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'Aposentadas' por antibióticos,

larvas de mosca voltam a ser


usadas para tratar feridas crônicas
(http://www.bbc.co.uk/portuguese)
Evanildo da Silveira
De São Paulo para a BBC News Brasil 09/07/2018 07h31

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Getty Images via BBC

Na Europa, a espécie de mosca mais usada para esse fim é a Lucilia sericata

Uma antiga forma de tratamento de feridas crônicas, que havia sido descartada com
o surgimento dos antibióticos, está voltando a ser usada em alguns hospitais dos
EUA, Europa e América Latina. No Brasil, ela vem sendo pesquisada em algumas
universidades e é aplicada rotineiramente em pelo menos um hospital, o
Universitário Onofre Lopes (HUOL), da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN).

Trata-se da terapia larval ou larvoterapia, que, como o nome sugere, é o uso de


larvas, no caso de moscas, para a cicatrização de ferimentos que resistem à
cicatrização.

Elas agem na ferida por meio de quatro mecanismos: removem o tecido necrosado
(morto), rompem o biofilme bacteriano (uma comunidade de microrganismos
extremamente organizada que interfere muito no processo de reparação da
ulceração), promovem o crescimento de tecido sadio e eliminam bactérias que
causam a infecção.

Apesar de parecer repulsivo para muita gente, o tratamento tem se mostrado em


alguns casos mais eficiente do que os medicamentos e cicatrizantes tradicionais.

"Todos os nossos pacientes que usaram a terapia apresentaram melhora


significativa do processo infeccioso, tiveram suas feridas 'limpas' com rapidez,
relataram que o odor (mau cheiro) da lesão desapareceu nas primeiras aplicações",
garante Julianny Barreto Ferraz, enfermeira presidente da Comissão de Curativos
do HUOL, onde o procedimento é usado desde 2012.

"Usamos as larvas da mosca da espécie Chrysomya megacephala, encontradas em


todo o território brasileiro", diz.
Em São Paulo, a pesquisadora colombiana Andrea Diaz Roa, doutoranda no
Laboratório Especial de Toxinologia Aplicada do Centro de Toxinas, Resposta-
Imune e Sinalização Celular (CeTICS), um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão
(CEPID) financiado pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo
(Fapesp), vem realizando, desde 2015, pesquisas com larvas de outra espécie, a
Sarconesiopsis magellanica.

"Nos hospitais dos Estados Unidos e de alguns países na Europa e da América


Latina, a mosca utilizada para tratamento de feridas crônicas de difícil cicatrização é
a Lucilia sericata", conta.

Ela explica que ulcerações crônicas são aquelas que permanecem inflamadas por
mais de seis meses sem cicatrizar.

É o caso, por exemplo, das lesões provocadas por leishmaniose ou aquelas


conhecidas como pé diabético que, muitas vezes, resultam em amputação.

Terapia antiga, abordagem nova

Ao contrário do que ocorria antigamente, a terapia larval moderna é feita em


condições de assepsia muito melhores.

As moscas são criadas em laboratório e colocam seus ovos sobre material


orgânico. As larvas estéreis são colocadas no interior das feridas, onde
permanecem por 24 a 48 horas. Utilizam-se em média 20 delas por centímetro
quadrado.

"O ferimento é coberto durante o procedimento e lavado depois da retirada das


larvas", explica Andrea. "Dependendo do caso, uma única aplicação é suficiente.
Elas se alimentam apenas da parte necrosada da lesão."

Antes de vir fazer seu doutorado no Brasil, Roa utilizou em seu país larvas em
muitos pacientes com problemas de feridas crônicas, com bons resultados e sem
necessidade de amputações.

"Usei também em coelhos com diabete induzida e ferimentos provocados, também


com bons resultados", revela. "Esse trabalho foi feito durante o meu mestrado, sob
orientação de professores e médicos colombianos."

No Brasil, seu orientador é o pesquisador científico do Instituto Butantan, Pedro


Ismael da Silva Jr.

"Iniciamos uma nova fase do trabalho", diz ele. "Durante a terapia, as larvas, além
de removerem os tecidos mortos, liberam várias substâncias envolvidas na cura e
cicatrização. Algumas delas são peptídeos (pequenas moléculas) antimicrobianos."

De acordo com Silva Jr., Roa veio ao Brasil para, junto com ele, isolar e caracterizar
esses peptídeos antimicrobianos, que apresentam um papel importante nesse
tratamento.

No momento, eles já têm isolados várias dessas pequenas moléculas, mas apenas
duas caracterizadas. Uma delas é a sarconesina, descoberta pela pesquisadora
colombiana. O nome deriva da espécie de mosca que ela estuda (Sarconesiopsis
magellanica).

O objetivo agora é utilizar a sarconesina como princípio ativo de um medicamento.


Por ser uma molécula relativamente pequena, ela pode ser sintetizada
artificialmente em laboratório ou ser produzida por engenharia genética,
introduzindo-se as bases de DNA que a codificam em uma bactéria hospedeira.
"Conhecemos sua sequência de aminoácidos, avaliamos sua atividade
antimicrobiana em relação a vários tipos de bactérias e estamos cogitando
apresentar um pedido de patente", diz Silva Jr..

Mesmo com o desenvolvimento da nova droga, o uso de larvas deverá continuar, no


entanto. O pesquisador do Butantan explica que os peptídeos antimicrobianos são
apenas uma parte das substâncias envolvidas na cicatrização de feridas crônicas.

"Eles impedem a contaminação das lesões por fungos e bactérias, permitindo a


ação de outras substâncias que levam à cura e à cicatrização", diz. "Sem contar
com a parte mecânica em si, pois as larvas removem os tecidos mortos e estimulam
a substituição por novos tecidos. Não podemos dizer que vamos abandoná-las em
um futuro próximo."

Boa aceitação

Ao contrário do que se poderia esperar, a maioria dos pacientes aceita bem o


tratamento.

"A reação deles é de completa aceitação por sentirem a melhora clínica em poucos
dias", assegura Ferraz.

"Uma minoria sente receio quanto ao fervilhar das larvas sobre seu ferimento, mas
desde que iniciamos a aplicação no nosso hospital, nenhum (paciente) negou-se a
fazer e todos, sem exceção, recomendam para outros a terapia como excelente
forma de limpeza de sua ferida."

Silva Jr. tem uma possível explicação para isso. De acordo com ele, em geral as
pessoas que procuram por esse tratamento sofrem com as feridas crônicas durante
muito tempo. Muitos já tiveram amputações de membros e passaram por todo tipo
de procedimento médico e não encontraram soluções.

"Embora possa parecer para os pacientes e familiares um método não usual e um


tanto incomum - nojento para muitos - , acaba sendo uma nova possibilidade de
cura", explica. "Principalmente com os resultados positivos obtidos por quem já se
submeteu à terapia larval."

O trabalho de Roa foi apresentado e premiado na 47ª Reunião Anual da Sociedade


Brasileira de Bioquímica e Biologia Molecular, realizada em maio em Joinville (SC).
Ela acredita que o prêmio vai trazer mais reconhecimento para a larvoterapia.

"Muitas vezes, é uma prática que não tem muita aceitação, pois diferentemente do
remédio, a larva está viva", diz. "A apresentação vai ajudar a dar mais visibilidade
para o tema e pode quebrar preconceitos."

Os trabalhos de Andrea e Ferraz não são os únicos no Brasil.

"Já foram aplicações em pacientes diabéticos, em Petrópolis (RJ e em Pelotas (RJ),


a terapia tem sido usada na área veterinária", conta Ferraz.

"Em Campinas (SP), no final do ano deverão acontecer os primeiros tratamentos,


provavelmente em portadores de pé diabético. Há muitos preconceitos em cima das
larvas, mas o fruto de nossas pesquisas garante que se trata de um procedimento
seguro, de baixo custo e eficaz, muito oportuno para a realidade brasileira, carente
de centros cirúrgicos e de profissionais da saúde em número suficiente para garantir
um atendimento adequado."

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