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COPYRIGHT IC> Martha Abreu, Rachel Soihet e Rebeca Gontijo (orgs.)


Sumário
CAPA
Bv11lyn Grumach

PROJETO GRÁFICO
Bwlyn Grumach e João de Souza Leite Texto 4A (colônias de povoamento e de exploração)
História da América I
Prof. Raphael Sebrian

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. AGRADECIMENTOS 9
C974 Cultura politica e leituras do passado: historiografia e ensino de
história I Martha Abreu, Rachel Soihet e Rebeca Gontijo (orgs.). -Rio
de janeiro: Civilizaçlo Braaileira, 2007. APRESENTAÇÃO 11
Inclui bibliografia
ISBN 978·85·200·0695·5 PARTE I

1. História - Estudo e ensino. 2 Ci!ncia politica - Estudo e ensino.


Política, história e memória 21
'\ 3. Politica e cuhura. 4. Cultura polttlca. S. Pl:squisa hiarórica. I. Abreu
Martha. II. Soihet, Rachel, 1938· . III. Gontijo, Rebeca, '
O presente do passado: as artes de Clio em tempos de memória 23
06-4642
coo- 907 Manoel Lulz Salgado Guimarães
CDU - 930(072)

Cultura política e cultura histórica no Estado Novo 43


Angela de Castro Gomes
Todos oa direitos reservados. Proibida a reproduçlo, armazenamento ou
tranamlsslo de partes deste livro, atrav6s de quaisquer meios, sem pr6via PARTE 11
autorlzaçlo por escrito.
O Antigo Regime e a colonização em questão 65

Dos "Estados nacionais" ao "sentido da colonização":


Direitos desta edição adquiridos pela
história moderna e historiografia do Brasil colonial 67
EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILRIRA Maria Fernanda Bicalho
Um selo da
EDITORA RECORD LTDA.
Rua Argentina 171- 20921-380- Rio de Janeiro, RJ- Te!.: 2585-2000 Cultura política na dinâmica das redes imperiais portuguesas,
PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL séculos XVII e XVIII 89
Caixa Postal 23.052 - Rio de Janeiro, Rj- 20922-970 Maria de Fátima Silva Gouvêa/Marilia Nogueira dos Santos
Impresso no Brasil
2007
CULfUR A POLITIC A E LEITURAS DO PAS S ADO

25. "Esraruros do Recolhimento de órfãs de Nossa Senhora da Esperança", op. cit., p. 146.
26. Donald Ramos, "Gossip, scandal and popular culrure in golden age Brazil",Journal
of Social History, Pinsburgh, Cornegie Mellon Universiry, v. 3, n. 4, verão de 2000,
p. RH7-912.
27. Assim, as Constit11iç~es primeiras do arcebispado da Bahia, publicadas em 1720, como
exemplifica RamoN, npresentavam uma distinção entre certos :uos considerados
pecaminosos em si e outros, mais abundantes, passíveis de investigação apenas quando
eram de domfnio comum ou causavam escândalo público.
28. ''Alvará de lei secrerfsHimo comrn o puritanismo", em Coleçao da legisillção portll·
giii!Sil, compilada por Antonio Delgtldo da Silva, 1828, livro II (1763-90), p. l!ll-9,
ap1ul Maria Luiza Tucci Carneiro, Preconceito racial no Brasil colónia: os cristdos- Colônia de povoamento e colônia
novos, São Paulo, Brasiliense, 1983, p. 102. de exploração. Reflexões e
29. Estatutos da prov(ncia de SmJto Antônio do Brasil, Lisboa, Officina de Manoel & José
Lopes Ferreira, 1709, cap. 1, parágrafo 1, p. 1, apud Carneiro, op. cit., p. 207-8. questionamentos sobre um mito
30. Ramos, op. ât., p. 894. Mary Anne Junqueira*
31. Sobre "Verdades acordadas" ou "agreed truth", ver Chris Wickham, "Gossip and
resistance among the medieval peasantry", Past and present, 160, ago., 1998, p. 6.
32. Silvia Hunold Lua, Fragmentos setecentistas: escraviddo, cultura e poder 11a Améri· ·. ·
·;, ca port11guesa, Campinas, tese de livre-docência, IFCH/Unicamp, 2004, p. 91.

'Professora de História da América Independenre nos curs os de H istó ria e Relações Interna-
cionais da Universi dade de São bul o (US Pl.

17 o
· Os historiadores concordam que muitas vezes navegamos entre algumas
visões consolidadas e mitos da nossa história, dentro e fora da academia.
' Tal constatação nos leva a considerar a necessidade de o conhecimento
> estar permanentemente se refazendo, a fim de reavaliarmos o conheci·
:} sobre o nosso passado.
Escolhi aqui refletir sobre a explicação ainda presente e sempre repetida
;, : ·entre nós, de que o Brasil e os demais países da América Latina foram colônias
exploração- o que explicaria o nosso "atraso e subdesenvolvimento" no
' "''"'"
0
""t"; enquanto os Estados Unidos surgiram como potência econômica e
. ;apresentam solidez nas suas instituições políticas devido a sua origem como,
lCc · .r,nll·,n,·," de povoamento. Tal formulação não estava- e não está- relacio- ·~

ao entendimento do passado, o período colonial, ou sua vinculação com


presente; mas procurava constituir um diagnóstico para as mazelas do país.
.. partir da verificação da nossa condição- "economia estagnada, politica-
mente atrasados, subdesenvolvidos, dependentes"-, procurou-se o "mal"
nas nossas origens, mais precisamente no período colonial. Nós, latino-ame-
,ricanos, não teríamos alcançado o "nível de excelência" dos países "desen-
:.volvidos ou centrais", fosse em termos econômicos, políticos, institucionais,
. ·fosse nas dimensões próprias da cidadania. Não é preciso lembrar que os re-
. médios propostos foram muitos e variados: revolução burguesa, revolução
·. proletária, industrialização, substituição de importações, localização diferen-
.· :. te do Brasil na divisão internacional do trabalho .
.: Note-se que apenas a circunstância de colonizados não se mostrava
· suficiente para determinar o nosso "atraso, subdesenvolvimento e depen-
. dência", devido ao fato de que no Novo Mundo despontou, no século
XX, a maior potência econômica e militar do planeta- os Estados Uni-

173
CULTURA I'OLIYit:A E l.FITUUA~. DO PASSADO O A N T I G O 11 [ G I M [ E I\ C O L O N I c 11. ~· IÍ O I. ll/1 () U E S T Ã O

dos da América. Assim, não era o fato de estarmos plantados no Novo cesso que se estendeu do período colonül até metade do século XIX, e no
Mundo, termos passado por dois séculos (Estados Unidos) ou três (Amé- qual o território da região se multiplicou 11 vezes- foi eminentemente
rica Latina) de colonização européia que explicaria o nosso "incómodo predatória. A devastação corria acelerada na segunda metade do século
atraso", uma vez que a existência de uma potência económica nas Améri- XIX, e grupos religiosos-·· como os transcendentalistas, que viam a tu-
cas jogava por terra a explicação de que a condição mesma de coloniza- tureza como expressão do divino- se preocupavam bastante, pois :1 ncl-
dos determinaria o nosso lugar no mundo como periferia. tureza do país desaparecia rnpicbrneme. A partir das críticas e apreensões
A título de exemplo, vejamos a explicação apresentada por um pro- desse grupo e também de outros ambientalistas criou-se nos Estados Uni-
fessor universitário, publicada no cnderno Fovest do jornal Folha de S. dos o primeiro parque nacional, em [872, com o norne de Yellowstnne,'
Paulo, dirigido ao püblico que presta vestibulares: onde a natureza primitiva deveria permanecer pre.servada 3
Voltando ao excerto, é claro no tcxco o pessimismo elo autor em rela-
A conquista dos territórios do Novo Mundo pelas metrópoles européias deu ção ao nosso presente e, conseqüentemente, ao nosso futuro, pois a explo-
origem a formas específicas de colonização. Os tipos principais foram as ração desmedida devastará o continente. Corno escapar de tão determinado
colónias de povoamento e as de exploração. As de povoamento surgiram, destino?
basicamente, por causa das perseguições religiosas ocorridas na Inglaterra Os termos "colônia de exploraç~-10" e "colónia de povoamento" são
durante o reinado de Carlos I (1625-1649). Grupos puritanos (calvinistas) ainda amplamente utilizados nos livros didáticos de história do Brasil c
fugiram em direção ao norte da América para construir um lar e viver em de história da América e repetidos nas apostilas de cursinhos preparatórios
paz. Organizaram pequenas propriedades e trabalharam em grupos familia-
para os vestibulares, fazendo con1 que :1 cxplicaç:-to seja constantememe
res. Sua produção era voltada para suas necessidades e, por isso, era
reforçada, sobretudo entre os adolescentes. No cm:mto, destacamo~; que
diversificada. Já as colônias de exploração tinham de satisfazer as necessi-
nem sempre os manuais tratam cb divisão entre Esmclos Unidos c i\rnéri-
dades de acumulação de capitais de suas respectivas metrópoles, o que as
tornava alvo de uma ação essencialmente predatória. No caso do Brasil, essa ca Latina como uma linha divisórirt fixa, cmno fez o autor que escreveu
característica se manifestou desde os momentos iniciais da colonização[ ... ] para a Folha de S. Paulo. Algumas vezes, a explicação vem marcad::~ por
um determinismo climático. Vejamos, por exemplo, o que diz o mnnual
Após buscar as causas do "nosso atraso", no passado colonial, o autor des- de história da América sobre a colonização no Novo Mundo.
taca as mazelas do presente:
As variações climúticas principalmente v:íu dar origem :1 dois tipo~ de co-
Entretanto, ao fim de três séculos de colonização, restavam florestas do lônia na costa americana. No Norte e no Centro as colônias de povoa-
litoral devastadas, terras exauridas, milhões de vidas consumidas como mento e, no Sul, as colônias de exploração. As colônias de povoamento
carvão e cidades como que varridas por uma tempestade. A ação predató· formaram-se com base na peqtlt:Jl:l ,; lllt:cli:1 propriedade agrícola e numa
ria do conquistador deitou fundas raízes na nossa formação. Hoje, como produção voltada apenas par:1 umcrcado interno 1... 1 Nas colônias do Sul,
nação independente, até que ponto podemos afirmar que estamos livres colocou-se em prática a economi:1 de /Jiantation isto ,'., da grande pro-
dessa prática e da mentalidade que lhe corresponde? 1 priedade agrícola quase auro-sufiuente, baseada no escravismo, na mono-
cultura e na produção volrada \)'lr:l o mercado externo [... ] Era uma
economia rotineira prnlaróri:1 c ,.-um recnologia simples que esgotav:1 a
Com relação à devastação ambiental, podemos afirmar que a proposição
fertilidade da terra. Por 1sso '>c•O cll:lm:H.h•: dr colôma dt~ t:xploração. 1
do autor não procede. A conquista do Oeste nos Estados Unidos- pro-

174 17 !::
CULTURA POLITICA E LEITURAS DO PASSADO O ANTIGO REGIME E A COLONIZAÇÃO EM QUE S TÃO

As questões climáticas são consideradas determinantes para o desenvolvi- voamento sendo divulgado ainda na academia, apesar das críticas já
mento dos dois tipos de colonização: a de povoamento, em climas tempe- realizadas aos modelos generalizantes, e também é possível notar o uso
rados, e a de exploração, nas regiões tropicais. O determinismo climático dessa dicotomia entre um público que estou chamando aqui de "cul-
atravessa a interpretação de forma rígida, tanto quanto a dupla tipologia to", como jornalistas, economistas, advogados, muitos deles formado-
da colonização. res de opinião.
O autor trata dos Estados Unidos, afirmando que as colônias do Nor-
deste eram diferentes das do Sul, onde predominava a escravidão. Essa
perspectiva climática coloca o Sul dos Estados Unidos como colônia de . SOBRE AS ORIGENS DO TERMO
exploração. Veremos adiante que, certamente, o autor do manual se ins·
pirou no famoso livro de Caio Prado Júnior, Formação do Brasil contem· •,Não é fácil rastrear as origens da dicotomia colônia de povoamento e colô-
porâneo. Aliás, a influência de Prado Júnior nos livros didáticos parece-nos : nia de exploração no Brasil, mas é possível identificar os usos do termo em
i clássicos da historiografia brasileira. Um dos precursores é exatamente o já
considerável, uma vez que, geralmente, os manuais tratam dp tema .
explicitando o sentido da colonização, expressão amplamente utilizada pelo Formação do Brasil contempordneo, de Caio Prado Júnior, publica·
historiador e título do segundo capítulo do seu famoso livro. O manual · em 1942. Não é meu objetivo analisar o autor ou entender o contexto
qual escreve. Sabemos que os "intérpretes do Brasil"- especialmente
não é diferente:
· Prado Júnior, Sérgio Buarque de Hollanda e Gilberto Freyre- de-
Nas zonas temperadas da América do Norte e em algumas áreas da Amé- · · olveram as suas análises a partir do pafs que surgiu após a revolução de
rica do Sul, predominou a colonização de povoamento, caracterizada por .· · 1930, ligados ao "sopro de radicalismo intelectual e análise social" que nãq_
uma organização econômico-social que conservava muita semelhança .· havia sido, apesar de tudo, "abafado pelo Estado Novo", como já disse k
com suas origens européias. A colonização de exploração foi caracterís- :,, Antonio Candido. 6 O que pretendo aqui é procurar entender o porquê da
tica das zonas tropicais da América, nas quais predominou a grande agri·i' · utilização e permanência dessa explicação.
cultura tropical escravista e monocultura produtora de açúcar, tabaco, · Como já identificamos, a proposição de Prado é atravessada por uma
algodão. Nesse modelo de colonização predominou também a socieda- de determinismo climático. Para ele, não era apenas a distinção
de rural, na qual o trabalho escravo foi sempre abundante, seja pela uti- a colonização ibérica e a colonização anglo-saxã que nutriu associe-
lização de nativos, seja pela importação dos negros africanos [grifos do ~ades de perspectivas e ritmos diferentes; segundo o autor, a chave para o
autorV ~ ~ntendimento das diferenças dos processos econômicos estava no tipo de
onização que se desenvolveu nas zonas tropicais e nas temperadas das
Os livros didáticos, nós sabemos, são um poderoso instrumento de di- ·, ! funéricas. Dessa forma, Prado incluía a região de plantation do Sul dos
vulgação de variadas concepções sobre a história. Embora essas obras ':i' Estados Unidos entre as colônias de terras tropicais, aproximando-as das
de referência sejam centrais para a veiculação dessas idéias, acredito ;'L:de colonização ibérica. Para o autor, além de haver apenas dois tipos de
que a apálise particular dos manuais escolares não é suficiente para en- ·•. ..v,vu•·""lr"v no Novo Mundo, marcadas por dois aspectos econômicos
tendermos a força com que determinadas visões consolidadas se apre· · · distintos, também a Europa era pensada de forma homogênea e única. As
sentam, pois os exemplos se repetem, e não apenas nos livros didáticos. .•análises baseadas nas estruturas econômicas fizeram com que as diversi-
1.
Pode-se encontrar o binômio colônia de exploração e colônia de po- · • dades e conflitos próprios da conquista e colonização das Américas fos-
1

·:·i·
17 6 17 7
i IJ I. I IJ 11 A I' U t. I T I C J\ E t. r I 'f U 11 J\ S D O I' A S S A D C• O A NTIGO REGIM E E 1\ C O I. O NI ZA Ç A O !. M QU F.S T Ã ü

sem obscurecidos. O Novo Mundo foi alvo de disputa entre Espanha,· das e periféricas". Para ele, J.S "colônias de povoamento" privilegiaram
Portugal, Inglaterra, França e Holanda, culturas que certamente .. ~~... ~ 4 o mercado interno em detrimento do externo, permitindo o surgimento
ram parn c:i formas diferenciadas de ver o mundo e considerar de de pequenos proprietários e outros grupos menos dependentes da
ras distintas o estabelecimento de autoridades e poderes. 7 metrópole. 10
No entanto, embora apresentasse a zona tropical sulista das col Celso Furtado continua nos dias de hoje influenciando economistas e
britânicas como colônia de exploração, o autor via a modernização acele· políticos. Veja por exemplo o que escreveu, também no jornal Folha de S.
rada, característica central dos Estados Unidos, tomar conta até ,..."'"""'''\'1 Paulo, um economista sobre a XXVIl Reun ião do Conselho de Mercado
dessa região escravocrata após a Independência do país, em :1776. Comum e Cúpula do Mercosul, que se realizou entre 15 e 17 de dezem-
•bro de 2004, nas cidades de Belo Horizonte e Ouro Preto:
[... ] apesar da descoberta de Whitney, a saw-gin que é de 1792 e logo se '
difundiu larganwntr: por toda a região algodoeira dos Estados Unidos, Os esforços de integração no século XXI entre os países em desenvolvi-
Brasil continuava a empregar o velho princípio do descaroçador de ori~:-. mento enfrentam a herança (esta sim maldita) das antigas colónias de ex-
gem imemorial, a cfmkra do Oriente ... H .
ploração em contraste com as colónias de povoamento, nos termos que
Celso Furtado usou na Formaçiio económica do Brasil. Trata-se de econo-
Embora o Sul escravocrata dos Estados Unidos fosse considerado "'"'"'11"" mias historicamente heterogêneas e desarticuladas entre si. Integrá-las é
de exploração, a modernização caminhava acelerada por aquela uma tarefa ainda mais difícil do que foi o mais de meio século ele forma-
··., anglo-saxônica, ao contrário do que aconecia no Brasil. Além disso, ção da União Européia a partir dos escombros da Segunda Guerra. ''
perspectiva, a Guerra Civil de 1861-5 é considerada um marco na
truição do modelo de plantation, permitindo que a modernização, ·,·O analista vê com reservas a possibilidade de integração dos países do
das colônias do Nordeste do país, se difundisse por todos os Estados : Mercosul, e seu pessimismo está centrado na nossa "maldita herança"
dos. O Brasil e os outros países da América Latina, por sua vez, não : colonial. Note-se que tal pressuposto faz com que o autor não tenha muitas
ainda destruído seu legado colonial -a colônia de exploração --, :i; 'esperanças com relação à integração, pois parte de uma idéia preconcebi-
fizeram os norte-americanos. :, da- o nosso "legado colonial".
Se Caio Prado Júnior foi um dos precursores na utilização dos ,...,.~~~Aft · Mas se Prado e Furtado, marcos fundadore s de uma historiografi a do
aqui estudados, penso que se deve aos desenvolvimentistas e aos ,,:: Brasil no século XX, podem ser considerados os precursores de tal pers-
" , .pectiva, sua origem está no século XIX, mais precisamente nos trabalhos
pender1tistas~ a sua ampla utilização, e também o reforço do tema, devi
aos termos binários amplamente utilizados por esses analistas, tais como • •, do economista liberal fran cês Paul Leroy-Beaulieu (1 834-191 6), que in-
"centro e periferia", "desenvolvimento e subdesenvolvimento", : ' fluenciou consideravelmente franceses e estrangeiros. O autor escreve u
e moderno" . Entre eles, merece destaque Celso Furtado e o seu não no período em que se discutia a construção e legitimação dos impérios
nos influente Formação econômica do Brasil, de 1959. Embora europeus e destacou-se com o seu De la co lonisation chez les peuples
não se detenha no viés climático como Prado, também para ele havia dis· modernes, de 1882, no qual procurava entender as colonizações mode r-
tinções mdicais entre as colonizações no Novo Mundo. Ressaltava a ca· nas e os seus legados. Caio Prado re meteu-se :1 0 especiali sta francês no
racterística de as colônias de Espanha e Portugal - apesar de na época : corpo do seu texto:
mais integradas ao mercado europeu - se tornarem "subdesenvolvi· ·

, 7 a I 7 9
CU LT URA P O LIT ICA E LEITUR AS ll O P A SSAD O O A NTIGO REGIME E A COLONIZAÇÃO EM QUOTÃO

[...) Como se vê, as colônias tropicais tomaram um rumo inteirament.e uma colônia de povoamento. Essa é uma versão da história norte-ameri-
diverso do de suas irmãs da zona temperada. Enquanto nestas se constl· cana que drculou por aqui : a de que os Estados Unidos foram formados
tuirão colônias propriamente de povoamento (o nome ficou consagrado ·.a partir da colonização dos peregrinos puritanos, os famosos pais peregri-
depois do trabalh o clássico de Leroy-Beaulieu, De la colonisation chez les . nos, deixando de lado as colônias sulistas que foram o modelo de coloni-
peuples modernes). 12 . zação inglesa do período. Sabe-se hoje que as pequenas colônias formadas
.·· ao Nordeste do país por seitas radicais eram exceção e não a norma da
O objetivo de Caio Prado e Celso Furtado era entender o presente. No , colonização inglesa. 14 Essa idéia encontra-se introjetada na cultura daquele
entanto os dois autores partiram do passado, do período colonial. . e se transformou, ao longo do tempo, numa verdadeira mitologia da
mais, p~rtiram da comparação para em seguida analisar mais detalhada- ,
mente 0 Brasil. A questão da comparação em história vem sendo já ·.. Devemos nos perguntar por qual motivo uma enorme extensão de terra
analisada, e merece destaque aqui o fato de que esse método, em Prado Novo Mundo - do Brasil, passando por inúmeras ilhas do Caribe
Furtado estabelece uma hierarquia na qual os Estados Unidos são .. delas de colonização inglesa) e chegando à colônia de Maryland,
' I,,

como centro e dominantes e o Brasil, e os outros países da América Lati-·: hoje está localizada a capital do país, Washington, DC- foi coloni-
na, como pen'fena ' e domma' dos. 13 a partir do sistema de plantation. Pode-se sugerir que assim foi por-
Embora nossos dois autores, em seus trabalhos, tratem da esse era o projeto mais viável e lucrativo para a colonização européia
colônia de povoamento e colônia de exploração de forma mais el Américas. Os ingleses instalaram no Caribe e ao Sul da América do
e matizada que o "senso comum", eles pensaram a colonização do .,orte o sistema que vinha sendo bem-sucedido entre espanhóis e portu-
Mundo dividida em duas partes completamente distintas e nos séculos XVI e XVII.
separadas. Conforme essa perspectiva, enquanto as colônias inglesas As evidências são notórias também na cultura material que herda- ..,_
América, sobretudo as do Nordeste, haviam estabelecido um vínculo Basta dar uma volta pela cidade de Cuzco, no Peru, caminhar pela
a terra, desenvolvendo o mercado interno, na América Latina, espan das Armas e observar a catedral de três naves construída sobre o
e portugueses, ávidos por metais preciosos e outras possibilidades da Wajayapata, ponto de reuniões e decisões político-religiosas e
gião, voltaram-se exclusivamente para a Europa. itares incas. Impressiona também a Igreja de Santo Domingo, fincada
re o Qoricancha, o templo do Sol incaico. Sabemos que no México
foi diferente: os espanhóis instalaram-se sobre as cidades político-
SOBRE OS MODELOS GENERALIZANTES tivas e sobt·e os templos religiosos astecas. Tais aspectos mos-
. cl11ramente a intenção de dom(nio e a violência utilizada para
Sabe-se que tal explicação de base estrutural e económica, além · ·:,; bjugar os nativos. No entanto, também revelam que os espanhóis vi e·
generalizante e reducionista, não resiste à menor investigação por para ficar, estabelecer-se, apropriar-se do território que haviam
dos estudiosos que se debruçam sobre os documentos da época, nem scoberto" . 16
olhos do turista mais atento. É fato que os modelos generalizantes e simplistas foram já amplamen-
Em primeiro lugar, vimos que, diferentemente das questões ge criticados, todavia a questão que nos move a enfocar esse tema é me-
cas colocadas por Caio Prado, o autor do excerto que utilizei da Folha "desconstruir o mito", mas, como já disse, procurar entender por qual
S. Paulo afirma que Estados Unidos - o país como um todo - 'vo ele permanece entre nós e é tão recorrentemente repetido.

1 8 o 1 B1
CULTUnA POLITICA E LEITURAS DO PASSADO
O ANTIGO REGIME E 11 COLOI<IZAÇAO E~'' QUESTAO

Penso que a dicotomia colónia de povoamento e colónia de explora·


, século XIX e início do XX os brasileiros tinlwm a Europa, especialmente
ção é muito consolidada corno explicação para a nossa condição, uma vez
:a França, como referência e modelo cultural, 1u já na segunda metade do
que, de uma maneira ou de outra, está fortemente plantada no imaginário
século XX o nosso olhar voltou-se para os Esraclos Unidos e o que aquele
social brasileiro. Segundo Bronislaw Baczko,
· . país representa em termos das dimensões da modernidade. Além disso,
. são evidentes o interesse e a admiração de determinados setores brasilei-
o imaginário social informa acerca da realidade, ao mesmo tempo que
.~ ros pelos Estados Unidos. Não preciso lembrar o quanto a cultura norte-
constitui um apelo à ação, um apelo a comportar-se de determinada ma-
ricana encontrou ressonância entre os brasileiros; basta uma volta nos
neira. Esquema de interpretações, mas também de valorização, o disposi·
tivo imagin<\rio suscita a adesão a um sistema de valores e intervém 'ngs para identificarmos que a quase totalicbde das lojas não nwis
eficazmente nos processos da sua interiorização pelos indivíduos, mode- • iza a palavra liquidação, mas estampa em suas vitrines termos como
!ando os comportamentos, capturando as energias e, em caso de necessi- · off" ou "sal e", ou ainda como determinados se tores da classe média se
dade, arrastando os indivíduos para uma ação comum. 17 .':: esforçam para comprar um automóvel off-road.
Para intelectuais como Edward So.id e Mary Louise Pratt, o discurso
Partindo das proposições desse autor, é possível sugerir que o nosso olhar foi bastante competente, pois penetrou nas "sociedades do-
sempre voltado para fora das nossas fronteiras, em direção aos países di- ·.·• nadas", emoldurando posições intelectuais, políticas c econômicas,
tos desenvolvidos, faz parte do nosso imaginário, o qual carrega um siste· •.:!:lrr!:I\J'P'-':"'ndo as várias dimensões da cultura e atingindo até mesmo as con-
"' ma de valores a partir do qual olhamos com admiração os países chamados estéticas. Tal qual a economia, o conhecimento foi organizado em
centrais, nos caracterizando, por contraste, de forma deficiente, carente e de poder, sendo que esse mesmo centro impôs sua autoridade, por
incompleta com relação a um modelo difícil de alcançar. iodos mais variados tipos de discurso, colocando-se como o produtor
usivo do saber. Dessa forma, o discurso colonizador é visto por esses
como um instrumento eficiente elo processo de colonização, uma
O BRASIL E OS ESTADOS UNIDOS COMO REFERÊNCIA EXTERNA que se encontra incorporado/introjetado pelas sociedades que pass:l-
pelos processos de domínio c ainda têm na Europa ou nos Estados
Penso que as reflexões publicadas recentemente por autores que preten· a sua referência do que é ser moderno. 19 Pratt mostra que as clis-
dem discutir a centralidade da Europa, tanto em termos económicos como binárias e as separações radicais devem ser revisrns, uma vez que
na elaboração da sua autoridade quanto à construção do conhecimento, encontros entre metropolitanos e locais se caracterizam por interações
nos oferece subsídios para refletir sobre o tema e, mais precisamente, so· ordens diversas, embora a metrópole marcasse sua centralidade com
bre o lugar em que nos colocamos com relação aos Estados Unidos. ao "resto do mundo". Paro. a autora, o processo não deve ser en-
como binário, mas sim compreendido através das trocas, apro-
Parto da idéia de que as proposições mais claramente apresentadas por
.' priações e transculturações que se estabeleceram nas zonas colonizadas.
Caio Prado e Celso Furtado vieram "revestir de cienrificidade" uma for·
Para o antropólogo Stuart Hall, interessa entender o lugar que o dis-
ma que já tínhamos de pensar o Brasil com relação aos países mais ricos.
rso colonizador propõe para os vários países considerados arrasados e
Em outras palavras, são proposições que caíram sobre um imaginário no
' a relação que essas sociedades desenvolveram com o chamndo centro.
qual sobressaem as imagens positivas dos países considerados desenvolvi·
Note-se que em vários casos, quando o discurso d::t metrópole se refere
dos, ao mesmo tempo que a nossa própria imagem é subestimada. Se no
ao Ocidente, muitas vezes o faz reduzind o esrc~ Zl Inglaterra, à Franp e
1 81
•j íl ]
C ULTURA P OL I TICA E L E ITURAS DO PASSADO O ANTIGO REGIME E A COLONIZAÇAO EM QUESTAO

aos Estados Unidos. Para Hall, não é possível estabelecer separações, pois : Notas
a colonização está presente de forma indelével tanto na metrópole quan-
to nos países que foram colonizados, sendo assim histórias que se forma- 1. Cf. Roberson Oliveira, "Economia colonial e ação predatória", Folha de S. Paulo,
ram como transnacionais e transversais. 20 18/7/2002.
2. Ver Roderick Nash, Wildemess and american mind, New Haven/Londres, Yale
Com relação à escrita da históri::t, vale lembrar o que propõe o·
University Press, 1967.
Chakrabarty. Para ele é necessário pensarmos sobre a "descolonização 3. Ver Mary A. Junqueira, "A conquista do Oeste: do Atlântico ao Pacífico", em Esta·
conhecimento", uma vez que partes do mundo com perspectivas hi dos Unidos. A consolidaçdo da naçdo, São Paulo, Contexto, 2001, p. 39-63.
cas diferentes, temporalidades diversas e concepções próprias do 4. Florival Cáceres, História da América, São Paulo, Moderna, 1993, p. 77.
não devem ser medidas pelo metro europeu, nem ser analisadas a 5. Francisco Teixeira, História da América, São Paulo, Ática, 1991, p. 11.
elo instrumental e das categorias europeus. Para o autor, o adjetivo · 6. Cf. Antonio Candido, "O significado de Raízes do Brasil", em Sérgio Buarque de
Hollanda, Raízes do Brasil, Rio de Janeiro, José Olympio, 1983, p. XI.
derno -visto como unive rsal e originariamente europeu, já que pre
7. Ver, por exemplo, o trabalho de Patrícia Seed, Cerimônias de posse na cotzquista
de reunir as noções de racionalismo, as várias concepções da ciência e européia do Novo Mundo (1492-1640), São Paulo, Ed. Unesp, 1997.
significados de progresso- não pode ser entendido como exclusi · . 8. Conferir Caio Prado Júnior, Formaçdo do Brasil colttempordneo, 21" ed., São Paulo,
européia, uma vez que foi construído com a participação do mundo Brasiliense, 1989, p. 138.
siderado não-ocidental. Segundo Chakrabarty, é necessário rever as ~. 9. Chamo de dependentistas o grupo que se reuniu em torno da Cepa! (Comissão Eco-
rativas das histórias européias e o seu viés nacipnalista, uma vez que nômica para a América Latina e o Caribe), fundada em 1948, uma das comissões
histórias foram construídas de forma transnacional- e estão regionais da ONU que tinha como objetivo pensar e propor políticas para o desen·
volvimento da América Latina, considerada como "região periférica" em relação ao ·
mente entrelaçadas - , embora tenham sido narradas como se
"centro desenvolvido". Ver Ricardo Bielschowsky, "Cinqüenta anos de pensamento "~
distintasY na Cepa!- Uma resenha", em Cinqüenta anos de pensamento na Cepa/, Rio de
A partir da reflexão desses autores é possível sugerir que a for Janeiro, Record, 2000, p. 14-68.
colónia de povoamento e colónia de exploração encontrou a ··10. Ver Bernardo Ricúpero, "Celso Furtado e o pensamento social brasileiro", Estudos
que conhecemos devido ao fato de já nos colocarmos em determi Avançados, São Paulo, IENUSP, v. 19, n. 53, 2005.
posição com relação ao centro desenvolvido, sendo que em muitos · 11. Cf. Gesner Oliveira, "Cuzco, Ouro Preto e o mal da altura", Folha de S. Paulo, 111
12/2004.
mentos essa relação se configurou- e se configura- como de subor
Cf. Prado Júnior, op. cit., p. 30.
ção ou subalternidade, para utilizar um termo mais veiculado . Ver Maria Ligia Prado, "Repensando a história comparada da América Latina", Re-
Tal dicotomia encontrou um campo fértil, pois caiu sobre uma "v'·"·''a'-'1 vista de História, n. 152, 1° semestre de 2005, p. 11-33.
que cm muitos momentos olhou para a Europa- e agora para os Es Ver Jack P. Greene, Pursttits of happittess. The social deve/opment of early modem
dos Unidos- com admiração e como meta ou modelo a ser alcan British colonies and the formatio11 of American culture, Chnpel Hill, The University
Ademais, a dicotomia colônia de povoamento e colónia de exp of North Carolina Press, 1988.
. Sobre os puritanos e a ampla utilização de uma retórica religiosa na cultura norte-
ção sugere que reavaliemos a escrita da nossa história nacional, que
americana, ver Cecília Azevedo, "A santificação pelas obras: experiências do protes-
hoje, muitas vezes dentro da própria academia, vem repetindo o "
tantismo nos EUA", Tempo, Rio de Janeiro, Departamento de História, UFF, n. 11,
de destaque" do Brasil co m relação aos outros países da América 2001, p. 111-29.
e, por outro bdo, indicando a nossa "posição subordinada" com rei ) 6. Ver Leandro Karnal, Estados Unidos. Da colônia à independência, São Paulo, Con-
aos Estados Unidos. texto, 1998.

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CULTURA POLITICA E LEITURAS DO PASSADO

17. Ver Bronislaw Baczko, "Imaginação social", em Enciclopédia Einaudi, Lisboa, Im-
prensa Nacional Casa da Moeda, 1985, p. 311-2.
18. Ver Denis Rolland, A crise do modelo francês. A França e a América Latina. Cultura,
política e identidade, Brasília, UnB, 2005.
19. Cf. Edward Said, Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente, São Paulo,
Companhia das Letras, 1994; idem, Imperialismo e cultura, São Paulo, Companhia
das Letras, 1990; e Mary Louise Pratt, Imperial eyes. 'Iravel writing and transcultu-
ration, Londres/Nova York, Routledge, 1995.
20. Cf. Stuart Hall, "Qunndo foi o pós-colonial? Pensando no limite", cm Da didspora.
Identidades e mediaç~es culturais, Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2003, p. 101-28.
21. Dispesh Chakrabarty, Provincializing Europe: Postcolonial thought and historical PARTE 111 Identidades em construção:
difference, Princeton, Princeton University Press, 2000.
22. Sobre a visão construída no Brasil com relação aos outros países da América Latina, indígenas, negros e mestiços
ver Rafael Baitz, Um continente em foco: a imagem fotográfica da América Latina
~tas ret,istas semanais brasileiras (1954-1964), São Paulo, Humanitas/FFLCH-USP,
2003. Kátia Gerab Baggio, A "outra" América. A América Latina na visão de intelec-
tuais brasileiros nas primeiras décadas republicanas, tese de doutorado, FFLCH/USP,
São Paulo, 1999, mimeo.

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