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A (re)construção do conceito de comunidade como um desafio à sociologia...

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A (re)construção do conceito de comunidade


como um desafio à sociologia da religião

Carolina Teles Lemos*

Resumo
Nos tempos atuais, em que a globalização colocou em xeque as fronteiras culturais tra-
dicionais, não mais se encontram em nossa sociedade concepções tão complexas, como
a de comunidade formada por uma única vertente cultural. Visamos, neste texto, levantar
alguns desafios que o enfrentamento desse conceito traz à sociologia da religião neste
contexto. Para realizarmos esta tarefa, partimos das seguintes questões: com qual conceito
de comunidade as pessoas operacionalizam o seu cotidiano? É possível perceber nessas
concepções alguma referência a crenças e práticas religiosas? Que desafios o conceito de
comunidade utilizado pelas pessoas coloca à sociologia da religião no momento atual?
Palavras-chave: comunidade; sociologia da religião; religião; identidade; aperfeiçoamento
espiritual

The construction of community concept as a challenge to the


sociology of religion

Abstract
In the current times, when globalization placed in check the traditional cultural borders,
there is no more complex conceptions in our society then the concept of community
formed by a unique cultural source. In this text we want to find out some challenges that
the confrontation of this concept brings to the sociology of religion in that context. To
realize this task, our starting point are the following questions: with which concept of
community are people operating their daily life? Is it possible to perceive in these
conceptions some reference to religious practices and beliefs? What challenges the concept
of community used by people places to the sociology of religion at the current moment?
Keywords: community; sociology of the religion; religion; identity; spiritual perfection.

* Doutora em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. Professora no


Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Católica de Goiás.
Atua na área da Sociologia da Religião.

Estudos de Religião, v. 23, n. 36, 201-216, jan./jun. 2009


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La construcción del concepto de comunidad como desafío a


la sociología de la religión

Resumen
En los tiempos actuales, donde la globalización ha colocado la necesidad de averiguación
de las fronteras culturales tradicionales, no más se encuentran en nuestra sociedad,
conceptos tan complejos como el de comunidad formada por una única fuente cultural.
Nosotros tenemos como objetivo, en este texto, levantar algunos desafíos que la
confrontación de este concepto trae a la sociología de la religión en este contexto. Para
esta tarea, partimos de las preguntas siguientes: ¿Con qué concepto de comunidad la
gente opera su vida cotidiana? ¿Es posible percibir en estos conceptos una cierta
referencia a la creencia y a las prácticas religiosas? ¿Qué desafíos el concepto de
comunidad usado por la gente pone a la sociología de la religión en el momento actual?
Palabras-clave: comunidad; sociología de la religión; religión; identidad;
perfeccionamiento espiritual.

É indiscutível a importância do conceito de comunidade em diversos


setores intelectuais, científicos ou mesmo religiosos. Um dos espaços em que
esse conceito é aplicado é o campo religioso. Neste espaço, falar da comuni-
dade é, na maioria das vezes, falar dos próprios fiéis de uma igreja, quando
esta indica que seus membros se compõem numa comunidade de fiéis. Dessa
forma o estudo sobre o termo comunidade, tanto no campo das ciências
sociais como no pensamento religioso, é pertinente e importante. Ele nos
permite perceber como a sociedade e, nela, as várias religiões, entendem ser
a formação e o sentido dos agrupamentos humanos. No entanto, ao nos
propormos a tarefa de definir comunidade, deparamo-nos com várias dificul-
dades de tipo teórico. Isto porque o conceito de comunidade é um dos con-
ceitos mais vagos e evasivos nas ciências sociais.
Portanto, a ideia de comunidade continua a desafiar uma definição pre-
cisa. Parte do problema tem origem na diversidade de sentidos atribuídos à
palavra e às conotações emotivas que ela geralmente evoca. Comunidade
tornou-se uma palavra-chave usada para descrever unidades sociais que variam
de aldeias, conjuntos habitacionais e vizinhanças até grupos étnicos, nações
e organizações internacionais. No mínimo, comunidade geralmente indica um
grupo de pessoas dentro de uma área geográfica limitada, que interagem
dentro de instituições comuns e que possuem um senso comum de inter-
dependência e integração (BOTTOMORE, 1996:115).
Se focarmos diretamente os laços sociais e sistemas informais de troca
de recursos entre as pessoas, em vez de focarmos as pessoas vivendo em
vizinhanças e pequenas cidades, teremos uma imagem das relações inter-

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pessoais bem diferente daquela com a qual nos habituamos. Isso nos remete
a uma transmutação do conceito de “comunidade”. Se solidariedade, vizinhan-
ça e parentesco eram aspectos predominantes quando se procurava definir
uma comunidade, hoje eles são apenas alguns dentre os muitos padrões pos-
síveis das configurações sociais.
Para adentrarmos no enfrentamento da tarefa de pensar um conceito de
comunidade útil à compreensão da sociedade atual, colocamo-nos as seguintes
questões: com qual conceito de comunidade as pessoas operacionalizam o seu
cotidiano? É possível perceber nessas concepções alguma referência a crenças
e práticas religiosas? Que desafios o conceito de comunidade utilizado pelas
pessoas coloca à sociologia da religião no momento atual?
Para responder a essas questões, realizamos uma breve pesquisa de cam-
po entre pessoas encontradas nas imediações da Universidade Católica de
Goiás, em diferentes horários dos dias 15 a 20 de maio de 2008. Entrevista-
ram-se 17 pessoas de ambos os sexos, faixa etária acima de 20 anos1. O texto
que se segue apresenta o resultado e a análise dessa pesquisa.

1. O conceito de comunidade: um desafio


Para o sociólogo Tönnies (1979), comunidade significa “vida real e orgâni-
ca”. Há um pressuposto que rege a comunidade: a perfeita unidade das vontades
humanas como estado originário ou natural. As relações que compõem a comu-
nidade são, para o autor, relações de sangue, de lugar e de espírito, derivadas do
parentesco (casa), da vizinhança (convivência na aldeia) e da amizade (identidade
e semelhança nas profissões). Na comunidade é muito importante a “compreen-
são” (consenso), que é um modo associativo de sentir comum e recíproco. Esta
compreensão implica a posse e o desfrute de bens comuns, amigos e inimigos
comuns, e também a vontade de proteção e defesa recíproca.
Um outro aspecto do conceito de comunidade é o destacado por Cohen
(1985:20). O referido autor vê comunidade como um mecanismo simbólico

1
A maioria dos entrevistados (12 deles) possui curso superior, dois estão cursando graduação
e três estão cursando o ensino médio. A profissão predominante das pessoas entrevistadas
(11 delas) está relacionada com atividades acadêmicas: são professores ou funcionários em
instituições acadêmicas; havendo também uma costureira, uma comerciante e quatro entre-
vistadas que só estão estudando. Quanto à religião que frequentam, houve bastante variação,
sendo: quatro espíritas, um que frequenta o Universalismo Crístico, três católicos, um
evangélico (sem especificar qual igreja), dois que declararam frequentar duas expressões
religiosas diferentes ao mesmo tempo (Católica e Seicho-no-iê e Católica e Adventista do
Sétimo Dia), uma que afirmou freqüentar o espiritualismo universalista e outra a Igreja
Evangélica Assembléia de Deus. Houve também três pessoas que declararam não participar
de nenhuma religião e uma delas não declarou nada.

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que permite uma reflexão sobre a diferença cultural de seus membros. Nessa
perspectiva, a comunidade é “uma forma de pensar, sentir e acreditar”. É ela
um fenômeno cultural que é construído em termos do seu significado, por
pessoas, através de recursos simbólicos. A comunidade é, portanto, um sím-
bolo que expressa as suas próprias fronteiras. Enquanto símbolo, é apropriada
coletivamente pelos seus membros, mas os seus significados variam conforme
as perspectivas pessoais.
Para Cohen (1985:17), quando da elaboração dos significados que irão
compor a comunidade ocorre a construção de um simbolismo muito particular.
Este simbolismo se torna particularmente explícito durante e através de rituais
que representam um importante meio de experimentação da comunidade. Neste
sentido, o ritual confirma e reforça a identidade social e o sentimento de per-
tença social a um coletivo. Simultaneamente a esse sentimento de pertença
ocorre um aumento da conscientização da diferença entre os grupos, através da
evocação dos símbolos coletivamente partilhados (COHEN, 1985:54).
Um outro autor que se ocupou com a complexidade do conceito de
comunidade foi Bauman (2003). Afirma o autor que uma pré-concepção
acrítica desse conceito nos remete sempre à idéia de uma “coisa boa”. Essa
definição positiva a priori, sempre reafirmada e raras vezes questionada, é
também expressa, segundo Bauman, na definição de Rosenberg, para quem
a expressão comunidade se refere a um “círculo aconchegante”, e trata-se de
um agrupamento “distinto, pequeno e auto-suficiente”. No entanto, afirma
Bauman, existe uma tensão entre a utópica e almejada segurança da comuni-
dade e a idéia de liberdade. Isto porque, na medida em que a vivência em
comunidade significa a perda da liberdade, acaba gerando-se um dos dilemas
mais significativos para a compreensão das dinâmicas sociais da contem-
poraneidade. Paradoxalmente, almejamos e resistimos à segurança coletiva, em
prol da liberdade individual.
Sobre a concepção atual de comunidade, segundo Bauman, estão presentes
duas tendências que acompanharam o capitalismo moderno: por um lado, “o
esforço de substituir o ‘entendimento natural’ da comunidade de outrora, o
ritmo, regulado pela natureza, da lavoura, e a rotina, regulada pela tradição, da
vida do artesão, por uma outra rotina artificialmente projetada e coercitivamente
imposta e monitorada” (BAUMAN, 2003:36). Por outro lado, a tendência de
criar do nada um sentido de comunidade dentro do quadro de uma nova estru-
tura de poder, ou seja, a busca pela naturalização dos padrões de conduta
impostos pelo processo de racionalização, “abstratamente projetados e osten-
sivamente artificiais” (BAUMAN, 2003:39). Nessa conjuntura a idéia de
comunitarismo, entendida como “pertencer a” continua uma demanda em nossa
sociedade. Essa demanda estaria orientada nas duas formas de autoridade pos-

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síveis no mundo contemporâneo: a primeira seria a autoridade dos especialistas,


geralmente a classe que tem acesso aos bens culturais; a segunda seria a auto-
ridade numérica, em que o conceito de identidade como categoria “mental”
procura estabelecer marcos explicativos que deem conta da multiplicidade dos
entes sociais. Quais características desses conceitos de comunidade podemos
perceber no universo das pessoas entrevistadas?

2. Concepções de comunidade para as pessoas entrevistadas


A concepção de comunidade para as pessoas entrevistadas apresenta
duas características predominantes: a de ser um espaço de identidade e de
partilha de interesses comuns e a de ser um espaço de autoaperfeiçoamento.

2.1. Comunidade: espaço de identidades e interesses comuns


Uma das primeiras intuições, ao ler as respostas das pessoas entrevista-
das sobre o que significa para elas a palavra “comunidade”, é de que, para
elas, a comunidade representa o espaço de afirmação de identidades e de
manutenção de interesses comuns. Afirmam elas que comunidade:

É um construto humano, que encarna o anseio de vida em comum (2); Repre-


senta um lugar onde me sinto bem e onde tenho referências de pessoas que, se-
melhantes a mim, passam por dificuldades diversas (3); Representa o meio em
que vivo, que é o meu laboratório (4); É um grupo de indivíduos que vivem
num dado lugar ou região, ligados por interesses comuns (5); É um conjunto de
pessoas vivendo no mesmo lugar, ou cidade (14); Representa uma vida em
conjunto, em que as pessoas convivem em um mesmo local, em que elas pre-
cisam se ajudar pra viver melhor (16).

Esse primeiro aspecto destacado pelas pessoas entrevistadas pode ser


entendido à luz do pensamento de Cohen (1985:12), para quem, por definição,
a fronteira simbólica marca o início e o fim da comunidade. Para o referido
autor, as fronteiras são fundamentais na construção da comunidade enquanto
delimitações mentais construídas pelos indivíduos que, de diferentes formas,
interagem uns com os outros. Assim sendo, a comunidade existe por meio de
um processo de construção simbólica da semelhança entre os seus membros e
da acentuação da diferença relativa a outras comunidades. A manutenção desta
dialética é concretizada pela manutenção simbólica das fronteiras da comuni-
dade, levada a cabo, individualmente, pelos seus membros. Acrescenta-se ainda
que a fluidez das fronteiras depende da subjetividade individual, crucial na flui-
dez da conceitualização da própria comunidade, alterando-se com as diferentes
percepções e significados que cada um lhe confere.

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Essas respostas se aproximam ainda daquilo que Cohen denomina


“mitos da comunidade”. Segundo o autor, os mitos da comunidade seriam:
o mito da simplicidade ou do face-a-face, o mito da igualdade
(homogeneidade interna), o mito da inevitável conformidade (conser-
vacionismo). Estes mitos estão baseados na suposição de que a “comunidade”
é algo assim como uma estrutura formal abstrata. Teria ela a qualidade de
obrigar os seus membros a atuarem de uma determinada maneira, sempre
prescrita, independentemente das interpretações e do significado que as pes-
soas dão ao seu comportamento.
Esses mitos da comunidade podem ser percebidos ainda nas seguintes
afirmações das pessoas entrevistadas, ao afirmarem que comunidade é:
um grupo de pessoas unidas a um propósito, que luta pelos seus direitos
na busca do bem (6); parceria e troca. As comunidades de primeiro trabalha-
vam assim pro bem comum de todos. Relações de troca de consenso (7); o
que é bem comum a todos nos direitos e deveres (8 e 9); um conjunto de
pessoas que convivem e que precisam respeitar limites e deveres (10).
No entanto, afirma Cohen, enquanto conceito subjetivo, as fronteiras
simbólicas da comunidade estão imbuídas de um significado diferente confor-
me as expectativas e interpretações individuais dos seus membros. Por esse
motivo se destaca o aspecto simbólico das fronteiras na construção da comu-
nidade. Em face desta variabilidade de significados e da fluidez implícita na
percepção dos limites, a consciência da comunidade é mantida pela manipu-
lação dos seus símbolos (COHEN, 1985:15). As categorias sociais construídas
são, por isso, marcas simbólicas dessa comunidade.
Cohen sugere ainda que “comunidade” representa uma estrutura
intrincada de relações e modos de pertença social. Significa isto que está
diretamente relacionada com a consciência individual e coletiva de pertença
a um grupo, que, por sua vez, implica um processo de conceitualização e
consciencialização da própria comunidade. Por isso, os indivíduos constroem,
simbolicamente, uma comunidade, transformando-a num recurso e num
repositório de significados e num referente para a sua identidade (COHEN,
1985:13). Vejamos como aparece esta concepção de comunidade para as
pessoas entrevistadas. Afirmam elas que comunidade significa:

Comuna. Comum, são bens comuns. Comunidade coisas partilhadas com as


pessoas. Uma egrégora2 que vibra numa mesma sintonia que pensa e fala numa

2
Egrégora, termo grego significando envolvimento, clima envolvente, estado de espírito resul-
tante de fatores externos e internos. Música, odor, misticismo, em suma, a conjugação de
diversos fatores, criando no indivíduo um estado emocional próprio, de fé, de contemplação.

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mesma forma (12); uma reunião de indivíduos, muitas vezes numerosíssima, e,


no entanto, pode ser considerada em si mesma como um só indivíduo, como
um ser uno e, não obstante, composto. É também um conjunto de serviço,
gerando a riqueza de experiência (13); união de pessoas que compartilham um
mesmo ideal (15); lembra pessoas vivendo em conjunto, compartilhando da
mesma cultura (17).

Deste modo, a comunidade, enquanto símbolo de uma identidade


coletiva, permite comunicar as diferenças e semelhanças em relação a outras
entidades coletivas. Em relação à participação individual dos seus membros,
permite comunicar as experiências individuais de cada sujeito dentro do grupo
e na sua dinâmica com o mundo, mediado pela sua ligação com a “comuni-
dade”. Ambos os processos permitem ao indivíduo construir e experimentar
as fronteiras sociais (COHEN, 1985:54).
Oitenta por cento das pessoas entrevistadas participam de alguma forma
de comunidade. Este dado nos permite afirmar que, mesmo nos grandes
centros urbanos, as pessoas estão buscando inserir-se em alguma forma de
comunidade. Isto ocorre ainda que os laços duradouros entre as pessoas não
possam ser garantidos, e que a diversidade nas tradições culturais de seus
membros possam representar sérios desafios à concepção de comunidade
“ninho aconchegante”. A consciência crítica dos limites da comunidade em
oferecer conforto e acolhimento fica evidente quando as pessoas entrevistadas
elencam quais os fatores que lhes causam descontentamento nas comunidades
que frequentam. Segundo elas, o que menos gostam em suas comunidades é:

a desunião de alguns de seus membros (13); o que menos gosto é que nem
todos nós nos entendemos bem, pois nem todos são ‘iguais’, nem todos têm as
mesmas idéias (14); desliguei-me do Lions porque os ‘dirigentes máximos’ usa-
vam a ONG para construir seu patrimônio pessoal, e não para proveito da
comunidade (5); nessas comunidades as quais citei, quando percebo que têm
valores distorcidos, que não estão na construção do bem comum (9).

Essas críticas apresentadas pelas pessoas entrevistadas em relação às suas


experiências comunitárias podem ser entendidas à luz do pensamento de
Bauman (2003: 69-81). Segundo o referido autor, se a modernidade em seu
estado “sólido” tinha como característica primordial a certeza de uma “soci-
edade justa e estável”, a atual modernidade “líquida” prima pela ausência de
assertivas e pelo estímulo a que as pessoas encontrem seus próprios destinos.
Na modernidade, segundo Bauman, o centro das discussões migra da busca
da “justiça social” para a luta pelos “direitos humanos”. As batalhas atuais são

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em busca do reconhecimento e resultam num constante retraçar de fronteiras.


A nova elite global, de poder extraterritorial, desiste de impor uma nova
ordem: na decadência do modernismo, sobram as diferenças e as fronteiras
entre elas erigidas. E é da natureza dos direitos humanos um interessante
paradoxo: tais direitos visam possibilitar a garantia de ser diferente e manter-
se assim e, no entanto, só podem ser assegurados perante a sociedade por
meio de uma luta coletiva. Isto é, para tornar-se um direito que respeite a
individualidade, a diferença tem que ser compartilhada por um grupo.
Essas demandas pelo mero reconhecimento da diferença, ou seja, para
simplesmente reforçar a distinção cultural, acabam estimulando uma divisão
e uma separação, em vez de fortalecer laços que possam resultar numa comu-
nidade. No entanto, essa demanda por reconhecimento deveria ser um mo-
mento para um diálogo em que fossem discutidos os méritos e os deméritos
das diferenças. A postura de diálogo proposta por Bauman representaria um
diferencial em relação ao fundamentalismo universalista, que se recusa a re-
conhecer a pluralidade de formas que a humanidade pode abarcar; Distinguir-
se-ia também da tolerância promovida por “certas variedades de uma política
dita ‘multiculturalista’, que supõe a natureza essencialista das diferenças e,
portanto, também a futilidade da negociação entre diferentes modos de vida”
(BAUMAN, 2003:75).
Além dos aspectos do diálogo necessário entre as distintas culturas que
compõem as comunidades, afirma ainda Bauman que o conceito de “lugar”, onde
se espera estar seguro e passar toda a vida, também sofre mudanças. No “lugar”,
nada se mantém igual por muito tempo a ponto de que se crie a sensação de
familiaridade e este local se transforme em algo digno do que se espera de uma
comunidade: deixam de existir os marcos do nosso cotidiano, dos mercadinhos
de esquina aos bancos locais e aos carteiros... Na família e em casa, as coisas vão
igualmente de mal a pior. Enfim, a maioria dos pontos firmes e sólidos que su-
geriam uma situação social duradoura se foi. E, com eles, vai-se também o sen-
timento de comunidade, ou a “experiência de comunidade”. Não há mais relações
bem tecidas entre pessoas, que caracterizariam a comunidade. E “a decadência da
comunidade nesse sentido se perpetua; uma vez instalada, há cada vez menos
estímulos para deter a desintegração dos laços humanos e para procurar meios de
unir de novo o que foi rompido” (BAUMAN, 2003:48).

2.2. Comunidade – lugar de aperfeiçoamento espiritual


Creio que os limites acima destacados por Bauman nos ajudam a enten-
der um dos significados mais destacados pelas pessoas entrevistadas quanto
ao seu entendimento do que seja comunidade: que a comunidade é um espaço
de autoaperfeiçoamento, de serviços e de aprendizados.

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Além dos limites acima descritos, afirma ainda Bauman que, hoje, comu-
nidade e liberdade são conceitos em conflito: há um preço a pagar pelo pri-
vilégio de ‘viver em comunidade’. O preço é pago em forma de liberdade,
também chamada ‘autonomia’, ‘direito à autoafirmação’ e à ‘identidade’.
Qualquer que seja a escolha, ganha-se alguma coisa e perde-se outra. Não ter
comunidade significa não ter proteção; alcançar a comunidade, se isto ocorrer,
poderá em breve significar perder a liberdade (BAUMAN, 2003:10).
Seria por esse motivo que a comunidade se apresenta às pessoas entre-
vistadas como um espaço de autoaperfeiçoamento? Para elas:

A minha comunidade visa abrir as portas para uma nova era de realizações
espirituais, portanto ela não é uma religião. Eu não sei explicar exatamente o
que é, mas é algo que ajuda as pessoas a esclarecer melhor a mente e o espírito,
algo assim (15);
O convívio e o contato direto com elas que, no dia a dia, ensinam umas para
as outras, passando experiências (16);
Na Seicho-no-iê sinto-me totalmente integrada, uma vez que lá aprendo a viver
como verdadeiro Filho de Deus, principalmente no nosso lar. Na comunidade
Católica, emociono-me com os rituais, com a serenidade das pessoas, esforçan-
do-se para evangelizar segundo o exemplo de Jesus Cristo. No entanto, quando
repete que o homem é pecador, limita-o. Nesta insistência, estão esquecendo
que Deus declarou o “Eu sou” (1);
Admiro pela simplicidade dos ensinos e especialmente pelo que ela é capaz de
proporcionar aos seus frequentadores, especialmente a mim (3);
Uma entidade que valoriza o ser humano. Gosto das atividades internas de
estudo e oração e externas de auxílio, mas quero que as atividades sejam ampli-
adas e os estudos mais aprofundados (4);
Já participei de dois clubes de Lions, filiados ao Lions Internacional, cujo lema
é “nós servimos”. Ajudávamos comunidades pobres, especialmente com roupas
usadas, mas em bom estado. Numa escola estadual – a maioria dos alunos era
constituída de alunos de pais solteiros –, entramos com assistência psicológica.
Evitamos, com assistência e palestras semanais (dadas por professores de psi-
cologia e por seus estagiários), perseguições de alunos a professores, revoltas,
quebradeiras, enfim, houve um aperfeiçoamento espiritual nessa comunidade (5);
O que mais gosto nela é que mexe com ideias divergentes. Eu gosto de conhe-
cer as coisas mais diferentes, me faz gostar. Isso é que gera conflito e muitos
não entendem essas diferenças e isso é um “lócus” de discussão que faz chegar
num objetivo comum: levar o conhecimento das coisas (7).

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Essa perspectiva nos desafiou a visitar a concepção de salvação apresen-


tada por Weber. Isto porque, para o referido autor, a busca da “salvação está
em íntima conexão com as várias concepções de Deus e de pecado” e a
“substância” desta salvação pode mostrar tendências diferentes “dependendo
das circunstâncias de que e para que se deseja ser salvo”. Assim, as promessas
de salvação podem variar de religião para religião chegando, muitas vezes, a
“esperanças extremamente utilitaristas”, em lugar daquilo que se costuma
entender por salvação (WEBER, 1999:356).
Afirma o referido autor que entre os vários tipos de promessas de sal-
vação encontramos, por exemplo, o de vida longa, de riqueza, de prestígio
social, de honra, de domínio do mundo e também da vida “eterna” (depois
da morte). Para muitas religiões, inclusive o judaísmo, a riqueza representa
bênção de Deus. A salvação, neste caso, é da pobreza, da miséria. Entretanto,
o Deus de Israel é um Deus salvador, em primeiro lugar, porque os salvou do
cativeiro no Egito. A salvação pode ser também da opressão, do sofrimento,
dos males em geral, do medo dos seres maléficos ou demônios (WEBER,
1999:356).
O crente busca a salvação. Para isso ele segue um caminho de salvação
oferecido por determinada religião. Segundo Weber são dois os caminhos
básicos de salvação: 1) A salvação é alcançada por obra pessoal do salvado,
a ser alcançada sem qualquer ajuda de poderes sobrenaturais e 2) A salvação
pode ser alcançada não pelas próprias obras – as quais neste caso são consi-
deradas totalmente insuficientes para este fim –, mas pelas obras realizadas
por um herói agraciado ou até por um deus encarnado e que reverte em favor
de seus adeptos como graça. (WEBER, 1999:358 e 373).
Ao seguir o caminho de salvação escolhido, o crente usa métodos de
salvação que o ajudarão a realizar suas expectativas espirituais, sendo que
esses métodos são frequentemente de ordem prática. O autor destaca para o
caminho de salvação por obra pessoal do salvado os seguintes métodos: 1)
Atos de culto e cerimônias puramente rituais, 2) Obras sociais, 3) Auto-
aperfeiçoamento. Sendo que o autoaperfeiçoamento pode ser obtido de duas
maneiras: 1) por práticas ascéticas ou 2) pela contemplação. As práticas
ascéticas podem acontecer também de duas maneiras: 1) ascetismo intra-
mundano e 2) ascetismo extramundano. (WEBER, 1999:358-362).
Penso que, no caso das pessoas entrevistadas, a concepção de salvação
adjacente à sua concepção de comunidade insere-se no caminho de salvação
por obra pessoal do salvado, no método de salvação de tipo autoaper-
feiçoamento, e a maneira de obter a salvação é através daquilo que Weber
denomina como ascetismo intramundano.

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A leitura da concepção de comunidade como espaço de autoaper-


feiçoamento aliada à leitura da concepção weberiana de salvação nos levou a
fazer uma pergunta pela aproximação dessas concepções com as crenças e
práticas oriundas do Oriente. Ou seja: a concepção de comunidade como es-
paço de autoaperfeiçoamento não estaria vinculada a uma aliança entre as ofer-
tas de salvação próprias ao universo cristão ocidental e as crenças e práticas
oriundas do universo religioso oriental, mais propriamente ao budismo?
Um dos eixos que permitirão fazer essa comparação entre a idéia de
salvação oriunda do cristianismo ocidental e as do universo religioso oriental
é o que Harpham (1987) denomina “imperativo ascético”. Harpham afirma
que o espírito do ascetismo pode ser encontrado mesmo em práticas e ins-
tituições completamente secularizadas.
Essa forma de ascetismo em práticas e instituições secularizadas, deno-
minadas pelas pessoas entrevistadas como comunidade, pode ser percebida no
universo das mesmas, quando estas descrevem o tipo de comunidade de que
participam. Entre as pessoas entrevistadas que afirmaram participar de comu-
nidades, apenas 45% por cento afirmaram que participam de comunidade de
tipo Igreja e 55% afirmaram participar de comunidades como o colégio, a
casa, os lugares a que vão com os amigos, a família, e comunidade de bairro.
A opção dos entrevistados por comunidades de tipo secularizado e tam-
bém a explicitação do que mais gostam na comunidade de que participam nos
levou a concluir que a predominância das escolhas recai sobre o tipo de
comunidade que Bauman denominou como “comunidade ética”. Segundo o
referido autor, a comunidade “ética” é entendida como aquela que tem um
compartilhamento fraterno e oferece segurança a todos seus integrantes. É
uma “comunidade: tecida de compromissos de longo prazo, de direitos
inalienáveis e obrigações inabaláveis (...) E os compromissos que tornariam
ética a comunidade seriam do tipo ‘compartilhamento fraterno’, reafirmando
o direito de todos a um seguro comunitário contra os erros e desventuras que
são os riscos inseparáveis da vida individual” (BAUMAN, 2003:57).
Pelo que estamos analisando, no caso das pessoas entrevistadas, se per-
cebe a confluência de duas idéias fortes quanto à concepção de comunidade:
a de indivíduos que buscam segurança, autoaperfeiçoamento e, ao mesmo
tempo, buscam compartilhar seus saberes e servir outros membros da comu-
nidade, ou extracomunidade, ou seja, a perspectiva de efetivação de uma
comunidade ética, como propõe a concepção de Bauman.
Mas como se articulam nessa concepção de comunidade as duas dimen-
sões da individualidade? A do indivíduo que busca um espaço de aconchego
e a do indivíduo que assume um compromisso ético e, dessa forma, busca seu
autoaperfeiçoamento?

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Na perspectiva de Harpham (1987) essas duas perspectivas, embora te-


nham origem e trajetórias diferentes enquanto processo de elaboração para o
indivíduo, não são excludentes. O ascetismo seria a forma de encontro entre as
duas perspectivas. Segundo o referido autor, no sentido amplo o ascetismo
refere-se a qualquer ato de negação do eu experimentado como uma estratégia
de adquirir poderes e gratificação. Para o referido autor, essa conexão é mais
visível entre as práticas ascéticas mais antigas, oriundas das linhagens ascéticas
indianas. Ela nos permite perceber a imbricação entre a construção da categoria
do eu e o ascetismo nos primórdios da antiguidade indiana.
Assumindo a perspectiva de Harpham, afirma Barros (2002:14-15) que, no
pensamento indiano, antes de se tornar uma categoria conceitual, o eu foi
construído através das milenares práticas do Yoga, por uma “identificação
mística”, como uma “categoria sagrada do espírito humano”. Vê-se no “eu
budista” um legítimo representante dessas linhagens ascéticas mais antigas, de
origem autóctone e pré-ariana, do pensamento indiano. No entanto, com o
budismo há uma espécie de descentramento dessa sacralização do eu, quando
a esfera do sagrado é estendida a todo o cosmo. Por isso as práticas de medi-
tação budista sintonizam com todos os seres, com todos os animais, com todo
o cosmo, para eliminar as causas de sofrimento de todos os seres, sem discri-
minação de sexos, raças, credos, castas e classes sociais. O budismo coloca-se
então como Holismo, em vez de Humanismo, pois não privilegia o ser humano
como centro de seu sistema ético, mas busca sintonizar com todo o Universo.
Sob essa perspectiva, o Dalai Lama fala de sua crença na possibilidade
de mudança do mundo. Só que ele percebe essa mudança vinda através de
uma transformação individual – e esse é um longo caminho. O budismo vai
ao encontro, intelectualmente falando, de certos avanços da física quântica,
que confirmam a correlação dos conceitos budistas de interdependência. De
acordo com essa visão, para ter mais paz e mais felicidade é preciso desen-
volver um senso de responsabilidade global.
Na tentativa de analisar a sociedade moderna, Dumont (1985) define
dois tipos de sociedade: quando o indivíduo constitui o valor supremo, fala
de individualismo; no caso oposto, em que o valor se encontra na sociedade
como um todo, fala de holismo. Ele se formula, então, a seguinte questão:
“Como foi possível essa transição, como podemos conceber uma transição
entre esses dois universos antitéticos, essas duas ideologias inconciliáveis?”
(DUMONT, 1985:36-37).
Assumimos com Dumont essa questão, ao tentarmos entender a concep-
ção de comunidade explicitada pelas pessoas entrevistadas. Foi a comparação
com a Índia que sugeriu a Dumont a seguinte hipótese: “Há mais de 2 mil
anos, a sociedade indiana caracteriza-se por dois traços complementares: a

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A (re)construção do conceito de comunidade como um desafio à sociologia... 213

sociedade impõe a cada um uma interdependência estreita, a qual substitui as


relações constrangedoras para o indivíduo, tal como o conhecemos; mas, por
outro lado, a instituição da renúncia ao mundo permite a plena independência
de quem quer que escolha esse caminho” (DUMONT, 1985:37). Como se
articulou a construção dessa concepção holística do eu com a concepção
individualista do eu em nossa cultura ocidental atual?
Ao perguntar-se pelas aproximações e diferenças entre as relações eu
(indivíduo) e comunidade entre as culturas ocidental e oriental, Dumond
afirma que “algo do individualismo moderno está presente nos primeiros
cristãos e no mundo que os cerca, mas não se trata exatamente do individu-
alismo que nos é familiar. Na realidade, a antiga forma e a nova estão sepa-
radas por uma transformação tão radical e tão complexa que foi preciso nada
menos que 17 séculos de história cristã para completá-la, e talvez prossiga
ainda em nossos dias. A religião foi o fermento essencial, primeiro, na gene-
ralização da fórmula e, em seguida, na sua evolução. Nos nossos limites cro-
nológicos, o pedigree do individualismo moderno é, por assim dizer, duplo:
uma origem ou aceitação de uma certa espécie, e uma lenta transformação
numa outra espécie” (DUMONT, 1985:36).
Pode-se fazer a hipótese de que a sociedade holística indiana tenha dado
origem a dois tipos de individualismo: o primeiro, configurado pelo que
Dumont denomina “indivíduo-fora-do-mundo”. Esse indivíduo seria o renun-
ciante indiano, o Sannyãssin, que é preferível denominar de “indivíduo-extra-
ordinário”, “único”. Este é o indivíduo que renuncia para pregar uma “revo-
lução espiritual” aos homens no mundo. Sua prática de ascese pela
automortificação transforma-se, com o budismo, na prática de meditação, a
“prática contemplativa” do Budismo primitivo, tal como denomina Weber. O
segundo tipo de individualismo caracteriza-se, segundo Dumont, como “in-
divíduo-em-relação-com-Deus”, o renunciante cristão. Para este “o valor
infinito do indivíduo é, ao mesmo tempo, o aviltamento, a desvalorização do
mundo tal como existe. Neste caso é postulado um dualismo, estabelece-se
uma tensão que é constitutiva do cristianismo e atravessará toda a história”
(DUMONT, 1985:43). O resultado do segundo tipo de individualismo é o
indivíduo que, após 17 séculos de tradição judaico-cristã e de individualismo,
transformou-se no utilitarista do Ocidente contemporâneo.
Após 17 séculos de história cristã, o individualismo dos primeiros renun-
ciantes cristãos transforma-se na ideologia individualista utilitária de uma soci-
edade ocidental pós-moderna secularizada. Nesta sociedade o indivíduo passa
a ocupar um lugar de valor supremo, e as práticas de ascese intramundana
desembocam nas práticas contemporâneas da bioascese. Já o eu budista con-
seguiu se manter como expressão do individualismo indiano, oriundo de uma

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sociedade holística e hierárquica, sem ter sofrido, pelo menos até o momento,
transformações que alterassem radicalmente seu caráter originário. Foi essa
característica que percebemos como predominante nas concepções de comu-
nidade apresentadas pelas pessoas entrevistadas, quando estas afirmaram ser a
comunidade um espaço de autoaperfeiçoamento e de serviços.

3. Desafios ou ideias conclusivas


A este estágio de nossa análise, fizemos algumas constatações. A concep-
ção de comunidade para as pessoas entrevistadas apresenta duas características
predominantes: ser um espaço de partilha de interesses comuns e ser um
espaço de autoaperfeiçoamento. Os tipos de comunidade escolhidos por elas
foram predominantemente as denominadas comunidades secularizadas. Então,
colocamo-nos agora a seguinte pergunta: Que relações há entre o conceito de
comunidade por elas apresentado e a religião?
Entendemos que pelo menos duas importantes idéias religiosas são ele-
mentos constituintes do conceito de comunidade apresentado pelas pessoas
entrevistadas: a idéia de paraíso e a idéia de salvação, via autoaperfeiçoamento
e serviço comunitário em comunidades de tipo “ético”.
Para Bauman a percepção a priori positiva e positivada do conceito de
comunidade é oriunda tanto da mitologia grega como da tradição bíblica, em
que a idéia de paraíso está ligada à idéia de inocência, de pertencimento a um
grupo sem interesses individualistas. Para o autor, a perda desse paraíso está
guardada em nossa memória; temos uma memória da felicidade que tínhamos
e a que não é mais passível aceder e que se transformou em utopia. Existe em
nós, portanto, um saudosismo atávico que reproduz e reinventa, no conceito
de comunidade, a idéia do paraíso perdido, em que o senso de pertencimento
nos fazia sentir “dentro do ninho”, confortáveis e seguros.
No entanto, pelo que pudemos perceber, se esse sonho permanece no
imaginário das pessoas entrevistadas, ele está bem escondido. As pessoas
manifestaram ter consciência dos limites da comunidade em oferecer acon-
chego e segurança. Ao contrário, as comunidades apresentaram-se a elas
muito mais como um espaço que exige atenção e dedicação, onde as diferen-
ças individuais e culturais aparecem, de tal forma que em vez de “círculo
aconchegante” a comunidade a elas se apresenta como um espaço de
autoaperfeiçoamento, de serviços exigentes, de ascese. Essa perspectiva do
autor nos desafia a atentarmos para a incidência sim das idéias religiosas na
elaboração, na manutenção e nas ressignificações do conceito de comunidade.
Mas, quais idéias religiosas?
Afirma Geertz (1989:103-105) que, situando-se no universo das represen-
tações, como parte da cultura, a religião intervém ao mesmo tempo na definição

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do sentido e na orientação das práticas. Ela pode tanto fornecer a explicação


e a justificação das relações sociais como construir o sistema das práticas des-
tinadas a reproduzi-las. Sendo assim, qual é o sentido e quais são as práticas em
relação à comunidade que a religião está explicando e justificando?
Afirma ainda o autor que uma religião é

“um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e


duradouras disposições e motivações nos homens através da formulação de con-
ceitos de uma ordem de existência geral e vestindo essas concepções com tal aura
de fatualidade que as disposições e motivações parecem singularmente realistas”.
E, para ele (Geertz), os símbolos são “formulações tangíveis de noções, abstrações
da experiência fixada em formas perceptíveis, incorporações concretas de ideias,
atitudes, julgamentos, saudades ou crenças Geertz (1989:104-105).

Que desafios, então, estariam sendo colocados ao sistema de símbolos


oriundos da tradição cristã, tradição esta que se autoapresenta como a prin-
cipal definidora dos valores que ordenam a sociedade ocidental?
Entendemos que nos tempos atuais, em que a globalização colocou em
xeque as fronteiras culturais tradicionais, não mais se encontram em nossa
sociedade concepções tão complexas como a de comunidade formada por
uma única vertente cultural. Sendo assim, não nos admiramos de perceber no
conceito de comunidade pelo menos duas vertentes ou duas tradições cultu-
rais: a tradição cristã ocidental, marcada pelas idéias tanto de paraíso, que,
embora tenha perdido muito de sua intensidade, permanece povoando o
imaginário das pessoas, como de salvação pelas obras, e entre essas obras
estão a prática da caridade, dos serviços aos outros, ou seja, os diferentes
meios de obter a salvação pelo autoaperfeiçoamento. A outra fonte ou matriz
cultural que se juntou a essa é a concepção de ascetismo aos moldes da tra-
dição oriental, mais explicitamente presente no budismo. Ambas as tradições
colocam em diálogo duas perspectivas do indivíduo, aparentemente anta-
gônicas: a do indivíduo individualista, preocupado consigo mesmo e com seu
autoaperfeiçoamento, e a do indivíduo comunitário, holístico, preocupado
com o bem-estar e com o aperfeiçoamento das outras pessoas. Essas dimen-
sões se encontram, via tradição cristã, através das chamadas comunidades
éticas; via tradição ocidental, através do holismo. Sendo assim, o desafio que
se põe à sociologia da religião, ao enfrentar o conceito de comunidade, é ser
capaz de perceber os vários intrincamentos e as várias conexões que se vão
fazendo quando das configurações e reconfigurações das relações sociais e das
formas desta dizer de si mesma.

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Referências bibliográficas
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