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1590/0103-656420140101
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Samira Pontes*
Roberto Calazans
Universidade Federal de São João del-Rei, Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
São João del-Rei, MG, Brasil
Resumo: A psicose é um dos poucos termos da psicopatologia clássica e da psicanálise que permanece nos sistemas
classificatórios atuais, como o DSM (Manual Diagnóstico Estatístico de Transtornos Mentais) e a CID (Classificação
Internacional de Doenças), o que nos dá condições para investigarmos as diversas maneiras de pensar o sofrimento
psíquico. Desse modo, analisamos criticamente como o DSM-IV-TR, a sua atual edição (DSM-V) e a CID-10 definem
e utilizam o termo “psicose”. A apropriação desse conceito ampara-se em definição meramente descritiva como
estratégia de recusa ao debate etiológico. A alucinação, um dos critérios para a classificação dos “transtornos
psicóticos”, é definida partindo-se de realismo ingênuo em que a realidade é tomada objetivamente como um dado.
Assim, apresentamos o contraponto psicanalítico para essa apropriação: a psicanálise aponta para a relevância da
estruturação simbólica dos fenômenos perceptivos e para a realidade como construção subjetiva.
por essas definições e a elucidação psicanalítica a respeito quadro clínico não está inteiramente claro. No entanto, é
dessa problemática. Ora, a psicanálise sempre teve de li- inegável a existência de implicações clínicas, especifica-
dar com a questão da realidade. Estevão (2009) nos lembra mente no que tange à orientação do tratamento, em se esta-
da importância que esse conceito teve para Freud desde belecer diagnóstico precoce ou apoiado em traços clínicos
o início de sua obra, justamente porque não lhe pareceu insuficientes. Freud, em seu texto “Psicanálise silvestre”
como simplesmente pressuposto. Alguns textos freudianos (1910/1996), já demonstrava a cautela que se deve ter quan-
fundamentais para concepção desse conceito são A inter- to ao diagnóstico.
pretação das afasias, Projeto para uma psicologia cientí- Nesse texto, é feita crítica a diagnósticos equivoca-
fica, Formulações sobre os dois princípios fundamentais dos baseados em padronização da teoria – nesse caso, das
do funcionamento psíquico, A negação, Neurose e psicose, concepções psicanalíticas. É apresentado o caso de uma
e A perda da realidade na neurose e na psicose (Estevão, senhora que se queixava de estados ansiosos no momento
2009). Assim, em Freud já observamos que a realidade se do divórcio do marido e que, diagnosticada por um jovem
dá por meio da atribuição de sentido em contraposição à médico inspirado por leitura trivial da psicanálise, ouviu
realidade dada objetivamente. dele que sua ansiedade se devia à falta de satisfação sexual;
Lacan, partindo da premissa freudiana, enfatiza a o tratamento foi então imposto: ela deveria escolher entre
importância da relação do sujeito com o Outro e a organi- voltar para o marido, ter um amante ou recorrer à mastur-
zação significante nessa construção subjetiva da realidade. bação. O caso é analisado por Freud em dupla perspectiva:
É a partir dessas coordenadas que a alucinação é pensada em relação à noção de sexualidade do clínico, reduzida ao
pela via do simbólico, assentando que a “estabilidade e a ato sexual e à genitalidade, e em relação ao estabelecimen-
boa ordem da relação perceptiva com a realidade não são to do diagnóstico e ao tratamento que dependerá dele.
tão naturais quanto se poderia imaginar, e sim uma função Freud alega que o clínico provavelmente supôs
dos fenômenos significantes” (Soler, 2007, p. 14). diagnóstico de neurose de angústia por causa da queixa de
À concepção de univocidade da realidade anterior- ansiedade da senhora e, portanto, o tratamento comporta-
mente pressuposta, explicitamente amparada pela caracte- ria certa alteração da atividade sexual somática da pacien-
rização da alucinação como critério para definição de um te. Entretanto,
transtorno psicótico nos DSM, a psicanálise acentua ques-
tionamento precedente e que propomos desenvolver aqui: a uma pessoa padecendo de ansiedade não está por
relação do sujeito no campo da percepção é ordenada pela essa razão necessariamente sofrendo de neurose de
articulação do próprio sujeito com a linguagem e as rela- angústia; semelhante diagnóstico não se pode fun-
ções significantes. damentar sobre a designação [do sintoma]; tem-se
de saber que sinais constituem uma neurose de an-
A CID-10 e o estatuto descritivo da psicose gústia e ser capaz de distingui-la de outros estados
patológicos que também se manifestam por ansie-
Diferentemente de “neurose”, que sofreu processo dade. (Freud, 1910/1996, p. 139)
de expurgo do DSM, o termo “psicose” sofreu fragmen-
tação, reduzindo-se à categoria dentro de um agrupa Essa advertência faz-se tão pertinente quanto atual:
mento de transtornos denominado “esquizofrenia e outros não há correlação direta entre sintoma e diagnóstico. Para
transtornos psicóticos”. O DSM-IV (revisado em 2000, Freud, a senhora sofria de histeria de angústia, o que impli-
portanto DSM-IV-TR) foi elaborado com o capítulo sobre caria etiologia e tratamento diferentes. A consequência de
transtornos mentais da CID-10 em trabalho colaborativo um diagnóstico amparado apenas no aspecto fenomênico
entre a Associação Americana de Psiquiatria (APA) e a da patologia é a condução de tratamento não pertinente
Organização Mundial de Saúde (OMS). Pelo fato de essas para o sofrimento do sujeito. Essa é, ou deveria ser, a im-
revisões terem sido feitas em paralelo, a definição de psico- plicação mais deficitária para a clínica.
se nesses dois manuais é bem similar. Posta essa implicação clínica, não seria ainda mais
O capítulo V da CID-10 refere-se à classificação prejudicial – para o sujeito – a elaboração de diagnóstico
de transtornos mentais e de comportamento, cuja versão quando o quadro clínico ainda não permite a compreensão
“descrições clínicas e diretrizes diagnósticas” (OMS, 1993) clara da articulação dos sinais e sintomas, como propõem
é destinada para uso clínico, educacional e assistencial em as diretrizes clínicas da CID-10? Como nos lembra Dor
geral. As descrições clínicas de cada transtorno são forne- (1991), “o analista deve estar apto a se apoiar em certos
cidas a partir de descrição de sinais e sintomas conside elementos estáveis, tanto na elaboração do diagnóstico
rados “principais” e de outros “aspectos associados menos quanto na escolha da condução da cura, que daí depende”
importantes”; as diretrizes diagnósticas são descritas indi- (p. 15).
cando o número de sintomas necessário para que possa ser Na parte introdutória dessa versão, os redatores
feito o diagnóstico confiável. alertam previamente sobre “os problemas duradouros e no-
Segundo os revisores dessa versão, as descrições toriamente difíceis associados com a descrição e classifi-
clínicas comportam certo grau de flexibilidade que per- cação” (OMS, 1993, p. 1) dos transtornos psicóticos agudos
mite que um diagnóstico provisório seja feito quando um e transitórios. Não obstante, afirmam que as descrições e
diretrizes propostas não contêm implicações teóricas. Para como impossibilidade para sua realização. Sabemos que a
isso, retomam termos psicopatológicos, enfatizando apenas classificação em doença mental implica, necessariamente,
seu aspecto descritivo. A psicose foi mantida por ser termo em obedecer a critérios do método anatomopatológico:
“simples e familiar” (OMS, 1993, p. 99) e reduzida, por partindo-se dos sinais e sintomas observados, busca-se por
conveniência, ao seu aspecto semiológico: lesões e/ou disfunções cerebrais correspondentes. Desse
modo, de acordo com Aguiar (2004), a especificidade de
Psicótico foi mantido como um termo descritivo um marcador biológico permitirá então a explicação etio-
conveniente . . . . Seu uso não envolve pressupostos lógica da doença.
acerca de mecanismos psicodinâmicos, porém sim- Porém, a etiologia ainda é continente obscuro para
plesmente indica a presença de alucinações, delírios os promotores de sistemas de classificação – não só da
ou de um número limitado de várias anormalidades CID-10, como também do DSM. O termo “transtorno” é
de comportamentos. (OMS, 1993, p. 3) usado por toda a classificação, de forma a evitar problemas
ainda maiores, inerentes ao uso de termos como “doença”
O capítulo V da CID-10 fornece a separação entre ou “enfermidade”. Está claro que “os problemas inerentes”
o que foi nomeado como “transtornos psicóticos agudos e a esses termos referem-se aos aspectos etiológicos envolvi-
transitórios” e a esquizofrenia, afirmando que a esquizo- dos. A recusa ao debate etiológico das doenças é reforçada
frenia não é a mesma que as “psicoses muito agudas que pela busca de termo imune às implicações teóricas e tam-
têm início abrupto, um curso breve de poucas semanas ou bém etiológicas. Transtornos mentais são frequentemente
mesmo dias e uma evolução favorável” (OMS, 1993, p. 10). associados a sofrimento e incapacidade, que geram com-
Essa separação, porém, não é inteligível e parece estar obs- prometimento na sociabilidade do indivíduo (American
cura para os próprios revisores: “os critérios propostos para Psychiatric Association [APA], 2014).
sua diferenciação (esquizofrenia) ressaltam os problemas Diante da ausência desse marcador biológico que
de definição dos limites mútuos desse grupo inteiro de possibilita afirmar sobre a etiologia, a saída encontrada foi
transtornos (transtornos psicóticos agudos e transitórios) a ignorância – seria mais fácil ignorar os mecanismos etio-
em termos práticos” (OMS, 1993, p. 12). lógicos das doenças do que reavivar o debate histórico no
O diagnóstico de esquizofrenia é estabelecido campo da psicopatologia entre os chamados organicistas e
quando há delírios, alucinações e outros sintomas típicos os psiquistas. O abandono estratégico da expressão “doen-
por no mínimo um mês. Entretanto, quando esses mesmos ça mental” e a adoção do termo “transtorno” (disorder) é o
sintomas não satisfazem a duração mínima de tempo, deve ponto principal para a fundamentação de sistema de classi-
ser feito diagnóstico em primeira instância na categoria de ficação que almeja garantir o status de científico e, por sua
transtornos psicóticos agudos e transitórios ou, mais espe- vez, assegurar a pretensa universalidade.
cificamente, diagnóstico do transtorno psicótico esquizo- Percebe-se que alguns transtornos são de caráter
freniforme agudo. Por fim, se os sintomas persistirem por provisório e transitório, ou seja, têm validade premeditada,
tempo mais longo, recomenda-se a reclassificação para o e que, dependendo da duração dos sintomas, são reclassifi-
diagnóstico de esquizofrenia. cados em outros transtornos. Em muitos casos, o tempo de
Ao mesmo tempo que a CID-10 propõe o critério duração dos sinais e sintomas é o limiar para o estabeleci-
de no mínimo um mês para a duração dos sintomas para mento de dois diagnósticos diferentes.
o diagnóstico de esquizofrenia, indica que em algumas Nessa perspectiva, a noção de comorbidade torna-
classificações nacionais adota-se o critério de seis meses se ponto questionável. Comorbidade é a ocorrência simul-
para o mesmo diagnóstico. Porém, como justificado pelos tânea de dois ou mais transtornos psiquiátricos, podendo
revisores, “no atual estado de ignorância, parece não ha- ter os mais variáveis diagnósticos para um mesmo caso
ver vantagens em restringir o diagnóstico de esquizofrenia e reunindo muitas vezes categorias de sintomas contradi-
desse modo” (OMS, 1993, p. 11). E, mais uma vez, eles tórios. O DSM III, publicado em 1980, baseou-se numa
recorrem ao pretenso ateorismo e ao princípio descritivista hierarquização dos diagnósticos a partir da identificação
para evitar pronunciar-se sobre a etiologia: de apenas uma patologia para englobar todos os sintomas
que constituem o estado de um paciente. Entretanto, com
Parece, portanto, melhor para os propósitos da o advento do DSM-III-R, em 1987, essa hierarquização de
CID-10 evitar qualquer suposição sobre cronici- eixos diagnósticos foi substituída, em detrimento do con-
dade necessária para esquizofrenia e considerar o ceito de comorbidade (Kyrillos Neto, Silva, Pederzoli, &
termo como descritivo de uma síndrome com uma Hernandes, 2011).
variedade de causas (muitas das quais são ainda Como resultado, tem-se a prevalência de duas ou
desconhecidas) e uma variedade de evoluções de- mais categorias diagnósticas de eixos distintos no estabe-
pendendo do equilíbrio de influências genéticas, lecimento de um diagnóstico, ou seja, dois ou mais diag-
físicas, sociais e culturais. (OMS, 1993, p. 11) nósticos para o mesmo sujeito. O conceito de comorbidade
continuou presente na revisão da quarta edição do ma-
Diante desse projeto de classificação que tem como nual (DSM-IV-TR) e é amplamente utilizado no DSM-V
base o ateorismo, o termo “doença mental” apresenta-se (Matos, E., Matos, T., & Matos, G., 2005). Para os revisores
O termo “psicótico” delimitou-se a partir de três Ora, essas definições têm o inconveniente de se ater
acepções que vão de plano mais restrito a plano mais am- a descrições fenomênicas a partir do que Chalmers (1993)
plo. Em definição mais restrita, ele especificaria a presença denomina “realismo ingênuo”. A realidade tomada como
de delírios e alucinações sem o insight de sua natureza evidência, como fato que se impõe por si mesmo, promo-
patológica. Em definição intermediária, a psicose seria ve, nas palavras de Kyrillos Neto e Calazans (2012), “uma
caracterizada pela presença de alucinações, mas o sujeito nova fé jurada na existência de fatos indeléveis indepen-
as perceberia como experiências patológicas. Por fim, em dente de um discurso” (p. 12). Ao privilegiar a dimensão
perspectiva mais ampla, são considerados, além de delí- do observável e empiricamente acessível dos transtornos
rios e alucinações, os sintomas positivos da esquizofrenia, psíquicos, temos como consequência a desconsideração da
como o discurso desorganizado e a catatonia. No primeiro dimensão estruturante do olhar (Kyrillos Neto & Calazans,
caso, teríamos o transtorno psicótico em razão da condição 2012). Nesse sentido,
médica geral, e o transtorno psicótico induzido por uso de
substâncias; no segundo caso, teríamos os transtornos de- qualquer perspectiva clínica que considere ter aces-
lirantes e os transtornos psicóticos induzidos, e “psicose” so a uma realidade objetivante que seja capaz de
seria quase sinônimo de “delírio”; no terceiro caso, a esqui- servir de critério de demarcação entre realidade e
zofrenia, os transtornos esquizofreniforme, os transtornos fantasia não passa de uma doutrina positivista com
esquizoafetivos e os transtornos psicóticos breves (APA, consequências políticas devastadoras com respeito
2004). De forma argumentativa, o manual justifica que o à subjetividade. A realidade empírica não poderia
agrupamento feito em termos mais restritos e mais amplos ser o esteio do sentido, uma vez que o lugar do ob-
é um facilitador do diagnóstico diferencial dos transtornos jeto para a psicanálise é vazio. Não há realidade
que incluem sintomas psicóticos como aspecto proemi extralinguística capaz de dar suporte ao signifi
nente de sua apresentação, afirmando que a diferença entre cante. (Cardoso & Lustoza, 2012, p. 119)
eles está na frequência e que não há etiologia comum en-
tre eles (Calazans & Bastos, 2013). Almeida (2008) argumenta que a orientação fi-
Se a presença ou a ausência de delírios e alucina- losófica do DSM não é estudada, apenas incorporada.
ções é o critério para a categorização de transtorno psicó- Teríamos, ali, empirismo de vulgata. E, como a pretensão
tico, devemos então nos atentar em como o DSM-IV-TR do empirismo, em geral, é a de ter acesso à realidade com
os define. Alucinação é definida como “uma percepção o mínimo de carga metafísica possível, o efeito mais ime
sensorial que apresenta a sensação de realidade de uma diato do empirismo e da assepsia metafísica é a correlação
verdadeira percepção, mas que ocorre sem a estimulação necessária que o DSM estende entre as definições de delí-
externa do órgão sensorial relevante” (APA, 2004, p. 766). rio e de alucinação e o chamado “teste de realidade”.
O delírio é, por sua vez, tomado como O uso exacerbado de definições fenomênicas,
como proposto pelo DSM-IV e também pela CID-10,
falsa crença baseada em uma inferência incorreta impossibilita diferenciar uma psicose do que ela não é,
acerca da realidade externa, firmemente mantida, ou seja, o estabelecimento de um diagnóstico diferencial
apesar do que quase todas as outras pessoas acre- – pois, com essas definições e com esses critérios, como
ditam e apesar de provas ou evidências incontestes poderíamos considerar, por exemplo, conversões histé-
em contrário. A crença não é habitualmente acei- ricas, pensamentos e atos compulsivos como comporta-
ta por outros membros da cultura ou sub-cultura. mentos fóbicos? Eles não prejudicam o convívio social?
(APA, 2004, p. 767) Se levarmos a sério a questão de que na esquizofrenia
temos discurso desorganizado, também não poderemos
Essas definições permaneceram com a atual edição encontrar em alguns transtornos que não são psicóticos
do manual. No DSM-V (APA, 2014) os delírios são defi a mesma desorganização discursiva? Por outro lado, não
nidos como “crenças fixas, não passíveis de mudança à luz temos paranoicos com montagem discursiva sem desor-
de evidências conflitantes” (p. 87). O grau de convicção ganização? As ideias fóbicas não são inaceitáveis para o
com que a crença é defendida, “apesar de evidências con- convívio social e não poderiam ser consideradas como
traditórias claras ou razoáveis acerca de sua veracidade” “falsas crenças”? Consideraremos então como delirante
(APA, 2014, p. 87), é o elemento que distinguiria o delírio – e, consequentemente, como psicótico – todo fóbico? A
de uma ideia firmemente defendida. Já a condição de que percepção da anoréxica que diz estar gorda não poderia
as alucinações devem ocorrer no contexto de um “sensó- ser considerada verdadeira e sem “estimulação externa do
rio sem alterações” permanece como definidor das aluci- órgão sensorial relevante”? Essas são algumas questões
nações: “são experiências semelhantes à percepção que tributárias da definição meramente descritiva e amparada
ocorrem sem um estímulo externo. São vívidas e claras, em julgamento objetivo da realidade – realidade essa que
com toda a força e o impacto das percepções normais, não se impõe ao sujeito em detrimento de sua orientação na
estando sob controle voluntário” (APA, 2014, p. 88). relação com o Outro e com seus modos de gozo.
que demonstra a separação radical entre significante e sig- de percepção? Ela não poderia ser senão realidade pressu
nificado. Os fenômenos de mensagem dizem respeito ao posta, tomada como evidência e, principalmente, que se
momento em que a frase é interrompida justamente no pon- impõe como dado objetivo ao sujeito?
to em que surgiria a significação, revelando a quebra da Sendo a organização da realidade perceptiva me-
cadeia significante. Às frases “Agora eu vou me...”, “Você diada pelo simbólico e estruturada pela ambiguidade sig-
deve de fato...”, e “Nisso eu quero...”, Schreber responde na nificante, somos compelidos a assegurar que a relação da
tentativa de darlhes sentido: (1) “render-me ao fato de que percepção com a realidade não é tão ingênua como a defi-
sou idiota”, (2) “ser exposto como renegador de Deus”, e nição proposta pelo DSM.
(3) “pensar bem”. Assim, Lacan busca, nos fenômenos da Ao formalizar a dependência da ordem simbólica
psicose, especificamente nas duas ordens de fenômenos de tanto na estruturação do sujeito (que não é um percipiens
código e mensagem, “representar as conexões internas unificador) quanto no campo da percepção, Lacan inova
do significante na medida em que estruturam o sujeito” não só por refutar a definição clássica da alucinação como
(Lacan, 1958/1998, p. 547) e sua realidade. perceptum sem objeto, mas também por creditar o lugar da
linguagem nessa articulação:
Considerações finais
A tese, portanto, é esta: o campo da percepção é
Nos manuais classificatórios analisados neste tra- um campo ordenado, mas ordenado em função das
balho, a psicose é referida a estatuto descritivo conven- relações do sujeito com a linguagem, e não orde-
cional como estratégia de recusa ao debate etiológico. Ao nado pelo aparelho cognitivo, não ordenado pela
privilegiar o que se procura compreender como sinais de mirada perceptiva. A tese é radical. Implica que a
objetividade incontestável, o DSM se esforça em contornar linguagem não é um instrumento do sujeito, mas
qualquer reflexão teórica (Álvarez, Esteban, & Sauvagnat, um operador, no sentido de que produz o próprio
2004). sujeito. Ela é também totalmente nova e extrema,
A “sensação de realidade de uma verdadeira per- porque Lacan visa todo o campo da percepção, e
cepção, mas sem a estimulação externa do órgão sensorial não apenas o da percepção da linguagem e da fala.
relevante” (APA, 2004, p. 766), é a definição da alucinação (Soler, 2007, p. 34)
arquitetada pelo DSM como um dos critérios para a classi-
ficação de transtorno psicótico. Essa definição é mais uma Concordamos com Soler (2007) ao acentuar que não
reedição de uma descrição conveniente que tem sido pro- podemos nos esquecer de que a relação com a realidade,
pagada ao longo da história da psicopatologia: a alucinação em geral, especificamente a percepção, não deixa de estar
é percepção sem objeto. A nosso ver, outro questionamento sob a incidência do inconsciente. É a descoberta freudiana
se impõe nessa problemática: qual o estatuto da realidade de outra realidade, a realidade psíquica, que para Lacan
utilizada pelo manual ao definir a alucinação como erro não é antepredicativa e não está aquém da linguagem.
Regarding hallucination and reality: the psychosis in ICD-10, DSM-IV-TR, and DSM-V and
the psychoanalytic counterpoint
Abstract: Psychosis is one of the few terms in classical psychopathology and psychoanalysis that remain in the current
classification systems, such as the DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) and the ICD (International
Classification of Diseases), which allows to investigate the various ways of thinking about psychological distress. We discuss
how the DSM-IV-TR, its current edition (DSM-V), and the ICD-10 define and use the term psychosis. The appropriation of this
concept is based on a merely descriptive definition, as a refusal strategy towards etiological discussion. Hallucination, one of
the criteria for the classification of “psychotic disorders”, is defined with a naive realism in which reality is taken as an objective
construction. We present the psychoanalytic counterpoint to such appropriation: psychoanalysis points to the relevance of the
symbolic structuring of perceptual phenomena and reality as a subjective construction.
Résumé: La psychose est l’un des rares termes de psychopathologie et de la psychanalyse classique qui restent dans les
systèmes de classification actuels, tels que le Manuel diagnostique et statistique des troubles mentaux (DSM) et la Classification
internationale des maladies (CID), qui nous donne les conditions pour enquêter sur les différents façons de penser la détresse
psychologique. Ainsi, nous verrons comment le DSM-IV-TR, son numéro actuel (DSM-V) et la CID-10 définissent et utilisent le
terme psychose. L’appropriation de ce concept se prend comme une définition purement descriptive de refus de stratégie de
débat étiologique. L’hallucination, l’un des critères pour la classification des «troubles psychotiques» est définie à partir d’un
réalisme naïf où la réalité est prise comme une donnée objective. Ainsi, nous présentons le contrepoint psychanalytique de
cette appropriation: les points psychanalyse à la pertinence de la structuration symbolique des phénomènes de perception et
la réalité comme une construction subjective.
Resumen: La psicosis es uno de los pocos términos de la psicopatología clásica y el psicoanálisis que permanecen en los sistemas
de clasificación actuales, tales como el Manual Diagnóstico y Estadístico de los Trastornos Mentales (DSM) y la Clasificación
Internacional de Enfermedades (CID), que nos da las condiciones para investigar las distintas formas de pensar sobre la angustia
psicológica. Por lo tanto, se discute cómo el DSM-IV-TR, su edición actual (DSM-V) y el CID-10 definen y utilizan el término
psicosis. La apropiación de este concepto mantiene a sí misma como una definición puramente descriptiva de la negativa a la
estrategia de debate etiológico. La alucinación, uno de los criterios para la clasificación de los “trastornos psicóticos” se define
empezando con un realismo ingenuo donde la realidad se toma como un hecho objetivamente. Por lo tanto, presentamos
el contrapunto psicoanalítica a esa apropiación: puntos psicoanálisis a la relevancia de la estructuración simbólica de los
fenómenos de percepción y la realidad como una construcción subjetiva.
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