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PUBLICADO EM26/07/2011
No início de seu ensino, Jacques Lacan não estava preocupado em propor novos
conceitos ou desenvolvimentos teóricos inovadores para a Psicanálise. Seu
interesse principal era resgatar a essência da teoria e da técnica psicanalíticas
que, do seu ponto de vista, havia sido desvirtuada pelos analistas pós-
freudianos. A esse projeto, Lacan deu o nome de “retorno a Freud”. Em outras
palavras, o psicanalista francês achava que seus colegas estavam fazendo tudo,
menos psicanálise.
Por conta disso, durante quase 10 anos de seu “Seminário”, Lacan se dedicou a
ir aos textos de Freud e dos autores pós-freudianos e, comentando-os, mostrar
o que, segundo ele, seria a psicanálise verdadeira, a intuição original de Freud,
e a psicanálise falsa, composta de enunciados teóricos e técnicos que estavam
no caminho oposto àquele que o pai da psicanálise havia proposto.
É nesse contexto que devemos situar a crítica que Lacan faz a Michael Balint,
psicanalista húngaro, no seminário do ano acadêmico de 1953-54, dedicado
ao comentário dos escritos técnicos de Freud. Balint é um dos representantes
de uma corrente psicanalítica pós-freudiana que ficou conhecida como “escola
da relação de objeto”. Tal corrente teria como fundamento as idéias de Melanie
Klein, as quais se contrapunham às teses da filha de Freud, Anna. Ora, a
discordância entre as autoras se dava em relação à questão acerca da existência
de relações de objeto desde o nascimento. Para Anna Freud, que seguia o ponto
de vista de seu pai, tais relações só apareceriam num estágio posterior do
desenvolvimento do bebê, pois inicialmente a libido da criança estaria
concentrada totalmente em seu ego (autoerotismo). Já para Klein, desde o início
da vida o bebê estaria se relacionando com objetos, sendo o primeiro deles o
seio. É óbvio que Anna Freud não ignorava o fato de que o bebê tinha contato
com o seio. Ela, no entanto, não via por que considerar esse contato como uma
“relação de objeto”, pois, segundo ela, o bebê se relacionaria com o seio como
se esse fosse uma parte de si mesmo e não como um objeto externo.
Mas essa mudança aconteceria? Qual elemento faria com que passássemos de
uma relação com o outro apenas como objeto para um relacionamento com um
objeto ao qual reconheceríamos também uma subjetividade? Balint não o
explica. O analista húngaro faz parecer que, do seu ponto de vista, tudo ocorreria
naturalmente, como se, de repente, o sujeito despertasse para o reconhecimento
do outro como sujeito. Aliás, conforme a leitura de Lacan, Balint diria que os
sinais desse reconhecimento, a saber: a ternura, o respeito e a consideração,
teriam sua origem justamente nos estágios pré-genitais! Trata-se de um contra-
senso, pois, como vimos, na pré-genitalidade a relação com o objeto não
comportava aqueles traços. Em suma, para Lacan, Balint se enrola, e o faz
porque negligencia a existência do registro simbólico.
Para entender melhor essa idéia, tome o seguinte exemplo: pense na linguagem
como o jogo de xadrez e nas peças do tabuleiro como os significantes. Ora, o
sujeito, que é quem movimenta, só possui aquelas peças específicas para jogar
e cada uma delas só tem significado dentro do jogo. A rainha só é rainha no
tabuleiro. Caso alguém que não conheça o xadrez a pegue por acaso, poderá
utilizá-la como um singelo objeto de decoração e não como a peça de um jogo.
Assim também são os significantes: mudam de significado conforme o contexto
em que se encontram.
Pois bem, ao nomearmos alguém como mãe, pai, etc. é como se estivéssemos
chamando aquela pessoa para jogar o xadrez da linguagem conosco, ou seja, a
se fazer representar, tal como nós próprios, pelas peças do tabuleiro. Em outras
palavras, no ato da nomeação, estamos reconhecendo o outro como sujeito, pois
estamos admitindo a sua inserção na linguagem. É por isso que Lacan afirma,
nessa crítica a Balint, que a condição para o reconhecimento do outro como
sujeito é a possibilidade que o indivíduo tem de se servir da linguagem,
possibilidade que lhe é outorgada bem precocemente.