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ree Maria Licia Medeiros Eto UU Ae)NGH: SILENCIOSO Pate tad le} pA fe) (zy Ea fy yA) fe] N fe ie} Be “ONDE ESTIVESTES DE NOITE?” Havia percorrido quase a metade do quarteirao quando resolveu voltar e entrar na farmécia, Subiu na balanga e acompanhou, por tris das lentes grossas ¢ bagas, a curva ascendente do ponteiro: 98 Kg. Lembrou-se de que estava com 0s livros de- baixo do braco, livrou-se deles subtraiu 300g. Cocou a cabega, apanhou os livros e voltou aos passos apressados para poder chegar a tempo, tomar o Gnibus e zarpar. Precisou correr porque jé vinha 0 6nibus se aproximando, ¢ la se foi ele meio que espremido na porta. Pagou, acomodou- se entre uma estudante magrinha ¢ um aleijado abriu © livro dela, “Bla seria fluida durante toda a vida. Porém o que dominara seus contornos ¢ 0s atraira a um centro, 0 que a iluminara contra 0 mundo e tbe dera intimo poder fora o segredo.” 38 ‘Maria Lucia Medeiros Fechou 0 livro € deixou a mio gorda repousar na capa com desenho de Santa Rosa, edi¢io de 1946. O énibus lotado sacolejava € incomodava. © banco muito estreito, o suor pregando a roupa no corpo € as horas que voavam. Nem demorou tanto e uma manobra brusca fez com que os li- vros empilhados sobre suas pernas se espalhas- sem pelo chao para onde se langaram as maos gordas 2 tatear e recolher, curvado que estava so- bre a propria barriga, desajeitado ¢ ofegante. Mas logo se refez, tfo acostumado estivera sempre a esses embates travados dentro dos Snibus que cru- zavam a cidade, ele protegido por sacolas de li- vros € cadernos de apontamento, escudos e armas de sua vida de professor. Mas logo se refez ~ que ‘eu disse -, arrumou os éculos € abragado aos li- ‘ros dela tentou decifrar a hora, mostrador ao re- vés, no relégio de pulso da estudante. Calculou entdo que dentro de vinte minutos estaria chegando para 0 primeiro encontro, porque haveria 0 segundo mais a noite € mais encontros Ihouvesse mais ele se deslocaria de um ponto a outro sem se importar com as distdncias € atropelos. Sentia-se preparado para as eventualidades. S6 nao poderia distrair-se, arroubar-se demais, embeber-se em reflexes ¢ perder a hora, tomar © énibus errado, por exemplo. Na impossibilidade de recostar-se, fechou os olhos, deixou pender a cabeca um pouco para a “Onde estivestes de noite?” frente e experimentou reconstruir, confiante na mem@ria, o que deveria ser pergunta certeira a comegar assim: “Sao Joao da Cruz, o grande poeta mistico espanhol...". Ou “O grande poeta mistico espanhol Sao Joao da Cruz...”. Ou arriscar-se mais, acompanhar a magia do instante, desenterrar seu pobre castelhano, ornar o timbre grave que ele tio bem cultivava e tentar impressiond-la, seduzi-la assim: “Noche Oscura, de San Juan de la Cruz...". Mas € depois? Como manejar depois 0 tecido. cristalino das palavras e fazé-la acreditar que ele sentia dentro do peito So Joto da Cruz espreit-ta? Uma freada stibita fez com que procurasse novamente saber as horas no relégio de pulso da estudante. Pés-se em sobressalto porque ao refazer rapidamente o célculo descobria-se quase atrasado para o encontro, Passou a acompanhar atento 0 percurso do 6nibus que se arrastava pelo Largo de ‘Sao Bras parecendo querer parar a cada mangueira. “Senhora, Sao Joao da Cruz, este grande poeta mistico espanhol...”. Porque jé havia decidide que a trataria assim, chama-la-ia Senbora. “Senhora, a experiéncia mistica de San Juan de la’Cruv..”. Quem sabe se comegando pela “experiéncia mistica’ nao conseguiria chegar mais perto dela, tocar-he vestido talvez, chami-la pelo nome até, merecer, quem sabe, alguma palavra escrita na edigao de 46? Um frémito, sim, Alegria e agonia a comprimir ‘seu compo, © coragio @ preparar-se para o encon- 39 40, Maria Litcia Medeiros tro, momento em que a cidade, préxima, real. Um frémito, sim, um anteci- par de imagens, ardor suficiente para poder vé-la antes de todos e sem nenhum, dentro da imensa sala, 0 cigarro entre os dedos, a cicatriz na carne, a via crucis dele apaziguada pela via crucis dela, 0 mesmo chao percorrido e flamejante, a mocidade eas ruas do Recife. ‘Ainda conservava os olhos fechados quando 0 dnibus estancou. Assustou-se. Uma grande confusio se estabelecera, envolvendo © motorista ¢ alguns passageiros, vozes que altercavam, gritos. Aproveitou 0 tumulto, escapou pela porta de tras ¢ saiu quase corendo porque precisava vencer a pé o percurso que faltava, que agora nao tinha mais jeito: estava definitivamente atrasado. Apressou mais 0 passo ao avistar de longe 0 prédio, No minuto seguinte alcangou 0 portio por ‘onde passou qual uma bala para empreender em seguida marcha em ziguezague, um pouco & direita, depois a esquerda, escalar quase voando trés degraus ali, ués mais adiante para afinal estar presente 20 encontro, ainda que banhado em suor. Precipitou-se, mas abriu devagar a porta. Viv'alma. ‘Teria cle crrado o dia, a hora, o lugar? Revisou rapidamente: o dia estava certo, a hora teria sido aquela, mas ¢ o lugar? Recomegou. Seguindo orientagdes desencon- tradas, langou-se a caminhada mais animadora “Onde estivestes de noite?” porque sentia dentro dele alguma coisa pulsando € assegurando que ela ainda o esperava. Lembrou-se de procuré-la no andar de cima. Como nio se Jembrara antes? Ao chegar 14 alegrou-se ao ver um corredor comprido ¢ as varias salas que se abriam em pos- sibilidades. Repetindo 0 gesto que o fazia, em ‘exame, abrir € fechar todas as portas 4 procura dela viu, em grande abatimento, esvair-se a Gltima esperanca. Vazia. Completamente vazia. No instante seguinte reconheceu precisar fazer 0 caminho de volta, enfiar-se novamente pelos labirintos de portas, passagens, corredores que se alongavam, ouvindo o ecoar dos proprios passos, precisando sair imediatamente daquele lugar e buscé-la uma vez mais. Em marcha recuperada pos- se a caminho guiado apenas pela auséncia dela. “Sin otra luz y guia sino la que en el coraz6n ardia” A chuva que desabou sobre a cidade na noite daquele mesmo dia deixou as ruas alagadas ¢ tudo no escuro. Dificultou agdes, impediu acessos, provocou varios desencontros. Os bombeiros foram chamados mais de uma vez, as escolas sus- penderam as aulas € as criangas adormeceram mais cedo. a 2 ‘Maria Lucia Medeiros 1A pelas onze horas da noite a chuva comegou a passar ¢ as pessoas puderam, enfim, retornar 3s ‘suas casas, onde chegaram com as roupas enchar- cadas ¢ os embrulhos desfeitos. ‘Arrastando os sapatos pesados pelo aguaceiro, ele — que escolhera proteger 0s livros dela ¢ ficar ‘a descoberto — alcangou o quiosque da praca € pediu um conhaque para aquecer-se. “Loira mulber 10 negra e brasileira apaga a escuriddo de todos nés.” Ele escreveu em letra gorda nia primeira pagina de sua edigio de 46. Depois foi andando quase sem rumo enchendo ‘a rua com seu corpo gordo, a parar de vez em quando para limpar os éculos remoendg passagens do dia atribulado que tivera, a reconhecer alheia sensagio de coisa ancha, um ndo-sei-qué, uma opuléneia de rei, transbordamentos. Sibito se deparou diante do velho Central Hotel onde muitos a viram chegar, sair, tocar as paredes, respirar. E porque “a noite era uma possibilidade excepcional", ergueu mais a cabega ¢ correu os olhos pelas janelas da frente do hotel, fechadas umas, outras iluminadas, todas espectrais aquela hora da “Senhora, em qual delas deitastes vosso olhar ausente?” AO SOL DAS TRES DA TARDE Naquelas tardes absolutamente cadticas posso ‘até jurar que era 0 olho de Deus que acompanha- va F durante o percurso que ela fazia de volta para casa Escondidos entre as nuvens do poente era como se 0 olho de Deus € 0 sol fossem a mesma coisa ¢ estivessem nos mesmos lugares. Na verdade, ao redor de F havia uma vastidao, Yo desconcertante, largos espagos vazios, uma es- tagio de trem, arrobas de tabaco € um caminho que ela percorria todos os dias passando pela frente das casas com a pintura das fachadas descascando, tabernas cujo cho de cimento esfriava ainda mais sua alma de natural tio sola. ‘Tinha F nesse tempo onze anos e meio, as pernas encompridavam e a trajet6ria cotidiana € imutével ela dissimulava inventando rotas mais curtas e perigosas, as vezes curtas, as vezes pe- rigosas.

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