusão social é como lidar com


más notícias em saúde. Trata-se de um assunto desagradável
até para ser abordado apenas na teoria. Isso se deve em parte
porque é sempre penoso entrar em contato com as carências, a
dor e o sofrimento das pessoas, e também porque tais situações
perturbam o sossego ao se tornarem uma interrogação subjacente
a nossas posturas pessoais diante dos fatos. Dessa forma, não é
rara uma reação de rejeição quase a priori ao tema.

De fato, criamos instintivamente defesas – assim como anticorpos


do sistema imunológico – e certa resistência a essa realidade,
as quais nos impedem de tratar sobre a exclusão social. Essa
característica foi identificada por Popper (2009) até mesmo
em especialistas e em suas teorias científicas. Além disso, a
desinformação sobre essa realidade social pode agravar esse
quadro. Entretanto, é necessário lembrarmos o quanto a
desigualdade excludente que nos rodeia também nos afeta
(POCHMANN, 2015). De fato, a expressão “corpo social” não é uma
simples metáfora, mas uma consistente analogia que inclui as
relações de saúde que temos em comum, como veremos adiante.

Dentro dos vários aspectos que o tema abrange, este estudo


visa a mostrar alguns fundamentos que ajudam a ilustrar uma
aproximação da bioética às questões da exclusão social, tendo
como referência as áreas clínicas da saúde. Nossa contribuição é
de esclarecimentos conceituais, dentro de um contexto de outros
estudos que expõem outros temas e aspectos.

1. Doutor em Teologia, docente do Programa de Doutorado em Bioética do Centro Univer-


sitário São Camilo (SP), coordenador do grupo de pesquisa sobre Fundamentos de Bioética
nas Atividades Profissionais, membro da Câmara Interdisciplinar de Bioética do Cremesp,
secretário da Sociedade Brasileira de Bioética (2015-2017), licenciado em Filosofia.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 37


Esclarecendo conceitos
Para maior compreensão do tema, selecionamos aqui alguns
termos recorrentes em nosso assunto, em busca não apenas de
uma melhor precisão conceitual, mas também para introduzir
vários problemas que estão subjacentes às conceituações.

Exclusão social: Na linguagem acadêmica, a expressão “exclusão


social” tem usos variados – podendo ser um termo genérico,
uma noção sugestiva (mesmo que imprecisa), um conceito
bem definido ou uma categoria de análise – e é, de certa forma,
considerada recente, uma vez que faz parte de diversas análises
contemporâneas de processos sociais. Essa expressão ganhou
força na década de 1980, com a percepção do que se chamou de
“nova pobreza”, difícil de ser enfrentada por estar sendo provocada
pela adoção de sistemas de vida social difusos, desfavoráveis à
inserção das pessoas e grupos sociais nas novas formas de vida
(LAFORE, 2008, p. 414). No Brasil, Martins (1997) a chamou de
“nova desigualdade”.

Mesmo que seja necessária uma discussão sobre as possíveis


definições conceituais do termo, não se deve perder de vista
nem obscurecer a dura realidade que lhe dá origem, ou seja, as
disparidades das condições sociais – que abrigam sofrimento,
dor, insalubridade e morte para grande número de indivíduos e
grupos sociais.

Exclusão social inclusiva: A exclusão social denota uma violência


(em geral mais implícita do que explícita) através de atitudes e
gestos responsáveis pela não participação de indivíduos ou
grupos de sujeitos humanos nas atuais formas de vida em
sociedade. Isso acontece de diferentes modos – seja por meio
de discriminação, interposição de obstáculos ou eliminação
de condições favoráveis à participação – e se mostra por suas
consequências, como pobreza, fome, insalubridade e demais
condições desfavoráveis de vida, tanto mais paradoxais quanto
se apresentam abundantes os recursos. É fácil perceber que a

38 Bioética Clínica
exclusão tem formas variadas, com espaços filtrados de inclusão −
o que não significa ser dolorosa e nefasta. Como veremos melhor, a
exclusão social resulta de jogos de poder que atuam segundo suas
conveniências e interesses, em que uma exclusão social radical e
absoluta, mesmo que aspirada por poderosos, é praticamente
inexistente. As exclusões sociais se dão de forma segmentada,
inclusive por interesse dos próprios sistemas que excluem ou
incluem as pessoas em diferentes áreas, sob o critério do poder
de domínio que exercem. Uma amostra disso está na condição
dos pobres para os quais se reserva uma faixa de mercado, em
que o poder se serve das parcas potencialidades de consumo dos
chamados “menos favorecidos” – um eufemismo que está cercado
pela hipocrisia do poder oculto, particularmente responsável
por tal desfavorecimento. Esses apartheids se multiplicam em
diferentes áreas, dando lugar a “inclusões excludentes” também
nas relações de cuidados de saúde.

Desigualdade: Com frequência, o termo “desigualdade” recebe


uma especificação da área em que esta se dá, como desigualdade
econômica, étnica, de gênero e semelhantes áreas da convivência.
Lexicamente “desigualdade” expressa uma condição de vida,
enquanto “exclusão” alude a uma ação. Entretanto, o fato de
se tomar com frequência uma pela outra parece se justificar
pela estreita interação entre ambas: a desigualdade resulta
de diferentes formas de exclusão, que a tornam crescente,
persistente e resistente aos esforços de reversão. Por esse motivo,
através da expressão “exclusão social” se busca chamar a atenção
para o próprio processo com que se tecem as desigualdades. A
desigualdade social é, às vezes, outro nome dado à exclusão e à
inclusão subordinadas.

Nessa dinâmica de ação, “exclusão social” é uma expressão cuja


razão de seu uso na bioética tem um caráter transitivo, isto é,
visa chamar a atenção para um processo em curso que aspira
à outra realidade. Desse modo, não é um jogo de provocação
muitas vezes entendido como feito apenas para irritar e perturbar,
mas, na verdade, pretende ser um caminho pelo qual se busca

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 39


compreender a exclusão exatamente para se sair dela (CLAVEL,
2000). Pensar sobre a exclusão social na bioética supõe um
movimento de saída para a inclusão social, que, por sua vez,
implica o desafio de compreender as diferenças através das quais
nos constituímos na vida.

Diferença e igualdade: O conceito de “diferença” é de extrema


importância quando se trata de pensar a ética da exclusão social,
especialmente porque, às vezes, ocorrem equívocos ao se propor
a igualdade como superação das desigualdades provocadas
pela exclusão. As diferenças são pertinentes a nossa condição
de ser. Mais do que isso, fazem parte essencial do megaprocesso
de construção, sustentação e evolução da vida em todos os
sentidos, pelo qual temos a possibilidade de nascer, crescer, nos
sustentar, transformar e progredir exatamente pelas diferenças
com as quais interagimos. A isso se deu modernamente o nome
de “biodiversidade”, que, ao descrever a enorme variedade das
formas de vida, mostra ao mesmo tempo a indispensável rede de
relações com que se tece também a vida humana. Fritz Jahr (1924)
formulara esses conceitos em termos de bioética, que foram
aprofundados filosoficamente por Jonas (2004) e estudados,
mais tarde, por vários autores como Naves e Sá (2013), que, em
nossos dias, ressaltam o grande ambiente da vida entrelaçado
pelas diferentes formas de vida biológica, e especificamente pelas
diferenças nas experiências humanas do pensar e adotar formas
de viver.

Resulta que seria um equívoco superar as desigualdades visando


eliminar as diferenças, pois isso representa uma tremenda violência
sobre os seres, bem como põe a grande questão do critério ou
poder que decide sobre o padrão da igualdade que se impõe. O
colonialismo (FEITOSA, 2015) é uma das críticas contundentes
que põe ao descoberto a imposição de padrões de uma cultura
sobre outra cultura, em suas formas de relações e produção de
vida e sua moralidade; em que a pretensa igualdade implica
desmerecer os valores do outro com consequente exclusão.
Muitas vezes a saída desse processo de dominação é formulada

40 Bioética Clínica
em termos de se postular igualdade, aliás, uma das bandeiras da
Revolução Francesa. Contrapondo-se à desigualdade, o postulado
da igualdade é sem dúvida uma vigorosa reivindicação ética,
mas seu sentido fundamental, para não ser contraditório, deve
subentender a igualdade de direitos de os diferentes sujeitos
individuais e coletivos serem respeitados em suas diferenças.
Em outros termos, postula-se igual qualidade de direitos em
diferentes materialidades ou condições da vida das pessoas. Essa
questão, como se verá adiante, tem uma particular incidência na
área clínica.

Inequidade: Este termo nem sempre é reconhecido pelos


dicionários e os aplicativos de correção automática, mas não
são esses instrumentos que determinam a validade conceitual
de um termo, pois eles correm exatamente atrás dos termos e
códigos de linguagem para prestar o serviço de registrar seus
significados. “Equidade” é o termo de referência ao qual se
contrapõem dois outros: iniquidade e inequidade. Essa diferença
de termos, ainda recente em nossa linguagem, presta um serviço
à exatidão do discurso bioético para distinguir o envolvimento
ético das pessoas nas desigualdades sociais. De fato, em sua
conceituação básica, a equidade é o exercício virtuoso da justiça.
Em contraposição, iniquidade significa a responsável adoção da
injustiça, por procedimentos ou atitudes. Entretanto, a variação
nas concepções de justiça se abre em grande debate de propostas
e gera, consequentemente, uma interrogação sobre a retidão do
seu exercício. Dessa forma, teóricos como John Rawls se veem
diante da necessidade de explicitar a “justiça como equidade”
(RAWLS, 2003). A bioética moderna, sensível à pluralidade dos
discursos, cuidando de evitar um apressado juízo moral sobre as
pessoas, serve-se do termo “inequidade” para expressar falta de
equidade enquanto condição ou circunstâncias desfavoráveis
a esta. A inequidade, portanto, se refere criticamente aos
contextos, deixando para um segundo momento a avaliação
ética das responsabilidades. Na literatura de bioética em inglês
é recorrente o uso atual dos termos “iniquity” e “inequity”, com a
variação conceitual de que falamos.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 41


Corpo social como desafio em bioética clínica
A exclusão social, pelos termos de sua expressão, não se entende
senão por referência às relações sociais. Uma primeira compreensão
de clínica, centrada no cuidado hospitalar à saúde de indivíduos,
pode subentender que a exclusão social não lhe diz respeito, isto
é, que na estrita relação com o indivíduo, a clínica não se envolve
com o sistema de relações sociais. A evolução das percepções
sobre esse assunto leva a reflexão hoje a propor o conceito de
clínica ampliada. Por ele se reconhece a necessidade de entender
o ser humano “também na sua inserção social, política e cultural,
na dinâmica de suas relações na família e comunidade, no acesso
a serviços de saúde, trabalho, educação, entre outros aspectos
que constroem seu processo de saúde/doença” (UNIVERSIDADE
FEDERAL DE SANTA CATARINA, 2012, p. 11).

Superando uma visão de saúde e doença reduzida aos aspectos


biológicos individuais, descobre-se a rede de relações sociais,
implicada em condições de salubridade, alimentação, moradia,
educação, trabalho, entre outras, da qual depende a saúde/doença
individual. Isto implica dizer que serviços e tratamentos médicos
prestados aos indivíduos estão estreitamente relacionados a
fatores sociais interferentes na constituição de sua saúde/doença,
sendo as situações individuais uma “representação da [sua]
inserção humana na sociedade” (Ibid., p. 14).

A expressão “corpo social” é aqui provocativa, por considerar o


alcance da exclusão social em bioética clínica. Sua analogia com o
corpo biológico dos indivíduos, e as interações da saúde/doença
individual com os processos sociais sugerem um ilustrativo
exame da saúde/doença do próprio tecido social. A interação
entre corpo e sociedade tem sido atualmente estudada em seus
diferentes aspectos, como o ilustra a interessante obra de Turner
(2008, 2014), mostrando especialmente espaços de interferência
social na representação dos corpos e suas consequências para as
formas de inserção, condicionamento ou exclusão das pessoas
nas relações.

42 Bioética Clínica
Entretanto, o passo das interferências da sociedade nos corpos
dos indivíduos, para se chegar à concepção da sociedade como
corpo é constituído, na visão de Foucault, exatamente pela
relação de poder que a sociedade exerce sobre a determinação
dos corpos individuais. Esse filósofo descarta a ideia de que um
corpo social seja constituído pelo conjunto das vontades, para
afirmar que “não é o consenso que faz surgir o corpo social, mas
a materialidade do poder se exercendo sobre o próprio corpo
dos indivíduos” (FOUCAULT, 1986, p. 146). Esse corpo social que
emerge pelo poder exercido não é anônimo, mas é constituído
por sujeitos concretos de ação política atuando “através de um
conjunto extremamente complexo de relações, que funciona de
forma extremamente sutil nos seus movimentos” (RODRIGUES,
2003, p. 119).

Isso permite dizer que o corpo social mostra o exercício de seu


poder autoconstitutivo, nos corpos das pessoas. O rosto de
pessoas excluídas mostra, no sofrimento de suas privações, a
truculência do corpo social sobre si mesmo. Como também é na
face de alegria das pessoas que se pode começar a ler o poder
benéfico do corpo social em ação. De fato, Foucault se contrapõe
a uma redução do poder a sua ação destrutiva, notando que “se
apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil.
Se ele é forte, é porque produz efeitos positivos” em diferentes
níveis, como no campo do saber. E prossegue: “é a partir de
um poder sobre o corpo que foi possível um saber fisiológico,
orgânico” (FOUCAULT, op. cit., p. 149).

Comentando as concepções foucaultianas de poder, Machado


(1986) ressalta que o poder não existe em si fora de práticas
e relações, mas se constitui a partir delas. E conclui que “esse
caráter relacional do poder implica que as próprias lutas contra
seu exercício não possam ser feitas de fora, de outro lugar, do
exterior, pois nada está isento de poder” (Ibid., p. XIV). Admitindo
tal ponderação, há dois aspectos que merecem ser notados.
O primeiro consiste na realidade de um exercício de poder
ativamente destrutivo no desdobrar de suas relações. Foucault

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 43


(op. cit., p. 145) é contundente em ressaltar o exercício do poder
autodisciplinador do corpo social em vista de uma modelagem
seletiva com procedimentos cirurgicamente excludentes:

É este corpo que será preciso proteger, de um modo quase médico:


em lugar dos rituais através dos quais se restaurava a integridade
do corpo do monarca, serão aplicadas receitas terapêuticas
como a eliminação dos doentes, o controle dos contagiosos, a
exclusão dos delinquentes. A eliminação pelo suplício é, assim,
substituída por métodos de assepsia: a criminologia, a eugenia,
a exclusão dos “degenerados”.

O segundo aspecto que merece atenção está na própria lógica da


afirmação de que a fragilidade do poder do corpo social se mostra
em seus aspectos negativos; somada à afirmação de que o poder
não existe em si, mas se constitui nas relações, pode-se concluir que
o rosto dos excluídos tem a capacidade de mostrar a fragilidade
do poder. O poder histórico dos excluídos de transformar as
relações sociais é um tema amplamente argumentado por Dussel
(1995, 2000), comentado no interessante estudo de Pinto e
Raposo (2014) e refletido por muitos autores em aproximações
filosóficas comunitárias e de libertação. Entretanto, mesmo sem
entrar nessa discussão, parece lógico reconhecer ao menos o
poder atuante do sofrimento das pessoas excluídas em revelar as
fragilidades do corpo social. Esse clamor que vem do sofrimento
persiste como interpelação constante sobre os processos sociais
das organizações do poder. Ele revela a impotência e fragilidade
de sistemas sociais que se acham ideais, e bate igualmente às
portas de indivíduos e grupos capazes de o escutarem.

Bioética clínica, exclusão e biopolítica


As necessidades dos cuidados em saúde estão implicadas nos
jogos sociais do poder de tal modo que tem crescido a consciência
de que uma adequada organização desses cuidados exige
uma ação política na sociedade global. Vimos acima como as
concepções propostas em termos de clínica ampliada se referem

44 Bioética Clínica
à ampla rede de interações da saúde/doença com as diferentes
áreas da convivência. O aprofundamento analítico desse fato tem
procurado entender os bastidores dessas interações, os sistemas
e organizações que delas resultam, e através de critérios éticos, as
alternativas a serem propostas.

A “biopolítica” é um termo contemporâneo que, de modo geral,


compreende as formas de exercício do poder sobre a vida em
sociedade como sistemas de interferência e controle a serem
devidamente considerados em vista do bem comum. Abre-se em
diferentes concepções de política, com consequentes variações
em sua conceituação (BAZZICALUPO, 2012). Aqui nos limitamos
apenas a lembrar alguns autores e obras que trazem importantes
contribuições aos fundamentos da bioética clínica diante da
exclusão social. Destaca-se, nesse sentido, a crítica aos sistemas
da saúde/doença, que subtrai a área médica dos sujeitos para
servir ao interesse dos seus controladores. Uma importante crítica
sobre tais distorções é feita por Ivan Illich em A expropriação da
saúde: nêmesis da Medicina, de 1975.

Em 1979, foi publicada a primeira edição de Microfísica do


poder, de Foucault, em que há explícitas considerações sobre a
área clínica, abrangendo o nascimento da medicina social e do
hospital, entre outros. Na mesma época, o autor desenvolve um
curso no Collège de France sobre o nascimento da biopolítica,
postumamente transcrito e transformado em livro (FOUCAULT,
2004). Ele distingue na biopolítica uma forma de poder disciplinar
que exerce controle sobre os corpos, que pode ser absoluto
como o poder soberano de impor a pena de morte; e contrapõe
a passagem às formas contemporâneas de biopoder, pelo qual
se governam as dimensões globais da vida das populações,
controlam as formas de fazer viver ou de deixar morrer (Id., 1999).

Mais recentes, merecem atenção as contribuições de Hardt e


Negri, principalmente na obra Império, em que argumentam
sobre a articulação de um domínio não mais territorializado, mas

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 45


tornado virtual e expandido com incrível eficiência, de tal modo
que a sociedade se caracteriza

por uma intensificação e uma síntese dos aparelhos de


normalização e disciplinaridade que animam internamente
nossas práticas diárias e comuns, mas, em contraste com
a disciplina, esse controle estende bem para fora os locais
estruturados de instituições sociais mediante redes flexíveis e
flutuantes. (HARDT; NEGRI, 2001, p. 42-43)

A trilogia de Agamben em Homo sacer (2004) também dedica,


nessa direção, o precioso volume O poder soberano e a vida nua.
O autor, em intensa interação com pensadores contemporâneos,
desenvolve a distinção entre o simples viver (vida nua), e as
qualificadas e complexas formas do viver em grupo e sociedade
(biopolítica). Valério (2013, p. 188) sintetiza que, para Agamben,

a partir da modernidade […] o espaço da vida nua, situado


originalmente à margem do ordenamento, vem a coincidir
com o espaço político e, assim, exclusão e inclusão, zoé e bíos,
direito e fato, phýsis e nómos entram em uma zona amorfa e
tornam-se indistinguíveis. Este espaço […] é o espaço biopolítico
por excelência, pois, ao embaralhar as duplas categoriais
fundamentais da política ocidental, o poder soberano tem diante
de si uma vida nua sem qualquer mediação, ou seja, uma vida
totalmente desqualificada, mas no entanto e justamente por
isso, excessivamente politizada à mercê, portanto, de um poder
que, no limite, é um poder de morte.

Esposito (2004, 2008, 2012) contribui para o tema situando a


biopolítica na contraposição dos conceitos de “comunidade”
e de “imunidade”, na qual, sob certo sentido, a imunidade é o
contrário de comunidade por ser isenção de obrigações de
cuidado e de solidariedade nas necessidades comunitárias; mas,
em outro sentido, assim como os corpos individuais necessitam
de imunidade, também para os corpos sociais a imunidade tem
dimensões benéficas. Essa é uma das interessantes vertentes com
que Esposito coloca os desafios da biopolítica, inclusive diante da
questão de métodos totalitários para defender um corpo social.

46 Bioética Clínica
Na América Latina, em perspectivas da bioética, muitos
conceitos básicos da biopolítica vêm sendo pensados há várias
décadas, mesmo que não seja sob esse título. Sem menosprezar
a sensibilidade de teóricos de outras regiões a injustiças, a
trajetória latino-americana, porém, tem se caracterizado por
um procedimento inverso, colocando à frente a experiência das
inequidades e exclusões sociais, solicitando de modo contundente
teorias e práticas capazes de revertê-las. São ilustrativas, nesse
sentido, as formulações teórico-práticas que, a partir da década
de 1960, emergiram e se desenvolveram – como a teoria da
dependência (SANTOS, 2000), a teologia da libertação (GUTIERREZ,
1972), a teoria sobre a colonialidade do poder (QUIJANO, 1967),
as propostas de Paulo Freire (1992) na Pedagogia do oprimido,
a Bioética da Intervenção (GARRAFA; PORTO, 2003) e a Bioética
da Proteção (PONTES; SCHRAMM, 2004; KOTTOW, 2004). Um
momento também notável pela qualidade e projeção mundial
do pensamento latino-americano a esse respeito se deu com
a realização, em 2002 em Brasília, do V Congresso Internacional
de Bioética sobre o tema “Bioética: poder e injustiça” (GARRAFA;
PESSINI, 2003).

Com a entrada do termo na linguagem acadêmica, as abordagens


com referência explícita à biopolítica, em perspectivas de bioética,
são hoje frequentes. De modo sistemático se realizam encontros
acadêmicos organizados por universidades, como o V Colóquio
Latino-americano de Biopolítica – realizado pela Universidade do
Vale do Rio dos Sinos em 2015 –, voltado especificamente para a
Educação.

Sem perder o foco deste estudo, vemos que a exclusão social está
reconhecida como uma realidade sistêmica de grande proporção,
cuja reversão exige atuações correspondentemente em âmbito
de sistemas, sob o risco de se reduzir a ações assistenciais e
paliativas. Essa percepção biopolítica tem sido uma expressiva
marca da bioética na América Latina de modo geral e no Brasil em
particular. Expressa-se com abundância em críticas e propostas
referentes a políticas públicas, entre as quais, as políticas de saúde

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 47


e, especificamente, clínicas têm um lugar privilegiado. É ilustrativa,
nesse sentido, uma análise desenvolvida por Cunha (2014) sobre
as propostas – lideradas pela Organização Mundial da Saúde e
agências da Organização das Nações Unidas (ONU) – referentes ao
lugar da saúde global na Agenda de Desenvolvimento Pós-2015.
Cunha (Ibid.) identificou apropriadamente incoerências éticas
nessas propostas de política internacional, que, à primeira vista,
parecem bem consistentes. Seu estudo, derivado de tese doutoral
assim como outros, indica que os cursos stricto sensu de bioética
no Brasil vêm incentivando o aprofundamento dessa perspectiva
crítica, com a inserção de nova geração de bioeticistas.

Das teorias às práticas


Ao final dessa abreviada visita a fundamentos teóricos da bioética
clínica perante a exclusão social, vale considerar os desafios de
quem se encontra em meio às práticas diárias das atividades
profissionais, gestão de instituições, pesquisa e serviços dos mais
diversos cuidados clínicos. As teorias nem sempre se ajustam às
práticas, às vezes por serem inadequadas aos contextos, ou mesmo
insuficientes. Contudo, muitas vezes parecem distantes porque
apontam para espaços a se conquistar, caminhos a percorrer.

A reflexão sobre exclusão social e aspectos da biopolítica pode


parecer um devaneio para quem se dá conta dos condicionamentos
e pressões que cercam seus empreendimentos e atividades diárias.
E é compreensível que um sentimento de impotência leve com
frequência a uma acomodação dentro dos sistemas, ou mesmo a
estratégias de sobrevivência diante de poderes maiores. Mas, de
um modo ou de outro, todo ser humano participa das relações
sociais através de seus sistemas e organizações, sob a condição de
não se fazer imune a suas dinâmicas.

Um ponto de desequilíbrio possível nessa condição é assumir


a dimensão de poder que se tem (mesmo que seja limitada) e
passar a interagir nas relações. Isso até se verifica com facilidade

48 Bioética Clínica
nas competições frequentes entre indivíduos e entre grupos
pela disputa de espaços e vantagens, mas mais se parece a
uma simples reprodução do poder maior, como o biopoder que
domina e orquestra as vontades individuais e grupais. Por isso,
o desequilíbrio decisivo se dá nas escolhas que levam a escapar
do poder como dominação, um poder no fundo frágil e medroso,
como se apontou. Nesse contexto, o reconhecimento das
exclusões sociais expõe as fragilidades do poder que domina. E a
busca de superação das exclusões significa a opção por realizar o
biopoder como realmente capaz de servir ao bem de todos.

A bioética na área clínica procura ser uma instância de atenção


e crítica às questões éticas que permeiam as organizações
e as atividades cotidianas. As exclusões sociais repercutem
diretamente nessa área exatamente pela relevância dos benefícios
que nela se propiciam, e que se tornam objeto de controle de
muitos a serviço de interesses particulares. As leituras críticas,
por mais árduas e incômodas que sejam, visam a uma construção
conjunta, reconhecida e associativa das pessoas que lutam por
convivências sociais cada vez mais includentes e participativas.

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52 Bioética Clínica
Justiça sanitária como tema de reflexão
para a bioética clínica

Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli1


José Roque Junges2

A inclusão da justiça sanitária na discussão da Bioética Clínica


significa ampliar os referenciais éticos desta, fazendo-os ultrapassar
os princípios da autonomia, beneficência e não maleficência, o
que, de certa maneira, propicia a inclusão de outros enfoques
nas reflexões, não as restringindo ao principialismo. As exigências
éticas do cuidado clínico têm o direito à saúde como horizonte
ético, que precisa balizar as reflexões e processos de tomada de
decisão em conflitos morais. Isso significa partir de uma visão
ampliada de saúde e clínica, que engloba os determinantes sociais,
o contexto sociocultural e a (inter)subjetividade na compreensão
e acompanhamento dos processos de saúde e doença. Por isso,
preconiza-se que o ponto de partida e chegada da clínica seja
a Atenção Primária à Saúde (APS), que se caracteriza pela visão
ampliada de saúde e cuidado e é a porta de entrada preferencial
do usuário para o acompanhamento clínico na Rede de Atenção
à Saúde (RAS). Assim, a bioética clínica precisa se desfocar
dos problemas morais típicos da realidade hospitalar a fim de
englobar as questões éticas implicadas no cuidado longitudinal,
característico da clínica ampliada. A inclusão da justiça e da
responsabilidade sanitárias na reflexão da bioética clínica
pretende responder à preocupação de não restringir as questões
éticas ao nível individual do cuidado, mas incluir as dimensões
coletivas, pois não se pode cuidar de alguém individualmente
1. Docente associada da Universidade de São Paulo (USP), professora visitante do
Programa de Doutoramento em Enfermagem da Universidade Católica Portugue-
sa (UCP) e coordenadora da Dupla Titulação para o Doutorado em Enfermagem
(EEUSP/UCP).
2. Professor de Bioética nos cursos de graduação da área de saúde e professor/
pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade
do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa
da Unisinos, líder do grupo de pesquisa CNPq “Bioética e Saúde Coletiva”.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 55


se não existir, ao mesmo tempo, interesse pelo contexto social
dessa pessoa, incluindo as possibilidades ofertadas pela RAS de se
efetivar o direito à saúde (FORTES, 2003; FORTES; ZOBOLI, 2003).

Confrontar a bioética clínica com a justiça sanitária significa


redirecionar as reflexões sobre justiça, ainda que tomada como
princípio, para a perspectiva do coletivo e das políticas públicas,
afastando-se do “hospitalocentrismo” e da especialização que
marcam o sistema de saúde e a formação dos profissionais. A
clínica precisa ser eticamente questionada a partir dos princípios e
diretrizes do SUS: universalidade, integralidade e equidade. Estes
são referenciais éticos que propiciam discutir o lugar do coletivo
e o papel da responsabilidade sanitária na bioética clínica. Ao
refletirmos sobre esta área, precisamos ter como ponto de partida
não o hospital, mas a APS, que toma a atenção à saúde como uma
produção corresponsável entre o trabalho coletivo da equipe e o
usuário. Desse modo, as reflexões acerca da bioética clínica não
envolvem somente problemas éticos da relação médico-paciente,
ou melhor, esta relação abre-se em chave de cidadania e justiça
sanitária. Nessa chave, quando se encontram o profissional de
saúde e o usuário, entende-se que estão presentes no encontro
de cuidado dois cidadãos: o que usufrui um bem público por
direito (usuário) e o que tem a responsabilidade de distribuir e
promover o acesso a esse bem. Ou seja, compreende-se que é,
também, nesse encontro intersubjetivo, que se dá o trabalho vivo
em ato3 da atenção à saúde, e que se efetivam, ganham vida e
corpo na clínica os princípios e diretrizes norteadores da política
pública de saúde. Os encontros de cuidado, assim, são vistos
como espaço corresponsável de produção de saúde que inclui, no
mínimo, duas pessoas (um usuário e um profissional) iguais em
dignidade humana e cidadania – por isso, são merecedoras do
mesmo respeito. O profissional de saúde e o usuário são pessoas
com biografias e trajetórias de vida distintas e, no processo
saúde-doença em tela no encontro de cuidado, estão em posições
3. Na saúde, o “trabalho vivo em ato” é o trabalho humano no exato momento em
que é executado e que determina a produção do cuidado. A produção na saúde
realiza-se, sobretudo, por meio desse trabalho (MERHY; FRANCO, 2009).

56 Bioética Clínica
e momentos diferentes. Assim, cria-se a necessidade ética de um
diálogo entre ambos, com base na igual dignidade que têm para
que seja possível o bem cuidar, o cuidado justo (ZOBOLI, 2009).

Atendendo ao que está determinado na Constituição Federal,


as políticas públicas de saúde precisam ser responsivas e
democráticas, pois respeitar o direito à saúde, como definido
constitucionalmente, supõe mudanças de ordem social e
econômica, que determinam condições precárias e insalubres de
vida e trabalho e de ordem jurídica e política para que se deixe
de perpetuar as desigualdades na distribuição de bens e serviços
(ARAUJO, 2015; OLIVEIRA, 2015). Então, os recursos precisam se
alinhar às reais e atuais necessidades de saúde da população, a
fim de garantir a efetividade do direito à saúde, que perpassa a
qualidade das ações e serviços. Dessa forma, será “considerado
inefetivo o direito, se a ação ou o serviço não for realizado
com qualidade” (OLIVEIRA, 2015, p. 81). Apesar de o sistema de
saúde brasileiro ser universal, persiste a exclusão, iniquidades e
o “despertencimento dos mais vulneráveis, acarretando trágicas
perdas para a cidadania” (Ibid., p. 83). Portanto, para a efetividade
do direito à saúde, é obrigatória a procura de soluções e o
fortalecimento de iniciativas para combater a injustiça e a exclusão
sanitárias (Ibid., 2015).

O que abre espaço para a inclusão da justiça sanitária como


tema de reflexão para a bioética clínica são as questões relativas
à assistência compreendida como a efetivação de uma política
pública que acontece no trabalho vivo em ato que preconiza a
saúde como direito de cidadania. Somente com essa inclusão,
cremos que será possível ampliar as discussões da bioética
acerca da humanização da assistência (especialmente no SUS)
e do corrente viés da culpabilização dos profissionais de saúde
e dos usuários, e dirigi-las a partir de uma visão mais global da
responsabilidade social (coletiva) na construção de um sistema
público de saúde de base solidária e com governança sanitária.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 57


Princípios do SUS na clínica
No principialismo de Beauchamp e Childress (2002), a autonomia,
a beneficência, a não maleficência e a justiça caracterizam-se por
ser princípios prima facie, isto é, todos são igualmente obrigatórios,
a menos que, em determinada situação, um deles não se
impuser sobre os demais. Por exemplo, quando as exigências da
beneficência superam as da justiça, ou as da autonomia superam
as da beneficência.

Os princípios do SUS – universalidade, integralidade e equidade


(PAIM; SILVA, 2010) − não são prima facie, porque não entram em
conflito entre si de forma que um seja mais obrigatório que outro,
ou seja, são complementares. Esses três princípios se exigem
mutuamente para que cada um possa atingir o respectivo objetivo:
efetivar-se na atenção à saúde. Por isso, para que se chegue à
justiça sanitária é necessário considerar os três princípios, sem
dissociação. O alcance do objetivo de cada princípio depende do
contexto coletivo da efetivação deste. Assim, o coletivo fornece
as condições para que os princípios sejam efetivos e a justiça
sanitária seja alcançada no exercício clínico.

A universalidade e a equidade se exigem mutuamente,


entretanto, pautam-se por valores diversos. A primeira diz
respeito à igualdade no acesso universal aos serviços para obter-
se respostas às necessidades de saúde, e a segunda se baseia na
diferença no acesso aos recursos, uma vez que as necessidades e
as respostas que estas requerem são diferentes (segundo os ciclos
de vida e os contextos sociais). As diversidades específicas e as
peculiaridades de cada situação de necessidade são objeto da
equidade e corrigem a igualdade formal da universalidade, e esta,
por sua vez, impede que aquela abra caminhos para privilégios no
acesso. Essa correção mútua entre universalidade e equidade só é
possível se os dois valores que esses princípios dos SUS suportam –
igualdade (universalidade) e diferença (equidade) –, se efetivarem
mais pela construção de condições coletivas que propiciem a
concretização destes do que por considerações individuais.

58 Bioética Clínica
O termo acesso, por vezes, pode parecer impreciso por não
distinguir oferta e uso dos serviços; o uso de acessibilidade,
por outro lado, engloba efetividade do acesso e resolubilidade
(TRAVASSOS; MARTINS, 2004). A efetivação da universalidade
do acesso é desafio complexo na medida em que é determinada
pela configuração dos serviços e rede de saúde; pelo contexto
sociocultural e econômico configurador das necessidades em
saúde; pelo modo como estas são percebidas, demandadas e
ofertadas. O acesso efetivo, então, está ligado a e depende de
três fatores: os processos de trabalho (nível micro), a organização
dos serviços (nível meso) e o modelo do sistema de saúde (nível
macro). Os limites e avanços usualmente apontados nas avaliações
do acesso se referem, quase exclusivamente, aos níveis micro e
meso, isto é, ao tipo de atendimento e à estrutura organizacional
do serviço. Aborda-se pouco o desafio de transformação do
modelo de atenção e gestão, verdadeira causa dos limites e o
potencial facilitador dos avanços na realização da universalidade
do acesso (BARBIANI et al., 2014). Isso significa que o uso efetivo,
pelos usuários, da oferta disponibilizada pelo serviço de saúde
depende da construção de condições coletivas, e estas, por sua
vez, são dependentes, também, do modelo de atenção e gestão
que podem facilitar o acesso e as respostas às reais necessidades
da população. Portanto, a universalidade do acesso precisa estar
associada à equidade no alcance e aproveitamento dos recursos
necessários à resolubilidade dos agravos à saúde.

Pode-se falar de dois tipos de equidade: a horizontal e a vertical


(ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE LA SALUD, 1999; SILVA;
ALMEIDA-FILHO, 2009). A primeira se pauta pela universalidade
no acesso, podendo ser confundida com este outro princípio do
SUS. Nesse entendimento, equidade significa assinalar recursos
iguais e equivalentes para iguais necessidades, isto é, a decisão
sobre a destinação dos recursos financeiros, técnicos e humanos
considera as necessidades e carecimentos da população e,
uma vez que estas estejam definidas, todos têm acesso igual
e equivalente aos recursos. A equidade vertical refere-se aos
recursos diferenciados para níveis diferentes de necessidade, a

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 59


fim de atender às necessidades de grupos específicos escolhidos
devido à fragilidade, à urgência e à vulnerabilidade em que estes
se encontram. Desse modo, torna-se eticamente legítimo – e até
um imperativo – privilegiar determinados ciclos da vida e certos
grupos no alcance de certas ações de saúde. A equidade vertical
aprofunda a avaliação das necessidades e carecimentos em
saúde, ao acrescentar a perspectiva da diferença e da diversidade
ao enfoque da igualdade e da universalidade que caracteriza a
equidade horizontal.

Se a universalidade e a equidade dizem respeito ao acolhimento


no acesso aos recursos e aos serviços, a integralidade os completa
porque oferece os referenciais éticos para balizar o itinerário do
usuário na RAS, a partir dos valores primordiais de cuidado e
vínculo. Não basta acolher os cidadãos no acesso aos serviços, é
preciso reconhecer e fortificar o vínculo intrínseco ao encontro de
cuidado e acompanhar a longitudinalidade do projeto terapêutico.

A integralidade diz respeito a práticas e a processos de


atendimento, no qual incidem diferentes dimensões do ser
humano e diversos níveis organizacionais do serviço. É possível
falar em “integralidade focalizada”, ou seja, a que acontece no
espaço delimitado dos serviços de saúde. Nessa vertente, a
integralidade significa o encontro do usuário com a equipe
de saúde preocupada e compromissada em realizar a escuta
das necessidades de saúde da pessoa que busca o serviço com
demandas específicas. A equipe é responsável por decodificar
e atender da melhor maneira possível à demanda, verbalizada
ou não, do usuário. A integralidade, nesta dimensão mais
focal, decorre do esforço e da confluência de vários saberes da
equipe multiprofissional no espaço concreto dos serviços de
saúde (CECÍLIO, 2001). Um dos saberes profissionais é o técnico,
entretanto, o autêntico profissional faz mais que operar técnicas,
isto é, sabe operá-las de forma extremadamente competente e,
também, sabe pô-las a serviço de um cuidado integral e justo
(CORTINA, 2013).

60 Bioética Clínica
Para a integralidade nos serviços, a prática da equipe
multiprofissional deve pautar-se na capacidade de acolher
e atender às necessidades de saúde dos usuários, que são
captadas na expressão individual. Essa atitude de acolhimento
e escuta ativa propicia a tradução das necessidades do usuário,
com espaço para a complexidade em que se engendram, pois a
atenção do profissional transcende o puro pedido explícito por
assistência à saúde. A tradução, decodificação de uma demanda
na complexidade e singularidade que simultaneamente a
conformam possibilita a concretização da integralidade na
atenção dispensada por um serviço local de saúde. Esse tipo
de integralidade propicia o acolhimento e o vínculo do usuário,
solidificando a relação deste com os profissionais e com o serviço,
e abre caminho para a integralidade como objeto de rede
(referência e contrarreferência) (CECÍLIO, op. cit.).

Todos precisam ser mutuamente reconhecidos para conseguir


levar a cabo uma vida realizada, saudável, ser um profissional
competente e satisfeito, porque o individualismo é ilusão dos
tempos modernos. No núcleo da vida social não estão indivíduos
isolados que, em algum momento, decidem se associar, mas
pessoas que já nascem em relação, ou seja, já nascem vinculadas;
um vínculo de cuidado que torna possível a sobrevivência, o
crescimento, o desenvolvimento biológico e cultural (CORTINA,
op. cit.). A ética do cuidado é mote para a atuação zelosa no
mundo e evita o preço da falta de cuidado: não prestar atenção;
não escutar; estar ausente e não presente; não responder
com integridade, respeito (GILLIGAN, 2013); não considerar a
integralidade, a universalidade e a justiça.

A integralidade focada dos serviços de saúde é insuficiente


para facilitar o acesso às tecnologias de ponta, para aumentar a
resolubilidade das ações e para a melhoria do atendimento. Para
isso, é preciso articular os diferentes pontos da RAS, os vários
níveis de atenção e implementar ações intersetoriais para agir nos
determinantes sociais de saúde. Essa é a integralidade em rede,
resultante da articulação das diferentes especificidades e âmbitos

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 61


de serviços da rede a partir de uma visão mais global do sistema
de saúde, com múltiplos pontos de atenção, fluxos, itinerários de
cuidado.

A “integralidade ampliada”, em rede, compreende a articulação


das “integralidades focalizadas” em rede processual e institucional,
em que cada serviço de saúde é um epicentro. As necessidades
de saúde singulares e coletivas das pessoas e grupos devem
constituir o alvo dos serviços de saúde, desde a APS até os serviços
de alta e média complexidade, a fim de ser possível a articulação
de fluxos e processos de diferentes níveis, envolvendo pontos de
atenção da rede para que a integralidade no “micro” seja refletida
no “macro” e vice-versa. A organização articulada dos diversos
níveis “macro” possibilita maior integralidade ao nível “micro”, o
que resulta em maior resolubilidade na resposta (CECÍLIO, op. cit.).

A integralidade ampliada é fruto da relação articulada e


complementar entre a integralidade no cuidado de cada
profissional e equipe e a integralidade da rede de serviços de
saúde – com fluxos de referência e contrarreferência – e das
ações intersetoriais sobre os determinantes sociais da saúde.
Essa compreensão bidimensional da integralidade, focalizada
e ampliada, possibilita radicalizar a ideia de que as múltiplas
e singulares necessidades de saúde das pessoas, individual
e coletivamente, sejam o foco, o objeto, a razão de ser, por
excelência, de cada serviço e do sistema de saúde. A integralidade
focada nas necessidades do usuário, em articulação com a
ampliada na interação com a rede de saúde, é o mote ético da
clínica ampliada, sendo essencial para inclusão da justiça sanitária
como tema para a reflexão da bioética clínica.

Mattos (2001) aponta três níveis de integralidade. O primeiro


decorre do movimento da medicina integral e se refere às atitudes
dos profissionais nas práticas de saúde. O segundo diz respeito à
organização dos serviços, assim, a integralidade não se restringe
à atitude, mas marca o modo de organizar o processo de trabalho
nos serviços de saúde. O terceiro nível de integralidade se refere
às respostas governamentais aos problemas de saúde das pessoas

62 Bioética Clínica
ou às necessidades específicas de grupos. É possível afirmar, então,
que a integralidade é princípio ético basilar para a prática clínica,
a organização do trabalho e a formulação das políticas de saúde.

Responsabilidade sanitária e cidadania na


bioética clínica
Não existe justiça sanitária sem responsabilidade sanitária, pois se
trata de encarregar-se das condições para que o direito à saúde
se efetive numa situação concreta de necessidades e agravos à
saúde. Essa exigência engloba, antes de tudo, a responsabilidade
clínica que diz respeito ao diagnóstico, prognóstico e terapêutica
do problema, queixa que aflige a vida de um indivíduo. Contudo,
esse indivíduo provém de determinado contexto, vive em certo
ambiente e pertence a um coletivo concreto que configura
os determinantes sociais dos processos de saúde e doença e
as condições socioambientais para levar a vida. Por isso, para a
excelência do cuidado clínico individual, por imperativo ético, não
se pode desconhecer esses determinantes e condicionantes; estes
precisam ser objetos de interesse e atenção de quem se faz cargo
do quadro clínico das pessoas que acorrem aos serviços de saúde.
Isso significa ampliar e compaginar a responsabilidade clínica e a
sanitária, a partir da preocupação com as condições ambientais e
coletivas que possibilitam a efetiva recuperação e qualidade de
vida das pessoas e grupos.

O termo “responsabilidade”, classicamente, associava-se ao


conceito jurídico de imputabilidade, ou seja, a aplicação da pena
e reparação do dano por determinada infração a uma obrigação
legal. Aos poucos, o entendimento de responsabilidade foi
adquirindo um cunho mais moral, passando da mera imputação
para a atribuição e retribuição, isto é, atribuir a determinado autor
a ação e debitá-la a este, pedindo contas. Com essa passagem da
imputação para a adscrição de uma ação, tornar-se responsável
passou a significar render contas. Essa compreensão moral de
render contas exigiu reflexão sobre a capacidade de alguém

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 63


ser imputado ou atribuído por determinado ato. A discussão
sobre a capacidade de imputação ou atribuição, desenvolvida
principalmente por Kant, dizia respeito à causalidade e à liberdade
das ações humanas. Contemporaneamente, o significado moral
de responsabilidade vem se aprofundando com a inclusão da ideia
de solidariedade (LEVINAS, 1988) e de prevenção (JONAS, 2006).
Isso significou o deslocamento do objeto da responsabilidade das
ações (sentido jurídico de imputação e atribuição de ações) para
o outro vulnerável e frágil, que corre riscos e pode sofrer danos –
sentido moral de adscrição e cuidado de pessoas (RICOEUR, 1999;
NEUBERG, 2003).

A responsabilidade no âmbito clínico não pode ficar reduzida ao


sentido jurídico, por exemplo, da imputação e atribuição de erros
médicos por negligência, imperícia e imprudência, mas precisa
assumir o significado moral de fazer-se cargo e assumir alguém
em sua vulnerabilidade. Isso requer que se inclua na clínica os
valores da promoção da saúde, desenvolvendo a sensibilidade
para a vigilância em saúde nos territórios e ambientes onde vivem
os usuários sob a responsabilidade clínica do profissional, das
equipes. Assim, a responsabilização clínica assume uma dimensão
coletiva, imprescindível para o alcance da justiça sanitária.

A responsabilidade como imputação jurídica implica a


compreensão individual do autor ao qual se atribui uma ação, ou
seja, sempre há um indivíduo, alguém determinado, identificado
que deve ser responsabilizado pela ação, em certo sentido,
culpabilizado. Na visão moral da responsabilidade, ao fazer-se
cargo de quem está em situação de vulnerabilidade, a adscrição
da ação supera a atribuição individual, porque o cuidado
requerido depende da equipe de saúde que se responsabiliza
pelo enfrentamento coletivo da situação de desigualdade de
poder e das condições que geram a vulnerabilidade, com vistas
à construção de condições socioambientais de empoderamento
e cidadania.

Em seu sentido mais simples, cidadão é o membro de uma


comunidade política, obrigado a certas responsabilidades que

64 Bioética Clínica
são inerentes a essa condição de pertença a uma sociedade. Ser
cidadão é uma das dimensões humanas com mais repercussão na
vida de uma pessoa e na sociedade (CORTINA, 2001). Assim, não
pode ser diferente para os profissionais de saúde e usuários dos
serviços. A cidadania é um papel de todos, que se constitui em
uma sociedade feita por relações interpessoais de pertencimento
e equidade. A cidadania é via de mão dupla, dizendo respeito ao
que representa a pessoa para a coletividade e qual o significado
desta para a primeira, assim, as duas partes se reconhecem na
experiência do dia a dia (Ibid.) para exercício de responsabilidades
e efetivação de direitos.

O termo “cidadão” surgiu na Revolução Francesa para designar a


igualdade e substituiu, assim, os títulos honoríficos da sociedade
hierarquizada que havia sido derrubada. Alberga uma dimensão
legal e política, que legitima a reclamação de direitos e delimita
uma relação de participação na comunidade política, mas
também tem as dimensões econômica, social, civil, intercultural,
cosmopolita, organizacional. Na década de 1990, a cidadania já era
uma síntese dos conceitos de justiça e pertencimento (Ibid.). Essa
é a época da consolidação constitucional da saúde como direito
no Brasil, resultando no SUS. Então, não parece demais afirmar que
a cidadania precisa estar presente na clínica para se efetivarem
a justiça e a responsabilidade sanitárias. A cidadania deve
acompanhar a inclusão da justiça nas reflexões da bioética clínica.
E não basta uma cidadania de direitos, respaldada em estatutos
legais, ou seja, além da participação cidadã para o alcance das
liberdades civis, políticas e os irrenunciáveis direitos subjetivos.
É preciso construir espaços dialógicos para que se consiga uma
sociedade melhor, que nos transforme em cidadãos conscientes
e responsáveis (Ibid.). O sistema de saúde brasileiro tem previsto,
em todos os níveis, espaços para o diálogo de todos os envolvidos
nas ações, serviços e gestão de saúde, incluindo os governos. Com
isso, não estamos deixando de lado que, apesar de ser essencial
a participação ativa de todos, a administração dos governos tem
a máxima responsabilidade pela saúde, especialmente a pública,
pois está a cargo do planejamento, formulação, execução e

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 65


controle das políticas públicas da área (LARIOS, 2015). Os espaços
para diálogo já existem na saúde brasileira, então, é preciso
envolver-se nestes como cidadãos responsáveis e zelar para que
tais fóruns se guiem pela premissa ética da justiça em saúde, sem
exclusões ou privilégios de grupos. Dessa forma, parece-nos que a
bioética clínica tem que se articular com a bioética social.

Confiança e cidadania na bioética clínica


A existência de um estado de direito é uma conquista humana
com caráter normativo que protege valores, bens e interesses
da comunidade. O interesse em proteger esse estado de direito
deveria ser suficiente para que os cidadãos respeitassem e
cumprissem as leis com sentido de justiça. Mas, não basta
a dimensão legal, pois corre-se o risco de pensar que todos
os problemas se resolverão com a proliferação das leis, em
detrimento da responsabilidade de construirmos, na relação
com o outro, a coisa (res) pública, fazendo da cidadania algo mais
operacional e concretizado do que declarativo (CORTINA, 2001).
Os cidadãos discrepam entre si quanto aos interesses pessoais,
preferências, visões de mundo, mas devem se unir por meio de
um diálogo racional que concretize o empenho de cada um para
pensar e equacionar conjuntamente (Id., 2013).

Para se criar estruturas propícias para a cidadania, requerem-


se relações de equidade e justiça, não de dominação e
negação do outro, sendo estas fortemente influenciadas pelas
organizações onde ocorrem (Id., 2001). Na saúde, isso se aplica
ao encontro clínico e às políticas de saúde, aos serviços, às redes
e ao sistema de saúde. É necessário estabelecer um mecanismo
comunicacional capaz de relacionar realidades separadas a fim
de efetivar alguns requisitos essenciais da cidadania, como a
negociação, bidirecional e entre iguais, de programas, recursos e
compromissos. Nesse tipo de comunicação, requere-se mais que
informar, assinar recursos à distância ou divulgar os progressos
dos programas acordados, ou seja, é preciso uma comunicação

66 Bioética Clínica
que não pare na mera informação. Informar não é suficiente para
transmitir, trocar a complexidade das situações e experiências
vividas das realidades separadas, compartindo significados, e
somente com esse tipo de partilha é possível reconhecer os
problemas, capacidades, valores e potenciais dos envolvidos na
comunicação e negociação. O desafio é produzir comunicações
para a cidadania efetiva, evitando, ao mesmo tempo, o descuido
e a intromissão desnecessária (Ibid.). Na atenção à saúde, isso
equivale ao cuidado responsável (POSE, 2009).

Para compartir significados em uma comunicação passível de ser


qualificada como cidadã, é preciso confiança, que se fundamenta
em juízos de competência, sinceridade e permitem manter
certo grau de entendimento mútuo (CORTINA, 2001). Na RAS,
a confiança pode ser vista como a disposição de cada um para a
produção corresponsável da saúde. Isso porque, na construção
de uma tarefa comum, a confiança é a disposição para construir
com os outros, aceitando as ações criativas e independentes de
cada um, sem que essa independência signifique abandonar a
responsabilidade pela tarefa comum e que, tampouco, a aceitação
seja cega, pois isso seria confiança irresponsável e ingênua (Ibid.).

A confiança é uma experiência processual, ou seja, é construída


paulatinamente, não está dada; engendra-se em relações estáveis,
duradouras, mas não previsíveis. Ao esperar comportamentos
previsíveis como base para confiança, implicitamente, está se
aceitando um único ponto de vista como válido e, para alcançar
a previsibilidade, cada um, usualmente, busca impor o próprio
ponto de vista. Nessas situações, o que se tem é a submissão e não
a confiança mútua (Ibid.). Na saúde, de forte tradição paternalista,
de viés autoritário, essa construção dialógica da confiança para
que as relações sejam pautadas por cidadania e justiça é um
enorme desafio para a bioética clínica.

Na atenção à saúde, é preciso fazer a gestão de valores intrínsecos,


ou vitais, como a vida, ser saudável, o bem-estar, a justiça sanitária.
Qualquer perda de valor traz prejuízos irreparáveis (GRACIA,

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 67


2012), por isso não podemos deixar de incluir a justiça sanitária
nas reflexões da bioética clínica. A busca por uma progressiva
sensibilização moral obriga os profissionais a considerarem a
equidade nas decisões que tomam, sendo cada vez mais difícil
trabalhar mecanicamente, sem reflexão (BORREL; CARRIÓ, 2011).

Considerações finais
É preciso compaginar a bioética clínica, institucional e social,
tornando possível a análise das políticas de saúde, a gestão dos
serviços, a distribuição dos recursos, as condições de trabalho
dos profissionais. Mas é preciso avançar na direção de um debate
plural sobre a concepção de justiça nas sociedades democráticas.
Quanto à justiça, a bioética clínica preocupa-se com o respeito
aos direitos dos usuários dos serviços; com a equidade, como
não discriminação, alocação dos recursos, efetividade do direito
à saúde; proteção do mais vulnerável, fragilizado; excelência
profissional; continuidade do cuidado (CORREA, 2010).

A bioética desempenha importante função social de contribuir


para a educação na autonomia e responsabilidade das pessoas
e, de modo especial, dos profissionais e gestores de saúde, a fim
de que

passem de heterônomos a autônomos, de súditos a cidadãos,


de pessoas submissas e obedientes a sujeitos críticos e maduros,
capazes de reger-se pelo único motivo especificamente moral, o
dever, em vez dos que são hoje mais frequentes, o interesse, o uso
e os costumes. (Cortina, 2001, p. 27)

O atual momento da bioética deixa de ter como epicentro o


enfrentamento e a resolução de casos extraordinários que
requerem decisões urgentes para focar-se na educação para a
cidadania, na gestão autônoma de valores relativos à vida, morte,
corpo, sexualidade, saúde. No âmbito da assistência à saúde,
essa mudança significa que as exigências profissionais atuais
são muito diferentes das usualmente difundidas na formação e

68 Bioética Clínica
na prática. Ampliando o olhar, temos que dizer que a bioética
precisa sair dos hospitais, e mesmo do mundo da saúde, das
mãos dos profissionais da saúde, para se converter em um tipo de
mentalidade, uma nova cultura (GRACIA, 2014).

A responsabilidade não é somente a capacidade do profissional


para responder pelos próprios atos, mas o dever de cuidar do
outro, o usuário, a população que lhe está adscrita, dada à situação
de vulnerabilidade em que se encontra (BENITO; RIGUERA, 2014).
Para dar conta da responsabilidade sanitária em situação de
vulnerabilidade, desigualdade e iniquidade é urgente que a
bioética clínica inclua a justiça sanitária, em chave de cidadania,
como tema de suas reflexões.

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Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 71


Bioética de intervenção – uma breve
síntese de seus fundamentos e
aplicações em tempos de globalização e
desigualdades sociais

Volnei Garrafa1
Leandro Brambilla Martorell2

Introdução
Em 2001, na conferência de abertura do I Congresso Boliviano
de Bioética, em La Paz, a expressão “bioética de intervenção” foi
anunciada publicamente pela primeira vez. Até então, os textos
e interlocuções relacionados com sua gênese se referiam a uma
bioética dura (hard bioethics). Para Feitosa e Nascimento (2015),
entre os anos de 1995 e 2002, a bioética de intervenção (BI)
passou por uma primeira etapa que denominaram “gestacional”,
tendo como marcos referenciais concretos de seu nascimento:
duas conferências apresentadas, respectivamente, no Congresso
Argentino de Bioética realizado em Mar del Plata (1998) e
no V Congresso da Felaibe (Federación Latinoamericana de
Instituciones de Bioética), desenvolvido no Panamá (2000); e as
publicações dos artigos “Bioética, poder e injustiça: por uma ética
de intervenção” (periódico O Mundo da Saúde, 2002) e “Intervention
bioethics: a proposal for peripheral countries in a context of power
and injustice” (periódico Bioethics, da International Association of
Bioethics, 2003).

1. Professor titular e coordenador da Cátedra Unesco e do Programa de Pós-Graduação


em Bioética da Universidade de Brasília; membro do Comitê Internacional de Bioética da
Unesco; diretor de Assuntos Internacionais da Rede Latino-Americana e do Caribe de Bio-
ética da Unesco – Redbioética, e presidente da International Association for Education in
Ethics – IAEE (2017-2020).
2. Doutor em Bioética pelo Programa de Pós-Graduação em Bioética da Universidade
de Brasília, e professor adjunto da Universidade Federal de Goiás.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 73


Mas, na verdade, a concepção e o nascimento da BI foram
resultado tanto de respostas à bioética de fundamentação
teórica exclusivamente nortista – produzida no Hemisfério
Norte, especialmente aquela bioética principialista de origem
estadunidense – como também de respostas a provocações. Tais
“provocações”, relacionadas de certo modo com a forma como
os bioeticistas dos países periféricos vinham sendo testados na
assimilação de tais conceitos, podem ser bem compreendidas
e interpretadas com a leitura do texto “Provocações”, de autoria
do escritor gaúcho Luis Fernando Veríssimo, reproduzido no final
deste capítulo.

Desde a década de 1970, com a expansão e popularização


da bioética como novo campo de conhecimento, a bioética
principialista passou a ser exportada (e obviamente importada)
como “a” teoria universal e necessária. Essa bioética estrangeira
– de fundamentação notoriamente individual, individualista e
privada – foi produzida em outra cultura e em outros contextos
para ser aplicada vertical e acriticamente a qualquer realidade,
independentemente do país ou parte do mundo, direcionada a
pesquisadores e pesquisados, profissionais e pacientes, fossem
quais fossem suas origens, culturas e formas de vida. O frenesi
causado pela bioética principialista fez que pensadores buscassem
adaptar esses princípios mesmo quando a discussão bioética se
relacionava a contextos coletivos (SCHRAMM; KOTTOW, 2001).

Pois bem, como aturar a provocação de viver em um país em que


crianças nascem em lugares insalubres e muitas vezes até na rua,
sem apoio e indispensável auxílio profissional? Em um país em que
morram cinco crianças em uma família de onze (de acordo com o
texto metafórico de Veríssimo…)? Em que meninos e meninas não
possam estudar e desfrutar da infância para ajudar no sustento
da família? Onde seus bioeticistas são testados diariamente no
enfrentamento ético diante de situações dramáticas relacionadas
a doenças da infância e falta de atendimento? Os princípios da
autonomia, beneficência, não maleficência e justiça apresentados

74 Bioética Clínica
por Beauchamp e Childress na sua histórica obra Principles of
Biomedical Ethics (2013) seriam realmente capazes de contribuir
para a resolução desses problemas? Apenas provocações…

Na contramão dos anos recentes e pouco humanos, no sentido


social, mas historicamente comprometida com a “banda mais
frágil da sociedade” (GARRAFA; PORTO, 2002), a BI desde sua
adolescência se rebelou contra todo esse tipo paradoxal de
injustiças. Assim, o contexto latino-americano, ao mesmo
tempo em que demanda, também anseia pelo amadurecimento
de correntes teóricas capazes de transformar suas iníquas
realidades. Talvez, por isso, a BI tenha encontrado nessas quase
duas décadas de vida diversos pesquisadores – especialmente
jovens – interessados em desenvolver, ampliar e aprofundar seus
fundamentos teóricos com o propósito de aplicá-los à realidade
concreta onde vivem e atuam.

Desde sua apresentação mais formal para o mundo acadêmico


na conferência de abertura do VI Congresso Mundial de Bioética
realizado em Brasília em 2002, até os dias de hoje, a BI tem se
posicionado criticamente contra as diferentes formas de injustiça
encontradas, desvelando relações de poder assimétricas nas
mãos de poucos privilegiados. Também, desde seus primórdios,
se declarou como uma teoria em constante construção. Analisar
a dinamicidade dos fundamentos epistemológicos da BI ao
longo desses anos é uma forma de compreender esta hoje já
influente vertente da bioética produzida no Brasil e direcionada
à América Latina e ao Hemisfério Sul do mundo. Assim, este
capítulo apresenta uma sucinta revisão sistemática da literatura
científica, procurando mostrar como a BI tem sido fundamentada
epistemologicamente e na prática desde sua apresentação e
surgimento “oficial”, em 2002, feita por um dos responsáveis pelo
presente capítulo (Garrafa).

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 75


Bioética de intervenção – um pouco de história
e alguns números
A produção de conhecimento em bioética pode ser interpretada
de acordo com a proposição de seus argumentos. Nesse sentido,
são produzidos textos que têm o objetivo de fundamentar
categorias morais, estruturando a teoria; e textos que se dedicam
a aplicar determinadas categorias morais a alguma temática ou
contexto específico, discutindo casos concretos. Em recente tese
de doutoramento defendida por um dos autores deste estudo
(MARTORELL, 2015), no caso específico dessa pesquisa relacionada
com a BI, convencionou-se chamar estes primeiros de “textos de
fundamentação” e os segundos de “textos de aplicação”.

Na direção acima apontada, portanto, a BI conta com produção


textual em ambos os casos, sendo que um dos sinais de que
ela tem influência no meio acadêmico é a presença de textos
de fundamentação escritos por bioeticistas que não os seus
criadores. Na revisão de literatura feita por Martorell (Ibid.),
que incluiu a busca de artigos científicos, capítulos de livro
e verbetes de dicionário produzidos entre os anos de 2002 e
2015 (e que, metodologicamente, deixou propositadamente
de fora monografias, dissertações e teses), foram encontradas
nove publicações nesse contexto. A maior parte dos textos de
fundamentação da BI encontrados (19) tinham como autores
Garrafa e/ou Porto. Ainda que sem grandes pretensões de
quantificar, é interessante registrar que praticamente 1/3 dos
textos de fundamentação da BI encontrados (32%) tenham sido
escritos por outros autores.

Em um apanhado completo, o número de textos referentes à


BI publicados até 2015, e que fizeram parte da amostra da tese
acima referida, chegou a 60. Mais adiante esse número será
apresentado detalhadamente quanto aos seus autores, tipo e
local de publicação, entre outros aspectos.

Do ponto de vista qualitativo, hermenêutico, encontrou-se nos


textos de fundamentação da BI, a partir de seus criadores, uma

76 Bioética Clínica
possibilidade de classificação do que se convencionou chamar de
“diferentes momentos”. Alguns textos, principalmente os publica-
dos inicialmente, fundamentam a BI com uma clara intenção de
apresentação inicial da teoria – este é o “primeiro momento”. O
“segundo momento” é composto por aquele grupo de textos que
propõe o aprofundamento dos fundamentos teóricos apresenta-
dos inicialmente. O “terceiro momento” diz respeito àquele em
que há intenção de crítica (incluindo a autocrítica) a estes funda-
mentos. Ressalta-se que o sentido da interpretação do substantivo
“momento” é o de “ocasião”, e não de “tempo”. Assim, não houve
uma pretensão de engessar a classificação da produção de acordo
com as datas de publicação dos textos, mas de relacioná-la com a
intenção dos argumentos na ocasião da publicação. Em suma, em
algumas ocasiões a fundamentação foi apresentada, em outras,
aprofundada e, em outras, criticada.

No primeiro momento a BI compartilha a sua visão de mundo. Essa


perspectiva pouco a pouco vai sendo apresentada e constrói as
premissas que justificam teoricamente suas propostas no campo
da bioética.

Assim, procura mostrar que os principais conflitos morais


existentes no Ocidente se relacionam à disparidade de poder e
à inacessibilidade aos bens de consumo básicos à sobrevivência
com dignidade da maior parte da população. Esses aspectos são
agravados pelo modelo econômico capitalista (o mercado), que
fomenta ainda mais as desigualdades entre os países (centrais e
periféricos), se contrapondo aos Direitos Humanos Universais.

Ainda que a BI assuma a legitimidade da existência de Direitos


Humanos Universais, há uma compreensão de que o universalismo
ético é nocivo quando imposto verticalmente, em uma relação
assimétrica de poder, legitimando dominações e desvalorizando
culturas que tenham visões e fundamentos históricos diferentes
do modelo capitalista existente dos países centrais.

Esse ponto ressalta o conflito entre universalismo e pluralismo


moral, levantando uma importante questão: é possível que os

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 77


diferentes parâmetros de moralidade encontrem um ponto
comum? Para a BI, apesar de diferentes moralidades coexistirem,
um mínimo comum é o fato das pessoas, em qualquer código
moral, buscarem experiências de prazer e evitarem experiências
de dor. Assim, BI apresenta a categoria teórica “corporeidade”
para expressar a percepção sensorial de prazer e dor como
condicionantes das ideias e do comportamento das pessoas.
Para a BI, “o pacto social, seja ele qual for, decorre do uso dos
parâmetros sensoriais” (GARRAFA; PORTO, op. cit.).

Fica claro, portanto, que as pessoas pobres são obrigadas a


conviver com a dor (por inacessibilidade aos bens de consumo,
como o direito ao acesso a serviços sanitários, normal no
capitalismo, onde a saúde é tratada como um bem, como uma
mercadoria, acessível a uns e inacessível a outros), enquanto as
pessoas com possibilidades econômicas de acesso aos bens de
consumo têm maior probabilidade estatística de conviver com o
prazer (seja este alimentar, de moradia, transporte, saúde etc.).

Nesse sentido, vale a pena registrar as conclusões de uma tese de


doutoramento defendida no final de 2014 no Programa de Pós-
Graduação em Bioética da Universidade de Brasília e que teve a BI
como fonte inspiradora (AZAMBUJA, 2014). Na referida pesquisa,
orientada por um dos responsáveis pelo presente capítulo e que
contou com a participação rigorosa de expoente da bioética
internacional na banca examinadora, a autora analisou metódica
e exaustivamente, linha a linha, o capítulo referente ao “Princípio
da Justiça” nas sete edições até agora publicadas (entre 1979
e 2013) do livro já mencionado de Tom Beauchamp e James
Childress. Muito embora o conceito de princípio da justiça
desses autores tenha sido utilizado indistintamente por autores
dos cinco continentes durante mais de quatro décadas, a tese
de Letícia Erig Azambuja conclui, com base em dados empírica
e fartamente demonstrados, que sua utilização é não somente
equivocada, como também inadequada às realidades em que ela
– acriticamente – passou a ser aplicada.

78 Bioética Clínica
A interpretação de “justiça” expressa por Beauchamp e Childress
direciona as ações de saúde insistentemente ao campo individual
e privado, excluindo qualquer forma pública de resolução
para os problemas sanitários, entre muitas outras questões e
exemplos cuja inclusão seria exaustiva nessa breve exposição.
Diferentemente da proposta de Beauchamp e Childress – que
consideram a ética biomédica como a própria bioética (frase
lapidar que abre a sétima e última edição do seu livro) – para a BI, a
nova bioética global por ela proposta incorpora obrigatoriamente,
além dos originais temas biomédico-biotecnológicos, as questões
sociais sanitárias e ambientais. Essa ampliação pioneira da agenda
bioética internacional proposta pela BI desde seus primórdios, foi
finalmente explicitada e reconhecida no âmbito internacional
com o texto da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos
Humanos da Unesco (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA
A EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E CULTURA, 2005).

Nessa linha de ideias, em resposta ao modo como a bioética


historicamente tem se posicionado frente às injustiças, como
ferramenta que segundo Garrafa e Porto (op. cit.) acaba se
configurando como “neutral e asséptica”, é que a necessidade de
sua releitura aparece. Assim, inicialmente a BI se apresenta como
uma negação da realidade percebida, ou seja, declara o que a
bioética não é, ou, ao menos, o que não deveria ser. Não deve
ser despolitizada, não deve agir em favor dos mais afortunados
economicamente e dos poderosos, não pode ter pretensões
universais em um sentido impositivo e nem defender a liberdade
individual irrestrita de modo a desconsiderar suas consequências
coletivas e sociais.

Nesse ponto fica claro que a anunciação desse compromisso


político-social da BI é necessária, pois, até então, os países centrais
defendiam que a bioética deveria se ater somente às discussões
relacionadas ao reduzido campo biomédico-biotecnológico, como
a relação profissional-paciente ou a relação dos pesquisadores
e das empresas patrocinadoras de pesquisas com os seus
participantes. Como esse posicionamento dos países centrais
em relação à bioética usa como referencial teórico praticamente

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 79


único a bioética principialista, é oportuna e contundente a
crítica realizada pela BI com direcionamento a essa escola de
pensamento. Nesse contexto é que aparecem as categorias
direcionadas às ações por ela proposta e ao enfrentamento
das questões concretas a serem enfrentadas, ações estas que
primam, inclusive, por posicionamentos diametralmente opostos
pelo que ela entende como serem os pontos mais nocivamente
exacerbados pela bioética principialista.

Breve referência aos “três momentos” do


desenvolvimento da BI
O estudo retrospectivo acima já apontado mostra que o
desenvolvimento da BI apresenta três “momentos” distintos.
O primeiro momento aponta para a desigualdade de poder e
de acesso a direitos básicos que trazem como consequência o
sofrimento de grande parte da população. Como essa situação
sustenta um importante conflito moral, apesar da pluralidade
moral constatada nas sociedades atuais, assume-se que as
diversas teorias morais podem concordar que sofrer é ruim e
buscar o prazer é bom (corporeidade). A BI, no sentido de reverter
a iniquidade existente, indica um cálculo utilitarista: “priorização
de políticas e tomadas de decisão que privilegiem o maior número
de pessoas, pelo maior espaço de tempo possível, e que resultem
nas melhores consequências coletivas” (Ibid., p. 7).

Nesse primeiro momento podem ser identificadas algumas


“categorias” utilizadas pela BI: bioética de situações persistentes
e bioética de situações emergentes; países centrais e periféricos;
bioética não neutra (ou politizada); mercado fomentador de
desigualdades; direitos humanos universais; diversidade cultural
e pluralismo moral; finitude dos recursos naturais; os quatro Ps
(prudência, precaução, prevenção e proteção); corporeidade
(prazer e dor); equidade; comprometimento com os excluídos
(vulneráveis); responsabilidade; utilitarismo e consequencialismo
solidário.

80 Bioética Clínica
Em seu segundo momento, a BI aprofunda o conceito de
corporeidade. Tendo já definido em textos anteriores a
corporeidade como um universal óbvio, já que todas as pessoas
necessitam do corpo físico para existir e agir em sociedade,
Porto e Garrafa (2005) inferem que deve existir universalmente
um contexto de vida em que as funções essenciais à existência
constituam uma realidade concreta. Esse contexto universal seria,
portanto, aquele apresentado pela compreensão e defesa dos
Direitos Humanos Universais. Aqui também se pode perceber a
possibilidade de defesa do argumento relacionado à necessidade
de intervenção. Se todos manifestam o universal óbvio e
necessitam de um mínimo existencial, representado pelo que se
defende em garantia aos Direitos Humanos, quando este mínimo
não se apresenta na realidade concreta, instala-se um contexto de
desigualdade, de poder heterônomo às maiorias populacionais
e de injustiça. Tratando-se de um conflito moral, é imperativa a
intervenção na realidade para que a situação de injustiça possa
ser superada.

Também se fixa na relação com os fundamentos dos Direitos


Humanos, incorporando as noções de cidadania expandida e
de direitos de primeira, segunda e terceira gerações. Sobre a
cidadania expandida, a BI defende que a “legitimação e aceitação
dos direitos não se restringem apenas às garantias asseguradas
pelo Estado, mas estende-se à condição inalienável de pessoa,
perpassando assim o conjunto de sociedades humanas” (Ibid.,
p. 118). Assim, a teoria bioética aqui discutida se compromete
cada vez mais com a ideia dos Direitos Humanos como referenciais
universais.

O aprofundamento também ocorre quando a BI passa a apresentar


características inovadoras no que diz respeito à fundamentação
teórica da disciplina, oferecendo aos estudiosos e demais
interessados novos referenciais passíveis de utilização prática.
Nesse sentido, a BI passa a incorporar novas categorias, quais
sejam: empoderamento, libertação e emancipação (GARRAFA,
2005). Essas três expressões são utilizadas para que o autor possa

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 81


discutir a inclusão social no contexto epistemológico da bioética.
De fato, essas categorias já são próximas à BI, pois colocam em
primeiro plano os interesses dos vulneráveis, dos excluídos,
oprimidos ou “condenados da Terra” – nas palavras de Paulo
Freire, objeto de mais uma das teses doutorais que utilizou a BI
como referência (SANTOS, 2014), com seus principais resultados
apresentados em artigo (SANTOS; SHIMIZU; GARRAFA, 2014).

Sobre o empoderamento, Garrafa (2005) explica aos leitores


a origem do uso trabalhado por Amartya Sen, afirmando que
o empoderamento de sujeitos individuais – prioritariamente
daqueles vulnerabilizados por processos históricos, destituídos
de poder em relação notoriamente assimétrica e injusta – seria
capaz de amplificar as vozes daquele segmento, podendo, assim,
promover a sua inserção social, impactando positivamente nas
suas vidas, transformando a realidade iníqua. O autor defende que
as três expressões se assemelham, pois auxiliam na compreensão
de que a inclusão social deve ser um processo de construção que
tem como objetivo final a justiça social; mas ressalta que esse
processo dinâmico de construção é principalmente realizado a
partir dos que mais sofrem com as injustiças, isto é, os próprios
vulneráveis.

Em um esforço para amarrar as três expressões à BI, um “bioeticista


hipotético”, artifício utilizado na tese de Martorell como“observador
isento dos fatos”, poderia rememorar que a BI se compromete com
os vulneráveis que são os corpos que sofrem com as injustiças
impostas pela assimetria na relação de poder (corporeidade),
seja em quaisquer níveis. Inicialmente os vulneráveis deveriam se
orientar pela “libertação”, ou seja, deveriam desvelar as relações
de poder que os oprimem, tomando conhecimento do papel
imposto a eles em um sistema organizado em nível macro.
Desse modo, também seriam capazes de reconhecer a quem a
manutenção das relações opressoras interessa e em qual sentido
a mudança se posiciona. Após a tomada de consciência individual
e coletiva, agregando significado, entraria o “empoderamento”,
capaz de unificar os indivíduos em um grupo coeso que percebe

82 Bioética Clínica
a responsabilidade das ações individuais para a mudança da
realidade social. Por fim, seria a “emancipação” – isto é, o desejo
pela conquista da liberdade e justiça social – o combustível que
colocaria em prática o projeto de mudança da realidade. Em uma
redução simplificadora, para a BI, nessa linha de pensamento,
os vulneráveis reconhecem criticamente a realidade com a
libertação, conectam-se (engajam-se) como sujeitos sociais com
o empoderamento e executam seu projeto de inclusão social com
a emancipação.

Por fim, o terceiro momento da BI inclui as críticas e autocríticas.


Após incorporarem os estudos sobre a colonialidade na perspectiva
teórica da BI, Nascimento e Garrafa (2011) problematizam um dos
fundamentos da BI, o qual diz respeito ao utilitarismo orientado à
equidade.

Assim, pensar na decisão melhor à maioria “está radicalmente


ligada à capacidade racional de determinar o que realmente é
privilégio (ou o melhor) para o maior número de pessoas” (Ibid.,
p. 295). Os autores afirmam que ainda que na orientação original
da BI haja menção sobre “exceções a serem discutidas” e sobre
um utilitarismo voltado para a equidade, tais fatos não seriam
capazes de proteger as pessoas de situações de má aplicação
da regra. Isso porque outro ponto da racionalidade moderna é a
razão homogênea. Nesse sentido, as pessoas estão treinadas para
compreender a realidade nessa perspectiva, desatentas ao fato
de as relações de poder serem, ao contrário, fluidas e dispersas,
heterogêneas e irregulares.

A crítica à coexistência do utilitarismo e equidade já havia sido


ressaltada por Cruz e Trindade (2006). Por se tratar de autores
diferentes dos seus criadores, em uma análise hermenêutica, a
força de argumentação dos autores para a remodelação da BI é
frágil, entretanto, é muito valiosa para a discussão crítica. Para
esses autores, uma forma de conciliar o cálculo utilitarista com a
equidade é incorporando o princípio do bem comum. Assim, a
noção de quem é beneficiado nas ações utilitaristas seria alargada,

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 83


aproximando-se da ideia de justiça equitativa. Por exemplo,
algumas ações poderiam beneficiar diretamente e indiretamente
grande número de pessoas, como no caso da vacinação, com a
qual a população – como um todo – tem menos chances de sofrer
com epidemias de determinada doença.

Após catorze anos de sua primeira publicação oficial, a BI


continua a afirmar o sentido politizado de sua proposta – ações
concretas em favor dos vulneráveis. Desde o início, reconhecendo
a possibilidade e necessidade de reformulações em suas bases
teóricas, ela demonstrou ser uma corrente aberta a discussões, que
tem se transformado, aprofundando e incorporando referenciais
teóricos e reequilibrando o papel de suas categorias aplicadas
aos problemas reais, principalmente aqueles que persistem no
hemisfério sul do planeta.

Produção acadêmica relacionada à BI: mostrando


alguns números
Como já foi mencionado, a BI tem tanto produção de textos
de fundamentação quanto de aplicação. Em ambos os casos,
além da produção executada pelos seus criadores, Garrafa e/ou
Porto, também são encontrados textos produzidos por outros
pesquisadores, aqui chamados de “externos”. A seguir são
apontados os principais resultados encontrados nas publicações
nos formatos de artigos científicos, verbete de dicionário e
capítulos de livro entre os anos de 2002 e 2015 (MARTORELL,
op. cit.).

A revisão de literatura incluiu um total de 60 textos, sendo 28


textos de fundamentação e 32 textos de aplicação.

84 Bioética Clínica
Quantidade de textos da BI avaliados por tipo e
meio de publicação

Tipo e meio de Capítulo Verbete/


Artigo Total
veiculação de livro dicionário
Fundamentação dos criadores
11 7 1 19
da BI
Fundamentação dos externos 7 2 0 9
Aplicação dos criadores da BI 14 1 0 15
Aplicação dos externos 17 0 0 17

Total 49 10 1 60

Fonte: Martorell (Ibid.).

Dos 60 textos avaliados, onze (18%) foram publicados em língua


estrangeira, sendo cinco em inglês (8%) e seis em espanhol
(10%). Dos artigos publicados em periódicos nacionais (38 de 49),
encontra-se que o periódico que a BI teve mais oportunidades
de divulgar seus trabalhos foi na Revista Bioética do Conselho
Federal de Medicina (CFM), com 14 artigos – o que representa
28% de todos os artigos publicados até hoje. A Revista Brasileira
de Bioética e a Ciência & Saúde Coletiva, juntas, representam mais
22% (11 textos) das publicações, ou seja, esses três periódicos
concentram a metade da publicação da BI. De modo geral, os
textos foram publicados por revistas do Distrito Federal, do Rio de
Janeiro, de São Paulo, do Rio Grande do Sul e do Paraná.

Como os aspectos relacionados diretamente com a fundamen-


tação da BI foram abordados em um tópico anterior, a partir de
agora são enfatizados aqueles de relevância na análise dos textos
que aplicaram a teoria em situações concretas. Sobre esses textos
é interessante analisar que o grupo de autores externos, quando
comparado com os criadores da BI, foi o que mais utilizou a teoria
como uma ferramenta de análise de problemas morais.

Os temas (e subtemas) discutidos pelos criadores da BI foram:


indústria farmacêutica (publicidade irregular ou ilegal de

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 85


medicamentos, desvio na qualidade de medicamentos e papel
do Estado no controle da indústria farmacêutica); questões
de gênero (atividade voluntariada e trabalho doméstico);
assistência em saúde (novas tecnologias incorporadas na saúde
suplementar e o SUS, lógica de mercado e princípios do SUS
no sistema suplementar, práticas não comprovadas em uso,
e iniquidades em saúde bucal); antropologia (infanticídio,
Direitos Humanos e pluralismo moral); diplomacia (relações
diplomáticas e vulnerabilidade internacional); e formação escolar
(potencialidades da bioética para transformação social).

Nesses contextos os criadores da BI utilizaram com maior


frequência as categorias: intervenção do Estado, justiça, equidade,
inclusão social e utilitarismo solidário. O referencial teórico que
mais apareceu para fundamentar os textos de aplicação foi o

Intervention bioethics: a proposal for peripheral countries in a
context of power and injustice”, de 2002, ou seja, um dos textos
iniciais da BI.

Já os temas (e subtemas) discutidos por autores externos foram:


assistência em saúde em condições de vulnerabilidade (idosos,
garantia de direitos e o papel do profissional da saúde, pessoas
com deficiência e garantia da universalidade do acesso, mulheres
e o respeito da escolha do tipo de parto, pacientes terminais e
o respeito à dignidade, pacientes com aids e o estigma social,
pessoas em situação de rua e a capilaridade do SUS, e população
quilombola e o compromisso com a universalidade); alocação de
recursos em saúde (atenção básica em defesa do direito à saúde e
escassez de recursos materiais e humanos); iniquidade (injustiças
no campo, a insegurança alimentar e a situação de saúde das
crianças brasileiras); e temáticas diversas (atividade voluntária,
formação escolar, perfil da pesquisa científica odontológica e
publicidade irregular de medicamentos).

Nesses contextos os autores externos utilizaram com maior


frequência as categorias: justiça, equidade, inclusão social, direitos
humanos, intervenção do Estado, vulnerável e utilitarismo. O

86 Bioética Clínica
referencial teórico que mais apareceu para fundamentar os textos
de aplicação foi o capítulo do livro Bioética: poder e injustiça: por
uma ética de intervenção, de 2002, ou seja, também um de seus
textos iniciais.

Pensando conjuntamente nesse grupo de texto que aplicou as


ferramentas teóricas da BI em contextos específicos é possível
perceber que, independentemente da autoria, se de criadores
ou de externos, a sua maioria optou por discutir problemas
persistentes em bioética. Além disso, a BI foi utilizada mais
frequentemente com o uso de categorias que desde o seu
“primeiro momento” já vinham sendo trabalhadas, como justiça,
equidade, direitos humanos e utilitarismo.

Pelas temáticas encontradas é possível estabelecer analogia


com a leitura de mundo apresentada também pelo primeiro
momento da BI, ou seja, a que indicava a origem de grande parte
dos problemas morais na disparidade de poder e no sofrimento
da maior parte da população em benefício do maior prazer à
minoria. Os textos de aplicação, em geral, abordaram contextos
em que existia clara disparidade de poder, como os mecanismos
de submissão que uma sociedade machista opera em desfavor
das mulheres; e/ou contextos em que uma minoria atropelava os
interesses de uma maioria já vulnerável, como no caso da pressão
da indústria farmacêutica no mercado de consumidores.

É interessante ressaltar que em alguns casos, além de existir uma


relação de assimetria de poder entre as partes, a parte com maior
poder está colocando em curso ações que prejudicam o lado mais
vulnerável da relação. Quando desvelada a relação assimétrica
de poder e o tipo de desfavorecimento que uma das partes tem
sofrido, caracteriza-se o conflito moral, já que se expõe a injustiça.

Assim, é injusta a exploração das mulheres por uma sociedade


machista, são injustas as condições de saúde bucal enfrentadas
por grande parte da população que vive em um país que negou
a sua responsabilidade com a saúde das pessoas e são injustas

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 87


as determinações sociais que implicam à grande parte dos
jovens brasileiros o acesso a um ensino de baixa qualidade e o
agravamento dessa realidade.

Em alguns casos as soluções apresentadas aos problemas anali-


sados envolviam o uso da solidariedade crítica, empoderamento,
libertação, emancipação e equidade. Entretanto, a categoria mais
embandeirada como perspectiva para a resolução dos problemas
foi a da intervenção do Estado. Como grande parte dos proble-
mas tem relação direta com contextos em que o Estado já possui
legislação específica, recomendou-se nesses casos que o Estado,
por meio de suas diferentes representações, atuasse exercendo a
sua responsabilidade. Entretanto, não se tratava apenas de uma
leitura legalista em que se determinava ao Estado o cumprimento
cegado de suas regras, mas, antes, o desvelamento de uma injus-
tiça instaurada que tem como produto a geração de sofrimento a
um grupo de pessoas (vulneráveis) e, em favor desse grupo, isto
é, em favor da redução dos danos, recomenda-se a intervenção
estatal. Esse ponto crítico da BI pode ser percebido quando se re-
comenda, no caso do infanticídio indígena, uma intervenção res-
ponsável e dialógica e não um cumprimento sisudo das leis do
Estado brasileiro.

Considerações finais
Observa-se que a BI desde seus primórdios se apresentou ao mundo
acadêmico como uma corrente da bioética latino-americana com
marcação política muito clara. Apresentava a intenção de combater
o monismo bioético que até então grande parte dos países e
autores importavam verticalmente, aceitavam acriticamente e
reproduziam, incluindo aqueles que sofriam as consequências
dessa colonialidade do saber que travestia a colonialidade do
poder exercida pelos países centrais aos periféricos (ou os do Norte
aos do Sul) (NASCIMENTO; GARRAFA, op. cit.).

A BI se apresentou inicialmente por meio de categorias


relacionadas de modo direto com a avaliação de conflitos morais,

88 Bioética Clínica
especialmente aqueles relacionados a grupos com registro de
considerável assimetria de poder, atuando em favor daqueles
que têm sido prejudicados por essa diferença. Para combater
as iniquidades apresentadas, ela considerou, na busca pela
equidade e pela igualdade, o seu referencial de justiça. E, se
a maioria da população mundial sofre há tempos com a falta
de condições de acesso a itens básicos relacionados com os
Direitos Humanos, apenas para satisfazer o acúmulo de prazeres
de minorias populacionais, a BI retratou a proposta utilitarista
como uma saída possível para o contorno dessa situação. Assim,
ela apresenta o utilitarismo não como um princípio maior a ser
seguido cegamente em quaisquer situações, mas, antes, como
uma expressão ou formato mais brando de utilitarismo, conectado
pontualmente com a avaliação de um determinado contexto de
iniquidades.

Por isso, também são importantes para a BI outras categorias,


mais políticas, como a solidariedade crítica, o empoderamento,
a libertação, a emancipação. Para a aplicação dessas e de outras
categorias propostas pela BI, é indispensável estar atento às
características de cada problema moral específico em análise.
Caso sejam problemas em perspectiva macro, como aqueles
percebidos pelas flagrantes desigualdades existentes entre
países centrais e periféricos, há possibilidade do utilitarismo ser
sustentado pela vulnerabilidade da maioria e, consequentemente,
tornar-se necessária e justificada a intervenção utilitarista
orientada à equidade. Mas, em outros contextos, diferentes, a
noção de maioria, bem como o cálculo utilitarista, podem ser
secundarizados ou até desprezados, mesmo que se tenha que
lançar mão de outras categorias relacionadas com o contexto da
BI para reforçar seus argumentos na busca de uma resposta mais
adequada e justa ao problema em análise.

A BI, portanto, não veio como um pacote de ideias intromissivas


que se apresentam como simplesmente capazes de resolver
questões e problemas complexos da seara bioética. Pelo
contrário, não sendo uma proposta acabada e muito menos

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 89


baseada em prescrições apriorísticas, almeja desvelar, analisar
e buscar saídas éticas que pretendam, pelo menos, diminuir as
grandes disparidades e injustiças sociais constatadas nos dias de
hoje, neste contraditório mundo globalizado e pretensamente
“moderno”.

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Tradução: Ana Tapajós e Mauro Machado Prado. 2005. Disponível em:
<http://bit.ly/1UsDHAx>. Acesso em: 2 maio 2016.
VERISSIMO, L. F. Provocações. In: _____. Zoeira. Porto Alegre: L&PM, 1982. P.
29-30.

Provocações
Luís Fernando Veríssimo
A primeira provocação ele aguentou calado. Na verdade, gritou
e esperneou. Mas todos os bebês fazem assim, mesmo os que
nascem em maternidade, ajudados por especialistas. E não como
ele, numa toca, aparado só pelo chão. A segunda provocação
foi a alimentação que lhe deram, depois do leite da mãe. Uma
porcaria. Não reclamou porque não era disso. Outra provocação
foi perder a metade dos seus dez irmãos, por doença e falta de
atendimento. Não gostou nada daquilo. Mas ficou firme. Era de
boa paz. Foram lhe provocando por toda a vida. Não pôde ir à
escola porque tinha que ajudar na roça. Tudo bem, gostava da
roça. Mas aí lhe tiraram a roça. Na cidade, para aonde teve que
ir com a família, era provocação de tudo que era lado. Resistiu
a todas. Morar em barraco. Depois perder o barraco, que estava
onde não podia estar. Ir para um barraco pior. Ficou firme. Queria
um emprego, só conseguiu um subemprego. Queria casar,
conseguiu uma submulher. Tiveram subfilhos. Subnutridos. Para
conseguir ajuda, só entrando em fila. E a ajuda não ajudava.
Estavam lhe provocando. Gostava da roça. O negócio dele era
a roça. Queria voltar pra roça. Ouvira falar de uma tal reforma
agrária. Não sabia bem o que era. Parece que a ideia era lhe dar
uma terrinha. Se não era outra provocação, era uma boa. Terra era

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 91


o que não faltava. Passou anos ouvindo falar em reforma agrária.
Em voltar à terra. Em ter a terra que nunca tivera. Amanhã. No
próximo ano. No próximo governo. Concluiu que era provocação.
Mais uma. Finalmente ouviu dizer que dessa vez a reforma agrária
vinha mesmo. Para valer. Garantida. Se animou. Se mobilizou.
Pegou a enxada e foi brigar pelo que pudesse conseguir. Estava
disposto a aceitar qualquer coisa. Só não estava mais disposto a
aceitar provocação. Aí ouviu que a reforma agrária não era bem
assim. Talvez amanhã. Talvez no próximo ano… Então protestou.
Na décima milésima provocação, reagiu. E ouviu espantado, as
pessoas dizerem, horrorizadas com ele:

– Violência, não!

92 Bioética Clínica
Mistanásia: um novo conceito bioético
que entra na agenda da bioética
brasileira

Leo Pessini1
Luiz Antonio Lopes Ricci2

E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).

João Cabral de Melo Neto,


Morte e Vida Severina

Introdução
Este capítulo tem como objetivo desenvolver o conceito de
mistanásia (morte social, precoce e evitável) pelo viés da
bioética social, cotidiana, crítica, latino-americana e integrativa,
para evidenciá-lo de modo mais contundente e, talvez
pretensiosamente, cravá-lo na agenda da bioética local e global,
na produção científica e bibliográfica e no conteúdo das
disciplinas afins, como algo orgânico e transversal na reflexão
1. Pós-doutor pelo Centro de Bioética James Drane (Edinboro University of Pennsylvania),
professor doutor no Programa de Pós-Graduação em Bioética do Centro Universitário São
Camilo (SP). Superior Geral dos Camilianos (Roma, Itália).
2. Pós-doutor em Bioética pelo Centro Universitário São Camilo (SP). Professor da Faculda-
de João Paulo II (Fajopa) em Marília (SP).

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 95


referente à dignidade do viver e do morrer. O neologismo
“mistanásia” foi cunhado em 1989 por Márcio Fabri dos Anjos,
bioeticista brasileiro. Trata-se de um tema já existente e subjacente
nas reflexões bioéticas, mas que ainda não aparece de forma clara,
conceitual e suficientemente disseminado. Por essa razão, tem-se
como motivação primeira o XI Congresso Brasileiro de Bioética
(2015), cujo tema “Bioética e desigualdades” é extremamente
conexo à reflexão que este texto propõe.

A bioética, como ética aplicada, situada num contexto social


injusto e plural, visa a contribuir para a tutela, defesa e promoção
da vida humana, sobretudo a vulnerada e exposta à possibilidade
de morte mistanásica: precoce e evitável. Na perspectiva da ética
do cuidado e responsabilidade, buscar-se-á oferecer propostas
e contribuições bioéticas e éticas que potencializem a defesa da
vida física, à luz da realidade brasileira e do modo latino-americano
de pensar e fazer bioética, desde o lugar social, que é, com olhar
alargado, resultado da indignação ética. Trata-se de elaborar uma
reflexão bioética com os pés no chão, que responda aos anseios
do aqui e agora, por meio do deslocamento de acento, para ir
além, ampliar o horizonte, num movimento contínuo em direção
ao outro vulnerado, ferido e ofendido em sua dignidade.

Para tanto, o conceito de mistanásia facilita esse papel, tanto como


substantivo (mistanásia) quanto como adjetivo (mistanásica).
Trata-se da “morte adjetivada”, com conotação ética, não natural
ou normal. A morte é um substantivo, porém mistanásica
(precoce e evitável) é um adjetivo que pede transformação social
e pessoal. No Brasil, por conta da desigualdade social, há um
exército de vulnerados em situação de risco. Essa realidade fez
surgir uma produção bioética à brasileira, que tem conquistado
seu espaço, ainda que reduzido, na reflexão global. Nesse cenário
desfavorável, a bioética configura-se como uma espécie de ação
afirmativa para corrigir o sistema e impedir ou diminuir as mortes
evitáveis e precoces. A bioética, assumida tanto como substantivo

96 Bioética Clínica
(conceitual) quanto como adjetivo (pessoal e institucional), pode
perfeitamente cumprir esse papel de facilitar a dignidade do viver
e do morrer.

Como afirma Bruce Jennings, editor-chefe da quarta e última


edição da célebre Bioethics, “a bioética, se não for crítica, pode
se tornar apologética ou ideológica” (JENNINGS, 2014, p. XXI,
tradução nossa). Espera-se que esse texto seja conhecido por
todos aqueles que cultivam uma sensibilidade samaritana de
promover, proteger e cuidar da vida humana, principalmente
aquela mais vulnerável.

Modo latino-americano de fazer bioética


A bioética aqui desenvolvida se ocupa também das questões
sociais, sendo considerada como uma espécie de movimento
social. Segundo Siqueira (2007), “a jovem e tardia bioética
brasileira tem identidade própria e deseja contribuir de
maneira amadurecida para a construção do pensamento
bioético universal”. O Brasil tem algo novo a dizer ao mundo
e alargar o horizonte da reflexão com a voz mistanásica que
pode perfeitamente ser integrada à sinfonia da bioética global,
transnacional e plural, objetivando o bem-viver, a justiça e a vida
digna para os empobrecidos e vulneráveis, considerando que a
bioética navega hoje por outros referenciais. Por essa razão, o
conceito de mistanásia deve ser algo transversal na produção
da bioética, não um tema isolado, justamente porque aborda
questões vitais e centrais para uma vida com dignidade. De certo
modo, subjacente a muitas falas, está o conceito de mistanásia,
porém ele não é explicitado.

A conexão estreita entre a ética social e a bioética, entendida


como ética aplicada com função social, busca criar condições
dignas e decentes para todos, acrescida pelos novos desafios que
derivam das questões emergentes e persistentes que tornam a
vida precária, “nua” (AGAMBEN, 2007) – questão essencialmente

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 97


política –, exposta à morte e vulnerada3. Trata-se da denominada
“cultura da morte” (JOÃO PAULO II, 1995), que gera novas formas
de exposição à morte, invisível e subtraída do olhar. Aqui se dá a
distinção entre morte física (ser finito) e morte sociopolítica: deixar
morrer e fazer morrer4, vida sobrevivente, futuro incerto, indigna
de ser vivida, “matável”, vítima do biopoder (FOUCAULT, 2005),
da cultura do descartável, da violência, da negligência política e
abandono socioeconômico. Trata-se de uma exposição contínua
à morte, na qual se introjetam instrumentos de reprodução
sistêmica de desigualdades e exclusão.

Assim como o mandamento “não matar” põe um limite claro


para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje de-
vemos dizer “não a uma economia da exclusão e da desigualda-
de social”. Esta economia mata. O ser humano é considerado, em
si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois
lançar fora. Assim teve início a cultura do “descartável”, que, aliás,
chega a ser promovida. Já não se trata simplesmente do fenô-
meno de exploração e opressão, mas duma realidade nova: com
a exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde
se vive, pois quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder já
não está nela, mas fora. Os excluídos não são “explorados”, mas
resíduos, “sobras”. (BERGOGLIO, 2013, p. 53)

A morte é uma realidade inevitável, o ser humano é temporal, a


vida é finita. Contudo, o viver sofrido quase sempre leva a morrer
fora do tempo ou “antes da hora”. A morte mistanásica pode sim
ser removida. Sabe-se que os índices de mortalidade infantil,
por exemplo, caíram consideravelmente; contudo, diminuiu a
letalidade e não a morbidade e a exposição contínua à morte.

Intimamente relacionadas com as mortes prematuras estão as


mortes devidas a causas evitáveis, pois eticamente correspondem
a causas que não deveriam ocorrer, uma vez que estas causas

3. Para pensar a bioética como chave de libertação e a partir dos vulnerados, sugerimos
Bioética, Saúde e Vulnerabilidade: em defesa da dignidade dos vulneráveis, de Alexandre An-
drade Martins (São Paulo: Paulus, 2012).
4. O espaço do “soberano” foi ocupado por novos atores que decidem sobre o viver e o
morrer. Trata-se de um poder sistêmico. Por essa razão a morte está cada vez mais politiza-
da por conta da gestão biopolítica da vida (NOYS, 2005, p. 54-55).

98 Bioética Clínica
poderiam ter sido eliminadas ou seus efeitos controlados, não
levando os seus portadores ao êxito letal. (TAUIL; LIMA, 1996, p. 219)

Na evolução do pensamento bioético na contemporaneidade,


muitos bioeticistas afirmam que a bioética deve ser assumida
também como adjetivo, algo orgânico, que entra nas instituições
e atividades humanas de forma interativa e transformadora.
Não se trata de adjetivar a bioética, mas de fazer que ela seja
principalmente um adjetivo: pessoa bioética, sociedade bioética,
política bioética, instituição bioética etc.; trata-se de uma nova
sensibilidade, um modo de ser biofílico5, uma expressão de
valores. A bioética como adjetivo contribui para ler a realidade
de modo mais completo para melhor escrevê-la. Ao se propor
a bioética como adjetivo, estamos inserindo a dimensão
existencial e vivencial no pensar e agir, integrando denúncia,
anúncio e vivência.

Mistanásia é um relevante conceito por meio do qual é possível


introduzir a dimensão profética, sempre latente e subjacente
na produção bioética brasileira, e cada vez mais patente. Por
essa razão, na dimensão ético-profética se dá a distinção entre
mistanásia e cacotanásia6, entre problemas emergentes e
problemas persistentes, entre a bioética político-militante e a
bioética das biotecnologias. Uma pessoa bioética é aquela que
milita para salvaguardar a vida com qualidade e dignidade.
Bioética como adjetivo permite o comprometimento, cuidado e
encontro com o outro vulnerado e a consequente superação da
indiferença: “quem deseja viver com dignidade e em plenitude,
não tem outro caminho senão reconhecer o outro e buscar o
seu bem” (BERGOGLIO, op. cit.). Isso implica “deixar a segurança
da margem e se apaixonar pela missão de comunicar a vida aos
demais” (Ibid., p. 10), bem como deslocar o eixo para as questões
vitais que podem ceifar vidas ou que sejam de interesse dos
destinatários da bioética. Mistanásia tem força convocatória:
evitar a exposição contínua à morte por meio de práticas plurais
5. Amor à vida, atitude humana e habitual.
6. Morte má, ruim. Expressão cunhada por Berlinguer (1988).

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 99


integradas no campo da bioética. Nesse ponto emerge o princípio
de responsabilidade moral pela vida confiada aos cuidados das
pessoas, sociedade e instituições. Pessini e Barchifontaine (2007b,
p. 118) assim se expressam:

Procuramos fazer bioética com razão e coração, sensibilidade


e compromisso com os mais vulneráveis da sociedade,
alimentando o sonho de um futuro melhor, mais saudável e feliz
para todos.

A bioética brasileira é elaborada pelo viés da inequidade7 social,


que favorece o alargamento de horizonte e o deslocamento de
acento.

A bioética brasileira, em sua fase adulta, caminhando para


a maturidade, procura sim se inspirar em outros modelos de
pensamento bioético, frutos de contextos sociopolítico-culturais
específicos; mas, diferentemente de sua fase inicial, a infância,
sinaliza que não é saudável importar, imitar e copiar modelos
éticos. Temos uma originalidade e uma identidade próprias
que precisamos resgatar e valorizar, superando o complexo
histórico que nos foi imposto de incapacidade de pensarmos
por nós próprios e de sermos inferiores aos outros, por estarmos
situados no hemisfério sul do planeta entre os países em
desenvolvimento. (Loc. cit.)

Pode-se constatar que a América Latina em geral e o Brasil em


particular podem oferecer contribuições atuais e originais,
deixando de ser apenas destinatários ou receptores passivos.
Por outro lado, há também focos de resistências, preconceitos
e impermeabilidade que aos poucos vão sendo superados. A
constatação e provocação de Zimmermann (1987) produziram
bons resultados, embora haja ainda um longo caminho a
percorrer. O convite foi vencer o complexo de inferioridade e sair

7. Inequidade (do inglês inequality) é um neologismo já bastante difundido no âmbito bio-


ético e sanitário e utilizado para designar desigualdade injusta e superável, cujas causas
devem ser objeto de juízo moral. O termo não é apenas sinônimo de desigualdade, trata-se
de assimetrias e diferenças sistemáticas, desnecessárias e evitáveis no cerne de popula-
ções e nas relações entre diferentes, atingindo, sobretudo, os pobres e vulneráveis.

100 Bioética Clínica


da menoridade. Segundo ele, há pensamentos próprios e práticas
que podem ser jogadas no grande concerto do pensamento
universal. Há muito a ser oferecido, contudo, em atitude de
reciprocidade, humildade, sem excesso de autoafirmação e
isolamento.

A bioética brasileira possui convicções autênticas que, em


determinados momentos, entram em conflito com as convicções
bioéticas convencionais que colocam o acento na biotecnologia,
autonomia e principialismo. Urge ampliar o horizonte, deslocar o
acento para as questões emergentes que afetam a vida vulnerada.
Na América Latina

as interrogações giram em torno não de como se usa a


tecnologia médica, mas de quem tem acesso a ela. Assim, um
forte saber social qualifica a bioética latino-americana; conceitos
culturalmente fortes como justiça, equidade e solidariedade
deverão ocupar um lugar similar ao princípio da autonomia nos
Estados Unidos. (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2007a, 370-71)

Mistanásia, pelo fato de ser um conceito cunhado e construído na


perspectiva latino-americana, justifica o interesse de se insistir no
deslocamento de acento e inserção de um novo tema na agenda da
bioética global. Dentre todas as disciplinas, a bioética deveria ser,
a priori, por conta de sua natureza e conteúdo, uma das primeiras
a se interessar pelas questões de sobrevivência. Entretanto,
verifica-se uma parcial abstenção da bioética referente ao estudo
e combate das causas geradoras de mortes mistanásicas. Dessa
maneira, a reflexão bioética tradicional tem sido insuficiente. É
necessário que haja um enfoque mais amplo, que pode ser dado
pela contribuição da ética social. Não se pode deixar à margem
questões sociais pertinentes e emergentes. O acento (enfoque)
ao campo clínico e de fronteira não implica marginalizar ou
negligenciar as questões sociais que vulnerabilizam e vitimam
um número expressivo da população mundial. Parece ser essa
a contribuição da bioética local: ser de fato ponte, aproximação
entre a bioética de fronteira e a bioética cotidiana, evitando
extremos ou distanciamento.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 101


Na América Latina o bios tem um rosto, é personalizado, com
forte apelo fenomenológico (“cuida de mim!”) e ético (“a vida foi
confiada a mim!”). Já o ethos é compreendido dentro da dimensão
sociocomunitária (BOCHATEY, 2003) e não intimista. Pessini e
Barchifontaine (2014, p. 45-46), ao abordarem os novos tempos e
as novas questões que são enfatizadas, assim se expressam:

Em termos de América Latina, esta última edição, no verbete


História da Ética Médica nas Américas, de autoria de José
Alberto Mainetti, da Argentina, fala do movimento da bioética
nesse continente, sublinhando suas questões maiores. Uma
macroética da saúde pública deve ser proposta como alternativa
para a tradição anglo-americana de microética clínica. Maior
ênfase deve ser colocada na importância da medicina social, na
questão da justiça e equidade na alocação de recursos, bem como
no acesso aos serviços de saúde. A América Latina não perdeu a
esperança de ser o continente da justiça. Na visão de Mainetti “a
revolução bioética sumarizada num bios de alta tecnologia e por
um ethos individualista deve ser complementada na América
Latina por um bios humanista e um ethos comunitário”.

Trata-se, portanto, de integrar tradição e inovação, sem rupturas


ou contraposições nada producentes. Talvez seja esse o sentido
atual de “ponte”, presente na intuição do pioneiro Potter (1971).

Para Neves (2005, p. 299), a bioética latino-americana, ao colocar o


acento nas questões sociopolíticas, demonstra sua especificidade.

Considera então, por exemplo, que ao comum debate em torno


do direito de morrer com dignidade se contrapõe, com uma
acuidade acrescida, o direito de viver com dignidade; à questão
da Procriação Medicamente Assistida (PMA) se contrapõe
o controle da mortalidade infantil. Por conta das diferentes
sensibilidades e pontos de vista alguns autores brasileiros fazem
a distinção entre “problemas persistentes” da bioética – que se
reportam invariavelmente à aplicação das biotecnologias – e os
“problemas emergentes” que impedem o acesso alargado das
populações aos benefícios da biomedicina. A bioética latino-
americana sem negligenciar as questões persistentes especifica-se

102 Bioética Clínica


na atenção que dedica às questões emergentes. O problema
emergente por excelência é o da pobreza em termos absolutos
e comparativos.

A bioética na América Latina procura contribuir para a construção


de uma sociedade mais equânime e conforme a dignidade
humana. Trata-se de ser uma voz dos sem voz, uma expressão
contextual e aplicada da mesma voz. Nesse ponto, a questão se a
bioética deve ou não ser adjetivada se aproxima daquela colocada
por Neves (Ibid., p. 285-286): bioética ou bioéticas? Para ela,

importa converter o sentido disjuntivo da expressão bioética


ou bioéticas, num sentido copulativo – bioética e bioéticas –,
colocando-nos assim para além da singularidade absolutista do
modelo único da bioética e para além da pluralidade anárquica
de um alargamento indiferenciado de seu âmbito. […] A bioética
é a “voz”, por excelência, do cuidado e solicitude de cunho
humanista. Esta “voz”, no seu “linguajar”, soa diferentemente
em diferentes comunidades culturais, em afastadas regiões
geográficas, ecoa com um distinto sotaque ou até segundo um
dialeto local. É uma mesma língua que se vai falando de modo
diverso.

Portanto, há lugar para uma bioética latino-americana que


procura dar voz aos vulnerados e pobres, e assim romper com os
silêncios letais.

A bioética implica um compromisso existencial e prático a favor


de todas as pessoas, em especial dos mais fracos. Encontra-
se comprometida e obrigada com toda a vida concreta do ser
humano real. A prontidão em servir os mais vulneráveis é uma
dimensão constitutiva da bioética como saber prático normativo
rigoroso. (LÓPEZ, 2006, p. 1200)

A bioética é global no sentido assumido por Neves (Ibid., p. 308):


“bioética global como diálogo entre todos os ‘linguajares’ de uma
mesma língua; como a harmonia perfeita de uma exuberância de
sons, como uma bioética polifônica”. Frequentemente a bioética
é adjetivada para melhor explicitar uma temática, nunca para
levar à fragmentação. Não se quer “brigar” por nomes, títulos ou

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 103


adjetivos. Não se trata de ideologizar a bioética, mas de facilitar
a assimilação de um conteúdo indispensável: a questão da
sobrevivência humana, intrínseca à bioética. Luta-se também
pela inserção de conteúdos libertadores8 e não por “etiquetas”.
A bioética pode contribuir para a transformação das estruturas
e mecanismos que produzem marginalização e pobreza: as
macroestruturas. Para tanto, ela precisa ser macro nos conteúdos
e método.

É singular à reflexão latino-americana a atenção aos problemas


reais e prioritários da população. Não se pode esquecer de que

na América Latina a bioética tem o encontro obrigatório com a


pobreza, inequidades e exclusão social. Elaborar uma bioética
somente no nível micro, sem levar em conta essa realidade,
não responderia aos anseios por mais vida digna. (PESSINI;
BARCHIFONTAINE, 2014, p. 55)

A reflexão latino-americana propicia a inserção de temas na


agenda da bioética global, principalmente aqueles relacionados
à saúde da população, equidade e justiça social. Ademais, sem
desconsiderar as questões de fronteira, desloca o foco para as
questões cotidianas e oferece uma resposta ao deficit (que deve
ser admitido e não perpetuado) da bioética, já sinalizado por
Potter (op. cit., p. 352).

Nos tempos presentes, eticistas médicos devem ir além


do monitoramento tecnológico utilizado somente pelos
superprivilegiados. Eles devem colaborar com os eticistas sociais
e exigir medidas de saúde para os menos afortunados em casa
(nos Estados Unidos) e nos países em desenvolvimento, onde a
pobreza implica aids, malária, parasitismo e tuberculose.

A morte é inevitável e comum a todos; contudo, a desigualdade


social pode antecipá-la, tornando-a desigual, com sérias
implicações éticas. Diferente é a morte mistanásica que “perturba”
8. Sobre a relação bioética e libertação, sugerimos “Bioética de intervenção e pedagogia da
libertação: aproximações possíveis”, de Santos, Shimizu e Garrafa (artigo de 2014 disponi-
bilizado na revista Bioética).

104 Bioética Clínica


justamente por ser evitável. Em alguns casos resiste-se insistente
e inutilmente (distanásia) contra a morte natural, mas não contra
a morte mistanásica. É na distinção inevitável e evitável que se
elabora a verdadeira e eficaz resistência. Por essa razão, a bioética
desperta para a compreensão de que muito pode ser feito para se
evitar o mal na perspectiva da “resistência criativa”.

A bioética latino-americana quer ser uma voz integrativa e


integradora na sinfonia possível da bioética. A mistanásia precisa
ser cravada nessa orquestra em vista de torná-la mais concreta
e completa. Sabe-se que os bioeticistas brasileiros deram uma
grande contribuição e certamente influenciaram a inflexão da
bioética e alargamento de horizonte. Nesse sentido, a bioética dos
países emergentes não será apenas reflexo daquela elaborada no
primeiro mundo, mas também fonte, que insere temas e amplia a
reflexão.

Mistanásia: expressões precedentes, origem e definição


Antes de aprofundar o conceito de mistanásia, parece oportuno
lembrar algumas expressões históricas para designar ou explicar
o conceito de morte injusta.

Em 1900, Jacques Bertillon colocou a descoberto um fenômeno


documentado, observado contemporaneamente em Paris, Berlim
e Viena: a desigualdade social diante da morte (la inegalité sociale
devant la mort). Após a consolidação do nazismo, foi realizado
pela primeira vez na história um amplo programa, denominado
por D’Agostino (1977) de “eutanásia eugenética: supressão de
existências privadas de valor vital”. Tratava-se da eliminação direta
e deliberada de indivíduos considerados inferiores ou deficientes
para “melhorar” a raça ou para economizar os recursos públicos.
Em 1984, o jesuíta francês Patrick Verspieren preferiu indicar
outro adjetivo: “eutanásia social”. O abandono, ainda que não seja
uma forma direta de assassinato, é o resultado de uma prévia e
deliberada condenação à morte.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 105


No curso da história, diversas sociedades condenaram à morte
muitos de seus membros por tantos motivos, particularmente
por motivos eugênicos ou econômicos; sob forma, por exemplo,
de abandono dos velhos ou exposição de crianças débeis ou
malformadas. Para indicar tais práticas se usa correntemente a
expressão “eutanásia social”. (VERSPIEREN, 1985, p. 141)

Em 1988, Berlinguer, na conferência apresentada no Congresso


de Bioética promovido pelo Instituto Gramsci sobre “Questões de
vida: ética, ciência e direito”, introduziu dois relevantes conceitos: a
distinção e relação entre bioética de fronteira e bioética cotidiana,
e a cacotanásia. A percepção do autor se voltou para a questão da
“discutível acentuação” das questões de fronteira.

A atenção vem suscitada, sobretudo, nos casos de fronteira,


descuidando frequentemente dos problemas morais e científicos
que envolvem milhões e até mesmo bilhões de homens na
vida cotidiana. Discute-se justamente sobre alguns casos de
eutanásia, de “boa morte” eventual, mas se ignoram milhões de
cacotanásias, de péssimas mortes prematuras e imerecidas, que
acontecem por falta de prevenção e de cuidados. (BERLINGUER,
1988, p. 64-65)

Berlinguer inova e amplia a reflexão ao chamar a atenção para


as questões da vida cotidiana, afirmando que a atenção da
bioética não pode se concentrar apenas nos “casos de fronteira”. A
perspectiva de Berlinguer, por ser bastante aderente à percepção
latino-americana, certamente contribuiu para o nascimento do
neologismo “mistanásia”, porém com outra chave hermenêutica.

Márcio Fabri dos Anjos, bioeticista brasileiro, rompeu com a


adjetivação da eutanásia (social) e criou um novo e valioso
conceito: mistanásia. Ao fazer uma contraposição entre eutanásia
e mistanásia, ele afirma categoricamente em seu texto referencial
(1989) que tanto o viver quanto o morrer devem ser revestidos
de dignidade. Não se trata de matar, ajudar ou deixar morrer,
mas de morte antecipada e totalmente precoce (“anacrotanásia”)
por causas previsíveis e preveníveis, mortes escondidas e não
valorizadas. Nasce uma bioética crítica, afirmativa e preventiva.

106 Bioética Clínica


Ao entender a eutanásia como morte suave, feliz, a primeira
situação que nos ocorre para contextualizá-la é o seu contrário.
Parece importante falar, então, da morte infeliz, dolorosa, que
chamaríamos de mistanásia. Isto nos remete, dentro da área
da biomedicina, aos pacientes terminais sofredores, seja pela
convicta recusa em não se interferir no processo de morte, seja
pelo mau atendimento médico-hospitalar. Mas nos remete
também muito além da área hospitalar. E nos faz pensar
na morte provocada de formas lentas e sutis por sistemas e
estruturas. A mistanásia nos fazer lembrar os que morrem de
fome, cujo número apontado por estatísticas é de estarrecer. Faz
lembrar, de modo geral, a morte do empobrecido, amargado
pelo abandono e pela falta de recursos os mais primários. Mas
também nos remete aos mortos nas torturas de regimes políticos
fortes e que os deixam por fim como “desaparecidos”. Nesses
casos, a mistanásia (do grego mis = infeliz) é uma verdadeira
“mustanásia”, morte de rato de esgoto (do grego mys = rato).
(Ibid., p. 6)

É relevante observar que o conceito surge no final dos anos 1980,


após duas décadas de quase total silêncio na bioética brasileira
(anos 1970 e 1980). Certamente uma contribuição para o avanço
da bioética no Brasil, que se deu justamente no início dos anos
1990.

Anjos (2005) esclarece que mistanásia quer significar a morte


de pessoas cujas vidas não são valorizadas, acontecem nos
porões da sociedade, no submundo; por isso são desconhecidas,
desconsideradas ou mesmo ocultadas.

Neste conjunto de conceitos, pela experiência da morte infeliz


dos pobres, injustiçados, pessoas que morrem no esquecimento
e desespero, cunhamos também o termo mistanásia. Esses
vários conceitos são um instrumento para lembrar previamente
diferentes situações éticas do morrer, visando com isto facilitar a
apreciação ética de situações concretas. (IHU ON-LINE, 2005, p. 21)

O desvelamento da morte silenciosa também é um modo de


se atribuir justiça às suas vítimas, insistindo no argumento da
responsabilidade moral pela vida confiada: a morte mistanásica

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 107


“do outro” é sempre um evento “dos outros”; implica não deixar
morrer. O termo mistanásia vem substituir a expressão eutanásia
social frequentemente utilizada. “Fazemos isso por considerar este
um uso totalmente inapropriado da palavra eutanásia e por achar
mais apropriado o termo mistanásia: a morte miserável, infeliz,
fora e antes do seu tempo” (PESSINI, 2004, p. 210)9.

No aprofundamento e divulgação ao público acadêmico do novo


conceito de mistanásia, não podemos esquecer Leonard M. Martin
– teólogo e bioeticista irlandês que viveu toda sua vida acadêmica
no Brasil. Em 1998, Martin publicou, na obra coletiva do Conselho
Federal de Medicina (CFM) Iniciação à Bioética, o importante
artigo “Eutanásia e distanásia”, em que foi trabalhado o novo
conceito de mistanásia (que substitui o conceito de “eutanásia
social”, mais utilizado até então) em doentes e deficientes que não
chegam a ser pacientes, isto é, mistanásia por omissão de socorro.
Outro tipo de mistanásia é aquela que é praticada em pacientes
vítimas de erro médico, e aqui temos as mistanásias por imperícia,
imprudência e negligencia (MARTIN, 1998). Em 1999, dez anos após
seu surgimento, o conceito adquire maior divulgação quando
incorporado ao Dicionário Interdisciplinar da Pastoral da Saúde,
através de seu verbete (Id., 1999). Desde sua origem o conceito
foi adquirindo crescente consenso, difusão e ampliação. Martin
(Ibid.) situa a mistanásia no âmbito da “omissão”, a expressão
mais comum e difusa nos países em desenvolvimento: atua-se
principalmente e não exclusivamente na combinação pobreza-
omissão social, facilitadora de morbidade e doenças.

Para Leonard Martin a expressão “eutanásia social” deve ser


substituída pelo novo conceito de mistanásia. Vejamos como ele
argumenta:

Uma frase frequentemente utilizada é “eutanásia social”. No


entanto, considero ser este um uso totalmente inapropriado
da palavra eutanásia e assim, deve ser substituído pelo uso do
9. Mistanásia é um conceito assumido com frequência nos textos de Leo Pessini, como
em Distanásia: até quando prolongar a vida? (São Paulo: Loyola, 2001) e Problemas atuais
de bioética (em parceria com Christian Barchifontaine. São Paulo: Loyola, 2014).

108 Bioética Clínica


termo mistanásia: a morte miserável fora e antes do seu tempo.
A eutanásia, tanto em sua origem etimológica (“boa morte”)
como em sua intenção, quer ser um ato de misericórdia, quer
propiciar ao doente que está sofrendo uma morte boa, suave
e indolor. As situações a que se referem os termos eutanásia
social e mistanásia, porém, não têm nada de boas, suaves nem
indolores. (Id. 1998, p. 174)

Esse novo conceito de mistanásia tem grande poder provocatório


e convocatório, sobretudo no campo ético-moral, justamente
por ser capaz de deslocar o foco ao situar a morte precoce na
esfera do “mal evitável”, evocando o princípio moral de “evitar
o mal”. A atribuição de responsabilidade moral e social pelas
mortes evitáveis “sacode” as consciências, mobiliza para ações
defensivas, preventivas e afirmativas em situações adversas e
de vulnerabilidade, além de favorecer e insistir nas mudanças
comportamentais e socioestruturais. Contribui também para
evitar que seja negado às vítimas de mortes injustas o status
de “vítima”. Pretende-se com a vitimização atribuir e cobrar
responsabilidades, além de culpabilizar e punir, quando oportuno.
Dentro da categoria de mortes mistanásicas, pode-se agrupar
as mortes ocorridas por conta da violência, trânsito, suicídio,
poluição, dependência química etc. Pessini (2014, p. 156), ao
comentar o Mapa da Violência 2014 em seu artigo “O absurdo
desperdício de vidas humanas no Brasil”, afirma:

Eticamente falando, nos assusta perante esse verdadeiro


“holocausto silencioso” a atitude de certo conformismo e até
indiferença das elites de nossa sociedade e governo, perante
essas terríveis estatísticas de milhares de mortes perfeitamente
evitáveis.10

Essa triste realidade tira as mortes mistanásicas da esfera do


“normal” ou “natural”, e faz emergir uma questão que pode ser
devidamente tratada à luz da bioética social. É “tirar do porão”
e colocar em evidência a realidade na qual, principalmente,
10. Sobre esse assunto, sugerimos o livro Bioética em tempos de globalização, de Pessini,
Bertachini, Barchifontaine e Hossne (São Paulo: Loyola, 2015); e, especialmente, o capítulo
“A mistanásia: morte em nível social, coletivo, infeliz e ‘antes do tempo’” (p. 156-159).

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 109


encerram-se graves e urgentes implicações éticas, pois as
mortes mistanásicas ocorrem à luz do sol, contudo as causas e
implicações são colocadas metodologicamente nos subterrâneos
que, por vergonha, comodismo ou negligência, a sociedade
prefere manter escondidas. Trata-se de fazer emergir não o
fato já do conhecimento de todos, mas o significado ético e a
responsabilização pessoal, coletiva e social. É um papel que pode
ser perfeitamente incorporado ao campo de interesse e alcance
da bioética.

A mistanásia é geralmente a morte do pobre, resultado de uma


vida precária e com pouca ou nenhuma qualidade. É uma morte
indireta, causada pelo abandono, omissão ou negligência social e
pessoal. Em 2002, o VI Congresso Mundial de Bioética, realizado
no Brasil, em Brasília, incorporou, de certo modo, as perspectivas e
percepções latino-americanas latentes no conceito de mistanásia
e patentes na reflexão local. O VI Congresso, ao abordar o tema
“Bioética, poder e injustiça”,

cravou no coração da agenda bioética internacional questões


relacionadas com as desigualdades e a exclusão social. Os debates
e embates ocorridos, desenvolvidos em elevado nível intelectual,
trouxeram à tona a necessidade para a bioética de incorporar ao
seu campo de reflexão e ação aplicada temas políticos atuais,
principalmente as agudas discrepâncias sociais e econômicas
existentes entre ricos e pobres, entre as nações dos hemisférios
norte e sul do mundo. (GARRAFA; PESSINI, 2003, p. 12-13)

O congresso acolheu, de certo modo, a novidade daquela bioética


elaborada na perspectiva brasileira11 que, ao enfatizar a política
e se deparar com inequidades sociais e questões originadas
(ANJOS, 2000), contribuiu para a elaboração de uma bioética mais
“politizada”.

11. A bioética no Brasil é marcada pelas aspirações por um mundo mais justo e feliz. Segun-
do Anjos (2002a, p. 67-68), “as tendências da bioética no Brasil oferecem um bom sinal e
esperança, pois tem se constituído em um importante espaço de contribuição para trans-
formar a consciência nacional”.

110 Bioética Clínica


Os apelos, percepções, perspectivas e desdobramentos dos
Congressos Mundiais12 ressoaram de certo modo na Unesco,
que, em 2005, aprovou a Declaração Universal sobre Bioética e
Direitos Humanos, após intenso debate, discussões e inegável
contribuição latino-americana no que diz respeito à inserção da
dimensão social na reflexão bioética13.

Tanto o Congresso de Brasília quanto a Declaração da Unesco


representam, de certo modo, um “divisor de águas” na perspectiva
bioética internacional, sinalizam que o alargamento da reflexão
encontrou razoável permeabilidade e que, portanto, inaugurou-
se uma nova fase para a bioética, que, contudo, ainda está em
construção. A relevante contribuição brasileira no processo deriva
do mesmo húmus que produziu o conceito mistanásia: situação
de inequidades sociais e hermenêutica libertadora atenta às
necessidades reais e clamores que vêm do mundo dos pobres
cuja concretude da vida destes constitui o ponto de partida da
reflexão e ações derivantes.

Essa nova sensibilidade, de certo modo difusa, propiciou o


pluralismo de adjetivos para a bioética – “bioética e bioéticas”,
como já visto –, com função de contextualização e acentuação
de questões relevantes. Por exemplo: bioética cotidiana, bioética
de fronteira, bioética de intervenção, bioética de proteção, bioética
social, bioética integrativa, bioética do dia a dia, biodireito,
biopolítica, bioética à brasileira, bioética afirmativa (proposta
deste texto) e, por fim, a mais recente, bioética como adjetivo e
não adjetivada, proposta por Márcio Fabri dos Anjos.

O escopo é interrogar a atual estrutura social, política e


econômica que gera, tolera e permite que mortes desnecessárias
12. Segundo Pessini (2006b, p. 878), “levando em consideração a perspectiva dos oito Con-
gressos Mundiais, vemos que a bioética vai avançando globalmente (geograficamente),
ampliando sua compreensão epistemológica e sua abrangência temática, enfrentando os
desafios emergentes e sinalizando prioridades a seguir”.
13. Os países do Norte propunham uma visão mais estreita da bioética no âmbito das bio-
tecnologias. Já os do Sul, principalmente os da América Latina, propunham uma visão mais
larga e expansiva, no âmbito das questões sociais e ecológicas.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 111


ou evitáveis continuem ocorrendo. Não só interrogar, mas,
também, propor iniciativas e atitudes éticas capazes de criar
resistência a essa realidade e potencializar a cultura da vida.
Segundo Freire (1984, p. 145), “a autenticidade da ação se dá
quando a prática do desvelamento da realidade constitui uma
unidade dinâmica e dialética com a prática da transformação da
realidade”. Portanto, pergunta-se para transformar e não apenas
para especular. A filosofia de ação da organização humanitária
internacional Médicos sem Fronteiras, que socorre vitimados de
desastres naturais e guerras, é muito significativa quando afirma:
“ocupamo-nos de histórias com o final já escrito. E conseguimos
mudar o final”.

Deslocamento de acento em bioética


Como já asseverado, este capítulo objetiva iluminar e propor
alternativas e temas à agenda da bioética contemporânea, por
meio do deslocamento de acento. Trata-se de chamar a atenção
para se evitar o distanciamento e não perder de vista a realidade
concreta de bilhões de seres humanos.

Foi Berlinguer quem introduziu a distinção entre bioética


cotidiana e bioética de fronteira, numa conferência em março de
1988. Na premissa de seu livro Bioética Quotidiana, o autor assim
se expressa ao justificar o título da obra:

O escopo é rechamar a atenção, que agora está concentrada


em modo quase exclusivo sobre casos extremos de intervenção
sobre a vida, isto é, sobre aquilo que antes dos desenvolvimentos
recentes das ciências biomédicas eram impraticáveis, e, às vezes,
até mesmo impensáveis sobre a existência de uma outra bioética,
mais próxima à experiência de todas as pessoas e de todo dia.
(BERLINGUER, 2000, p. VII, tradução nossa).

Percebe-se o deslocamento da bioética que inicialmente se


ocupava daquilo que acontecia a poucos e atualmente se orienta
“por obra de muitos estudiosos e de consistentes movimentos
de opinião, em direção àquilo que acontece à maioria, isto é,

112 Bioética Clínica


em direção à vida e ao bem-estar da população, em particular
da população dos países em via de desenvolvimento” (Ibid., p.
193). O deslocamento não implica abandono de uma expressão,
antes, quer contribuir para o diálogo e convergência das duas
expressões da mesma bioética: de fronteira e cotidiana. Para que
um polo apareça é preciso que o outro seja apenas deslocado,
não combatido ou anulado. Segundo o Papa João Paulo II (op. cit.,
p. 87), “trata-se de cuidar da vida toda e da vida de todos”.

Comumente a bioética abordava as questões de fronteira com


pouca atenção àquelas cotidianas. Propõe-se ampliar o foco
da bioética para as questões e situações produtoras de mortes
mistanásicas, mesmo considerando que estas pertencem ao
campo de interesse da ética social. Como afirmou Bompiani (1995,
p. 8), “alguém poderia argumentar dizendo que a ética social já
se ocupa dessas questões e que não seria o caso de incomodar a
bioética e pedir sua intervenção. Contudo, trata-se de questões
vitais”. Uma bioética elaborada em chave de libertação e na ótica
dos vulneráveis pode contribuir para a superação dessa lacuna
e consequente alargamento da reflexão, de modo que a vida,
objeto primário da bioética, seja respeitada, defendida e sempre
mais conforme a dignidade humana.

O termo “mistanásia” está muito além da questão semântica.


Provoca nova reflexão, nova perspectiva hermenêutica e sincera
atitude ética que implica: colaborar para eliminar ou ao menos
diminuir todo sofrimento humano evitável, que torna a vida
precária e sofrida, em que o começo é tão próximo do fim. Trata-
se de pensar a “bioética da parte dos fracos” (Ibid.), não apenas
a partir da vida “em si”, mas da vida concreta, principalmente da
“vida do empobrecido e vulnerado”, no sentido de “ir além”, de
modo dialógico e relacional.

Seguindo a mesma linha de ampliação, recentemente, no Brasil,


os bioeticistas Volnei Garrafa e Fermin Schramm cunharam duas
expressões conexas e de certo modo complementares: “bioética

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 113


da intervenção” e “bioética da proteção”14, respectivamente. O
objetivo é apresentar uma bioética mais politizada e libertadora,
que toque nas questões vitais para garantir vida humana com
dignidade e qualidade. Trata-se de uma bioética contextual,
educativa, de caráter crítico e solidário, não paternalista,
comprometida com os vulnerados (SANTOS; SHIMIZU; GARRAFA,
op. cit.), como uma nova ferramenta, distinta do principialismo
bioético até então hegemônico, para enfrentar situações
emergentes e persistentes e, consequentemente, melhorar a vida
das pessoas. Conjuga intervenção e proteção em favor da vida
vulnerada. Sabe-se que não basta apenas “politizar a bioética”,
o que de certo modo já aconteceu, urge “bioeticalizar a política”
(HOSSNE, 2014). Portanto, trata-se de se interessar e de cuidar do
homem todo e de todo homem, situado em seu contexto social.
É justamente essa percepção de conservação e promoção da vida
que favorece a inserção do tema da mistanásia na agenda da
bioética mundial, com vantagens e benefícios para os pobres e
vulnerados. Assim, tanto o tema da mistanásia quanto as vítimas
dela deixam de ser marginais, trazendo implicações éticas que
reclamam ações concretas e urgentes. Com esse novo enfoque
que emerge da responsabilidade moral e sensibilidade social pelo
respeito à vida, evita-se que seja negado o status de vítima às
vítimas da mistanásia. Nesse aspecto, a América Latina mais uma
vez oferece uma reflexão inquietante, emblemática e inovadora.
Surge, assim, uma bioética do cotidiano, do dia a dia, assumida
como adjetivo e imperativo ético.

A bioética de matiz brasileira possui um know-how que lhe


é próprio, um método eficiente e completo que supera a
dicotomia entre ação e reflexão, prática e teoria, gerando uma
ação equilibrada e autenticamente humanista e humanizadora,
reconhecida pela sociedade plural e paulatinamente incorporada
ao pensamento global, confirmando que a sinfonia é possível e
necessária. Cabe aos bioeticistas enfrentar os desafios do tempo
presente, com vigor, criatividade e motivação, a fim de que a
14. Sobre esses temas, sugerimos “Da bioética de princípios a uma bioética interventiva”,
de Volnei Garrafa (2005a), e “Bioética da Proteção: ferramenta válida para enfrentar proble-
mas morais na era da globalização”, de Schramm (2008).

114 Bioética Clínica


bioética tenha futuro e a vida em geral e a vulnerada em particular
tenha futuridade.

Considerações finais propositivas: por uma bioética


afirmativa
Ao mesmo tempo que se insiste, com recorrência, nos temas
relacionados à longevidade, aprimoramento biológico e maior
qualidade de vida, decorrentes do acelerado progresso científico-
-tecnológico, seguem situações emergentes que abreviam a
vida ou sobrevida de uma considerável parte da população.
É uma questão ética e bioética lutar contra a pobreza que gera
pessoas vulneradas e expostas continuamente à morte. Trata-se
de morte infeliz e vergonhosa, que caminha à frente dos pobres:
“chegando, aprendo que,/nessa viagem que eu fazia,/sem saber
desde o Sertão,/meu próprio enterro eu seguia./Só que devo ter
chegado/adiantado de uns dias,/o enterro espera na porta:/o
morto ainda está com vida” (MELO NETO, 1994). Urge “politizar a
morte” mistanásica em vista de sua superação, considerando que
a bioética na intuição original é, sobretudo, uma ciência moral e
como tal deve integrar ciência e ética, especialmente ética social
(adjetivada para melhor acentuação), para ser de fato “ponte”. Até
quando permitir mortes mistanásicas? Não há escusas e tolerância
para vidas ceifadas diariamente. Propiciar o “bem viver” para todos
é um “bem árduo”, penoso, difícil e laborioso, mas factível.

Após o percurso analítico e reflexivo, visando a uma melhor


compreensão e maior difusão do conceito de mistanásia,
propõe-se a integração da dimensão afirmativa na bioética
em vista da prescritiva: defender a vida vulnerada, exposta à
morte mistanásica, por meio de ações e intervenções pessoais e
institucionais que corrijam os processos que geram as situações
emergentes e impedem a afirmação da vida e o viver digno, com
o mínimo decente e qualidade. Propõe-se a bioética afirmativa15,
15. No sentido lato e bioético: ações afirmativas que visam a superar ou minimizar as situ-
ações emergentes que provocam as mortes mistanásicas.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 115


adjetivada e a bioética como adjetivo, vivencial e orgânica. São
mais duas vozes, ou “linguajares” (NEVES, op. cit.), na “bioética
polifônica”. Já existe uma bioética de cunho brasileiro.

No Brasil, busca-se uma identidade bioética sem se desconectar


do pensamento global. Sabe-se que a bioética de biotecnologias
tem mais visibilidade e prestígio. Porém, urge insistir nos temas
vitais de acentuado interesse na bioética cotidiana e brasileira.
A bioética em geral e afirmativa em particular assumem a vida
como princípio e conteúdo fundamental. A bioética afirmativa
passa pela “dignificação” do ser humano e “negação da negação”16
(momento afirmativo), considerando que os sem dignidade são
reduzidos a objetos e suas vidas expostas continuamente à morte
precoce e evitável. Urge fazer algo além de enterrar os mortos. A
morte mistanásica deve sim ser tematizada pela bioética.

A bioética brasileira milita temas do cotidiano, na ótica dos


vulnerados, como um movimento social e, de certo modo, uma
ação afirmativa, na medida que busca bioeticalizar a política,
o direito e instituições com poder de decisão e intervenção
positiva sobre a vida. Parece ser esse o presente e o futuro, tanto
dos bioeticistas quanto da bioética no Brasil, “recordando que a
bioética brasileira é uma construção em andamento e de algum
modo sempre o será. Mas é possível notar seu amadurecimento
obtido nestes últimos anos” (ANJOS, 2007, p. 27). Trata-se de uma
bioética crítica, viva, criativa e dialogante, construída em mutirão.
De acordo com Pessini (2006a, p. 40), “a bioética na América Latina,
sem dúvida, é uma forte esperança de construirmos um presente
e um futuro de vida mais justos e saudáveis para todos”.

Por fim, espera-se tirar do “confinamento” e de certa forma


cravar, de modo orgânico, no pensamento bioético e nas
disciplinas e programas afins, o neologismo relevante e mais do
que nunca atual: mistanásia. Afinal parece ser esse o imperativo
da bioética brasileira: reflexão crítica e transformadora que
16. Sobre a negação da dignidade, sugerimos a leitura de “Dignità: negazione e riconosci-
mento in un contesto concreto di liberazione”, de Dussel (2003).

116 Bioética Clínica


acolhe as demandas sociais para não ser um discurso estéril e
distante da realidade. Por essa razão é um “movimento cultural
de sensibilidade ética de proteção à vida” (PESSINI, 2006a, p.46)
para que todos possam viver e morrer com dignidade. Isso implica
lutar por uma realidade que favoreça o “bem viver” para todos.

Qual é, então, o papel do bioeticista no Brasil? De acordo com


Hossne (op. cit., p. 82-82), ser bioeticista é

ouvir outras vozes e evitar o isolamento; ser pilar e ponte. […]


Atuar como pilar significa dar suporte, fornecer subsídios. Atuar
como ponte implica abrir caminho para que a bioética adentre
no âmbito cultural e na esfera de aplicação de sua disciplina.

Dessa forma, é papel do bioeticista interferir e interagir no sistema


e na cultura, considerando que ele sempre estará implicado nas
questões colocadas: corrigir desde dentro, garantir presença e
ocupar espaços de pensamento, diálogo e deliberação. Assim se
dá a passagem da bioética casuísta ou temporal para uma bioética
espacial e global, beneficente para todos. Urge seguir apostando
no inédito viável (FREIRE, op. cit.) e no outro mundo possível.

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120 Bioética Clínica


Bioética e espiritualidade

Waldir Souza1

Introdução
A técnica, como práxis, configura a relação instrumental da
pessoa com o mundo. Dessa forma, poderíamos dizer que ela é
o prolongamento e o aumento da potência do corpo – não só
física, mas também mental – que, por milênios, o ser humano
procurou aprimorar. Finalmente, no fim do século XX teve início
a Era da Informação, em que a informática e a robótica, por meio
das máquinas, propiciaram o aperfeiçoamento e o avanço dos
conhecimentos humanos (SGRECCIA, 2002).

O desenvolvimento tecnológico da medicina (extrema


tecnificação clínica; crescentes políticas de coletivização da
saúde; consciência dos direitos do enfermo; importância da
prevenção das doenças) e os progressos da ciência biológica
(engenharia genética; técnicas de reprodução humana;
transplantes de órgãos; intervenção em estados intersexuais;
progressos técnicos quanto à reanimação e à diagnose pré-
natal) levantam novos desafios que a tradicional ética médica
não consegue responder por seu caráter de pura deontologia
profissional. Para tanto, é necessário um saber mais global e
interdisciplinar e, principalmente, uma argumentação mais
consistente. Assim surge a bioética como um estudo sistemático
das dimensões morais das ciências da vida e da saúde (SOUZA,
2009, p. 25).

A bioética, assim, se torna um fórum de discussão e de construção


de consensos sobre os limites e objetivos de uma pesquisa

1. Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro


(PUC-Rio), professor do Programa de Pós-Graduação em Teologia e em Bioética da
Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e membro do Comitê de Ética
e Pesquisa no Uso de Animais da PUCPR.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 123


científica que envolve seres humanos, de uma prática médica a
serviço da beneficência e autonomia do enfermo, de uma política
que assegure condições de saúde para todos e de uma ciência com
consciência. Ela precisa envolver toda a sociedade civil, o pensar e
o agir nutridos por uma espiritualidade que esteja em defesa da
vida em todas as suas dimensões (JUNGES, 1999, p.13-15).

Por uma ética da vida


Uma das primeiras percepções do ser humano é o seu corpo. A
criança começa a tocar partes do corpo e logo o percebe como
lugar de prazer. Assim, vai paulatinamente tendo uma percepção
do corpo como próprio, isto é, vai se apropriando do seu corpo e se
expressando por meio dele. A experiência do corpo como próprio
é essencial para se situar no espaço e no tempo, relacionar-se com
os outros e agir sobre a realidade. O corpo próprio é a epifania da
pessoa diante de si mesma e dos outros. Portanto, não se trata do
corpo-objeto, mas do corpo-sujeito como dimensão constitutiva
e expressiva do ser humano (JUNGES apud SILVA, s.d.).

De acordo com Junges (op. cit., p. 75-76), existem três significados


para a palavra “corpo”. O primeiro é o corpo como substância
material (totalidade física), e se refere à pura materialidade do
corpo (cadáver). O segundo é o corpo como organismo vivo
(totalidade biológica), uma estrutura de tecidos, órgãos e funções
responsáveis pela vida biológica que o vivifica e o preserva
da decomposição. O terceiro seria o corpo próprio (totalidade
intencional ou pessoal), ou seja, o corpo como evento pessoal.
Somente neste último caso podemos falar de corpo como
autoexpressão do sujeito e de um “eu corporal” (intencionalidade
e sentido de ser). O ser humano tem seu corpo, porque pode dar-
lhe intencionalidade e sentido que transcende o corpo físico e
biológico. Porém, convém ressaltar que o ser humano adquire ou
desenvolve a intencionalidade por meio do físico e do biológico.
Assim, neste capítulo, desenvolveremos as duas afirmações como
sendo válidas e inseparáveis.

124 Bioética Clínica


O corpo não pode ser reduzido a sua dimensão físico-material,
limitando a vida a seu significado biológico. Considerar o corpo
como expressão da pessoa como sujeito significa levar em
consideração outras dimensões da vida. É dessa maneira que o ser
humano se expressa, torna-se presente, exterioriza-se pelo corpo.
É a dimensão de exterioridade do corpo próprio. Para isso se faz
necessária uma compreensão filosófico-teológica do corpo por
meio da mediação transcendental.

A vida segundo o espírito se manifesta como propriamente


humana. Ela o é justamente em virtude da correspondência
transcendental entre o espírito e o ser. Com efeito, viver, para
os seres vivos, é seu próprio existir. E, como o ser humano existe
em sua abertura transcendental para a universalidade do ser ou
em sua adequação ativa como ser, ele existe verdadeiramente
enquanto espírito, isto é, a vida propriamente humana é a vida
segundo o espírito. Por isto, o ser humano é capaz de transcender
e ressignificar a sua realidade. Assim, ninguém tem o direito de
tomar posse do outro, pois a posse nega a independência do ser.

Já o rosto diz por si mesmo, é inviolável e descontextualizado. Os


olhos, absolutamente sem proteção, são a parte mais nua do corpo
humano, entretanto, oferecem uma resistência absoluta à posse,
em que se inscreve a tentação do assassinato: a tentação de uma
negação absoluta. O outro é o único ser que pode ter a tentação
de matar. Essa tentação do assassinato e essa impossibilidade do
assassinato constituem a visão mesma do rosto. Ver um rosto já
é escutar “não matarás”. E escutar “não matarás” é escutar “justiça
social”.

Quando não há a violência (a tentação da posse, o matar) se


trava a experiência espiritual − o acolher o rosto do outro com
a novidade e implicação para o meu ser. Tudo o que eu posso
escutar de Deus, e a Deus, que é invisível, deve chegar até mim
pela mesma voz. Assim, “não matarás” não é apenas uma regra de
conduta. Ela aparece como princípio do próprio discurso e da vida
espiritual. A partir daí, a palavra (que sai do outro) é da ordem da

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 125


moral, antes de pertencer a ordem da teoria. A presença do rosto
é precisamente a possibilidade mesma de se escutar (LEVINAS,
1976, p. 13-26).

Para Vaz (2001, p. 239-240),

Sob dois aspectos, a vida segundo o espírito se apresenta como a


fonte originária da qual flui o verdadeiro ser do ser homem: sob
o aspecto da presença e sob o aspecto da unidade. Só o espírito,
com efeito, é presente a si mesmo […] e, por conseguinte, só a
vida segundo o espírito é, para o homem, vida de presença a
si mesmo: de conhecimento de si e de autodeterminação, vida
racional e livre. Nessa presença […] se cumpre, por sua vez, a
unidade efetiva do ser homem – sua unidade espiritual – cujo
núcleo ontológico reside na estrutura espiritual, segundo a qual
se exerce a vida segundo o espírito. Como ser corporal, o homem
vive a vida do corpo e como ser psíquico, a vida do psiquismo. E,
na verdade, esse viver corporal e psíquico não é algo extrínseco
ou acidental à unidade estrutural do ser humano, mas lhe é
consubstancial, integrado, portanto, ao seu existir total […],
embora sendo somática e psiquicamente determinada, a vida
humana não pode ser denominada com propriedade “vida
segundo o corpo” ou “vida segundo o psiquismo”. É vivendo
segundo o espírito que o homem vive humanamente a vida
corporal e a vida psíquica […]. A vida segundo o espírito será,
portanto, para o homem, o exercício dos atos que manifestam
o espírito como o princípio mais profundo e essencial da vida
humana. Esses atos do espírito, ou atos espirituais, descrevem,
na variedade de suas formas e de sua intensidade, a curva ou
o itinerário fundamental da vida de cada homem, e assinalam
os pontos segundo os quais é possível traçar o perfil de sua
personalidade mais autêntica.

Bioética e teologia
A vida humana é, em primeiro lugar, um valor natural, racional-
mente conhecido por todos aqueles que fazem uso da razão.
O valor da pessoa humana se torna precioso pela gratuidade e
pelo dom do Espírito como reveladores da unicidade de cada ser

126 Bioética Clínica


humano. Não cessa de ser para todos, crentes ou não, um valor
intangível pelo exercício constante de se descobrir em movimento.

Segundo Sgreccia (op. cit., p. 47),

a Igreja Católica defendeu, mais que tudo, o princípio de


harmonia entre ciência e fé, entre razão e revelação: uma
harmonia nem sempre fácil e imediata, quer pela fraqueza
da mente humana, quer pelas pressões ideológicas, quer pela
dificuldade intrínseca dos problemas. É este um ponto delicado
e essencial que implica a relação ser humano-Deus, natural-
sobrenatural, filosofia-teologia. Na Gaudium et Spes, Razão e
Revelação têm o mesmo autor, que é Deus, merecendo, assim,
igual respeito, exigindo apoio mútuo. Esse encontro é tanto
mais urgente e necessário quanto mais nos movemos no campo
das ciências experimentais, que têm como objeto realidades
intramundanas e corpóreas, e usam um procedimento racional,
pontual, desconsiderando às vezes, a visão sistêmica.

Essas ciências, citadas pelo autor, usam um “procedimento


racional”, desconsiderando, às vezes, a visão sistêmica.

O diálogo entre ciência e fé só se dará se houver a intermediação


da razão, que é a referência comum para uma e outra. Daí é
que nasce e brota a exigência de uma reflexão filosófica-ética
também no campo médico e biológico. (Ibid., p. 47-48)

Para Junges (2005, p. 113),

A falta de uma visão sistêmica de conjunto e a desconsideração


das inter-relações são a crítica que, em geral, se levanta na pós-
modernidade contra o paradigma hegemônico da ciência. Essa
visão fragmentada torna-se mais problemática quando se trata
de tecnologias aplicadas à vida e, mormente, daquelas que
pretendem intervir no ser humano. Nesse paradigma pode existir
a possibilidade de querer justificar determinado procedimento
técnico, partindo de uma visão reducionista do humano. Por
isso, é importante apontar para os pressupostos antropológicos
subjacentes à determinada prática biotecnológica. Nessa
tarefa hermenêutico-crítica, a teologia desempenha um papel
fundamental.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 127


A teologia, no debate bioético sobre as biotecnociências/
biotecnologias aplicadas ao ser humano, ajuda a recordar
duas dimensões antropológicas essenciais: a consciência da
vulnerabilidade que leva a aceitar e a transignificar as limitações
pessoais, base para a constituição da subjetividade e da
correspondente autonomia; a consciência da alteridade que
leva a reconhecer o outro como diferente, base para as relações
intersubjetivas e de correspondente responsabilidade.

As intervenções das biotecnologias acontecem no âmbito do


corpo humano. A estrutura antropológica do corpo é uma
dimensão essencial do ser humano, e não apenas um acessório
ou objeto de posse. O corpo humano é um evento pessoal e não
um puro fato físico.

A racionalidade instrumental propulsora da ciência e da técnica


moderna fragmenta a realidade e faz que o reducionismo se
imponha sobre a visão sistêmica da realidade. Segundo Junges
(Ibid., p. 115),

essa tendência pode ter consequências catastróficas quando


aplicada à vida e, mais ainda, ao ser humano […]. Isso
aponta para outra dimensão esquecida pelo atual poderio
biotecnológico da medicina: a espiritualidade. A dimensão
espiritual abre o ser humano para realidades que estão além
de sua estrutura somática e psíquica. Trata-se do âmbito
do sentido da vida que transcende a pura configuração
histórico-existencial, possibilitando a trans-significação das
contingências e abrindo o horizonte do infinito. A doença, a dor,
o sofrimento e a própria morte recebem uma nova significação
que ajuda o ser humano a superar e a integrar essas realidades
adversas […]. O espírito, como busca do sentido, encontra sua
máxima expressão na simbólica religiosa.

Portanto, o espírito é a estrutura antropológica da experiência


religiosa. Para o autor, “Deus é o sentido último da existência
daquele que crê. A fé configura a vida daquele que põe toda sua
confiança em Deus” (Ibid., p. 116). Isso é claro quando os limites da
vida recebem uma ressignificação por aquele que a experimenta.

128 Bioética Clínica


A sagrada vulnerabilidade humana
Viver humanamente significa viver na vulnerabilidade. Um
ser vulnerável é um ser quebradiço, cuja integridade está
constantemente ameaçada por elementos externos e internos. O
ser humano é um ser pluridimensional e inter-relacional porque
tem distintas dimensões ou faces, e é capaz de estabelecer
vínculos diferentes com seu entorno e com seu semelhante. É
um ser exposto, e isto significa que deve se proteger, que deve
construir um abrigo, uma capa protetora perante o mundo e o
entorno (ROSELLÓ, 2009, p. 57-59).

O ser humano é vulnerável fisicamente, porque está sujeito à


enfermidade, à dor e à decrepitude; psicologicamente, porque
sua mente o torna frágil; do ponto de vista social, pois é suscetível
a tensões e a ferimentos sociais; e espiritualmente, ou seja, sua
interioridade pode facilmente ser objeto de instrumentalizações
sectárias. Sua estrutura pluridimensional, seu modo relacional, sua
vida, seu trabalho, suas ações, seu pensamento, seus sentimentos
e, inclusive, suas fantasias são vulneráveis.

Por tudo isso, o ser humano é, em alguns aspectos, muito mais


vulnerável que outros seres vivos, mas, em outros aspectos, mais
hábil para se proteger da vulnerabilidade de seu ser. Para Roselló
(Ibid., p. 60), “o recém-nascido é, de certo modo, a mais plástica
epifania da extrema vulnerabilidade do ser humano”. Por revelar
essa vulnerabilidade, proporcionalmente, também desenvolve
estratégias e novas descobertas para o enfrentamento do seu
limite.

A vulnerabilidade humana revela o seu limite e a sua possibilidade.


Isso fica bem caracterizado pela dor humana e pelo sofrimento.
Para a professora doutora Lucilda Selli (2008), há uma grande
diferença entre eles. A dor é o resultado de fenômenos físico-
-químicos que ocorrem em qualquer organismo vivo, enquanto
o sofrimento é uma experiência humana que evoca sentimentos
(desde força e fraqueza, coragem e medo), despertando emoções
positivas e negativas na pessoa que sofre.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 129


Segundo a Associação Internacional de Estudo da Dor, a dor é
“uma experiência sensorial e emocional desagradável associada
a dano real ou potencial de tecidos ou descrita em termos de tal
dano” (KOPF; PATEL, 2010, p. 3), e não é exclusividade da espécie
homo sapiens. Mas por que o sentir dor é uma característica
exclusiva do ser humano? A dor tem sentido? Qual?

Pode-se dizer que ela tem vários sentidos, como autoproteção,


sinal de alguma alteração no organismo, autopunição,
crescimento interior, que poderíamos traduzir, respectivamente,
como dor física, mental, social e espiritual. Esses aspectos estão
inter-relacionados e abrangem a totalidade do ser humano.

Quando estamos em situação de sofrimento, por outro lado,


a vulnerabilidade humana se torna mais aguda do que a dor.
Segundo Selli (op. cit., p. 120), “na realidade, nem sempre quem
está com dor sofre. O sofrimento é uma questão pessoal. Ele está
ligado aos valores da pessoa e a situações circunstanciais que a
afetam no seu ser total”. Portanto, o sofrimento é mais global que
a dor, atinge o âmago, a vida na sua plenitude.

O sofrimento traz uma grande lição quando apropriado pelo


próprio ser humano.

A apropriação da realidade pessoal e a reação da pessoa são


fundamentais para captar a mensagem contida nas situações de
dor e sofrimento, interpretá-la e assimilá-la como oportunidade
ou desventura. […] Tomar nas mãos a situação implica um
processo de subjetivação no qual a pessoa passa a apropriar-se
do seu problema, a reconhecer e a incorporar a necessidade de
um reordenamento na vida. (Id., 2007, p. 298)

O sofrimento nos ensina a construir a nossa identidade. É um tempo


de recolhimento. Para Rodrigues e Cardoso (2001), o sofrimento
faz alusão a uma trajetória. Se, por um lado, a doença remete às
razões para o sofrimento; por outro, a representação ou o discurso
sobre a cura remete a uma experiência de sincronia, uma vez que
apresenta o inverso ao sofrimento e à doença. O sofrimento revela

130 Bioética Clínica


a grande manifestação da extrema vulnerabilidade e dependência
humana, sobretudo quando o assola (Id., 2008, p. 121).

O sofrimento constitui uma realidade que acompanha a vida do


ser humano em toda a sua trajetória de modos e formas diferentes.
Na maioria das vezes, a existência humana recobra sentido pela via
do sofrimento quando a pessoa consegue ressignificá-lo. Diante
de alguém que sofre, a atitude mais adequada é a de silêncio,
que evoca comunhão e engajamento, e solidariedade (atitude de
estar com quem sofre e agir a seu favor). Essas atitudes remetem
à igualdade de todos os seres humanos enquanto sofredores
vulneráveis e necessitados (Ibid., p. 122).

Para Levinas (1976, p. 13-23), a vida espiritual é a experiência


que se dá na relação com o outro (uma atitude ética). O rosto do
outro é um elemento de significação (descontextualizado), uma
ruptura com da mesmidade. Ele é anterior a mim. O que vai me
constituindo é o além, o aquém. A linguagem do ser (poesia, arte,
política, ética) revela o encontro com o rosto do outro. Por meio
dessa palavra traduz-se esse rosto, trava-se o encontro. O rosto é
uma palavra descontextualizada do discurso (perde-se o domínio
do saber). É o mistério embebido pela vulnerabilidade que realiza
o encontro desmedido. A linguagem age sem submissão. Por isso,
razão e linguagem são exteriores à violência (não tomar posse). A
dimensão espiritual é justamente isso, razão e linguagem.

O sofrimento pode refazer o sentido da vida de uma pessoa. É


diante do sofrimento que o ser humano prova, para si mesmo,
sua capacidade de resistir, de fazer frente às situações mais duras
e adversas da vida, de atribuir um novo sentido à realidade que
vive e que o cerca. Esse novo sentido se torna possibilidade de
ressignificar a situação de sofrimento e transformá-la em espaço
privilegiado de aprendizado na construção de si mesmo e dos
próprios ideais de vida. Vitor Frankl é esse grande exemplo.
Para Frankl (1991), criador da logoterapia, “uma das principais
características humanas está na capacidade de se elevar acima
das condições biológicas, psicológicas ou sociológicas e crescer

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 131


para além delas”. O sofrimento sempre foi e sempre será uma
escola imprescindível de descoberta de significados e sentido, e
Frankl é testemunha disso.

O sofrimento pode contribuir para que a pessoa reelabore sua


escala de valores éticos ao provocar a revisão das próprias atitudes
e ensinar a importância da humildade diante da própria finitude
e fragilidade. Segundo Frankl (1991), sofrer significa crescer,
enquanto para Roselló (op. cit.), sofrer significa amadurecer.

Para Selli (2008, p. 123), o sofrimento é um espaço privilegiado


de encontro interior e de relação com o outro. Nessa perspectiva,
o sofrimento constrói espaços de revelação, confidencialidade
e possibilidade de abertura de si para o outro e de construção
de verdadeiras amizades. Desperta confiança e capacidade de
entrega, como também, sensibilidade e capacidade de compaixão
e doação incondicional. Nessa relação pessoal e interpessoal, o
sofrimento pode ser a pedra angular no evoluir de uma relação que
expressa o mais profundo do ser humano, ou seja, a capacidade
de amar e bem-querer.

O sofrimento pode nos ajudar a compreender como de fato


somos. Precisamos, inicialmente, aprender a nos liberar da ilusão
do “eu”. O “eu” é uma ilusão feita de desejos, temores, ansiedades
e obsessões. O sofrimento nos ajuda a despertar. Despertar é a
arte de ver, com objetividade, a natureza das coisas em si mesmas
e os registros negativos elaborados ao longo da vida − não as
projeções. Despertar é saber dizer “não” às expectativas, é viver na
realidade que nos cerca, sem, contudo, deformá-la negativamente,
transformando-a em pesadelo. A experiência do sofrimento
nos ensina a saber esperar, utilizar o potencial de nossa mente,
expressar nossas emoções, desapegar, pois o apego é a raiz de
todos os males, de todos os sofrimentos. Segundo D’Assumpção
(2010, p. 75-90), o próprio sofrimento nos ensina o remédio para
saná-lo. Perdoar talvez seja o remédio mais eficaz para acabar com
o sofrimento. Perdoar é desapegar; é expressar as emoções; usar a
mente, o corpo e o espírito para o desenvolvimento do potencial
humano em função do cuidado com os outros e com a vida.

132 Bioética Clínica


O ser humano é um ser lançado num mundo hostil, isto é, o mundo
é um lugar que não acolhe o ser com compaixão e misericórdia. O
mundo recebe o ser humano e não se preocupa com ele, é somente
mais um ente lançado na existência em um lugar nada amistoso,
porém, não é possível existir fora do mundo, portanto, ser é estar
no mundo. Tudo realizado pelo ser humano acontece no mundo,
não há como fugir. A existência do ser humano é transcender o
estar no mundo. Existir é, essencialmente, transcendência. Desse
modo, o ser humano, ao dar significado para o seu habitat, projeta-
se nele e utiliza as coisas para transcender (MARTINS, 2008, p. 100).

Espiritualidade e bioética
Todas as religiões são mensagens de salvação que procuram
responder a algumas questões fundamentais em relação à vida
do ser humano. São as perguntas sobre os eternos problemas
humanos. Por que existimos? Por que sofremos? Por que
morremos? O que governa o caminhar de cada pessoa e da
humanidade? As religiões deveriam, portanto, ser levadas a
sério. Elas têm a ver com o sentido e o não sentido da vida, com a
liberdade e a escravidão das pessoas, com a justiça e a opressão
dos povos, com a guerra e a paz na história e no presente,
com a doença, o sofrimento e a saúde das pessoas (PESSINI;
BARCHIFONTAINE, 2008, p. 5).

Por religião pode-se definir a expressão do sentir a presença de


Deus por meio da relação que o outro vai provocando em mim. A
relação com o outro (ética) aparecerá como relação excepcional:
nela o contato com um ser exterior (outro), em vez de comprometer
a soberania humana, institui-a e procede à investidura dessa
soberania. A responsabilidade pessoal do ser humano com o ser
humano (ética) provoca a experiência religiosa que Deus não
pode anular – torna experiência de presença. Aquele (Deus) que
criou e que sustenta todo o universo não pode suportar, não
pode perdoar a falta de solidariedade, o crime que o ser humano
comete contra o ser humano, que comete contra a vida.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 133


A irreligião, por outro lado, seria tudo aquilo que nega a relação
com o outro (relação ética), que o submete à intervenção do
inconsciente, e, por conseguinte, dos horrores e dos êxtases que se
nutrem dele – tudo isso fala de violência (LEVINAS, op. cit., p. 13-23).

Por detrás do afã do conhecer, está a busca pela verdade, a


necessidade de responder às perguntas vitais. Entender a
linguagem divina, expressada por meio das grades questões e
contradições humanas, que enobrece a vida, como também a
ameaça. A verdade desempenha um papel fundamental no campo
da ciência. O conhecimento só pode ser considerado “saber” na
medida em que corresponde à verdade. Como para qualquer
outra área, para a ciência, a busca da verdade é fundamental
enquanto conhecimento, domínio, limite e relação. A busca da
verdade no campo científico é, portanto, empreendimento que
nunca termina (JULIATTO, 2012, p. 51).

Embora os fatos sejam a matéria dos cientistas, é preciso


compreender que os fatos, em si, nunca são percebidos, pois
as observações já nascem recobertas pelas expectativas que se
fazem sobre o mundo. Nunca se sai para observar o mundo sem
antes saber o que se quer observar. Dessa maneira, é possível
afirmar que a verdade, mesmo no campo da ciência, não é simples
evidência de fatos, mas construção teórica em que os fatos são
filtrados pela forma como se quer enxergar. As ciências são formas
diferentes de compreender a mesma realidade (Ibid., p. 51-52).

Esses elementos conduzem à compreensão de que

a ciência pode ser dividida em inúmeras disciplinas; a quantidade


de conhecimento que pode ser buscada em cada uma delas é
ilimitada. A questão mais crítica a respeito do conhecimento é
distinguir o que é essencial aprender e o que não é. (TOLSTÓI,
2005, p. 61)

A ciência é limitada e, por isso, sua verdade é provisória. Segundo


Juliatto (op. cit., p. 53), “para compreender o mistério da vida, e

134 Bioética Clínica


assim se aproximar mais da verdade, é importante dar o salto para
o além do conhecimento, no caminho da sabedoria”.

O que se diz sobre a verdade no campo da ciência, precisa ser


também estendido para a espiritualidade. Para Archanjo (1988, p.
69), “a Fé tem necessidade de toda a Verdade”, de tal forma que
a vida seja contemplada em sua totalidade enquanto imanente
e transcendente. A ação do espírito amplia a visão de mundo e
da vida, dando sentido às escolhas e às decisões. Esse modo de
compreender a realidade espiritual e a sabedoria que dele advém
é necessário para se evitar formas distorcidas de fé ou uma fé que
não se integra à razão. A fé só se justifica na situação em que, não
compreendendo tudo, a pessoa continua convencida de que é
preciso seguir em busca da verdade. É preciso fazer da dúvida
caminho e método para o acesso à verdade. A verdade da ciência
e a verdade do espírito revelam a real necessidade de aproximar
ciência e transcendência (JULIATTO, op. cit., p. 53-55).

Segundo Anjos (2007, p. 155, grifos do autor), “a compreensão


da espiritualidade dentro da bioética passa necessariamente por
um conceito básico que lhe dá suporte: o espírito. […] Espírito é
um termo de origem latina que significa basicamente sopro, ou
respiro. Corresponde ao termo grego pneuma”.

Segundo Guzzo e Mathieu (1957, p. 893), em latim, os termos


“espírito” e “alma” derivam da palavra sânscrita atman, que significa
o “respiro”. O conceito de espírito, como que por um recurso de
metáfora, serve-se do respiro para se referir ao vital, que se mostra
em todos os animais pela respiração. De acordo com Schaffler
(1995, p. 373), “originariamente, todos esses conceitos estão
compreendidos no termo nefesh (hebraico), psiché (grego), anima
(latim), para significar todo ser que respira”.

Uma importante conotação no conceito de espírito se dá com a


ênfase que sai do respiro e se realça no conceito mais provocativo
de sopro. Culturalmente, isso ocorre com a aproximação de
pneuma ao termo bíblico ruah. O conceito bíblico enfatiza mais

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 135


o sopro criativo pelo qual os seres se animam e se movimentam,
ganhando vida. É possível dizer que o sentido do termo espírito
“resulta do encontro de duas tradições: o conceito bíblico ruah,
associado a pneuma, funde-se de algum modo com o conceito
grego de nous (intelecto), conferindo um sentido-chave para a
filosofia e para a teologia” (Loc. cit.).

Em meio a essas variações conceituais, a característica específica do


ser humano, como ser pensante e livre, torna-se um fator decisivo
para a conceituação de “espírito”. Para Anjos (op. cit., p. 156),

o sopro que anima os humanos é considerado superior aos


demais animais. Assim, em muitos contextos, o termo espírito
passa a ser reservado para caracterizar a personalidade humana
enquanto racional. […] Neste sentido, o espírito nos seres
humanos corresponde à alma humana com suas propriedades
superiores.

A espiritualidade é uma dimensão constitutiva da condição


humana. Será muitas vezes difícil identificá-la e caracterizá-la
devidamente, mas de alguma forma ela estará ali presente no
ser humano que age como tal, mesmo que não se explicite em
termos religiosos.

Como se pode observar, um sentido possível de espiritualidade


seria relacionado com a atividade intelectual, que é uma fonte
característica espiritual do ser humano. Nesse sentido, não
haveria dúvida em dizer que a bioética é sempre uma atividade
eminentemente espiritual, que não poderia ser reduzida somente
ao sentido de atividade reflexiva da razão humana?

Segundo Anjos (Ibid., p. 158),

Considerando o nascimento da bioética, pode-se admitir que


ela, sob certo aspecto, deriva exatamente de uma grave suspeita
sobre os rumos que tomam os conhecimentos humanos, em
especial os científicos de nosso tempo. […] Tal suspeita faz temer
pela sobrevivência da vida em um futuro não muito remoto.

136 Bioética Clínica


Zelar pela vida é o dever básico para com o futuro da humanidade,
a partir do qual se podem deduzir todos os demais deveres para
com os seres humanos futuros. Esses deveres podem então ser
subordinados à ética da solidariedade, simpatia e equidade, de
modo que, ao transpor os desejos, medos, alegrias e tristezas
humanas, conferem-se a esses humanos do futuro, numa espécie
de simultaneidade fictícia, o direito de que essa ética também
concede aos contemporâneos e que a humanidade é obrigada
a seguir, e cuja observância antecipada se transforma aqui
numa responsabilidade particular da humanidade, por causa da
causalidade inteiramente unilateral do papel humano como autor
da sua condição (JONAS, 2006, p. 93).

O princípio da responsabilidade remete essa humanidade a


preocupar, a importar com os seres humanos do futuro. Já se
pôde perceber que a fé religiosa possui aqui respostas que
a filosofia ainda tem de buscar, com perspectivas incertas
de sucesso. A fé pode fornecer fundamentos à ética, mas ela
própria não está disponível ali, e não pode apelar ao ausente
ou ao desacreditado mesmo com o mais forte argumento de
necessidade (Ibid., p. 96-97).

Ao afirmar o caráter decisivo, livre e individual que assimila cada


pessoa humana, a fé demonstra possuir um conceito diferente
das ideologias e utopias terrenas, e que supera o de uma simples
sucessão linear de momentos orientados para um futuro que
ainda não foi alcançado. Supera esse conceito, dando a essas
ideologias a única base verdadeira e válida. Supera-o ainda, por
abrir ao ser humano um futuro “supra-terreno” e “supra-histórico”,
que escapa ao perene escoar do tempo. Esse futuro é a vida
eterna, que amadurece e germina no tempo, é o único futuro que
verdadeiramente já começou – agora mesmo e sempre agora –
na livre e decisiva opção da fé e do amor (RAHNER, 1970, p. 222).
Isso também poderia se chamar de graça, mover-se pelo espírito,
espiritualidade. Ao chamá-la dessa maneira, diz-se algo decisivo
sobre o ser humano (FAUS, 1987, p. 432).

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 137


A espiritualidade quer dizer que o ser humano tem realmente
uma amabilidade, que é um presente e não permite mais que o
agradecimento, mas que pode converter a vida num ato de sorrir.
Espiritualidade é inverter a lógica de seus significados profanos:
agora não a amabilidade de uma coisa que atrai o favor ou o dom,
mas o favor de Deus, o que se volta amável ao ser humano. Outra
vez é campo das relações humanas o que pode oferecer alguma
analogia válida para entender essa beleza inenarrável de Deus
para com o ser humano (Ibid., p. 432-434). A espiritualidade tem
lugar no meio desse ser humano e desse mundo, como também,
no meio dessa história marcada de impactos; não transportando
a uma espécie de oásis.

As ameaças globais se declaram em fatos concretos e em


previsões consistentes. A razão humana se mostra, portanto, ao
mesmo tempo criativa e frágil. Diante dessa ambiguidade que
fere a razão, o próprio Kant (apud FORTE, 2006, p. 71) se dobrou
para reconhecer tal fragilidade, acrescentando que “somos
absolutamente incapazes de explicar por que em nós este mal
corrompeu diretamente a máxima suprema (da razão), embora
este mal seja um ato totalmente nosso”. O lugar da espiritualidade
na bioética está assim colocado, ao se reconhecer um “sopro” que
“inspira” o conjunto das atividades humanas em alguma direção.

Quando se fala de espiritualidade na bioética, está se supondo um


conjunto seletivo de aspirações (respirações) e inspirações que
levam na direção da responsabilidade, da proteção e do cuidado
diante da vida. Nesse sopro-inspiração entram particularmente
os sentidos assumidos para a compreensão e o tratamento que
reservamos ao outro diferente e semelhante a nós mesmos. Na
relação com o outro, há um movimento de transcendência pela
qual o indivíduo sai de si e vai além.

A necessidade de afirmar o sentido da vida e o propósito da


existência aponta para um sentido fora da própria vida, de modo
que a abertura do ser humano à transcendência, a um sentido
maior do que a vida biológica, faz-se necessária para que a vida

138 Bioética Clínica


humana seja possível. A afirmação do transcendente de maneira
alguma significa impor determinado ponto de vista confessional
religioso, tampouco respeitar a diversidade religiosa significa
deixar de aprofundar a própria tradição. Afirmar que a vida
humana faz sentido, e definir esse sentido, precisa ser compatível
com a afirmação de que a vida dos outros também faz (JONAS,
op. cit., p. 39-42), mesmo que de maneira diferente (SANCHES,
2004, p. 43).

Pretende-se dialogar com todos os que admitem a necessidade


de um sentido da vida e de um sentido que demanda a afirmação
de algum tipo de transcendência, algum sentido que seja maior
que a vida biológica e que possa direcioná-la. Quem afirma que o
conhecimento que detém, sozinho, explica toda a complexidade
da vida está fechado para o diálogo ético, que exige acima de
tudo, abertura. Quem afirma que a vida na face da terra carece
totalmente de sentido também está excluído do diálogo, pois o
que se pretende não é qualquer ação consensual, mas uma que
brote, com coerência, do respeito a uma expectativa de vida
significativa na face da terra (Ibid., p. 43-44).

Quando se dirige a uma comunidade científica, deve-se então


buscar um fundamento para a ética que respeite a diversidade.
Buscar um ponto de partida pluralista não é afirmar uma ética
mínima. Seria o mesmo que falar em vida mínima. O fato é que
a vida é complexa, e é inaceitável vivê-la de maneira mínima. O
desafio é buscar um ângulo mais amplo de análise, que respeite
a comunidade secular, entendendo que a própria diversidade
religiosa é parte dessa comunidade. Convém destacar que
a comunidade científica é formada também por pessoas
profundamente preocupadas com as implicações éticas de suas
ações.

Ao se refletir sobre o sentido da vida humana, é necessário


considerar dois pontos vistos como fundamentais: é ético tudo
aquilo que está em sintonia com o sentido da existência; e, sentido
da existência exige um contínuo processo de transcendência.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 139


Com outras palavras, afirmar que a vida tem sentido é afirmar,
intrinsecamente, um sentido transcendente a ela. Claramente
essas afirmações requerem certo relativismo ético, quando se
deseja abordar a ética num contexto pluralista (Ibid., p. 45).

A espiritualidade em bioética não pode se contrapor à razão.


Ao contrário, ela se colocaria quase que como uma pergunta
sobre “as inspirações da razão”. Dessa maneira, a espiritualidade
adequada à bioética estaria sempre aberta aos dados científicos
e à racionalidade, não sendo necessariamente religiosa, num
sentido estrito. Mas a espiritualidade se nutre do apoio, ou seja,
do sopro que partilha entre as pessoas, particularmente em
sentidos e significados demonstrados em gestos e palavras. Não
há dúvidas da necessidade de uma espiritualidade para crentes
(praticantes de uma religiosidade) e não crentes (ANJOS, 2008, p.
26-27).

A espiritualidade na bioética apresenta o ser humano diante de si


e do outro na perspectiva da responsabilidade. Esse primado da
afinidade sujeito-objeto na relação de responsabilidade se baseia
incontestavelmente na natureza das coisas. Há de convir que a
reciprocidade está sempre presente, na medida em que, vivendo
entre seres humanos, o ser humano é responsável por alguém
e também se torna responsabilidade de outros. Segundo Jonas
(op. cit.), somente o ser vivo, em sua natureza carente e sujeita a
riscos, pode ser objeto da responsabilidade. A marca distintiva do
ser humano é o fato de ser o único capaz de ter responsabilidade,
significa igualmente que ele deve tê-la pelos seus semelhantes,
e que realmente ele sempre a tem, de um jeito ou de outro. A
faculdade para tal é a condição suficiente para a sua efetividade. Por
isso que, para Jonas (op. cit., p. 176), “ser responsável efetivamente
por alguém ou por qualquer coisa em certas circunstâncias é tão
inseparável da existência do homem quanto o fato de que ele seja
genericamente capaz de responsabilidade”.

140 Bioética Clínica


Considerações finais
Sofrimento, dor e morte fazem parte da existência humana.
Elas revelam a sagrada vulnerabilidade humana. Todos passam
por algum tipo de sofrimento, dor e morrem. O ser humano é
um ser-para-a-morte, e ter essa consciência de finitude, quanto
mais cedo adquirida, pode ajudar na compreensão da existência
humana, e, de seu cuidado e responsabilidade perante toda a
vida, percebendo-a como existência de possibilidade (MARTINS,
2008, p. 105).

Não há nenhuma dúvida de que as ciências trazem uma valiosa


contribuição para a compreensão de quem a humanidade é e
do que ela pode e pretende ser e fazer. Por outro lado, nenhuma
ciência sozinha se torna confiável companheira, pois as ciências
são passíveis de ser controladas por forças e movimentos sociais
que podem ser destrutivos. Toda vez que uma ciência particular
pretende explicar a totalidade da vida, a totalidade do humano,
a partir de um único ponto de vista, ela falha. Daí surgem vozes
que demonstram que a realidade é mais complexa e que o
reducionismo deve ser evitado.

A extrema complexidade humana exige uma ética sistêmica


na abordagem das questões atinentes a sua realidade (JONAS,
op. cit., p. 265-273). É uma exigência interna do próprio
discernimento. Optar por uma visão ética sistêmica não significa
ter soluções prontas e definidas num receituário antropológico.
Mas, interconectar e confrontar diferentes saberes que permitam
ao ser humano encontrar o caminho de humanização que leve
em consideração tanto a sua singularidade histórica, biológica e
espiritual quanto a sua inserção particular numa família, grupo,
etnia, país, religião e, a sua pertença universal à humanidade
fundada em direitos e deveres para com o conjunto dos seres
humanos (THIEL, 2000).

Uma espiritualidade que saiba nutrir um bom diálogo precisa


necessariamente de uma teologia que saiba dialogar. Atualmente,
a partir da reflexão proposta pelo diálogo entre teologia e as

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 141


ciências naturais, uma série de novas proposições se tornam reais.
Jürgen Moltmann (2007, p. 36) destaca uma citação de Pierre
Teilhard de Chardin que faz alusão a esse processo: “Antes o homem
parecia ter apenas duas atitudes geometricamente possíveis: amar
os céus ou a terra. Aqui se abre um terceiro caminho: chegar aos
céus atravessando a terra. Existe uma comunidade, a verdadeira
comunidade – com Deus através do mundo”.

A ética não é um corolário da visão de Deus. Ela é a visão de


Deus. Tudo o que eu posso ouvir de sua Palavra e lhe dizer
razoavelmente deve encontrar uma expressão ética. Conhecer
a Deus é saber o que é preciso fazer. A educação (a obediência
à outra vontade) é a instrução suprema: o conhecimento dessa
Vontade que é a base de toda a realidade. Na relação ética, o outro
se apresenta ao mesmo tempo como absolutamente outro, mas
essa alteridade radical não destrói, não nega a minha liberdade. A
relação ética é anterior à oposição de liberdades. O rosto do meu
próximo tem uma alteridade que não é alérgica, ela descortina
o transcendente. O Deus do céu é acessível sem nada perder
de sua transcendência, mas sem negar a liberdade daquele que
crê. A responsabilidade pessoal do ser humano com relação ao
ser humano é tal que Deus não pode anular. Por isso, a primeira
relação do ser humano com o ser passa por sua relação com o ser
humano (LEVINAS, op. cit., p. 13-23).

A espiritualidade aponta um “além” ou um “trans” em relação aos


níveis de realidade e de percepção, mas um além ligado a eles.
Portanto, é transcendente e imanente, permitindo o movimento
ascendente e descendente entre os níveis de realidade
(informação) e percepção (consciência). Esse encontro com o
sagrado na transrealidade e na transpercepção é a condição da
liberdade e da responsabilidade humana (JONAS, op. cit., p. 47-
49). Ele é a origem última dos valores humanos.

A espiritualidade,

como experiência, origina uma atitude transreligiosa que permite


conhecer e apreciar a especificidade das tradições religiosas para

142 Bioética Clínica


perceber as estruturas comuns que as fundamentam, chegando a
uma visão transreligiosa do mundo e superando uma concepção
mecanicista e redutiva. (JUNGES, 2005, p. 107)

Eis o grande desafio que torna a bioética urgente e necessária. Sim,


é possível falar de bioética e espiritualidade. A bioética movida pelo
espírito proporciona um grande diálogo, uma responsabilidade
antropocósmica, uma síntese que seja equilibrada, humana e,
acima de tudo, aplicável às questões relacionadas com a ética da
vida no seu dia a dia.

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Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 145


PARTE II
Questões de Ética Aplicada
Tomada de decisão em Bioética Clínica
Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli1

A habilidade para a tomada de decisões é essencial para o


alcance da excelência ética e a boa qualidade técnica da atenção
à saúde, pois a primeira depende da responsabilidade moral nas
escolhas feitas. Gracia (1991) afirma que a qualidade da prática
clínica depende da qualidade da deliberação para a tomada da
decisão, especialmente, porque esta ocorre em condições de
incerteza – e, dessa forma, não pode ser exata, mas responsável,
prudente, provável, passível de revisão e apropriada para a
realidade concreta do caso. Os juízos éticos, como os clínicos,
precisam considerar, para a tomada de decisão, as condições reais
e as circunstâncias concretas das situações e contextos em que
ocorrem. As escolhas para tomada de decisão se dão em meio às
possíveis circunstâncias e situações nas quais os envolvidos se
encontram, porque para fazerem a vida é preciso um contínuo
“que fazer”2, ou seja, não se faz a vida por necessidade mecânica,
mas elegendo e decidindo continuamente o que fazer, dentro das
possibilidades (CONILL, 2014).

Deliberar não é algo inato ao ser humano, ou seja, as pessoas


não sabem fazê-lo naturalmente. Deliberar é um assunto difícil
e uma atividade, geralmente, malfeita (GRACIA, 2014). O tema
das escolhas nas tomadas de decisão tem sido objeto de vários
estudos para se entender a racionalidade e, mais recentemente,
as neurociências têm contribuído com experimentos que
exploram a incorporação das valorações no âmbito biológico,
neurofisiológico. As pesquisas em neurociências têm apontado
que a valoração é atividade produzida desde os estratos mais
básicos do corpo humano, que apreciam castigos e recompensas
consequentes às eleições. Assim, na perspectiva neurobiológica,
os valores vitais, os que asseguram a sobrevivência e bem-estar,
1. Professora associada da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP).
2. “Que hacer” (CONILL, 2014, p.195).

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 149


são bases de toda escolha (CONILL, op. cit.). Sem dúvida, há bases
cerebrais sem as quais seria impossível formular juízos, mas isso
não significa que os causem. Quanto à moral, a neurociência
pode até explicar as bases neuronais da conduta moral, mas
não consegue encontrar os processos cerebrais que levam à
fundamentação do agir moral (CORTINA, 2011).

A natureza cerebral da ponderação de cursos de ação mediante


processo de deliberação moral consciente ainda está por esclarecer,
assim como o desenho de estudo necessário para experimentar
essa questão (GRACIA, 2013). Há obstáculos metodológicos para
evidenciar os processos neuronais que ocorrem para se chegar à
fundamentação do comportamento moral: o método empírico
não consegue dar conta da linguagem subjetiva, em primeira
pessoa, que expressa a consciência e a experiência de liberdade,
pois estas não se submetem à relação de causa e efeito que
caracteriza, usualmente, a construção do conhecimento científico
(CORTINA, op. cit.). A liberdade tem, ao menos, três dimensões: o
livre arbítrio, que é “liberdade para” eleger entre meios que estão
ao alcance; “liberdade de”, que é a indiferença a qualquer tipo de
constrição externa ou interna; e “liberdade em”, que significa que
as pessoas são livres, mas esta liberdade ocorre na realidade onde
estão e da qual não podem sair, por isso, esta dimensão é anterior
às duas primeiras (GRACIA, op. cit., p. 560).

Os conhecimentos recentes de neurofisiologia apontam a estreita


correlação entre atividade neuronal e funções psíquicas, também
aos atos livres, ou seja, há estímulos cerebrais específicos que
desencadeiam decisões ou ações que, embora consideradas
voluntárias ou livres, são precedidas por mudanças específicas
no cérebro. A intenção de fazer algo é anterior à consciência
dessa intenção, assim, nem toda intenção é voluntária, mesmo
na vida moral. Há intenções voluntárias, mas a intenção não
exige voluntariedade e as tendências mais básicas e primárias
não são voluntárias, o que não significa que sejam moralmente
negativas. Não há liberdade absoluta, mas liberdade de escolha
entre possibilidades materiais anteriores à eleição. A liberdade

150 Bioética Clínica


parte da oferta de determinadas possibilidades. A liberdade
humana nunca é absoluta, pois é determinada por um leque
de possibilidades ofertadas e sobre as quais é possível escolher.
Como pode escolher no âmbito desse leque de possibilidades, o
ser humano está acima destas, ou seja, as transcende, de forma
que pode escolher entre as possibilidades com um critério alheio
a estas: o dever. Esse é o momento transcendental da liberdade
humana. A estrutura do livre arbítrio pode estar evolutivamente
determinada, mas esta determinação é aberta, isto é, exige a
ponderação intelectual e emocional de fatores e das escolhas
possíveis. A liberdade consiste em eleger sobre as possibilidades
disponíveis em cada situação e essa eleição não é neutra, mas é
precedida por valorações e preferências da pessoa que escolhe.
A intenção não equivale à liberdade de escolha, mas é uma das
condições para que esta ocorra, sendo, portanto, prévia. Sem
intenção não há eleição. Para decidir, primeiramente, não se pode
aceitar diretamente qualquer das possibilidades oferecidas, é
preciso um tempo antes de decidir, para ampliar o olhar sobre
a situação e vislumbrar mais cursos de ação no repertório de
possibilidades possíveis (CONILL, op. cit.).

A liberdade também influi nas decisões o caráter das pessoas


que as tomam. Ao longo da vida, as pessoas, obrigatoriamente,
forjam um caráter a partir de razões, sentimentos, experiências
que têm. Embora o caráter possa levar as pessoas a agirem em
determinado sentido, ele não é determinante, tanto que ninguém
pode assegurar como se comportaria em uma situação concreta
antes de enfrentá-la, sobretudo, em casos angustiantes nos quais
estão em jogo coisas preciosas como a vida, a saúde, a dignidade.
Portanto, o caráter forjado pela e na pessoa ao longo da vida
influi as decisões e ações, mas não as determina (CORTINA, 2013).
Quando a pessoa consegue agir em coerência com as convicções
pessoais, aumenta a autoestima e, com isso, conquista o respeito
dos outros. A pessoa reconhece a própria identidade na relação
consigo mesma e, de forma inseparável, na relação com o(s)
outro(s). Assim, a dimensão social se torna um traço constitutivo
da consciência individual. As pessoas, ao longo da vida, mudam

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 151


suas convicções, pois estas podem ser questionadas por novas
crenças, ideias e opiniões; antigas concepções dão espaço
para novas que, segundo as experiências vividas pela pessoa,
satisfazem melhor a pretensão de coerência interna. É possível,
também, que esse processo, em vez de debilitar as convicções,
reforce-as (TARODO, 2014).

Na prática cotidiana dos serviços de saúde, vários fatores intervêm


na relação clínica: cultura local; nível educacional; atitude e
caráter do paciente e do profissional de saúde; a personalidade
mais rígida ou mais dialogante do profissional e do paciente; a
conformação da equipe multiprofissional; gestão do serviço;
estrutura do sistema e rede de saúde; condicionantes interpostos
por familiares, seguradoras, planos de saúde, disponibilidade
de recursos, tempo (LÁZARO; GRACIA, 2006). Assim, pessoas
autônomas podem realizar decisões não autônomas, sob a
influência de fatores temporais, ignorância ou coação e, da mesma
forma, pessoas não autônomas, com grande esforço, podem e, às
vezes, realizam decisões autônomas muito concretas, procurando
se informar antes de consentir ou recusar (GRACIA, 1991).

O relacionamento entre pacientes e profissionais de saúde,


principalmente com os médicos, tem se transformado
profundamente com o tempo; os primeiros deixaram o papel
passivo que sempre lhes coube na relação clínica e tornam-se
agentes. O respeito à autonomia do paciente é conquista histórica
importante, entretanto, não significa que os profissionais de saúde
tenham renunciado, ou devam renunciar, à promoção do bem
dos pacientes, que segue sendo dever do exercício profissional.
Às vezes, ouvem-se lamentos de profissionais saudosistas que
sentem falta dos tempos quando o paciente se deixava guiar como
criança; alegam que a relação clínica era mais fácil e que era mais
simples a tomada de decisão. Mas, apesar de haver perdurado
por séculos, a infância do paciente está acabada. O fim desta foi
brusco e é recente, deu-se há apenas algumas décadas. Assim,
não é fácil cada qual assumir os novos papéis que lhes compete
com a remodelação da relação clínica (LÁZARO; GRACIA, op. cit.).

152 Bioética Clínica


Ainda que a moralidade não seja mera convenção sócio-
histórica; é impossível separá-la da história concreta das
sociedades e culturas. Assim, na ética não é possível estabelecer
a racionalidade moral de maneira isolada do contexto social e
momento histórico. Paradoxalmente, a razão moral é histórica
e, ao mesmo tempo, potente transformador da história, ou seja,
ela é, simultaneamente, histórica e supra histórica, por ser, em
certo sentido, capaz de mudar o curso da história (GRACIA, op.
cit.). Então, o debate, no âmbito das equipes de saúde, sobre a
tomada de decisão na prática clínica, deve sempre levar em conta
as circunstâncias históricas, sociais e econômicas que cercam a
relação desta com o paciente, os serviços, o sistema de saúde, a
constituição das profissões (LÁZARO; GRACIA, op. cit.).

Assim, para se compreender a complexidade e as peculiaridades


da tomada de decisão no âmbito da relação clínica, é útil
reconhecer a história desse relacionamento entre os pacientes e os
profissionais, especialmente o médico que é tomado como ícone
para muitos desses estudos. Por isso, neste capítulo, se apresentam
alguns modelos explicativos das transformações históricas do
relacionamento entre os profissionais e os pacientes, antes de
abordar a deliberação como forma sistematizada para a tomada
de decisão na bioética clínica. Não se desconhece que é arriscado
analisar fenômenos sociais complexos como a relação clínica, pois
esquemas que facilitam explicações e entendimentos podem ser
reducionistas e empobrecedores (Ibid.). Portanto, o propósito
não é analisar a relação profissional-paciente, mas apresentar
algumas compreensões sobre a transformação histórica desse
relacionamento milenar, a fim de apontar circunstâncias históricas,
sociais e econômicas que servem para a contextualização da
tomada de decisão na bioética clínica. Se a bioética pode e deve
ser vista como um movimento para revolucionar a ética (GRACIA,
2013), parece indicado conhecer o que estamos a revolucionar na
relação clínica ao assumir propostas sistematizadas, deliberativas
para a tomada de decisão.

Na relação clínica, os pacientes se baseiam num sistema de valores


e na condição clínica, enquanto os profissionais se baseiam em

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 153


outro sistema de valores e os conhecimentos técnicos. Isso requer
ponderação, que significa ordenação, priorização e eleição,
sendo igualmente importantes para decidir os procedimentos e
a fundamentação (Id., 1991). Assim, para a tomada de decisão em
bioética clínica, o melhor é apreciar cada situação particular por
meio de procedimentos sistematizados e fundamentados. Estes
auxiliarão os profissionais na apreciação minuciosa das situações
e no manejo das áreas de incerteza e ambiguidade da clínica com
vistas a decisões prudentes e responsáveis.

Nos problemas éticos da clínica não é indicado usar somente


intuição ou bom senso, pois são precisos meios para se guiar na
incerteza e no conflito que caracterizam essas situações. Há vários
procedimentos para a tomada de decisão em bioética clínica,
além da deliberação que é apresentada nesse capítulo. Nas
mãos de algumas pessoas todos funcionam bem, enquanto com
outras, nenhum dá certo. Usualmente, essas pessoas são as que
aplicam mecanicamente os métodos, sem perceber e considerar
a riqueza e complexidade da realidade (Id., 2009), sem o devido
equacionamento ético ponderado e responsável.

Da relação médico-paciente à relação clínica


O relacionamento entre médicos e pacientes se modificou
em consequência de mudanças nos envolvidos e na própria
relação, que alterou sua natureza. Um exemplo disso pode ser
o segredo médico que, originalmente, era um dever do médico,
sem o correspondente direito do paciente à privacidade e
confidencialidade. Atualmente, é possível afirmar que os últimos
embasam e justificam o primeiro, fazendo o respeito de um
direito dever profissional. Essa transformação de “segredo como
dever” para “segredo como direito-dever” demarca mudanças
nos envolvidos, especialmente, no polo do paciente que passa
à condição de sujeito titular de direitos, em decorrência de
mudanças sociais de cunho mais amplo que o âmbito circunscrito
da relação médico-paciente.

154 Bioética Clínica


Na concepção clássica, o “bom paciente”3 era o submisso,
respeitador, que confiava cegamente no médico, tinha atitude
dócil, não reivindicava, obedecia rigidamente às indicações
do médico, sem muitos questionamentos. Laín Entralgo (apud
LÁZARO; GRACIA, op. cit.) compreendia que no século XX a
medicina foi marcada pela introdução no ato clínico do sujeito
humano, da pessoa concreta que é o paciente. Isso aconteceu após
a “rebelião do sujeito”4, quando os médicos se viram obrigados a
introduzir, na forma de pensar e na prática profissional, os aspectos
sociais, psíquicos e pessoais da doença. Para Laín Entralgo (Ibid.),
a enfermidade atinge o corpo e, assim, o médico precisa explorá-
la como faria com qualquer realidade impessoal, objetivando a
situação ao máximo possível, mas, como a enfermidade ocorre
em uma pessoa, somente a relação objetiva ou distante não
é suficiente, precisando de outra pessoal, momentânea ou
constante. Com essa compreensão, a relação médico-paciente
passa a ser vista como empreitada moral, a ponto de se considerar
a moral como estruturante do ato clínico. O ato clínico, para Laín
Entralgo, tinha um caráter estruturalmente moral (Ibid.; GRACIA,
2010).

No século XIX, os médicos formavam uma classe burguesa e


assumiam os valores tradicionais da profissão, considerando-se
árbitro da vida do homem e merecedor de exercer, com monopólio,
a alta missão social que tinham; regiam-se por códigos próprios
que obrigavam a preservação do segredo médico, mas permitiam
que os honorários fossem fixados, livremente, por eles mesmos.
Ou seja, a medicina era profissão de exercício liberal e não ofício
de assalariados, com raríssimas exceções.

No século XX, a rebelião do sujeito chegou à clínica como


repercussão de aspectos sociais mais amplos como a luta do
proletariado contra as condições precárias nas quais viviam e
trabalhavam. Na medicina, também viviam essa precariedade:
havia uma “medicina para ricos” (LÁZARO; GRACIA, op. cit., p. 8), a
3. No original, “buen enfermo” (LÁZARO; GRACIA, op. cit., p. 8).
4. No original, “rebelión del sujeto” (Loc. cit.).

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 155


dos médicos burgueses bem preparados, e outra para os pobres,
feita por práticos, ou médicos assalariados, com pouquíssimo
conhecimento científico. Essas “medicinas” tinham tipos diferentes
de relação médico-paciente. Reformistas sociais e alguns
médicos, com o apoio do movimento operário, lutaram contra a
desigualdade assistencial vigente na época − o que impulsionou o
desenvolvimento de sistemas coletivos de assistência médica, de
caráter público, que tratavam a atenção à saúde dos trabalhadores
como um direito exigível por razões de justiça e que, portanto, não
podia continuar dependente de atos de benevolência dos mais
abastados ou dos poderes públicos, outorgados nas situações
de condições precárias. Além da reivindicação da assistência
como direito, na clínica, a rebelião do sujeito repercutiu com
a demanda do paciente para ser reconhecido como sujeito
pessoal, ser escutado como sujeito linguístico e compreendido
como sujeito biográfico e, assim, podendo trazer múltiplos
elementos subjetivos e pessoais que influenciavam, ou inclusive
determinavam, a aparição das doenças (LÁZARO; GRACIA, op. cit.).
Não é mais a clínica de um corpo biológico, mas de uma pessoa
com sua biografia e seu contexto social.

Mark Siegler (2011) descreve quatro fases da medicina e demarca


as diferentes relações que se estabeleceram em cada uma destas
entre o médico e o paciente. A “idade do paternalismo” (SIEGLER,
Ibid.), também chamada “idade do médico”, marcava-se pela
tendência autoritária e sacerdotal, tradicional da medicina desde
os primórdios, aproximadamente, em VI a.C. Os conhecimentos
técnicos que tinham e a estatura moral da qual gozavam os
médicos justificavam a autoridade e o controle que mantinham
na relação com o paciente e a sociedade. Assim, a beneficência
era a diretriz tanto da dependência obediente do paciente
como da autoridade do médico, que oferecia informação,
especialmente quanto ao prognóstico, ajuda psicológica e alívio
dos sintomas. Claro que não se pode estabelecer precisamente
a duração de cada fase da medicina, até porque estas podem se
sobrepor no tempo ou mesmo sobreviver em alguns aspectos até
o momento, mas Siegler aponta que a fase do paternalismo se

156 Bioética Clínica


estendeu até 1960. A partir de 1945, já apareciam características
que permitiram delimitar a “idade da autonomia ou do paciente”
(Ibid., p. 14, tradução nossa) com os avanços que possibilitaram a
compreensão das doenças e o desenvolvimento de tratamentos,
superando-se a prevenção e a sanação dos sintomas, únicas
alternativas na idade anterior. Na esteira dos Direitos Humanos, a
relação clínica passou a se fundamentar nos direitos e na liberdade
de escolha dos pacientes, com mais força para estes do que para
a expertise médica, invertendo-se o que acontecia na idade
anterior. O conceito médico e jurídico primordial para a relação
médico-paciente era o consentimento informado, baseado na
retórica de liberdade de escolha e no consumo. Segundo Siegler
(Ibid., p. 15, tradução nossa), esta segunda fase não se efetivou na
maioria dos países desenvolvidos com a “mesma virulência com
que se manifestou nos Estados Unidos”.

A terceira fase, “idade da burocracia ou do financiador” (Loc. cit.),


iniciou-se quando entraram em cena organizações, públicas e
privadas, que passaram a custear ou intermediar os gastos das
pessoas com saúde. A qualidade da atenção de saúde prestada
às pessoas, que sempre foi algo de difícil definição, deixava de ser
um fim em si mesmo e passava a ser ponderada com os custos,
incluindo a contenção destes, a eficiência e a rentabilidade. A
quarta idade é marcada pelo compartilhamento das decisões
entre o médico e o paciente; o modelo da relação é o do “acordo
entre médico e paciente” (Ibid., p. 17, tradução nossa), com base
na comunicação, discussão e negociação entre ambos. Nas
versões extremas, o paternalismo médico e a autonomia dos
pacientes implicavam o enfrentamento entre ambos na relação
com vistas a determinar onde residia a autoridade máxima, dando
espaço para a medicina defensiva. Nas decisões compartilhadas,
os dois decidem, por meio de acordo, que direitos manter e que
responsabilidades cabem a cada um, levando em conta a gravidade
da situação e o local da assistência (consultório, hospital, domicílio,
unidade básica de saúde); influenciam, também, nesse acordo
as atitudes e as personalidades de ambos. O modelo de acordo
assume que o médico e o paciente não sabem antecipadamente

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 157


a melhor decisão para o bem deste e encontrá-la, de maneira
compartida, é o objetivo fundamental dos encontros clínicos que
eles mantêm. A questão central é o processo de negociação, a partir
das circunstâncias da situação, que leva a um acordo de metas o
alcance do bem mais apropriado ao paciente. Com isso, fomenta-
se uma relação clínica caracterizada pela participação e respeito
mútuos mediante a tomada de decisões compartilhada. Os termos
atenção centrada no paciente, tomada de decisão participativa,
tomada de decisões com sensibilidade às preferências, medicina
colaborativa e modelo de autonomia avançada indicam a relação
clínica da quarta idade da medicina (Ibid., 2011).

Citando Alasdair MacIntyre, Siegler (Ibid.) afirma que, historica-


mente, o médico desempenhou três papeis simultâneos e
interligados na relação médico-paciente: curandeiro com poderes
mágicos; profissional de uma ciência aplicada, e administrador
burocrático. Antes da revolução científica, o papel fundamental
do médico era o de curandeiro; com os avanços científicos, ele
se transformou, progressivamente, em um profissional de uma
ciência aplicada e, finalmente, mescla este segundo papel com as
funções de um administrador burocrático.

Nas idades do paternalismo e da autonomia, a preocupação


central era o bem do paciente, ainda que definido a partir de
perspectivas diferentes. No paternalismo, o melhor para o
paciente era definido segundo o ponto de vista médico; na idade
da autonomia o paciente, com base na liberdade de escolha e no
direito de autodeterminação, definia o que era o melhor para si
mesmo. Na idade da burocracia, com o domínio do financiador
e da preocupação com os crescentes custos e gastos com a
assistência, o bem do paciente passou a ser ponderado com
outros bens, como as necessidades de saúde da sociedade, a
moderação dos custos totais da assistência.

A tomada de decisão, então, não mais se restringe aos pacientes,


aos médicos e aos desejos destes, mas se submetem cada vez mais
aos desejos dos administradores, gestores e burocratas. Essa nova

158 Bioética Clínica


situação traz certa distorção à meta da relação entre o médico e
o paciente, que sempre foi o bem do último (Ibid.). Em sistemas
públicos de saúde, especialmente os universais como o Sistema
Único de Saúde (SUS), talvez seja mais apropriada a compreensão
de que a clínica se amplia para a inclusão de aspectos sociais,
da justiça sanitária, com os profissionais de saúde e os usuários
assumindo papel de cidadãos corresponsáveis pela produção de
saúde5.

Lázaro e Gracia (op. cit.) indicam como marco das transformações


históricas da relação médico-paciente a primeira declaração dos
direitos dos pacientes, emitida pela Associação Americana de
Hospitais em 1973. Ela reconhecia, oficialmente, o direito de o
paciente receber informação completa sobre a situação clínica
na qual se encontrava, decidindo entre as opções possíveis, como
adulto autônomo e livre. Assim, o paciente deixava de ser passivo
para se converter em agente da relação. Isso provocou mudanças
no outro polo da relação, pois o médico, que respondeu com o
consentimento informado, passou de um papel sacerdotal a
assessor democrático.

Na descrição histórica que Lázaro e Gracia (Ibid.) fazem da relação


médico-paciente, eles assinalam que nas culturas primitivas e
arcaicas as figuras do médico e do sacerdote se confundiam,
estando nesse fato a origem remota da visão social da profissão
médica: um personagem privilegiado, respeitado, poderoso,
impune à lei, uma vez que ele mesmo era, no fundo, a lei. Esse era o
papel social do “médico-sacerdote” (Ibid., p. 10), figura que convivia
com a do “médico-artesão”, com formação empirista, praticante
de manobras curativas elementares para as camadas mais pobres,
inferiores da sociedade e que gozava de uma posição social similar a
dos carpinteiros ou ferreiros, ou seja, não tinha poder ou autoridade
que cabia ao outro tipo de médico. A medicina hipocrática levou
à ascensão intelectual, social e profissional do médico, que passou

5. Conferir o capítulo 3, “Justiça sanitária como tema de reflexão para a bioética clínica”,
deste livro.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 159


do papel de médico-sacerdote para o de “médico-filósofo”, cuja
prática se baseava em uma teoria lógica e natural da saúde e
doença. Entretanto, conservaram-se traços da fase sacerdotal, pois
os médicos não estavam submetidos ao sistema jurídico comum,
tinham o próprio código ético e o juramento profissional que
impunham beneficência, obrigatoriedade do segredo profissional,
conservação da pureza e santidade na vida pessoal e na medicina.
As camadas populares da Grécia eram assistidas pelos empíricos,
com curas artesanais, às vezes de caráter supersticioso. Na Idade
Média, os saberes médicos da tradição greco-romana ficaram
somente nos manuscritos conservados nos monastérios, por isso,
fala-se de “medicina monástica” (Ibid., p. 12). Assim, a medicina e a
religião se cruzaram novamente, com os monges se encarregando
do cuidado aos doentes em enfermarias anexas aos monastérios.
Aos poucos, iniciou-se a recuperação da cultura greco-romana
com a tradução dos textos clássicos e a laicização da medicina,
cujo exercício foi proibido aos monges, pela Igreja. A introdução
do ensino da medicina nas universidades que se estruturavam
contribuiu para a secularização da prática clínica. Assim, na Europa
moderna, apareceram as instituições profissionais, autodeclaradas
herdeiras da ética hipocrática. O caráter sacerdotal do início
da prática médica se refletia na firme defesa da medicina como
profissão, não ocupação de caráter mercantil, artesanal, e como
prática de natureza altruísta, cuja importância da missão justificava
um estatuto especial, um rígido monopólio. Esses argumentos
embasaram os médicos contra os defensores do liberalismo
que, no século XVIII, questionavam os monopólios corporativos
e defendiam o livre mercado e a livre iniciativa. No século XX, a
instauração dos sistemas de seguridade social e a integração
dos médicos a estes interferiram no exercício liberal da profissão
médica, o que mudou do status social de profissionais liberais para
funcionários ou assalariados, ainda que distinguidos.

Outra transformação no exercício da medicina foi causada


pelo trabalho em equipe, consequência da proliferação das
especialidades e da evolução do conhecimento científico.
Atualmente, o exercício liberal da medicina é exceção, estando,

160 Bioética Clínica


a maioria dos médicos, a serviço das seguradoras, planos de
saúde ou sistemas de saúde coletivos, públicos ou privados.
Os profissionais passam, também, a responder pela prática da
medicina ante os tribunais de justiça comum. Assim, a figura do
médico deixou de ser socialmente privilegiada para ser mais um
profissional entre tantos na saúde. Entretanto, o papel sacerdotal
do médico não desaparece por completo, transforma-se com a
força que ganharam os valores de saúde e bem-estar nos últimos
tempos: o médico se transformou no novo sacerdote da sociedade
de bem-estar.

Muitas pessoas não seguem qualquer preceito religioso, mas


obedecem as opiniões médicas ao decidirem o que comer; quais
substâncias podem consumir e quais devem evitar consumir ou
ter contato; os costumes de higiene, pessoais e domiciliares, e
as atividades físicas que devem cultivar; as precauções com as
relações sexuais. À medida que se radica na sociedade atual a
busca obsessiva pela saúde perfeita, o médico passa de sacerdote
para regulador da vida, expressando uma forma de biopoder.
Por isso, a bioética tem insistido em recordar ao médico que este
deve renunciar ao modelo histórico de caráter sacerdotal para se
transformar em assessor democrático, na relação médico-paciente.
Também esta relação mudou de natureza, pois o paciente não se
relaciona na assistência somente com o médico, mas com a equipe
de saúde que inclui diversas profissões dessa área; também não
se considera a pessoa que busca assistência como paciente, mas
usuários dos serviços de saúde, incluindo familiares, comunidade,
amigos, colegas de trabalho, companheiros de estudo (Ibid.).

Se não ocorre a mudança de visão de paciente para usuário, não


se reconhece a autonomia e cidadania ao paciente, não havendo
espaço para que este assuma o papel de agente na relação com
a equipe de saúde. Na relação paternalista, o relacionamento é
vertical e assimétrico: o médico ordena como um pai benévolo e o
paciente se deixa levar pelas decisões médicas como uma criança
submissa. Com a instauração da equipe de saúde, sem reconhecer
o paciente como adulto na relação clínica, essa relação passa de

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 161


paternalista a oligárquica (p. 15), persistindo a verticalidade do
relacionamento, pois o paciente continua submisso às decisões
que outros tomam sobre a vida e a saúde deste − a única diferença
é que deixa de ser o médico sozinho quem decide, cabendo isso
aos profissionais da equipe.

Dessa forma, aumentam as perspectivas consideradas para a


tomada de decisão já que as equipes são multiprofissionais, mas
o paciente segue passivo (Ibid.). E se não houver sinergia no
trabalho em equipe, se a atenção não for centrada no usuário,
este pode acabar se sentido desorientado, pois pode haver
desencontro nas prescrições de cada profissional. A equipe de
saúde precisa definir objetivos comuns, a fim de acompanhar o
alcance dos resultados esperados. Isso trará vantagens para todos
os envolvidos na relação clínica (FERNÁNDEZ, 2014). Por isso, é
preciso avançar no sentido de relações de trabalho e clínicas que
sejam democráticas, deliberativas e centradas no usuário.

A relação clínica “democrática” ganhou espaço no fim do século


XX, sendo, de fato, uma inovação decorrente da consolidação
dos direitos dos usuários dos serviços de saúde que instaura a
tendência à horizontalização do relacionamento destes com a
equipe de saúde. A tomada de decisão é feita por meio de um
processo, às vezes longo e conflituoso, para ajustes da informação
técnica apresentada pelos profissionais da equipe com os desejos
e valores pessoais dos usuários, obviamente, dentro do marco
formado pelas terceiras partes, sejam seguradoras, governo,
familiares ou comunidade.

Os dois polos da relação clínica são ativos: os profissionais


da equipe têm conhecimento científico, experiência clínica,
informação técnica e, por vezes, alguns conselhos; o usuário
escuta o que recebe de informação; pede esclarecimentos quando
precisar e confronta tudo com as crenças, os projetos, os desejos
pessoais, as questões familiares. Ou seja, a equipe de saúde propõe
e o usuário dispõe (LÁZARO; GRACIA, op. cit.), consolidando-se o
consentimento como livre e esclarecido, não somente informado,

162 Bioética Clínica


em um processo dialógico contínuo da relação clínica, não
apenas um evento, muitas vezes mais formal que verdadeiro,
antecedendo, especialmente, os procedimentos mais invasivos.
Entre o tradicional paternalismo, o autonomismo radical e a
rígida burocratização, a alternativa deliberativa e democrática
para a relação clínica abre um leque de possibilidades para se
desenvolver a prática clínica com respeito à dignidade e cidadania
dos profissionais da equipe e os usuários, famílias, atendendo as
reais e atuais necessidades de saúde destes. Com base em alguns
estudos empíricos, Siegler (op. cit.) afirma que tomar decisões
de forma compartilhada repercute positivamente na assistência:
os usuários confiam mais na equipe, nos serviços, melhoram a
adesão ao tratamento e se sentem mais satisfeitos com a atenção
recebida; as decisões são mais adequadas do ponto de vista
econômico; nas condições crônicas, como hipertensão, diabetes,
úlcera péptica e artrite reumatoide há melhores resultados na
evolução da doença e qualidade de vida dos usuários.

A relação clínica deliberativa é dinâmica e requer o estabeleci-


mento da troca compreensiva de informações sobre a situação
clínica e as diferentes alternativas, riscos e benefícios para lidar
com esta, em um processo de deliberação conjunto que inclua
análise dos fatos, mas, principalmente, dos valores implicados.
A qualidade da comunicação entre profissionais e usuários é de-
terminante na criação do ambiente de confiança que possibilita
a deliberação e o compartilhamento de decisões, com corres-
ponsabilização. Assim, é importante que os profissionais se em-
penhem para facilitar o diálogo, garantir liberdade de expressão,
respeito à intimidade, escuta ativa, atitude empática, não fazer
juízos de valor, ser assertivo, congruente entre o que se comunica
e como se comunica. É comum os profissionais alegarem falta de
tempo suficiente para fazer que o paciente se sinta escutado e
escute a si mesmo, sem dúvida, a sobrecarga de trabalho, comum
nos serviços de saúde, dificulta as relações mais deliberativas, mas
não as impede. Se o profissional, dispuser de habilidades comu-
nicacionais que permitam escutar o usuário tranquilamente, sem
interrupções, julgamentos, demonstrando interesse e respeito,

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 163


bastarão alguns minutos de diálogo (FERNÁNDEZ, op. cit.), pois
essa atitude de quem está atendendo ficará patente em todos os
atos, sejam estes feitos com muito ou pouco tempo disponível.

A tensão existente entre o paternalismo e a autonomia persiste na


idade da relação burocrática do financiador, pois segue a disputa
para a definição de quem tem a máxima autoridade para tomar
decisões: o médico; o paciente; o médico e o paciente, ou o agente
financiador (pagador). Indaga-se se os médicos e pacientes podem
tomar qualquer decisão ou se esta deve ser submetida à revisão
de quem paga ou arca com os custos da decisão tomada (SIEGLER,
op. cit.). A tensão pode aumentar tendo em vista a influência da
medicina defensiva que acaba levando pacientes e profissionais a
se verem como inimigos na relação clínica (FERNÁNDEZ, op. cit.).

As tensões, conflitos, fatos e valores que circulam na relação


clínica e a necessidade de chegar a decisões compartilhadas e à
produção corresponsável da saúde evidenciam a centralidade da
deliberação para a tomada de decisão em bioética clínica, diante
dos conflitos morais. Assim, apresenta-se, na sequência, a proposta
de Diego Gracia (2009; 2001) para deliberação em bioética clínica.

Deliberação na bioética clínica


A deliberação é um elemento inerente e constitutivo do ato
moral, de forma que é difícil imaginar um ato moral que não seja
deliberado (CONILL, op. cit.). O ato clínico é estruturalmente moral
(GRACIA, 2010), então, é difícil imaginar o ato clínico que não seja
deliberado e a relação clínica que não seja deliberativa.

A pergunta-chave na deliberação é:“qual o dever moral na presente


condição?” (Ibid., p. 173). Para respondê-la é preciso considerar
as exigências de uma sociedade perfeita de seres humanos (o
deveria, do ideal) e as circunstâncias concretas em que a decisão
está sendo tomada (o deve, do real) (Id., 2014). Aproximar a
realidade do ideal é função da ética. Por exemplo, a afirmação de
que todas as pessoas iguais e merecedoras de trato com a mesma

164 Bioética Clínica


consideração e respeito, evitando discriminações e danos é uma
formulação ideal, já que em muitos casos isso não corresponde
à realidade, mas a ética tem a função de aproximar, ao máximo
possível, em situações concretas, o real da formulação ideal (Id.,
1991). Como conseguir tal aproximação, definindo cursos de
ação, é tarefa para a deliberação, que é sempre concreta, prática,
e tem por objeto a eleição racional entre alternativas igualmente
valiosas. Há uma variedade de fins últimos para a vida definidos e
assumidos pelas pessoas. Muitas confundem a aspiração ideal de
felicidade com o dever real e concreto que, muitas vezes, tende
mais para a justiça social do que para a felicidade individual. Por
isso, é preciso educar os cidadãos para a deliberação individual,
pois tomam decisões que afetam esse âmbito, mas, sobretudo,
é preciso educar na deliberação coletiva, que é o procedimento
próprio da tomada de decisão na política democrática. Isto requer
o exercício profundo, constante da tolerância ativa, a busca de
valores compartidos e passíveis de serem benéficos a todos. Na
avaliação das circunstâncias concretas para o alcance do que é
benéfico a todos, é preciso reconhecer que ninguém é capaz de
abarcar totalmente a complexidade da realidade, ainda que se
empenhe ao máximo para conseguir tal propósito (Id., 2014).

A tomada de decisão na relação clínica ocorre em condições de


incerteza, o que reforça a necessidade da deliberação. Prática
clínica e deliberação estão intimamente relacionadas, de forma
que sem uma história clínica minuciosa é imprudente qualquer
tipo de consideração ética e que a qualidade da prática clínica
depende da boa deliberação (Id., 1991). A deliberação dos
conflitos morais na bioética clínica é a consideração dos valores
e deveres intervenientes nos fatos concretos a fim de manejar
a situação conflitiva, de maneira razoável e prudente, por meio
de discussões e decisões baseadas no diálogo interpessoal.
Quem delibera visa a obter soluções prudentes e não a decisão
ideal, certa ou que maximiza resultados. A decisão prudente é a
que mais aproxima a realidade do ideal em termos dos deveres
morais, pois a racionalidade da deliberação não é idealista,
pragmática ou utilitarista, mas crítico-hermenêutica (GRACIA, 2009;

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 165


ZOBOLI, 2010). Então, a deliberação é itinerário sistematizado,
contextualizado para a análise dos problemas éticos a fim de se
encontrar soluções concretas, dentre alternativas prudentes. Essa
análise não é abstrata, mas considera as circunstâncias concretas
e consequências previsíveis. A meta da deliberação são cursos de
ação prudentes e, na bioética clínica, a prudência se expressa na
capacidade de valorar o que está envolvido no caso, com vistas a
decisões razoáveis no âmbito da relação clínica.

Na deliberação, não se tratam as questões éticas, ou seja, os conflitos


morais, como “dilemas”, confrontando-se argumentos pró e contra
para chegar ao curso com maior probabilidade de ser o correto. A
redução da ética a cálculos de probabilidade é incompatível com
a deliberação. Nesta, os profissionais da equipe de saúde pensam
conjuntamente e compartilham suas percepções entre si e com os
usuários, ou seja, ativam o diálogo compreensivo entre diferentes
sentidos morais. As diferentes perspectivas da realidade são
importantes para aprimorar o sentido moral, pois esse é também
coletivo e não só individual (GRACIA, 2001). O procedimento
deliberativo é um recurso para ajudar a ordenação das discussões
em torno de problemas éticos, por meio de passos sequenciais
(POSE, 2009), que requer da equipe de saúde o desenvolvimento
de habilidades comunicacionais, de equacionamento moral e
maturidade emocional e psíquica dos envolvidos, profissionais
e usuários. Gracia (2014) alerta que a deliberação depende da
maturidade psíquica dos envolvidos, especialmente no âmbito
moral, e da capacidade destes para controlar a angústia decorrente
da vivência de situações de incerteza e risco, não se deixando
levar pelo ímpeto de dirimir os assuntos sem a devida reflexão,
com decisões de total aceitação ou completa recusa, ou seja, não
optando pelas soluções extremas, usualmente trágicas quando
a mais razoável, prudente é a intermediária. A angústia é grande
aliada da imprudência; mas quem foi adequadamente capacitado
e preparado para deliberar poderá controlar sua angústia e tomar
decisões prudentes, de modo quase natural ou espontâneo, isto
é, sem esforço excessivo.

166 Bioética Clínica


Na bioética clínica, o problema ético está inserido na relação
clínica; é o caso no qual concorrem valores e deveres igualmente
obrigatórios, valiosos, e os profissionais da equipe não sabem como
agir. O problema ético é descoberto no caso como um conflito de
valores no âmbito da relação clínica. Há casos que não interpõem
dificuldades à equipe ou aos profissionais individualmente, pois
a decisão a tomar está clara. Entretanto, alguns são conflitivos,
contraditórios. Estes são descobertos como problemas éticos,
e quando isso acontece o profissional se vê em uma espécie de
“paralisia de sentido” (POSE, op. cit., p. 82, tradução nossa); não
sabe o que fazer ou como agir, necessitando de auxílio, pois
algo “martela” sua consciência moral. Os problemas éticos têm
saídas morais, isto é, cursos de ação, soluções possíveis para se
manejar no caso. Estas são sempre mais que duas, por isso fala-se
de “problemas” éticos e não de “dilemas”. As saídas possíveis
formam um leque, em cujos extremos estão as soluções que
realizam um dos valores em conflito, à custa do aniquilamento
do outro e, no espaço entre estes, situam-se saídas prudentes
que concretizam ao máximo os valores em conflito ou os lesam o
menos possível (Ibid.).

Fatos, valores e deveres:


linguagem moral da deliberação
Na deliberação, os juízos morais decorrem do encadeamento
dos fatos, valores e deveres envolvidos nos problemas éticos.
Por isso, a decisão ética envolve três aspectos da realidade: os
fatos, orientados pela lógica cognitiva; a valoração, decorrente da
estimação; os deveres, que são a obrigação moral de concretizar
os valores na situação (ZOBOLI, 2013). O último é o âmbito mais
propriamente moral.

A história da deliberação no Ocidente tem uma teoria mais antiga


e outra mais moderna, entretanto, ambas se sobrepõem a ponto
de se confundirem, pois em comum sempre houve o objetivo de
tratar das questões de valores, ou melhor, dos conflitos de valores.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 167


Na concepção clássica, os valores eram qualidades objetivas das
coisas, ou seja, eram tão objetivos quanto ao que chamamos,
atualmente, de fatos. Nas culturas antiga e medieval, os dados
objetivos eram os valores, sem distinção clara entre estes e os
fatos. Tanto que eram comuns narrativas de “fatos” (Id., 2010, p.
169), “façanhas” de heróis, que eram modelos de vida devido aos
valores que encarnavam. Assim, fato era somente o que tinha
valor ou a façanha que o realizava, ainda que não totalmente.
Naquela época, vigia um “monismo axiológico” (Loc. cit.), como um
conjunto de valores considerados verdadeiros, sendo os demais
falsos ou tomados como desvios. Na modernidade, passou-se
do monismo ao “pluralismo axiológico” (Ibid., p.170) e os valores
passaram a ter caráter subjetivo. Essa mudança, em certa medida,
pode ser considerada a marca da modernidade. Se com Platão
os valores eram ideias, na modernidade passam a ter origem nas
emoções, daí a necessidade de se respeitar os valores de cada um,
ainda que não se coadune com estes. Com isso, os valores perdem
o caráter intrínseco e se convertem em meros instrumentos a
serviço do prazer, bem-estar, felicidade. Entretanto, se os valores
são subjetivos, os fatos são objetivos e as decisões devem ser
feitas com base em ambos. Na teoria de valores da modernidade,
o pragmatismo estadunidense advoga que não existem valores,
mas coisas que são valoradas, ou seja, não há valores, e, sim,
valorações. Mais recentemente, passou-se a entender que os
valores não são completamente objetivos como afirmava-se na
antiguidade e tampouco são completamente subjetivos como se
afirmou no início da modernidade. Gracia (2014), então, propõe
uma “teoria construtivista” dos valores, que embasa a deliberação
como um procedimento próprio da racionalidade prática, técnica
e ética que abarca os âmbitos dos fatos, valores e deveres. Esses
três âmbitos são elementos componentes do projeto humano,
então, a deliberação é um procedimento intelectivo que dispõe
o ser humano para a elaboração de projetos, sem que ninguém
escape a isso (Id., 2011).

Depois do positivismo, “fato” é todo dado de percepção; algo


objetivo, contundente, impositivo, observável por qualquer um.

168 Bioética Clínica


Aos fatos correspondem os juízos descritivos ou juízos de fato,
isto é, a reprodução do dado perceptível observado na realidade:
“o fêmur está fraturado” ou “a manhã está chuvosa”. Os juízos de
valor expressam a estimação acerca da percepção: “tal ação é
injusta”; “o que fizeram para o paciente é desumano”; “a manhã
está bela”. Os fatos se percebem e os valores se estimam.

O juízo moral tem início com os juízos de fato, pois permitem


aprofundar o conhecimento da realidade, mas os fatos são só
um dos âmbitos da deliberação. Delibera-se sobre fatos, valores
e deveres (POSE; GRACIA, 2006). Na deliberação os fatos são
compreendidos como suportes para os valores, pois a tudo que
se percebe, necessariamente, atribui-se valor, não havendo fatos
puros, já que estes estão sempre conectados a valores, que, por
sua vez, não são dados concretos da percepção e não podem ser
vistos, tocados ou se tornarem objetos de experimentos. Fatos e
valores, então, são âmbitos distintos e relacionados da realidade.
As ações se situam no âmbito dos fatos, mas as motivações
e justificativas destas estão na esfera dos valores, aos quais
correspondem os juízos valorativos que se apoiam nos juízos de
fato. Como os valores se ancorarem nos fatos, sofrem influências
sociais, históricas e culturais, portanto, os valores são, ao mesmo
tempo, intuídos individualmente e construídos socialmente.
A intuição individual que compõe os valores traz o risco do
subjetivismo para as estimações e valorações, entretanto, não se
trata só de preferências pessoais já que algumas delas são social
e politicamente contestáveis. Ademais, há valores que devem
ser assumidos por todos a fim de que a realidade se torne mais
apropriada a uma vivência compatível com a dignidade humana:
liberdade, solidariedade e beleza (ZOBOLI, 2013).

O dever, cujo conteúdo advém dos valores, corresponde ao


aspecto formal da obrigação moral. Os deveres admitem dois
níveis: o dever ideal ou “deveria”, e o dever realizável ou “deve”.
No equacionamento ético, ponderam-se as proposições ideais
e categóricas do âmbito do “deveria” e as possíveis e hipotéticas
do nível do “deve”. A obrigação moral é concretizar o “deveria”,

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 169


partindo-se do “deve”. Na deliberação, considera-se o âmbito do
“deveria”, que é o momento de idealidade, da imagem-objetivo,
para se chegar ao nível “deve”, ou seja, do que é possível concretizar
dos valores em conflito. As decisões prudentes, tomadas com
responsabilidade moral, por meio de uma boa deliberação,
propiciam a articulação entre “deveria” e “deve”. Quando os
deveres entram em conflito e os profissionais não sabem como
agir para concretizar os valores na prática clínica, se olharem só
para o mundo ideal não conseguirão chegar ao “devo” possível
em cada caso. A deliberação facilita esse trajeto (Ibid.). Para que
a relação clínica seja deliberativa é preciso considerar, além dos
fatos, os valores e deveres da equipe de saúde, dos profissionais
individualmente, dos usuários, familiares, gestores, dentro do
contexto de cidadania dos sistemas e serviços de saúde.

Itinerário deliberativo
O itinerário do processo deliberativo inclui: deliberação sobre
os fatos (apresentação do caso e esclarecimento dos fatos);
deliberação sobre os valores (identificação dos problemas
éticos do caso; indicação do problema ético fundamental e
identificação dos valores em conflito); deliberação sobre os
deveres (identificação dos cursos de ação extremos, intermédios
e ótimo); deliberação sobre as responsabilidades (submissão do
curso ótimo às provas de consistência de tempo, publicidade
e legalidade). Em publicações anteriores (Id., 2010; 2013), foi
exposto detalhadamente o procedimento deliberativo proposto
por Diego Gracia; neste capítulo, destacaram-se alguns pontos
significativos, tendo em vista a relação clínica deliberativa.

A deliberação sobre os fatos se inicia com a apresentação do


caso, isto é, a revisão deste pela equipe, que repassa a história
clínica, com ênfase nos aspectos éticos e dados sobre condições
sociais, familiares, culturais, educacionais, religiosas e outros que
possam ser importantes para compreensão da situação. Essa fase
se assemelha às sessões clínicas e pode ser feita nas reuniões

170 Bioética Clínica


das equipes de saúde. O foco é o problema ético, mas é preciso
explorar detidamente os fatos da história clínica, pois estes são
o suporte dos valores em conflito no caso. Ou seja, a história
clínica é o suporte material do problema ético a ser analisado, da
decisão a ser tomada. Assim, conhecê-la sob diversos aspectos,
com a contribuição das diferentes perspectivas dos profissionais
da equipe, contribui para o manejo das áreas de incerteza na
deliberação. Essa revisão do caso é oportunidade para que os
profissionais da equipe cheguem ao esclarecimento dos fatos
do caso, indagando pontos que ficaram pouco claros ou que não
foram incluídos na história clínica e podendo buscar o usuário
para que ele esclareça. O sucesso do procedimento deliberativo
depende muito da compreensão do caso.

Assim também é a relação clínica deliberativa. Falhas na


compreensão do caso se arrastam para as demais etapas da
deliberação e comprometem a prudência da decisão, pois quanto
melhor a compreensão do caso, mais fácil reconhecer os recursos
disponíveis para propor cursos de ação realizáveis. A deliberação
sobre os valores leva a inclusão destes na tomada de decisão e à
identificação dos problemas éticos, que podem ser dificuldades
e dúvidas. Por isso, a melhor maneira de conduzir esta etapa é
problematizar o caso, ou seja, elaborar perguntas que possam
facilitar a identificação dos valores em conflito. Nem todas as
perguntas formuladas expressarão conflitos de valores, mas
contribuem para explorar a complexidade da situação vivida na
relação clínica, a partir das visões dos participantes, que podem
ser muito distintas.

É importante que nessa etapa os participantes não se ponham a


debater as questões levantadas. A ideia é listá-las para ampliar a
compreensão da situação com a inclusão das várias perspectivas.
Como é impossível analisar todas as questões levantadas, convém
identificar um problema ético, um ponto conflitivo da relação
clínica que será objeto especial da deliberação. É importante, para
uma relação clínica deliberativa, incluir a perspectiva do usuário e
dos familiares nesta etapa. Na questão escolhida, é preciso situar

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 171


os valores, pontos em conflito para a deliberação dos deveres,
com a identificação dos cursos de ação, que são as alternativas
para condução, solução do caso.

Os valores em conflito se dispõem em dois polos opostos, sendo


que a cada um destes corresponde um “curso de ação” extremo,
que realiza, na relação clínica, só um dos valores em conflito,
aniquilando o outro. Os cursos extremos são imprudentes
e precisam ser evitados, ainda que sejam as primeiras vias
vislumbradas para o manejo do caso. As saídas morais que ficam
entre os polos extremos são os “cursos de ação intermédios”, que
permitem compaginar valores em conflitos, lesando-os o menos
possível, ou seja, realizando-os ao máximo, dadas a concretude da
realidade e das circunstâncias. O exercício delicado e atencioso de
comparação dos cursos intermédios propostos permitirá chegar a
decisão sobre o “curso ótimo”. Para ser responsável, o “curso ótimo”
escolhido (ou seja, a decisão tomada) deve ser, principalmente,
passível de publicização.

Face ao pluralismo moral, os profissionais de saúde precisam


desenvolver hábitos, habilidades e competências deliberativas
para aprimorar a qualidade da atenção à saúde, considerando
as circunstâncias, peculiaridades e concretude da realidade das
situações, sem perder de vista a imagem-objetivo das obrigações
éticas, das formulações ideais compatíveis com a dignidade e
cidadania dos envolvidos na relação clínica. A relação clínica
deliberativa depende de respeito mútuo; humildade; modéstia
intelectual; desejo de enriquecer a compreensão da situação com
escuta, trocas de opiniões, argumentos, pensar junto, e abertura
ao outro e ao novo. Essas atitudes precisam ser cultivadas, porque
estão, direta ou indiretamente, envolvidas na relação clínica, como
estão os usuários, profissionais, gestores, familiares e cuidadores.

172 Bioética Clínica


Referências
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174 Bioética Clínica


Reflexão bioética sobre a
responsabilidade cidadã e o ato de cuidar

José Eduardo de Siqueira1

Introdução
Os modelos éticos tradicionais dominantes até o século XIX se
caracterizavam por uma ênfase nas ações humanas que atendiam
ao imperativo categórico kantiano. A busca pela universalização
dos atos morais praticados por homens e mulheres habitantes
de comunidades heterogêneas em seus costumes tornava quase
impossível imaginar um imperativo da razão humana que pudesse
contemplar a condição de universalizável, conforme proposto por
Immanuel Kant (1985).

Foram necessárias duas guerras mundiais para compreendermos


a dura realidade descrita por Freud (1981) como “pulsão de
morte”, condição psicológica que, segundo ele, conferia aos
seres humanos obscuros desejos de autoaniquilação, que se
exteriorizavam na realidade fática por meio de atitudes de
heterodestruição. Desse modo, seria pouco razoável atribuir valor
moral universal para todos os atos humanos, já que muitos deles
representariam a exteriorização do impulso para a destruição do
outro (Ibid.).

Do mesmo modo, até o século XIX, a natureza detinha um


verdadeiro poder normativo e a liberdade humana se encontrava
inteiramente submetida a um horizonte natural e imutável. A
partir da segunda metade do século XX, passamos a constatar que
os avanços técnico-científicos assumiam características de um

1. Professor titular da Escola de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Paraná


(PUCPR), professor permanente do Programa de Mestrado em Bioética da PUCPR, coordenador
do curso de Medicina da PUCPR, membro assessor da Red Bioética da Unesco para América
Latina e Caribe, e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB/2005-2007).

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 177


quase ilimitado poder de transformação das naturezas humana
e extra-humana, subjugando inteiramente o homo sapiens ao
homo faber. Por outro lado, a relação entre a técnica e a ciência
passou a ser dominante, e o produto dessa união – a tecnociência
– adquiriu poderes extraordinários, produzindo avanços que
ganhavam tal autonomia que foi considerado desnecessário
submetê-los a qualquer juízo de valor. Husserl (1994), numa famosa
conferência sobre a crise da ciência europeia e a fenomenologia
transcedental2, já identificava a existência de um buraco cego no
objetivismo científico, o que ele, então, denominou de “o vazio da
consciência sobre si mesma” (Ibid., 1994).

A partir do momento em que, de um lado, ocorria o divórcio


entre a subjetividade humana (reservada ao campo da psicologia
e da filosofia) e a objetividade da produção do conhecimento
(considerada como território exclusivo da ciência), passou-se
a privilegiar o desenvolvimento de tecnologias refinadas para
desvendar todos os mistérios da natureza. Tal condição foi
criticada por Morin, que a identificou como sendo a “ignorância
da ecologia da ação” (1993, p. 235), uma vez que esta desconsidera
que, a partir do momento em que o processo de busca do
conhecimento tem início, o domínio das ações que o sucedem
escapa ao controle do pesquisador e passa a ser conduzido por
agentes alheios ao campo da ciência, os quais passam a definir
outros objetivos que não os originalmente concebidos. Seria
ocioso enumerar exemplos desse desvio, bastando recordar que
o conhecimento gerado pela energia liberada pela fissão nuclear,
entre outras iniciativas científicas nobres, permitiu a produção
das bombas atômicas estadunidenses lançadas sobre Hiroshima
e Nagasaki.

Por outro lado, é importante reconhecer que os fundamentos


da ciência moderna têm suas raízes no século XVII, com René
Descartes e Francis Bacon, que privilegiavam o poder operativo da
ciência. Em De l’Avancement des Sciences, publicado originalmente

2. Conferência realizada em novembro de 1935 na Universidade de Praga.

178 Bioética Clínica


em 1603, pouco antes de sua morte, Bacon conclamava os homens
a unirem forças “para dominar a natureza, tomar de assalto e
ocupar seus castelos e suas praças” (BACON, 1999, p. 127). De
fato, os homens de ciência fizeram tudo o que foi possível para
responder à altura a proposta baconiana, privilegiando desde
então, um novo modelo de colaboração entre técnica e ciência,
de modo que qualquer pesquisa científica passaria a ser efetuada
por meio de um íntimo diálogo entre a busca do conhecimento
e sua aplicação prática imediata que atendesse aos interesses
daqueles que detinham o poder

Sobre o tema, Popper (1972, p. 330) formulou um juízo bastante


benevolente ao afirmar que

a história das ciências, como a de todas as ideias humanas, é


uma história de sonhos irresponsáveis, de teimosia e de erros.
Porém, a ciência é uma das raras atividades humanas, talvez a
única, na qual os erros são sistematicamente assinalados e, com
o tempo, constantemente corrigidos.

No século XX, passamos a reconhecer que, diante da possibilidade


de prejuízos à natureza humana e extra-humana decorrentes
dos avanços tecnocientíficos fazia-se mandatório que,
simultaneamente à produção de novos conhecimentos, a ciência
deveria acolher as necessárias e prudentes contribuições de
ponderações éticas sobre valores essenciais à vida. Nessa mesma
linha, destacamos o brado de alerta de Edgar Morin e Anne Brigitte
Kern (1995, p. 174), descrito em seu livro Terra-Pátria:

Eis a péssima notícia, estamos perdidos, irremediavelmente


perdidos. Estamos perdidos, mas temos um teto, uma casa, uma
pátria. É a nossa pátria, o lugar de nossa comunidade de destino,
de vida e morte. O evangelho dos homens perdidos nos diz que
devemos ser irmãos, não porque seremos salvos, mas porque
estamos perdidos.

Gilbert Hottois (1991, p. 178), bioeticista belga, igualmente


ponderou que “tanto a recusa obscurantista, quanto a glorificação
imprudente da tecnociência podem ser nefastas para a qualidade

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 179


de vida das gerações futuras”. É importante considerar que
somente o ser humano é capaz de mudar o curso da história por
meio de suas ações e escolhas, as quais precisam ser submetidas
a uma prudente reflexão ética. Essa responsabilidade impõe a
todos – sobretudo aos cientistas envolvidos na produção do
conhecimento – deveres que considerem a preservação da
existência humana em sua forma mais autêntica. A obrigação
se torna significativamente maior em função do poder de
transformação e da consciência que temos de todos os possíveis
danos oriundos de ações irrefletidas.

Van Rensselaer Potter, criador do neologismo “bioética”, abordou


em Global bioethics: building on the Leopold legacy a questão da
responsabilidade na busca pelo conhecimento. Dirigindo-se
especificamente aos cientistas, Potter (1988, p. 152) recomendou
que eles “pensem a bioética como uma nova ética da ciência que
combine humildade, responsabilidade e competência, que seja
interdisciplinar e intercultural e que faça prevalecer o verdadeiro
sentido de humanidade”.

Assistimos, no século XX, inúmeros infortúnios, bastando, para


tanto, considerar as perdas humanas acumuladas nas duas
grandes guerras e a insensata degradação do meio ambiente.
Por quais sendas caminhamos que nos fizeram perder a noção de
comunidade solidária e nos deixamos dominar por um obstinado e
irresponsável individualismo? Talvez a resposta para essa questão
provenha da escolha equivocada que fizemos ao privilegiar
as regras do “eu isolado” para representar a superioridade da
parte sobre o todo, condição que nos desobrigou de qualquer
responsabilidade para entender e atender os e aos problemas
da comunidade humana. Amartya Sen (2011) identificou
como o mais enganoso mote da reflexão pós-moderna o
fato de termos considerado que as pretensas virtudes dos
mecanismos regulatórios do livre mercado deveriam respeitar
os interesses individuais, o que, por serem óbvios na sociedade
liberal, dispensariam quaisquer iniciativas com a finalidade de
efetuar juízos éticos para averiguar eventuais consequências

180 Bioética Clínica


sociais danosas dessa prática. O autor conclui afirmando que
o capitalismo, ao tentar mostrar com incomparável riqueza de
detalhes que a economia com base científica deveria sempre
flutuar ao sabor do mercado, não teria o objetivo de defender
a democracia, mas a liberdade de movimentação dos grandes
capitais internacionais dominados por pequenos grupos (Ibid.), o
que parece comprovado por dados recentes da economia mundial
que mostram que apenas 1% da população mundial detém 90%
da riqueza de todo planeta.

Mais recentemente, o economista francês Thomas Piketty publicou


O capital: no século XXI, resultado de quinze anos de pesquisa
sobre a evolução da política econômica de vinte países ao longo
dos últimos duzentos anos. Na conclusão dessa pesquisa, o autor
afirma que

a lição geral de minha pesquisa é que a evolução dinâmica


de uma economia de mercado e de propriedade privada,
deixada à sua própria sorte, contém forças de convergência
importantes, ligadas sobretudo à difusão do conhecimento e
das qualificações, mas também forças de divergências vigorosas
e potencialmente ameaçadoras para nossas sociedades
democráticas e para os valores de justiça social sobre as quais
se fundam. (PIKETTY, 2014, p. 155)

A subestimação do valor da dignidade humana, associada a


problemas crônicos como a fome, a miséria, a insalubridade e o
desemprego, tem permitido o desenvolvimento da violência em
todos os níveis da sociedade, desde o doméstico até o comunitário.
Esse mal-estar tem estimulado densa produção acadêmica
em busca de conceber modelos alternativos que retomem os
ideais de solidariedade e paz, conquistas duramente alcançadas
pelas democracias modernas. Adela Cortina (2001), assim como
outros autores, recupera o modelo universalista kantiano e a
ética discursiva de Habermas para propor a construção de uma
sociedade que possibilite a existência de mínimos de justiça
que se façam presentes na sociedade global. A autora enfatiza
que tais patamares mínimos não surgirão da tradição política

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 181


liberal que atende preferencialmente aos interesses individuais,
mas por meio de ações afirmativas do Estado que promovam a
inclusão social. Além disso, Cortina (2001) alerta que um mundo
injusto, que subestima a solidariedade e os direitos humanos
fundamentais, não reúne condições mínimas para a convivência
social harmônica, o que favorece o surgimento de movimentos
populistas e fundamentalistas que buscariam ressuscitar os antigos
regimes totalitários e a negação das conquistas democráticas.
Segundo a autora, somente ultrapassando o individualismo, o
nepotismo e os regimes de exceção, desfazendo as fronteiras
entre os países e fortalecendo a solidariedade entre os povos seria
possível alcançarmos a paz social.

Entre nós, Schramm e Kottow (2001) e Garrafa e Porto (2003),


respectivamente, propuseram a bioética de proteção e a bioética
de intervenção, que atribuiriam ao Estado o papel de protagonista
de iniciativas que buscassem instituir políticas de inclusão social
e transformações sociopolíticas com a finalidade de emancipar
os excluídos. Considerando essas postulações, uma pergunta se
impõe: as atuais democracias representativas do Ocidente têm
condições para implementar essas transformações? O que se
constata, em nível global, contrariamente, é que são crescentes os
índices de pobreza extrema, insalubridade, insegurança, falta de
acesso à educação e à saúde, circunstâncias que só fazem ampliar
o já enorme contingente de marginalizados sociais. Por outro
lado, segundo Sen (1999), limitar o conceito de pobreza à simples
condição de insuficiência de renda pessoal seria um inaceitável
reducionismo, sendo certo, em sua opinião, que o único caminho
para o exercício autêntico de promoção da cidadania não seria
outro senão a emancipação dos marginalizados sociais.

A falta de referenciais, a crise de legitimidade do Estado e o


crescimento de vazios institucionais que são ocupados pelo
crime organizado somente têm feito crescer o desencanto
existencial de indivíduos que, tomados pelo medo, perdem o
sentido de identidade por faltar-lhes adequado suporte social.
Assim, vemo-nos inseridos em uma sociedade globalizada, com

182 Bioética Clínica


expressivos avanços tecnológicos e uma pequena parcela de
pessoas detentoras de enormes fortunas convivendo com enorme
contingente de miseráveis, condição que vem sendo denominada
por alguns autores como o “enriquecimento empobrecedor”
da pós-modernidade. A identidade pessoal que deveria ser
harmonicamente construída na riqueza da diversidade cultural
foi substituída pela patética lógica do eu isolado, assim descrito
por Bloom (1989, p. 162) ao se referir à juventude estadunidense.

O futuro indeterminado e a falta de um passado vinculante


significam que a alma dos jovens se encontra em um estado se-
melhante ao dos primeiros homens, espiritualmente desnudos,
desconectados, separados, sem relações herdadas ou incondi-
cionais com nada ou alguém. Podem ser o que quiserem, mas
não têm nenhuma razão particular para ser nada em especial.

Em consequência dessa verdadeira tirania do Eu, o Outro


passa a ser visto como elemento estranho a ser desprezado,
violentado e excluído, o que torna cada vez mais corriqueiro em
grandes centros urbanos a destruição física do outro. Um caso
emblemático dessa insana crueldade foi registrado no assassinato
do líder indígena pataxó Galdino dos Santos. Convocado para
representar sua comunidade em reunião da Funai, Galdino, sem
local para pernoitar, adormeceu num banco de parada de ônibus
em Brasília. Enquanto dormia, cinco jovens de classe média
embeberam seu corpo com álcool e atearam-lhe fogo. Com
queimaduras de terceiro grau acometendo 90% do seu corpo, o
líder indígena faleceu. Um dos jovens envolvidos, em depoimento
publicado na edição de 21 de abril de 1997 do Correio Braziliense,
assim justificou o ato criminoso: “foi apenas uma brincadeira! Não
sabíamos que era um índio, pensávamos que fosse um mendigo
qualquer.”. Nesse depoimento fica caracterizado que os jovens
agressores poderiam não ter cometido o crime caso soubessem
antecipadamente que a vítima era um líder indígena, pois o
ataque se destinava a algum morador de rua.

A propósito desse crime, Endo (2005) faz referência a um estudo


realizado pela Unesco em Brasília, no qual foi constatado que, na

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 183


percepção dos jovens de classe média entrevistados, humilhar
travestis, prostitutas e homossexuais seria um comportamento
menos grave do que pichar prédios públicos, destruir orelhões ou
placas de sinalização de trânsito. Além disso, mais de 20% desses
jovens consideraram injustificável impor qualquer punição em
decorrência da conduta por eles perpetradas ao destratar aquelas
pessoas. Entretanto, indivíduos que têm esse tipo de atitude
deveriam ser punidos pelo fato de terem assumido publicamente
condutas socialmente reprováveis (Ibid.). No momento que a
globalização econômica derruba todas as fronteiras nacionais, o
mundo convive com insuportáveis índices de miserabilidade, fome
e a mais explícita e persistente violação dos direitos humanos.
Basta observar o iníquo tratamento imposto aos milhares de
refugiados sírios, que, fugindo da guerra, buscam acolhimento
nos países da Europa Ocidental. Nunca foi tão urgente atender
ao desafio de recriar uma ética de solidariedade responsável para
humanizar a humanidade.

Foi nesse cenário de desencanto que surgiram as éticas aplicadas,


entre elas a bioética, imbuída do propósito de oferecer subsídios
éticos para enfrentar os conflitos morais que emergem dessa
situação de caos social.

O tema da responsabilidade na visão de


pensadores contemporâneos
Em A política como vocação, Max Weber estabeleceu uma distinção
entre ética da convicção e ética de responsabilidade, considerando
que, no caso da primeira, os fins justificariam os meios de todas
as ações humanas (pressuposto defendido pelos pensadores
marxistas); no da segunda, seria resgatada a tradição kantiana
de universalização das ações morais. O autor assim detalha suas
avaliações sobre os dois modelos:

1. A vida humana comportaria diferentes campos de ações onde


teríamos uma tensão entre moral, política e religião, o que poderia
redundar em conflitos insolúveis e que a atitude prudente seria

184 Bioética Clínica


aceitá-los naturalmente e que a ninguém poder-se-ia atribuir o
direito de valer-se de uma posição de superioridade para impor
suas convicções pessoais a outrem.

2. Todos os seres humanos deveriam responder pelas


consequências previsíveis de seus atos. A esse respeito, Weber
expõe seu ponto de vista de que quando as consequências
de uma ação praticada por pura convicção se revelassem
desagradáveis, o partidário de tal modelo ético não consideraria
como necessariamente culpado o agente que a promoveu, mas
sim, outras variáveis aleatórias como “o mundo, a tolice dos
homens ou a vontade de Deus, que assim criou os homens”.
Por outro lado, os partidários da ética de responsabilidade, ao
contrário, considerariam que a responsabilidade pelos atos
praticados caberia exclusivamente ao agente que os praticou,
sendo descabido transferir para outrem as consequências
nefastas de suas próprias ações.

3. A ética de responsabilidade consideraria como pressuposto


que os meios deveriam ser adequados aos fins a serem atingidos
e que não poderia haver fins altruístas que justificassem o recurso
a meios incompatíveis com a realização dos autênticos objetivos
das metas originais. (WEBER, 1980, p. 81)

Igualmente, no Ensaio sobre neutralidade axiológica nas ciências


sociológicas e econômicas, publicado em 1917, Weber (2003)
estabelece uma distinção entre a obtenção dos fatos produzidos
pela ciência e as possíveis avaliações valóricas deles decorrentes.
À época o que mobilizava a atenção da comunidade acadêmica
era a questão da liberdade de cátedra, condição essa que facultava
ao professor total liberdade para manifestar juízos pessoais sobre
matéria de sua área de conhecimento. Weber (Ibid.), entretanto,
argumenta que seria desproporcional, em matéria política e de
convivência social, qualquer argumento que pudesse justificar a
superioridade do ponto de vista particular de qualquer professor
sobre os defendidos por outros pensadores. Considerou que
seria imoral que o professor pudesse valer-se de sua posição
hierárquica para influenciar ou mesmo doutrinar seus alunos.
Ao mesmo tempo, a intelectualidade alemã debatia com muita
paixão a questão teórica das ciências sociais, configurando-se,

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 185


então, uma verdadeira disputa entre os que defendiam a adoção,
nessa área do conhecimento, dos mesmos rigores metodológicos,
marcadamente quantitativos, empregados nas investigações
desenvolvidas no campo das ciências naturais. Contrariamente,
outros pensadores consideravam imprescindível a inclusão, nesse
âmbito da pesquisa, de valores de ordem subjetiva e não somente
dos fatos obtidos pelas experimentações advindas do campo
das ciências exatas. É importante considerar que a produção do
conhecimento, até a primeira metade do século XX, foi muito
influenciada pela filosofia positivista proposta por Auguste Comte,
que entendia a sociologia como campo da ciência capaz de
explicar os fenômenos sociais de maneira inteiramente racional.
Ao prescindir da incorporação de valores subjetivos, circunscrevia
os limites das pesquisas sociológicas à singela tarefa de pura
descrição dos fenômenos sociais, o que tornava o diálogo entre
ciência e filosofia uma tarefa quase impossível. Por um longo
período, assim caminhou a produção do conhecimento, no restrito
território analítico e quantitativo, condição essa que colocava as
pesquisas de natureza qualitativa no pouco respeitável campo de
iniciativas acadêmicas de discutível rigor científico. No entanto,
Max Weber não considerava haver qualquer incompatibilidade
em acolher, simultaneamente, parâmetros quantitativos e
qualitativos nas pesquisas científicas.

Em A ética protestante e o espírito do capitalismo, originalmente


publicado em 1905, Weber estudou os mais diversos compor-
tamentos humanos que aproximavam a ética protestante e o
racionalismo presente no capitalismo da era pós-industrial. À
época, era comum comparar as percepções de valores morais
que diferenciavam o comportamento de católicos e protestantes,
sendo que os primeiros subestimavam as atividades lucrativas
do modelo empresarial, enquanto os protestantes adotavam
posturas opostas, que foram definidas por Weber como a “busca
pela alegria de viver” (2008, p. 28). Segundo o autor, essa
percepção não fazia parte da mensagem original do luteranismo,
mas foi incorporada posteriormente em decorrência de um
processo histórico denominado de vocação ascética, condição

186 Bioética Clínica


essa que preconizava que o verdadeiro sentido da vida humana
seria dependente de uma predestinação divina, em que o acúmulo
de riqueza material apenas identificaria as pessoas escolhidas por
Deus para demonstrar sua manifestação entre os homens. A tese
de Weber (Ibid.) encontrava respaldo nos textos de Richard Baxter,
importante figura do metodismo que pregava que a ociosidade
seria a maior expressão do pecado contra Deus e que para estar
seguro de seu estado de graça, todo homem deveria trabalhar
incansavelmente para demonstrar seu merecimento diante
das graças divinas. Baxter orientava que os verdadeiros crentes
deveriam trabalhar, poupar e enriquecer, pois somente dessa
maneira poderiam demonstrar seus merecimentos pessoais para
obter a salvação eterna ao resistirem de maneira incondicional
ao ócio e ao prazer. Desse modo, Weber procurou estabelecer
uma relação direta entre o puritanismo e o capitalismo. Alguns
sociólogos de então consideraram que a hipótese de Weber teria
sido presumivelmente confirmada ao constatar que os principais
fundadores da próspera indústria química inglesa seriam, em sua
maioria, calvinistas.

Bem, o que essa tese weberiana teria a ver com o objetivo deste
ensaio? Para responder a essa questão, é necessário compararmos
o ideário político que norteia as ações em saúde pública de dois
países, um majoritariamente protestante (Estados Unidos) e
outro com o maior número de pessoas devotas do catolicismo
no planeta (Brasil). Consideraremos, para tanto, o pensamento de
dois filósofos contemporâneos, Robert Nozick e Franklin Leopoldo
e Silva.

Em 1974, Nozick publicou Anarchy, state and utopia, em que


questiona a validade do conceito de justiça distributiva,
argumentando que os direitos individuais seriam tão inalienáveis
e abrangentes que nenhum governo democrático estaria
autorizado a destinar verbas públicas, provindas de impostos
sobre rendas, para atender a programas sociais com a finalidade
de beneficiar pessoas carentes, sem que elas próprias fizessem
suas devidas contribuições aos cofres do Estado. Segundo o autor,

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 187


atitudes dessa natureza somente favorecem a manutenção do
estado de inércia dessa população de indigentes que deixam de
exercer suas responsabilidades sociais esperando passivamente
as benesses proporcionadas por um governo paternalista. Para
ele, apenas um Estado mínimo, limitado a fazer cumprir contratos
e oferecer segurança para as pessoas contra arbitrariedades,
roubos e fraudes, estará justificado na sociedade liberal. Assim,
qualquer governo que utilize o poder a ele atribuído pelo voto dos
contribuintes deve estar impedido de implementar programas
assistenciais destinados às pessoas pobres. Dessa maneira, entre
as premissas que um país democrático deve adotar como cláusula
pétrea está a de não obrigar qualquer cidadão a fazer o que não
for de sua própria vontade, incluindo-se contribuições financeiras
para beneficiar pessoas carentes eventualmente existentes na
comunidade (Ibid.).

Esse ideário político ainda predomina na sociedade estaduni-


dense. Uma evidência disso é a intransigente oposição do
Partido Republicano às iniciativas do governo Barack Obama na
tentativa de implementar, por meio do Obamacare, propostas
que garantam assistência médica para uma parcela significativa
de residentes nos EUA, indivíduos que não possuem um plano de
saúde privado − condição extremamente onerosa no mercado de
seguro-saúde daquele país. Estamos falando de uma população
que oscila em torno de 40 milhões de indivíduos, um enorme
contingente de pessoas que se encontra impedida de gozar dos
benefícios de acesso a atendimento médico, no país que detém
os melhores serviços sanitários do mundo.

Silva (1998), por sua vez, faz uma análise em “Da ética filosófica
à ética em saúde”3 sobre a crise da razão e as éticas aplicadas,
oferecendo especial destaque para a bioética e sua expressão
na saúde humana, argumentando que a nova disciplina seria
um instrumento essencial para responder questões atinentes à
relação entre ciência e o plano de valores humanos. Essa crise,
3. Capítulo do livro Iniciação à Bioética, publicado pelo Conselho Federal de Medicina
em 1998.

188 Bioética Clínica


segundo ele, teria sido provocada por conjunturas históricas
ligadas à superestimação do lucro em detrimento do sentimento
de solidariedade devido aos mais vulneráveis. É importante
recordar que, conforme os preceitos da ética kantiana, não se
poderia atribuir preço à dignidade humana. Para o autor, nada,
portanto, justificaria que uma pessoa pudesse sofrer, em sua vida
pessoal, condições iníquas ou degradantes, sobretudo na área
da saúde. Concluindo sua exposição, Silva (Ibid., p. 36) se dirige a
todos os que detêm responsabilidade na área sanitária: “É preciso
conhecer a realidade [de carências sociais] e as situações sobre
as quais se vai exercer o juízo ético, mas fazer com que esse juízo
traduza uma mera justificação do que existe é propriamente
renunciar a ética”.

Dessa forma, é possível perceber que a distância que separa o


pensamento do filósofo brasileiro do ideário defendido pelo
estadunidense Nozick é inversamente proporcional àquela que
o aproxima da ética do um-para-o-outro do filósofo francês
Emmanuel Lévinas (1993), cujo pensamento, de maneira breve,
apresentaremos mais adiante neste capítulo.

Hans Jonas (1995), filósofo alemão falecido em 1993, introduziu


a figura da heurística do temor para justificar a adoção de uma
atitude prudencial diante das incertezas morais geradas pelas
intervenções tecnocientíficas. O autor identificou a produção
como marco inicial do uso inadequado da tecnologia, e, como
marco posterior, o lançamento das bombas atômicas em Hiroshima
e Nagasaki. Jonas, em entrevista à revista Esprit de maio de 1991,
disse: “Ela [bomba atômica] pôs em marcha o pensamento em
direção a um novo tipo de questionamento, amadurecido pelo
perigo que representa para nós próprios o nosso poder, o poder
do homem sobre a natureza” (GREISCH, 1991, p. 12).

Mais do que a consciência de um apocalipse brusco, Jonas (op. cit.)


reconheceu a possibilidade de um apocalipse gradual, decorrente
do uso imprudente dos avanços tecnológicos. O autor ponderou
que, até o século XX, o alcance das prescrições éticas se restringia

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 189


unicamente ao âmbito das relações interpessoais. Era uma ética
antropocêntrica e voltada para um momento histórico específico.
A intervenção tecnocientífica, após o domínio da fissão nuclear,
mudou drasticamente essa singela realidade, submetendo toda
a natureza aos desígnios humanos, passível de ser alterada
radicalmente – o que, por si só, passou a exigir a criação de um
novo pacto de responsabilidade entre homem e natureza. Jonas
(Ibid.) conclui afirmando que essa nova proposição ética deveria
considerar a convivência harmônica entre o homem e a natureza
extra-humana. Com semelhante percepção, Morin e Kern (1995,
p. 67) assim se pronunciaram sobre a relação entre humanidade e
a vida em nosso planeta:

Os minúsculos humanos sobre a minúscula película de vida que


cobre um minúsculo planeta perdido num descomunal universo.
Mas, ao mesmo tempo, esse planeta é um mundo, a vida é um
universo pululante de bilhões e bilhões de indivíduos […] Nossa
árvore genealógica terrestre e nossa carteira de identidade
podem hoje finalmente ser conhecidas, ao término do quinto
século da era planetária. E, é justamente agora, no momento
em que as sociedades espalhadas sobre o globo se comunicam,
no momento em que se joga coletivamente o destino da
humanidade, que elas adquirem sentido para fazermos
reconhecer nossa pátria terrestre.

O fato é que a contabilidade econômica convencional


utilizada pelos especialistas valoriza o progresso técnico e
subestima a degradação ambiental, o que acaba por permitir a
implementação de políticas predatórias ao equilíbrio ecológico.
O sistema de avaliação das diferentes manifestações de vida
existentes no planeta é bastante precário, e sequer se tem ideia
do número de espécies de plantas e animais que se extinguem
a cada ano por ações humanas intempestivas. As intervenções
que provocam destruição ambiental e que foram introduzidas
nestas últimas décadas traduzem-se hoje por uma redução das
terras agriculturáveis e um incontrolável desequilíbrio ecológico.
Em decorrência desses agravos, são crescentes os gastos com
projetos de descontaminação de mananciais hídricos e com o

190 Bioética Clínica


tratamento de enfermidades como o câncer de pele, diferentes
formas de alergia, enfisema pulmonar, asma brônquica, entre
outras doenças respiratórias (SIQUEIRA, 1998). A incapacidade de
adequar uma tecnologia não agressiva à vida sensível do planeta
está modificando uma realidade de milhões de anos e gerando
destruição da camada de ozônio, assim como um insatisfatório
desenvolvimento humano, o que resulta em mais pobreza e
iniquidade social. Há, portanto, um vínculo entre a degradação
do meio ambiente e as injustiças sociais. A distância que separa
as nações ricas das pobres se amplia, e não existem indicadores
satisfatórios que apontem para a correção dessa triste realidade
(COMISIÓN MUNDIAL DEL MEDIO AMBIENTE Y DEL DESARROLLO,
1992). Os índices que indicam a longevidade dos japoneses se
aproximam dos 80 anos, enquanto os observados nos habitantes
da África subsaariana não alcançam 50 anos de vida.

Ocorre que as mudanças ora introduzidas no meio ambiente são


cumulativas, e os agentes responsáveis por essas transformações
não mais estarão presentes nos séculos vindouros para responder
por seus atos. As gerações futuras não delegaram poderes às atuais
para essas abstrusas decisões, tão somente colherão os frutos
amargos delas decorrentes. A maioria dos atuais governantes
não presenciará os efeitos mais graves das chuvas ácidas, do
aumento global da temperatura do planeta, da incontrolável
desertificação e da perda irreparável de sua biodiversidade. Em
recente manifestação pública, o presidente Obama alertou que a
atual geração de humanos é a primeira a sentir os efeitos nocivos
da degradação ambiental e, talvez, seja a última que possa adotar
medidas que salvem o planeta de um desastre de proporções
inimagináveis.

Estamos acostumados a conviver com problemas de complexidade


moral limitada, que pouco servem para nos habilitar a compreender
as inquietantes dimensões das incertezas éticas que ora se fazem
presentes. A tecnociência somente enxerga o preto e o branco,
enquanto a ética percebe o cinza e suas diferentes tonalidades.
Diante desses interrogantes, assim se manifestou Jonas (op. cit., p. 55):

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 191


Em consequência da escala inevitavelmente utópica da
técnica moderna, a salutar distância entre questões cotidianas
e questões extremas, entre ocasiões que exigem a vulgar
prudência e ocasiões que pedem por profunda sabedoria, está
reduzindo-se a passos largos […]. Se a nova natureza do nosso
agir requer uma nova ética de responsabilidade a longo prazo,
co-extensiva ao raio de alcance do nosso poder, requer também,
e em nome dessa mesma responsabilidade, uma nova espécie de
humildade. Uma humildade que não é igual a que antes existia,
ou seja, que já não o é em face da pequenez, mas antes em face da
excessiva magnitude do nosso poder, que se traduz pelo excesso
do nosso poder de agir […]. Em face das potencialidades para
– escatológicas dos nossos processos tecnológicos, a ignorância
das implicações últimas torna-se ela própria uma razão para que
se faça uso de comedimento responsável [em nossas ações].

O exercício da medicina e a responsabilidade ética


envolvida no ato de cuidar
Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas [usadas
que já têm a forma de nosso corpo e esquecer os nossos
caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares.
É o tempo da travessia e se não ousarmos fazê-la
teremos ficado para sempre à margem de nós mesmos.

Fernando Pessoa,
Livro do desassossego

Emmanule Lévinas, lituano de nascimento, estudou filosofia na


França, aprofundando-se no campo da fenomenologia com Husserl
e Heidegger. Incomodado com o racionalismo da modernidade
que privilegiava a exaltação do Eu, dedicou-se a refletir sobre a
importância do Outro, inspirando a corrente filosófica conhecida
como “ética da alteridade”. Lévinas (1993) rejeita a compreensão
do sujeito como uma mônada, e todo seu projeto filosófico deve
ser entendido como a busca por pensar a partir de uma abertura
que rompesse a estrutura monádica que a modernidade passou
a atribuir ao ser humano. Segundo o autor, somente a atitude do
um-para-o-outro ofereceria resposta satisfatória à inquietante

192 Bioética Clínica


questão apresentada no livro do Gênesis, quando Deus pergunta
a Caim sobre o paradeiro de seu irmão Abel, e dele recebe a
evasiva resposta: “Acaso sou guardião de meu irmão?” (BÍBLIA).
Lévinas entende que a cada um dos seres humanos é atribuída,
de maneira indelegável, a tarefa de ser responsável pelo Outro,
sobretudo àqueles socialmente mais vulneráveis. No entender
de Lévinas, a comunidade humana somente sobreviveria se
devotasse atenção à prática do incondicional acolhimento do
Outro que sofre. O filósofo é contundente ao afirmar que só há um
movimento possível na vida de qualquer pessoa, qual seja o de
dirigir-se para fora de si na busca de alcançar o Outro. Movimento
esse que exige uma generosidade radical, pois significa se
deslocar incondicionalmente ao encontro do Outro, sem nutrir
qualquer expectativa de recompensa pelo mérito dessa ação. Para
Lévinas (op. cit.), essa ação deve ser encarada como “uma obra
sem remuneração”, pois a alteridade seria a representação mais
cabal da própria ética. Ele também pondera que esse movimento
deveria buscar a superação de sua própria época, de seu próprio
ego, pois a rendição à epifania da face do Outro caracterizaria
um ofício não somente gratuito, mas que requereria de quem o
exercesse uma “oferta a fundo perdido”. Assim, Lévinas responde à
questão “de onde vem esse choque quando passo indiferente sob
o olhar do Outro?”: “a relação com o Outro questiona-me, esvazia-
me de mim mesmo e não cessa de apresentar-me possibilidades
sempre novas de atendê-Lo. Não, me sabia tão rico, mas não
tenho mais o direito de guardar coisa alguma [para mim]” (Ibid.,
itálicos nossos). Segundo ele, o Outro se manifestaria como um
ser interpelante, o rosto falaria e articularia um discurso primordial
que nos convoca para a liturgia da entrega incondicional. O
rosto do Outro se imporia sem que pudéssemos permanecer
impassíveis ao seu apelo, sem que pudéssemos, igualmente,
alegar irresponsabilidade pelo sofrimento que dele transparece.
Diante da exigência do Outro, o Eu perderia o direito de se manter
alheio. Completa o filósofo:

a epifania do absolutamente Outro é representada por seu


rosto que me interpela e [impõe-me] uma ordem [para atender]

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 193


sua nudez, sua indigência. Sua presença [por si só] consiste em
desordenar o próprio egoísmo do Eu. Assim, na relação com o
rosto [do Outro] delineia-se a retidão da orientação ética. (Ibid.,
1993, p. 56)

Oxalá os profissionais de saúde sejam receptivos à voz de Lévinas


e possam se orientar por ela para cuidar de seus pacientes.

Igualmente, a reflexão bioética se insere nesse roteiro de busca


pela excelência no exercício da medicina. No artigo “Bioethics:
science of survival”, Potter (1970) define a bioética como um
instrumento para ser utilizado com a finalidade de superar os
exíguos limites reflexivos proporcionados pelas disciplinas
acadêmicas, oferecendo aos pensadores novas possibilidades
de construções interdisciplinares que facilitem o nascimento de
uma ciência para a sobrevivência da espécie humana. Pode-se
perceber, portanto, plena sintonia entre as recomendações de
Jonas, Lévinas e Potter.

Nas ciências da saúde, há muito se propõe a necessidade de


humanizar o relacionamento entre médico e paciente. No século
XX, o clínico espanhol Pedro Lain Entralgo (1983, p. 433) já
ensinava que “o profissional que pretendesse exercer a medicina
como arte, deveria habilitar-se no saber de humanidades”. No
âmbito da tomada de decisões clínicas sempre prevaleceu a
assimetria entre o saber profissional e a passividade do enfermo
no acolhimento irrestrito às orientações sugeridas por aquele que
detinha o conhecimento técnico. Essa condição de assimetria
relacional ficou conhecida como “paternalismo médico” e se
manteve imutável até que os próprios pacientes, insatisfeitos com
a atenção que lhes era prestada, passaram a assumir a condição
de agentes autônomos, capazes de decisões sobre seus próprios
corpos. Tradicionalmente, por ocasião das discussões clínicas, só
havia espaço para a obediência às normas deontológicas, território
de preceitos morais definidos pela própria corporação médica
em seus códigos profissionais. Com um arcabouço bem definido
de regras − não passíveis de questionamentos −, os professores
apresentavam aos alunos regras de conduta médica a serem

194 Bioética Clínica


seguidas sem que fosse necessário levar em conta as opiniões dos
pacientes. Esse modelo de atitude, preso às normas, caracterizava
uma situação de imobilismo moral que transformava profissionais
e pacientes em reféns de ordenamentos deontológicos e
que obrigava, sobretudo os enfermos, a permanecerem
estacionados na incômoda condição de menoridade moral.
Nessas circunstâncias, não era infrequente que muitos estudantes
considerassem exercício inútil a discussão de casos clínicos que
envolvessem conflitos morais, argumentando que não haveria
justificativa plausível para fazê-lo em face da obrigatoriedade
da mais irrestrita obediência às normas contidas nos códigos
deontológicos vigentes. O modelo cartesiano-flexneriano de
ensino e o paternalismo médico se mostravam, portanto, como
instrumentos pouco adequados para capacitar estudantes para a
atitude de respeitar a autonomia do paciente a tomar decisões
frente a conflitos morais complexos que diziam respeito à sua
própria vida pessoal.

Se o caráter moral básico do estudante de medicina deve


ser considerado parcialmente estruturado mesmo antes de
ingressar na faculdade, é imperioso reconhecer, entretanto, que
significativa parcela de sua formação ética possa ser adquirida e
enriquecida durante o período de sua graduação acadêmica. O
modelo cartesiano dividiu a unidade complexa do ser humano
em partes cada vez menores do conhecimento e entregou às
inúmeras disciplinas autônomas a tarefa de construir o saber
médico. Como resultado, o período de aprendizado acadêmico
transformou-se em exercício obsessivo de acumular e empilhar
informações sem a preocupação de selecioná-las e organizá-las.
No entendimento de Morin (2001), a universidade está formando
profissionais com cabeça bem cheia, quando, contrariamente,
deveria prepará-los para serem dotados de cabeça bem feita, pois
mais importante que o acúmulo indiscriminado de informações
científicas, fundamental será organizá-las por meio de interações
com outras áreas do saber, de tal forma que o conhecimento
possa adquirir sentido. Nos primeiros anos da década de 1970,
André Hellegers (1971), primeiro diretor do Instituto Kennedy

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 195


de Bioética, afirmava que os problemas que se apresentariam
aos médicos, nos anos subsequentes, seriam cada vez mais
de natureza ética e menos de ordem técnica. O extraordinário
crescimento da medicina tecnológica foi desacompanhado de
imprescindível reflexão ética, o que levou Potter a sugerir critérios
sobre quando não utilizar toda tecnologia médica disponível em
tomada de decisões clínicas nos cuidados prestados a pacientes
acometidos por enfermidades terminais (POTTER, 1988).

Se, por outro lado, considerarmos a rotina imposta cotidianamente


no atendimento médico, concluiremos que os sintomas que
trazem o paciente para uma consulta carregam, invariavelmente,
significativa parcela de incertezas. Dessa maneira, os pacientes
passam a portadores de mensagens que precisam ser
adequadamente decifradas, obrigando o profissional que as ouve
a ser cuidadoso nas recomendações que fará ao paciente. Ademais,
existem suficientes evidências neurocientíficas a indicar que os
seres humanos diante de qualquer enfermidade, experimentam
alterações sensoriais que resultam de uma complexa interação
entre recepção, interpretação e representação de suas
inseguranças pessoais. Essa condição foi muito bem descrita por
Susan Sontag (1984) em seu livro A doença como metáfora, no
qual a autora relata o impacto de diferentes enfermidades na vida
das pessoas:

A doença é o lado escuro da vida, uma cidadania onerosa. Todos


que nascemos temos essa dupla cidadania, no reino da saúde e
no reino da doença. Embora todos gostaríamos de usar só o bom
passaporte, mais cedo ou mais tarde, cada um de nós é obrigado,
pelo menos por um tempo, a se identificar como cidadãos
daquele outro grupo.

Isso nos faz compreender melhor a importância de formar


profissionais que estejam bem preparados nas quatro áreas
essenciais de aprendizagem propostas pela Unesco, quais sejam:
aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver junto
e aprender a ser, melhor dizendo, não basta que os estudantes
detenham conhecimentos teóricos ou grandes habilidades

196 Bioética Clínica


técnicas, mas é necessário que saibam atender adequadamente as
pessoas que padecem de sofrimentos físicos, psicológicos, sociais
e espirituais (CENTRO INTERNACIONAL DE PESQUISAS E ESTUDOS
TRANSDISCIPLINARES, 1997). É necessário, portanto, reconhecer
a pertinência de Fernando Pessoa ao afirmar, em seus versos,
que há um momento em que se torna necessário abandonar as
roupas que de tão usadas já assumiram a forma de nossos corpos.
Ou seja, há um momento em que devemos esquecer os caminhos
que nos levam aos lugares de sempre e ousar na busca da outra
margem de nós mesmos. Assim, quem está cativo a um modelo
obsoleto do ensino da medicina precisa se libertar para alcançar o
Outro, conforme nos ensina Lévinas (op. cit.). Somente assim será
cumprido o preceito hipocrático de que “onde está presente o
amor ao homem estará presente também o amor à arte [médica]”
(CAIRUS, 2005, p. 211).

A convicção de alguns de que a ciência tem respostas para tudo


decorre de visão distorcida da realidade. É preciso estarmos atentos
para reconhecer que, com benefícios, os avanços tecnocientíficos
também impõem riscos. Em medicina, particularmente, riscos
e benefícios constituem variáveis que coexistem quando da
aplicação dos extraordinários progressos da propedêutica armada
e da terapêutica. Essencial é preservar sempre o espírito crítico,
conhecendo insensatas atitudes que possam conter os avanços
da biomedicina, e, simultaneamente, reconhecer como pouco
razoável cultivar um otimismo acrítico que ignore os riscos neles
contidos. Frequentemente somos dominados pelo fascínio da
tecnociência e temos a ilusão de que o acúmulo de conhecimentos
é suficiente para nos fazer felizes e para dominarmos os segredos
da vida. Precisamos estar atentos para a contundente crítica de
Nietzsche (2001, p. 277) ao cientificismo:

Vós sois seres frios, que vos sentis encouraçados contra a


paixão e a quimera. Bem que gostaríeis que a vossa ciência se
transformasse em adorno e objeto de orgulho! Afixais em vós
mesmos a etiqueta de realistas e dais a entender que o mundo é
verdadeiramente feito tal qual vos parece.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 197


Impedir o avanço da ciência é uma total insensatez, atitude inócua
e rigorosamente contra a essência da natureza humana, cuja
aspiração sempre será a de construir novas realidades. Entretanto,
é pouco razoável considerar, como propõem os pensadores
positivistas, que o homem da era tecnocientífica deve aplicar os
conhecimentos adquiridos sem qualquer tipo de controle social.
Contrariamente, Giovanni Berlinguer (2004, p. 35) pondera que “a
velocidade com que se passa da pesquisa pura para a aplicada é,
hoje, tão alta que a permanência, mesmo que por breve tempo,
de erros ou fraudes pode provocar catástrofes”. Se, de um lado,
temos os seguidores do preceito baconiano − que estabelece
que o simples fato de dominarmos o conhecimento é suficiente
para nos autorizar a empregá-lo da maneira que melhor nos
aprouver −, do outro podemos ouvir vozes mais prudentes, como
a de Potter. Resumindo os princípios da bioética, o autor afirma que
seu saber “é limitado, mas o combinarei com os conhecimentos
e opiniões de outros homens inteligentes, inspirados no sentido
ético, e provenientes de várias disciplinas, para ordenar minhas
convicções e ações” (POTTER, 1971, p. 184, tradução nossa).

Felizmente, entre o laissez-faire e a satanização da tecnociência nos


é oferecido o sensato caminho da prudência. O impressionante
crescimento da tecnologia médica foi sendo assimilado na
prática profissional de maneira inadequada, pois de método
complementar acabou assumindo a condição de protagonista
essencial na elaboração do diagnóstico médico. Atrofiou-se
enormemente a habilidade em colher anamneses elucidativas,
o exame físico detalhado se transformou em exercício cansativo
e, até mesmo, desnecessário diante do poder inesgotável
das informações fornecidas pelos equipamentos. A medicina
tecnológica alterou o roteiro na elaboração do diagnóstico
e, por consequência, também do procedimento terapêutico.
Originalmente, rica arte de relacionamento intersubjetivo, a
medicina foi reduzida a um pobre ofício de leitura de variáveis
fornecidas por equipamentos de tecnologia de ponta. Escutamos
sem ouvir, pois fomos treinados para subestimar as expressões da
subjetividade dos pacientes. As visitas às enfermarias, realizadas

198 Bioética Clínica


em muitos hospitais universitários, transformaram-se em uma
sequência monótona de leitura de uma interminável relação de
exames subsidiários (KANH, 1988). Do mesmo modo, diante do
desenvolvimento de pesquisas clínicas multicêntricas envolvendo
grande número de pacientes acompanhados por longos períodos,
criou-se a ilusão de que os resultados por elas obtidos deveriam
se tornar o único guia fiel para orientar as condutas terapêuticas
a serem adotadas por profissionais de saúde. Entretanto, assim
agindo, os médicos deixam de considerar que os resultados
apresentados por esses grandes trials não necessariamente
guardam relação com os casos concretos atendidos por eles
em suas rotinas clínicas diárias. É preciso considerar que esses
estudos nos revelam dados estatísticos referentes a uma amostra
de sujeitos de pesquisas espalhados por todo mundo e que a
simples transposição a contextos particulares das informações
deles advindos constitui grave equívoco que devem ser evitados
(BOBBIO, 2014).

Com relação ao uso inadequado de métodos de investigação


diagnóstica, Bernard Lown, um dos mais conceituados
cardiologistas do século XX, descreveu que, de um milhão de
cinecoronariografias realizadas em 1993 nos EUA, duzentas mil
foram normais; concluindo que “se as lições de meu mestre,
prof. Samuel Levine, fossem seguidas, poucos pacientes com
coronárias normais teriam sido submetidos a tal estudo, invasivo
e dispendioso” (LOWN, 1996, p. 23).

Outro território em que a tecnologia, ao lado de importantes


contribuições para salvar vidas, acabou por induzir a adoção de
condutas inadequadas, foi o das Unidades de Terapia Intensiva
(UTI). É desnecessário ressaltar os benefícios proporcionados
pelas novas metodologias diagnósticas e terapêuticas, já que
incontáveis foram as vidas salvas em situações críticas, tal como
na recuperação de doentes com infarto agudo do miocárdio
e/ou enfermidades com graves distúrbios hemodinâmicos,
cuja recuperação somente pôde ser alcançada com o uso de
engenhosos procedimentos terapêuticos. Ocorre que nossas UTI

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 199


passaram a receber, também, pacientes com doenças crônicas
incuráveis que, embora apresentando os mais diversos agravos
clínicos, foram contemplados com os mesmos cuidados oferecidos
aos agudamente enfermos. Se para estes com frequência era
alcançada uma recuperação satisfatória, para os doentes crônicos
pouco se oferecia, além de uma sobrevivência precária, muitas
vezes limitada a uma condição de vida vegetativa. Até que
ponto deve se considerar pertinente introduzir procedimentos
tecnológicos de suporte vital em pacientes com enfermidades
incuráveis? Os cursos de medicina tradicionais são pródigos em
ensinar aos estudantes muito sobre tecnologia de ponta e pouco
sobre o significado transcendente da vida humana (SIQUEIRA,
2005). Perdemos a capacidade para compreender a dimensão
do ensinamento contido no antigo aforismo “à medicina cabe
curar às vezes, aliviar muito frequentemente e confortar sempre”.
Os médicos são educados para interpretar a vida humana como
fenômeno estritamente biológico e se valem de toda a tecnologia
biomédica para perseguir essa vã utopia. A obsessão de manter
a vida biológica a qualquer custo os conduz à obstinação
terapêutica. Temos, portanto, um grave dilema ético que é
cotidianamente apresentado aos médicos intensivistas, ao serem
obrigados a tomar decisões sobre em que circunstâncias clínicas
se impõe não utilizar toda a tecnologia disponível nas UTI.

Considerações finais
Enfatizamos mais uma vez ser desnecessário apontar os benefí-
cios oferecidos à humanidade em decorrência dos avanços tec-
nológicos da medicina moderna. Basta recordar as precisas infor-
mações obtidas pelos tomógrafos, pela ressonância magnética,
pela medicina nuclear, as contribuições da ultrassonografia como
método diagnóstico, o decisivo valor da mamografia na detecção
precoce do câncer de mama, as minuciosas informações obtidas
pela endoscopia digestiva e pela cinecoronariografia. Do ponto
de vista terapêutico, poderiam ser lembradas as cirurgias realiza-
das por intermédio de videolaparoscopia, as microcirurgias e os

200 Bioética Clínica


procedimentos cirúrgicos minimamente invasivos, efetuados com
o auxílio da robótica, condições que tornaram quase inexistente a
distância entre a realidade e a ficção científica. Dispensável, por-
tanto, exaltar as contribuições da tecnologia biomédica.

Entretanto, torna-se imprescindível refletir sobre o uso adequado


de todo esse custoso aparato. Consideramos oportuno recordar
as lúcidas afirmações do prof. José Paranaguá de Santana que,
por ocasião do XXXVIII Congresso Brasileiro de Educação Médica,
realizado em setembro de 2000, assim se pronunciou:

O avanço científico e tecnológico realizado nos marcos da


concepção flexneriana, especialmente na segunda metade
do século XX, é uma evidência que dispensa argumentação
comprobatória, por outro lado, e também sobre esse aspecto, não
pairam discordâncias, tem-se observado, mais que estagnação,
franca deterioração dos padrões éticos no curso de prestação de
serviços médicos. (SANTANA, 2000)

Há, pois, ampla concordância em condenar as ações que resultaram


na formação excessivamente técnica e pobre em conteúdo
humanístico do profissional médico. Precisamos resgatar a original
confiança que sempre permeou a relação médico-paciente, pois
somente por meio dela poderemos compreender o ser humano
enfermo em todas suas ricas e complexas dimensões.

Em suma, o desafio que temos pela frente é o de continuar


exercendo a medicina como técnica refém de um arsenal
crescente de equipamentos ou o de resgatar a acurácia clínica,
a reflexão e o exercício crítico na indicação dos procedimentos
terapêuticos. Não podemos esquecer, igualmente, que os avanços
da tecnociência já seduzem enorme contingente de pacientes
que, com muita frequência, procura atendimento médico
apenas para conseguir realizar o sonho de submeter-se aos
últimos procedimentos inventados pela tecnologia biomédica.
Cresce a confiança depositada nas informações fornecidas
pelos equipamentos na mesma proporção em que decresce
o reconhecimento da competência pessoal do médico para

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 201


formular diagnósticos clínicos sensatos. Será que assistiremos
passíveis a descaracterização do exercício da medicina como arte
e aceitaremos que os médicos assumam a condição de dóceis
marionetes manipuladas pelo fundamentalismo tecnocientífico
ardilosamente patrocinado pelas grandes empresas de
equipamentos médicos e de produtos farmacêuticos?

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204 Bioética Clínica


Conflitos éticos presentes no
início da vida

Mário Antônio Sanches1


Evandro Arlindo de Melo2

Introdução
Cada detalhe do amplo portfólio que compõe a realidade pode
ser compreendido de múltiplas maneiras, talvez porque o detalhe
é sempre mais do que ele mesmo e, certamente, também porque
múltiplos são os olhares que o contemplam. Enfatizando a
perspectiva cultural, o antropólogo Marshall Sahlins (1979, p. 78)
afirma que “o olho que vê é o órgão da tradição”3. Assim, no diálogo
entre as diferentes ciências − próprio da bioética −, podemos
também afirmar que o “o olho que vê é o órgão da academia”.

As ciências são fortemente identificadas por seu método e, assim,


cada detalhe da existência é submetido, perscrutado, investigado,
analisado de diferentes ângulos, de modo que ele se revela
diferente para cada olhar. É própria do olhar acadêmico a convicção
de que alguma objetividade é possível, e quem estuda bioética
participa da crença de que tal objetividade virá como resultado
das múltiplas “trocas de olhares” (mantendo seu duplo sentido:
“trocar olhar” com os parceiros da academia – reconhecendo neles
legitimidade de interlocução; e “trocar de olhar”, num exercício
honesto de enxergar na perspectiva do outro.

Essa sintética reflexão hermenêutica se faz necessária em bioética,


principalmente quando abordamos a questão do início da vida.
1. Pós-doutor em Bioética pela Universidad Pontificia Comillas (Madri, Espanha), doutor em
Teologia pela Escola Superior de Teologia (EST), professor titular do Programa de Pós-gra-
duação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), e coordenador
de mestrado em Bioética na PUCPR.
2. Doutorando e mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).
3. Frase que Sahlins atribui a Franz Boas.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 207


As diferentes escolas de bioética se justificam pelos diferentes
olhares que lançam sobre a vida em si mesma e, por isso, essas
diferenças vão surgir quando se busca identificar seu início. Se
a definição de vida escapa a nossa compreensão, pode escapar
de nós também a percepção de que estamos ou não diante dela.
Desse modo, faremos aqui o esforço de recolher os diferentes
olhares – principalmente os históricos, filosóficos e científicos –
sobre o início da vida, sem esconder o ângulo de nossa visão e
buscando respeitar, situar e questionar, com honestidade, outros
olhares. Isso reafirmando nossa crença básica: há pontos em que
a objetividade e o consenso são possíveis, e há aspectos que nos
provocam a manter o diálogo na expectativa de um consenso
futuro, ou buscar uma postura que exprima a defesa do bem
comum, a vida.

Eis a questão: quando se inicia a vida de um novo ser humano? De


um modo geral, essa pergunta se refere ao momento de início de
um novo ser humano, e não é uma pergunta retórica ou teórica,
pois a resposta tem implicações enormes, tanto na esfera moral
quanto na econômica, tanto no âmbito legal quanto no científico.
A relevância dessa pergunta está historicamente marcada por uma
busca pela resposta necessária para orientar tomadas de decisões
práticas – relevante no contexto deste livro sobre bioética clínica.

Ao longo da história, teóricos buscavam orientações para a


avaliação moral e jurídica sobre o aborto. Evidentemente, a
questão do aborto continua vinculada à problemática do início da
vida − e não será abordada neste capítulo, principalmente porque
esse tema traz muitos outros aspectos para o debate4. No final
do século XX, a questão do início da vida foi recolocada, pois três
novas situações (viabilizadas pelo desenvolvimento científico)
reclamam resposta urgente: o surgimento da contracepção
com os métodos antinidatórios, o surgimento das técnicas de
4. Sobre o tema “aborto”, sugerimos os artigos “O aborto numa perspectiva pastoral”, de
Mário Antônio Sanches (REB: Revista Eclesiástica Brasileira, fasc. 285, jan. 2012), e “Aborto
numa Igreja mestra e mãe: na perspectiva de agentes de pastoral”, de Mário Antônio San-
ches, Castorina Casagrande e Eva Gomes (Revista Atualidade Teológica, v. 48, 2014).

208 Bioética Clínica


reprodução assistida, e a importância atribuída às células-tronco
embrionárias.

No âmbito da bioética clínica, a indagação sobre o início da


vida se faz necessária, pois inúmeros são os conflitos éticos que
estão relacionados a essa problemática. Para alguns conflitos, a
resposta dada poderá ser suficiente; para outros, no entanto,
as nossas convicções a esse respeito apenas compõem um dos
aspectos da realidade a ser considerado. Em alguns momentos,
o consenso entre todos os envolvidos pode ser possível; em
outros, os profissionais de saúde deverão considerar os valores
dos familiares, que nem sempre podem estar em sintonia com os
seus. Estaremos, portanto, atentos na busca de relacionar o tema
com questões que ocorrem rotineiramente em todos os serviços
de saúde, que amparam e cuidam da vida nos seus primeiros
momentos.

Início da vida: velha problemática


A polêmica sobre a questão de quando se inicia a vida de um
novo ser humano marcou o início do século XXI, principalmente
no Brasil. Contudo, essa é uma indagação que remonta a tempos
antigos, cuja história precisa ser aqui brevemente contada. Toda
vez que percorremos o caminho histórico do desenvolvimento de
uma ideia, alguns cuidados são necessários para não incorrermos
em uma análise anacrônica. No caso aqui estudado, precisamos
perceber que a temática fora abordada em uma intrincada rede
de pensadores que incluíam filósofos, teólogos, juristas, cientistas
e autoridades políticas e eclesiásticas, que abordavam o tema sem
a separação de campos do conhecimento como são definidos
nos nossos dias. Muitos desses pensadores, como Aristóteles,
desenvolveram trabalhos de referência em múltiplas áreas do
saber. Outro aspecto necessário é perceber que cada pensador
é filho de seu tempo e o diálogo atual em bioética necessita ser
feito com honestidade, para não assumir posturas arrogantes
e depreciativas em relação a pensadores do passado devido as

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 209


suas posições científicas. É inútil contrapor a ciência do século
XXI à filosofia medieval ou vice-versa. Nessa área, por exemplo,
o teólogo dos nossos tempos precisa estar atento aos dados da
biologia atual e, assim, cada área de estudo precisa ficar atenta ao
fato de que a outra também se desenvolveu.

Sobre o tema do início da vida foram propostas duas teorias5,


uma relacionada com Aristóteles e a outra com Hipócrates, dois
filósofos indispensáveis no estudo das questões biológicas e da
medicina.

Estudiosos do assunto, como Javier Gafo (1979), apontam que


Aristóteles (384-322 a.C.) é dependente da embriologia do seu
tempo ao descrever o início da vida humana e o faz a partir de
sua concepção filosófica hilemórfica, ou seja, que cada objeto ou
ser vivo é composto de matéria e forma. Desse modo, o ser huma-
no só poderia ter forma humana na medida em que tem matéria
correspondente. Sua embriologia se dá pela percepção de que o
sangue menstrual é a base em que o sêmen faz gerar o embrião,
como a ação do coalho sobre o leite. Compreendia-se que esse
processo ocorria de modo muito lento, sendo que no início não
haveria matéria suficiente para sustentar a forma humana. Com-
preendendo a alma como a forma do ser humano, passou-se a de-
fender que o embrião só a “recebia” aos 40 dias (se fosse homem),
e aos 90 (se fosse mulher), marcando o preconceito contra o sexo
feminino.

O embrião possui desde o princípio uma tríplice alma em potência


de modo que “o feto teria, sucessivamente, uma alma vegetativa,
uma alma sensitiva, e por fim uma alma racional, exclusivamente
humana” (PAULA, 2007, p. 63). Surge assim, a teoria chamada
de “animação tardia” ou “formação tardia”. Essa teoria, por estar
amparada na figura de autoridade de Aristóteles, teve muitos
seguidores − como os médicos Galeno e Fídias, e teólogos
como Agostinho e Tomás de Aquino − e, portanto, predominou
no pensamento ocidental até o final do século XVIII, quando foi
5. Cf. Sanches, Vieira e Melo (2012).

210 Bioética Clínica


superada pela consolidação da embriologia moderna. Essa escola
aceitava que há “um espaço de tempo em que o embrião já existe,
porém no qual não seria plenamente humano, por carecer de
alma racional” (GAFO, op. cit., p. 57, tradução nossa).

Hipócrates (460-370 a.C.), por sua vez, defendia que “o novo ser
surge da fusão do sêmen masculino com o sêmen feminino”
(Ibid., p. 60). Essa posição teve menos seguidores, mas foi apoiada
pelos epicuristas e pensadores da Escola de Alexandria. Segundo
essa teoria, o feto, desde o início, já está “animado” ou formado
− e por isso foi chamada de “teoria da animação imediata”. Essa
tese também foi apoiada por alguns pensadores cristãos, que
defendiam que “o embrião humano recebe diretamente de Deus
sua alma racional no mesmo momento da concepção” (Loc. cit.).

Assim, os pensadores se dividiam na defesa de uma ou outra


tese. No cristianismo, o debate tinha muita repercussão por
causa das suas consequências práticas sobre a condenação do
aborto. A partir da Idade Média, a teologia de Tomás de Aquino
se tornou dominante na Igreja, fazendo que a tese da animação
tardia continuasse sendo a principal. Como consequência,
podemos dizer que na Igreja o aborto sempre foi tratado com
gravidade, ou seja, tirar a vida humana em qualquer período de
desenvolvimento era considerado pecado grave. Somente depois
do aparecimento da alma racional, o aborto foi qualificado como
crime (LEONE, 2007, p. 52-53).

Na Idade Moderna se inicia uma retomada nos estudos a respeito


do início da vida, de modo que as embriologias herdadas da
antiguidade passam a ser revistas e questionadas, e os maiores
debates se dão entre diferentes teorias − como os que aceitavam
o preformismo e a epigênese. Nesse período, o desenvolvimento
da ciência e a construção do microscópio revelaram a existência
dos gametas. O preformismo defendia que no gameta havia uma
pessoa em miniatura e, assim, cada novo ser humano é o simples
resultado do crescimento de um embrião pré-formado (RAMOS,
2006, p. 16). A epigênese defendia que a formação do indivíduo

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 211


ocorreria a partir de algo amplo que ganha novas estruturas
e que não existia qualquer esboço da futura organização
morfológica do indivíduo (resultado da união do espermatozoide
e do oócito). A epigênese se tornou, então, o primeiro passo em
direção à biologia moderna, que supera a embriologia da época,
quebrando a concepção definitiva da pré-formação na semente
ou nos fragmentos seminais. No final do século XVIII, com as
contribuições do embriologista estônio Karl Enrst von Baer (1792-
1876)6, a biologia moderna supera de vez as teorias anteriores
da embriologia, desvendando claramente a fertilização como o
processo que promove o início da vida humana.

À luz desse breve relato histórico, somos convidados a nos tornar


mais cautelosos e tolerantes, pois certamente todas as áreas
do conhecimento – nas diversas ciências – que pesquisam a
respeito do início da vida ainda podem se desenvolver e provocar
revoluções surpreendentes.

Início da vida: diferentes indagações,


diferentes respostas.
O debate que assistimos no Brasil na primeira década do nosso
século – amplamente veiculado por ocasião da proposição da
Lei de Biossegurança – mostrou-se controvertido e infrutífero,
pois os diferentes setores envolvidos (religiosos, científicos,
biotecnológicos) formulavam a pergunta ao seu modo e, portanto,
encontrava respostas diferentes. Para uma abordagem ampla da
questão precisamos refletir sobre as diferentes maneiras de como
a pergunta sobre o início da vida fora feita. Eis algumas das mais
importantes maneiras de formular a questão: 1) Quando se inicia
o processo biológico que dá origem a um ser humano? 2) Quando
se inicia a formação de um novo organismo da espécie humana?
3) Quando o novo embrião pode ser considerado um indivíduo?
4) Quando o novo ser humano é senciente? 5) Quando a vida do

6. Baer descobriu, em 1827, óvulos nos mamíferos (SANCHES; VIEIRA; MELO, 2012).

212 Bioética Clínica


novo ser humano é viável? 6) Quando um novo ser humano pode
ser considerado uma pessoa?

O modo como formulamos as perguntas já está marcado


pelo nosso modo de abordar a problemática, pois em muitas
das indagações que fizemos há a expressão “ser humano”.
Metodologicamente compreendemos que não há boa reflexão
ética a partir de equívocos científicos, por isso definimos, como
ponto de partida, que um “ser” é “humano” na medida em que
possa ser identificado biologicamente como pertencente à
espécie Homo sapiens. A partir desse ponto podemos analisar o
modo como cada indagação foi feita.

Quando se inicia o processo biológico que dá origem a


um ser humano?
A indagação assim formulada exige uma resposta difusa, que
pode ser imprecisa, mas nos possibilita colocar algumas questões
importantes para o debate. A compreensão do início da vida como
“processo” já revela que a indagação foi feita a partir do olhar da
biologia. Aqui é relevante retomar a expressão “o olho que vê é
órgão da academia”.

Parte da filosofia clássica foi influenciada pelo grego Parmênides


(530-460 a.C.), que insistia que “o ser é e não pode não ser, o
não ser não é e não pode ser” (apud PAVIANI, 2001, p. 20). Uma
leitura superficial dessa tese, usualmente chamada de “princípio
da contradição”, pode levar as pessoas a buscarem o instante
em que algo passe do “nada” ao “ser”. Esse olhar filosófico busca
sempre a essência das coisas e espera encontrar o momento em
que o “ser” surge. Também o jurista busca definir esse “instante”
e o faz de modo positivo, constituindo tal momento a partir de
uma norma externa.

O biólogo, por sua vez, está diante de uma realidade interna e


dinâmica, e empiricamente visualiza que uma célula se transforma
em duas, um ser se divide e se multiplica, numa transformação

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 213


contínua, em processo. Reconhecer a realidade biológica como
processo – cremos que estamos diante de um dado objetivo da
realidade – nos leva a uma conclusão que, se for honesta, deixará
de buscar o “exato instante” do início da vida de um novo ser
humano.

A própria fecundação é um processo que dura cerca de 24 horas e


se inicia quando o espermatozoide penetra entre a zona pelúcida
e a membrana plasmática do oócito, “e é então que ocorre a
singamia, ou seja, o mergulho do espermatozoide no oócito
sob a força propulsora dos microfilos e das proteínas” (SERRA;
COLOMBO, 2007, p. 178) e se conclui com a fusão dos dois
pró-núcleos, dando lugar ao oócito fecundado. Esse processo
pode ser assim descrito:

Depois da penetração do espermatozoide no oócito – fatores


citoplasmáticos parecem controlar o crescimento dos pró-
núcleos feminino e masculino. Ocorre a replicação do DNA nos
pró-núcleos em desenvolvimento ao aproximarem um do outro.
Quando os pró-núcleos masculino e feminino entram em contato
suas membranas se rompem e os cromossomos se misturam.
Rapidamente os cromossomos da mãe e do pai se organizam
em torno de um fuso mitótico, preparando-se para uma divisão
mitótica comum. Neste momento pode se dizer que o processo
de fertilização está concluído e o ovo fertilizado é chamado de
zigoto. (GARCÍA; FERNANDEZ, 2001, p. 25)

O olhar do biólogo nos ajuda a ver a realidade como processo,


mas ele pode também nos confundir ao não perceber que os
processos que ocorrem podem ser diferentes. Desse modo, ao
responder à indagação acima, notam-se posições que insistem
que não há como definir o início da vida de novo ser humano,
pois os gametas já estão vivos e a vida se torna assim um
processo continuado. Essa realidade biológica pode conduzir ao
vitalismo que atribui igual valor ao gameta, ao zigoto e a todas
as células vivas. Nesse momento, a compreensão dos processos
biológicos precisa ser diferenciada, pois o processo que faz um
organismo crescer não pode ser confundido com o processo que

214 Bioética Clínica


o origina. Comparar um gameta com um zigoto é, antes de tudo,
uma péssima ciência, pois o gameta é célula de um organismo
enquanto o zigoto é um novo organismo. Igualar essas duas
realidades causa mais confusão do que esclarecimento sobre a
questão estudada, além do mais, não cremos estarmos diante de
um problema ético quando descartamos “células vivas” do nosso
corpo, o que ocorre rotineiramente por ocasião de um banho,
por doação de sangue e muitas outras situações. Não podemos
tratar parte de um organismo com o mesmo valor que tratamos o
organismo em si mesmo.

No contexto clínico é muito relevante que o profissional de saúde


tenha em mente o desenvolvimento de cada novo ser como
processo em que as etapas não são estanques, nem determinadas.
Seria interessante fazer parte do planejamento familiar – quer
seja por processo natural, reprodução assistida ou adoção – a
consciência de que ser pai ou mãe é estar disposto a se envolver
em um projeto aberto:

Destacamos que todos os projetos de parentalidade –


independentemente do modo como venham a ocorrer – precisam
ser compreendidos como projetos abertos para a novidade,
com uma boa porcentagem de imprevisibilidade. Gerar filhos é
gerar novidades, novidades estonteantes em muitos sentidos.
Primeiramente porque se trata de gerar vida, e ela não se submete
aos nossos planos facilmente. (SANCHES, 2013, p. 49)

É relevante que o profissional de saúde supere a tentação do


reducionismo. Quando uma clínica de reprodução assistida
oferece, como parte do serviço, o sequenciamento genético de
embriões, coloca-se perigosamente à beira do reducionismo
genético, passando aos clientes a falsa segurança de que se
um embrião é “perfeito” do ponto de vista genético, ele será
um bebê também “perfeito”. Fica relegado a segundo plano o
processo do desenvolvimento embriológico, que está sujeito
a muitos acidentes biológicos e ambientais, que pode causar
más-formações de diferentes tipos.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 215


Quando se inicia a formação de um novo organismo
da espécie humana?
Esta pergunta também reclama uma resposta específica e é dada
pelo próprio desenvolvimento da biologia moderna, sendo uma
resposta de consenso científico, enquanto não houver uma nova
revolução na embriologia. O complexo processo da fecundação
gera como resultado um zigoto que contém os cromossomos,
com os genes, que derivam do pai e da mãe. Para Hernández
(2008, p. 43, tradução nossa), “esta célula totipotencial de grande
especificação constitui o início de todos os seres humanos como
indivíduos únicos”. Após a formação do zigoto, inicia-se a clivagem,
que consiste em repetidas divisões do embrião, resultando
em um rápido aumento do número de células. A clivagem
normalmente ocorre enquanto o embrião atravessa a tuba
uterina, rumo ao útero. Não cremos ser necessário descrever aqui
as etapas do desenvolvimento embrionário – de zigoto à morola
e ao blastocisto –, mas fica evidente que a clivagem indica que
o embrião está vivo, se cessar a clivagem é porque o embrião
morreu. Por volta de setenta horas, após o início da fecundação, o
novo ser se constituirá de uma dezena de células, os blatômeros.
No estágio pré-implantatório, o blastocisto tem cerca de 100
células. Essa ida do zigoto ao útero é, assim, descrita por García e
Fernández (op. cit., p. 31):

Imediatamente após a fertilização, o zigoto sofre uma mudança


pronunciada em seu metabolismo e inicia vários dias de
clivagem, durante os quais o embrião ainda contido dentro
da zona pelúcida é transportado através da tuba uterina para
dentro do útero. Aproximadamente 6 dias mais tarde, o embrião
se prende ao revestimento do útero.

O especialista em embriologia poderá (com um eucariótipo)


analisar um blastômero e identificar a que espécie esse
determinado embrião pertence. Sendo um embrião humano,
ele poderá dizer que tal embrião tem as características genéticas
próprias de um ser pertencente à espécie Homo sapiens sapiens,
para ser mais preciso.

216 Bioética Clínica


Sem esse conceito claro de que cada embrião humano é
um organismo vivo e pertencente a nossa espécie, muitos
procedimentos utilizados nas clínicas de reprodução assistida não
teriam sentido, como o diagnóstico genético pré-implantacional
(PGD), realizado usualmente antes do quarto dia. É uma biópsia
que visa a emitir um diagnóstico sobre um indivíduo. Caso a vida
ainda não tivesse se iniciado, o diagnóstico seria impossível, e
se o embrião não tivesse identidade já bem definida, qualquer
diagnóstico seria inútil.

Nesse ponto houve muita discussão inútil ao redor do debate


sobre a Lei de Biossegurança, mas o que a biologia nos diz é isto:
não sabemos exatamente o momento em que se iniciou a vida
desse organismo, mas que, iniciada a clivagem, estamos diante
de um organismo vivo pertencente à espécie humana. Não
esperamos que o biólogo saia do laboratório com respostas a
respeito da dignidade desse novo organismo, que valor ele tem,
se é pessoa ou não, muito menos se esse organismo precisa de
proteção especial do Estado. Essas respostas não serão dadas pela
biologia. Por outro lado, negar que o embrião esteja vivo e seja
um organismo da espécie humana é desprezar todo o avanço da
biologia moderna, que enterrou definitivamente a embriologia
aristotélica.

Quando o novo embrião pode ser considerado


um indivíduo?
Essa indagação é, sem dúvida, marcada por diversos olhares −
legislativo, jurídico e filosófico −, mas se afasta bastante do olhar
da biologia, embora se construa ao redor de dúvidas razoáveis
suscitadas por dois fenômenos observados no desenvolvimento
embrionário: 1) alta percentagem de embriões que não chega à
fase de blastocisto e, mesmo no processo natural, não chegam a
uma nidação bem-sucedida, mesmo porque, desde os anos de
1970, na área da bioética já se reconhecia que a alta mortalidade
embrionária apresenta uma dificuldade muito grande para o
reconhecimento de uma vida humana plena desde a fecundação

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 217


(ZALBA, 1972 apud GAFO, 1979, p. 174); e 2) A possibilidade de o
embrião se dividir, como a formação de gêmeos monozigóticos,
que se dá usualmente até o fim da segunda semana pós-
-fecundação. Essas possibilidades no desenvolvimento do embrião
são de fato inquietantes e talvez só possam ser plenamente
explicadas por futuras descobertas científicas.

Esses dados biológicos têm sido utilizados como base para


legislações (como a britânica) para permitir a manipulação do
embrião antes dessa data. Nesse contexto, surgiu o termo
“pré-embrião”, atualmente não mais utilizado. Tal posição
descaracteriza o embrião como tendo vida humana propriamente
dita, ou melhor, não aceita que o embrião até essa data seja
considerado um indivíduo da espécie humana, visto que ele pode
ainda se dividir. É curioso que esse argumento, com base nos
processos biológicos, não é estritamente da biologia, pois evoca o
conceito filosófico de “indivíduo”.

É importante lembrar que ser “indivíduo” significa ter uma


identidade própria a qual não se confunde com a de outros
indivíduos. Nesse sentido, o conceito se aplica ao embrião, que é
um organismo em si mesmo e não mais células dos progenitores.
Castro (2008, p. 106, tradução nossa, grifos do autor) aponta que
isto não significa indivisibilidade: “quando se fala de indivíduo
como indivisum in se, quere-se significar a unidade interna e não
a inidivisibilidade”. A base da reflexão aqui é a própria biologia,
pois, “nos seres vivos acontece que toda célula é indivídua,
pelo mesmo conceito de célula, toda célula está separada de
outras quaisquer células em tecido pela membrana plasmática
e, sem dúvida, toda célula é divisível […]”. Velázquez (2003, p.
56, tradução nossa) indica outros elementos que tornam difícil
concluir que o embrião é indivíduo apenas após o 13º dia: “além
da questão dos gêmeos, há ao menos mais dois fenômenos que
questionam a suposta e irreversível individualidade do embrião
mais novo com posterioridade à segunda semana depois da
fertilização: a formação de quimeras e a formação de siameses”.

218 Bioética Clínica


Desse modo, deste ponto de vista é controverso alegar que o
embrião, antes da segunda semana, tenha menor valor por não ser
ainda um indivíduo. Todavia o fato de que uma alta percentagem
de embriões morre naturalmente nos primeiros dias de vida – quer
seja em laboratório, quer seja no corpo materno – honestamente
nos coloca em uma posição de muita cautela ao afirmar que todo
embrião tem igual valor, ou que o valor de embrião tem o mesmo
valor do feto. Do ponto de vista de aconselhamento e orientação,
diante desse quadro, é extremamente relevante distinguir a
questão do mal natural e o mal moral.

É recorrente depararmos com pessoas que sofrem e se angustiam


diante de um aborto espontâneo, que pode ocorrer após uma
gravidez por processo natural ou após a transferência de embriões
nos casos de reprodução assistida. Esse sofrimento ocorre quando
a gravidez é desejada e a pessoa se vê diante da frustração de um
projeto de parentalidade. No entanto, é fundamental situar tal
sofrimento no contexto da vulnerabilidade própria de todo ser
humano, pois decorre de um mal natural, e não transformar tal
sofrimento em problema moral, que busca responsabilizar alguém
pelo ocorrido. Portanto, tratar a perda natural de embriões, ou os
abortos espontâneos, como aquilo que realmente são – eventos
naturais – pode ajudar as pessoas envolvidas a lidarem com tal
situação, sem acrescentar sofrimentos desnecessários a esses
eventos, muitas vezes já bastante estressantes e angustiantes.

Por outro lado, é necessário muito cuidado diante do seguinte


raciocínio, que temos visto em bioética: a morte de alguns
embriões nos primeiros dias é um fato natural, a seleção
embrionária equivale à morte de embriões nos primeiros
dias, logo, a seleção de embriões pode ser equiparada ao fato
natural de que alguns embriões morrem nos primeiros dias.
Evidentemente que esse raciocínio é falso, por lógica interna e,
também, pelo fato de que não há como saber se os embriões
descartados pela seleção embrionária seriam os mesmos que
iriam morrer naturalmente.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 219


Quando o novo ser humano é senciente?
Esta indagação tem sido recorrente nesse debate, mas a rigor
não se trata mais de uma pergunta sobre o “início da vida”, mas
a respeito de quando se inicia no embrião a sensibilidade à dor.
Relacionada com essa questão, indaga-se a respeito de quando se
inicia no embrião a formação do córtex cerebral. Essas questões
são relevantes, pois a capacidade de sentir dor e a atividade
encefálica são importantes para definir a eticidade ou não de
muitos procedimentos, principalmente relacionados ao fim da
vida humana, mas também os que envolvem outros animais
sencientes.

Desde a década de 1970 se discute em bioética se o critério da


morte cerebral, usado para justificar alguns procedimentos no
fim da vida de uma pessoa, poderia ser comparado à ausência
do cérebro no embrião, para justificar procedimentos que
inviabilizam a vida do mesmo ou até mesmo como critério de
“início da vida” (GAFO, op. cit., p. 140). Evidentemente que usar a
formação do cérebro como critério para definir o início do embrião
não é correto cientificamente, pois o embrião precisa estar vivo e
já em boa fase de desenvolvimento para criar as condições para a
formação do cérebro. Todavia o argumento pode ser usado como
critério jurídico, pois há um maior compromisso do Estado em
não submeter os cidadãos à tortura e sofrimentos deliberados. A
dificuldade sempre será definir o momento do início da formação
cerebral, pois também estamos diante de um processo, uma vez
que o sistema nervoso humano começa a se desenvolver por
volta dos 17 dias, enquanto a maturidade do cérebro só se realiza
aproximadamente aos 18 anos (Ibid., p. 172).

É o sentimento humano diante das pessoas que sentem dor –


principalmente quando essa dor se trata de um filho ou uma filha
– que leva as pessoas a buscarem uma possível solução no quadro
que usualmente se chama de “bebê remédio”. Trata-se de gerar
um bebê (um novo filho ou filha) com o propósito de fornecer
células compatíveis para o tratamento de uma criança enferma.

220 Bioética Clínica


Certamente essa decisão é tomada no contexto de uma situação
extremamente dolorosa de ver um filho ou filha padecendo de
enfermidade sem outra possibilidade de tratamento.

A imprensa tem noticiado casos em que vários embriões são


fertilizados, os quais são submetidos ao PGD para selecionar o
embrião compatível que será transferido para o útero materno
com expectativa do nascimento de um bebê que poderá ajudar no
tratamento do irmão ou irmã enfermo. Os embriões incompatíveis
são eliminados ou criopreservados, com finalidade indefinida.
Esse quadro é por si mesmo bastante doloroso, mas é necessário
muita cautela: é justo descartar alguns embriões pelo simples fato
de não serem compatíveis com a criança a ser tratada? O novo
bebê que nasce não estaria sendo instrumentalizado? Sua vinda
ao mundo seria apenas um meio para tratar o irmão ou a irmã? É
necessário lembrar que cada criança tem o direito de ser amada e
desejada por si mesma.

Quando a vida do novo ser humano é viável?


Por mais interessante que seja essa indagação, na verdade, ela
já se distancia bastante da problemática do início da vida, para
apresentar a do “início da vida fora do útero” materno, pois
evidentemente todo o complexo processo de desenvolvimento
embrionário e fetal é vital para que uma nova vida se torne viável.
A indagação é necessária, no âmbito da bioética, mas não como
uma dúvida a respeito do início da vida, pois se a dúvida fosse
razoável – se o feto não fosse ainda ser vivo – seria inútil toda
intervenção na vida de um bebê no útero materno realizada pela
medicina atual.

Quem atua em pediatria, principalmente com recém-nascido,


lida constantemente com a dificuldade de definir o conceito de
“viabilidade” de vida fora do útero, cada vez mais antecipada pelo
desenvolvimento de novas tecnologias de suporte de vida, a tal
ponto que a idade do bebê, para ser considerada viável, poderá
oscilar conforme o país em que a criança vai nascer ou as condições

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 221


de infraestrutura do centro de saúde em questão. Essa questão
suscita complexos conflitos éticos, principalmente porque os
já consolidados conceitos de cuidados paliativos são muito
difíceis de serem colocados em prática na neonatologia. Como se
percebe, o tema se abre e a pergunta acima, honestamente, nos
afasta bastante da questão inicial, trabalhada neste capítulo.

Paralelamente à questão das possibilidades de viabilidade do


nascituro, também se apresenta o fato de a mãe ter assumido
ou não o bebê. Nesse sentido, Gafo (op. cit.) já identificava
posicionamentos de alguns que compreendiam que o feto só se
torna humano se a mãe/a família o assume como tal. Nesse caso,
a dignidade da criança não se constitui no fato de existir como ser
da espécie humana, mas por ter sido acolhido e amado pelos seus.
O autor questiona tal posicionamento, pois seria uma situação
difícil observar, por exemplo, duas gravidezes de seis meses, em
que um dos fetos seria já um ser humano, pois a mãe o acolhe
e o aguarda com amor, enquanto o outro ainda não, pois a mãe
não o deseja (Ibid., p. 156). Compreendemos que essa situação –
do contexto social, psicológico e existencial da mãe – é relevante
para o debate sobre o aborto, mas não pode se tornar um critério
para definir a humanidade ou não do feto, muito menos para
indagar se a vida dele já se iniciou.

Quando um novo ser humano pode ser considerado


uma pessoa?
Essa indagação é feita a partir do olhar de quem busca o valor,
a dignidade do ser humano no início de sua vida. Não é uma
pergunta a respeito de quando um embrião está vivo e é
organismo da espécie humana, mas a respeito de quando esse
novo ser tem o valor e a dignidade próprios de um humano.
Por isso, a terminologia muda e o termo “pessoa” passa a ser o
ponto central do debate. Há um consenso na cultura ocidental
de que toda pessoa humana é igual às outras pessoas, tem
dignidade e deve ser tratada sem preconceito ou discriminação.
A dignidade da pessoa é, portanto, a base da legislação sobre

222 Bioética Clínica


direitos humanos, nacional e internacionalmente. No entanto,
quando nos aproximamos das questões: o que é uma pessoa? Ou,
no início da vida, em que momento o ser humano é pessoa? O
amplo consenso desaparece e surgem teorias e fundamentações
bastante dissonantes entre si.

Quem estuda bioética está habituado a lidar com divergências


que surgem de visões plurais de mundo, mas há poucos temas
de bioética em que a diversidade de posicionamento é tão
marcante quanto em relação ao conceito de pessoa. Em outros
textos7, apresentamos uma visão mais completa do assunto, mas
aqui vamos apresentar sinteticamente as duas posições mais
fortemente dissonantes, com ampla literatura a respeito, por
se tratar de escolas de bioética distintas e muito conhecidas: a
posição da escola personalista e a posição da escola utilitarista.

A escola personalista recolhe a posição tradicional do pensamento


ocidental, para o qual toda pessoa é um ser humano e todo
ser humano é uma pessoa. Desse modo, toda vez que a ciência
biológica define que há um ser humano, define-se também o
seu ser pessoal, seu valor e sua dignidade. Essa escola não aceita
fazer distinção entre “existir como ser humano” e “ser valorizado
como ser humano”, principalmente no sentido de situar isso
em momento diferente do desenvolvimento embrionário ou
fetal. Essa escola está em sintonia com o pensamento cristão,
mais explicitamente da Igreja Católica, que funda a dignidade
do humano na proposição de que cada um é criado à imagem
e semelhança de Deus. Assim, “na tradição católica, a dignidade
está sendo interpretada como uma decorrência da ontologia da
pessoa, ser criado à imagem da divindade, conforme a revelação
bíblica” (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 1996, p. 178). Desse modo, o
chamado à existência é um chamado pessoal realizado por Deus
e é na relação com a divindade que o ser humano se constitui,
se dignifica e é chamado a realizar a sua vocação: “A verdade
do ser humano é aquela que ele tem em Deus. Isto é a pessoa”

7. Cf. Sanches (2004) e Sanches, Vieira e Melo (2012).

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 223


(BERTULETTI, 1995, p. 121, tradução nossa). De acordo com essa
visão, o personalismo define que após a fecundação – nos termos
da biologia atual – estamos diante de um ser humano pleno, de
uma pessoa, cuja dignidade precisa ser reconhecida e defendida.

A escola utilitarista e os autores que a defendem com o nome de


“bioética secular” propõem que a constituição biológica de um
ser em si não é base para fundamentar seu valor. Desse modo,
essa escola faz uma clara distinção entre ser membro da espécie
Homo Sapiens e ser uma pessoa. Ser membro da espécie é definido
pela constituição genética – essa escola aceita claramente que
um embrião humano é membro da espécie humana – e ser
pessoa é definido por outras características, principalmente pela
capacidade de um determinado ser vivo ter autoconsciência e
capacidade de relacionamento. Evidentemente que um embrião
humano não tem essas duas características e, portanto, não pode
ser compreendido ainda como uma pessoa. Para distinguir “ser
humano” e “pessoa”, de acordo com o utilitarismo, é necessário:

O embrião, o feto, a criança com profundas deficiências


mentais e o próprio bebê recém-nascido são todos membros
inquestionáveis da espécie Homo sapiens, mas nenhum deles
é autoconsciente, tem senso de futuro ou capacidade de se
relacionar com os outros. Portanto, a escolha entre os dois
sentidos pode fazer uma diferença importante no que diz
respeito ao modo como respondemos a perguntas do tipo “o feto
é um ser humano?”. (SINGER, 1998, p. 96)

De acordo com essa visão, e ao contrário das ideias personalistas,


define-se que após a fecundação estamos diante de um ser
humano e não de uma pessoa. Fica impreciso o momento em que
essa corrente de pensamento define que este ser seria uma pessoa,
pois um bebê recém-nascido ainda não o seria, como já vimos.

Temos assistido nas últimas décadas o surgimento de movimentos


que se tornam militantes na defesa de uma ou outra das posições
acima, que se não cuidarmos, tornam-se movimentos intolerantes
no âmbito da bioética, que se apresenta sempre como uma área

224 Bioética Clínica


que deve primar pelo diálogo. Aqui a pesquisa em bioética pode
e deve ser aprofundada para que possamos, cada vez mais,
explicitar os argumentos e uma fundamentação razoável do
que defendemos. Mas, no contexto de uma bioética clínica, não
se pode ignorar que as duas posições dissonantes, a respeito do
conceito de pessoa, surgem a partir de visões de mundo bem
distintas, marcadas por perspectivas culturais e religiosas. Isto terá
que ser levado em conta em qualquer procedimento que envolva
embriões, fetos e recém-nascidos.

Conclusões
Para concluir esse tema complexo sobre a dignidade humana,
precisamos de uma boa dose de honestidade. Não sabemos
quando a vida se inicia, mas quando estamos diante de um ser
vivo podemos reconhecê-lo; aliás, podemos reconhecer e diferen-
ciar uma célula viva de um organismo vivo. Reconhecer que um
embrião é um ser vivo da nossa espécie não significa automati-
camente reconhecer nele valor e dignidade, tal qual é atribuída a
uma pessoa humana adulta. O valor que atribuímos a um embrião
é algo construído pelo olhar com que o contemplamos. Esse é um
processo de reflexão ética exigente e coerente, que não permite
que manipulemos os dados da realidade a bel-prazer.

Podemos assumir posturas diferentes, mas não podemos assumir


posturas levianas, pois nesse sentido, a Organização Mundial de
Saúde (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 1992, p. 17, tradução
nossa) nos recomenda: “O princípio do respeito pela dignidade
da pessoa humana demanda uma medida de proteção para o
embrião humano que seja consoante com os costumes nacionais,
culturais, religiosos e sociais”. Temos, de fato, costumes diferentes,
mas permanece a certeza de cada ser humano, incluindo,
evidentemente, nós mesmos, iniciamos nosso itinerário como um
embrião.

Muitas das questões que apresentamos aqui, no tocante aos


conflitos clínicos relacionados com o início da vida, carecem de

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 225


aprofundamento, principalmente porque se apresentam não
raramente revestidas de grande dramaticidade. Muitos podem ser
os fatores analisados, mas alertamos: o cuidado devido ao embrião
humano não é um tema menor, que possa ser desprezado.

A nossa conclusão decorre também do nosso olhar: o embrião


humano é hoje um ser humano vulnerável, não tanto por causa
das situações concretas de mães e pais que, muitas vezes,
buscando soluções para sérios problemas pessoais, deixam-no de
lado, mas também por causa de tantas teorias que o desclassifica
como humano.

Referências
BERTULETTI, A. Il concetto di persona e il sapere teologico. Teologia: Rivista
della Facoltà Teológica dell’Italia Settentrionale, Milano, anno XX, n. 2, jun.
1995.
CASTRO, I. N. de. De la dignidad del embrión: reflexiones en torno a la vida
humana naciente. Madrid: Universidad Pontificia Comillas, 2008.
GAFO, J. El aborto y el comienzo de la vida humana. Madrid: Sal Terrae, 1979.
GARCÍA, S. M. L. de; FERNÁNDEZ, C. G. Embriologia. 2. ed. Porto Alegre:
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HERNÁNDEZ, L. A. de Fuente. Gametogénesis, fecundación, determinación
de sexo, nidación y placentación. In: MATORRAS, R.; HERNÁNDEZ, J.;
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Buenos Aires: Médica Panamericana; Madrid: Sociedad Española de
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2007.
PAULA, I. C. O respeito devido ao embrião humano: uma perspectiva histórica
e doutrinária. In: CORREA, J. de D. V.; SGRECCIA, E. Identidade e estatuto do
embrião humano. Bauru: Edusc, 2007.
PAVIANI, J. Filosofia e método. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2001.

226 Bioética Clínica


PESSINI, L., BARCHIFONTAINE, C. de P. (Org.). Fundamentos da bioética. São
Paulo: Paulus, 1996.
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SAHLINS, M. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
SANCHES, M. A. Bioética, ciência e transcendência. São Paulo: Loyola, 2004.
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______. Reprodução assistida e bioética: metaparentalidade. São Paulo: Ave
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SANCHES, M. A; VIEIRA, J. O.; MELO, E. A. A dignidade do embrião humano:
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n. 820, 1992.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 227


Reflexões bioéticas sobre a vida e
a morte na UTI

Leo Pessini1
José Eduardo de Siqueira2
De imediato sou transportado à UTI. E aí viverei uma experiência, para
dizer o mínimo, insólita. Na UTI a vida está em suspenso. O tempo ali não
passa – aliás, não há relógios nas paredes. A luz nunca se apaga: não é
dia, não é noite, reina uma claridade fixa, imutável. Mas o movimento é
contínuo; médicos, enfermeiros, auxiliares circulam sem parar, examinando,
manipulando os doentes, sempre em estado grave.
Moacir Scliar,
O olhar médico: crônicas de medicina e saúde

Introdução
“Na UTI a vida está em suspenso”, assim define Moacir Scliar, na
epígrafe que emoldura a introdução a nossa reflexão ética sobre
a utilização das Unidades de Terapia Intensiva (UTI), após sua
experiência de passar algum tempo numa delas. As UTI são hoje
unidades hospitalares de cuidado da vida humana em situações
críticas que apresentam grande complexidade e dramaticidade. De
um lado, estamos diante de expressões magníficas do progresso
técnico-científico da medicina (que realiza verdadeiros “milagres”
ao salvar vidas) que, até muito pouco tempo atrás, pareciam
simplesmente impossíveis de ser realizadas. Por outro, assombra e
assusta o fato de podermos estar diante de uma situação em que
se prolonga sofrida e inutilmente o processo de morrer!

1. Pós-doutorado pelo Centro de Bioética James Drane (Edinboro University of


Pennsylvania), professor doutor no Programa de Pós-Graduação em Bioética stricto sensu
do Centro Universitário São Camilo (SP). Superior Geral dos Camilianos (Roma, Itália).
2. Professor titular da Escola de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Paraná
(PUCPR), professor permanente do Programa de Mestrado em Bioética da PUCPR,
coordenador do curso de Medicina da PUCPR, membro assessor da Red Bioética da
Unesco para América Latina e Caribe, e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética
(SBB/2005-2007).

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 229


Essa é a chamada “obstinação terapêutica”, ou medicina fútil,
ou simplesmente “distanásia”, que transforma o final de nossas
existências em uma sofrida experiência de estar aprisionado
a uma parafernália biotecnológica que unicamente prolonga
sofrimentos de maneira insensata. Nesse contexto de
cuidados intensivos e críticos, sentimentos de esperança de
uma recuperação “milagrosa” redundam, contrariamente, em
injustificado sofrimento.

Primeiramente, é importante compreender o conceito de UTI.


Para isso, consideraremos as definições dadas para o termo pelo
Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp)
e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Segundo o Cremesp, a UTI é “o local dentro do hospital destinado


ao atendimento em sistema de vigilância contínua a pacientes
graves ou de risco, potencialmente recuperáveis”, sendo “paciente
grave” aquele que “apresenta instabilidade de algum de seus
sistemas orgânicos, devido a alterações agudas ou agudizadas”,
e “paciente de risco” aquele que “tem alguma condição
potencialmente determinante de instabilidade” (CONSELHO
REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE SÃO PAULO, 1995).

A Anvisa, órgão do Ministério da Saúde, define UTI como


“área crítica destinada à internação de pacientes graves, que
requerem atenção profissional especializada de forma contínua,
materiais específicos e tecnologias necessárias ao diagnóstico,
monitorização e terapia” (BRASIL, 2010), e a classifica da seguinte
maneira:

a) UTI – adulto (UTI-A), “destinada à assistência de pacientes com


idade igual ou superior a 18 anos, podendo admitir pacientes de
15-17 anos, se definido nas normas da instituição”;

b) UTI Especializada, “destinada a pacientes selecionados por


tipo de doença ou intervenção, como cardiopatas, neurológicos,
cirúrgicos, entre outras”;

230 Bioética Clínica


c) UTI Neonatal (UTI-N), “destinada à assistência a pacientes
admitidos com idade entre 0 e 28 dias”;

d) UTI Pediátrica (UTI-P), “destinada à assistência de pacientes com


idade de 29 dias a 14 ou 18 anos”;

e) UTI Pediátrica Mista (UTIPm), “destinada à assistência de


pacientes recém-nascidos e pediátricos num mesmo ambiente,
porém reconhecendo uma separação física entre as salas
destinadas à UTI Pediátrica e UTI Neonatal”.

As dificuldades éticas que hoje se apresentam nas UTI são


inúmeras e complexas, como tomar decisões sobre a instalação
de procedimentos para manutenção de dados vitais, estabelecer
critérios diagnósticos referentes à reversibilidade clínica dos
pacientes críticos e ao acolhimento de familiares dos pacientes
no processo de tomada de decisões clínicas, optar ou não pela
instalação de nutrição enteral e hidratação, criar mecanismos
adequados para a comunicação de más notícias, proporcionar
ambiente favorável ao trabalho em equipe multiprofissional.
Cada um desses temas mereceria um capítulo específico, o
que, de algum modo, já o fizemos em outras publicações3. Não
obstante os avanços da medicina de cuidados críticos, a UTI
ainda permanece como sendo o local onde muitos pacientes
morrem. Entre os pacientes portadores de doenças crônicas que
falecem no hospital, aproximadamente 50% deles se encontram
internados numa UTI nos seus três últimos dias de vida, e 25%
ali permanecem pelo menos dez dias no prazo de sua derradeira
hospitalização.

Em 1995, aproximadamente 20% de todas as mortes nos EUA


ocorreram na UTI. Inúmeros estudos realizados nos EUA, Canadá
e nos países da Europa mostram que a maioria das mortes em
3. Cf. Pessini (2002, 2004) e Pessini, Bertachini e Barchifontaine (2014). Neste, sugerimos,
especialmente, o artigo de autoria de Leo Pessini e William S. Hossne, “O tratamento mé-
dico fútil e/ou inútil: da angústia à serenidade do equacionamento bioético”, no volume 1
(p. 109-135).

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 231


UTI envolve decisões difíceis sobre a utilização de procedimentos
de sustentação da vida introduzidos em pacientes criticamente
enfermos que não responderam às terapias habituais de cuidados
críticos. Para esses pacientes, o objetivo mais sensato seria o de
proporcionar condições para uma morte sem dor e sofrimento e
com cuidado compassivo, que pudesse se estender, inclusive, aos
familiares do enfermo (ROCKER; CURTIS, 2003).

A morte nunca deixa de ser tema atual. É um encontro agendado


(mas que frequentemente acontece de forma inusitada) que
provoca, em todo ser humano, a necessidade de refletir sobre
o significado da vida e sua finitude (PESSINI, 1990). Por meio
de diferentes manifestações artísticas ou através de notícias
veiculadas pela mídia, podemos perceber quão significativo é o
interesse do cidadão comum em temas relacionados à finitude
da vida. Basta verificar os filmes que concorreram ao Oscar nas
últimas décadas, como Mar Adentro4 (2004), vencedor de melhor
filme estrangeiro, que aborda o tema do suicídio assistido; e
Menina de Ouro5 (2004), vencedor da estatueta de melhor filme,
inserido no contexto da discussão sobre a eutanásia.

Alguns países já avançaram em legislar sobre direitos ao acesso


ao suicídio assistido e à eutanásia. A Holanda e a Bélgica, por
exemplo, desde 2002, já reconhecem algumas condições
clínicas em que a eutanásia pode ser considerada legal (PESSINI;
BARCHIFONTAINE, 2014). Em 2005, a opinião pública mundial foi
mobilizada pelo caso Terri Schiavo, jovem estadunidense com
diagnóstico de estado vegetativo persistente (EVP) que faleceu
por inanição decorrente da suspensão de alimentação parenteral
e hidratação, ambos os recursos autorizados pela Suprema
Corte de Justiça dos EUA (PESSINI, 2009). Nessa mesma época,
o papa João Paulo II se despediu da vida após longa e sofrida
4. O filme (baseado em fatos reais) apresenta o drama vivido por Ramón Sampedro, cida-
dão espanhol portador de tetraplegia que clamou à justiça de seu país pela permissão do
suicídio assistido.
5. O filme apresenta de maneira eloquente a proposta de eutanásia como solução para o
sofrimento atroz de uma jovem boxeadora destituída de autonomia para desempenhar as
tarefas mais elementares da vida.

232 Bioética Clínica


agonia motivada por doença crônico-degenerativa incurável. Ele
próprio recusou a proposta médica de uma derradeira internação
hospitalar, preferindo permanecer em seus próprios aposentos
no Vaticano, onde rogou que o deixassem partir para os braços
do Senhor (DZIWISZ et al., 2006). Quase que simultaneamente,
inúmeras vidas de civis e militares foram ceifadas na guerra
do Iraque, fato que despertou na imprensa internacional mais
louvor do que luto, pois o resultado esperado pelas democracias
ocidentais era, antes de tudo, a morte do ditador Saddam
Hussein. Essas são óbvias contradições, uma vez que o presidente
George W. Bush, ao tempo em que se colocava como defensor
da “cultura da vida” no caso de Terri Schiavo, patrocinava um
gigantesco morticínio no país invadido, alegando, para tanto,
que o Iraque detinha armamentos de destruição em massa, o
que constituía ameaça às democracias ocidentais (PESSINI, 2005).
Não foi necessário muito tempo para que a humanidade tomasse
conhecimento de que os argumentos de Bush eram inteiramente
falaciosos. Afinal, a justificativa para o genocídio era a conquista
de uma enorme reserva de petróleo no subsolo iraquiano.

No final de 2014, houve outro caso de grande repercussão mundial,


dessa vez no Oregon, estado norte-americano onde o suicídio
assistido é legalizado (PESSINI; BERTACHINI; BARCHIFONTAINE,
2015)6. A jovem Brittany Maynard, portadora de uma doença fatal
e com a expectativa de vida muito reduzida, temendo morte com
sofrimento insuportável, decidiu pelo suicídio assistido contando
com a concordância do esposo, familiares e de seu médico pessoal.
O procedimento foi concretizado em 2 de novembro de 2014.

Atualmente, a Suprema Corte do Canadá analisa a legalização


do suicídio assistido e a França pretende tornar legal a sedação
profunda para casos de pacientes portadores de doenças
terminais, o que muitos autores consideram uma forma alternativa
da prática da eutanásia ativa (FINE, 2015; VINOCUR, 2015).

6. Cf. especialmente o capítulo 12, “Alguns desafios éticos emergentes de final de vida: o
caso Brittany Maynard, o suicídio e o cuidado da dor e do sofrimento” (p. 161-178).

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 233


Utilizando como pano de fundo todas essas novas iniciativas,
faremos uma reflexão bioética sobre o caso Brittany Maynard.
Inicialmente é importante salientar que a jovem paciente sequer
estava internada em hospital quando tomou a decisão pelo
suicídio assistido, o que, por si só, já suscita algumas questões
éticas, como a possibilidade de um processo deliberativo que
proporcionasse à jovem discutir sobre alternativas terapêuticas,
como os cuidados paliativos (CP).

Neste capítulo, pretendemos refletir sobre a importância dos CP,


considerando o caso de Brittany e abordando algumas questões
concernentes à ortotanásia no Brasil, e analisar a dimensão ética
relativa ao despedir-se da vida com dignidade. Ressaltaremos,
ainda, a importância do cuidado com a dor e o sofrimento, e da
necessária transição do atual paradigma do curar para o do cuidar,
ponderando sobre o adequado tratamento a pacientes na fase
final da vida.

O in(digno) adeus de Brittany Maynard


A recém-casada jovem norte-americana, que, certamente,
nutria os mais diversos sonhos, teve seus planos bruscamente
interrompidos em janeiro de 2014, tão logo tomou conhecimento
de ser portadora de glioblastoma multiforme, neoplasia
considerada por seus médicos como incurável. Informada de
que a enfermidade traria dependência física e muito sofrimento,
Brittany decidiu, então, abreviar sua própria vida recorrendo ao
suicídio assistido, no que recebeu integral apoio dos pais e esposo.
Em meados de 2014, acompanhada por familiares, transferiu
residência da Califórnia para a cidade de Portland, capital do
Oregon, um dos cinco estados do país onde o suicídio assistido é
permitido por lei − Death with Dignity Act7 (OREGON, 1997).
7. Segundo registros oficiais das autoridades sanitárias, em 17 anos de vigência da lei, 1173
pessoas desta se valeram para pôr fim à própria existência. Desse total, em 752 pacientes
o óbito se deu por ingestão de droga letal (medicação prescrita por médico autorizado).
Muitos dos demais 421 pacientes optaram por outros métodos, sendo digno de registro
que a maioria recebeu cuidados paliativos (OREGON, 2015).

234 Bioética Clínica


Em um vídeo tornado público em novembro de 2014, Brittany
anunciou que sua morte se daria por ingestão de um “coquetel” de
barbitúricos. Essa gravação da paciente recebeu, em apenas um
mês, mais de dez milhões de acessos. Sua história comoveu todo
país e se transformou em notícia de destaque em telejornais de
todo mundo. Um de seus últimos desejos realizados enquanto viva
foi uma visita ao Grand Canyon, acompanhada dos pais e esposo.

Em sua página na internet, Brittany deixou um vídeo com a


seguinte mensagem:
Tive a oportunidade de desfrutar meu tempo com as coisas que
mais amo na vida, minha família e a natureza. A experiência
final de nossas existências como prisioneiros de aparelhagem
técnica apenas prolonga-a […], entretanto, é impossível
esquecer o câncer […]. Meu sonho é que todos os que sofrem de
doenças terminais possam morrer dignamente, da maneira que
desejarem. (PESSINI et al., 2015, p.162)

Após uma breve hesitação, ao se referir à data de sua despedida,


em meio a lágrimas, declarou
Não parece ser o momento adequado […]. Se chegar o dia 2 de
novembro e estiver morta, espero que minha família sinta-se
orgulhosa de mim e das decisões que tomei. Se chegar o dia 2 de
novembro e ainda estiver viva, sei que seguiremos comportando-
-nos como família, sentindo amor entre nós e sabendo que essa
decisão chegará mais adiante. (Loc. cit.)

Brittany morreu no primeiro dia de novembro de 2014. A ONG


Compassion and Choices, que a acompanhou em seus últimos
meses de vida, publicou em seu site: “ela morreu como pretendia
– em paz, no seu quarto, rodeada pelas pessoas que amava”
(COMPASSION AND CHOICES, 2014, tradução nossa).

A última mensagem da jovem postada no site da ONG tinha o


seguinte teor:
Adeus a todos meus queridos amigos e familiares que tanto amo.
Hoje é o dia que escolhi para partir com dignidade em face de
minha doença terminal, este terrível câncer cerebral que tirou

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 235


tanto de mim […] mas que poderia tirar muito mais. O mundo
é um lugar maravilhoso, as viagens que fiz me ensinaram tantas
coisas, meus amigos próximos e pessoas são os maiores dons. Eu
tenho o apoio deles em torno de minha cama, enquanto digito
estas palavras. Adeus mundo. Espalhem boa energia. (BRITTANY
apud EGAN, 2014, tradução nossa)

Diante da dramaticidade contida na narrativa de Brittany,


surgiram alguns questionamentos éticos sobre o valor da vida
humana. A cultura estadunidense privilegia a autonomia e
autodeterminação das pessoas de maneira incondicional, e não
pairam dúvidas de que esses são valores essenciais para uma vida
humana autêntica. Contudo, sua defesa irrestrita pode se tornar
questionável quando deixa de considerar outros referenciais,
como solidariedade, compaixão, acolhimento ao vulnerável e,
sobretudo, o adequado cuidado com os pacientes que padecem
de enfermidades terminais. O tema da autonomia mereceu densa
reflexão filosófica na contemporaneidade. Paul Ricoeur (2006), por
exemplo, entendia a autonomia pessoal não como algo abstrato,
considerando apenas o princípio da subjetividade, mas como uma
relação fundamental baseada na tríade formada por eu, os outros
e o mundo. O autor considerou que a ideia kantiana de autonomia
não deveria ser interpretada como simples autodeterminação ou
capacidade de impor desejos pessoais, colocando em dúvida a tese
da “autonomia da autonomia”, argumentando que a autonomia
pessoal deve reconhecer outros pressupostos morais e sociais.

Por outro lado, é importante considerar que, frequentemente,


alguém que pede para morrer está, na verdade, pedindo por
cuidados físicos, emocionais e espirituais. No caso de Brittany,
o desenrolar de todo drama muito se assemelha ao de um
roteiro cinematográfico hollywoodiano. A ONG Compassion and
Choices transformou Brittany em uma combativa atriz defensora
da legalização do suicídio assistido. Um denso drama pessoal
transformado em folhetim publicitário em defesa da “morte digna”.

Caberia, então, questionar a maneira como foi conduzida a


deliberação envolvendo a paciente, seus familiares e a equipe de

236 Bioética Clínica


saúde que a assistia na busca de alternativas de condutas, que
não o suicídio assistido, sobretudo considerando a possibilidade
do oferecimento de cuidados paliativos. Será razoável e prudente
deixar de considerar os cuidados prestados por uma equipe
de profissionais paliativistas bem preparada para controlar os
sofrimentos físicos, emocionais e espirituais? No caso Brittany, o
silêncio ensurdecedor sobre valores espirituais da vida da jovem
paciente somente foi quebrado pelas centenas de mensagens
enviadas por pessoas comuns que expressavam-lhe votos de
fé, compaixão e de conforto, sendo que muitas destas eram
portadores de neoplasias malignas em fase terminal da vida e que
optaram por se despedir da vida recebendo cuidados paliativos.
Se considerarmos como válido o processo deliberativo para tomar
decisões clínicas diante de complexos problemas morais, a opção
por cuidados paliativos diante de enfermidades terminais, sem
dúvida, deve ocupar lugar privilegiado na escolha terapêutica a
ser adotada nesses casos.

Cuidados paliativos: uma necessidade premente no


sistema de saúde
O que entender por cuidados paliativos? O que isso significa? A
maioria dos profissionais de saúde, sem levar em conta o público
leigo, praticamente desconhece sua importância, ignorando a
existência de programas e serviços estruturados já instalados
em muitas instituições de saúde do país. Frequentemente,
quando indagados sobre o tema, muitos opinam que essas
unidades hospitalares foram criadas para atender “pacientes sem
possibilidades terapêuticas”. Aqui reside a principal dificuldade
que vemos presente na percepção desses profissionais, que
somente consideram como “terapêuticas” as condutas que
potencialmente levam à cura da enfermidade, desconsiderando
que cada vez mais a medicina deverá se dedicar a cuidar, já que a
cura não mais será possível.

Não é trivial considerar que a dramática mudança na curva


demográfica da população de países emergentes nos apresentará

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 237


de forma irreversivelmente crescente pessoas portadoras de doenças
crônico-degenerativas incuráveis. Para atendê-las adequadamente,
os profissionais de saúde deverão estar preparados para o domínio
de procedimentos dessa nova área de conhecimento dotada de
todo rigor científico e já reconhecida como especialidade médica
na maioria dos países desenvolvidos. Felizmente, esse equívoco de
percepção está em fase de extinção, na medida em que cresce o
número de unidades de cuidados paliativos instaladas em hospitais
de referência, assim como numerosos periódicos científicos nos
apresentam estudos bem conduzidos que comprovam sua eficácia
em reduzir o sofrimento e proporcionar conforto aos pacientes que
estão na terminalidade da vida.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estabeleceu, em 2002,


uma nova definição de CP, colocando ênfase na prevenção do
sofrimento. Eis o conceito:

Cuidado paliativo é uma abordagem que aprimora a qualidade


de vida de pacientes (adultos e crianças) e suas famílias, que
enfrentam problemas associados a doenças ameaçadoras da
vida. Ele previne e alivia o sofrimento por meio da identificação
precoce, da avaliação correta e do tratamento da dor e de outros
problemas de ordem física, psicossocial e espiritual. (WORLD
HEALTH ORGANIZATION, 2015, tradução nossa)8

A partir desse conceito, podemos falar de filosofia dos CP, que


aponta para os seguintes princípios fundamentais: a) valorização
da meta de atingir e manter um nível ótimo de controle da
dor; b) manutenção da maior qualidade de vida possível e do
acolhimento da morte como um evento natural da vida; c) não
apressar e nem adiar a morte por meio de procedimentos médicos
desproporcionais; d) reconhecer a importância de incluir no rol
dos atendimentos habituais prestados aos pacientes o cuidado em
suas dimensões psicológicas e espirituais; e) oferecer um sistema
8. No original: “Palliative care is an approach that improves the quality of life of patients
(adults and children) and their families who are facing problems associated with life-threate-
ning illness. It prevents and relieves suffering through the early identification, correct assess-
ment and treatment of pain and other problems, whether physical, psychosocial or spiritual”.

238 Bioética Clínica


de apoio para auxiliar os pacientes a viver tão ativamente quanto
possível, até o momento de sua morte; f) ajudar a família na
compreensão da doença do paciente, assim como na elaboração
do luto; g) considerar paciente e família como uma única unidade
de cuidados; h) reconhecer como imprescindível que o tratamento
prestado ao paciente e seus familiares seja conduzido por equipe
multidisciplinar; i) implantar cuidados que visem a alcançar a
melhor qualidade de vida possível para o paciente; j) adotar
medidas de cuidados o mais precocemente possível, tão logo feito
o diagnóstico de doença ameaçadora da vida

Tradicionalmente, os CP sempre estiveram associados aos


cuidados oferecidos para doentes com câncer na iminência
da morte. Hoje, considera-se que os CP têm muito a oferecer
aos pacientes e familiares mesmo no estágio inicial do curso
de doença ameaçadora da vida e não somente nas fases mais
avançadas da enfermidade, cuja progressão para o desenlace final
mostra-se inexorável. Essa condição exige que os serviços de CP
estejam perfeitamente articulados com todas as demais áreas que
prestam assistência ao paciente, quer sejam unidades hospitalares
ou ambulatoriais. Outro aspecto fundamental é o da participação
ativa da família dos pacientes, condição que deve ser considerada
como um dos mais importantes pilares na humanização dos
CP. Há um número expressivo de publicações dando conta da
importância da participação da família na promoção de cuidados,
na melhora da evolução clínica, na facilitação para tomada
de decisões clínicas complexas, bem como no maior conforto
psicológico e espiritual dos pacientes, quer estejam internados
em unidades de CP ou em UTI. Nesse sentido, revestem-se de
grande importância medidas institucionais que facilitem visitas
mais frequentes de familiares a pacientes internados em UTI. Das
toleradas “visitas especiais” reservadas a casos de pacientes com
prognóstico de morte iminente, será saudável permitir, sempre
que possível, a presença de familiares ao lado dos enfermos
(SOARES, 2007; SANTANA-CABRERA, CUNHA, 2014).

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 239


Nas situações de terminalidade da vida, é necessário reconhecer
que existirão momentos em que paciente e seus familiares
necessitarão de maior privacidade para compartilhar sentimentos
íntimos que, invariavelmente, estão presentes por ocasião do adeus
à vida. Igualmente importante será considerar as recomendações
emanadas pela Society of Critical Care Medicine, apresentadas nos
seguintes termos: estar próximo ao paciente; sentir-se útil para o
paciente; ter ciência das modificações do quadro clínico por meio
de eficiente comunicação proporcionada pela equipe de cuidados;
que os familiares compreendam as justificativas para introdução
de todos os procedimentos terapêuticos sugeridos pela equipe
multiprofissional, sobretudo aqueles instaurados para controle
da dor; os familiares devem estar a par de todas as decisões que
envolvam introdução ou retirada de procedimentos de suporte
vital; que os familiares possam expressar, para os membros da
equipe de cuidadores, seus sentimentos de angústia e desamparo
e, finalmente, tanto quanto possível, que os familiares possam ser
confortados e consolados diante da perda de seu ente querido
e encontrem um significado para sua morte (TRUOG et al., 2001;
FORTE, 2010).

O controle da dor e do sofrimento como um


direito humano fundamental
Por meio da metáfora “modernas catedrais da dor e sofrimento”,
Leo Pessini (1990) traduziu o sentimento vivido, enquanto Capelão
em um grande hospital universitário, na interação com familiares,
pacientes e profissionais de saúde alocados em áreas críticas de
cuidado, especialmente nas UTI.

Indubitavelmente, são nesses ambientes de cuidados críticos


que nos vemos diante das mais extremas experiências de
enfrentamento com a dor e o sofrimento humano. Muitos eram os
pacientes que explicitavam que seus maiores temores residiam na
dor e no sofrimento impostos pelas circunstâncias do momento
e não sobre a morte propriamente dita, o que nos alertou para o

240 Bioética Clínica


controle do sofrimento imposto pela dor como o cuidado mais
prioritário.

A dor e o sofrimento nos acompanham desde sempre ao longo


da existência, e o controle e o alívio de ambos se configuram em
nossos dias, como uma das mais importantes ações terapêuticas e
responsabilidade ética dos profissionais de saúde. Seguramente,
constitui-se como um indicador fundamental na qualidade dos
cuidados a serem prestados no âmbito da assistência integral
aos pacientes criticamente enfermos. Na maioria das unidades
hospitalares, a dor é o sintoma que mais exige a atenção dos
profissionais de saúde, representando a quinta causa de busca
por atendimento médico. Tão importante é o controle desse
sintoma que as associações de profissionais de saúde reconhecem
como área de conhecimento específico o domínio de habilidades
técnicas para o tratamento da dor crônica.

De acordo com a OMS, a saúde humana é definida como “um


estado de completo bem-estar, físico, mental e social, e não
somente a ausência de doença ou de mal-estar” (WORLD
HEALTH ORGANIZATION, 2006)9. Nessas condições, parece óbvio
reconhecer como incompatível uma vida humana satisfatória
acompanhada de sofrimento imposto por uma dor crônica. A
Declaração Universal dos Direitos Humanos, no art. 25, reconhece
como direito humano “um nível de vida adequado para a saúde
e o bem-estar” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948). No
entanto, diante da realidade de sobrevida humana cada vez mais
longa, é certo que conviveremos com pessoas muito idosas que
sofrerão enfermidades crônicas e apresentarão quadros dolorosos
persistentes, demandando atenção redobrada dos profissionais
de saúde, que lhes oferecerão cuidados humanizados. Há um
dito de domínio popular que trata ironicamente a qualidade de
vida reservada a pessoas idosas como sendo “a idade do ‘condor’”.
Obviamente, a afirmação está longe de expressar a liberdade
de altos e livres voos da ave de um metro de comprimento que
9. No original: “Health is a state of complete physical, mental and social well-being and not
merely the absence of disease or infirmity”.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 241


domina altiva a cordilheira dos Andes, pois pretende representar
o período da vida em que as pessoas mais sofrem, “com dor”.

Do mesmo modo, é importante reconhecer a diferença entre a


presença do sintoma dor e a condição descrita como sofrimento.
A primeira condição, mesmo que de grande intensidade, sempre
será passível de ser controlada com analgésicos potentes; a
segunda, por sua vez, é representada por um padecimento,
simultaneamente, físico, psicológico e espiritual, que não é de
fácil solução com medicamentos convencionais da farmacopeia,
abrangendo, portanto, uma dimensão muito mais ampla que
transcende a singela dimensão biológica. Compreender essa
distinção é fundamental para aqueles que cuidam de pacientes
portadores de doenças terminais. O controle da dor física pede por
analgésicos, enquanto o sofrimento representado pela “dor total”
exige reconhecimento de sentido e significado transcendente
da vida humana, o que envolve identidade, valores abstratos de
natureza socioculturais e espirituais da pessoa, ou seja, é o ser
biopsicossocial e espiritual que sofre. Desse modo, o sofrimento
precisa ser cuidado em quatro dimensões, a saber: física (como
fator de alerta que denuncia envolvimento de transtornos
anatômicos e funcionais do organismo), psíquica (expressa pela
apatia e desesperança que decorrem do reconhecimento da
finitude da própria vida), social (representada pelo isolamento
e incapacidade de recompor os relacionamentos afetivos e
compromissos sociais) e espiritual (talvez a mais sensível por
associar-se à perda de sentido da vida).

Os paradigmas de curar e cuidar


Ainda é prevalente na conduta de muitos profissionais de
saúde a busca pela cura, mesmo quando a evolução da doença
mostra ser improvável esse desiderato. Parece indiscutível que
o enorme fascínio que jovens médicos devotam à medicina
tecnológica resulta de conteúdos a eles ministrados durante a
graduação, com exagerada ênfase em biotecnologia e quase nula

242 Bioética Clínica


apreciação sobre temas de humanidades médicas. A evolução
do conhecimento científico proporciona a criação de novos e
engenhosos procedimentos biotecnológicos − o que, em si, é
benéfico, pois torna possível a obtenção de cura de enfermidades
até pouco tempo incuráveis. É pouco razoável, entretanto,
imaginar que “podemos tudo”, sobretudo quando se está diante
de uma enfermidade que caminha célere para o desenlace fatal,
como são os casos de diferentes tipos de câncer.

Perante essa realidade, é mister reconhecer os limites impostos


por doenças terminais, o que nos obriga a refletir sobre a
proporcionalidade de nossas condutas, pois a obsessão em
controlar dados vitais sem que isso resulte em benefício para
a qualidade de vida do paciente, pode nos levar à prática da
distanásia, condição reconhecida por todos os códigos de
condutas profissionais como antiéticas. A dignidade de que
é portador natural todo ser humano biográfico nos obriga ao
exercício da humildade em reconhecer limites na adoção de
procedimentos inúteis que apenas prolongam a agonia de
pacientes portadores de enfermidades terminais. A afirmação de
que “não há mais nada a fazer” é incorreta, pois há sim muito que
fazer por essas pessoas, desde que consideremos que a finalidade
maior da medicina é a de cuidar, contrariamente ao que prega o
paradigma imperante da cura.

O crescente interesse público em torno da eutanásia e do suicídio


assistido deve chamar nossa atenção para os limites de “curar” da
medicina moderna. Cuidados de saúde subjacentes ao paradigma
do cuidar aceitam naturalmente como fazendo parte da condição
humana o envelhecimento e as consequências dele decorrentes,
sendo a principal delas a morte física. Portanto, devemos estar
atentos aos ponderados ensinamentos do médico Vitor Oliveira
(2013):

O julgamento de inevitabilidade técnica da morte, é um dos


mais delicados procedimentos dentre os que podem ser feitos
numa UTI, pois é opinião de alto impacto sobre uma vida

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 243


humana, sobre uma pessoa que tem toda uma longa e valiosa
história de vida, que tem sonhos e desejos, que ama outras
pessoas e que tem familiares e amigos que também a amam.
Trata-se da vida de uma pessoa que, é imperativo admitir,
se ela mesma não expressou claramente o contrário, deseja
continuar vivendo e conta com nossa atuação profissional para
isso. E por ser assim, tão delicado e de universal impacto ético e
moral, que tal julgamento de inevitabilidade técnica da morte
e também seu correspondente anterior necessário em uma UTI,
o de inevitabilidade técnica da piora clínica do paciente, devem
ser submetidos ao mais amplo e crítico escrutínio, em busca de
[evitar] erros, antes de serem minimamente aceitos. […] Não
haverá nada mais valioso para essa vida humana internada
na UTI e para seus familiares que descobrirmos erros em nosso
julgamento, de que não seria mais possível salvar sua vida.

As UTI hoje, basicamente, transformaram-se em espaço


de gerenciamento técnico de vidas e mortes, sendo que
os profissionais que nelas trabalham subestimam alguns
pressupostos éticos presentes em suas atribuições originais, como
o de buscar o maior benefício para os pacientes, considerando
as dimensões biopsicossociais e espirituais, e não simplesmente
como o de tratar um corpo enfermo. Nas palavras de Bernard
Lown (1997, p. 46), professor de cardiologia de Harvard,

as escolas de medicina e o estágio nos hospitais os preparam


[estudantes] para tornarem-se oficiais maiores da ciência e
gerentes de biotecnologias complexas […]. A realidade mais
fundamental é que houve uma revolução biotecnológica que
possibilitou o prolongamento interminável do morrer.

Exatamente para oferecer um tratamento mais humanizado


foi que surgiu a nova especialidade denominada de medicina
paliativa, com importantes ações terapêuticas, inclusive, nas UTI
(MORITZ et al., 2008), visando, sobretudo, a evitar intervenções
médicas desproporcionais. Quando a terapêutica convencional
não mais pode proporcionar a cura, a adoção de procedimentos
desproporcionais com a finalidade exclusiva de manter sob
controle algumas variáveis fisiológicas deve ser considerada como

244 Bioética Clínica


prática fútil, pois resulta apenas em prolongamento insensato da
agonia de alguém que pede por morte digna (JONAS, 2004).

A polêmica decorrente da defesa da


ortotanásia no Brasil
Partindo do pressuposto de que a morte é uma dimensão intrínseca
à existência humana, há que se considerar como direito inalienável
de toda pessoa, viver e morrer amparado pelo princípio da
dignidade, condição essa que invalida quaisquer procedimentos
terapêuticos que apenas prolonguem artificialmente a vida.
Nesse sentido, a Resolução do CFM 1805/2006 veda aos médicos
as práticas de distanásia e eutanásia, considerando como conduta
ética a ortotanásia, definida como morte digna, ou seja, natural,
protegida de dor e sofrimento, sem, entretanto, ser abreviada ou
prolongada. Em seu artigo 1º, o CFM estabelece:

É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos


e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase
terminal, de enfermidade grave e incurável respeitada a vontade
da pessoa ou de seu representante legal. Art. 2º. O doente
continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar
os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência
integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive
assegurando-lhe o direito de alta hospitalar. (CONSELHO
FEDERAL DE MEDICINA, 2006)

A incompreensão sobre o amparo ético e legal do documento


emitido pelo CFM levou o Poder Judiciário a suspender sua
vigência por longos quatro anos, decisão revertida somente em
dezembro de 2010 − fato comemorado pelos profissionais de
saúde como significativo avanço no que diz respeito à dignidade
dos pacientes. Enfim, passamos a reconhecer com humildade e
sensatez que diante da terminalidade da vida devemos privilegiar
os cuidados paliativos em detrimento do “furor terapêutico”. Dados
fornecidos pelo CFM indicam que 30% dos pacientes internados

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 245


em UTI no Brasil estão em fase terminal da vida, condição que
pode ser considerada como má prática, pois esses enfermos não
necessitam de cuidados intensivos. Por outro lado, percebe-se,
nessa postura, uma destinação equivocada de recursos, pois os
procedimentos realizados em UTI são extremamente onerosos e,
nos casos em pauta, não resultam em qualquer benefício para o
paciente.

Outro avanço que merece registro é o da incorporação, nos


Princípios Fundamentais do atual Código de Ética Médica
brasileiro, do inciso XXII, assim apresentado: “Nas situações
clínicas irreversíveis de terminais, o médico evitará a realização
de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários
e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados
paliativos apropriados” (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA,
2010). Felizmente a medicina brasileira entrou no século XXI,
considerando como dever ético de todo profissional a limitação
de procedimentos desproporcionais em casos de pacientes
portadores de enfermidades terminais, sugerindo a alternativa
científica dos cuidados paliativos.

É oportuno registrar o exemplo dado pelo papa João Paulo II, que,
ao reconhecer próxima a terminalidade de sua vida, recusou-se
a retornar à UTI do Hospital Gemelli, em Roma, solicitando aos
seus cuidadores que o deixassem “partir para o encontro com o
Senhor” (DZIWISZ et al., op. cit., p. 35). Parece razoável reconhecer
que o pedido do papa representa a vontade de centenas de
pacientes que estão internados em UTI, em situação clínica similar
e se sentem impedidos de ter uma morte digna.

Comentários finais
Torna-se imperioso refletir sobre os autênticos propósitos da
arte médica, que podem ser expressos no singelo aforismo “curar
às vezes, aliviar frequentemente e confortar sempre” atribuído

246 Bioética Clínica


por alguns autores a Hipócrates, embora não figure em sua
obra maior, Corpus Hippocraticum. Diferentemente do esperado,
constata-se ainda que a maioria dos cursos de medicina se
empenha em preparar seus estudantes para a missão exclusiva
de curar, subestimando a arte de cuidar. Das 257 escolas
médicas existentes no país até agosto de 2015, apenas quatro
tinham incluído em sua grade curricular a disciplina de cuidados
paliativos, o que demonstra quão distante estamos na formação
de profissionais habilitados a prestar esse tipo de cuidados.

Da mesma forma, reconhecer e respeitar limites sobre investimen-


tos terapêuticos em pacientes criticamente enfermos internados
em UTI se torna um imperativo ético de primeira grandeza, pois
nos obriga a diferenciar aqueles que necessitam de cuidados in-
tensivos dos que pedem por cuidados paliativos. Em suma, é ne-
cessário enfrentar o desafio de melhor discriminar as diferentes
atribuições referentes a cada uma das mencionadas unidades de
atendimento hospitalar, melhor dizendo, as UTI devem receber
pacientes cujos prognósticos de cura e retorno à vida ativa com
o mínimo de sequelas seja factível, já as unidades de cuidados pa-
liativos devem acolher os enfermos portadores de enfermidades
terminais, que necessitam de atenção proporcionada por equi-
pe multidisciplinar treinada para oferecer cuidados de ordem fí-
sica, psicológica, social e espiritual. A primeira trafega sobre o fio
da navalha entre a adoção de medidas terapêuticas necessárias,
ainda que extremamente invasivas, devendo, ao mesmo tempo,
considerar o limite prudencial para não introduzir condutas des-
proporcionais em casos em que a sobrevida não é mais possível,
circunstância que impõe enorme desgaste emocional aos médicos
intensivistas, obrigados que são a tomar decisões-limites entre a
vida e a morte. Já para os paliativistas, o desafio ético maior está
em acolher com naturalidade a morte como parte da vida e traba-
lhar em equipe buscando oferecer alívio e conforto aos pacientes
para que eles possam se despedir da vida com dignidade, tarefa
igualmente difícil, pois ainda persiste a ideia equivocada de que a
morte de qualquer paciente significa o fracasso da medicina.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 247


A inevitabilidade da morte nos transforma em peregrinos da
vida. Obviamente, não podemos aceitar a morte decorrente de
fatores como a miséria ou aquelas causadas pela violência social,
denominada por Márcio Fabri dos Anjos como “mistanásia”,
entretanto, com o mesmo vigor devemos dizer não à distanásia,
que pretende evitar o inevitável, impondo enorme sofrimento aos
pacientes portadores de doenças terminais (PESSINI, 2002).

Nasce uma nova sabedoria a partir da reflexão, aceitação e


assimilação do cuidado da vida humana no adeus final. Entre os
dois limites opostos, de um lado a convicção profunda de não
abreviar intencionalmente a vida (eutanásia) e, de outro, a visão
para não prolongar o sofrimento e adiar a morte (distanásia). Entre
o não abreviar e o não prolongar está o “amarás”. Grande desafio
se apresenta aos profissionais de saúde, qual seja, o de cuidar com
amor incondicional o paciente portador de enfermidade terminal,
guiados pelos ensinamentos de que o sofrimento humano
somente será intolerável se o paciente for privado de cuidados,
e que se torna imperioso reconhecer que o amor devotado ao
nascituro deve ser o mesmo que o dedicado ao paciente que se
despede da vida.

Queremos encerrar essa reflexão sobre a vida, a morte e o morrer


nos diferentes ambientes dos hospitais resgatando os sábios
ensinamentos do médico Atul Gawande (2015), contidos em sua
obra Mortais: nós, a medicina e o que realmente importa no final.
Diz o autor:

Se ser humano é ser limitado, então o papel dos profissionais e


das instituições encarregadas de oferecer cuidados […]. Às vezes,
podemos oferecer cura, às vezes apenas alívio, outras nem isso.
Porém, independentemente do que possamos oferecer, nossas
intervenções, assim como os riscos e sacrifícios que envolvem,
só são justificados se atendem as metas maiores da vida da
pessoa. Quando nos esquecemos disso, podemos infringir um
sofrimento bárbaro. Quando nos lembramos, podemos fazer
um bem enorme [As pessoas no final de suas vidas] querem
compartilhar memórias, transmitir sabedorias e lembranças,

248 Bioética Clínica


resolver relacionamentos, estabelecer seu legado, fazer as pazes
com Deus, e certificar-se de que aqueles que estão deixando para
trás estarão bem. Querem terminar suas histórias segundo seus
próprios valores e rituais.

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terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico
limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a
vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os
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Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 251


Bio(po)ética narrativa: literatura, teatro e
poesia como ferramentas no ensino e na
aprendizagem da bioética1

Jan Helge Solbakk2

Introdução
“A ficção”, afirma Edward Albee, “é um fato transformado em
verdade”. Para mim essa frase não é uma frase somente decorativa,
ela expressa duas coisas muito importantes sobre a ficção e sua
relação com a realidade: (a) não é necessariamente a descrição
empírica que nos dá o acesso mais direto e moralmente verdadeiro
ao mundo real, e (b) a ficção tem a capacidade de nos mostrar o
mundo real de um modo mais autêntico e tangível.

Em seu livro Ensaio sobre a cegueira, José Saramago utilizou a


seguinte frase para expressar algo similar: “se podes olhar, vê. Se
podes ver, repara”3. Essa é uma fantástica metáfora para ilustrar
no que se baseia o ensino da bioética: trata-se de abrir os olhos,
no sentido de abrir nossas mentes sempre estreitas, de maneira
que possamos nos entregar a um pensamento que ainda
desconhecemos. Ou, assim como diz Martha Nussbaum (1990,
p. 3), “para que os argumentos sejam realmente efetivos, devemos
ser capazes de transformar o coração”.

1. Este capítulo é uma tradução do texto “Bio(po)ética narrativa: literatura, teatro y poesía
como herramientas en la enseñanza y el aprendizaje de la bioética”, escrito por Jan Solbakk
originalmente em espanhol, para o XI Congresso Brasileiro de Bioética.
2. Professor doutor de Ética Médica na Faculdade de Medicina da Universidade de Oslo
(Noruega).
3. Nota do Tradutor: Epígrafe do “Ensaio sobre a cegueira” de José Saramago, citando o
“Livro dos Conselhos” do Rei Dom Duarte.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 253


Qual deveria ser o objetivo do ensino da bioética?
Tendo em vista as observações feitas, podemos considerar que
há seis respostas típicas para esta pergunta: elevar a consciência;
fomentar a reflexão e a autorreflexão; aumentar a compreensão;
promover o diálogo e a deliberação; melhorar a sensibilidade
moral; e desenvolver capacidades morais. Não nego a relevância
desses objetivos, mas penso que, além disso, precisamos de
objetivos que atinjam não só a mente, mas também o coração.

Por isso, elaborei quatro propostas, de natureza mais poética


(ou metafórica), de objetivos do ensino de bioética, a saber:
gerar alguma forma de movimento, produzir alguma forma de
purificação (catarse), fomentar a dúvida terapêutica e reduzir a
cegueira moral.

Vou retomar essas propostas mais adiante, mas, antes, pode ser
útil esclarecer uma questão metodológica: qual seria o melhor
enfoque didático para alcançar esses quatro objetivos? Quero
destacar aqui três enfoques diferentes. O primeiro eu chamarei
de “enfoque teórico”, o segundo está relacionado ao uso de casos
práticos (ou seja, as “histórias da vida real”), e o terceiro trata da
ficção e da narração, e será chamado de enfoque bio(po)ético.

Os dois primeiros já têm uma posição privilegiada na bioética,


enquanto o terceiro enfoque está em desenvolvimento. Por isso,
o propósito deste capítulo é demonstrar suas vantagens. Para
facilitar sua compreensão, antes, é necessário considerar duas
coisas.

Em primeiro lugar, o enfoque teórico tem a tendência de


desconsiderar o fato de que a lógica da ética é diferente da
lógica da lógica. A consistência e a coerência lógica são talvez
necessárias na ética, mas essa consistência lógica nunca é uma
condição suficiente. Tomemos como referência o pensamento de
John Harris, um dos mais proeminentes bioeticistas da atualidade
no mundo anglófono. É difícil encontrar inconsistências lógicas
em suas argumentações, mas, apesar disso, ele sempre termina

254 Bioética Clínica


em uma posição minoritária. Por quê? Normalmente porque as
pessoas notam que as argumentações lógicas não são suficientes
para aceitar a posição ética que se deseja alcançar.

Em segundo lugar, está o uso de casos práticos. Os conflitos


morais são principalmente conflitos contingentes: é o mundo e
não a lógica que os produzem. Consequentemente, o uso das
chamadas histórias “da vida real” pode parecer mais promissor
que um enfoque teórico. Quais são então as vantagens didáticas
de casos reais? Listei algumas vantagens frequentemente
mencionadas. Os casos reais são:
• autênticos, ou seja, tratam de fatos que ocorreram;
• diretos; os dilemas relacionados surgem com facilidade;
• compreensíveis, já que sua brevidade aumenta a
acessibilidade;
• dilemáticos, porque oferecem sempre duas opções;
• econômicos, no sentido de que economizam tempo.

Mas, os casos chamados “reais” têm também algumas desvanta-


gens, pois:
• são anêmicos; nunca concedem uma visão completa do
que ocorreu na verdade;
• constituem versões condensadas do evento original;
• as chamadas histórias “da vida real” tendem a reduzir os
problemas bioéticos em dilemas morais possíveis de se
resolver;
• tais histórias geralmente representam situações que
foram construídas por quem possui o poder vigente −
nesse caso, o médico.

Finalmente, o enfoque bio(po)ético desenvolvido neste capí-tulo


tem como ponto de partida as reflexões de Aristóteles em seu
livro sobre o teatro antigo grego. Segundo o filósofo, “a história

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 255


narra as coisas que aconteceram, enquanto a tragédia faz alusão
aos eventos ou incidentes que poderiam ocorrer” (HARDY, 1932,
tradução nossa).

Segundo Aristóteles, enquanto a poesia trágica trata sobre questões


universais, as histórias “da vida real” têm somente uma relevância
contingente. Consequentemente, a poesia trágica possui um
caráter mais filosófico e elevado que a história. É exatamente por
essa razão que as narrativas trágicas têm um potencial didático
moral mais amplo do que os casos chamados “reais”.

Uma tragédia é, pois, a imitação de uma ação elevada e


completa, de certa extensão, realizada por meio de uma
linguagem enriquecida com todos os recursos ornamentais,
cada um usado separadamente nas distintas partes da obra;
imitação que se efetua não por narrativa, mas mediante a
ação dos personagens, e que, suscitando o terror e a piedade,
alcançam a expurgação [catarse] de tais paixões. Chamo
de linguagem agradável aquela que tem ritmo, harmonia e
música. E por ser usada separadamente nas distintas partes
da obra, entendo o fato de que umas partes são executadas
somente por meio do verso e outras, ao contrário, por meio da
música. (Ibid., tradução nossa)

De acordo com Hardy (Ibid., p. 16), não há um fragmento mais


famoso na literatura antiga grega do que as poucas palavras da
Poética, em que se caracteriza dramaticamente a catarse como
inter-relacionada com as emoções dolorosas da piedade (eleos)
e o temor ou o terror (phobos). A literatura sobre a Poética não
consegue chegar a um acordo consistente a respeito do significado
exato que Aristóteles, em sua perspectiva, atribui à “catarse”.

Não vamos, neste texto, entrar no debate douto e conflitivo sobre


o significado dessa palavra; basta recordar minha interpretação
didática desenvolvida em um artigo4 publicado em 2006. Neste
capítulo proponho a possibilidade de utilizar a palavra “catarse”
como uma metáfora didática para expressar o objetivo do ensino
4. “Catharsis and moral therapy II: an aristotelian account”.

256 Bioética Clínica


da bioética: fomentar alguma forma de movimento ou purificação
(catarse) de nossa mente e coração.

Se concebermos assim o fim didático da bioética, como


deveríamos ver a relação entre o professor de bioética e o aluno?
Nos diálogos Teeteto e Sofista de Platão, há duas analogias que
podem nos ajudar a responder essa pergunta. No Teeteto, Platão
utiliza a analogia da parteira e da gravidez:

O ofício de parteira, tal como eu o desempenho, assemelha-se em


todo ou demais ao das doulas, mas se difere no fato de que eu o
exerço sobre os homens e não sobre as mulheres, e quem recebe
o parto não são os corpos e sim as almas. A grande vantagem é
que isso me coloca em condições de discernir com segurança se o
que a alma de um jovem sente é um fantasma, uma quimera ou
um fruto real.

Então, como pode a analogia da parteira e da gravidez, somada


à descrição da aprendizagem por meio de um diálogo repleto de
angústia, aflição e dor, esclarecer o processo de educação moral?
Em primeiro lugar, a analogia da parteira e da gravidez transmite
a mensagem de que a aprendizagem moral é uma tarefa
vulnerável e arriscada. Assim como a gravidez feminina pode ser
uma gravidez fantasma ou terminar em um aborto, o processo
de aprendizagem moral pode forçar uma pessoa a reconhecer
a falta de fundamento e falsidade de suas crenças e convicções
morais, além da necessidade de serem abortadas. Em segundo
lugar, essa analogia representa o processo do ensino moral de
maneira diferente daquele em que um especialista teórico em
ética fornece uma determinada quantidade de conhecimento a
um receptor ignorante e passivo. Portanto, assim como a tarefa da
parteira não é dar à luz seu próprio filho, mas utilizar sua arte para
assistir e aconselhar outras mulheres no parto, da mesma forma,
o papel do professor de bioética nesse processo é o de ser um
“sábio útil” com relação às tentativas dos estudantes de aceitarem
suas próprias crenças, convicções e dúvidas morais (WILLIAMS,
1995, p. 212). Em terceiro lugar, embora não menos importante,
assim como as parteiras

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 257


por meio de beberagens e encantamentos sabem, quando é de
sua vontade, acelerar o momento do parto e diminuir as dores;
facilitam o parto daquelas que têm dificuldade em dar à luz e
ajudam na realização do aborto, se assim o julgarem necessário,
quando o feto for prematuro […] também é parte da capacidade
e da responsabilidade do professor lidar de maneira hábil com a
dor e a aflição que surgem do processo de aprendizagem.

Da segunda analogia surge a concepção de relação entre o


professor e o aluno como uma relação terapêutica:

Assim como os médicos acreditam que o corpo não tira benefício


algum dos alimentos sem primeiro remover o que o perturba,
os que purificam a alma julgam que seus pacientes não podem
colher nenhuma utilidade dos ensinamentos ministrados, se
não forem refutados, e da refutação aprendem a ser modestos,
primeiro devem ser purgados de seus preconceitos e devem
ensiná-los a reconhecer que não sabem mais do que aquilo que
sabem, e nada mais.

No entanto, precisamos ter três coisas claras em relação à analogia


do médico e paciente. Primeiro, o professor de bioética não é o
médico. Segundo, o aluno não é o paciente, porque o único e
verdadeiro médico nessa relação é o diálogo que se desenvolve
entre os dois. Terceiro, há uma diferença, no entanto, entre os
dois no sentido de que o professor de bioética pode servir como
um medicamento (phármakon) para o aluno em sua tentativa de
descobrir sua própria moralidade.

Vamos agora aprofundar o enfoque bio(po)ético. Mais


precisamente, vamos mostrar três diferentes versões desse
enfoque: um enfoque aporético, inspirado nos diálogos aporéticos
de Platão; um enfoque trágico, que tem como inspiração a
Poética de Aristóteles; e um enfoque cômico, também ao modum
aristotélico desenvolvido na Poética. O denominador comum entre
os três enfoques é que os três se ocupam, de modos diferentes, do
fenômeno ou do problema do resíduo moral e do arrependimento
nos conflitos morais. Segundo Wittgenstein (1967),

258 Bioética Clínica


aqui nos encontramos com um fenômeno notável e característico
da investigação filosófica: a dificuldade não é encontrar a
solução, mas reconhecer como solução algo que parece ser
somente uns prolegômenos dessa. “Já dissemos tudo”. Não, não
tudo o que se deduz disso, isso em si mesmo é a solução! Penso
que isso se conecta com nossa errônea expectativa de uma
explicação, já que a solução de uma dificuldade é uma descrição,
se lhe dermos o espaço correto em nossas considerações. E se nos
detivermos para pensar nisso e não tentarmos ir mais além. A
dificuldade aqui é: saber parar.

Uma descrição poética do resíduo moral pode também nos ajudar


a compreender esse fenômeno:

Estamos rodeados de enigmas e o pouco que compreendemos


racionalmente é meramente uma exceção em um mundo
enigmático. A razão nos impacta; e o fato de estarmos impactados
− de maravilharmos − é como flutuar no vasto mar que rodeia a
ilha da lógica […]. Compreendo porque a arte é o mais preciso
(e valioso) símbolo da vida. A arte apresenta um enigma, mas a
resolução do enigma é outro enigma. (FUENTES, 2002)

O potencial didático do diálogo aporético


Embora seja provável que o diálogo fosse utilizado na literatura
anterior a Platão, foi ele quem o colocou em um lugar de destaque
na filosofia ocidental. Mas é possível que um leitor não familiarizado
com a situação textual de seu tempo se surpreenda com as
razões que levaram Platão a favorecer o diálogo em detrimento
de outras formas literárias. Em primeiro lugar, Platão vivia em
uma cultura na qual os poetas eram considerados os professores
mais importantes, e seus textos (sua poesia épica, lírica, trágica e
cômica), a fonte mais rica de sabedoria ética (NUSSBAUM, 1986, p.
123-124). Além disso, e como observa Nussbaum, o tipo de prosa
filosófica que hoje nos é familiar e que assumimos como a forma
textual paradigmática para a argumentação e raciocínio ético, nos
tempos de Platão, ainda era praticamente inexistente:

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 259


A tradição prosaica a que se refere é a tradição da investigação
científica e etnográfica, para nós exemplificada nos tratados
do corpus hipocrático, nos tratados perdidos de outras ciências
como a matemática e a astronomia, e nos relatos históricos de
Heródoto e Tucídides. (Ibid., p. 123)

O que é, então, aquilo que torna o diálogo uma forma atrativa?


Sua primeira vantagem é que “preserva a forma da ‘fala
viva’” (CUSHMAN, 2002, p. xvii, tradução nossa). Em segundo
lugar, acrescenta dramatismo e vivacidade ao texto ao expor
personagens que trocam argumentos e que possuem pontos
de vista diametralmente opostos sobre questões fundamentais.
Assim, o leitor se encontra exposto a uma conversa entre uma
multiplicidade de vozes que evoluem em um lugar e em um
momento particular, e não “a um argumento em forma de
monólogo, sobre um objeto individual e específico” (ROOCHNIK,
1990, p. xii, tradução nossa). Os personagens não estão
representados como simples marionetes da mente em um “teatro
cristalino do intelecto”, como poderia ser inferido por meio da
interpretação de Aristóteles realizada por Nussbaum (1986,
p. 133). Muito pelo contrário, os personagens se destacam por
ser completamente humanos, “modelos potenciais ou reais em
ação” (HOBBS, 2000, p. 65, tradução nossa), personalidades totais
em corpo, coração e alma. Assim, o diálogo retrata claramente a
dinâmica da comunicação real e é um meio para o surgimento
da ética como disciplina genuína e profundamente envolvida nos
assuntos humanos desse mundo.

Outra característica do diálogo é a de convidar o leitor a se


envolver criticamente nos debates e controvérsias que estão
presentes no texto (SAYRE, 1992, p. 235). Os “espectadores”
participantes não são obrigados a ter simpatia por uma voz em
particular, mas são livres para escutar ativa e cuidadosamente as
diferentes vozes à medida que elas se expressam, além de serem
livres também para decidir com o que suas próprias crenças e
convicções coincidem (NUSSBAUM, op. cit., p. 126-127). Além
disso, ao vincular os diferentes pontos de vista e as personagens
de carne e osso, o diálogo apresenta possíveis conexões entre a

260 Bioética Clínica


crença e a moralidade vivida, permitindo-nos apreciar como o
desenvolvimento e a aprendizagem morais podem acontecer e se
materializar (Ibid., p. 127-128).

A seguir, tentarei mostrar como essas observações podem ser


empregadas em um contexto didático por meio da transformação
de uma história chamada “real”, de algum caso médico, em um
diálogo aporético. A história que proponho adaptar é a seguinte5:

Kari, de 37 anos, sofre de problemas mentais. Viveu toda sua vida


em um hospital para pessoas com problemas mentais. Sua irmã,
Grethe, que ela mal conhece, sofre de leucemia severa. Grethe
tem 32 anos e três filhos. Sua vida poderia ser salva com um
transplante de medula óssea. A busca por um doador compatível é
infrutífera. O médico especialista responsável por seu tratamento
solicita, então, que seja realizado em Kari um exame de HLA. O
exame mostra que ela é perfeitamente compatível. A extração de
medula óssea de Kari exige uma intervenção com anestesia para
extrair o tecido de sua crista ilíaca.

Tanto o médico como a mãe e os profissionais que cuidam de Kari


tentam fazer que ela entenda a gravidade da situação. Apesar do
grande esforço realizado, Kari não deseja se submeter à operação.
Os profissionais do hospital de Kari informam ao especialista
responsável por Grethe que já tiveram experiências similares com
Kari, quando ela tinha que se consultar com o dentista. Inclusive
quando ela sentia fortes dores de dente, recusou-se a fazer o
tratamento, e a alternativa que coube foi sua realização de forma
coercitiva.

Para obter a medula óssea de Kari, agora, é realizada a tentativa


de se conseguir o consentimento de seu tutor legal. A mãe
de Kari e de Grethe é a tutora legal de Kari. A mãe autoriza a
extração de medula óssea de Kari. Os profissionais do hospital,
onde se encontra Kari, apresentam opiniões diferentes sobre a
legitimidade dessa tomada de decisão, em que sua mãe exerce,
5. A história foi retirada de Ruyter et al. (2000, p. 27).

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 261


nessa situação, a função de tutora legal. Alguns deles se opõem
e consideram isso como uma conduta exploradora tanto de Kari,
como de sua mãe. Também chamam a atenção sobre o medo
que Kari tem de hospitais e médicos. Outros opinam o contrário,
argumentam que se Kari realmente compreendesse a situação,
sem dúvidas concordaria com a extração. No hospital, Kari tem
um segundo tutor, que nesse caso é uma enfermeira. A mãe tenta
pressioná-la para que ela também dê uma resposta positiva ao
pedido. A enfermeira consente e é realizada a extração de medula
óssea de Kari para depois implantá-la em Grethe.

Um primeiro passo para começar a adaptar essa história seria


determinar quais são os personagens que apresentam pontos de
vista diametralmente opostos sobre as questões fundamentais
que estão envolvidas. Dessa maneira, vários personagens
parecem ser candidatos: Grethe versus Kari; Grethe e sua mãe
versus Kari; Grethe, sua mãe e o especialista responsável versus o
grupo de profissionais do hospital de Kari, que se opõem ao uso
da mãe das mulheres como tutora legal de Kari; o grupo dentro
do hospital, que defende o direito de Kari de escolher versus o
tutor legal de Kari e o resto dos profissionais do hospital. Além de
escolher os personagens principais com pontos de vista opostos,
ao redor dos quais se desenvolverá o diálogo, devemos tratar de
determinar quais são as questões fundamentais e as controvérsias
morais em jogo na história original, e a forma como irão se
desenvolver no diálogo. Finalmente, devemos tentar adaptar as
controvérsias morais identificadas na história original para que
também se torne evidente a possível natureza aporética de sua
resolução. A palavra grega aporia significa “ponto morto, impasse,
dificuldade para passar”, e expressa uma situação ou posição −
tipicamente apresentada nos primeiros diálogos socráticos − para
a qual aparentemente não há saída, forçando assim as partes em
conflito a alcançarem uma compreensão mútua de sua ignorância
e impotência a respeito de como proceder. A mensagem para
o leitor é de que a aporia representa uma forma preliminar de
resolução dos conflitos morais, não só no sentido de que as
partes concordaram que se faz necessário continuar indagando e

262 Bioética Clínica


aprendendo, mas também no sentido de que, por meio do uso da
metodologia moral do elenchus, foram extirpadas as crenças de
natureza errônea inicialmente sustentadas.

Nesse caso, a função do elenchus é a de provocar uma aprendiza-


gem negativa por meio do processo doloroso de descobrir e des-
cartar as crenças contraditórias ou infundadas, e de destacar as
formas de ignorância não reconhecidas e sustentadas pelos dife-
rentes personagens. Mas afirmar que o único objetivo de Sócra-
tes com o elenchus é abordar as incoerências de natureza teórica
das crenças, opiniões e pensamentos de seus interlocutores, seria
uma conclusão precipitada. Essas incoerências são somente sin-
tomáticas, no sentido de que podem ser indicadores da presença
de incoerências mais profundas e fundamentais na vida de uma
pessoa, que, portanto, precisa de um tratamento. Por essa razão,
seria mais apropriado afirmar que o elenchus tem tanto uma fun-
ção crítica como construtiva.

É possível verificar um uso adicional e definitivamente construtivo


do elenchus quando se reconhece o papel especial que assume
no exame não somente de proposições morais, mas também
de bio [ou seja, de vidas]. Cada vez que Sócrates refuta um
interlocutor, mostra que as próprias crenças deste são conflitivas.
Para Brickhouse e Smith (1996, p. 125), “o conjunto de crenças
incoerentes não é, simplesmente, qualquer conjunto de crenças:
é aquele (ou um subconjunto daquele) que, sobre sua base, o
interlocutor vive sua vida e persegue a felicidade”.

Assim, aporia não significa necessariamente ponto final: significa


somente que as últimas páginas da história devem ser decifradas
e que é necessário seguir indagando para, eventualmente,
alcançá-lo.

Após identificar os elementos e fatores relevantes que estão em


jogo em um diálogo moral, gostaria de propor a seguinte versão
da história do caso de Grethe, mais funcional aos propósitos
ético-didáticos.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 263


A primeira parte do diálogo ocorre num quarto de um respeitado
hospital universitário norueguês. Grethe tem sorte porque
a colocaram em um quarto individual. O especialista-chefe
responsável pelo caso de Grethe entra no quarto. Está anoitecendo.
Acabam de servir café e biscoitos, mas Grethe não os tocou.
ESPECIALISTA-CHEFE: Como a senhora está hoje?
GRETHE: Me sinto tão fraca. Só quero dormir.
ESPECIALISTA-CHEFE: A senhora recebeu visitas nesta tarde?
GRETHE: Sim, minha mãe veio com meus filhos.
ESPECIALISTA-CHEFE: Encontrei com eles quando subia para
vê-la.

GRETHE: Não ficaram muito tempo. Me senti sufocada. Só


queria que me deixassem tranquila. Isso me deixa tão triste.
Até a presença de meus familiares mais próximos está sendo
insuportável. Me sinto distante de tudo, de todos. Doutor, o
que está acontecendo comigo? É a doença que me deixa tão
egocêntrica? Costumava amar a vida e a companhia dos outros.

ESPECIALISTA-CHEFE: Não sabemos de antemão como vamos


reagir em casos de doença grave, nem o que faz que cada um
de nós tenha uma reação diferente diante da mesma doença.
Eu mesmo não imagino como eu teria enfrentado uma situação
como a sua.

GRETHE: O que vai ser de mim? Tenho só 32 anos! A saúde está


me abandonando. Meus filhos precisam de mim. Quero viver, mas
não quero esta vida miserável!

ESPECIALISTA-CHEFE: Para ser sincero com a senhora, sua situação


é grave. Precisa de um transplante de medula óssea.

GRETHE: Eu sei disso, mas de onde e de quem posso ganhar um


presente assim?

264 Bioética Clínica


ESPECIALISTA-CHEFE: Tínhamos a esperança de encontrar um
doador de tecido compatível na sua própria família (a melhor
opção em termos médicos), ou buscando no registro internacional
de doadores de medula óssea. Essa última opção nós já tentamos.
E infelizmente, até o momento, não tivemos sucesso, não
conseguimos encontrar um doador adequado.

GRETHE: Não quero morrer, mas se minha única alternativa é viver


assim, então a morte será um alívio.

ESPECIALISTA-CHEFE: Quando eu estava vindo para cá, sua mãe


me disse que não tinha me informado, antes, a existência de uma
irmã sua que vive em um hospital para pessoas com deficiência
mental.

GRETHE: Ah, sim, Kari. Deve ter 37 anos agora. Tem uns cinco anos
a mais que eu.

ESPECIALISTA-CHEFE: Como está Kari?

GRETHE: Não a conheço muito bem. Faz anos que não a vejo. Só
minha mãe a visita com frequência. Mas do que eu me lembro
é de sua aparência deformada e seu comportamento antissocial.
Por que me pergunta isso?

ESPECIALISTA-CHEFE: Ela pode ser uma doadora compatível.

GRETHE: O quê? Kari? Mas ela sofre de retardamento mental.


Realmente é apropriada?

ESPECIALISTA-CHEFE: Sim. Assumo que não há nada de errado


com sua medula óssea.

GRETHE: Bom, sim. Mas e o estado de sua mente? Ela não está
bem mentalmente.

ESPECIALISTA-CHEFE: Em termos médicos, isso não tem


importância. Se seu tecido for o mesmo que o seu, então é um
doador compatível.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 265


GRETHE: Mas está tudo bem envolvê-la? O que ela entende de
tudo isso? Ela nunca fez parte da minha vida.

ESPECIALISTA-CHEFE: A maioria dos doadores de medula óssea


são desconhecidos. Nunca viram seus receptores. Apesar disso se
ofereceram voluntariamente para doar sua medula óssea.

GRETHE: Sim, mas Kari é minha irmã. E, no entanto, para mim, é


uma estranha.

ESPECIALISTA-CHEFE: Entendo sua preocupação. Mas pode ser


que ela seja o único doador compatível que possamos encontrar.
Está acabando o tempo para nós.

GRETHE: O que vai acontecer com ela? Comigo? Com todos nós?

ESPECIALISTA-CHEFE: Contatarei o médico responsável por


Kari ainda hoje e pedirei a ele que extraiam uma mostra do
sangue dela. Caso se confirme que é uma doadora compatível,
tentaremos fazer que ela entenda o que é que está em jogo. Sua
mãe deu seu consentimento para esse procedimento. Ela é a
tutora legal de Kari.

GRETHE: Eu sei disso. Mas preciso saber se isso não vai afetar a
vida e o bem-estar dela. Sei que é meu futuro e minha vida que
estão em jogo, mas a intervenção que o senhor sugere é somente
para o meu bem, não o dela. Ela não vai ganhar nada com isso,
não é verdade?

ESPECIALISTA-CHEFE: Um exame de sangue é uma intervenção


pequena e segura. Não vai causar nenhum dano para ela. Devemos
esperar e ver o que vai ocorrer.

A segunda parte do diálogo ocorre na manhã seguinte, em uma


sala de reuniões do hospital de Kari. O médico responsável por
Kari informa ao resto da equipe sobre a ligação que recebeu do
médico de Grethe.

266 Bioética Clínica


MÉDICO DE KARI: Como está Kari esta manhã?

SEGUNDA TUTORA (uma enfermeira da instituição): Está bem e


tranquila. Vou levá-la para dar um passeio esta tarde.

MÉDICO DE KARI: Temos que fazer um exame de sangue nela.

SEGUNDA TUTORA: Por quê? Aconteceu alguma coisa?

MÉDICO DE KARI: Não, não, não aconteceu nada. É a irmã dela:


uma mãe de 32 anos que sofre de leucemia aguda e que precisa
de um transplante urgente de medula óssea. Não conseguiram
encontrar nenhum doador compatível. Kari é nossa última
esperança.

FUNCIONÁRIA: Nossa última esperança? O que o senhor


quer dizer com isso? Por acaso não é Kari que está sob nossa
responsabilidade?

MÉDICO DE KARI: Sim, mas essa mulher que está doente também
é a irmã de Kari. Não é uma desconhecida!

FUNCIONÁRIA: Como não é? Além da mãe de Kari, alguma vez


vocês viram outra pessoa vindo visitá-la?

SEGUNDA TUTORA: O que a mãe dela acha disso? Deu sua


autorização?

MÉDICO DE KARI: Sim, deu.

SEGUNDA TUTORA: Bom, então acho que está tudo bem.

FUNCIONÁRIA: E se Kari se recusa a fazer o exame? Sabemos


perfeitamente qual é sua reação com as seringas, injeções e essas
coisas. A última vez que teve que ir ao dentista não quis cooperar,
e no final tivemos que obrigá-la.

MÉDICO DE KARI: Exatamente! Ela não sabe o que é melhor


para ela.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 267


FUNCIONÁRIA: Estou de acordo. Mas ela realmente vai ter algum
benefício com esse exame de sangue?

SEGUNDA TUTORA: O que você quer dizer?

FUNCIONÁRIA: Só quero que fiquem claras quais os interesses


que devemos proteger e atender.

MÉDICO DE KARI: Isso é pura retórica. Manipulação de


argumentos. Pediram que realizássemos um exame de sangue
que pode salvar uma vida. Por acaso nossa principal obrigação
não é proteger a saúde e a vida das pessoas?

A seguinte parte do diálogo ocorre três dias depois, na mesma


sala de reuniões do hospital de Kari. O médico responsável por ela
acaba de informar à equipe que o exame de sangue deu positivo.
São discutidos os procedimentos seguintes.

MÉDICO DE KARI: Agora que sabemos que Kari é uma possível


doadora, devemos fazer que ela compreenda o que está
acontecendo. Sugiro que convidemos a sua mãe e que tentemos,
junto com sua segunda tutora, seu consentimento para doar a
medula óssea.

SEGUNDA TUTORA: Supomos que ela se recuse a cooperar. Nesse


caso, ainda somos obrigados a enviá-la ao hospital e submetê-la a
uma extração de medula óssea?

MÉDICO DE KARI: Qualquer pessoa de bom senso que se visse em


uma situação similar sem dúvidas daria seu consentimento. Estou
totalmente convencido disso.

FUNCIONÁRIA: Isso não é verdade. Na literatura sobre medula


óssea e doação de órgãos há vários casos bem documentados
nos quais um membro próximo da família se negou a cooperar6.
Vamos supor que a situação fosse inversa, que fosse Kari quem
6. Para a descrição de um desses casos, ver Beauchamp e Childress (1989, p. 404–405).

268 Bioética Clínica


precisasse da medula óssea e que sua irmã fosse a única doadora
compatível, e se negasse a doar. Como o senhor reagiria nesse
caso?

MÉDICO DE KARI: Sem dúvida tentaria convencê-la para que


mudasse de opinião. Utilizaria todo tipo de meios para fazer que
ela compreendesse a situação. Se, ao final, não obtivesse sucesso,
bom… suponho que teria que me dar por vencido. Não poderia
obrigá-la a cooperar, não é isso?

FUNCIONÁRIA: E no caso de Kari? E se ela diz não? O senhor acha


correto aplicar um tratamento forçado?

MÉDICO DE KARI: Sim, acredito que sim. Como acabo de dizer,


de todas as maneiras ela não entende a gravidade da situação.
Sabemos como reagiu da última vez que teve que visitar o
dentista. Não sabe o que é melhor para ela.

FUNCIONÁRIA: E se ela aceita a extração, como o senhor reagiria?

MÉDICO DE KARI: Seria realmente um alívio. Nesse caso estaria


tudo bem.

FUNCIONÁRIA: O senhor tem certeza? Como podemos estar


certos de que Kari realmente compreendeu o que estava em
jogo? O “sim” nos atende melhor que o “não” para a confirmação
da capacidade de Kari de entender o que está acontecendo? O
senhor mesmo acaba de dizer que é provável que ela não entenda
a gravidade da situação. Para que perder tempo em perguntar
para ela, então?

MÉDICO DE KARI: Novamente a senhora distorce meus argumen-


tos. Parece que para a senhora importam mais os argumentos do
que a saúde e a vida de uma mãe de três crianças pequenas que
sofre de uma terrível doença.

SEGUNDA TUTORA: Isso não é justo. Não acho que minha colega
seja uma pessoa menos compreensiva que o senhor. Acho que

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 269


tanto ela como o senhor e todos nós nos esforçamos para encon-
trar uma saída viável para esse dilema.

MÉDICO DE KARI: Desculpem, não quis dizer o que disse. É que


acho que as ações que salvam vidas devem ter prioridade sobre
os argumentos teóricos.

FUNCIONÁRIA: Entendo sua angústia e concordo totalmente com


sua vontade de lutar pela saúde e a vida de um paciente doente,
inclusive se para isso tivermos que passar por cima de nossos
princípios e valores éticos. Mas não seria melhor para todos se
também compartilhássemos nossas dúvidas e inseguranças
morais? Não acho que nenhum de nós tenha realmente a chave
moral que resolva esse dilema. E, no entanto, devemos tomar uma
decisão, não é verdade?

SEGUNDA TUTORA: Estou totalmente de acordo. Devemos tomar


uma decisão, mas também devemos reconhecer nossas dúvidas
morais.

MÉDICO DE KARI: Sim, devemos fazer isso. E qualquer que seja a


decisão que tomarmos, ainda haverá elementos obscuros nessa
história. Pelo menos nesse aspecto estou de acordo.

A última parte do diálogo ocorre no quarto de Grethe, no hospital,


várias semanas depois de ter sido realizado o transplante de
medula óssea. O especialista responsável por Grethe entra na sala.
Está anoitecendo. Grethe está sentada em sua cama, tomando café.

ESPECIALISTA-CHEFE: Como a senhora se sente hoje?

GRETHE: Ainda um pouco fraca, mas sinto que a vida novamente


está tomando conta do meu corpo e da minha alma.

ESPECIALISTA-CHEFE: Recebeu visitas esta tarde?

GRETHE: Sim, minha mãe veio com meus filhos. Foi tão bom vê-los
novamente!

270 Bioética Clínica


ESPECIALISTA-CHEFE: Encontrei com eles quando subia para ver
a senhora.

GRETHE: Hoje ficaram por duas horas. É tão bom voltar a sentir
que vale a pena viver e compartilhar a vida!

ESPECIALISTA-CHEFE: E sua mãe?

GRETHE: Está bem. Amanhã também vai trazer a Kari.

ESPECIALISTA-CHEFE: Maravilhoso. Com certeza agimos


corretamente quando decidimos extrair a medula óssea de sua
irmã, a senhora não acha?

GRETHE: Nem sei o que dizer. Graças a sua ação e à medula óssea
de Kari minha vida volta a se encaminhar. Devo a vocês dois a
minha vida. Já é hora de convidar Kari a também fazer parte de
minha vida. Pelo menos estou convencida de que isso, sim, é o
mais correto de se fazer.

Assim como disse Pierre Hadot (1995, p. 154, tradução nossa), “não
nos esqueçamos: identificar-nos com Sócrates é nos identificar
com a aporia e a dúvida, porque Sócrates não sabe nada; tudo o
que ele sabe é que não sabe nada”.

O potencial didático do enfoque trágico


As tragédias utilizam, dramaticamente, uma concepção de conflito
moral que pode ser útil para decifrar algumas das “histórias de
doenças” mais enigmáticas que atormentam a medicina moderna
e a vida cotidiana. Começaremos com a pergunta: quais são
as características da tragédia grega? Nos conflitos trágicos, as
possibilidades de resolução baseadas no “compromisso” ou na
“mediação” são uma alternativa inexistente. Segundo, qualquer
decisão que se tome, necessariamente, conduzirá a um grau
extremo de miséria e sofrimento. Terceiro, o sofrimento trágico
aparece como resultado de uma desproporção inexplicável de erro

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 271


ou culpa (hamartia) e miséria. Quarto, em situações de conflito
trágico, a “escolha” está sob uma dupla limitação: a ausência de
uma alternativa livre de culpa e a necessidade de escolher. Dito de
outro modo, a possibilidade de se abster de tomar uma decisão
é inexistente, assim como é inexistente a possibilidade de tomar
uma decisão livre de erro ou culpa. Quinto, a tragédia é uma
representação dramática de um conflito moral que provoca no
público dois tipos de emoções, piedade e temor (eleos e phobos).
Finalmente, Aristóteles diz que é produzido no público um tipo de
catarse, de purificação.

A medicina está cheia de situações trágicas e erros (hamartias).


Tomamos como exemplo a priorização no sistema de saúde,
no âmbito em que são tomadas decisões a respeito de como
distribuir o orçamento e os recursos da saúde. Por que esse é um
problema trágico?

Seja qual for a decisão que as autoridades da saúde adotem,


existirá um grupo de pacientes que se sentirá profundamente
abandonado e para os quais a decisão será questionável. É um
tema trágico porque não existem suficientes recursos para
satisfazer todas as necessidades, e mesmo assim, as autoridades
devem tomar uma decisão. Por isso, esse exemplo se apresenta
como um problema trágico moderno: não existe uma solução
limpa e clara, não existe a solução que deixem todos satisfeitos,
não existe solução sem consequências de deficit para alguma
das partes. E, além disso, não existe uma solução livre de culpa,
ao mesmo tempo em que há uma obrigatoriedade de se tomar
uma decisão. Em outras palavras, não existe possibilidade alguma
de se escapar da tomada de decisão, não é possível abster-se, e,
qualquer que seja a alternativa que se tome, cai-se no erro ou na
culpa, em hamartia. Uma parte do cenário moral permanecerá em
penumbras, em uma zona cinzenta, em um crepúsculo.

O otimismo teórico é dominante na bioética contemporânea:


a crença de que é possível desenvolver uma teoria que possa
iluminar o terreno moral de maneira completa. As tragédias
gregas continuam dizendo-nos que parte desse domínio moral

272 Bioética Clínica


permanecerá em um cone de sombra e que nunca seremos
capazes de iluminar, de maneira completa, essas partes obscuras.

O potencial didático do enfoque cômico


Parafraseando Aristóteles; enquanto o herói trágico se mostra
moralmente um pouco superior ao cidadão comum, uma pessoa
passível de admiração, o contrário se dá no caso da figura cômica,
evidenciado pelo efeito (emocional) que o destino dessa figura
tem sobre os espectadores. Não é um efeito que encarne os
sentimentos dolorosos de pena e temor, mas um efeito que aponta
para uma direção emocional distinta – aponta para a indignação,
para o riso e o ridículo. Dessa maneira, torna-se evidente que o
“herói” cômico pode ter o papel de paradigma moral, embora de
uma maneira diferente ao da figura trágica, no sentido de que
fornece ao espectador a possibilidade de se ver como alguém
com uma moralidade “superior” à que provém da figura cômica. O
efeito terapêutico de ambas as formas de se refletir é uma espécie
de catarse: purificação em relação às emoções que provocam,
sejam de pena ou de temor (tragédia pura) ou indignação, riso
e ridículo (comédia pura), ou alguma outra combinação dessas
emoções conflitivas – obras de teatro que contêm elementos
tanto cômicos como trágicos. A comédia fala das coisas íntimas
de nossa vida, das quais não podemos falar abertamente, como
inveja, frigidez, impotência, incontinência urinária e feiura (além
de outras coisas constrangedoras).

A prática médica está repleta de situações aparentemente


cômicas, ou seja, de coisas das que não podemos falar
abertamente. Tenho em mente formas de dor, sofrimento e
perda de prazer que podem provocar riso e constrangimento nos
espectadores que estão do lado de fora e a uma distância segura
da situação. Mas, para os pacientes que sofrem essas situações,
são coisas extremamente sérias.

Tomamos como exemplos o câncer de mama e o câncer de


próstata. Devido aos avanços na detecção e no tratamento

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 273


precoce, o número de cânceres de próstata e de mama aumentou
consideravelmente. Por essa razão, é necessário ter mais atenção
com os efeitos colaterais de diferentes tipos de tratamento que
costumam ser constrangedores e dos quais, geralmente, “não se
fala”. Especialmente problemas relacionados com as vias urinárias,
o intestino, a função sexual e as mudanças na imagem do corpo e
da autoestima após as cirurgias, a quimioterapia, a radioterapia e
o tratamento hormonal.

Na literatura bioética, foram escritas milhares de páginas sobre


os direitos dos pacientes relacionados à autonomia nas decisões
sobre sua saúde e sua enfermidade. Mas o que implica, em
termos práticos, respeitar as percepções idiossincráticas dos
pacientes sobre sua situação e as escolhas que eles tomam, ou
seja, sua autonomia? Moralmente falando, isso implica aceitar
que, quando adoecemos, nos retraímos, no sentido de que nossa
atenção está mais dirigida para nossos próprios medos e formas
de sofrimento do que para as necessidades daqueles que estão
perto e que amamos, incluindo, para muitos pacientes, aqueles
problemas, antes mencionados, dos quais não se pode falar. Essa
é exatamente a forma como Aristóteles descreve o horizonte
moral da figura cômica. Desse modo, pode ser importante
aceitar e respeitar a forma como os pacientes podem observar e
experimentar suas situações, isso significa que nem sempre uma
pessoa vai reagir de forma “racional”, mas como uma forma de
existência, na qual as dimensões aparentemente repugnantes e
ridículas da vida ocupam o centro do cenário. Por essas razões, a
bioética também tem que reorientar e ampliar seu enfoque, a fim
de não excluir, de uma análise séria, as dimensões aparentemente
cômicas dos sofrimentos dos pacientes.

Algumas reflexões bio(po)éticas finais


sobre o teatro antigo grego e o cinema
Uma maneira de nos reencontrar com o antigo teatro grego é
indo ao cinema. Porque, hoje em dia, é o bom cinema que exerce

274 Bioética Clínica


a função que, antigamente, os gregos reservavam ao teatro. O
cinema, como se sabe, adota elementos da pintura, da fotografia,
da música, do teatro, da literatura, da escultura e da arquitetura. E
mais recentemente, das tecnologias digitais de animação artística.
Como lembra Alain Badiou (2004, p. 71),

a relação com o cinema não é uma relação de contemplação.


[…] No cinema, temos o corpo a corpo, temos a batalha,
temos o impuro e, portanto, não estamos contemplando.
Estamos fundamentalmente na participação, participamos
desse combate, julgamos as vitórias, julgamos as derrotas e
participamos da criação de alguns momentos de pureza.

Em outras palavras, durante experiência de ver um filme, o espec-


tador participa do próprio ato da criação. O cinema não é a mera
ilustração de sujeitos éticos, mas uma matriz onde acontece o ato
ético-estético, inaugurando uma nova possibilidade de reflexão.
Desde seu início, o cinema desenvolveu problemáticas éticas.
Com o crescimento e expansão da indústria cinematográfica,
esses temas foram alcançando um público cada vez mais massi-
vo, promovendo interessantes debates dentro e fora dos âmbi-
tos acadêmicos. As questões éticas são apresentadas no cinema a
partir de uma perspectiva dupla. Por um lado, quando o cinema
se propõe, de maneira explícita, levar às telas debates éticos con-
temporâneos. Por outro, quando espectadores e analistas encon-
tram na obra de arte, a oportunidade para a reflexão moral e ética,
superando muitas vezes os propósitos iniciais de seu realizador.
Em ambos os casos, o resultado é uma extraordinária experiência
de pensamento e ação.

Quando utilizamos obras de ficção ou de teatro ou filmes no


ensino da bioética, temos que levar em consideração que há
três desafios metodológicos a serem resolvidos. Em primeiro
lugar, temos que desenvolver uma metodologia para identificar
pedacinhos e fragmentos dessas obras que, em vez de rupturas
emocionais, promovam aprendizagem moral. Além disso, temos
que desenvolver uma metodologia para analisar essas narrativas

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 275


de um modo que promova uma aprendizagem moral purificadora
(catarse suave). Isso nos leva, finalmente, à pergunta sobre como
deveria, falando metodologicamente, proceder-se quando se
explora o potencial catártico dessas narrativas. Aqui há uma
lista de perguntas que precisam ser levadas em conta quando
essas narrativas são usadas. As primeiras seis da lista − que não
são necessariamente as primeiras que devem ser tratadas −
sinalizam algum tipo de problema intersubjetivo diagnóstico, ou
seja, apontam para a identificação de diferentes problemas que
surgem da narrativa. São elas:
• Quais são os problemas centrais da narrativa?
• Quais são os conflitos, dilemas e problemas morais
apresentados?
• Quais são os princípios morais em conflito?
• Em qual ordem de importância moral deveriam
aparecer os diferentes conflitos, dilemas e problemas?
• Qual é a justificativa para tal ordem?
• Quem são os personagens implicados na narrativa
e qual é a relação entre eles e seu papel no problema
principal selecionado?

Ao abordar essas perguntas, torna-se de suma importância que


o facilitador didático mantenha um diálogo genuíno com os
ouvintes e lhe ofereça a possibilidade de utilizar suas próprias
sugestões para o diagnóstico situacional. O segundo grupo de
perguntas concentra a atenção nos próprios espectadores e em
suas reações e percepções subjetivas da narração que lhes foi
apresentada:
• Até que ponto coincide a resolução ou não resolução
dos conflitos dramatizados com as percepções morais
dos espectadores?
• Por que algumas pessoas não concordam com a
resolução ou não resolução mostrada na obra analisada?

276 Bioética Clínica


• Até que ponto e de que maneira o público foi
sensibilizado pela narrativa?
• Em outras palavras, quais foram suas reações
emocionais diante da representação dos conflitos e sua
resolução ou não resolução? Pena, temor? Indignação?
Constrangimento e riso? Dúvida? Indiferença?
• Por que alguns membros do auditório foram tocados/
sensibilizados pela narrativa?
• Como justificam, moralmente falando, suas reações ou
não reações?
• O que as reações da moral, que esses espectadores
tiveram, nos mostram?
• O que as convicções/crenças e princípios morais, que
eles mesmos carregam, nos mostram?
• Até que ponto e de que maneira a narrativa desafia as
convicções morais presentes nessas pessoas?
• Qual seria, para cada um dos espectadores, a resolução
que se destaca para os conflitos narrados?
• Como eles teriam resolvido os conflitos morais
apresentados, se eles mesmos estivessem envolvidos na
história?
• Além disso, como procederiam para reconstruir a
história para se adequar a suas próprias intuições morais?

Enquanto o auditório interage entre si, analisando os conflitos


morais apresentados em um filme ou em um peça de teatro e
suas respectivas soluções/não soluções narradas, o facilitador
pode desempenhar o papel de agente ou remédio terapêutico,
mostrando como as diferentes posturas éticas e os marcos
teóricos podem ajudar a entender os conflitos morais
apresentados, as justificativas e os resultados narrados. Assim
como pode apresentar também as possibilidades de saída e
justificativas que emergem do diálogo. A expectativa seria que o

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 277


resultado dessa interação fosse um tipo de catarse previamente
consagrada como moralmente superior; ou seja, uma catarse do
tipo moderada e terapêutica.

Epílogo
Uma última reflexão bio(po)ética pode ser extraída do poema
Dolor común, de Miguel de Unamuno.
Cállate, corazón, son tus pesares
de los que no deben decirse, deja
se pudran en tu seno; si te aqueja
un dolor de ti solo no acíbares

a los demás la paz de sus hogares


con importuno grito. Esa tu queja,
siendo egoísta como es, refleja
tu vanidad no más. Nunca separes

tu dolor del común dolor humano,


busca el íntimo aquel en que radica
la hermandad que te liga con tu hermano,

el que agranda la mente y no la achica;


solitario y carnal es siempre vano;
sólo el dolor común nos santifica.

A ficção e a poesia, assim como o teatro, o cinema e a música,


podem servir como o esperanto da bioética, pois o cultivo moral
não é somente aprendizagem cognitiva, mas um assunto de
nosso coração.

278 Bioética Clínica


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280 Bioética Clínica


Comitês de bioética clínica

Elcio Luiz Bonamigo1


Bruno Rodolfo Schlemper Junior2
Maria Teresa de Campos Velho3

Introdução
A recente evolução científica disponibilizou aos pacientes
novos procedimentos e tratamentos que, na maioria das vezes,
proporcionam benefícios a sua saúde. Contudo, a possibilidade
de intervir na evolução normal da vida das pessoas, causando
efeitos indesejados, suscitou o estabelecimento de conflitos éticos
inusitados que despontaram com mais intensidade na segunda
metade do século XX.

A dimensão moral de algumas condutas decorrentes desses


avanços ultrapassou os limites das orientações contidas no
Juramento de Hipócrates e nos Códigos de Ética profissionais,
gerando perplexidade.

Um caso emblemático ocorreu nos Estados Unidos com a jovem


Ann Karen Quinlan, que se encontrava em coma irreversível. A
decisão do Supremo Tribunal, em 1976, de solicitar o parecer de
um comitê hospitalar para que esclarecesse as reais condições da
paciente serviu de estímulo para sua posterior implantação em
outras instituições do país (SGRECCIA, 2009, p. 311).

1. Doutor em Bioética pela Universidad Rey Juan Carlos (Madri), membro do Comitê de
Ética em Pesquisa, docente da graduação e do mestrado em Biociências e Saúde da Uni-
versidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc).
2. Pós-doutor em Bioética pela Universidad Complutense de Madrid, doutor em Medicina,
docente da graduação em Medicina e do mestrado em Biociências e Saúde da Universida-
de do Oeste de Santa Catarina (Unoesc).
3. Pós-doutora em Bioética pela Universidad Complutense de Madrid, doutora em Enfer-
magem (UFSC), docente do Mestrado Profissional em Ciências da Saúde (CCS/UFSM) e
membro do Comitê de Bioética do Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM)

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 283


Na década anterior, tornara-se notório um comitê hospitalar
estadunidense, em Seattle, formado com função específica de
selecionar, entre muitos pacientes, os escolhidos para ocuparem
as poucas vagas disponíveis em uma unidade de diálise renal.
Embora com funções limitadas, esse comitê chamou a atenção
para a possibilidade de funcionamento dos comitês institucionais
na deliberação de conflitos morais hospitalares.

Assim como o avanço da ciência foi envolvido na criação da


bioética nos anos 1970, ele também está relacionado com a origem
da criação dos Comitês de Bioética no mundo. Esses comitês vêm
se constituindo um importante instrumento de discussão ética de
casos graves e/ou dilemáticos e/ou irreversíveis.

Os Estados Unidos foram o primeiro país a implantar e


desenvolver de forma abrangente esses comitês, tendo, em
1995, a Joint Commission for Accreditation of Healthcare
Organizations (JCAHO) – Comissão Mista de Acreditação de
Organizações de Saúde – incluído alguns requisitos institucionais
éticos para resolver problemas sobre o tratamento de suporte de
vida e reanimação, ou seja, passou-se a valorar a existência dos
comitês de ética clínica nos hospitais estadunidenses para o seu
credenciamento. Assim, a partir de 1982, a quantidade de comitês
aumentou rapidamente – inicialmente apenas 1% dos hospitais
tinham comitês dessa natureza, mas, em 1988, essa porcentagem
subiu para 60% dos hospitais com mais de 200 leitos. Enquanto
isso, na Europa, embora tenha trilhado um caminho de forma
mais lenta e tardia, no momento, a ampliação do número de
comitês ganhou destaque. O próprio Parlamento Europeu possui
um comitê ético que analisa as questões referentes ao avanço da
ciência e sua repercussão na vida de seus cidadãos.

No Brasil, o primeiro Comitê de Bioética (CB) surgiu no Hospital


de Clínicas de Porto Alegre, em 1996, mas a evolução tem
sido muito lenta e com muitas dificuldades (FRANCESCONI;
GOLDIM; LOPES, 2002; KAWAMURA et al., 2012). Entretanto,
recente impulso adveio por meio da Recomendação 8/2015, do
Conselho Federal de Medicina (CFM), que incentiva a criação e

284 Bioética Clínica


o funcionamento de CB, bem como a participação dos médicos
em sua composição. Observa-se neste documento que as funções
dos CB não se limitam à deliberação moral, mas abrangem a tarefa
educativa, de revisão ou proposição de documentos. No Brasil,
porém, lamentavelmente, não se percebe a cultura da utilização
dos comitês éticos hospitalares no apoio às difíceis decisões
sobre situações críticas de pacientes. É necessário esclarecer
que estes comitês não interferem na conduta do médico, mas
apenas opinam sobre consultas encaminhadas pelos profissionais
e instituições de saúde, pacientes ou seus familiares. Aliás, é
necessário lembrar que a sua principal função é defender os direitos
e o bem-estar dos pacientes. Algumas das situações em que isto
possa ser necessário são: renúncia ao tratamento de suporte de
vida, ordem de não reanimar, avaliar diretivas antecipadas, avaliar a
capacidade de tomada de decisão do paciente e analisar questões
sobre conflitos éticos e financeiros (LUNA; BERTOMEU, 1998).

Porém, para os médicos, uma consulta a um CB pode melhorar


sua tomada de decisão, mostrar à equipe profissional como
identificar e resolver problemas éticos de pacientes em fase final
de vida, clarificar uma legislação aplicável e ajudar a obter uma
solução ética prudente num caso clínico de cuidado médico que
instiga dúvidas de condutas ou se interpõe valores divergentes. É
necessário recordar que a ética médica integra a raiz histórica da
bioética e está a tal ponto imbricada que ela não se sustentaria sem
a participação da ética e, por sua vez, os CB não teriam nenhum
sentido e nem eficácia sem a presença dos profissionais da
medicina (FERNÁNDEZ, 2007, p. 6), o que reforça a necessidade de
absorção da recomendação do CFM. Para a instituição, a consulta
pode diminuir a exposição à responsabilidade, complementar a
gestão de riscos e a melhoria da qualidade e, no futuro, ajudar
a atender aos requisitos éticos de acreditação hospitalar. Para
os pacientes, a consulta pode facilitar a comunicação entre o
paciente e seus médicos e entre o paciente e sua família, quando
a sedação e cuidados paliativos perto do fim da vida estão em
questão e também quando sua capacidade de tomada de decisão
pode estar prejudicada ou mesmo ausente.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 285


Importantes instituições internacionais, como a Unesco e OMS,
criaram comitês éticos próprios e não só passaram a estimular seu
surgimento no mundo todo (como um importante mecanismo no
apoio às decisões clínicas específicas e no processo educacional
de difusão da bioética), como também criaram manuais e guias
de apoio aos países, hospitais e instituições interessadas em sua
implantação.

A implantação de um CB não é exclusiva de hospitais, podendo


se estender para outras instituições de assistência, atenção
básica à saúde e associações (PETRY et al., 2010; ABELLÁN, 2010;
ORGANIZACIÓN DE LAS NACIONES UNIDAS PARA LA EDUCACIÓN,
LA CIENCIA Y LA CULTURA, 2006). Essa nova tendência de
funcionamento, em instituições hospitalares e não hospitalares,
foi incorporada pela Recomendação 8/2015 do Conselho Federal
de Medicina (2015). Nesse contexto, o objetivo deste capítulo é
descrever dados da história, as funções, a composição e as atuais
tendências dos CB.

História
Segundo Digilio (2004), o desenvolvimento histórico dos comitês
pode ser ilustrado por alguns casos célebres na bibliografia
mundial, que permite, ao mesmo tempo, categorizá-los de
acordo com suas funções e estrutura, como ético-praxiológicos,
jurídico-científicos (Julgamento de Nuremberg) e deontológicos-
-técnicos (Códigos de Ética Médica), sendo os organismos em tela
inseridos na primeira classificação, explicitada no novo método
que recupera o conceito aristotélico da deliberação prudente e
acrescenta elementos filosóficos dos valores humanos (GRACIA,
2004).

Embora na década de 1920 já tivessem sido criados, nos Estados


Unidos, alguns comitês específicos para examinar uma possível
esterilização de indivíduos mentalmente deficientes para fins
de eugenia ou para a avaliação de potenciais casos de aborto

286 Bioética Clínica


terapêutico, bem como em outros países europeus, a origem
dos atuais CB se situa em três momentos históricos nos anos
1960 e 1970.

Caso da diálise de Seattle


Uma dessas origens remonta aos anos 1960 e está ligada ao
primeiro procedimento de hemodiálise em pacientes renais
crônicos (BLAGG, 2007). Tal situação ocorreu na cidade de
Seattle, em Washington, quando foi aberta a primeira unidade de
hemodiálise de longa duração, o Seattle Artificial Kidney Center,
desenvolvida pelo Dr. Belding Scribner.

Tendo em vista que o número de máquinas era muito reduzido


e a demanda de pacientes era muito grande, surgiu o impasse
ético sobre como deveria ser a ordem dos atendimentos, uma vez
que os pacientes que não se submetessem ao aparelho poderiam
estar condenados à morte. Dessa forma, Dr. Scribner apelou para
que alguém assumisse essa responsabilidade, pesada demais para
ser decidida por uma única pessoa. Na época, ele mesmo sugeriu
a constituição de um comitê pelo hospital. Assim, foi criado
o Admissions and Policies Committee of the Seattle Artificial
Kidney Center at Swedish Hospital, do qual os membros eram
um cirurgião, um funcionário público, um padre, um banqueiro,
um líder comunitário, uma dona de casa e um advogado – todos
indicados pela King County Medical Society.

No verão de 1961, o Life or Death Committee de Seattle reuniu,


pela primeira vez, seus sete membros, e por mais de um ano
exerceu sua difícil missão, voluntariamente e sem nenhum
pagamento. Os médicos apenas orientavam os membros de que
não deveriam escolher pacientes crianças ou com mais de 45 anos
(por razões técnicas), que não havia nenhuma norma ou manual a
seguir e que o comitê deveria criar suas próprias regras.

Dessa forma, entende-se que o Life or Death Committee está ligado


à história dos CB, pelo menos nos Estados Unidos, haja vista sua

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 287


composição multidisciplinar, sem remuneração, com membros
de ambos os sexos e com função específica de deliberação sobre
seleção de pessoas para ser submetida à diálise e cujos critérios
adotados podem ser considerados de natureza ética.

Seis meses após, o comitê elaborou seu estatuto social e se


reunia anonimamente para decidir quem poderia ter acesso ao
procedimento, ou seja, quem poderia ser mantido vivo ou quem
iria morrer de insuficiência renal crônica. De fato, dentre os critérios
adotados pelo comitê, encontram-se o caráter, comportamento
moral, potencial benefício para a sociedade do paciente e um
conjunto de valores pessoais, entre outros. Dessa forma, é possível
vislumbrar alguns princípios éticos, como o utilitarismo, a justiça,
a responsabilidade, o bem-estar social, o comportamento moral,
entre outros. O comitê concluiu que o “valor social” referente à
contribuição antecipada do paciente à sociedade, seria o principal
critério para determinar quem receberia o tratamento de suporte
de vida (ROSS, 2012). Aqueles indivíduos considerados altamente
valiosos para a sociedade receberiam diálise para facilitar a sua
reabilitação física e retornar ao trabalho, empregos, famílias e
deveres cívicos.

Um artigo publicado na revista semanal americana Life, em maio


de 1962, sob o título “They decided Who lives, Who dies − Medical
miracle and a moral burden of a small committee” (“Eles decidiram
quem vive, quem morre − milagre médico e um ônus moral de um
pequeno comitê”), aborda a história da falta de recursos para tratar
os pacientes renais crônicos e do comitê criado, denominado de
The God Committee (ALEXANDER, 1962). Essa reportagem teve
muita repercussão pública e o assunto passou a ser discutido
pela população. Porém, essa inusitada forma de selecionar vidas
originou críticas sobre os aspectos éticos do programa, tendo o
governo federal, anos depois, criado as condições para atender a
todos os pacientes renais crônicos (BLAGG, op. cit.; RETTIG, 2011)

288 Bioética Clínica


Caso Karen Ann Quinlan
Uma situação paradigmática foi o caso ocorrido na Corte Suprema
de Nova Jersey, nos Estados Unidos, em 31 de março de 1976, e
que recebeu uma sentença do juiz Richard Hughes. Sua decisão
foi uma resposta a uma demanda para suspender a respiração
artificial de uma jovem em coma profundo.

Tratava-se de Karen Ann Quinlan, uma jovem de 22 anos que, em


15 de abril de 1975 chegou à emergência de um hospital em coma.
Como a paciente evoluiu para estado vegetativo persistente, o juiz
solicitou um parecer do Comitê de Ética do Hospital Saint Clair,
de Nova Jersey, para fundamentar sua decisão. Essa solicitação
foi influenciada por um artigo escrito em 1975 por uma pediatra
(TEEL, 1975), sugerindo a criação de CB. Em decorrência, a
instituição criou, rapidamente, um comitê que analisou o caso e
concluiu por sua irreversibilidade.

Após embates jurídicos, a Suprema Corte de Nova Jersey, em 31 de


março de 1976, por unanimidade, reconheceu que seu pai era seu o
guardião com todos os direitos de determinar o tratamento médico,
incluindo o direito de descontinuar todas as medidas extraordinárias
de suporte terapêutico (KAREN ANN QUINLAN HOSPICE, 2013).
Nove anos após a interrupção de sua respiração artificial, Karen Ann
Quinlan faleceu por septicemia (KINNEY et al., 1994).

Este caso pode ser considerado um dos mais relevantes, pois na


raiz da sentença judicial foi constituído o primeiro CB hospitalar.
Além disso, Karen Ann tornou-se o símbolo contra o abuso da
tecnologia nos tempos atuais e pelo direito de morrer, pois seu
caso se constituiu um debate público sobre os aspectos morais,
constitucionais e legais desse direito (ROSINSKI, 1980).

Caso Baby Doe


O principal desses casos clínicos ocorreu em 1982 e ficou conhecido
como “Baby Doe”, no qual os pais de um bebê de Bloomington,

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 289


Indiana, com síndrome de Down, não autorizaram a cirurgia
para corrigir a atresia de esôfago com fístula traqueoesofágica
da criança. O primeiro médico que a examinou, recomendou a
cirurgia, referendado pelo primeiro juiz que analisou o caso. Porém,
seus pais se recusaram a concordar e receberam a aprovação do
tribunal para prosseguir apenas com os cuidados conservadores.
O bebê foi levado para casa e faleceu após seis dias, apesar dos
apelos dos médicos que solicitavam a intervenção cirúrgica. Nesse
ínterim, o Departamento de Saúde e Serviços Sociais dos Estados
Unidos se interessou pelo caso e solicitou os registros médicos de
Baby Doe, os quais foram negados, em duas instâncias judiciais,
em 1983 e 1984.

Diante da repercussão desse caso, travou-se uma intensa batalha


judicial, tendo de um lado o órgão público estadunidense
(que editou normas de orientação para cuidados de crianças
incapacitadas conhecidas como regras federais “Baby Doe”, as
quais objetivavam evitar o abandono pelos pais) e, de outro,
entidades médicas, hospitalares e judiciais que, em nome do dever
médico da confidencialidade e do direito dos pais à privacidade,
defendiam a decisão. Após esse fato, o governo estadunidense
recomendou a instalação dos comitês de ética em todos os
hospitais, concedendo incentivos para isto.

Caso Baby Jane Doe


Em 1983, uma situação semelhante ocorreu com outra criança,
trazendo novamente a questão do tratamento de recém-nascidos
com deficiências para a atenção pública. Esse segundo bebê,
Baby Jane Doe, nasceu em 11 de outubro de 1983, em Nova
Iorque, com uma coluna vertebral bífida (meningomielocele),
hidrocefalia e microcefalia. Os pais consultaram especialistas,
igreja e assistentes sociais e decidiram tratar do recém-nascido
apenas com medidas conservadoras em vez de cirurgia para
reparar os defeitos congênitos. A criança, com graves deficiências

290 Bioética Clínica


físicas e mentais, sobreviveu por nove anos. O advogado da família
de Baby Jane Doe asseverou que foi uma vitória da liberdade dos
pais de bebês deficientes de tomarem decisões por conta própria,
sem a interferência do Estado.

Deve-se referir que, em decorrência desses casos, a Lei Baby Doe,


ou Emenda Baby Doe, foi acrescentada à Lei do Abuso Infantil,
em 1984, estabelecendo critérios e diretrizes específicos para
o tratamento de recém-nascidos gravemente enfermos e/ou
com deficiência, independentemente da vontade dos pais. Em
novembro do mesmo ano, o governo entrou com uma ação contra
o hospital, porém o tribunal concluiu que a instituição não havia
violado a emenda e que o plano de tratamento hospitalar para a
criança foi baseada na decisão dos pais de recusar a cirurgia, não
caracterizando discriminação. O tribunal também afirmou que
a decisão dos pais foi “razoável” com base nas “opções médicas
disponíveis e preocupação genuína com os melhores interesses
da criança” (ANNAS, 1984, p. 227, tradução nossa).

Com isto, em 1986, o novo regulamento federal foi derrubado pela


Suprema Corte dos EUA, sob a alegação de que a autonomia dos
estados havia sido violada e que a lei não se aplica à assistência
médica de crianças deficientes (THE NEW YORK TIMES, 1992).

Os primórdios dos Comitês de Bioética (CB)


A Academia Americana de Pediatria (AAP) participou, desde 1982,
da discussão sobre as questões éticas relativas ao atendimento
aos dois Baby Doe. Em 1983, a AAP não concordou com a emenda
governamental à lei do menor e contestou com êxito essa norma
no tribunal. Em 1984, criou no país comitês de ética denominados
de Infant Bioethical Review Committees (LANG, 1985). A partir daí,
a AAP passou a instar os hospitais a criarem esses comitês e, em
1984, elaborou o primeiro guia para criação de comitês infantis
(AMERICAN ACADEMY OF PEDIATRICS, 1984). Estes foram criados
para proporcionar educação, desenvolver e recomendar políticas

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 291


institucionais e oferecer consulta a provedores e famílias que
enfrentam uma gama de problemas éticos no tratamento médico
de crianças gravemente enfermas.

Na sequência, o Departamento de Saúde e Serviços Sociais dos


Estados Unidos endossou o conceito de comitês de revisão
infantis, como sugerido pela AAP e, a partir de então, a criação dos
CB evoluiu consideravelmente, a ponto de, em 1986, 51,6% dos
hospitais americanos com UTI neonatal possuírem o citado comitê
(FLEMING et al., 1990). Percebe-se, assim, a estreita vinculação da
entidade médica AAP e da ética médica na origem dos CB.

Portanto, esse foi o embrião dos CB nos Estados Unidos e no


mundo, tendo por pano de fundo o Comitê de Seattle, as decisões
dos pais dos casos “Baby Doe” e de Karen Ann Quinlan. A aceitação
pelos hospitais foi muito grande e com prevalência crescente
para criação de novos CB. Todas as normas existentes, na época,
referiam que a função primeira dos comitês era servir ao paciente,
seus direitos e seus melhores interesses (MEYER, 1992). Contudo,
ainda nos anos 1990 e com ênfase recente, começaram a surgir,
nos Estados Unidos, os Consultores Éticos (Ethics Consultants), o
que é controverso no contexto dos Comitês de Ética Hospitalar
(LOEWY, 1990).

Nomenclatura dos comitês


A diversidade das denominações existentes sobre comitês de
natureza ética/bioética, associada à necessidade de facilitar o
entendimento, justifica que se faça uma breve abordagem da
nomenclatura.

O Guia 2 da Unesco (ORGANIZACIÓN DE LAS NACIONES UNIDAS


PARA LA EDUCACIÓN, LA CIENCIA Y LA CULTURA, op. cit.), que
trata genericamente do funcionamento dos CB, divide-os em
quatro tipos: Comitês Normativos e/ou Consultivos; Comitês
das Associações Profissionais da Saúde; Comitês de Ética em
Pesquisa; Comitês de Ética Assistencial. Os três primeiros não

292 Bioética Clínica


correspondem aos comitês abordados neste capítulo por terem
funções claramente diferentes.

Por sua vez, os Comitês de Ética Assistencial possuem denominações


distintas, podendo variar com o país ou dentro do próprio país.
Segundo observa Bacca (2003), os Comitês de Ética Assistencial
equivalem aos Comitês de Bioética Clínica cuja origem remonta aos
Institucional Ethics Committees existentes nos Estados Unidos.

Contudo, um esclarecimento mais abrangente sobre a diversidade


terminológica foi oferecido por Genro, Francesconi e Goldim (2014)
ao afirmarem que “os comitês podem ser chamados de Comitê de
Ética, Comitê de Ética Hospitalar, Comitê de Bioética Hospitalar,
Comitê de Ética Clínica e Comitê de Bioética Clínica, podendo
ainda utilizar o nome de Comissão em vez de Comitê”. Os autores
relembram que, na área assistencial, em 1993, foi criado o Comitê
de Bioética Clínica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, que foi o
primeiro a funcionar no Brasil.

Marinho et al. (2014) apontam para a tendência brasileira de


denominar “Comitês de Bioética Clínica ou Hospitalar”. Dessa
forma, considerando-se que os comitês não se restringem
aos hospitais, mas podem funcionar em instituições de saúde
não hospitalares, conforme recomendação do Conselho
Federal de Medicina, foi adotada a denominação de “Comitê
de Bioética Clínica” (CBC) neste capítulo, na expectativa de que
essa nomenclatura seja adotada para possibilitar uma melhor
identificação e compreensão de sua função precípua.

Funções dos Comitês de Bioética Clínica (CBC)


A realidade do nível de complexidades dos processos saúde/
doença, notadamente ocorridos após o ano de 1960, nos
mais diversos aspectos e patamares, exige da sociedade e dos
profissionais da saúde opinar sobre questões às quais, muitas
vezes, eles não se encontram preparados. Na atualidade, é

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 293


fundamental realizar a associação a outros tipos de abordagem
dessas situações, que não são mais apenas as convencionais.
Essas, no passado, eram determinadas por uma única pessoa,
que foi, em geral, o médico ou no máximo os staffs médicos. As
equipes multiprofissionais de atuação interdisciplinar, com a
presença de pessoas que tenham uma qualificação que perpassa
o nível apenas técnico é, hoje, substancial. O principal foco de
ação dos CBC pontua a tentativa de elucidar e resolver, racional
e razoavelmente, os conflitos de valores que se apresentam na
prática clínica mediante processos dialógicos, nos quais se opera,
também, o papel educativo da linguagem em ambiência moral.

Os CBC são órgãos consultivos de extrema necessidade e


importância, que se articulam dentro de uma medicina e ações
orientadas ao paciente − reconhecido como agente moral e
autônomo e, igualmente, a suas famílias e equipes de saúde
(GRACIA, 2003; ORGANIZACIÓN DE LAS NACIONES UNIDAS PARA
LA EDUCACIÓN, LA CIENCIA Y LA CULTURA, op. cit.; LUNA; SALLES,
2008; GENRO; FRANCESCONI; GOLDIM, op. cit.).

Os métodos de análise dos dilemas éticos, propostos por diversos


autores, necessitam ser estudados, conhecidos e implementados
(GRACIA, op. cit.; GONZÁLEZ, 2002b; GILLIGAN, 1982; PELLEGRINO;
THOMASMA, 1988). Considera-se que as discussões e deliberações
nos casos complexos e dilemáticos nas questões de saúde/
doença não podem ser pautadas, exclusivamente, no senso
comum, tampouco somente no aporte técnico-científico − pode-se
exemplificar: casos que aportam as questões do final de vida, as
reanimações, as recusas de tratamento, os transplantes, o aborto, a
necessidade do uso de medicamentos, os processos diagnósticos
e terapêuticos de alto custo, entre outros muitos. Dessa forma,
uma das principais funções dos CBC é intermediar, promover
e prover as consultas éticas e morais que remontam sobre os
casos clínicos relevantes, ao pessoal que vivencia as realidades
assistenciais, além dos pacientes e seus familiares (ABEL, 2003;
ÁLVAREZ, 2003; FERRER, 2003; GRACIA, op. cit.; RUIZ-VALDEPEÑAS;
GONZÁLEZ, 2012; GENRO; FRANCESCONI; GOLDIM, op. cit.).

294 Bioética Clínica


O comitê precisa optar por um método deliberativo, destacando o
preconizado pelo professor espanhol Diego Gracia, assunto visto
no capítulo 6 deste livro.

As demais funções são as educacionais e as promotoras de


políticas e programas institucionais que buscam promover a
formação de seus próprios membros, dos profissionais da saúde e
administrativos e da comunidade na qual irão interagir. A respeito
desse último item, é importante salientar que há a necessidade de
levar em conta quais são os casos de maior ocorrência e relevância
no hospital/instituição ao qual o CBC pertence. Seguindo na linha
educacional aponta-se que pode ser executada de diversos
modos: aulas; discussões de grupos em áreas críticas (CTI, por
exemplo); uso de instrumentos pedagógicos, como filmes e
narrativas com discussões a posteriori utilizando, inclusive,
métodos de análise destes, como os sugeridos por Moratalla
(2010). Toda a labuta teria como fim difundir o trabalho de um CBC
na instituição, que, com posturas sérias, honestas e capazes, acaba
tendo seu reconhecimento por mérito (ABEL, op. cit.; ÁLVAREZ,
op. cit.; FERRER, op. cit.; GRACIA, op. cit.; GENRO; FRANCESCONI;
GOLDIM, op. cit.; RUIZ-VALDEPEÑAS; GONZÁLEZ, op. cit.).

Destaca-se que em alguns países, como a Espanha, por exemplo,


também se considera uma das funções dos CBC a elaboração dos
chamados PECs (Protocolos de Ética Clínica). Ruiz-Valdepeñas e
González (op. cit.) afirmam que um PEC poderia ser elaborado
quando ocorre um problema complexo na ética clínica, relevante
e que se repete com grande frequência na instituição, e quando
os padrões ou recomendações para as propostas de soluções dos
casos não estão claros ou são contraditórios (como as recusas de
tratamento, ordens de não reanimação etc.).

Existe uma série de exigências de como um CBC deve atuar para


elaborar e propor um PEC. Assim sendo, é preciso se basear na
casuística do centro, em sólida bibliografia revisada e atualizada
(bioética, científica e legal). Segundo esses autores, tais guias
poderiam auxiliar a movimentar o pensar ético e colocar em
prática, através de um caminho auxiliar –, o protocolo que pode

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 295


ser usado de um modo flexibilizável − as questões éticas e morais
relacionadas aos casos clínicos.

Os CBC, por meio de seus membros e métodos de análise utilizados,


auxiliam na tomada de decisões nos conflitos éticos emanados
do exercício da clínica ao propor as recomendações acerca dos
dilemas provindos de casos concretos que podem se constituir
de demandas institucionais, de profissionais de várias áreas, de
pacientes, de familiares destes, das equipes de saúde. Assim sendo,
após reuniões com o fito de discutir e deliberar, com bases sólidas de
conhecimentos multidisciplinares e interdisciplinares a respeito dos
casos, os comitês elaboram e emitem os pareceres – guias ao nível
da recomendação, sugestivos e não vinculantes – na tentativa de
ajudar o encaminhamento dos casos em seus diferentes aspectos
e em cada contexto. Segundo alguns autores, constitui-se
uma orientação, para o enfrentamento das situações práticas
do cotidiano dos profissionais da saúde, repassada, estudada,
deliberada e vista por diferentes olhares atentos ao bem-estar do
paciente, naquilo que o paciente significa como “o seu bem-estar”,
sempre respeitando as leis vigentes em cada país (GRACIA, op. cit.;
ORGANIZACIÓN DE LAS NACIONES UNIDAS PARA LA EDUCACIÓN,
LA CIENCIA Y LA CULTURA, op. cit.; COHEN, 2007).

O CBC salienta a defesa dos direitos dos pacientes, a integração/


interação adequada com os profissionais, além de auxiliarem
a promoção de um sustentáculo emocional para a equipe de
saúde, bem como a árdua divisão e o compartilhamento de
responsabilidades. Funcionam, é importante fazer a ressalva, em
tarefa de ordem consultiva, de assessoramento, de orientação e
educação. É relevante afirmar que atuam sem função sancionadora
e sem substituir o poder de decisão de quem ao final a tomará,
seja a equipe médica assistente, o paciente e/ou seus familiares
ou responsáveis legais (GRACIA, op. cit.; COHEN, op. cit.; KIPPER;
LOCK; GAUER; 2008; GENRO; FRANCESCONI; GOLDIM, op. cit.).

Além dessas funções, Sanchez-Sanchez (2011) cita que os CBC


precisam ter seus regulamentos (regimentos, atas das reuniões)

296 Bioética Clínica


bem estabelecidos e aprovados na instituição na qual se inserem
(apesar de que os pareceres são emitidos de forma independente
pelo CBC), e que seria de extrema valia e importância o seguimento
dos casos dos quais emitiram os pareceres. Dessa forma, podem
conhecer melhor as direções tomadas pelos que receberam
os pareceres. Mais que isso, poderia se constituir em modo de
aprendizagem e sedimentação de reflexões pelos membros do
CBC. É importante que se sistematize o armazenamento dos
escritos, respeitando-se as questões de confidencialidade, pois
são documentos do trabalho do CBC e podem auxiliar, no futuro,
na abordagem a casos semelhantes.

No entanto, tendo em mente tais asserções, é preciso lembrar que


os CBC podem ter diversos problemas (intrínsecos e extrínsecos),
que vão desde sua implementação até sua manutenção e
continuidade ao longo dos anos. Entre esses, os principais
relatados são: o desconhecimento por parte dos profissionais
que trabalham nos hospitais ou instituições de saúde do que
é um CBC, quais suas tarefas e como atua (RUIZ-VALDEPEÑAS;
GONZÁLEZ, op. cit.). Para tentar solucionar esse impasse, muitos
hospitais colocam em sua página da web − em geral no local
direcionado aos pacientes e/ou aos profissionais − o conceito
de CBC, o seu papel, como acudi-lo quando necessário, além dos
nomes dos membros componentes e sua formação. Os autores
relatam, por um lado, que pode haver por parte das pessoas a
desconfiança, o medo ao juízo, a falta de tempo para realizar as
solicitações e/ou o comparecimento às reuniões, as mudanças
dos locais de trabalho dos componentes, a “autossuficiência” dos
profissionais.

Por um lado, é relevante lembrar que pode ocorrer a falta de


apoio institucional (falta do provimento de salas, computadores,
secretaria, secretária, linha telefônica) à formação e manutenção
do CBC que, muitas vezes, resulta de esforços particulares para que
exista e se mantenha. Por outro, se o CBC é pouco resolutivo, pode
perder seu prestígio e ser desconsiderado − fato este chamado
por Ruiz-Valdepeñas e González (op. cit.) de burn out dos CBC, ou

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 297


CBC “queimados” (MARINHO et al., op. cit.). É importante salientar
que não é fácil a manutenção de um CBC ativo e reconhecido
ao longo do tempo, no entanto, existem CBC que podem dar
exemplo de continuidade e perseverança (GENRO; FRANCESCONI;
GOLDIM, op. cit.). Talvez, a realidade da parca existência desses
comitês no Brasil venha a mudar, como ocorreu em outros países,
pois possivelmente venha a se constituir em um requisito básico
e imprescindível para as acreditações hospitalares, como ocorreu
nos Estados Unidos nos anos 1990.

Entretanto, é preciso lembrar que existem críticas com relação


ao modo de formação e implementação dos CBC. Luna e Salles
(op. cit.) relatam que, na Argentina, sua criação dita de “cima para
baixo”, realizada por lei governamental, não tornou mais efetiva
ou aprimorada a implementação desses comitês. Autores referem
que a sua concretização pode também efetivar-se “de baixo para
cima”, ou seja, por desejo e/ou necessidade de profissionais que
se interessam pelos temas e deles se utilizam para a sua melhor
atuação profissional e expansão de melhoria nos serviços de
saúde, no sentido de compreendê-los em maior amplitude dentro
do universo biopsicossocial (MARINHO et al., op. cit.).

Para concluir, González (2002a, p. 293) destaca que a função dos


CBC “implica em chegar a acordos básicos apesar de se manter,
muitas vezes, entre a equipe, posições morais diferentes que visam
buscar consensos razoáveis que permitam o respeit o mútuo entre
os cidadãos”. Em conformidade, Gracia (2003, p. 61) afirmou que o
CBC visa à “busca do universalizável sem descuidar do concreto e
do particular, em um exercício de imaginação criativa cujo objeto
é a indagação sobre o curso de ação mais adequado, ou seja,
constroem um trabalho de humanização”.

Composição e formação dos CBC


Os CBC, formados por um grupo multidisciplinar de pessoas com
atuação interdisciplinar, auxiliam nas decisões em questões morais

298 Bioética Clínica


complexas, como autonomia dos pacientes, transplantes, direitos
de consciência, a morte e o morrer, aborto, confidencialidade,
alocação de recursos, respeito à diversidade religiosa, cultural
e moral das pessoas. O comprometimento com esse ideário
é vital para aqueles que pretendem ser membros de um CBC,
pois ter um compromisso, segundo Sartre (1999), significa estar
vinculado a uma ideia e a uma causa que se transformam em ação
em benefício de outro ser humano. Significa vincular-se a uma
causa, lutar e trabalhar por ela. Ter um compromisso ligado às
questões de saúde significa converter-se responsável por algo ou
por alguém, dentro de determinados limites éticos, levando em
conta a cultura, a religião, os contextos e as situações. Além disso,
ter compromisso necessita a existência de um sentimento e uma
postura ética que são pactuados consigo mesmo como pessoa e,
assim sendo, como profissional da saúde. Por isso, enfatiza-se a
qualificação necessária para a formação de um CBC para muito
além da clínica e da técnica, chamando para o conjunto das
deliberações todos os argumentos acima arrolados.

São com essas perspectivas mencionadas que se espera que as vi-


sões e os modos de agir das pessoas que se habilitem a fazer parte
de um CBC estejam em processo de construção. A sua formação
capaz, sensível e eficiente é longa e complexa, e exige a intera-
ção entre um saber vinculado à ética teórica que, nesse momen-
to, alia-se às práticas em saúde e ao próprio viver, auxiliando seus
direcionamentos. É imprescindível para a formação de um CBC a
adesão de um grupo multiprofissional, de ação interdisciplinar, de
pessoas com um perfil conveniente e específico. Recomenda-se
a presença de vários profissionais, dentre eles: médico de várias
especialidades, enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos, fonoau-
diólogos, assistentes sociais, juristas, filósofos, pessoal administra-
tivo da instituição, representantes religiosos (que podem ser das
mais diversas religiões e/ou participarem do comitê de modo al-
ternado), representantes da comunidade e de usuários do sistema
de saúde, dentre outros possíveis. A presença de, no mínimo, um
bioeticista com uma formação específica e experiência nesse tipo
de trabalho é de extrema importância e valia e é essencial para

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 299


o bom andamento, fidedignidade e respeitabilidade dos parece-
res emitidos. O CBC, numa visão plural e de simetria de gêneros,
deve abrigar membros dos sexos masculino e feminino, preferen-
temente em igual número, contemplando as características de
julgamento moral singulares preconizadas por Gilligan (1982).

Uma ressalva é importante: não basta que o comitê seja


constituído de forma multiprofissional. Além desse enfoque, que
particulariza cada saber científico, encontra-se o núcleo comum
dos saberes que perpassa por todas as formações profissionais e
deve, sobremaneira, ser elemento fundamental do CBC. É a visão
interdisciplinar de seus membros. Segundo Ferrer (op. cit.), os
aportes de cada uma das disciplinas que conhecem e praticam
os membros do CBC são importantes e essenciais para que se
compreenda o foco clínico do problema em questão. No entanto,
a unidade do discurso em que se baseará o parecer deve proceder
da ética aplicada, pois, no final, é dessa questão, vinculada às
clínicas, que tratará o parecer.

A Recomendação 8/2015 do CFM orienta aos médicos que


participem, e destaca a formação multiprofissional dos CB. A
tendência atual é que haja médicos e enfermeiros em maior
número, com a participação de advogado, religioso, psicólogo,
assistente social e membro da administração, entre outros. A
participação de bioeticista contribui com o seu funcionamento
(ABELLÁN, op. cit.).

O número de membros depende da dimensão da instituição.


Por isso a variação é ampla, podendo ir de 6 a 20 componentes
(TEALDI, 2008, p. 256) ou ter um número ainda superior (RIBAS-
RIBAS, 2006). Não é necessário que o comitê seja numeroso para
funcionar, mas é desejável que haja representação dos vários
setores da instituição e a inclusão das pessoas interessadas.

300 Bioética Clínica


Considerações finais
Conflitos morais históricos sobre o estabelecimento de critérios
de justiça na escolha de pacientes para tratamento no contexto de
recursos escassos, discussões éticas e jurídicas sobre a limitação
de tratamentos para paciente jovem portador de doença grave
com prognóstico irreversível e o direito ao tratamento para
recém-nascidos portadores de transtorno mental associado
com malformações graves foram os pilares que sustentaram o
surgimento e crescimento dos comitês hospitalares de bioética.

A complexidade dos novos procedimentos e tratamentos


recentemente disponíveis para pacientes suscitou surgimento
de conflitos morais e a necessidade de pessoas com habilidade
de deliberar soluções, propiciando terreno favorável para o
crescimento dos CB. A possibilidade do surgimento de conflitos
morais em todas as instituições de assistência à saúde ampliou a
área de atuação dos comitês para o âmbito extra-hospitalar.

A composição dos comitês é multidisciplinar. Em sua formação


participam médicos, enfermeiros, religiosos, advogados, psicólo-
gos, assistentes sociais e bioeticistas, entre outros profissionais.
Suas funções abrangem a deliberação de conflitos morais, a re-
visão ou proposição de documentos e a promoção da educação
em bioética.

O respeito aos direitos dos pacientes constitui uma tarefa cada


vez mais complexa e necessária, justificando que se incentive o
funcionamento dos CBC nas instituições de assistência à saúde,
como fez recentemente a Recomendação 8/2015 do CFM.

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Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 305


Posfácio

Coube a mim a honra de fazer o posfácio de Bioética Clínica, cujos


capítulos resumem o amplo debate sobre os temas “bioética e
desigualdades” e “educação ética em tempos de desigualdades”.

Este livro é composto das memórias dos históricos XI Congresso


Brasileiro de Bioética, III Congresso Brasileiro de Bioética Clínica
e III Conferência Internacional sobre o Ensino da Ética, que
aconteceram na véspera da primavera curitibana de 2015. Quero
ressaltar que, no dia que antecedeu o início do Congresso, houve
uma ação prática das mais expressivas no campus da PUCPR: um
exercício peripatético de bioética, que deve constar nos anais dos
referidos congressos.

Tal qual Aristóteles ensinava seus alunos, passeando pelas ruas e


jardins de Atenas, cerca de 450 crianças de escola pública, entre
9 e 14 anos, reuniram-se em pequenos grupos e percorreram o
Caminho do diálogo, à sombra de 12 árvores da vida, conversando
e refletindo sobre diversos temas, orientados por muitos
estudantes e professores universitários das mais variadas
disciplinas, coordenados pela professora Marta Luciane Fischer.

À sombra da árvore da vida da espiritualidade, as crianças


refletiram sobre a compaixão, solidariedade e fraternidade, sem
confundir espiritualidade com religiosidade.

Brincando em torno da árvore da vida da qualidade de vida,


elas relacionaram a ação bioética na qualidade de vida por
meio do esporte, lazer, alimentos saudáveis e uso consciente de
medicamentos.

Como frutas da árvore da vida da alimentação, elas degustaram as


questões bioéticas relacionadas ao desperdício de alimentos e ao
direito de acesso à alimentação de qualidade.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 307


Abraçando a árvore da vida dos recursos naturais, analisaram
a crise da água, o uso responsável e sustentável dos recursos
naturais, e o ambiente saudável como direito de todos os seres
vivos desta e de futuras gerações.

Na árvore da vida da biotecnologia, questionaram as inovações na


área das genéticas animal e vegetal e os problemas bioéticos dela
decorrentes. Foi grande a discussão sobre bebês e medicamentos.
Na discussão de caso de pais gerarem um bebê para que sua
medula óssea fosse utilizada por outro filho, houve posições pró
e contra: uma das crianças disse que não achava certo usar um
irmãozinho em benefício próprio, e outra disse que ia gostar
muito mais dele caso nascesse para ajudá-la no tratamento de
uma doença. Quanta sabedoria!

Na sombra da árvore da vida dos cuidados com a saúde, acalorados


debates bioéticos relacionados ao acesso à saúde e à autonomia
do paciente.

Sob a copa da árvore da vida da vulnerabilidade, as crianças


refletiram sobre aqueles que enfrentam situações difíceis da vida,
como a pobreza e a discriminação, e propuseram ações bioéticas
de proteção e apoio aos fragilizados.

Na árvore da vida de pesquisa com animais, as questões bioéticas


relacionadas aos diferentes usos de animais pelos seres humanos
como pesquisa, aulas, alimentação, vestimenta, entretenimento,
companhia e serviços foram muito discutidas.

Na árvore da vida de pesquisa com humanos, as questões bioéticas


relacionadas a transplantes de órgãos e uso de seres humanos
para pesquisa suscitaram interessantes observações.

Na árvore da vida do biodireito, elas avaliaram os direitos e deveres


das crianças e tiveram oportunidade de conhecer e conversar
sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente.

308 Bioética Clínica


Na árvore da vida da educação, as crianças viram a educação
como ferramenta para não só crescerem intelectualmente, mas
para o exercício da cidadania.

Finalmente, na árvore da vida da família, debateram e concluíram


que a família é de fundamental importância na formação dos
valores de uma sociedade.

Nessa caminhada-brincadeira, as crianças criaram e atravessaram


novas pontes para o futuro usando um novo instrumento
chamado bioetoscópio (bio = vida + eto = ética + scopéo = vejo),
que permitiu que elas examinassem, vissem e sentissem os
verdadeiros valores da humanidade.

Como disse Rubem Alves em sua crônica O otimismo e a


esperança, “hoje não há razões para otimismo. Hoje só é possível
ter esperança. Esperança é o oposto do otimismo. Otimismo é
quando, sendo primavera do lado de fora, nasce a primavera do
lado de dentro. Esperança é quando, sendo seca absoluta do lado
de fora, continuam as fontes a borbulhar dentro do coração”.

Assim, a nós, adultos, se não há razões para otimismo, a esperança


renasceu.

As árvores da vida dessa meninada, com certeza, darão sombra,


frutos, proteção e a garantia de que a Bioética seja um instrumento
universal de aprendizado humano.

Gerson Zafalon Martins


2º vice-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 309


310 Bioética Clínica
SOBRE OS
AUTORES
Bioética Clínica
SOBRE OS AUTORES
Bioética Clínica
Bruno Rodolfo Schlemper Junior é graduado em Medicina
pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestre em
Parasitologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
doutor em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e pós-doutor em Bioética pela Universidade Complutense
de Madri (UCM). Foi professor, pró-reitor de ensino e reitor (1988-
1992) da UFSC, e membro da Comissão Nacional de Educação
Médica, da Comissão Nacional de Residência Médica, da Câmara
Técnica de Bioética do Conselho Federal de Medicina e da
Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). É membro da
Academia de Medicina de Santa Catarina; membro fundador e
associado da Regional de Santa Catarina da Sociedade Brasileira
de Bioética, do Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria da
Saúde de Santa Catarina; e professor de Ética Médica e Bioética
do curso de Medicina e de Bioética e Integridade em Pesquisa
do mestrado em Biociências e Saúde da Universidade do Oeste
de Santa Catarina (Unoesc). É natural de Florianópolis (SC), onde
nasceu em 1944.

Carlos Vital Tavares Corrêa Lima é clínico-geral e pós-graduado


em Medicina Ocupacional pela Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE). Presidiu o Conselho Regional de Medicina de
Pernambuco (Cremepe) de 2005 a 2008. É membro da Academia
Pernambucana de Medicina, sócio fundador da Sociedade
Brasileira de Bioética (Regional Pernambuco) e da Sociedade
Brasileira de Direito Médico. No Conselho Federal de Medicina
(CFM), contribuiu com as discussões no âmbito das Comissões
de Recadastramento, de Revisão Eleitoral e de Revisão do Código
de Ética Médica, como representante do Nordeste. Foi 1º vice-
presidente do CFM, entre 2009 e 2014, com a responsabilidade
de coordenar o Departamento de Comissões e Câmaras Técnicas.
Nesse período, teve atuação destacada em áreas ligadas ao Direito
Médico, Urgências e Emergência e Ensino Médico, entre outras.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 313


Ocupa a presidência do CFM (gestão 2014-2019), onde também
coordenada a Comissão de Revisão do Código de Ética Médica,
que trabalha na atualização dos parâmetros em vigor desde 2010.
É natural do Recife (PE), onde nasceu em 1950.

Elcio Luiz Bonamigo é graduado em Medicina pela Universidade


Federal do Paraná (UFPR), mestre em Bioética pela Universidade
Internacional da Catalunha e doutor pela Universidade Rey Juan
Carlos, de Madri. Possui título de especialista em oftalmologia −
obtido em 1981 por meio de aprovação em exame do Conselho
Brasileiro de Oftalmologia (CBO) −, área na qual ainda atua,
em Joaçada (SC). Atualmente é professor da Universidade do
Oeste de Santa Catarina (Unoesc) e membro do Comitê de Ética
em Pesquisa da instituição. É também membro do Comitê de
Bioética e da Câmara Técnica de Bioética do Conselho Federal de
Medicina (CFM). Tem experiência em Medicina e Bioética, com
ênfase em temas como testamento vital, ordem de não reanimar,
comunicação de más notícias, comitês de Bioética, estratégias de
ensino e oftalmologia geral.

Elma  Lourdes Campos Pavone Zoboli é professora associada


da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP).
Tem os títulos de mestre em Bioética pela Universidade do
Chile; mestre e doutora em Saúde Pública pela USP; e pós-
doutora em Bioética pela Universidade Complutense de Madri.
Dentre seus outros cargos estão os de professora visitante do
doutorado em Enfermagem da Universidade Católica Portuguesa
(UCP) e coordenadora da dupla titulação para o doutorado em
Enfermagem EEUSP/UCP. Foi membro da diretoria da International
Association of Bioethics e assessora da Rede Latino-Americana e
Caribenha de Bioética da Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Participa de comitês de
ética em pesquisa desde 1997 (Instituto Adolfo Lutz, Faculdade
de Medicina do ABC, HCFMUSP e Escola de Enfermagem da USP).
Participou como membro titular da Comissão Nacional de Ética
em Pesquisa (1997-2003) e, desde 2016, nela atua como membro
ad hoc. Também é membro da Comissão de Bioética do HCFMUSP

314 Bioética Clínica


e das Câmaras Técnica de Bioética do Cremesp e do CFM. Foi
segunda vice-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética
(2005-2007) e da diretoria da Sociedade de Bioética de São Paulo
(2000-2008). Recebeu menção honrosa na categoria Doutorado
do Prêmio de Incentivo em Ciência e Tecnologia para o SUS (2004).

Evandro Arlindo de Melo, atualmente, é doutorando em


Teologia (bolsista CAPES), na Pontifícia Universidade Católica do
Paraná (PUCPR), onde realizou também seu mestrado em Teologia
(2011). É licenciado em Filosofia e padre secular da Diocese de
Palmas-Francisco Beltrão, no Paraná. Tem desenvolvido pesquisas
na área de Bioética e início da vida e a relação entre Teologia e
Bioética.

Gerson Zafalon Martins é graduado em Medicina pela


Universidade Federal do Paraná (UFPR), especialista em
Pneumologia e Tisiologia, e perito judicial na área de
responsabilidade civil médica e hospitalar. No período de 1999 a
2014, ocupou o cargo de conselheiro titular dentro do Conselho
Federal de Medicina (CFM), onde foi 2º  secretário, assumindo
o cargo de editor responsável pela Revista Bioética, e 3º  vice-
presidente. Foi presidente  do Conselho Regional Medicina seu
estado, o Paraná (CRM-PR). Atualmente é  2º  vice-presidente da
Sociedade Brasileira de Bioética e tem participação como membro
da Câmara Técnica de Medicina Legal e Perícias Médicas do
Conselho Federal de Medicina (CFM). Na autarquia, ainda integra
a Câmara Técnica de Bioética, a Câmara Técnica de Informática em
Saúde e Telemedicina, e a Câmara Técnica de Morte Encefálica.

Jan Helge Solbakk é graduado em Medicina e Teologia. É doutor


em Filosofia com especialização em Grécia Antiga.  Atua como
professor do Centro de Ética Médica da Universidade de Oslo
(Noruega). Entre 1996 e 2011, foi professor adjunto de Ética Médica
no Centro de Saúde Internacional da Universidade de Bergen,
também na Noruega. No período de 2007 a 2008, serviu como
chefe na seção de Bioética da Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em Paris (França).

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 315


Colabora também como perito em questões éticas em várias
organizações internacionais, como a Sociedade Internacional para
Pesquisa de Células-Tronco (ISSCR). Também teve participação
na Comissão Europeia que elabora propostas de novos atos
legislativos e no Conselho Europeu de Investigação, que tem como
principal objetivo estimular a excelência científica na Europa.

José Eduardo de Siqueira é doutor em Medicina pela


Universidade Estadual de Londrina (UEL), mestre em Bioética pela
Universidade do Chile e médico especialista em Cardiologia –
grau obtido junto à Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) e
Associação Médica Brasileira (AMB). Atualmente, é professor titular
da Escola de Medicina, professor permanente do Programa de
Pós-Graduação em Bioética e coordenador do curso de Medicina
da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR/Campus
Londrina). É membro titular da Academia Paranaense de Medicina,
da  International Association of Bioethics, da Câmara Técnica de
Cuidados Paliativos e da Câmara de Revisão do Código de Ética
Médica do Conselho Federal de Medicina (CFM). Respondeu pela
presidência da Sociedade Brasileira de Bioética de 2005 a 2007 e
foi membro da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep)
de 2006 a 2010.

José Roque Junges graduou-se em Filosofia pela  Pontifícia


Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e é doutor
em Teologia Moral pela Pontifícia Universidade Gregoriana de
Roma, Itália. Atualmente é professor de Bioética nos cursos de
graduação da área de saúde e professor pesquisador do Programa
de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade do Vale do
Rio dos Sinos (Unisinos), onde é coordenador do Comitê de Ética
em Pesquisa (CEP) e líder do grupo de pesquisa “Bioética e Saúde
Coletiva”. Tem experiência na área da Bioética em temas como
ética ambiental e saúde coletiva. Entre seus livros publicados,
constam: Bioética: perspectivas e desafios (São Leopoldo: Unisinos,
1999);  Ecologia e criação: resposta cristã à crise ambiental  (São
Paulo: Loyola 2001); Bioética: hermenêutica e casuística (São Paulo:
Loyola, 2006);  (Bio)Ética ambiental  (São Leopoldo: Unisinos,

316 Bioética Clínica


2010);  Bioética sanitarista: desafios éticos da Saúde Coletiva  (São
Paulo: Loyola, 2014).
Leandro Brambilla Martorell é cirurgião-dentista, mestre em
Odontologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e doutor
em Bioética pela Universidade de Brasília (UnB). É professor
adjunto da área de Odontologia Coletiva na UFG e das áreas
de Odontologia Coletiva e Bioética no Centro Universitário de
Anápolis (UniEvangélica). É colaborador da Revista Bioética do
Conselho Federal de Medicina (CFM), da Revista Brasileira de
Bioética (RBB) e da Revista Brasileira de Odontologia Legal (RBOL).
Foi conselheiro do Conselho Regional de Odontologia de Goiás
entre 2010 e 2014.

Leo Pessini é bioeticista e teólogo, pós-doutor em Bioética pela


Universidade Edinboro (Pensilvânia, EUA). É também doutor
em Teologia Moral pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa
Senhora da Assunção e Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. Sua tese, Distanásia: até quando prolongar a vida?, foi
publicada em português (pela Edições Loyola) e traduzida para
o croata (pela Faculdade de Medicina da Universidade de Rijeka)
e para o espanhol (pela Ediciones Dabar). Pessini foi membro do
Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde (1994-1996);
da equipe de trabalho que redigiu a Resolução 196/1996, sobre
pesquisa em seres humanos; e da Comissão Nacional de Ética
de Pesquisa no CNS/MS (1996-1998). Colabora com o Conselho
Federal de Medicina (CFM) há anos como membro do Conselho
Editorial da Revista Bioética e autor de inúmeros artigos sobre
bioética. Foi membro da comissão sobre terminalidade da vida
e cuidados paliativos e também integrou a comissão que fez
a última revisão do código Brasileiro de Ética Medica do CFM.
Atualmente é o líder mundial dos Camilianos e reside em Roma
(Itália), de onde coordena as atividades da Ordem dos Camilianos
em 41 países. É catarinense de Joaçaba, onde nasceu em 14 de
maio de 1955.

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 317


Luiz Antônio Lopes Ricci é doutor em Teologia Moral pela
Pontifícia Universidade Lateranense de Roma e pós-doutor em
Bioética pelo Centro Universitário São Camilo. É vice-diretor
executivo da Faculdade João Paulo II (Fajopa), onde atua como
docente titular e é responsável pelo núcleo de pesquisa científica.
Em sua prática profissional, trabalha principalmente em áreas
como pesquisa acadêmica, teologia moral, ética e bioética. É
conferencista e articulista da Revista Atenção de Bauru (SP),
vice-líder do grupo de pesquisa “bioética e direito” do Centro
Universitário Eurípedes de Marília (Univem). Também é sacerdote
da Diocese de Bauru, pároco da Paróquia São Cristóvão e assessor
diocesano da Pastoral da Criança. É natural de Bauru (SP), onde
nasceu em 1966.

Márcio Fabri dos Anjos é doutor em Teologia, licenciado em Fi-


losofia e professor e coordenador do Programa de Doutorado em
Bioética do Centro Universitário São Camilo, em São Paulo. Tam-
bém atua como orientador de doutorado na Universidade Late-
ranense de Roma (Itália). É membro da Câmara Interdisciplinar
de Bioética do Conselho Regional de Medicina do Estado de São
Paulo (Cremesp); primeiro secretário da Sociedade Brasileira de
Bioética (SBB); editor assistente da Revista Redbioética, da Orga-
nização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(Unesco), e na editora Ideias e Letras. Ainda acumula em sua traje-
tória ser sócio fundador e presidente (de 1991 a 1998) da Socieda-
de Brasileira de Teologia e Ciências da Religião (Soter) e membro
do grupo de trabalho na redação das Normas Éticas em Pesquisas
Envolvendo Seres Humanos (CNS 0196/1996). Além disso, é autor
e coordenador de cerca de vinte livros e de muitos artigos cientí-
ficos e capítulos de livros. Nasceu em Monte Belo (MG), em 1943.

Maria Teresa de Campos Velho é professora doutora da


Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul,
tendo concluído residência médica em Ginecologia e Obstetrícia
no Hospital Universitário da mesma instituição. Na UFSM, atua
como docente no Departamento de Ginecologia e Obstetrícia
desde 1991; na disciplina de Bioética na graduação, desde 2008;

318 Bioética Clínica


e no mestrado profissional em Ciências da Saúde, desde 2011.
Concluiu mestrado em Ciências da Saúde pela UFSM e doutorado
em Filosofia da Saúde – Enfermagem, na Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC). Possui pós-doutorado em Bioética pela
Universidade Complutense de Madrid (2016). Também estudou
Ética na Pesquisa e Bioética na Faculdade Latino-americana de
Ciências Sociais (Flacso), em Buenos Aires (Argentina). Foi diretora
de ensino, pesquisa e extensão do HUSM/UFSM no período de
2006-2010, e vice-coordenadora do mestrado profissional em
Ciências da Saúde (2013-2015). É natural de Porto Alegre (RS),
onde nasceu em 1954.

Mário Antônio Sanches é mestre em Antropologia Social pela


Universidade Federal do Paraná, doutor em Teologia pela Escola
Superior de Teologia (EST), pós-doutor em Bioética pela Cátedra
de Bioética da Universidade Pontifícia Comillas, em Madri. Sua tese
de doutorado, na área de Bioética, foi fruto de pesquisa no Instituto
Kennedy de Ética da Universidade Georgetown (Washington, DC,
EUA). Atualmente é professor titular da Pontifícia Universidade
Católica do Paraná (PUCPR) e coordenador do Programa de
Pós-Graduação em Bioética da mesma instituição. Sua pesquisa
abrange temas como bioética e reprodução humana, com ênfase
em planejamento familiar; bioética, diversidade e cultura.

Regina Ribeiro Parizi Carvalho é presidente da Sociedade


Brasileira de Bioética (SBB), médica sanitarista, mestre em Saúde
Pública – Epidemiologia pela Universidade de São Paulo (USP) e
doutora em Bioética pela Universidade de Brasília (UnB). Presidiu o
Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp)
em duas ocasiões, de 1993 a 1995 e de 2000 a 2003. Foi diretora
da Fundação de Seguridade Social (Geap). Atualmente é médica
do Centro de Desenvolvimento de Ensino e Pesquisa do Instituto
de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual (IAMSPE) e
membro das Câmaras Técnicas de Bioética do Conselho Federal
de Medicina (CFM) e do Cremesp. Também integra o Conselho
Consultivo da Rede Latinoamericana e do Caribe de Bioética
da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 319


e a Cultura (Unesco). Atua principalmente nos temas: atenção à
saúde, bioética, saúde suplementar, saúde global, bioética clínica
e fim de vida.

Volnei Garrafa é professor titular da Faculdade de Ciências


da Saúde da Universidade de Brasília (UnB) e coordenador da
Cátedra Unesco e do Programa de Pós-Graduação em Bioética
da UnB (especialização, mestrado e doutorado). Foi presidente
da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), no período de 2001
a 2005, − tendo sido um de seus fundadores, em 1995 −, e do
Sexto Congresso Mundial de Bioética da IAB (Brasília, 2002). É
membro do International Bioethics Committee, da Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(Unesco), e do Conselho Científico da Sociedade Internacional de
Bioética (SIBI); diretor da Assuntos Internacionais da Rede Latino-
Americana e do Caribe de Bioética da Unesco (Redbioética) e
da Revista Redbioética; e editor da Revista Brasileira de Bioética
(RBB). Também participa como membro do Conselho Editorial
da Revista Bioética (CFM) e do International Journal of Ethics
Education (Springer). É fundador, diretor (2010-2016) e presidente
(2017-2020) da International Assocation for Education in Ethics
(IAEE).

Waldir Souza é mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de


Filosofia e Teologia (Faje) e doutor em Teologia pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). É professor
adjunto da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e
do Centro Universitário − Católica de Santa Catarina; e professor
dos programas de pós-graduação em Teologia e em Bioética da
PUCPR. Atua na área de Teologia, com ênfase em sistemática, moral
e bioética. É líder do Grupo de Pesquisa Bioética, Humanização
e Cuidados em Saúde com os projetos de pesquisa Bioética e
Teologia no contexto latino-americano; Bioética e Espiritualidade
e A Ética nas biotecnologias. Também é membro do Comitê
de Ética no Uso de Animais (Ceua) da PUCPR, da Sociedade de
Teologia e Ciências da Religião (Soter), da Sociedade Brasileira de
Bioética (SBB) e da Comissão Científica da SBB-PR.

320 Bioética Clínica


SOBRE AS
ENTIDADES
Sobre As Entidades

Conselho Federal de Medicina (CFM)


Criado em 1951 com atribuições constitucionais para fiscalizar e
normatizar a prática médica, o CFM tem competência exclusiva
para realizar o registro profissional do médico e para aplicar
as sanções previstas no Código de Ética Médica. Também atua
politicamente, agindo em defesa da saúde da população e dos
interesses da classe médica.

Quando trata dos interesses corporativos, o CFM se empenha na


defesa da boa prática médica, no ético exercício da Medicina e
por uma boa formação técnica e humanista dos futuros médicos.

Com o objetivo de contribuir para o debate da bioética no país, o


Conselho edita desde 1993 a Revista Bioética. Considerando a ética
como intrínseca à melhor utilização da técnica, esse periódico
vai além das especialidades médicas, promovendo debates que
correlacionem ética, saúde e sociedade. A revista é indexada pela
SciELO (Scientific Electronic Library Online) desde 2013.
www.portal.cfm.org.br

Cátedra Unesco de Bioética da UnB


O Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética (Nepeb) – Cátedra
Unesco de Bioética foi criado em 1994 e compõe o Centro de Estudos
Avançados Multidisciplinares (CEAM) da Universidade de Brasília
(UnB). Possui uma relação de proximidade com o Departamento
de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências da Saúde da UnB, que
é responsável pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Saúde. Passou a ser chamado formalmente de “Cátedra Unesco de
Bioética da UnB” a partir de 2005. Em 1995, o Nepeb foi o primeiro
no país a ser reconhecido como “Grupo Consolidado de Pesquisa
em Bioética” junto ao CNPq. A Cátedra tem como característica
principal o reconhecimento e o respeito ao pluralismo moral que

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 323


vigora entre os diferentes países e sociedades humanas no século
XXI. Entre seus objetivos está o desenvolvimento de pesquisas
em Bioética e o estímulo a grupos de discussão relacionados a
problemas éticos, jurídicos e sociais.
www.bioetica.catedraunesco.unb.br

Sociedade Brasileira de Bioética (SBB)


Entidade que reúne profissionais de diferentes formações, a SBB
promove a reflexão ética sobre todas as áreas que envolvem a
responsabilidade humana na geração e desenvolvimento da
vida. Criada em 1995, tem como missão contribuir para a difusão
da Bioética no Brasil e apoiar profissionais e instituições nas
atividades relacionadas com seu campo, como na atuação em
Comitês de Bioética Hospitalar, Comitês de Ética em Pesquisa,
na docência e na pesquisa. É também papel da SBB divulgar a
produção em Bioética, o que vem fazendo por meio da Revista
Brasileira de Bioética (RBB).

A SBB está organizada em âmbito nacional, na interação com


outros grupos nacionais e internacionais de interesses similares,
e com os vários segmentos da sociedade. Tem regionais em São
Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Paraná, Piauí, Pernambuco,
Bahia e Santa Catarina e Minas Gerais.
www.sbbioetica.org.br

Organização das Nações Unidades para a educação, a


ciência e a cultura (Unesco)
A Unesco foi criada em 1946, como parte da Organização das
Nações Unidas (ONU), para atuar nas áreas de Educação, Ciências
Naturais, Ciências Humanas e Sociais, Cultura, Comunicação e
Informação com o objetivo de contribuir para a paz e segurança
no mundo. A sede da Unesco fica em Paris e ela tem hoje 193
países-membros.

324 Bioética Clínica


Os principais objetivos da Unesco são: globalizar a educação,
fomentar a paz, promover a livre circulação de informação entre os
países e a liberdade de imprensa, definir e proteger o Patrimônio
da Humanidade Cultural ou Natural, e defender a expressão das
identidades culturais.

A representação da Unesco no Brasil foi estabelecida em 1965 e o


seu escritório, em Brasília, iniciou suas atividades em 1972, tendo
como prioridades a defesa de uma educação de qualidade para
todos e a promoção do desenvolvimento humano e social.
www.unesco.org

Rede Latino-Americana e Caribenha de Bioética


(Redbioética)
A Redbioética começou a ser pensada no VI Congresso Mundial
de Bioética, realizado em 2001, no Brasil. A formalização ocorreu
em 2003, no México, em uma reunião convocada pela Unesco,
que apoia a organização.

A RedBioética é formada por instituições e investigadores que


realizam o intercâmbio interdisciplinar sobre as questões da
Bioética na América Latina e no Caribe, realizando reflexões a
partir do comprometimento com a realidade socioeconômica e
cultural e com as necessidades fundamentais dos países e povos
da região.

O objetivo da Unesco ao propor a criação da rede foi o de


desenvolver a consciência nos povos do hemisfério sul sobre
os fundamentos da Bioética. A organização atua como uma
rede, cujos pontos de fixação são todos aqueles que estão
comprometidos com o crescimento de uma Bioética que permita
a observância dos direitos humanos.
http://www.unesco.org.uy/shs/red-bioetica/es/

Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 325

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