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Aurora
Capítulo 1

Certa vez, creio, foi a única, minha mãe levou-me a fazer compras. Na loja,
uma mulher, cujo nome não me recordo, disse-lhe que eu me parecia com Aurora.
Minha mãe, não percebi por que, tomou-me o braço com dureza e deixou a loja sem
se despedir do vendedor.

Sempre tive medo de minha mãe e não menos de meu pai. Por isso, não
perguntei quem era Aurora. À tarde, quando estive com meu avô, fui direto à
pergunta: “Quem é Aurora?”

Meu avô, com ingênua malícia, respondeu-me, com palavras simples de quem
a escola não ensinou a falar: “Aurora é sua prima. Era bonita e, tanto quanto seu pai,
orgulhosa. Escolheu seu próprio caminho, sem perguntar o que era certo ou
conveniente.”

Não entendi muito bem o que meu avô havia dito, porque, ao tempo da
resposta, criança, eu me entretinha vendo o de que mais gostava, um espetáculo que
sempre me encantava: o ferro em brasa, saindo da fornalha, cantando ao ser jogado
na água fria e de repente moldado na bigorna pelo martelo firme nas mãos operárias
de meu avô.

Meu avô era ferreiro. Nesse tempo, a casa de meus pais era o lugar onde eu
dormia. Todas as manhãs, a empregada me punha um vestido bordado, um enorme
laço na cabeça e meias de renda e colocava-me na varanda, onde meu avô me vinha
buscar.

Ele me tomava em seus braços e saíamos pela estrada, onde os ruídos, cheiros e
cores não eram mais que a natureza, ela e nós isentos de qualquer civilização.

Meu avô me contava histórias de lobisomem, de mulas sem cabeça e até de


recém-chegados de outros mundos que, muitas vezes, sem que ele o quisesse, lhe
faziam companhia, montados em seu cavalo, quando de suas eventuais e necessárias
viagens noturnas. Nunca lhe perguntei se essas histórias eram verdadeiras, porque
naquele tempo ninguém me havia falado que existiam mentiras.
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A casa de meus avós, de onde me quiseram tirar, mas para onde me deixaram ir
sem que eu o pedisse, era cada vez mais a minha casa. E nesse tempo minha avó já
me contava: “ O casamento de sua mãe não teve o meu consentimento. Seu pai
sempre trabalhou muito. Apareceu aqui na vila, como um estranho, não se ligou aos
importantes, não fez amigos e quando trabalhava exigia bom preço e pagamento na
hora. Era desconhecido e não prestava obediência a meus irmãos, coisa que até seu
avô parecia fazer.”

Não entendia muito bem o que significavam as coisas que me falavam os


adultos, mas não lhes questionava porque meu avô já me havia dito que “os adultos
são cheios de certezas e que muitas vezes não entendê-los é o melhor”.

Meu avô e eu íamos com freqüência à pescaria em que na maioria das vezes
não havia pesca. Banhávamos no rio e depois um na mão do outro tomávamos água
porque, dizia ele, a água na concha da mão nos faz mansos e submissos e isto nos
evita problemas.

Ele me dizia essas coisas, e meu pai, que sabia ler, as contradizia. Meu pai
sabia ler livros, meu avô lia o céu, as plantas, os gritos das aves e, mais do que tudo, o
sol.

Meu pai não ficou contente quando meu avô me banhou no sangue de tatu, para
que minha pele ficasse bonita, como deve ser a pele de uma mulher que será amada.
Meu pai ficou calado. Não disse nada. A esse tempo, um e outro sabiam que eram de
mundos diferentes e tacitamente haviam decidido que era melhor que seguissem pôr
uma paz sem muitas palavras.

Uma tarde de domingo, quando voltávamos da pescaria, o senhor Josué, lembro


bem de seu nome, embora o nome não importe, foi à tenda e disse a meu avô que os
irmãos de Isaura queriam matar o Jacintho.

Quando o senhor Josué foi embora, perguntei a meu avô porque todos aqueles
irmãos de Isaura queriam matar o Jacintho, que era tão bonito, o cabelo penteado
com brilhantina.

Meu avô respondeu que talvez fosse exatamente por causa da brilhantina. O
Jacintho com os cabelos penteados havia dado um filho a Isaura, e os irmãos
entendiam que um homem que dá um filho à mulher deve casar-se com ela. O
Jacintho não queria se casar com Isaura e nem cuidar do filho que havia dado a ela.
Os irmãos de Isaura entendiam que isso lhes sujava a honra . E pensavam mais:
sangue lava a honra. Aqui se fala muito em lavar a honra, e mesmo quem não se
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convence de que alguma coisa pode sujar ou lavar a honra, continua fazendo a
mesma coisa, porque é assim que todos fazem”. *

E porque eu não havia entendido como pensavam os irmãos de Isaura e como


faziam todos os outros irmãos de qualquer mulher, meu avô, colocando em ordem
seus anzóis, disse-me que ele também não entendia daquelas coisas e o que ele
desejava é que quando eu me tornasse mulher, não se dissesse que a honra estava em
coisas tão pequenas e que ela fosse tão grande que ninguém pensasse que poderia
lavá-la. Algumas coisas não são mesmo para se entender.

Então, no fogo da grande fornalha da tenda, meu avô assou o queijo e nós o
comemos com um bom vinho sem nome, que era bom exatamente porque nós nos
preocupávamos com os vinhos de nome. E eu tinha seis anos.

Meu avô raramente me falava de pessoas e, mesmo quando por alguma razão se
via obrigado a fazê-lo, nunca se detinha no assunto, como se as pessoas lhe fossem
supérfluas.

Maria Ligória, uma vizinha muito séria e de simplicidade elegante, fugiu com
um homem desconhecido, deixando em casa os filhos pequenos. O marido viajante
veio a meu avô com muitas perguntas e ele simplesmente respondeu: Dona Maria
Ligória não era da minha intimidade”. O marido viajante não fez mais perguntas. A
cidade inteira ficou muito tempo falando sobre o assunto e em todo esse tempo meu
avô continuou a dizer: “Dona Maria Ligória não era da minha intimidade”. Em
seguida, de mãos dadas, caminhávamos juntos e ele me falava de suas caçadas, de
seus bichos, de lobisomens e luas cheias. Penso que era exatamente porque ele não
falava de pessoas que as pessoas achavam que ele devia ouvir. Sempre falavam de
todos com ele.

Foi por esse tempo que meu avô ficou sabendo que o preço do café havia
subido de treze para trinta e seis mil réis a arroba e quando ficamos sozinhos ele me
disse que meu pai havia ganho muito dinheiro. Perguntei-lhe o que acontecia a uma
pessoa que ganha muito dinheiro e ele me respondeu que o dinheiro era uma coisa, e
que, se a pessoa que ganha dinheiro fica pensando que as coisas são menos
importantes do que as pessoas, ela se modifica muito pouco, mas se a pessoa acha que
o dinheiro é muito importante, ela pode até se transformar em outra pessoa.

Depois disso, continuamos a fazer o que fazíamos sempre e estávamos fazendo


naquele momento. Ele forjando o ferro na bigorna e eu vendo o fogo e as fagulhas,
tão bonitas e hoje tão raras.
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Uma tarde, quando ninguém ainda havia me dito que eu havia feito sete anos,
minha mãe mandou entregar na tenda umas roupas e uns sapatos, dizendo que no
próximo dia primeiro de fevereiro eu teria que ir à escola.

Sempre via outras meninas indo para a escola, mas pensava que eu poderia
escolher aprender as coisas que meu avô sabia, e havia aprendido todas sem ter nunca
ido à escola.

Mas ainda não se passaram muitos dias e eu estava ali de saia azul, blusa
branca, sapatos pretos e de novo, aquele terrível laço de fita nos cabelos. Era a escola:
um menino atrás do outro, cada um no seu lugar, porque há um lugar para cada um -
isto se chama fila, princípio de civilização que me aprisionaria para sempre. A
professora vestia mangas, golas, os joelhos cobertos de uma saia muito séria. Falava
em disciplina e avisava-nos que teríamos de aprender. Falou que aprendendo as
pessoas ficam mais livres e disse o que era ser livre, então eu quis aprender.

Até então, ninguém me havia ensinado coisa alguma, mas do saber do meu avô
eu sabia muitas coisas: pescar, caçar, forjar o ferro e sabia cantar as músicas cantadas
pelos homens que passavam a noite no mercado.

Na casa de meus pais, sempre me mostravam que havia um modo especial para
falar com as pessoas, um modo diferente daquele que se podia falar na tenda de meu
avô. Como não me haviam ensinado o modo de se falar na escola, durante a aula
nunca falei com a professora e nem mesmo com as outras crianças, mas, à tarde
mostrava aos meus avós todas as letras que a professora me ensinava e minha avó me
disse que quando eu aprendesse a juntar letras e fazer palavras, que eu poderia ler
livros como meus pais e como muitas outras pessoas... Lendo se fica sabendo o que
pensam pessoas que nós nem conhecemos. Pensei: um dia vou ler muitos livros.
Durante muito tempo pensei que a professora nem soubesse o meu nome, mas um dia
ela me disse: “Irene, você precisa mesmo de estudar muito, porque o seu pai está
muito rico e um dia ele a mandará para um bom colégio”.

Todas as crianças olharam para mim e no meu rosto chegaram ao mesmo


tempo o fogo da fornalha e o vento do fole. Fiquei pequenina.
Desde esse dia, a professora tomou-se de cuidados para todas as coisas que de
imediato eu não entendesse e no dia do meu aniversário me deu uma boneca e muitas
balas.

Muitos dias depois, ela me disse que, quando eu crescesse, naturalmente eu


seria uma professora e até poderia vir a dirigir a escola.
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Quando cheguei em casa, disse a meus avós: não quero ser professora, não
quero vestir aquelas roupas de golas e de mangas. Quando eu crescer, quero ser como
as mulheres que dormem com os homens do mercado e deles ganham colares e
brincos. Também não gosto do sol, que é muito quente, quero trabalhar à noite com
lua, estrelas e homens. *

Foi na escola o meu primeiro contato com meninos da minha idade. Minha irmã
estudava em outra sala e era tão diferente de mim que nenhuma razão havia para que
fôssemos amigas. Seus cabelos eram loiros, olhos azuis, tinha o falar dos adultos e
naqueles tempos começava a ter aulas de piano e eu nem sequer conhecia um piano.

Minha irmã se assentava como as pessoas adultas, falava baixinho, e suas mãos
se colocavam de um modo considerado elegante, eu nem sabia o que era ser elegante.

Talvez tenha sido por isso que minhas brincadeiras eram partilhadas com
Rizzia e Tereza. Rizzia morava com sua avó e Tereza, que morava com seus pais, me
contou que a mãe de Rizzia morava sozinha, numa casa onde não iam mulheres mas
vivia cheia de homens e o demônio era o rei de todos eles.

Um dia. dona Elgita, mãe de Rizzia, voltou à tenda. Não era a primeira vez que
ela aparecia por lá. Suas roupas eram muito simples e muito limpas; ela pedia a meu
avô que lhe consertasse algum utensílio doméstico, ou lhe fizesse outros. porque meu
avô sabia fazer colheres e garfos. O serviço era feito. Dona Elgita agradecia, pagava e
ia embora. Um dia, pediu desculpas à minha avó por ter ido à tenda. As outras
mulheres iam à tenda e nunca pediam desculpas por isso.

Depois de muitos comentários, Tereza e eu resolvemos ir à casa da mãe de


Rizza. A mãe de Tereza não gostou da idéia e a proibiu de falar com Rizzia. Faríamos
isso disfarçadamente para que dona Elgita não se sentisse magoada de que eu tivesse
ficado curiosa a respeito do que se passava em sua casa. No primeiro domingo depois
disso, fizemos, meu avô e eu, o costumeiro passeio pela estrada vazia de tudo que não
fosse natureza, e, quando passamos pela casa de dona Elgita, pedimos água. A casa
era muito limpa, cheirava a plantas e roupas muito brancas se estendiam nos varais.
Não era diferente das outras casas. Meu avô me disse que o demônio não mora em
casa porque ele não é visível, demônio mora na cabeça de algumas pessoas, que,
tendo certeza do que é certo, pensam que é errado fazer o que elas não fazem e...
muitas vezes tinham vontade de fazer.

Meu avô me disse que, mesmo se Tereza se afastasse de Rizzia, eu não


precisava fazer o mesmo, porque as pessoas não têm nenhuma obrigação de se
parecerem umas com as outras . Têm apenas de respeitá-las, “quando você crescer
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você entenderá isso melhor”.


Na segunda feira, quando voltei da escola, meu avô não estava em casa. Fora a
um sepultamento. O morto era tio de minha avó e se chamava Antônio Macedo.
Minha avó então me falou daquele tio que eu nunca vira em sua casa. Ele fora dos
primeiros homens que vieram morar na vila. Quando chegaram, ele e outros dois
irmãos, um deles pai de minha avó, fizeram a primeira casa do lugar e logo depois
uma igreja. Acreditavam que no solo pouco valia plantar, mas debaixo da terra havia
fortunas que os homens poderiam arrancar da noite para o dia. O tio Antônio comprou
uma lavra e dela extraiu pedras que o fizeram muito rico. Casou-se com uma mulher
de outras terras e teve uma filha que se chamava Aurora. A mulher do tio Antônio,
cujo nome as pessoas não fizeram questão de se lembrar, comia muito pouco para se
manter magra, usava cremes no rosto e seus perfumes e roupas eram buscados muito
longe. Não se sabe se pelos perfumes ou pelo sol que ela evitava para se manter
branca, ficou muito doente e morreu deixando a filha ainda pequena. O tio Antônio
foi ficando pobre, pobre, e quando a filha, tão bonita quanto a mãe, ficou adulta, ele a
fez casar com o senhor Eulálio, um homem vindo não se sabe de onde, já muito velho
e sobretudo muito rico. O tio Antônio passou por umas coisas muito tristes e nós
dizemos que sua filha, a Aurora, enlouqueceu. A família nunca falava do tio Antonio,
mas sempre fez questão de dizer que Aurora enlouqueceu.

Quando voltou do sepultamento, meu avô estava pensativo e comentou:


ninguém quase apareceu no sepultamento de um homem que um dia foi querido de
todos. Nem mesmo a filha veio vê-lo. Todos os dias de nossa vida têm de ser muito
bem cuidados, porque o que fazemos hoje pode ser o indicativo do que teremos de
fazer amanhã. A vida é como uma corrente, um dia é preso ao outro como os elos na
corrente. Cada um tem de ser forte para prender o outro, de modo que todos sejam
igualmente fortes.

Foi nesse mesmo dia que um homem contou a meu avô que meu pai estava
perdendo a cabeça e fazendo uns negócios meio estranhos. Ele havia arrendado
algumas fazendas da região, mandado cortar todas as árvores, fazendo dinheiro com a
madeira, vendendo-a não se sabia para quem.

Meu avô não deu importância à informação e disse que meu pai devia saber o
que estava fazendo. A professora sabia o que meu pai estava fazendo e não sei se por
isso continuava me achando muito inteligente.

O tempo passava, eu estava um pouco crescida e meu avô me ensinava que


plantar não era apenas colocar a planta na terra: ensinava coisas do adubo, o manejo
do ancinho, a importância da água e do tempo. O espaço de que dispúnhamos para
plantações era pequeno e com esforço plantávamos milho, tomate e ervilha. Quando
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as plantas cresciam ou a professora escrevia “certo” no meu caderno, se o tempo nos


dava o vento, meu avô me premiava com pipas de papel colorido e sozinhos ou com
outras crianças subíamos o morro e o céu da cidade ficava cheio de cores, muitas
outras que não o azul.

Chegou então uma notícia maior de que todos podiam falar sem medo de falar o
que os outros não queriam ouvir: uma estrada para automóveis ia chegar à vila. Os
homens estavam entusiasmados, porque poderiam vender longe e mais caro o que
plantassem e as mulheres também ficaram alegres porque o médico chegaria mais
rápido quando elas fossem obrigadas a ter seus dolorosos filhos.

Meu avô me disse que ele ainda não estava nem alegre nem triste por causa da
estrada. Sabia que as coisas iriam mudar, mas era difícil para ele saber se as boas
mudanças seriam melhores do que as ruins: quando a estrada chegasse e um pouco de
tempo houvesse passado, ele faria nos dedos a conta e veria se a estrada havia sido
boa ou ruim. Um ano e dois meses se passaram, e houve foguetes, bandeirolas e
banda de música, nas casas muitas comidas e muitas roupas novas - nesse dia a
estrada e os carros iam chegar. E chegaram. Trouxeram muitos homens, que usavam
gravatas e que de pé num palanque, sob o sol muito quente, falaram bem de meu pai e
de outros homens da vila. Avisaram também que o ditador havia deixado o poder e
que haveria eleições.

Quando os homens se foram, meu pai os acompanhou e, na volta, trouxe com


ele uma coisa nunca vista, nem imaginada: um rádio. Pessoas foram visitar o
aparelho que falava, meu avô e eu no meio de todos. Meu pai explicou muitas coisas
sobre aquele aparelho que poderia até anunciar o fim do mundo e convidou-nos a
ouvi-lo falando à noite. O rádio só falava à noite e por pouco tempo, porque a bateria
que o fazia falar precisava ser economizada.

Quando começou a anoitecer, roupas limpas, cabelos penteados e como se


esperássemos ver um grande espetáculo, lá estávamos todos, cabeças bem erguidas, e
o rádio imponente pendurado na janela. Todos o ouvíamos. Alguns só ouviam, não
entendiam. mas se admiravam e diziam: rá-di-o.

Muitas tardes foram de festa, e o rádio na janela era ponto de encontro: crianças
brincavam, namorados se olhavam com os ouvidos ocupados com o rádio, primeiro
aviso do futuro.

E se ficou sabendo que era mesmo o futuro, quando uma noite, todos ouvindo o
rádio, estampidos de bala se fizeram ouvir e, antes que o silêncio
chegasse, um grito de susto e medo correu a vila: Mataram o padre!
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Pessoas correram. Meu pai desligou o rádio, meu avô encontrou-me no meio
das outras crianças e fomos todos para nossas casas. Minha avó deixou o crochê e,
andando de um lado para outro, esperava meus tios, temendo que aquela morte fizesse
muitas outras, porque na vila, tanto quanto vidas geravam vidas, mortes geravam
mortes.

Quando meu tio chegou, ficamos sabendo que o senhor Walter havia matado o
padre por causa da mulher do farmacêutico. Meu tio contou que a vila inteira já sabia
que a mulher do farmacêutico namorava o senhor Walter e namorava o padre e não
namorava nenhum outro porque os outros tinham medo... muito medo, não do
farmacêutico, mas dos outros, de todos os outros que não tivessem medo.

No outro dia, ainda cedo, um telegrama pedia que viessem de outro lugar
muitos soldados que prenderiam o senhor * Walter e outros que fizessem quaisquer
coisas pelas quais a polícia costuma prender.

Mas ninguém fez coisa alguma. Todos assustados, falavam e falavam baixo,
por causa do farmacêutico e desta vez falavam baixo e não era por medo. Quando o
telegrama se foi, o senhor Walter estava escondido na casa de meu pai, e quando a
polícia chegou ele estava onde ninguém mais sabia. O farmacêutico e a mulher
também se foram, e deles na vila nunca mais se teve qualquer notícia. O padre morto
foi sepultado dentro da igreja: os homens riam do farmacêutico, do padre e até do
senhor Walter. Meu avô não ria de ninguém e me falou que o padre havia prometido a
Deus que nunca teria mulher e que é normal que os homens queiram mulheres, e que
o padre havia feito uma promessa que não seria de se cumprir.

No dia do sepultamento, não houve aulas, mas no dia seguinte, quando


voltamos às aulas, as crianças estavam felizes pelo feriado da véspera e porque a vila
tinha homens corajosos que seriam capazes de matar até um padre. O farmacêutico
que não matou a mulher era idiota, mas não havia nascido na vila. Eu nunca vira o
padre, nem o farmacêutico. A mulher, eu sabia, era bonita, e o senhor Walter muitas
vezes me dava balas.

Porque o padre havia sido morto e o sol não deixava que a chuva caísse, nesses
dias se fez penitência: todas as tardes, mulheres e crianças vestidas de branco e
carregando grandes vasilhas de água subiam o morro, cantando músicas da terra e
jogavam água no cruzeiro de braúna. O cruzeiro ficava no alto em silêncio e era o juiz
de tudo. Quando a chuva não vinha, era um castigo do céu que se precisava de
abrandar. As mulheres molhavam o cruzeiro e de novo cantando desciam o morro,
agora de velas acesas, porque a noite estava chegando. Minhas irmãs não iam à
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penitência. Meu pai dizia que isso era coisa de povo. Meu avô era povo e eu podia ir à
penitência.

E era bonito porque, muitas vezes, antes que todas as mulheres houvessem
terminado de descer o morro, a chuva caía, e todas elas tinham certeza de que a chuva
era perdão.

Meu avô dizia que não era perdão, que a penitência não impedia a marcha da
natureza, mas que era bom que se fizesse penitência, porque acreditar faz bem ao
coração.
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Capítulo 2

As eleições se aproximavam e a vila se partiu em duas. Nós, as crianças, não


sabíamos que a ditadura havia feito esquecer grandes ódios naquela vila tão pequena.
E agora, com a proximidade das eleições, tudo o que estava esquecido voltava,
separando até mesmo as crianças que dele não tinham conhecimento prévio.

Uma família desconhecida chegou à cidade. Dela, não conheci a esposa, mas na
escola fiquei amiga de uma das meninas, que se chamava Piedade. Falava pouco e
gostava dos mesmos brinquedos que eu. Era muito apegada ao pai e saía com ele
tantas vezes quanto eu saía com meu avô.

Um domingo, quando as pessoas deixavam a Igreja, entre elas um primo de


minha mãe, acompanhado de todos os empregados de sua fazenda, o som metálico e
inesperado de uma arma de fogo atingiu um vaqueiro, exatamente o que estava mais
próximo do dono da fazenda, o Natanael, candidato a prefeito.

O homem que atirou foi o pai de Piedade, soube nesse dia que o nome dele era
Anastácio.

Não demorou muitos dias, uma empregada da casa de meus pais encontrou na
varanda da casa um embrulho de presente. Levou-o à minha mãe. Houve um susto
contido diante do conteúdo do pacote. Um vestido e um véu negros. O sentido das
mensagens está na cabeça de quem as recebe e minha mãe em pânico entendeu que
alguém pretendia matar meu pai. Davam-lhe roupas de viúva.

Soube disso porque minha mãe, em lágrimas, foi se lamentar na casa de meu
avô e logo em seguida a casa se encheu de todas as mulheres da família. Falou-se do
assunto o dia inteiro, e o senhor Anastácio, pai de Piedade, assassino de um pobre
empregado, passeava pelas ruas vazias, o povo em suas casas morrendo de medo.

Meu avô tranqüilizava minha mãe, dizendo que quando se avisa de um


assassinato, não haverá assassinato, haverá só o aviso. A noite chegava e o medo que
sobrevoava a vila durante o dia estendia suas asas fortes durante a noite.

Cartas anônimas eram normais. A vida de todos foi alterada, até mesmo das
crianças, que agora só brincavam com outras quando os pais eram do mesmo partido.
Meu avô e eu não tínhamos partido, e eu podia brincar com quem quisesse. Meu pai
se irritava com isso, mas, por qualquer coisa que eu nunca soube o que, não tinha
coragem de falar nisso com meu avô.
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Minha mãe não parava em casa. Estava sempre em casa de minha avó e
falavam de política, e quando falavam me faziam afastar delas, mandando-me ficar na
tenda com meu avô. A tenda escura, iluminada pelas fagulhas do ferro em brasa, era o
mundo de minha infância e ele me deixava feliz, talvez porque eu não conhecesse
outros melhores.

Uma noite, que rendeu um dia de muitos comentários, o senhor Anastácio bebia
na venda de meu pai, quando um empregado de um dos meus parentes entrou para
comprar um pouco de açúcar. Não houve discussões, mas o senhor Anastácio disse
que era forte o suficiente para bater na cara de qualquer homem daquela vila de
covardes. E rindo, bateu na cara do empregado. O responsável pela venda,
empregado de meu pai, compreendeu a situação, convidou os fregueses a que saíssem
e fechou as portas da casa.

Na manhã seguinte, a cidade e as pessoas mal acordavam, quando a notícia,


vinda não se sabe a partir de quem, chegou a todos: o empregado do meu primo havia
matado o senhor Anastácio.

Com custo, eu vi a notícia. O corpo do pai de Piedade estendido no chão, seus


filhos agarrados a ele, em prantos, dizendo que ele era tão bom. Foi neste dia que eu
compreendi que a bondade das pessoas depende do ângulo de quem as vê. Na minha
cabeça infantil, o senhor Anastácio era mau e dele a única coisa que me havia ficado
era o significado da palavra “carabina”. No entanto, Piedade, minha amiga, amava
com ternura aquele homem, que eu pensava não poderia inspirar a ninguém alguma
coisa além de medo.

Percebia, sem muito entender, que meu pai estava envolvido naquelas coisas de
política. Ele não havia nascido naquela vila, nunca antes havia sido muito ligado às
pessoas dali, a não ser nos casos em que o comércio o obrigava a isso. Aos poucos
verifiquei que o meu pai gastava seu tempo e seu dinheiro naquele lugar, apenas para
proteger os parentes de minha mãe, mesmo aqueles que nem tanto gostavam dele.

Quando as eleições chegaram, não foi o partido de meu pai o vencedor. Minha
mãe e todas as mulheres do partido reuniram-se em casa de minha avó: uma reunião
de lágrimas e desespero por uma dor que sempre se esconde - a derrota. Lá fora, o
barulho dos foguetes era ensurdecedor. De comum entre um e outro grupo, guardado
em silêncio, havia o medo de todos. Meu avô espichava a palha, fazia o seu cigarro,
continuava seu trabalho e saíamos pela estrada. Víamos que, longe das pessoas, as
plantas continuavam bonitas e o céu calmo. Vem desse tempo o meu apego à solidão.
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Houve um tempo de relativa calma, mas as ruas ficavam vazias e o sol mais
quente, anunciando sempre a chuva que não vinha. Meu avô e eu caçávamos
marrecos. Ele sempre dizia “nós” caçamos marrecos. Eu acreditava nessa
pluralidade, mas eu apenas lhe fazia companhia, encantada com as cores do mundo.

O prefeito tomou posse. Muitas festas. Pessoas de minha família viajaram para
não assistir às comemorações. Meu avô e eu vimos tudo. À noite sobretudo os
foguetes foram lindos, o céu ficou cheio de luzes e eu estava alegre porque até aquele
momento nada havia me mostrado o valor de um prefeito... ou o valor que o prefeito
pensa que tem.

Foi rápido que as coisas começaram a acontecer. Uma carta anônima havia
chegado à casa do prefeito. Ele pensou que o autor devia ser um de meus tios. Meu
tio era frágil, não era importante, pois que meus avós eram os mais pobres da família.
Meu tio foi preso e ficou treze dias na cadeia. Só podíamos vê-lo, ele dentro e nós do
lado de fora da janela cheia de grades. Meu avô se entristeceu e desta vez seu
sofrimento não era tranqüilo. Nessas noites, minha avó e ele chorávamos juntas, e eu
compreendi que o amor é mais forte de todos os traços de união.

Meu tio preso, meu avô, humilde como cão, olhava-o pela janela cheia de
grades. Meu pai viajou imediatamente e foi falar com o governador, um homem
desconhecido, ocupado demais para atender alguém que só era importante numa vila
sem qualquer expressão. Um assessor desse homem importante sabia que meu pai era
um homem de muitos votos e de dinheiro suficiente para financiar campanhas
eleitoreiras na região. Meu pai queria que todo o destacamento militar da vila saísse
de lá imediatamente, sem tempo sequer para despedir de ninguém. Tudo aconteceu do
jeito exigido por meu pai. Voto não era suficiente para fazer o meu pai amigo do
governador, mas era o bastante para que sua vontade fosse ditadora, pelo menos na
vila tão distante dos donos efetivos do poder.

Houve um tempo de silêncio na vila. Descobriram todos a insegurança do fio


que segurava a tranqüilidade de cada um.

Minha avó continuava fazendo os seus crochês e seus bolos. Meu avô, mais
triste do que antes, continuava o seu trabalho e os nossos passeios tão iguais em
diferentes montanhas, rios e trilhos.

Foi quando o Seca adoeceu. Na escola, as crianças queriam que ele morresse.
Elas e muitos adultos tinham certeza de que o Seca virava lobisomem nas luas cheias
das quaresmas. Meu avô e eu visitávamos Seca e lhe levávamos comida.
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As mulheres não gostavam do Seca, porque em novo ele namorava tantas


mulheres, que não teve tempo para a sua. Ela o abandonou e seus filhos crianças
ficaram soltos na rua, comendo o que lhes dessem aqueles que podiam dar.

Não demorou muito e acharam o Seca morto no seu quarto pequeno e imundo.
Pessoas conseguiram dinheiro para o seu sepultamento. Quando souberam que meu
avô durante muito tempo lhe havia dado comida, mulheres foram à casa de minha avó
e a criticaram por isso. Minha avó, fazendo comida para um homem que não havia
respeitado o próprio casamento! diziam.

Tranqüila, minha avó lembrou-lhes que muitos outros homens faziam a mesma
coisa, muitas vezes os próprios maridos daquelas que censuravam o Seca. Uma das
mulheres, irritada, disse à minha avó que todos os maridos faziam tudo que o Seca
fez, mas o faziam escondido, e o Seca fazia tudo às claras e que minha avó devia
saber por que o meu avô também chegava tão tarde em casa. Minha avó, bonita e
tranqüila com seus olhos azuis, respondeu: “Lógico que sei, e não me importo;
ninguém toma o marido de ninguém, porque marido não é coisa, e gente sabe onde
quer ficar. João não me deixará nunca porque eu sou dedicada a ele, respeito sua
liberdade e não me esqueço nem um momento que ele é uma pessoa.” As mulheres
acharam minha avó mal educada e nunca mais apareceram em sua casa.

Quando elas se foram, minha avó me falou: “Quando você tiver um marido,
procure saber tudo que ele esteja fazendo, mas não permita que nenhuma mulher
venha lhe falar dele... Você nunca sabe o que se passa na cabeça dos outros.”

O conselho me era inútil... eu ainda era uma criança.


A calmaria política durou muito pouco: não se sabia porque as pessoas
estavam sempre em guerra. Um dia, voltando da escola, vi o senhor * Lúcio, o
revólver prateado, no sol muito quente, apontando em direção a meu tio. Não fui
capaz de correr. Fiquei imóvel. Não era medo; era uma ausência de mim mesma.

Alguém o impediu de atirar, e eu nunca soube as razões do acontecimento,


nem perguntei a ninguém. As pessoas sempre queriam matar alguém e isso até já não
me parecia coisa que se devesse comentar.

Mas naquela manhã, indo para a escola, encontrei a empregada de dona


Bernadete aos gritos, dizendo palavras sem sentido. Entrei na casa e vi o corpo da
mulher, a camisola de renda, sangue nas paredes, no rosto, nas mãos. Fiquei
assustada. Na rua mesmo me disseram que o marido de D. Bernadete voltou de uma
viagem mais cedo do que esperado e encontrou na mesa de jantar lugares para dois e
por isso matou-a. Eu conhecia bem o casal. D. Bernadete era elegante e o senhor
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Amâncio, o marido, me dava balas, dizia até que se casaria comigo quando eu
crescesse. Um dia me deu um cavalinho, no qual eu nunca montei porque meu pai não
tinha terras onde ele pudesse ficar. Soube que o homem que jantou naquela noite na
casa de dona Bernadete era o senhor Gabriel.

Contei tudo à minha avó e disse-lhe que sempre que eu voltava da escola
costumava passar na casa de dona Bernadete porque lá havia muitos pássaros trazidos
das viagens do senhor Amâncio e que o senhor Gabriel estava sempre lá. Minha avó
disse que eu não poderia contar isso a ninguém. Este foi o primeiro segredo que era
só meu. O senhor Amâncio e o senhor Gabriel sumiram da cidade. Este voltou
primeiro, e veio trazendo com ele uma mulher bonita, que em pouco tempo ensinava
catecismo na igreja. O senhor Amâncio ficou muitos anos longe da vila. Diziam que
meu pai cuidou dos negócios dele. Disso não sei. Continuaram amigos, como sempre
foram.

A política ia fazendo suas confusões. Uma noite, chovia muito e era escuro,
porque sem luar tudo era escuro. Ouvimos o estampido familiar de um tiro e na
escuridão a voz de um homem que corria, gritou: “Mataram o senhor Homero”. O
senhor Homero era o meu pai. O medo me tirou as lágrimas e fiquei trêmula. Meu
avô, mesmo com a chuva caindo, desceu a rua. Foi ver o que era. O morto não era o
meu pai. Era um homem de um grupo de ciganos chegados à terra naqueles dias,
envolvidos em qualquer coisa relativa à venda de cavalo. Não era nada. Era o susto de
todos os dias que fazia minha mãe ficar nervosa, repetindo sempre: “Precisamos
mudar daqui, não quero que meus filhos cresçam neste inferno. O mínimo que posso
querer para eles é que tenham paz”.

Nesses tempos, um menino da escola me disse que eu vivia na casa de meu avô
porque na casa de meus pais não me queriam e que eu não devia me preocupar com
eles, pois eles não me davam o carinho que se deve dar a uma filha. Fiquei muito
triste e pensei que isto era verdade. Fui à minha avó saber do assunto.

Minha avó me disse que não era exatamente isso, mas que logo que eu nasci
minha mãe estava muito descontente com o próprio casamento. Em razão disso, era
muito nervosa e não tinha paciência o bastante para suportar três crianças. Meu avô
me via mal cuidada e achava que me faltava afeto.

A resposta de minha avó não me satisfez e, ao contrário, fez nascer em meus


pensamentos muitas outras perguntas, mas nunca fui de insistir para que as pessoas
me dissessem o que elas não queriam dizer. Calei minhas perguntas, e elas muitas
vezes passaram a me atormentar, dando-me desde esse tempo noites inteiras não
dormidas.
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Também não perguntei sobre isso ao meu avô. Sabia que a resposta era alguma
verdade que se queria ocultar e pensei que um dia haveria de descobrir, por mim
mesma, algumas coisas a respeito das quais os adultos não queriam falar.

Na verdade, minha infância tinha tantas coisas para que minhas noites fossem
mal dormidas que eu já compreendia que ninguém teria condições de me ajudar, nem
mesmo meus avós, que eu sabia me queriam tão bem.

Não entendia, por exemplo, por que meu pai nunca era candidato a qualquer
cargo e mesmo assim as pessoas do outro partido o odiavam tanto. Tinha certeza
desse ódio porque muitas vezes sua morte havia sido encomendada e porque as
crianças me diziam na rua que ele tinha parte com o demônio. Não sabia exatamente o
que era ter parte com o demônio, mas sabia que só pessoas muito más poderiam entrar
num pacto desse.

Meu pai não ia à casa de ninguém e em sua casa só entravam pessoas que
precisavam tratar de algum negócio, e uns poucos que gostavam de jogo e música. A
tenda de meu avô, pobre, enfumaçada, e às vezes de um calor insuportável, sempre
recebia visitas. A casa de meus pais, cheia de móveis bonitos e de tudo o de mais
moderno que se encontrava nas cidades grandes, era vazia, não freqüentada. Não
entendia essas coisas, mas não tinha a quem perguntar.

Na escola, as professoras eram atenciosas comigo, mas uma atenção estranha


que não parecia espontânea. Esperaria o tempo para resolver minhas dúvidas. O medo
das coisas imediatas, dos assassinatos e atritos políticos levavam para meu
inconsciente os problemas que eu julgava adiáveis. A vida começava desde cedo a
exigir de mim mais do que eu tinha condições de oferecer.

Foi por esse tempo que homens estranhos começaram a chegar em nossa
cidade. Não causavam medo. Pareciam sérios. Conversavam com o prefeito. Ninguém
de nossa família conseguia saber a que vieram. Desapareceram. Não houve
comentários ou, ao contrário, houve muitos, mas nenhum deles parecia viável.
Quando voltaram, foram à casa de meu primo. Depois à casa de meu pai e só depois
meu avô soube quem eram os estranhos bem vestidos que andavam pela cidade e
tomavam cerveja na hora das refeições. Eram engenheiros e vinham iluminar a cidade
com luz artificial. Queriam que o trabalho tivesse cunho político, porque a cidade,
sendo muito pequena, o dinheiro dividido seria insuficiente para os gastos que se
fariam necessários. Meu pai ficou de acordo em financiar o projeto, desde que cada
mês se prestassem contas do dinheiro gasto.
17

O assunto gerou discussão entre os nossos porque a iniciativa era do prefeito,


de quem a família não gostava, mas entendiam que isso seria um progresso para a
cidade. A família de minha mãe decidiu colaborar com o que pretendiam os outros.
Meu pai entendeu de financiar os gastos. Juros escorchantes, mas o município
pagaria, com o aval do prefeito. O negócio era muito seguro, porque o prefeito sabia
que meu pai era homem capaz de executar a dívida, tomar-lhe todos os bens, ainda
que depois disso morresse assassinado.

A cidade seria iluminada. A lua tão bonita, que meu avô me mostrava nas
noites também cheias de estrelas, perderia o seu sentido, assim como as noites no
mercado, cheias de homens alegres e mulheres felizes haviam desaparecido com a
chegada do automóvel. A vida sempre caminha para a frente, deixando pessoas e
coisas que nos são queridas e nos trazendo pessoas e coisas necessárias. O encanto de
minha infância começava a morrer.

Iluminada a cidade, as eleições tiveram microfones e alto-falantes. O arroz e o


café que meu pai vendia para outras cidades começaram a ser cuidados pela
eletricidade. Ninguém precisava me dizer que meu pai ganhava dinheiro. Todo mundo
via. A família se tornava mais distante da vila, meu pai menos amado e minha mãe
mais sozinha. Não percebiam que o dinheiro os fazia menos felizes.

As eleições se aproximavam. Meu pai recebia pontualmente o dinheiro com que


financiou a colocação da luz elétrica, da qual se beneficiava para fazer funcionar suas
máquinas. Meu avô me levava para vê-las funcionando e me falava de um mundo em
que quando crescesse eu haveria de ver: as máquinas realizariam sonhos impossíveis
de homens que pudessem dispor delas e dos outros tirariam o emprego, como
começavam a tirar o seu. Meu pai já vendia em sua loja muitas coisas que antes meu
avô fazia em sua tenda. ele agora trabalhava pouco e ganhava quase nada. Em breve
não existiriam mais ferreiros. Não falava disso com tristeza. Agora, num pouco
espaço de terra, ele aumentava suas plantas e sempre tínhamos o de que comer. Todas
as outras coisas nos eram desnecessárias, e minha mãe e meu pai sempre cuidaram de
que nada nos faltasse. Vieram as eleições. Meu pai agora se metia nessas coisas. Não
pretendia nada para ele, mas via o risco que a família de minha mãe, e até ele próprio
corriam se perdêssemos as eleições.

Os alto-falantes agora eram armas temíveis na política. O dia inteiro e às vezes


até à noite coisas graves ou ridículas eram gritadas pelos aparelhos indiferentes. As
mulheres da família choravam. Minha mãe dizia que não queria criar os filhos num
lugar igual àquele, Meu avô a tranqüilizava e meu pai continuava cuidando de seus
negócios e, tanto quanto possível, tentando comprar a tranqüilidade que não tínhamos
nem nós nem os outros. A família de minha mãe foi vitoriosa nas eleições. Sabia-se
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que a maldade dos nossos era menos violenta que a dos outros e, mesmo que a cidade
não progredisse, seria melhor se pudéssemos dormir em paz. Tanta festa. O prefeito
era casado com a sobrinha de minha avó. Meus pais não participaram de nenhuma
comemoração. Só muito mais tarde eu compreendi por que meu pai se afastava de
tudo naquele lugar e que nada para ele era mais importante do que os seus negócios.

Passadas as eleições, meu pai se recolheu aos seus negócios, minha mãe à casa
e, praticamente, eu não via nem mesmo de longe os meus irmãos. Íamos à escola, mas
nossas salas de aula eram diferentes. No recreio, tinham eles seus amigos e eu os
meus. A cidade era tranqüila e o sol muito quente a fazia quase deserta. Meu avô e
minha avó ficavam sempre juntos à tarde. Quando o sono se aproximava, eu colocava
a cabeça nos joelhos de qualquer deles e me contavam histórias ou cantavam músicas
do campo e eu dormia, confiante como aqueles que se sentem amados. Foi um
tempo de paz, até o dia em que minha avó percebeu em meu avô um certo estado de
cansaço. Deu-lhe uns chás. Fez-lhe mingaus. Banhou-lhes os pés com água morna,
mas ele continuava cansado e em certa manhã não se levantou. Minha avó levou-lhe o
café na cama, o que nunca acontecia. Mandou-me avisar minha mãe de que ele estava
doente. Minha mãe veio depressa e à noite meu pai também apareceu e se assustou.

No dia seguinte, chamou o médico. Os adultos conversavam baixinho e à tarde


minha avó me disse que eu precisava ir dormir na casa de meus pais. Também fiquei
preocupada. Não queria sair dali. Foi então que minha mãe me chamou e disse que era
uma ordem e que ela não podia perder tempo em conversas comigo e que eu fosse
para a casa deles imediatamente, porque crianças são sempre incômodas mais ainda
quando alguém está doente.

Fui para a casa de meus pais e tão preocupada estava com meu avô que a
maneira ríspida de minha mãe não me causou nenhum espanto. Continuei indo à
escola. Depois da aula, passava no quarto de meu avô. Ficava olhando, ninguém me
falava nada. Mandavam minha avó se deitar um pouco e ela continuava sempre
acordada, atenta, não saía do quarto, onde também eu ficava sempre que os adultos
não me obrigavam a sair. Meu avô me tomava as mãos, os olhos vidrados, não tenho
certeza se ele ainda me via.

À noite, levavam-me para a casa de meus pais. Dormia só num quarto como na
casa de meu avô, mas ali eu me sentia só, não tinha com quem contar. Pela manhã,
perguntava notícias de meu avô e alguém, qualquer pessoa, respondia “está do mesmo
jeito” e eu ia para a escola sem direito a ir vê-lo. Às vezes, nem ouvia o que falava a
professora. Sentia uma inércia e, se fosse capaz de querer alguma coisa naqueles dias,
teria querido que o mundo dormisse e não acordasse nunca mais. Certa manhã,
quando me levantei fiz a pergunta já repetida há dez dias: e o vovô? As empregadas
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me olharam assustadas, meus irmãos interromperam o que faziam, e meu pai de seu
quarto gritou indiferente: “Seu avô morreu”.

Com os cabelos despenteados, a roupa recém-saída da cama, corri pela rua até a
casa de meus avós. O chão de meu primeiro mundo havia afundado, e todos sabiam
disso. Não me aproximei do corpo de meu avô. Nem fui à minha avó. Fiquei parada
na sala. Naquele dia, fiquei sabendo que a dor pode ser infinita no coração humano. E
sofri um sofrimento maior do que tudo que se pode imaginar.
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Capítulo 3

Estava eu na casa de meus pais. A casa era enorme para mim, maior do que
efetivamente era, porque junto de mim não existia ninguém. Meus irmãos, Otávio e
Sara, mais velhos do que eu, viam em mim uma menina pobre e mal vestida, de
hábitos diferentes dos deles. Sofia não se aproximava nem deles nem de mim,
brincava sozinha, com suas bonecas, algumas muito feias, de pano, feitas pelas
empregadas, outras muito bonitas, que, eu soube mais tarde, meu pai lhe comprava
em suas viagens a grandes cidades. Raquel era ainda muito pequena e, se não estava
no seu berço, estava nos braços de alguma das muitas empregadas. Minha mãe
tomava café no quarto, não sabia eu se sempre ou se apenas naqueles dias da morte
de meu avô. Nós, os filhos mais velhos, já de manhã devíamos estar bem vestidos e
penteados. Tomávamos o café da manhã em companhia de meu pai. Se havia tempo,
ele nos levava ao colégio. Se não, íamos todos juntos a pé. Tudo é tão perto nas
cidades pequenas. Meus irmãos não falavam comigo e se o faziam era sempre me
recriminando por alguma atitude que consideravam própria de alguém mais atrasado
do que eles. Mas íamos juntos. Não podia me afastar deles, era recomendação de meu
pai. O tempo me fez entender que recomendação de meu pai tinha de ser observada,
ainda que para isso corrêssemos risco de vida.

Ao fim de alguns dias, pensei em voltar para a casa de minha avó. Procurei
minha mãe. Perguntei-lhe sobre a possibilidade. Ela mandou-me falar com meu pai.

Em casa de meus avós, as decisões podiam ser tomadas por um ou por outro, na
casa de meus pais, mesmo minha mãe não tinha o direito de fazer coisa alguma se não
tendo perguntado a meu pai. Ele decidia como um rei. Se não tinha tempo, nem
mesmo para nos ouvir, esperávamos quando o tivesse.

Procurei meu pai e lhe falei do meu desejo. Não lhe dei minhas razões e ele não
as pediu. Respondeu-me apenas: “Mesmo se seu avô não tivesse morrido, já era
tempo de você vir para casa. Aqui você receberá uma educação que a preparará para ir
para o colégio, porque os hábitos da casa de seu avô não são de forma alguma
condizentes com os que devem ter as minhas filhas. E você é minha filha”.

Havia na casa uma professora. Ensinava minha irmãs a tocar piano. Refazia
com todos os deveres de aula e reclamava com minha mãe sobre o comportamento de
Otávio. Minha mãe passava o dia numa enorme sala de costura e fazia todas as roupas
da casa, desde cortinas e roupas de cama até roupas de vestir. Quando aparecia em
qualquer outro lugar da casa, ficava nervosa com as empregadas que não haviam feito
os trabalhos de limpeza e alimentação rigorosamente do jeito que ela queria que
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fossem feitos. As empregadas sempre erraram porque minha mãe não dizia como era
o jeito certo. Certo era o que ela pensava e cada dia ela pensava de maneira diferente.

Alguma coisa naquela casa me fazia muito triste. A ausência de meus avós me
era muito penosa, mesmo que desde os primeiros dias houvessem dado licença para
visitar minha avó todas as tardes quando voltasse da escola.

A casa de meus pais era terrivelmente opressora, e uma vez minha mãe, ao me
ver chorar, me disse:“ Aqui não é a casa de seu avô, onde se pode chorar e rir à
vontade. Procure alguma coisa útil para fazer. Há mais de um mês que seu avô
morreu. Já houve tempo para se esquecer dele.”

Minha mãe falava esquecida das muitas vezes em que eu a tinha visto chorar,
quando, em época de eleição, ela sentia medo dos males que poderiam acontecer. No
entanto, recriminava o meu choro pela morte de meu avô. Muitas vezes eu iria vê-la
em desespero, chorando por alguma coisa não dita e dizendo : “Não agüento mais esta
vida! Qualquer dia eu me mato!”

À noite, na casa de meus pais, tudo mudava. Visitas eram recebidas. Homens
da cidade. Não os parentes de minha mãe. Homens que, como meu pai, nasceram em
outros lugares: o dentista, o médico, o advogado e o homem da loja de louças. Sim,
porque havia uma loja de louças e porcelanas que não eram vendidas para ninguém. O
dono era um estrangeiro que recebia dinheiro de seu país e durante o dia ficava
sozinho na loja, como suas louças sempre no mesmo lugar.

Para nos afastar dos temores da política, ou por razões que não foram faladas,
meu pai decidiu que naquele ano iríamos para o internato, Otávio, Sara e eu. Otávio
iria para um colégio de rapazes, Sara iria para um internato onde houvesse um curso
onde pudesse se preparar para futuramente estudar medicina, profissão que meu pai
teria dado a todos os filhos se tudo dependesse apenas dele. Como eu ainda acabava o
curso primário, poderia estudar num colégio de custo mais econômico.

Ficou determinado que me seriam dadas, no mesmo período de férias, aulas


suplementares, porque haviam concluído que meus conhecimentos não eram
suficientes para o curso que eu iria iniciar. A professora seria D. Deolinda, a mesma
que ensinava piano às minhas irmãs e que, aliás, ensinava tudo a todo mundo. D.
Deolinda era uma empregada especial que seria dispensável em qualquer outra casa.
Quando não estava dando aula para nós, ajudava minha mãe nas costuras e bordados
feitos à mão. D. Deolinda sabia tudo que era certo e tudo que era errado. Errado era o
que fosse diferente do que ela achava certo. Todos da casa me achavam muito
estranha, mas especialmente ela. Minha estranheza estava no fato de que muitas vezes
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saía do meu quarto antes de pentear o cabelo ou andava descalça dentro de casa. Dizia
que uma moça bem educada não fazia coisas assim. Havia sempre uma norma para
cada situação, ali éramos realmente padronizados. Meu pai se encantava com os
regulamentos de D. Deolinda. Era a forma pela qual ele nos preparava para
freqüentar o mundo que ele pensava seria o nosso quando crescêssemos.

Ao contrário do que esperava, D. Deolinda informou ao meu pai que o meu


grau de conhecimento estava excelente, que era lamentável apenas que eu parecesse
um bicho do mato e nunca me houvessem falado de normas de etiqueta.

Na verdade, eu não sabia que existiam aquelas normas. D. Deolinda jamais


imaginaria que aquelas regras me pareciam absurdas e ridículas e que a mim o que
importava era apenas que eu não incomodasse as pessoas, como meu avô me
ensinava. Para mim, alguém poderia saber todas aquelas normas e continuar sendo
má. Aquelas normas me pareciam coisas de rico desocupado e quando eu fosse
grande haveria de me esquecer de todas elas.

Minha mãe se mantinha distante das filhas. Às vezes era carinhosa com Otávio,
com quem meu pai era terrívelmente duro. Talvez quisesse compensá-lo pela maneira
injusta com que meu pai o tratava. Creio que em razão de eu não haver morado
naquela casa anteriormente, elas quase sempre se esqueciam de mim, o que era bom,
pois, quando me viam, se lembravam de que eu era desajeitada, com modos e
pensamentos de menina pobre.

Quando chegou fevereiro, fomos para o colégio. Fiquei contente, mesmo


sabendo que sentiria falta de minha avó. Imaginei que a única maneira de me libertar
de tudo que me aprisionava na casa de meus pais seria estudando muito. Meu pai
costumava dizer que o saber era a liberdade. Então, eu iria estudar muito para me
libertar especialmente dele e daquela casa. Não entendia bem como o estudo poderia
fazer minha liberdade, mas sabia que não teria outra forma de consegui-la. Minha mãe
se encarregou de fazer as roupas que usaríamos no internato, e nesse tempo sempre
me dizia que meu corpo não tinha proporções adequadas e que nada me ficaria bem.

Um dia, tão cedo quanto me levantava para passear com meu avô, saímos,
meus irmãos e eu, em viagem para o colégio. A distância era grande, e meu pai
percebeu o meu silêncio. Faltava-me assunto para falar com ele ou com meus irmãos.
Eles também não tinham o que falar comigo. Meu pai então se esforçou para se
aproximar da filha desconhecida. Senti isso. Sabíamos tão pouco um do outro. Eu
tinha onze anos. Morávamos na mesma cidade e tão poucas vezes havíamos nos
falado.
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Quando paramos na estrada, meu pai mandou que Sara me desse o lugar junto
dele, e foi a partir daí que ele começou a me mostrar as árvores e as muito pequenas
cidades por onde passávamos. De minha parte. evitei perguntas ou comentários. Tinha
medo daquele homem, que em casa não me falava e quando estávamos a sós sempre
era mau para com meu irmão.

Meu pai me mostrava coisas na estrada e me falava do que eu veria numa


cidade grande. Não tinha coragem de lhe fazer perguntas, porque imaginava que me
achariam, ele e meus irmãos, ainda mais ignorante do que efetivamente eu era. De
toda forma, isto foi bom, porque me serviu para saber ao menos que eu era percebida
por alguém daquela família, que de uma hora para outra resolveram que devia ser
minha.

Chegando à cidade onde ficava o colégio, fomos a um restaurante, o primeiro


de minha vida. Depois do almoço, meu pai me entregou no colégio, fez os necessários
pagamentos e recomendações. A freira me fez elogios superficiais, desses que
costumamos fazer a quaisquer crianças e garantiu a meu pai que eu seria bem cuidada.
Ele se foi e minha solidão não aumentou por isso.

Escolheram, entre as roupas especiais que minha mãe me havia mandado,


aquelas que eu deveria vestir naquele dia e informaram-me de que a cada manhã eu
encontraria no lugar que haviam escolhido como meu escaninho a roupa que devia
vestir. Cortaram-me os cabelos e já naquela primeira noite a palavra pecado entrou no
meu vocabulário e foi repetida tantas vezes que se tornou sem qualquer sentido em
minha vida.

O sino era o feitor de meus dias. Sino para levantar, sino para almoçar, sino
para todas as ordens, não faladas mas imperativas para aquelas moças e meninas,
cujos nomes, muitas vezes esquecidos, se transformaram em simples números.

Os dias sempre iguais, tudo acontecendo em horas certas, mas aos poucos, nós,
os números, íamos readquirindo nossos nomes.

Minhas colegas me achavam muito delicada e a menos agressiva de todas, mas


não lhes passou despercebida a minha ignorância de quase todas as coisas que elas
consideravam conforto, e isto lhes dizia que eu era uma menina muito pobre.

Júlia foi a primeira de minhas colegas a se aproximar de mim. Sua pele era
muito branca, rosto sem sinais de sol. Para mim, criança, ela era quase uma moça nos
seus quinze anos. Ajudava-me em meus cuidados pessoais, com o que evitava que eu
estivesse sempre atrasada nos horários excessivamente rígidos. Os dias me fariam
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aproximar de outras colegas com quem eu poderia brincar. Mas Júlia, quatro anos
mais velha do que eu, foi um pouco mãe para mim, naquele lugar onde todos os
vínculos anteriores devem ser esquecidos.

Uma tarde de domingo, estávamos todas na sala de estudos, quando Júlia,


magra, esguia, cabelos e olhos da mesma cor, se levantou e pediu à supervisora Irmã
Silvia, que a permitisse sair da sala. Não se sentia bem. O pedido não foi aceito e ela
voltou ao seu lugar. Várias vezes Júlia repetiu o pedido, que várias vezes foi recusado,
até que a religiosa entendeu que a menina devia ir para a sala do castigo.

A sala do castigo era um cubículo sem janelas, onde, sem cadeiras ou bancos,
não se podia assentar e um espaço pequeno demais para que se pudesse deitar.

Trancada na sala de castigo, Júlia ficou o resto da tarde e, quando foram buscá-
la, armou-se entre as freiras um alvoroço não explicado às demais alunas.

Durante uma semana, não tivemos notícias de Júlia. Perguntas a respeito


recebiam respostas evasivas. Dias depois, tivemos a resposta e ela nos veio pelos
gritos mal educados do pai de Júlia na sala de visitas. O pai viera tirar a filha do
internato e no parlatório gritou: “Se você, Irmã Firmina, quiser continuar nesse antro,
fique, mas Júlia não voltará aqui. Irmãs de caridade! Sem caridade alguma! Deveriam
todas morrer.“ Uma freira constrangida lhe pedia que falasse mais baixo, mas isso de
nada adiantou e ele só se foi quando lhe trouxeram os pacotes e malas que, soubemos
depois, eram os objetos de Júlia. Não se sabe como, o colégio inteiro ficou sabendo
que Júlia era irmã da Irmã Firmina, uma freira humilde, responsável pela cozinha, por
quem Irmã Silvia, importante no escalão do internato, sentia grande desprezo, e Júlia,
colocada na sala de castigo quando tinha uma crise de apendicite aguda, estivera
muito próxima da morte.

O tempo passava e eu continuava apenas um número: 121. Tão igual a todas,


tão sem expressão, que nem eu mesma me percebia. Os horários de recreio eram
preenchidos com muitos jogos e a presença de várias freiras, de modo que as
conversas eram controladas e os pensamentos dificultados. Tínhamos aula de
Religião, assuntos de que não me haviam falado antes e aos quais eu não era muito
afeita. A solidão e a inutilidade do tempo me faziam estudiosa. O uniforme nos fazia
iguais a todas. As provas escolares e as aulas de religião me colocavam em evidência,
porque me deram as melhores notas do colégio. Aquela menina de hábitos de
camponesa pobre tivera nota dez em quase todas as disciplinas e na aula de Religião
fazia perguntas atrevidas que às vezes nem mesmo a freira conseguia responder. E
como o conceito de inteligência não é muito definido, não demorou muito tempo me
tinham como muito inteligente.
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No entanto, o teatro escolar me trouxe de novo à realidade: eu não passava de


uma menina da roça, não era igual às outras que sabiam se vestir adequadamente e se
portar em qualquer lugar onde estivessem. Na encenação de uma peça, não usamos
uniformes, e Consuelo, menina da minha idade e tamanho, precisava de um vestido
para se apresentar no palco. Ofereci um dos meus que ficaram guardados no colégio
para usar na viagem de volta. E, sem querer, ouvi a irmã de Consuelo dizer-lhe: “De
forma alguma, não aceite, você não pode vestir uma roupa dessa menina idiota, deve
ser um vestido horrível.” Afastei-me para que ninguém soubesse que eu havia
escutado.

Já nesse tempo, comecei a perceber que existem vários mundos, um para cada
forma de ser, e que o mundo de cada um de nós pode chegar a ser tão único, que
estaremos definitivamente a sós. Diziam-me inteligente, mas o meu mundo não era o
de minhas colegas: eu pertencia a uma classe inferior. Meus estudos não eram
suficientes para me colocar como igual à maioria, e sobravam-me poucas meninas que
me queriam como amiga.

O mundo me parecia cada vez menor. No tempo de meu avô, as pessoas


brancas e negras, ricas e pobres, simples ou não, eram realmente iguais entre si e eu
me sentia igual a todas. Na casa de meus pais, as diferenças começaram a aparecer e
no colégio se tornavam gritantes, e eu me colocava sempre no meio daqueles que
eram inferiores: gordinha, desajeitada, pobre e sem entender nada daquilo que no
colégio chamavam de religião. Minhas notas escolares, sempre as melhores da classe,
não constituíam um valor que me fizesse sentir amada. Até pelo contrário, muitas
vezes se referiam a mim como exemplo de que uma pessoa inteligente pode ser muito
boba.

Uma noite, pela ausência de meus avós e por todas as coisas agora presentes em
minha vida, eu estava chorando. Todas as noites eu chorava baixinho a dor que havia
sufocado durante o dia. Naquela, Irmã Benigna, professora de Literatura, ouviu meu
choro e foi até minha cama. Perguntou-me se eu sentia saudades de meus pais e
respondi-lhe que não, dizendo que eu sentia saudades era de meu avô, que havia
morrido. Foi então que ela conversou comigo e foi tão boa quanto há muito tempo eu
não via ninguém. Deixou-me falar. Acariciou-me os cabelos e esperou-me adormecer.

No dia seguinte, no horário de estudo, chamou-me ao seu gabinete.


Considerada uma das mais cultas professoras do colégio, Irmã Benigna era muito
respeitada, dispunha de uma sala cheia de coisas bonitas, onde podia ler, estudar e até
simplesmente ficar sozinha se o quisesse. Pediu-me que lhe falasse de minha vida,
com a naturalidade de meu avô, e creio que eu o fiz, ou porque ela me inspirou
confiança, ou porque, tão sufocada, eu falaria com qualquer pessoa que me quisesse
26

ouvir.

Falei-lhe que as meninas me discriminavam porque eu vinha de uma cidade


pequena e não conhecia as coisas de cidade grande e que quando havia chegado à casa
de meus pais, lá também não me queriam, porque eu não conhecia as coisas da casa.
Foi na casa de meus pais que eu conheci torneira e chuveiro, porque na casa de meu
avô, como em muitas outras que eu conhecia, lavava-se o rosto numa bacia pequena e
tomava-se banho na bacia grande.

Irmã Benigna me disse que conhecer ou não coisas não é tão importante quanto
as pessoas normalmente pensam, mas que, se isso constituía um problema para mim,
que ela me ajudaria a resolvê-lo. Disse também que ela não me faria esquecer a
ausência de meu avô mas que poderia me ajudar a transformar essa ausência numa
presença agradável e que para isso ela contaria com o tempo e comigo mesma, porque
a pessoa mais importante para cada um de nós somos nós mesmos, que nós podemos
nos ajudar e nos prejudicar mais do que qualquer outra pessoa.

No entanto, agora viriam as provas e que, logo em seguida, tanto eu quanto ela
viajaríamos de férias, mas que no próximo semestre ela levaria muito a sério suas
promessas.

E vieram as provas e depois as férias, sem imprevistos. Irmã Benigna viajou.


Cada aluna esperava que seu pai viesse buscá-la. Todos os pais chegavam, menos o
meu, que só podia acertar sua vinda de acordo com seus negócios. Ficava dias no
colégio sem ter o que fazer, dormindo sozinha naquele imenso dormitório, e até que
alguma freira mais bondosa me permitisse abrir a janela e ver de minha solidão, os
carros e pedestres passarem apressados, mulheres bem vestidas ou não, homens
jovens e bonitos . E eu pensava na liberdade de que eles dispunham, sem imaginar
que também eles, tanto quanto eu, poderiam estar sós, moídos de dor e cansaço.
Sempre pensamos que os outros são felizes, não pensamos que as histórias podem ser
quase iguais e que as diferenças sempre são simples detalhes.
27

Capítulo 4

Quando comecei a me acostumar ao vazio do colégio, meu pai me veio buscar.


Era um homem alto, de cabelos pretos e se vestia com aprumo. Tive a impressão de
que era a primeira vez que o via. Antes, eu o via trabalhando e o vi durante a viagem
de vinda para o colégio. Era a primeira vez que eu o via de gravata e paletó. Era meu
pai. Tinha os poderes para me tirar do colégio e fazia isso especificamente por mim,
pois meus irmãos, de férias antes de mim, já estavam em casa há muitos dias. Durante
a viagem, ele me perguntou como havia sido o semestre e se eu gostava do colégio.
Respondia sempre cheia de medo, procurando acertar a resposta que poderia agradá-
lo. Ele estava sendo bom comigo, mas eu tinha medo do homem que em casa era mau
e grosseiro com meu irmão. Paramos para um almoço num pequeno restaurante, e
quando ele me perguntou o que eu queria almoçar, respondi “o que o senhor quiser”.

Esta resposta era a que eu lhe daria durante muitos anos da minha vida.
Chegamos em casa num domingo à tarde. A empregada indicou-me o quarto onde eu
deveria dormir e o banheiro que devia usar. No espelho vi meus cabelos vermelhos de
poeira. A estrada construída com tanta festa e que considerávamos um orgulho da
cidade, não tinha asfalto. Tomei um banho e vi que havia sapatos e roupas novas para
mim. Eram roupas feitas sem medidas e que não levavam muito em conta o meu
tamanho, mas eram melhores e mais bonitas do que aquelas a que eu estava
acostumada. Pedi para ir à casa de minha avó. Minha mãe, que havia continuado o seu
bordado quando cheguei, disse-me que eu não poderia ir por duas razões: primeiro,
porque eu devia estar com saudade de minha mãe mais do que de minha avó e, se
logo eu saísse de casa, as pessoas teriam a impressão de que eu não me importava
com a minha mãe. E depois, porque, quando se chega, deve-se esperar que os outros
nos venham ver - assim mandam as normas da boa educação. Pensei, na verdade
minha avó é mais importante do que mãe e em relação à minha avó eu não achava
necessário esse tipo de boa educação. Minha mãe pensava de outro modo e o que ela
pensava era ordem.

O domingo entardecia. Não vi minha irmãs naquele dia e meu irmão saiu a
passeio sem me dizer uma palavra. Não falei com ele que me causava um certo
acanhamento porque eu sempre o via nas brigas com meu pai. Sentia uma espécie de
medo daquele menino quase homem que meu pai humilhava na presença de todos.
Então fiquei assentada na grande varanda de nossa casa, vendo pessoas, as roupas
limpas e os cabelos penteados, andando na rua, indo para a igreja. Elas agradeciam a
Deus.

No dia seguinte, minha avó me veio ver: usava um vestido cinza, comprido até
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os pés; os olhos azuis no rosto sereno eram tristes, de uma tristeza que se sabia não
perdera a capacidade de afeto. Trouxe-me, não com a formalidade de um presente,
mas com a certeza de que seria entendida, uma pequena caixa, contendo coisas que
haviam sido de meu avô: uma tesoura, uma navalha já sem corte e um velho isqueiro,
que ao tempo se chamava binga. Nos olhamos: ela talvez feliz, sentindo que eu
crescia, despontando para a juventude; eu triste, vendo quanto ela envelhecera, e sua
vida num caminho de descida. Minha mãe era jovem, nos seus trinta e dois anos,
minha avó envelhecida. Meus irmãos teriam mãe por mais tempo do que eu.

Depois, minha mãe apareceu e mandou que servissem na sala adequada,


alguma coisa para a minha avó. Conversaram. Falaram de bordados e costuras.

Durante todo o período de férias, quando à tarde nos era permitido sair da casa
de meus pais, eu ia ver minha avó. Ela me contava, com algumas reservas, histórias
de sua vida, falava-me de seus antepassados e de um primo que se apaixonou por ela e
com quem não se casou porque os pais entendiam que concentrando-se as
características de doenças da família, c,oisas graves poderiam acontecer, como
acontecem as maldições. Esse primo deixou a cidade e se tornou um político
importante, e muito do que ele pensava foi escrito num livro. Minha avó não dava
importância ao que havia feito o primo, ela havia aprendido com meu avô que
escrever livros, construir estradas ou ganhar dinheiro pode ser e muitas vezes é o que
menos importa quando se analisa uma pessoa.

Quando a tarde ia a mais da metade, eu me punha a caminho da casa de meus


pais, tão perto da casa de minha avó. Havia um horário certo para que estivéssemos
todos em casa e bem arrumados comparecêssemos todos à mesa para o jantar.
Quando se fazia noite, muitos homens apareciam e, se não falavam de política,
jogavam baralho e às vezes tocavam e cantavam músicas, o que era muito agradável a
alguns amigos de meu pai, especialmente o Dr. Ulisses. Nas noites em que havia
música, minhas irmãs e eu podíamos ficar na sala. Nas outras noites, devíamos
permanecer em outros lugares da casa. Nessas noites, descobri a possibilidade de ficar
com Raquel, que ainda não sabia falar, mas sorria alegre ou dormia feliz nos seus dez
meses de vida. Agora, suas mãos não eram enrugadas, mas cheias de róseos gominhos
e brincavam com borboletas artificiais que os adultos colocavam sobre seu bercinho.
Nas noites em que ouvíamos música, minha mãe aparecia bem vestida, usando colares
e pulseiras e sempre dava ordem a uma empregada para que, no intervalo entre uma e
outra música, servisse alguma bebida aos visitantes. A empregada também servia
salgadinhos que devíamos receber obedecendo todas as normas de educação que nos
eram passadas por Deolinda. Minha mãe conferia a observância das mesmas, e, se
alguma coisa aparecia errada ou inconveniente, ela se zangava com Deolinda
ameaçando de dispensa. Nunca entendi porque Deolinda, que sabia tocar piano e fazer
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muitas coisas, fazia tanta questão de manter aquele emprego miserável.

Dentre os homens que apreciam em nossa casa nas noites musicais, um deles se
aproximou de mim. Mesmo durante o dia, meu pai estando ou não estando em casa,
este homem aparecia e até pedia à minha mãe que mandasse uma das empregadas
fazer para ele algum pequeno serviço, no que era prontamente atendido. Chamava-se
Ulisses e todos o chamávamos Dr. Ulisses. Era um homem bem cuidado, de cabelos
bem penteados e vestia roupas impecáveis de linho branco naquela cidade onde a
roupa se lavava no rio e as águas eram sempre barrentas. Era só, não tinha esposa nem
filhos e seu passado mais distante era sepultado. Meus pais gostavam muito dele.
Gostavam pelo que ele era desde quando o conheceram e nunca ninguém perguntou o
que fora antes. Era médico, e isto era atestado de idoneidade.

Certa vez, não estando minha mãe em casa, o Dr. Ulisses apareceu para tomar
um café, o que ele fazia sempre quando havia horário vago entre um e outro cliente. A
empregada trouxe-lhe o café e disse-me que substituísse minha mãe nas atenções que
se deveria ter para com o visitante especialmente amigo. A missão me era
absolutamente estranha, o que de imediato foi percebido pelo médico, que procurou
deixar-me à vontade. Fez-me perguntas sobre o meu colégio, sobre meus estudos e me
disse que eu deveria me fazer mais alegre, diminuir o meu silêncio, para que as
pessoas pudessem ver as boas qualidades que eu tinha.

No dia seguinte, voltando da casa de minha avó, passei em frente à casa onde
morava o doutor e ele me chamou a que fosse até lá. A casa era grande, e os muitos
corredores escuros pelo anoitecer, me levaram ao seu consultório. Quando o doutor
acendeu a luz, sem muitas palavras e sem dizer o porquê, examinou os meus dentes e
disse: “Faltam os caninos, mas não se preocupe porque isto lhe dá um sorriso bonito e
as raças mais aperfeiçoadas têm menos dentes”. Encaminhou-me de novo à porta de
saída como se me dissesse “pode ir para a sua casa”. Desde então, o Dr. Ulisses me
dava sempre algum presente, bombons que ele trazia de suas viagens, bonecas
pequenas e outras pequenas coisas que variavam de acordo com o meu
desenvolvimento. Soube depois que foi através dele que meu pai, preocupado com o
futuro de tantas filhas, foi incentivado a nos encaminhar a todas para profissões que
naquele tempo só homens costumavam exercer.

Minha mãe continuava muito distante, não especificamente de mim, mas de


todos os filhos. Normalmente ela fazia belíssimos trabalhos manuais e nossos
vestidos, que ela fazia com todo esmero , eram etiquetados para que parecessem
comprados em lojas de nome. Minha mãe, mais do que meu pai, fazia questão do que
pensavam os outros e procurava dar a impressão de que em tudo éramos mais do que
realmente éramos. Essa necessidade que a fazia mentir e que sempre dava à nossa
30

casa um retrato irreal era o mais difícil de todas as dificuldades que me vieram para
me adaptar à casa de meus mais. Às vezes eu dizia alguma verdade e ela me
repreendia por isso. Os outros não deviam saber quanto lutávamos para manter a
aparência de grandeza e luxo.

As férias, que para mim não foram mais do que vinte dias, estavam passando.
Aproveitava a companhia de Sofia, mais alegre do que eu, tentando não com muita
facilidade, fazer vestidos para suas bonecas. Brincava com Raquel, para fazê-la falar e
ela tão pequenina ensaiava algumas palavras numa língua que não era exatamente a
de ninguém. Sara e Otávio não se aproximavam de mim. Eram maiores do que eu, e
até na agressividade que sentiam em relação à casa, que era mais deles do que minha,
reagiam de modo diferente. Sara passava dias em seu quarto, recusava-se a ir à mesa
na hora do jantar, porque meu pai nos impedia de sair à rua e até mesmo falar com
pessoas de fora de nossa casa. Otávio, que era homem, saía sempre e quando voltava
encontrava meu pai acordado para lhe dizer muitos desaforos. Falavam em voz alta, e
o medo que me deixavam de suas brigas ficava comigo por muito tempo, afastando-
me do sono.

Quando o calendário me mostrou que as férias estavam terminando, não fui


capaz de saber se era melhor estar em casa ou no colégio. Em qualquer lugar era um
pouco presidiária
.
Minha mãe se deu o trabalho de olhar nossas roupas e preparar nossa volta para
o colégio e de novo meu pai nos acompanharia.

Durante a viagem, tanto quanto possível, mantínhamo-nos em silêncio. Não


tinha eu nenhum assunto a ser falado sem medo de recriminações. Meu pai começava
a ter algum carinho comigo, mas eu me lembraria sempre que ele era duro com meu
irmão, o quase desconhecido Otávio, e que ele não tivera nenhuma pena de me dizer
“seu avô morreu”. E sobretudo descobri que, como um Deus, meu pai nos queria à
sua imagem e semelhança.

Quando chegamos ao colégio, meu pai se antecipou ao que Irmã Benigna me


havia falado, e disse à Irmã secretária que eu estava autorizada a me matricular em
alguma disciplina extra curricular. Não havia lhe pedido isso e ele não me perguntou
se eu o queria. Nesse ano, passei a ter aulas suplementares de francês e me deram
também uma professora de dança. Escolhi a dança, porque entendi que os dançarinos
não precisam falar e que as pessoas nos vêem mais facilmente do que nos escutam.

Quando no início das férias cheguei a casa de meus pais, vi que os dias eram os
mesmos, dias repetindo dias, horas repetindo horas e o tempo passando. O colégio
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não era diferente. Os pisos sempre limpos, o barulho das contas de madeira dos
rosários anunciando os passos silenciosos das freiras e o sino dizendo o que se devia
fazer. Irmã Benigna de novo me orientando nas leituras e conversando comigo para
que o tempo se encarregasse de fazê-la substituta de minha avó, que com meu avô
havia acumulado de ternura minha infância.

Meninas novatas no colégio, substituindo outras que se foram..


O tempo passando.
Ângela era novata, mais velha do que eu, e tinha dificuldade em aprender.
Disseram que ela não era inteligente. Que era irmã da menor de todas as meninas e
que vieram para o internato porque os pais viviam um casamento ruim e que era bom
que as filhas ficassem longe de muitas confusões. Ângela era triste e protegia sua
pequena irmã de agressões das meninas maiores. Fiquei amiga de Ângela, que me
pedia muitas vezes para estudar com ela lições que ela sozinha não seria capaz de
aprender. Ela me retribuía ajudando-me a pentear meu cabelo tão crespo que eu não
sabia pentear. Um dia, outra menina cujo nome não sei, me perguntou se eu sabia que
os pais de Ângela haviam se desquitado. Eu nem sabia o que era desquitar. Ângela
não me falava de seus pais. Falava só de suas dificuldades nos estudos e na aula pedia
que fizesse aos professores perguntas que ela não tinha coragem de fazer.

Sempre eu perguntava, e perguntava até o que não devia. Numa aula perguntei
a freira se a fé era um dom de Deus. Ela me disse que sim, então disse a ela que
segundo sabia, dom era presente e que Deus não me havia dado aquele presente e
disso eu não tinha culpa. Nesse dia, a freira mandou-me para a sala do castigo e o fato
foi levado ao conhecimento de meu pai.

Foi um susto para as fervorosas freiras quando meu pai lhes disse que se elas
quisessem me ensinar as coisas da religião, ele não teria nada a objetar, mas que nem
ele nem minha mãe tinham qualquer preocupação com esse tipo de assunto.
Perguntaram-lhe então por que me havia colocado num colégio de religiosas, ao que
ele respondeu - “É que entre os internatos de que eu tenho notícia, este é o melhor em
formação ética e em qualidade de estudos”

Poucos dias haviam se passado e fui chamada à sala da Madre Superiora e não
tive medo, porque só depois me disseram que esse chamado só ocorre em casos muito
sérios. A madre falou, muito solene: “Pelos fatos ocorridos, ficamos sabendo que
você não tem nenhuma formação religiosa. Isso, em outras condições, seria o
suficiente para que não a quiséssemos em nosso estabelecimento, mas, como é do
nosso dever recolher almas para Deus, decidimos mantê-la aqui e para isso será
necessário suprimir o seu horário de recreio, para utilizá-lo em aulas de religião. Seu
tempo de estudo não pode ser mais restringido, já que você tem aulas de dança e
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pintura. A propósito, quero que você saiba que o seu balé deve ser encarado como
uma forma de oração e que não pretendemos ter uma aluna que faça da dança
qualquer coisa de profissional. Está entendido?” Disse que sim, e, desde então,
enquanto minhas colegas brincavam, uma religiosa ensinava-me orações e muitas
outras coisas do gênero, que eu decorava para esquecer logo depois.

A idéia de passar meus recreios estudando religião não me foi tão penosa. Os
recreios eram sempre destinados a qualquer coisa que dificultasse qualquer conversa,
brinquedos de correr e jogar bola, pelos quais nunca tive muito interesse.

Agradava-me estar com Irmã Benigna. Ela tentava tirar de mim o estigma da
menina quase selvagem que eu era, ensinando-me novos hábitos e dando-me
conhecimentos adequados à cidade. Falava-me de tapetes, cristais, pinturas famosas;
ensinava-me a andar de um jeito especial, a mim que já havia caminhado tanto pelas
estradas e que nunca poderia imaginar que existiam normas regulando o andar, o
falar, coisas tão espontâneas da minha infância cheia de uma pureza mais ampla, não
conhecida daqueles que se pensam civilizados.

Minhas notas continuavam muito boas, mas os meus contatos com minhas
colegas diminuíam e eu me tornava cada vez mais diferente do comum entre as
meninas da minha idade. Meu mundo não tinha crianças, e as pessoas me eram
impingidas, tudo a cada dia mais fechado como um cerco em volta de mim.

Foi por esse tempo que Diva, aluna interna, pouco mais velha do que eu e mais
adiantada, me veio dizer que Irmã Benigna não tinha vocação religiosa e que estava
no convento em razão de uma específica situação familiar. Disse-me Diva: “O pai da
Irmã Benigna era governador de um estado, quando estourou uma revolução que o
meu pai chama de Golpe. Ele e toda a família foram presos e jogados no porão de um
navio, onde um dos irmãos da religiosa morreu e teve o corpo jogado ao mar. Quando
deixaram os porões do navio, morto um dos irmãos e enlouquecida a mãe, o pai se
negou a colocá-la num hospital psiquiátrico, e a manteve em casa. A família, cujos
bens foram seqüestrados pelo governo, passara muitas privações. Irmã Benigna teria
uns quinze anos ao tempo, e não se sentia bem vivendo numa casa pobre onde a mãe
enlouquecida nem sequer a deixava dormir. Passou, então, a estudar num colégio
gratuito, e quando se formou não voltou para casa, onde o pai, um homem inteligente
e culto, já havia restaurado a posição familiar. Os irmãos entenderam que ela os
abandonara numa situação difícil, e agora, quando tudo estava bem, não tinha o
direito de se sentir como membro da família.”

E Diva me disse mais: “Ela só gosta de você porque antes de entrar para o
convento tinha o mesmo nome que você tem.”
33

Poderia ser verdade o que me havia contado Diva, mas se o fosse não haveria
razão para que eu mudasse o meu modo de ser com a madre que me ajudava a vencer
as pequenas dificuldades. Entendi que não deveria falar do assunto com Irmã
Benigna. Ela me falaria disso se um dia confiasse em mim o suficiente para tanto.

Os internatos não mudavam nunca, como se tivessem medo de que, afastada a


rotina, se instalasse o caos. Tudo era calmo e, depois do caso de Júlia, não sei por que
as alunas passaram a ser bem cuidadas. Talvez porque Irmã Silvia, que sempre tratava
as alunas do modo como convinha aos nomes de família, houvesse, desde então, sido
afastada das alunas e não exercia qualquer atividade fora da clausura.

Nesse segundo semestre, talvez o colégio fosse o mesmo, mas eu, diferente, o
via de outra forma. Ainda me restavam medo das confusões políticas da minha
cidade, lembranças alegres e tristes da casa de meus avós, mas o peso disso não era
tanto que me fizesse, como o fazia antes, não perceber o colégio com tudo que de
novo ele me mostrava.

Não me sentia mais tão inferior a minhas colegas, que viviam num mundo mais
sofisticado e elegante que o meu. Estava ali. Presente para ver, observar e até
descobrir o mundo novo em que eu vivia.

Descobri a palavra caridade, de que tanto se falava e que muitas vezes tem nos
atos religiosos um sentido tão diferente daquele que eles mesmo dizem. Aprendi
muito nas salas de aula e nas conversas com Irmã Benigna. Minhas aulas
extraordinárias de religião se tornaram muito produtivas porque, ao estudar aquele
assunto, eu, que não tinha intimidade com o Deus de que me falavam, descobri que as
pessoas colocavam em Deus qualidades que elas têm ou gostariam de ter, imaginando
um Deus muito menor do que efetivamente deve ser o Deus infinito de que eles
mesmos falam.

Agradava-me muito ver o luxo que existe nos internatos. Imagens de santos que
são verdadeiras obras de arte, pinturas de grandes artistas e sobretudo o ouro, em
quantidade que só existe nos objetos do altar.

A sexualidade reprimida se torna mais evidente e se vê o sexo em tudo. Mesmo


no que foi pensado, e num lugar onde só existem mulheres, nunca se ouve tanto que
somos nós, as mulheres, instrumentos do pecado. E então eu me lembrei de meu avô,
que me dizia que os adultos têm tantas certezas que muitas vezes é melhor não
entendê-los.

Minha voz não mais questionava o que falavam. Meu ouvido escutava e meu
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intelecto recusava, e recusava tudo o que me diziam por considerar contraditório que
um Deus puro e bom houvesse criado um mundo onde as coisas naturais pudessem
constituir erros. Nesse tempo, eu não conhecia bem o que significava a loucura e
ninguém me havia falado em neuroses.

Terminava o segundo semestre de meu tempo de internato. A professora de


balé me veio dizer que não julgava razoável o meu desempenho nas aulas e me
aconselhava a não insistir no assunto. Disse-lhe, contudo, que eu gostaria de insistir,
exatamente porque a dança era muito difícil para mim. Porque, se não me era fácil,
era exatamente o que eu precisava aprender. Ela não teve argumentos em contrário.

Continuei. E descobri com o tempo não a beleza da dança, o que era muito para
minha capacidade, mas descobri o prazer do domínio do corpo, menor apenas do que
a liberdade da cabeça.

Minhas provas registraram boas notas, mas antes de encerrar o período letivo
a madre orientadora deu-me como tarefa para as férias que eu procurasse ampliar meu
relacionamentos, pois que, em um ano convivendo com mais de duzentas alunas, eu
não tinha feito nenhuma grande amizade com as colegas. Reconhecia-me como leal e
gentil, mas muito distante de todas, o que não lhe parecia normal ou conveniente para
uma menina da minha idade.

Só então percebi o meu silêncio onde tantas falavam tanto.

O ano terminava e de novo eu ficaria sozinha esperando meu pai, que me viria
buscar, diferentemente de minhas colegas, e não tinha nenhum desejo de ir para uma
casa que me obrigavam a acreditar que era minha.

Meu pai chegou quando todos já haviam ido e ficou contente com minhas
notas.
35

Capítulo 5

Outra vez a viagem com meu pai. Ele falava pouco e agora não me mostrava o
que se via na estrada. O caminho já era conhecido e tão igual, não comportava mais
quaisquer comentários. Mas ele me contou que meus irmãos já estavam em casa há
mais tempo e que sua demora em buscar-me se devia ao fato de que, embora o colégio
fosse mais perto de casa, a cidade onde eu estudava não oferecia nada para se comprar
ou vender, de modo que lá só se ia para finalidades muito específicas.

Falou-me também que a política estava tensa. Eleições só no próximo ano, mas
os problemas já haviam voltado. A chuva foi tardia e as mulheres do nosso partido -
disse: “Lógico que sua mãe não estava com elas, pois não é de nosso hábito nos
misturar com o povo.” - bem, as mulheres resolveram fazer penitência e subiram o
morro, com suas grandes vasilhas de água e seus cantos, conhecidos na região. Um
soldado do destacamento, subornado não se sabe por quem, armado de fuzil, as fez
descer o morro correndo e amedrontadas. Amélia, mulher do Quincas, estava entre
elas e esperava um filho. Na correria, sofreu uma queda e rolou pelo morro abaixo. A
criança morreu e logo depois uma chuva de granizo inundou a cidade. O Quincas quis
matar o soldado. Um grupo de homens o impediu. O soldado foi imediatamente
transferido da cidade, mas de ambos os lados os ódios se reacenderam. Meu medo
começou antes mesmo da chegada. O medo que acompanhou a maior parte da minha
infância e adolescência.

Quando cheguei em casa, minha mãe recebeu-me com a frieza de sempre.


Sofia havia crescido e era bonita no seu colorido tão comum de cabelos e olhos
castanhos e pele quase da mesma cor. Falava. Tinha brinquedos solitários e sempre
me trazia flores colhidas nos jardins da casa de meus pais. Aos poucos, descobríamos
que éramos irmãs, não porque os outros falavam, mas porque nos queríamos bem.
Raquel, bem criança, andava pela casa e contava-me as coisas reais e imaginárias de
seu mundo infantil. Sara estava bonita, seus cabelos loiros adornavam-lhe os ombros
e seu corpo alto e forte, mesmo coberto de roupas, mostrava a todos que ela era
mulher. Otávio se tornara um homem, não na idade, mas no tamanho e na voz.
Parecia-se com meu pai, e este parecia odiá-lo. Chamava-o de inútil, canalha,
cafajeste, por tudo e quase nada. Meu irmão falava pouco e não parecia triste. Era
gentil com as pessoas. Os homens que freqüentavam as noites musicais de nossa casa
pareciam admirá-lo. Nessas horas, meu pai o tratava muito bem e as vezes até o
convidava para estar entre eles. E então era Otávio quem, gentilmente, a pretexto de
qualquer coisa, recusava.

E eu descobria que a coisa da família pode não passar de um teatro de mentiras.


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Durante o dia, às vezes, minha mãe deixava seus trabalhos, e chorava, um


choro de raiva, não de tristeza, e dizia: “Não agüento mais esta vida, um dia me
mato”. Outras, vezes, também irritada, falava contra a cidade e dizia que
precisávamos sair daquele lugar onde não se podia criar filhos, ela e eles
encarcerados.

Quando havia alguma festa na cidade, e naturalmente nenhum de nós era ao


menos convidado, Sara se trancava no quarto, ficava dias sem sair e sem falar com
ninguém. Meu pai a chamava na hora das refeições. Ela não vinha. À noite, ele lhe
dava um presente caro, que ela agradecia de mau humor.

Quando resolvia aparecer de novo, ou mesmo em sua ausência, meu pai lhe
fazia grandes elogios e até dizia que Sara seria o de bom que a velhice lhe reservava,
porque Sara sabia lutar por seus desejos. E sempre acrescentava que eu, Irene,
aprenderia o que eu encontrasse nos livros, mas era na verdade uma incapaz que não
me rebelava nunca.

O povo da cidade nos olhava com um misto de admiração e raiva, porque,


suponho, as empregadas diziam na rua que meu pai não nos deixava sair porque nos
achava superiores aos outros.

Tudo me dava a impressão de que todo mundo sabia o que se passava em nossa
casa. Ninguém me disse isso, não poderiam dizer, porque eram tão poucas as pessoas
com quem podíamos falar. Só aquelas que iam à casa de minha avó, onde me davam
licença para ir todas as tardes, com a recomendação de que não me atrasasse para o
jantar.

Minha avó continuava a mesma. Até o envelhecer estava parado no seu rosto.
Falávamos menos a respeito de meu avô de quem tanto ela quanto eu não nos
havíamos esquecido.

Um dia, minha avó, assentada nas sua cadeira de sempre, perto da janela,
aproveitando a luz da tarde, tecia o seu crochê. Pedi-lhe que me falasse de Aurora. Ela
se surpreendeu. Não sabia que me haviam falado desse trecho da história, que já não
era de ninguém, era um capítulo de nossas vidas. Devagar, como se tivesse medo,
escolhendo as palavras, disse:

- Um de meus irmãos se chamava Antônio. Enriqueceu. Ao contrário dos


outros, a pele cor de chocolate e os cabelos mantinham o mesmo tom. Acreditava-se
superior a todos de nossa família empobrecida, quando o trabalho nos começou a
37

faltar. Não sei se por capacidade ou sorte, novo ainda, Antônio ganhou muito
dinheiro. Nas suas andanças, casou-se com uma estranha mulher, filha de ricos recém-
chegados à cidade, que usava roupas e perfumes nunca vistos por nós. Tiveram uma
filha, a quem deram o nome de Aurora, e a mulher, tão desconhecida como quando
chegou, um dia chamou o seu tio e disse que iria embora e que dele não queria nem a
filha. Seu tio a matou. Nem mesmo a sua família teve interesse em puni-lo, porque
não queriam um julgamento em que seu passado fosse mostrado aos outros. Seu tio se
mudou por uns tempos para algum lugar, que não se soube onde era, e quando voltou,
empobrecido, com os cabelos já grisalhos, trouxe Aurora, bonita e moça. Aurora
namorava um moço, sem nome e sem dinheiro, quando o pai entendeu de casá-la com
um rico estrangeiro, já bem velho, que aqui havia aberto uma loja de quinquilharias,
onde na verdade não se vendia coisa alguma. Apenas se distraía, enquanto
empregados cuidavam de terras e gado que ele havia adquirido desde a chegada.
Aurora se recusou a casar, mas estava aprisionada. Foi comunicada de seu próprio
casamento quando nem tempo havia para fugir. Na hora do casamento, disse que não
queria se casar, e no dia seguinte amanheceu doente. Ninguém sabe como, dois dias
depois o escrivão fez o casamento em casa na presença de algumas poucas
testemunhas. Uma semana depois desse casamento estranho, Aurora se mudou para a
casa do marido e parecia feliz. Ninguém lhe fez perguntas.

Aurora era vista com o marido e parecia feliz, como se espera esteja uma
recém-casada. Ela e o pai enriquecidos com o dinheiro do velho que, de certa forma, a
havia comprado.

Tudo parecia normal e esquecidas as mágoas, quando, certa manhã, Aurora não
foi encontrada no quarto. A empregada que lhe servia o café deu o alarme. A senhora
não estava em casa. Depois de alguma procura, viu-se que suas roupas pessoais
haviam sido tiradas do armário e se tornou clara a fuga. Os dias se passaram, e em
cada morador da vila a esperança de encontrá-la foi desaparecendo em tempos
diferentes.

O estrangeiro continuou na cidade e se juntou a uma de suas empregadas, a


quem oferecia tudo o de mais luxuoso que existe, mas negou-lhe durante a vida o
direito de sair de casa e falar com quaisquer estranhos. Só não era considerada
estranha uma das empregadas, por alguma razão incapacitada de falar. Quando o
estrangeiro morreu, o que não foi há tanto tempo, descobriu-se que a mulher havia
perdido a capacidade de falar.

O pai de Aurora, meu irmão Antônio, foi empobrecendo a cada dia e, como se
recusou a qualquer contato conosco, não tivemos muito como ajudá-lo. Dez anos
depois, o pai de Aurora recebeu pelo correio um grande pacote de dinheiro. A cidade
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nunca teve bancos, o dinheiro era bastante. Dentro do pacote havia uma carta de
Aurora, descobriu-se muito depois. A carta dizia que aquele dinheiro ela o ganhara
como prostituta num bordel de luxo. Disse que ela havia escolhido essa forma de
ganhar dinheiro, o que não poderia chocá-lo, porque havia sido iniciada na profissão
com o casamento que ele havia decidido e imposto a ela. Que a profissão não era
ruim, mas que, ao contrário do que pensava o pai, ela preferia exercê-la de maneira
pública, e não acobertada por um casamento.

Meu tio adoeceu pouco a pouco. Ainda não havia luz na cidade. Então,
especialmente nas noites de lua, ele saía pelas ruas, um homem muito alto, de pele
morena e cabelos brancos, e durante toda a noite ouvíamos o seu grito angustiante:
“Antônio Macedo em julgamento nunca mais”. Rodava todas as ruas num cavalo
branco, o único bem que lhe restava, e repetia incessantemente a frase que, de certa
forma, doía em todos nós. A decadência é sempre triste...

Minha avó me indicou o lugar onde ficava a casa do estrangeiro e eu me


lembrei de que uma vez meu avô me havia falado dela. Era uma casa bonita, tinha no
teto uma pintura diferente, como ainda não havia visto outra igual.

Perguntei então à minha avó se ela não sofrera por ver que o irmão que um dia,
criança, vivera com ela os tempos de ternura, estava então enlouquecido, como um
trapo, andando pelas ruas.

E ela me respondeu: “Não, por enlouquecer não. Porque nenhum fato isolado
pode servir de base a um julgamento, mas a mim me doeu saber as razões por que ele
enlouquecera. E porque, conhecendo as mazelas da família, ele não rompeu com elas
e nelas se aperfeiçoou. Vendeu a própria filha, dissimulando a venda com um
casamento, e a filha, tão igual a ele, humilhava-me de novo quando perpetuava o que
de mau havíamos trazido de muitos anos antes. Entristeceu-me, ainda, quando me
humilhei por isso, porque no meu orgulho eu havia pensado que os meus deviam ser
melhores do que os outros.”

E minha avó continuava tecendo suas rendas. E a boca que falava de tristezas
era tranqüila, no rosto já acostumado aos tristes pensamentos.

O tempo continuava andando, e eu não o havia notado. Eu já devia estar na casa


de meus pais, e foi com sorte que, ao chegar, não haviam dado pela minha ausência,
porque um homem que não era dos nossos entrou num bar amigo e a chicotadas
quebrou todas as garrafas de bebida. Ao dono ninguém iria pagar o prejuízo, pois que
o autor da façanha era pobre e não tinha com que fazê-lo, e o mandante, porque
naturalmente havia um mandante, dera suas ordens com tanta sutileza que disso
39

provas não se conseguiriam.

Em casa, minha mãe falava, ”precisamos mudar deste lugar para que nossos
filhos, não vendo o que se faz nesta cidade, sejam amanhã mais nobres de espírito e
não tenham consigo tanta maldade”.

E eu me lembrei então do que há pouco me havia dito minha avó: a maldade


não está na cidade, seria preciso matá-la dentro de nós mesmos. Porque minha avó
havia insinuado que o mal do meu tio não era apenas dele, mas de outros de nós que
existiram antes. Minha mãe preferia acreditar que o mal estava nos outros, assim é
sempre melhor.

À noite, não me lembrei do incidente no bar. Começava a me acostumar com a


violência que atingia os outros e me contentava quando depois de qualquer incidente
podia-se dizer que ninguém morreu, como se a morte fosse a única coisa ruim que nos
pudesse acontecer.

Lembrei-me de Aurora e de minha mãe, que a odiava. Fiquei contente que ela,
entre os nossos, houvesse vivido antes de mim. Parecer-me com ela não me fazia
sentir bonita. Minha mãe tantas vezes me havia dito o quanto eu era feia, que
ninguém seria capaz de me convencer do contrário. Mas, diferente de minha mãe, eu
queria me parecer com Aurora: queria ser capaz de mostrar minha vontade, se
precisasse, de agredir. Mas eu era naturalmente submissa, aceitava como minha
vontade a de todo mundo. Alguém diria que eu era humilde, meu pai dizia que eu era
um tanto idiota e admirava Mira, que tanto quanto eu lhe obedecia as ordens. Mas ela,
ao contrário de mim, deixava clara sua revolta e seu ódio contra as ordens tidas como
descabidas. Ele dizia que ela era uma pessoa capaz e que um dia seria alguma coisa na
vida. Eu pensava: “Um dia me parecerei com Aurora”.

Mira mentia e muitas vezes conseguia fazer as coisas de seus desejos. Eu não
era capaz de mentir, e como as repreensões tornavam mais tensas as pessoas de nossa
casa, eu não fazia nada que imaginasse pudesse dar origem a que meu pai e minha
mãe me repreendessem. E foi por isso que sempre que não houvesse jeito de que ela e
eu tivéssemos uma situação idêntica, a menos agradável era à que eu devia me
submeter, porque eu não reclamava. Percebia isso. Ficava triste e continuava tudo do
mesmo modo: eu e eles continuávamos os mesmos. Felizmente, as férias não eram
muito longas.

E foi nesse tempo, para não se esquecer de que viriam ainda, que, no outro ano
de eleições, um dos filhos do mais importante adversário político de meu pai, por
exclusiva agressão, disparou seis tiros no retrato de um dos meus parentes que havia
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sido prefeito. Ninguém teve raiva. Retratos não morrem. As pessoas riram e
comentaram.

E mais do que se houvesse sido preso, o moço ficou sentido e deixou a cidade.
Foi embora e começou a sério seus estudos. Desta vez deu certo.

Mas foi exatamente naquelas férias que eu pude questionar se realmente, para
uma mulher, mais do que ser atrevida, era bom ser submissa. Porque se descobriu que
um fazendeiro da região, que havia morrido há cerca de um ano, fora assassinado pela
mulher, e ficamos sabendo por que certa manhã, mal nos acordávamos, quando
chegou à cidade a sua viúva, escoltada por soldados e tendo no peito uma placa de
papel onde se lia: Matei meu marido.

Quando a mulher, cansada, caía na rua, os soldados a levantavam com chutes e


pontapés. Minha mãe mandou que entrássemos, pois, desde aquele tempo, ela se
acostumava e até aceitava a violência, mas sempre teve horror à humilhação.

Não queria que se fizesse o que faziam com a mulher, conhecida na loja de meu
pai em razão de suas grandes compras, para as quais tinha autorização do marido.

Queria eu saber por que a mulher, com essa liberdade, teria matado o homem
que lhe dava tudo o que ela queria. Não perguntei. Faltava-me liberdade para fazer
quaisquer perguntas à minha mãe. Também não foi preciso. Todos os fatos dão
origem a tantas conversas que, sem fazer perguntas, se podem saber quase tantas
versões da história quantas são as pessoas do lugar.

Juntando tudo o que ouvi a respeito, penso que os fatos aconteceram assim: na
casa do fazendeiro era de uso que à noite se reunissem para jogar cartas. A mulher
teria se apaixonado por um dos jogadores, amigo de seu filho, ambos de idades não
distantes. A mulher foi aos poucos dizendo ao filho que o pai pensava em vender
todos os seus bens e fugir com o dinheiro, de modo que ela e o filho ficariam na
miséria. O pai não era mau, mas no seu conceito, homem não podia ser carinhoso para
com ninguém, por isso sua bondade era grosseira e seus possíveis momentos de
ternura eram duramente sufocados. O filho se viu sem carinho, mas não suportou a
idéia de ficar também sem dinheiro, e propôs à mãe que ambos matassem o pai e
marido. Mas o filho entendeu que o tiro mortal devia ser dado pela mãe e, então,
provado havia ficado que ela o matara.

Foi justamente por esses tempos que meu pai, numa das poucas interrupções
em seu trabalho, estava em casa, quando o Dr. Ulisses apareceu para o café e minha
mãe se juntou a eles, e falaram os três do que seria aconselhável que meu pai fizesse
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do futuro de suas filhas. Otávio havia escolhido fazer engenharia marítima, nem sei
por que, pois creio que ele não conhecia o mar. Soube depois que, nas conversas do
colégio, um professor havia lhe aconselhado esse curso. Decidiram eles que Mira não
seria professora, porque meu pai não a queria casada com um homem de poucas
rendas, ou, até melhor dizendo, meu pai não queria ver as filhas casadas. Minha irmã
deveria, segundo a decisão de meu pai, estudar Medicina, um curso de muito
prestígio, e que a colocaria bem acima de todas as coisas que as mulheres
normalmente pretendem. E até seria possível que eu também, pelas mesmas razões,
devesse ser médica. A decisão, entendia meu pai, deveria ser dele, e para isso nossos
desejos e habilidades não contavam. Pensei comigo que talvez, quando fosse este o
assunto, eu teria de me rebelar, mas desde cedo aprendi a não falar antes do momento
exato e não falei disso.

Meu pai matriculou minha irmã num colégio onde havia um curso adequado ao
que ele pretendia. Continuaria eu no mesmo colégio, pois, estando ainda no ginásio,
meu colégio era mais econômico, não seria obstáculo às suas pretensões.

Minha mãe ouvia estas coisas, e sabia que nesse assunto sua opinião não era
importante e continuava a dizer que precisávamos nos mudar daquele lugar, porque a
ela nada mais importava além da paz e de que seus filhos não vivessem sempre ao
lado da violência.

Meu pai não se preocupava com isso, pois, dizia ele, a violência está em todo
lugar, ainda que apareça de formas diferentes.

Às vezes, eu queria que as pessoas sempre nos visitassem. Minha mãe e meu
pai se davam muito bem na presença dos outros. Quando estávamos a sós, pareciam
bem, mas havia na casa alguma coisa inexplicável e tensa que eu nunca entendia.
Meus irmãos, se sabiam, nunca me falaram a respeito. Sofia era meiga e silenciosa e
muito pequena para entender quaisquer problemas. Mira, independente demais para
gastar seu tempo com a irmã que lhe era desconhecida e ela desejava que sempre o
fosse.
Agradava-me quando as tardes chegavam e eu podia ir à casa de minha avó e
conversar com ela sobre as pessoas e as coisas.

Talvez se minha mãe tivesse menos filho, ela detestasse menos as crianças.
Nunca falava conosco mais do que o necessário, e a casa era completamente entregue
às empregadas.
Minha mãe trabalhava muito. Fazia todas as costuras de que precisássemos e
fazia muitas roupas de tecido de má qualidade e pouco preço que eram vendidas na
loja de meu pai, onde homens e mulheres, empregados das fazendas vizinhas,
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compravam tudo o de que necessitavam.

Meu pai mandou colocar na loja um lugar adequado para que essas pessoas
pudessem lavar os seus pés descalços e calosos e ali mesmo calçassem sapatos e se
sentissem importantes e bonitos quando iam à Igreja. Eram homens e mulheres de
rosto alegre, a pele curtida de sol e os dentes cobertos de ouro, felizes, montados nos
seus cavalos.

A eles também a política atingia, mas mesmo assim muitos eram de incrível
fidelidade a meu pai, e quando lhes era concedido nos ver, tinham-nos como se
fôssemos rainhas. Nossos nomes não tinham para eles a menor importância,
chamavam-nos a todas “filhas do senhor Homero”. Meu pai se referia a eles com
certo carinho e respeito e ensinava-lhes coisas que lhes eram úteis.

O afeto de meu pai por estas pessoas pode ter surgido por razões do seu
comércio ou da política, mas, já ao tempo em que eu me lembro, penso eram
exatamente eles as pessoas de quem meu pai mais gostava entre todos da cidade.
Minha mãe não: o pouco contato que tinha com eles não passava do necessário aos
negócios de meu pai. E dizer que era exatamente minha mãe a filha de meu avô.

Durante essas férias, algumas vezes, ninguém sabe como, em casas de pessoas
de nossa família foram colocados durante a noite caixões mortuários, o que era
entendido como uma ameaça anônima de assassinato do dono da casa. Durante a
noite, ouviam-se tiros de revólver e no dia seguinte não havia mortos, nem se
descobria o autor dos disparos. Faziam isso para inquietar as pessoas que, sem
telefone e com medo de sair à rua, dormiam preocupadas.

Minha mãe aumentava o seu desprezo pelo lugar onde havíamos nascido.

Uma noite, creio, foi nesse período de férias, acordamos e ouvimos vozes de
moços que cantavam músicas bonitas à frente de nossa casa. Fiquei a ouvi-los, sem
saber o que acontecia com as outras pessoas da casa, pois tínhamos cada um nossos
quartos separados. Só no quarto de Isabe é que ainda dormia uma empregada que se
encarregava de cuidar da minha irmãzinha.

Na manhã seguinte, à hora do café, meu pai tinha o rosto tenso e pela primeira
vez o vi falar em voz alta com Mira. Disse-lhe que serenatas são feitas quando se sabe
são bem recebidas por alguma das moças da casa e que, como eu ainda era muito
pequena, naturalmente Mira era a culpada do interesse daqueles “inconvenientes”.
Minha irmã era corajosa e disse a meu pai: “Não sei quem fez a serenata, mas gostei
que ela houvesse sido feita, e se eles são rapazes, já sou moça e, quaisquer que sejam
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as razões deles, vejo-as como coisas normais.” Meu pai se calou e, à tarde, minha mãe
começou a rever as roupas de Mira, que por decisão do meu pai iria para o internato
antes do término das férias.

O rosto de minha mãe me mostrava que ela estava descontente, mas tanto
quanto eu, descobri mais tarde, ela também tinha medo de meu pai. Eu o tinha de
ambos.

No dia da viagem, Mira estava contente ou procedia como se estivesse.


Ninguém negaria que minha irmã era filha de meu pai, ambos prepotentes e
orgulhosos.

A antecipação da viagem de Mira deixou-me mais à vontade na casa de meus


pais: sua presença irada contra mim fazia-me proceder diante dela como se eu
ocupasse parte de um lugar que de direito lhe pertencia. A casa de meus pais era
muito grande. Cabia-nos a todos. Mas no espaço imaginário eu havia chegado tarde e
foi como se ocupasse algum lugar que não era meu. Sentia o incômodo de todos.

Dias depois, íamos nós outros para o colégio. Durante a viagem, meu pai me
disse que as pessoas me achavam uma menina triste, o que era inconcebível, pois
naquele ano ele havia ganho muito dinheiro e portanto éramos felizes. Não seria
capaz nem teria coragem de explicar a meu pai que para mim uma coisa não era de
forma alguma conseqüência da outra.

Meu pai em suas palavras sempre fazia entender que tudo no mundo se
explicava com o ter ou não ter dinheiro, e que o mundo se dividia entre aqueles que
tinham ou não tinham poder. Mas o seu rosto envelhecido aos quarenta anos dizia-me
que nem mesmo para com ele o mundo era tão simples: ele também às vezes me
parecia triste. Otávio raramente falava com meu pai e nunca manifestava querer se
parecer com ele; Mira estava no colégio sem ter lhe dirigido a palavra nos últimos
dias que esteve em casa. Minha mãe nunca seria considerada como contente com o
mundo que a cercava, e a nossa casa como um todo tinha no ar alguma coisa de
sombrio que eu creio nenhum de nós saberia explicar. Se um dia tivéssemos coragem
de falar uns com os outros o que pensávamos, talvez tudo se tornasse claro. Mas
ninguém seria capaz de dar início a esse processo de comunicação.

Quando comentei este assunto com Irmã Benigna, ela me disse que eu estava
muito adulta para minha idade e me disse que os infelizes amadurecem cedo e que
eu devia aproveitar os meus recreios para brincar com meninas da minha idade e me
tornar um pouco irresponsável. “Tente se desligar do mundo adulto e não perca sua
adolescência”, disse-me, e eu vi que era tarde.
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Capítulo 6

Estava eu de novo no internato. O sino marcando minhas horas. Meu nome


substituído por um número. Tudo tão normal. Eu, como todas. Minhas colegas
falavam de suas férias, de festas, namorados e presentes de Natal. Também contavam
os horrores da política de nobreza tão distante daquela que nos falavam as freiras. Em
três meses de férias, havíamos crescido mais do que percebíamos no ano letivo. O
colégio era o mesmo. Limpo, paredes brancas, corredores silenciosos, e o tempo
passando, pensava-se que sem marcas.

Mas foi exatamente quando tudo se pensava igual que, um dia, em sala de aula,
Ângela, minha amiga que gastava seu tempo olhando a irmãzinha menor, sentiu-se
mal. Levantou-se de sua carteira. O rosto vermelho. O caminhar tão ligeiro que
ninguém pôde vê-la. Não pediu licença para sair. Foi por isso que a religiosa
professora mandou Gabriela, aluna maior, saber onde fora Ângela.

Na capela, a fala desaparecida, Ângela não conseguia explicar. Gabriela


chamou por socorro e a doente imediatamente foi para o hospital.

As aulas continuaram e mesmo nas outras turmas a inquietação se espalhou.


Quatro horas depois, suspenderam as aulas. Ninguém brincava. Falávamos pouco e
em voz baixa, e uma ordem, não se perguntou de quem, nos reuniu na sala do teatro.

A madre superiora, rosto tenso, uma grande tristeza, nos avisou com lágrimas
nos olhos: “O colégio gostaria de poupar a vocês, como gostaríamos de nos poupar a
nós mesmas, da dor que sentimos. Ângela, aluna da segunda série, sentiu-se mal na
sala de aula. Tudo o que podia ser feito o foi. Não houve recurso válido. Ela está
morta. Os pais vieram buscá-la. Sua irmãzinha também nos deixará. As alunas
maiores de quatorze anos, se o quiserem, poderão ir ao velório, acompanhadas de
religiosas, com quem combinarão o horário. As menores ficarão no colégio. Hoje não
estudarão mais. Procurem brinquedos esportivos e evitem assuntos tristes”.

Ninguém chorou no momento, mas nos outros dias o colégio inteiro ficou triste.
As camas, os lugares no refeitório, tudo mudou de modo a que não se percebessem os
lugares que ficaram vagos. Os outros vazios não foram preenchidos e se
transformaram em saudade que durou muito tempo.

O mundo do internato é menor do que os outros. Ali não existem pais nem
avós. As religiosas, que as vezes se dizem mães de todas as alunas, na verdade não o
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são de ninguém. O convento lhes chega muito cedo, sua realidade é parcial. O drama
da morte chegou abocanhando nosso mundo, e foi a custo e com muito tempo que
pensamos nos ter desvencilhado dele. No entanto, quando acreditávamos que esse
horror nos havia deixado, uma tempestade caiu de novo sobre a rotina.

Estávamos na sala de estudos, quando a madre apareceu. Vinha tensa como


sempre, as mãos agarradas às contas do rosário. Ordenou que as menores de treze
anos, nas quais eu me incluía, descessem ao pátio de recreio e fôssemos brincar. No
recreio ninguém brincou. Queríamos adivinhar o que motivava a alteração de nosso
horário costumeiro. Mil falas, interrompidas minuto a minuto pela freira que nos
supervisionava. A madre superiora nos mandara brincar e não conversar. As ordens
eram precisas e deviam ser cumpridas como haviam sido dadas.

Desceram as adultas da sala de estudos. Silenciosas. Olhos abertos. Algumas


em lágrimas. No rosto das menores, espanto e curiosidade. Ninguém falou. As
menores não fizeram perguntas, e não se sabe como soubemos: Laura, uma das
meninas chegadas ao internato no começo do ano, havia tido um filho. Jogara-o da
janela do dormitório, que ficava no terceiro andar, e a criança, porque ainda livre de
defesas e de medos, havia sido encontrada viva num dos jardins, tão carinhosamente
cuidado pelas religiosas.

Já não era o susto doloroso da morte, era o espanto diante do supostamente


impossível e inimaginável.

Laura estava no hospital, a criança morrera hora depois.

Recuperada, Laura foi levada aos pais, que não a receberam. Consideraram-na,
em seus quinze anos, indigna da vida em família. O colégio não a quis entre nós, as
outras alunas. Atendia-se ao que socialmente era exigido. Mãe solteira não podia estar
entre nós, meninas que, se supunha, se casariam mais tarde com grandes homens, e
para isso deviam ser imaculadas. Mãe solteira, rótulo da indignidade, não era preciso
nenhuma outra informação para que se proferisse tal julgamento.

Éramos crianças e não faltou quem entre nós desejasse a sorte de Laura, cuja
vida tão cedo se marcava por uma experiência da qual só os seus pais a tinham como
responsável.

O colégio assumiu o problema e Laura ficou como hóspede e filha de um casal


sem filhos, onde lhe ensinaram todos os trabalhos tidos como necessários a uma
jovem, a quem um dia, acreditavam as religiosas, Deus poderia dar um marido de
presente.
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Aos poucos, as palavras de um e de outros, de alunas internas e externas, e até


de visitas, nos contaram a história de Laura.

O pai comerciava café e desde cedo Laura ajudava nos serviços de seu
comércio, misturando-se com todos os homens que faziam parte do mundo agitado
dos negócios. Ela e seus irmãos participavam do plantio, da colheita e venda do café.
Foi então que um daqueles homens que passam por estes lugares, quase certos de que
ali nunca voltarão, deu um filho à menina, e o deu de presente, sem intenção de nunca
retomá-lo e nem mesmo vê-lo. O pai de Laura estava certo de que deixar nascer um
filho sem pai é quase sempre culpa, e no caso a culpa era de Laura.

O colégio voltava à rotina e as férias chegavam, desta vez nos encontrando a


todas menos crianças: as grandes realidades tinham invadido nosso pequeno mundo e
delas não havíamos podido fugir, nem mesmo na fracionada adolescência do
internato.

Continuávamos estudando muito. Aprendíamos um pouco menos, a cabeça às


vezes ocupada com os fatos. As religiosas estavam mais tristes e eram maternais.

Sempre demorava o dia em que meu pai me viria buscar. Estar no colégio,
quando todas se haviam ido, era como uma viagem. Em tempo de aula, íamos sempre
aos mesmos lugares, salas de estudo, banheiros, refeitórios, capela e pátios. Sozinha,
sem aulas, podia ir a todos os lugares, à biblioteca, à pinacoteca, à sala de música e
até mesmo ao restaurante das freiras. Na minha cabeça de interna, todos estes lugares
eram descobertas interessantes de um mundo que até poderia ser o meu, se ele não
exigisse que tivesse uma religião determinada.

Meu pai me veio buscar. Muito tempo das férias já se havia passado, e isso não
era ruim. O colégio cheio de tristezas me levava a uma cidade vazia de coisas boas,
marcando minha adolescência perdida. Minha irmãs estavam em casa. Mira, mais em
seu quarto do que em qualquer lugar, não tinha palavras para ninguém. Isabel andava
pela casa, fazia roupas para suas bonecas e às vezes me falava de seus brinquedos. Era
alegre, corria e quebrava enfeites da casa, olhando depois no rosto dos outros o
tamanho do mal que havia feito. Não se importava pelo cristal quebrado, mas chorava
se o rosto adulto lhe dizia que fizera mal. Otávio não viera de férias, falava do muito
que precisava estudar, o que talvez fosse verdade. Minha mãe estava mais tranqüila e
até se aproximou de mim e quis me ensinar o que sabia de costura. Meu interesse a
fez um tanto alegre porque este e outros trabalhos manuais fizeram a marca das finas
mulheres da família.
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O presidente da República, o governador, um pouco menos o prefeito, faziam


um bom ambiente em nossa casa, porque dessa vez todos eles tiveram o voto do meu
pai. Isto era a paz em nossa casa perdida numa cidade sem importância.

Mas, mesmo assim, porque tudo que viera antes sempre conta, a casa de minha
avó ainda era o meu lugar, e foi numa tarde que minha avó, falando das coisas
daquele lugar, me contou.

“Quem fundou essa cidade foi o pai do seu avô. Era um homem simples,
confiante em que sempre se pode dizer a verdade, certo de que o trabalho é bênção de
Deus. Veio aqui com a família, a mulher e o filho ainda pequeno. E numa área de
terra plantou uma igreja e avisou a todos que as terras que a rodeavam seriam dadas
de graça, não lhe fariam falta. Suas terras eram muitas. E, no meio dos que chegaram
para a terra que ele deu de graça, vieram meus irmãos e depois todos nós. Um dia,
mataram o pai do seu avô e o tempo fez com que a viúva perdesse todas as terras. Seu
avô, ainda muito novo, aqui não tinha trabalho, nem dinheiro, e foi em terras um
pouco distantes, cujo dono não conheci, que ele aprendeu tantas coisas que sabem
aqueles que trabalham a terra.”

Minha avó me contava também os seus dias mais felizes, como o seu primeiro
casamento, quando a família ainda fazia jóias para a Coroa. O casamento com o moço
rico, que seria amado mesmo se pobre. Ela, a noiva bonita, descendo os degraus da
Catedral de mãos dadas com o marido, pois os braços dados não era decente e ela
feliz porque a intimidade das mãos já era um prazer muito grande, véspera de outros
que seriam maiores.

Morto esse marido, ainda sem se esquecer do primeiro, casaram-na com meu
avô, pobre, simples, analfabeto, porque viúva sem homem seria um risco insuportável
para a honra da família. E um dia, sem mesmo que ela percebesse, descobriu que
amava meu avô exatamente do modo como deve ser o amor de verdade.

E de novo falávamos de meu avô e do seu grande atributo: era bom.


Entardecia e eu voltava à casa de meus pais, e se não ouvia música, nem
política, meu pai me levava ao seu escritório para me falar de seus negócios, porque
Mira, a mais inteligente, e que ele dizia muito mais capaz do que eu, tinha coragem de
responder-lhe: “Seus assuntos não me interessam”.

A mim também não me interessavam os negócios. Mas, se Otávio não estava,


se Mira não tinha disposição para ouvi-lo, eu fazia como se o assunto me fosse muito
agradável, até que um dia eles se incorporaram à minha vida, se não com prazer, ao
menos como ciência.
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A política neste tempo estava tranqüila e até parecia que todos haviam se
esquecido de tudo que havia se passado.

De uma das salas da casa de meus pais, minha adolescência podia ver outras
moças e meninas passeando em seus vestidos novos e bonitos, como os que eu vestia
para vê-las à distância, sem falar com ninguém. Mira ficava revoltada e, por uma das
portas da casa, saía escondida e fazia seus passeios, que, se descobertos, tornavam
nossas noites insones, pela nervosia de minha mãe e repreensões de meu pai.

E as férias terminavam.
O colégio de novo.
Do colégio espera-se a rotina. Desta vez, ao chegarmos, encontramos as freiras
mais distantes, como alguém que esconde um segredo ou um plano. As aulas, o
estudo e todas as outras possíveis atividades, obedecendo os mesmos horários que
tiveram sempre. Tudo impessoal. Dormir quando todos dormem, se levantar quando
os outros se levantam. Um exército sem armas e sem força.

Foi nesse semestre, em que eu tinha certeza de que nada de novo iria acontecer,
que, em certa noite, dormíamos, quando uma voz cheia de medo e susto nos acordou a
todas: “Um homem”, gritou alguém. As religiosas da vigilância se fizeram atentas.
Alunas se levantaram sem saber por que, enquanto outras se tornaram imóveis, e do
outro dormitório outra voz disse: “Aqui também há um homem”. Não chegavam a ser
exatamente homens: ainda muito novos, eram quatro rapazes que esperaram o
adormecer das moças e invadiram-lhes o dormitório. Um deles, na corrida, caiu de
uma escada e só por isso foi possível que se soubesse quem eram eles e a que foram
naquele reduto feminino e supostamente virginal. Os invasores estavam chefiados e
instruídos pelo filho do vizinho do colégio. Pai e filho odiavam a instituição, não
pelas mangas e laranjas que às escondidas, nós, as alunas, apanhamos de seu quintal.
Odiavam o colégio que havia proposto uma ação que se arrastava há anos e com a
qual pretendiam fazer voltar ao colégio uma pequena parte do terreno que teria sido
ocupado pelo vizinho. O advogado já havia comunicado às freiras que os juizes
disseram que a razão estava com elas. A invasão dos moços não tinha outra razão a
não ser a de causar tumulto.

Mas, no outro dia, um homem sério no porte e nas roupas, e provavelmente no


agir, procurou o colégio e falou com a Madre Superiora: “O rapaz que invadiu o
colégio é meu filho e os demais são apenas seus amigos, por cujo comportamento
assumo a responsabilidade, como de meu dever. Queria me desculpar diante das
senhoras e das moças e espero que todas saibam, de forma alguma eu me insurgiria
contra uma ordem judicial e menos ainda, jamais eu o faria de modo tão
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irresponsável, como fez meu filho. É preciso ser pai para compreender que os nossos
filhos nem sempre são como desejamos que sejam. A freira respondeu: “Não se
preocupe, senhor. Nós, educadoras, sabemos disso”. E o homem, bem vestido, sério e
de roupas elegantes, abaixou a cabeça e se foi.

E só à noite, quando deveríamos nos dirigir à sala de estudos, nos foi dada a
ordem para irmos ao grande auditório porque a Madre Superiora nos iria falar. A
Madre Superiora: silêncio e expectativa. Ela apareceu: alta, solene e não segurava as
contas do rosário. De cima do palco, tendo nas mãos um aparelho desconhecido de
todas as alunas, falou com voz clara, entonação de rainha: “Meninas, o colégio não
pôde evitar o transtorno por que passamos ontem. Um homem entrou no dormitório
de vocês, profanando a nossa casa. Nada de mais grave aconteceu, mas há coisas que,
se faladas, tomam uma dimensão muito maior do que a real. Estou aqui para pedir a
vocês que guardem segredo do episódio de ontem. O colégio e vocês correrão menos
riscos se o fato for mantido em sigilo. Ponho-me agora à disposição de vocês para
quaisquer perguntas e quando saírem daqui não falem mais a respeito do que se
passou. Alguma pergunta?”
Uma das alunas se levantou. Esperamos, as outras, a sua pergunta, que nos era
inesperada ante a clareza do que havia sido falado. Era Sabina, ninguém sabia se
ingênua ou maliciosa: “Madre, eu queria saber o nome do aparelho que a senhora tem
nas mãos, com ele pudemos ouvi-la muito bem.”

A madre respondeu, solene como sempre: “O aparelho se chama microfone, e a


pergunta não tem sentido diante da seriedade do assunto de que tratamos. “

Não houve mais perguntas, a madre se retirou e depois cada irmã vigilante da
noite ordenava que saíssemos, os grupos divididos de acordo com o dormitório
ocupado.

No dia seguinte, e em muitos outros que vieram depois, nenhum outro assunto
foi tão falado no colégio: com censuras ou com elogios, o filho do vizinho se
imortalizou no internato. O vizinho não importava, nem mesmo as razões do pai ou
filho. O fato ganhava coloridos irreais e era com o irreal que nos divertíamos todas.

Veio depois um período de calmaria: estudávamos, brincávamos, íamos à


capela. Tudo sempre no mesmo horário, tudo igual, até as falas, um eterno ritual no
qual nada se pode mudar. Mas não poderia demorar muito.

Foi então que soube: numa das igrejas da cidade, o Menino Jesus chorava no
altar e, do teto da igreja, pedras eram jogadas atingindo passantes impiedosos.
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Falou-se muito do assunto e as próprias religiosas entenderam de seu dever


levar todas as alunas até onde o milagre acontecia. As internas, assim em grupo nas
ruas da cidade, não seriam menos do que um milagre. Sem que o percebessem as
religiosas, e da forma como nos era possível, tentamos todas nos tornar, se não mais
bonitas, pelo menos menos feias, porque talvez, enquanto o Menino Jesus estivesse
chorando, algum moço da cidade nos pudesse sorrir.

E fomos à igreja, e houve uma parte do grupo que se tornou atenta às lágrimas
do Menino Jesus, e ao chegarmos ao colégio uma das madres comentou: “Não
recebemos pedras; é que Deus está ciente de que, se não somos devidamente boas e
puras, pelo menos nos esforçamos para isso.”

Falei do assunto à Irmã Benigna, que já me tinha como razoavelmente adulta


em meus treze anos, e ela me disse: “Milagres não acontecem assim tão facilmente. É
preciso até mesmo saber se eles efetivamente acontecem. Milagre pode ser o que a
ciência ainda não explicou.”

A cidade, nos contaram as externas, havia se enchido de pessoas ricas e pobres,


vindas especialmente para presenciar o milagre, e se comentava com incredulidade o
fato de um dos padres da paróquia privilegiada por Deus haver convocado cientistas
de uma cidade grande para examinar o fenômeno.

E especialistas imparciais chegaram à cidade: mediram, examinaram, anotaram,


falaram com os padres e voltaram para a cidade grande.

A polícia prendeu o dono de um hotel que ficava ao lado da igreja, de cujo teto
tiraram um menino. É que, por ordem do pai, o menino se acomodava entre as
madeiras e telhas e jogava pedra nos passantes. Na igreja, o Menino Jesus, marcado
de clara de ovo, fazia o espetáculo do milagre que serviu aos mais variados interesses.

Terminava mais um semestre. Os meus dias invariáveis, vendo acontecer a vida


dos outros, a minha caminhando em passos previsíveis.

Foi quando se anunciou, à noite, depois do jantar, que não iríamos para a sala
de estudos. Seríamos reunidas todas no grande auditório para ouvir a Madre
Superiora. Ficamos ansiosas, a Madre Superiora só nos falava em grandes ocasiões.
Assentadas no salão do auditório, éramos o próprio silêncio.

Ela chegou. Não segurava as contas do rosário e estava tranqüila, mas o seu
rosto era triste e não tinha a imponência de outros dias. Parecia mais próxima de nós,
como se fosse uma pessoa. Antes, não havia sido mais do que máquina de falar.
51

Disse, solene como sempre fora: “Minhas queridas alunas, faz mais de um mês,
tomamos uma decisão que afeta os seus interesses. Tentamos adiá-la até quando
nossas forças nos permitiram. Depois de tomá-la, ainda esperamos o possível para
comunicar-lhes, o que faremos agora, por entender que providências a serem tomadas
por seus pais exigem que essa informação lhes chegue em tempo. Sabemos que
internatos apresentam inconveniências para a educação de jovens, mas nesse
momento ainda representam uma solução para os pais que não podem, pelos mais
variados motivos, ter com eles seus filhos para melhorar-lhes a escolaridade. Foi por
isso que este internato sobreviveu até hoje. No entanto, sabem vocês, temos passado
momentos dolorosamente difíceis e não encontramos outra alternativa senão fechá-lo.

Desta forma, as alunas que não puderem estudar aqui em regime de externato,
em casa de parentes ou de amigos, deverão se transferir para outro colégio que,
desejamos sinceramente, possa oferecer a vocês a melhor das formações moral e
intelectual. Coloco-me à disposição de todas e de seus pais, a quem, por carta,
encaminhamos essa informação, para quaisquer esclarecimentos. Boa noite”.

Não disse mais nada. Abaixou a cabeça e deixou o auditório. Estávamos todas
atordoadas e não podíamos falar. Era horário de silêncio. E nos encaminharam para o
dormitório. Devíamos dormir até as cinco horas da manhã.
No dia seguinte, falei com Irmã Benigna, e ela me disse que esperava me ver
outras vezes. Se isso não acontecesse, ela sempre pediria a Deus que nunca me
deixasse só, porque está só é estar desamparado. De novo minha vida sofreria
mudanças, e pessoas até então presentes, se perderiam no passado sem volta.
52

Capítulo 7

O semestre havia sido tempo suficiente para que minhas irmãs crescessem e se
tornassem diferentes do que haviam sido. Naquela cidade de pessoas escuras e de
cabelos negros, os cabelos loiros de Mira eram o símbolo da beleza, e era por isso que
todas nós parecíamos feias aos outros e a nós mesmas. Mira sabia disso, o que a fazia
menos feliz, porque, sendo bonita, julgava que o mundo devia fazer-lhe vênia, e a
qualquer obstáculo se considerava injustiçada. Meu pai a admirava e temia, mas isso
não era suficiente para que ele lhe permitisse sair à rua, participar da vida daquelas
pessoas que o tinham como superior a elas. Meu pai acreditava nessa sua
superioridade e dela uma parcela era distribuída a todas nós. Apesar disso, eu me
havia descoberto igual a todo mudo. Sara queria sair à rua e, impedida, se revoltava
contra meu pai e contra todos.

Minha mãe, de poucas palavras, mostrava-nos quanto lhe eram incômodos os


filhos, e eu tinha medo de aumentar os desequilíbrios daquela casa e me fazia como a
pessoa que cada um queria que eu fosse. Anulava-me. Sofia brincava com suas
bonecas, fazendo-lhes roupas. Era habilidosa e quase imperceptível entre nós. Otávio
não aparecera nos primeiros dias, e quando chegou, um certo dia foi amável comigo e
até me falou que o mar era imenso, com muita água verde e que sua escola era um
prédio grande e ele e muitos rapazes aprendiam a fazer navios. Fiquei tão encantada
com o que ele me disse, e com as várias fotografias que ele me mostrou de moços
como ele, bonitos, fortes e tostados de sol.

Foi bom depois desse dia. Quando Otávio não estava na rua, conversava
comigo e muitas vezes me pedia pequenos favores, como lavar-lhe alguma roupa ou
engraxar-lhe os sapatos, coisas que as empregadas só faziam em horários certos.
Minha mãe não gostava que Otávio ou qualquer de nós fosse incômodo às
empregadas, porque, dizia, se uma delas se demitisse seria para ela que os trabalhos
ficariam, quando não estivéssemos lá. Isabel era pequena e, penso, muitas vezes ela
me sentia como se eu fosse sua mãe e quando ficava doente era a mm que recorria.

Foi então que eu aprendi a gastar as minhas férias em pequenos serviços


domésticos, estar com meu irmão e minhas irmãs menores, e na leitura de alguns
livros usados que havia na casa, não sei se como enfeites ou como informação aos
raros visitantes de que ali moravam pessoas habituadas à leitura.

No colégio, eu nem percebia que estava impedida de ir à rua porque lá nossos


horários eram bem preenchidos e, no meio de muitas colegas, havia sempre alguém
com quem se podia falar. Em casa, não tínhamos obrigações, o tempo se esquecia de
53

passar e o calor se tornava mais intenso, o sol nos permitindo ver a solidão. Nossa
casa, mesmo nos dias mais claros, era sombria, no ar alguma coisa não bem entendida
porque nunca falada.

Foi porsso que, numa das minhas tardes com minha avó, fiz-lhe esta pergunta:
“O que há de errado com meus pais?”

Minha avó, que com o tempo havia adquirido alguma coisa dos modos de meu
avô, respondeu-me e eu senti que ela dizia a verdade: “Nunca se pode querer alguma
coisa pela metade. Sua mãe quis se casar com seu pai porque ele era trabalhador e
ambicioso, mas não o queria porque ele é rígido nos seus costumes e prepotente nas
suas ordens. Seu pai se casou com sua mãe porque ela era alegre e sociável, mas não
queria que ela gostasse de festas e luxos. Nenhum deles mentiu ao outro, mas nenhum
deles também se modificou em nenhum de seus hábitos, Estarão sempre em choque e
não se separarão nunca, porque antes deles ninguém da família se desquitou e, como
na maioria das famílias, eles também pensam que devem repetir o que fizeram
aqueles que vieram antes. Não têm força bastante para se separar, nem
desprendimento suficiente para anular nada de si mesmos. Toda convivência exige
um pouco a morte de cada um, muitas vezes a morte inteira de um deles”.

Minha avó encontrou esta visão das coisas naturalmente em algum sofrimento,
sedimentado no fundo de sua alma, já imobilizada e tranqüila.

Minha avó não sentia pena de minha mãe e nem de meu pai. Mesmo sabendo
de seu casamento enfadonho, ela havia aprendido que a vida de todo mundo tem
sempre alguma coisa que a torna triste ou inútil. Minha mãe falava às vezes com meu
pai, mas isso não era freqüente. Não se odiavam, se temiam. Talvez até se amassem:
muitas coisas costumam se chamar amor.

Nessas férias, seguindo o que havia falado minha avó, verifiquei que meu pai
continuava progredindo. Progredir para ele tinha o sentido de ganhar dinheiro, e foi
quando comecei a perceber que, para mim, progredir era sinônimo de aprender. Meu
pai entendia isso e não tardou a me ocupar muitas vezes para escrever suas cartas
comerciais.

Nesse tempo, ele passou a falar mais comigo e a me dizer que Otávio era
desobediente e que não seria ao filho que ele entregaria os seus negócios quando
tivesse tanto dinheiro que pudesse descansar. Dizia-me: “Otávio não é confiável. Os
homens sentem necessidade de ser espertos e, se meus negócios forem entregues a
ele, tenho certeza de que vocês, as mulheres, serão prejudicadas”.
54

Ouvindo meu pai, eu pensava: “ Otávio me parece bom, talvez mais do que
meu pai. O problema é que eles não pensam do mesmo modo. Para meu pai, quem
pensasse diferente do que ele pensava, pensava errado. Meu pai era um homem de
números, não de palavras. No entanto, ele me escolheu para sua confiança porque me
achava dócil e facilmente moldável”.

Senti pena de meus pais, no seu isolamento. E de novo naquelas férias, em que
estando na cidade éramos ausentes de tudo, voltei a falar com minha avó, que me
parecia sábia, tecendo seus crochês, assentada sempre na mesma cadeira, imóvel, o
mundo vindo até ela.

Minha avó me disse que eu era muito jovem para querer entender as pessoas e
disse mesmo que o esforço é sempre inútil quando se procura entender alguém. “As
pessoas que entendemos são aquelas que não precisamos procurar entender”.

E disse mais: “Todas as famílias têm um segredo, alguma coisa não falada, que
as faz parecer diferentes das outras, mesmo que todas sejam iguais, ou que as
diferenças não estejam no essencial”.

Então, perguntei à minha avó se ela me contaria o segredo da família que havia
sido dela, antes de ela se casar. E ela me disse que sim, e, antes que eu lhe
perguntasse, respondeu: “Tínhamos uma família honrada, que todos sabiam ser tão
correta que, mais, seria impossível. Porque a todos que não eram da família não
deixávamos saber o que para nós era desonra. Mas é até bom que você saiba, porque
isso lhe fará ter mais os pés firmes na sua verdade e tirar de seu caminho o mal que
lhe deram de herança.”

E então, ainda naquele dia, minha avó me contou: “Nossos antepassados vieram
a este país e pelo simples fato de aqui estarem tiveram dinheiro suficiente para ser
senhores de escravos. E era hábito entre eles aos domingos se divertirem estuprando
escravas ou colocando escravos a correr enquanto praticavam tiro ao alvo. Houve até
muitos deles que, ao fazerem isso com os negrinhos, mantinham amarradas suas
mães, para que estas se afligissem e fosse emocionante ver-lhes o rosto contraído de
medo, ódio e ansiedade. Uma vez, uma escrava de belos dentes brancos resistiu a um
de meus tios, e ele, que a queria dócil e não estuprada, odiou-a por isso e mandou
arrancar-lhe todos os dentes, sem qualquer anestésico, na presença dos outros
escravos. E então, um dos escravos, negro forte e jovem, matou o meu tio. Meu avô,
envergonhado, não teve coragem de condenar o negro à morte, como naqueles tempos
era permitido. Mudamos, então, para essa cidade, onde ninguém, por não o saber,
nunca pôde contar essa história”.
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Ficamos as duas em silêncio, e depois ela me disse: “Quando você for adulta, já
alguma coisa terá acontecido em sua família, obrigando-a a um segredo. Não é
previsão, é a história”.

Naquela noite, o sono não me veio e eu pensei em minhas irmãs e em meu


irmão e me perguntei por qual de nós teríamos de guardar um segredo.

Então, de medo, pensei que minha avó também era uma pessoa, e como pessoa
talvez ela estivesse errada.

O sombrio tempo de férias passava e meu pai não me falava do novo internato
para onde eu devia ir. Mas eu já não me sentia impedida de lhe fazer perguntas e ele
então me disse que, assim, na urgência do tempo, não havia outra solução a não ser
que eu estudasse num colégio mais simples, porque também, afinal, não seria por
muito tempo e ao terminar o ginásio, seria eu levada para uma cidade grande onde,
como Mira, eu pudesse me preparar para estudar Medicina.

Por que eu haveria de estudar Medicina, isso eu não perguntei, minha coragem
não era tanta, e eu já havia começado a entender que até as perguntas têm uma hora
certa para que sejam feitas.

Minha mãe, rápida, se assentou à máquina de costura e me fez um enxoval, sem


rendas e sem bordados. Os cortes também não precisavam ser bem feitos, porque no
colégio a vaidade era pecado e todo o feminino era punido.

E eu me esforçava para que aquelas idéias não se misturassem em minha


cabeça, pois que eu queria que ao menos os meus pensamentos fossem meus,
percebendo bem cedo que a liberdade não existe e que a identidade é mentira. E como
ser feliz, se não se consegue ao menos ser, se na verdade somos a soma atrapalhada
daqueles que foram antes de nós?

E ia eu de novo para o internato, ele, meu pai, e eu, mudando todos nós a cada
instante.
O novo colégio ficava numa cidade de casas antigas, uma cidade cheia de
tradições e era preciso que fizéssemos de conta que parecíamos todos com aqueles
que antes fizeram a glória da cidade. Logo à chegada, éramos informadas disso e
todas as palavras repetiam a história.

No entanto, o colégio era diferente do outro. Era por isso que todas as tardes as
religiosas nos levavam a passeio e havia até incentivo para que tivéssemos
namoradinhos, filhos dos grandes da cidade, porque o colégio dependia do município
56

. Não se falava dessas coisas, porque não eram coisas de se falar, mas percebia-se o
pacto entre mestras e alunas, tudo tão da conveniência de nós todas.

Neste colégio, o destaque não ficava com as meninas mais ricas: prestigiavam-
se as mais bonitas. Não só as meninas, mas também as coisas, tudo devia ser bonito,
porque a beleza se via logo e haviam percebido as religiosas que o presente é mais
importante do que o futuro. Assim pensavam elas, e a respeito eu ainda não havia tido
tempo para pensar.

O colégio não me permitiu ter aulas de dança, e a madre me explicou as suas


razões: o colégio não tinha interesse nisso porque suas alunas não seriam bailarinas , e
na mulher, a arte só tem sentido quando a faz uma esposa capaz de se mostrar bem em
sociedade. Seria melhor que eu estudasse piano. Isso não me agradava, e então me pus
apenas sobre os livros, sabendo que ali, naquele colégio, tudo seria mais distante para
mim. Respirava-se ali uma alegria sem razões palpáveis.

O novo colégio ficava numa cidade de antigos casarões, onde se falava muito
de antepassados e nomes de família. Faltava-me ali esse nome, porque naquele lugar
nada se sabia a respeito de meus antepassados. E se tinham eles alguma importância,
essa eles a foram perdendo com o tempo, descansados que estiveram nos feitos dos
mais velhos. Decididamente, eu estava consciente de que minha família não
apresentava nenhum sinal que a fizesse mais valiosa do que a generalidade das
pessoas comuns.

Falando em nomes de família, valorizando o que haviam feito os antepassados,


no entanto comportavam-se as freiras e alunas de modo a romper com todas as
tradições. Todas as tardes, terminadas as aulas, nos era dado um horário para nos
vestir, pentear os cabelos e até mesmo colorir, ainda que ligeiramente, os rostos, já
que sairíamos a passeio. Íamos à praça, onde passeavam os moços da cidade, com
quem tínhamos tacitamente encontro marcado. Os rapazes falavam com as religiosas
e com elas conseguiam o direito de falar com as alunas. Namoros ligeiros eram
permitidos e isso quase sempre dava origem a atritos entre nós, as alunas, quando
pretendíamos o mesmo parceiro. Tais atritos não eram tão sérios que

não os fizessem bastante divertidos para aquelas que neles não estivessem
envolvidas. Isso fazia com que os horários de recreio nos oferecessem a cada dia um
assunto diferente.

Percebi que algumas alunas se ligavam a religiosas, ou até mesmo a outras


alunas, de um modo carinhosamente possessivo. Aprendi uma palavra e uma
realidade que me era estranha: homossexualismo. E vi que essa realidade ali era
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simples, igual a todas as outras, sem merecer elogios ou censuras. No meio de tantas
novidades, aprendi o respeito à sexualidade do outro.

Esse colégio, onde o estudo não era valorizado, porque diziam que o saber é
inconveniente às mulheres, era indiferente ao fato de termos ou não termos religião,
nem mesmo a missa aos domingos era obrigatória, e por isso poucas vezes fui à
capela do colégio. E ali estavam imagens religiosas de um barroco puro que a Irmã
Benigna me havia ensinado a apreciar. Nesse colégio nunca ouvi sequer referência às
obras de arte que ali se guardavam.

A única aluna que freqüentava regularmente a capela chamava-se Aparecida.


Eu não tinha muito contato com ela, porque de resto ninguém o tinha, cansadas que
éramos de sua excessiva religiosidade.

Aparecida se destacava de todas as alunas. Censurava as religiosas que nos


levavam aos passeios na praça e até mesmo nos deixavam falar com os rapazes da
cidade, coisa inocente e excitante, pública, na presença de todos, namoricos
românticos, onde a fala era o único meio de comunicação. Soube-se mesmo que
Aparecida havia procurado uma das religiosas para falar da excessiva vaidade de
Helenice, a quem ela vira depilando as pernas e pintando as unhas. E a religiosa
apenas respondeu que nas mulheres a vaidade deve ser considerada normal e que
depilar pernas é muito higiênico. Aparecida se desapontou e aos poucos era só
naquele imenso colégio.

Muitas vezes, durante a semana, não havia missas no colégio, e as religiosas


não se preocupavam com isso. No entanto, Aparecida, tão contrita, pediu à Madre
Superiora que a autorizasse, nessas oportunidades, a freqüentar a pequena igreja ao
lado do colégio, onde o padre - dizia ela - era seu orientador espiritual. Concedeu-se-
lhe essa ordem como quase qualquer outra, porque essa congregação responsável
pelo internato era livre de muitas proibições.

Aparecida ia sempre à igreja diariamente, e um dia foi e não voltou.


O colégio se preocupou inteiro. Não havia muita possibilidade de acidentes: a
cidade tranqüila, sem transtornos de muitos automóveis e com povo pacífico e amigo.
Fizeram-se buscas, e um silêncio sem perguntas abalou o internato e a cidade, quando
se soube que também o padre, orientador espiritual da aluna, não havia voltado para a
casa onde morava com muitos outros que atendiam a paróquias e hospitais da cidade.

Soube-se depois. O jovem padre apareceu sozinho na cidade onde moravam os


pais de Aparecida. Comunicou-lhes o casamento, que seria em cartório, e perguntou-
lhes se o novo casal seria aceito na família, tendo em vista que uma criança era
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esperada. O pai de Aparecida teria ficado muito irritado, mas depois a mãe ponderou:
“Não há mais o que fazer, se falarmos muito a população se sentirá no direito de falar
ainda mais que nós. Se nos silenciarmos, os outros também se silenciarão”. O pai
achou sábios os pensamentos da mulher. As religiosas procederam da mesma forma, e
nós, alunas, tivemos com que preencher o tempo que não gastávamos estudando.
Falamos tudo que nos permitiu falar a raiva ou inveja que tínhamos da colega que se
casara com o padre.

O semestre terminava. Naquele colégio, não se temia reprovação, e o estudar


era secundário. Diziam mesmo as religiosas que mulheres não deviam saber mais do
que o necessário para serem boas donas-de-casa e boas mães, alegres e capazes de
organizar festas.

Falei dessas coisas a meu pai ainda mesmo em minha viagem de retorno à casa.
Ele me falou da impossibilidade de uma transferência para outro internato no meio do
ano e de minha ida para um bom colégio tão logo fosse possível. Mira já havia feito o
concurso para a faculdade de Medicina e ele achava de conveniência que eu estudasse
no colégio onde ela estivera, como garantia de que também eu seria médica.

A profissão me desagradava, porque era óbvia a minha falta de habilidade para


ela. Não lhe falei disso, mas nestas férias, eu agora já mocinha, muitas vezes
conversava com o Dr. Ulisses, o médico que continuava freqüentando nossa casa
para o café da tarde e as noites musicais. Dr. Ulisses me falava de literatura e quando
lhe disse que eu não queria ser médica, concordou comigo, dizendo: “Você é muito
introvertida. A Medicina poderá lhe fazer muito infeliz, e os médicos têm contato com
as doenças do corpo e da mente; eles descobrem o ser humano numa profundidade
que é às vezes destruidora para as pessoas sensíveis.” Sem que eu lhe perguntasse,
havia ficado sabendo da sua opinião, pela qual, eu tinha certeza, meu pai tinha muito
respeito. Isso me seria útil.

De minhas férias já nem posso falar, todas tão iguais.


A cidade crescia, mas não de pessoas estranhas. Casas recém-construídas
serviam de moradia apenas aos filhos das famílias da cidade que se casavam.
Ninguém de novo, ao contrário dos colégios, onde a cada semestre meninas e moças
chegam e saem.

Meu pai nos proibia de ir mesmo às suas lojas e, se as quiséssemos conhecer,


ele por vezes nos levaria até elas à noite, quando fechadas para seus clientes. Então,
não havia lugar onde ir. O sol sempre muito quente, era um convite a que ficássemos
nos jardins de nossa casa, mas a repetição dos dias tão iguais me deixava cansada.
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A casa de minha avó na sua simplicidade, era o melhor lugar para esperar que
as férias passassem e era lá que em todas as tardes me eram contadas as histórias que
me marcaram para sempre.

Então, naquelas férias perguntei à minha avó se as mulheres de nossa família


costumavam, mesmo eventualmente, substituir seus maridos por outros homens, e ela
me respondeu que não, e me disse: “Isso não é um mérito nem das mulheres nem dos
homens. As mulheres não o fazem porque sempre estiveram sob vigilância extrema de
todo nosso clã. E foi por isso que, quando Aurora se afastou de casa, e naturalmente
teve todos os homens que quis ou que a quiseram, consideraram-na doente e excluída
da família, e o seu nome só era pronunciado em público pelos nossos inimigos. Já os
homens - disse minha avó - esses sempre tiveram amantes e concubinas, e com elas
filhos que se misturavam conosco em nossas casas, nossas mães muitas vezes
educando-os a todos com igual carinho, para não serem repudiadas pelos homens que
as sustentavam e que oficialmente se intitulavam seus maridos.

Quis eu saber, então, da história da família de meu pai, que todos diziam um
filho de estrangeiro, aqui aportado não se sabe por quê. Minha avó me respondeu que
eu era ainda muito nova para saber dessas coisas e que além disso os segredos da
família de meu pai não eram segredos dela, e que, sabendo-os, não os deveria contar
enquanto fosse possível que outros membros de sua família pudessem fazê-lo. Meu
pai estava vivo e se ele quisesse me contaria histórias daqueles que do mesmo sangue
haviam vivido antes.

Mesmo quando minha avó não me contava histórias, era com ela que me
agradava ficar, pois que na casa de meus pais nada se falava que não fosse do
presente, e do presente não queria que me falassem, porque eu o estava vivendo e
percebia-o talvez mais do que os outros.

A política estava naquele tempo mais calma, porque sempre as coisas nos
parecem calmas quando somos nós que determinamos como elas devem ficar. Nesse
período, o governador e o prefeito eram aqueles que meu pai queria que fossem. As
férias foram, então, muito tranqüilas e cada uma de nós voltou ao seu colégio, tudo de
novo como se fazia sempre.

As férias foram tão vazias, que delas não tenho mais o que contar, mas o
colégio, por causa de Aparecida, havia se tornado bem diferente. Soube-se que a
Reverendíssima Superiora da Congregação viera de longe para dizer que fatos iguais
não podiam repetir-se num colégio de religiosas. Freiras foram substituídas por outras
mais severas, os passeios da praça não foram mais permitidos e, se tivéssemos que ir
ao dentista ou ao médico, quem nos levaria seria uma das religiosas recém-chegadas,
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em cujos rostos não se via um sorriso e de cujas bocas nada mais se ouvia a não ser :
“Não faça isso”.

No entanto, quando, a mando de meu pai, comuniquei à disciplinária que


quando voltasse à minha casa queria levar comigo os papéis necessários à minha
transferência, pois meu pai não me queria professora, e que, como minha irmã, eu
devia estudar Medicina, a religiosa se escandalizou mais do que havia se
escandalizado com o amor sacrílego de Aparecida. E, desde então, todos os dias
chamava-me a falar uma freira diferente, para repetir tantas vezes a mesma coisa que
ainda hoje eu sei de cor: Deus criou a mulher para servi-lo, ou nos conventos como
mãe de todos que lhes aparecessem, ou para terem filhos de seus maridos e criá-los
bem. Leão XIII tinha razão: o lugar das mulheres era em casa e elas são tão frágeis
que outros trabalhos não lhes podem ser destinados. Ainda mais o trabalho de médica,
vendo corpos nus, e talvez tendo que ouvir de homens coisas impuras. O corpo é
sempre alguma coisa perigosa que Deus nos deu apenas como casa de nossos
espíritos. Somente os homens, já de si acostumados ao que é mau e ao que é impuro,
podem se dar o trabalho de curar doenças, porque é até possível que doenças e mortes
não sejam mais do que conseqüências do pecado.

Eu dizia simplesmente: “O meu pai quer que eu seja médica”. E, no dia


seguinte, outra religiosa me repetia o que havia sido falado no dia anterior e eu
também lhe respondia a mesma coisa, incapaz, por conveniência, de dizer que eu não
queria ser médica. Mas, na verdade, nem por isso estava de acordo com qualquer das
coisas que elas me diziam a respeito.

Quando as férias chegaram e meu pai me veio buscar, a Madre Superiora


mandou avisar que precisava falar-lhe sobre um assunto que ela reputava muito sério.
Meu pai, preocupado, esperou por ela, e ela lhe falou a respeito do que eu lhe havia
dito sobre as razões por que eu iria sair do colégio. Meu pai ouviu todas as objeções
que a religiosa apresentou em relação aos meus futuros estudos. Independente e
nem sempre preocupado com o recomendado pelo código da boa educação, meu pai
respondeu: “Desde que minhas filhas nasceram, nada me preocupa mais do que o
futuro das mesmas. Ninguém melhor do que eu para determinar como prepará-las
para isso. Não quero minhas filhas dependentes do salário de nenhum homem e muito
menos quero que elas fiquem na companhia de qualquer homem por razões de
subsistência. Dessa forma, nenhuma delas será professora, porque o magistério,
profissão predominantemente feminina, terá sempre profissionais mal pagos e muitas
vezes sem estímulo para fazer bem aquilo que fazem.”

Enquanto eu apanhava minhas coisas para deixar o colégio, a religiosa, que


ficara em silêncio enquanto meu pai falava, veio me dizer que meu pai era mal
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educado, prepotente e que se julgava mais sábio do que todo mundo. Tinha ela
certeza, um dia ele se arrependeria de tudo que pensava e concordaria com o
pensamento que não era delas mas de um papa, representante de Deus na Terra.

Apanhei minhas coisas, beijei como de obrigação as mãos da freira, e fui para
minha casa, pensando que, se meu futuro estivesse ali sendo decidido, não era nem
meu pai e, menos ainda, a freira, que deveria ter o direito de escolher o que melhor
me aprouvesse: era eu. No entanto, nem sequer me fizeram perguntas.
62

Capítulo 8

O novo colégio me surpreendeu, pela sua construção física e pelas idéias. O


prédio era imenso e sólido, de pisos sempre brilhantes e paredes recobertas de
verdadeiras obras de arte, em tapeçarias ou telas, vindas de outros países. Em todas as
falas das religiosas, de congregação estrangeira, havia sempre um pretexto para
impingir no nosso espírito ainda frágil de meninas-moças a idéia de que estudar
naquele colégio nos marcava como pessoas superiores e o mundo se dividia entre
pessoas comuns e nós, as alunas daquele nobre estabelecimento de ensino. Tudo
conferia bem com as idéias de meu pai, mas foi exatamente lá que eu descobri quanto
éramos pobres. A distância que me separava de minhas colegas, filhas de ministros,
de grandes industriais, era indissimulável pela igualdade do uniforme. Soube então
que a suposta riqueza de meu pai estava diretamente relacionada à nossa pobreza de
conhecimentos e ao fato de morarmos numa cidade onde as pessoas, na sua maioria,
não eram pobres, eram miseráveis. Com o tempo, descobri que, antecedendo a
matrícula de qualquer aluna naquele colégio, muitas informações eram colhidas a
respeito de suas famílias: se os pais eram casados no civil e no religioso, se na cidade
onde viviam eram tidos como pessoas importantes, e muitas outras informações que
mais tarde descobri não informavam realmente nada. Havia um lastro de nobreza
maior conferido às alunas que ali haviam estudado desde criancinhas, contrastando
com certa inferioridade conferida àquelas que chegavam transferidas de outros
colégios. Eu era uma transferida, ligeiramente inferior.

Continuei muito estudiosa, pois que. para mim, aprender era sinal de
progresso. Minha religiosidade continuava inferior à da maioria de minhas colegas - e
nas aulas de religião minhas perguntas se tornaram tão incômodas que um dia fui
comunicada de que eu estava dispensada de assistir àquelas aulas. Determinaram que
nos horários da aula eu me apresentasse à biblioteca destinada aos professores. Foi
nesse lugar que eu pude ler em quinze volumes “Os Sermões de Vieira”. Tiveram
pelo menos um mérito: não exigiram de mim apresentar uma fé que eu não tinha.

Neste colégio muitas festas comemoravam fatos importantes na vida da


congregação religiosa a que pertenciam as freiras. Um luxo da corte era mostrado nos
palcos da escola elegante de um país pobre que se procurava ignorar.

E foi numa destas festas que o pai de Evangelina apareceu. Evangelina era uma
aluna estudiosa e de hábitos muito requintados e se apresentava no palco como
excelente harpista. O pai, convidado, viera ouvi-la, como viriam também o
governador e outras autoridades. Evangelina tinha pele clara, cabelos castanhos, o
corpo esguio bem cuidado, o que não impedia que seu pai fosse negro. E a cor da
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pele desse homem foi a única coisa que as madres conseguiram ver e foi por isso que
aquele colégio elitista convidou aquele homem educado e nobre a que se assentasse
na última de todas as cadeiras do auditório. Evangelina deixou o colégio antes que o
semestre terminasse.

Entre as alunas, o fato constituiu escândalo. Para muitas, era triste que a colega
fosse filha de um negro mas, para a maioria, o escândalo estava no fato de que uma
escola que se pretendia nobre fosse tão imoralmente preconceituosa.

Mas ali não eram só os negros os discriminados. De certa forma, éramos todas
as alunas, porque havíamos nascido num país ainda sem lastros de importância.
Desrespeitando a nossa cultura, nossos hábitos eram considerados selvagens e,
veladas ou não, muitas vezes se faziam considerações a respeito.

Certa vez, tudo parecia tranqüilo, porque o colégio nos permitia ter notícia do
que passava além de seus muros, fomos surpreendidas na sala de estudos pela visita
da Madre Superiora, a quem nos dirigíamos como a “Reverenda” e tratávamos como
se fora majestade.
A Reverenda chegou e nos pusemos de pé, como se esperava, e em absoluto
silêncio nos assentamos, comandadas por um gesto de sua mão.

O rosto estava tenso, e mesmo as outras religiosas que a acompanhavam


pareciam sombrias. E sua fala começou enfática: “Estou aqui para fazer-lhes talvez a
mais dramática das comunicações que espero fazer na minha vida. Um sábio
pensador, se não por tudo que disse, falou certa vez que cada povo tem o governo que
merece. Nisso pelo menos sua afirmação foi certa. Estou aqui para dizer-lhes que, a
contragosto, hoje é feriado. Obedeceremos a contra- gosto a ordem do poder. Não
haverá aula. O presidente se matou. Somos um povo que aceitou como líder um
suicida.”

A religiosa se despediu e deixou a sala. A maioria das alunas pensou nas


conseqüências do ato do presidente morto sobre a sua família e a cidade, outras se
deram por muito contentes, porque as provas do dia seriam transferidas e naquela
tarde não teríamos que estudar. Era feriado.

Este colégio, que se orgulhava tanto de si mesmo, foi a primeira escola onde me
mandaram rasgar páginas de livros novos nos quais estudávamos: a professora de
literatura havia determinado que fossem arrancadas as páginas onde estavam escritas
poesias de Gregório de Matos e de Guerra Junqueiro, e a professora de biologia queria
que extirpássemos do livro tudo que dissesse respeito à reprodução humana.
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O direção do colégio não me considerava bem, porque eu era transferida; não


aceitavam bem minhas perguntas na aula de religião e, agora, eu, tão submissa em
casa, não aceitaria estragar meus livros. Na verdade, eu sabia que meu pai estaria de
acordo comigo neste ponto, porque em casa já havia lido Guerra Junqueiro, um dos
poetas preferidos da juventude de meu pai.

Não quis arrancar as páginas dos meus livros. O assunto foi parar junto à
Reverenda. Entre as colegas, algumas me acharam muito rebelde, e outras,
aproveitando outras razões antecedentes, ficaram do meu lado. E, em termos de
acordo, a Reverenda concordou em que eu simplesmente cobrisse com adesivo e
papéis as páginas por elas condenadas. Foi o que aconteceu.

Até mesmo o professor de Química, não sei por que, se referiu a Zola, autor de
“O Germinal”, uma obra inconveniente - disse ele - que moças de família jamais
deveriam ler. Esse livro, foi a custo que pude ler: durante muito tempo não o
encontrava nas livrarias da cidade.

Esse colégio me deixou poucas lembranças em fatos, um deles muito triste: a


morte da mãe de Carmem, uma de minhas colegas mais próximas. A mãe de Carmem
se chamava Ieda, era gentil, e muitas vezes tocava piano nos recitais do colégio.
Morava numa cidade bem próxima de onde estudávamos, e por isso, nas festas do
colégio sempre se dispunha a prestar alguma ajuda de bom gosto.

Dona Ieda tivera um câncer e, durante o tratamento, já magra e abatida,


continuara até quando possível a emprestar sua alegria às festas do colégio. Invejava
aquela mulher pelo seu amor à vida contraditório com sua indiferença à morte
iminente. Quando a mãe morreu, todas as irmãs de Carmem foram para o internato, e
nossa colega, aos dezesseis anos, se transformou em mãe de seus irmãos quase de sua
idade.

O semestre ia pela metade, quando fomos informados de que o colégio havia


preparado nossos documentos para nos inscrevermos no concurso vestibular. Meu pai
devia ter se esquecido disso e não me havia feito nenhuma recomendação. Sem
qualquer informação a ele, inscrevi-me para o curso de Economia. Não tinha muito
interesse no assunto e nem ao menos sabia ao certo o que faz um economista, mas de
qualquer forma estaria mais perto dos assuntos de meu interesse. Poderia ter feito o
curso de Letras, mas, ao que sabia, neste caso eu teria de ser professora. Não era
pelas razões de meu pai que eu não queria o magistério. O contraste entre o
pensamento de meu avô e o do meu pai levou-me, desde cedo, a questionar sobre a
conveniência e o poder de educar, e é apenas por isso que em minha vida nunca
entrei como professora numa sala de aula.
65

Depois de feitas as nossa inscrições, o colégio organizou uma agenda para que
cada uma das alunas que iriam terminar o curso naquele ano tivesse um horário para
falar com a Reverenda a respeito de seus planos. Obedecida a ordem alfabética dos
nomes, fiquei contente de verificar que, antes de falar com a religiosa, eu teria,
através de minhas colegas precedentes, alguma informação a respeito do assunto que
seria tratado.

Ana, uma colega que estava noiva, foi a primeira a ser ouvida e, como a
religiosa não poderia saber que no internato havia uma noiva, Ana falou
mentirosamente sobre seus planos futuros e ouviu recomendações absolutamente
impróprias para a sua realidade. E todas nós pudemos razoavelmente nos preparar
para o que queríamos falar e ouvir.

No andar do alfabeto, chegou o meu dia de falar com a Madre Reverenda, e ela
me disse: “De todas as alunas, é você a que mais me preocupa. Sei, pelo que me
conta, de dois defeitos que lhe atrapalharão a vida. Um deles é o de questionar; o
outro, de dizer a verdade. Há sempre um jogo nas palavras para que o não dito fique
falado e perguntas tornam esse jogo muito aberto, obrigando todos ao que não querem
dizer. Se você não der conta de entender o que lhe falo em palavras, a vida lhe
ensinará, mas a um preço muito alto”. Entendi e discordei. Não fiz perguntas.

Poucos dias depois, deixava eu mais este colégio. Deveria ficar na cidade para
alguns retoques em meus estudos para o concurso vestibular, mas, quando disse a meu
pai que havia me matriculado para fazer o curso de Economia, ouvi dele todos os
impropérios até então só dirigidos a Otávio, e ele entendeu que eu não teria direito de,
às suas expensas, continuar os meus estudos. Eu era menor e ele não me deu licença, e
nem tive coragem de pedir para ficar numa cidade tão maior do que aquela onde eu
nasci e para onde retornava.

A viagem transcorreu em absoluto silêncio. Eu não podia imaginar o que me


aconteceria.

Mira e Otávio já não iam em casa desde algumas férias. Isabel e Sofia estavam
em casa, vindas de seus colégios.

Tão logo cheguei em casa, meu pai determinou a uma das empregadas que me
mandasse fazer, sob vigilância, os serviços mais pesados que normalmente numa casa
são destinados à doméstica. Ele não sabia que, de certa forma, eu já estava habituada
a eles.
66

Na cidade, a morte do presidente dera início a um novo processo eleitoral. Ali,


onde a importância de um presidente não é maior do que a de um monarca
estrangeiro, trazia à nossa casa muitos problemas.

Voltaram os tiros nas ruas, as cartas anônimas, espancamento e morte de


empregados de nossa família, vindos dos chamados adversários. Se as mesmas coisas
aconteciam com pessoas de outro partido, eu não poderia saber, porque não tive a
menor possibilidade de ouvi.

Estando eu naquela situação que se assemelhava a um castigo, minha mãe


recebeu uma carta de Otávio. Falava de sua formatura no final do ano e, comentando
seu sucesso escolar, avisava que já estava empregado numa grande empresa, com
escritório em vários países do mundo.

Meu pai, que até então parecia ter ódio de Otávio, fez dessa carta um troféu,
que foi mostrado a todos os seus amigos. Falava também de Mira que, já estudando
Medicina, haveria de descobrir um remédio para todos os males que afetam a
humanidade. Referia-se carinhosamente a minhas irmãs menores, ainda no início dos
anos colegiais, e não fazia nenhuma referência a mim. Isso pouco me importava,
porque, na verdade, eu não havia, já depois de tanto tempo vivendo em sua casa,
assimilado a idéia de que ele era meu pai. Aquela família me era praticamente
estranha, e meu pai pouco passava de um senhor de escravos.

No entanto, uma tarde o Dr. Ulisses apareceu em nossa casa para o café da
tarde. Encontrou-me com roupas adequadas a uma empregada, fazendo algum
trabalho que em condições normais não teria sido atribuído a uma filha de meu pai.
Perguntou as razões daquilo, e meu pai, com seu modo prepotente, contou-lhe o que
se passava. E o médico, bem mais velho do que meu pai e com a autoridade de sua
competência e integridade moral, foi categórico, acredito, no que eu ouvi:

“Seu autoritarismo sobre as pessoas da cidade, compreendo, porque elas são


livres, podem se afastar do seu jugo, mas sua filha, uma menina, ainda! Sinceramente,
choca-me, tanto que ponho em dúvida como pude me tornar amigo de alguém assim”.

O médico se levantou e, quando ia sair, meu pai o interceptou, tentando se


desculpar, e o médico lhe disse: “Se você não tem dinheiro para pagar os estudos da
menina, se me permite, posso financiá-los”.

Não pude continuar ouvindo o assunto de meu maior interesse, mas o certo é
que naquela mesma tarde meu pai mandou providenciar minha viagem, e no outro dia,
a cinco dias do concurso, eu me encontrava solta numa cidade grande, sem a proteção
67

do internato, sem amigos ou conhecidos, e deveria fazer as provas que em muitas


famílias eram preocupação de todos.

A casa onde fui morar era um pensionato dirigido por freiras, recebia moças e
velhas solteiras. Tínhamos toda a liberdade desfrutada pelas outras moças em suas
casas, com duas restrições apenas. O horário de chegar em casa era o mais tardar oito
horas da noite, e nossas visitas, homens ou mulheres, não poderiam ir além de uma
sala a elas destinadas.

O pensionato admitia como hóspedes moças e velhas solteiras. Em casa nos


misturávamos todas no horário das refeições ou de algum eventual descanso. Mas aos
poucos, quando começamos a nos dar o direito a algum passeio, as mais velhas eram
individualistas e saíam sozinhas. Mas nós, as mais novas, saíamos em grupo. Não
passávamos nunca de um número entre seis e oito ao todo, fora as religiosas que aí
eram apenas três e com quem pouco podíamos falar, pois estavam sempre ocupadas
na cozinha ou na limpeza da casa enorme. Neste pensionato, ficamos por muito
tempo, Helena, Graça e eu, e nos fizemos amigas.

Certa vez apareceu, morando por uns dias no pensionato, uma moça um tanto
estranha, cuja história ela nos contou. E tão estranha que até hoje duvidamos de sua
veracidade. Chamava-se Judith a moça, e disse-nos que em sua cidade ela havia
matado um homem. Descrevia a noite em que, estando em casa com seus pais, eles na
cozinha e ela num quarto no andar superior, o homem havia chegado e ameaçado sua
família. Do segundo andar da casa, ela teria visto o perigo e, usando uma carabina,
com um tiro certeiro matou o estranho. Imediatamente e no escuro da noite teria ele
sido enterrado em sua casa. Verdade ou não, tivemos medo dessa moça e, enquanto
ela estivera no pensionato passamos todas a evitar a sua presença. Fora este fato, o
pensionato foi um dos bons lugares de que me recordo. Aceitávamos bem o horário de
chegada em casa e algum desconforto por que passamos, e as três mais jovens nos
tornamos amigas, eu tendo lucro do convívio com minhas amigas mais alegres e
menos tímidas do que eu.

Graça veio de sua cidade para fazer um curso superior, e já nesse tempo era
noiva. Seus pais não lhe permitiam usar aliança porque o casamento seria retardado
até o término de seus estudos.

Com ou sem alianças, Graça era noiva, fidelidade a toda prova e, bastava que
um homem se aproximasse de nós que, sendo apropriado ou não, ela encaixava nas
suas frases as palavras indicativas “o meu noivo”, e aquele que talvez pensasse em
pretender uma aproximação sentia logo que o terreno já estava tomado. Este noivo,
por nenhuma razão poderia vir até a cidade onde morávamos. Se alguém viesse a
68

saber que ela e o noivo estavam , sem a presença dos pais, numa cidade grande, ela
ficaria definitivamente mal vista entre as famílias de onde vieram.

No entanto, o moço, não se sentindo muito bem, procurou um médico de sua


cidade e foi aconselhado a que, com urgência, procurasse um centro maior para uma
cirurgia de risco. Graça nos convocou, as mais novas, para decidir conosco. Amava o
noivo, queria mais do que tudo se casar com ele e doía-lhe pensar que ele estaria
doente no hospital sem a presença de uma pessoa que se dedicasse a ele mais do que
por razões profissionais. Conversamos. Discutimos possibilidades e riscos. E
decidimos que, sob o maior segredo, Graça ficaria no hospital com o noivo e
mentiríamos todas que a doente, e não o doente, era uma tia queridíssima. Tudo deu
certo, mas durante muito tempo o grande medo esteve presente entre nós, que nunca
mais falamos no assunto.

O fato de eu ter sido aprovada no vestibular não havia feito meu pai se
aproximar novamente de mim. Mandava-me dinheiro através de Mira, e eu prestava
contas aos dois. Mira e eu não morávamos juntas. Ela não o quis. A casa onde ela
morava era uma república de moças de sua escola, e ela não me quis entre elas. Nem
eu o quereria. Minha irmã controlava o quanto de dinheiro poderia me dar, ficava
sempre com a maior parte, seu curso era mais dispendiosos. Além de minha irmã,
meu pai pedia que lhe mandasse todo mês o relatório de minhas despesas, e eu o fazia
com um rigor extremo. Nunca pude me dizer se eu o fazia porque era uma filha
obediente ou rebelde. Esse rigor poderia ser uma forma de dizer a ele que ele era
mais exigente comigo do que com os outros filhos e, se um dia eu me rebelasse
contra ele, a culpa não seria só minha.

O castigo que meu pai me impôs porque eu não havia feito o curso de sua
escolha havia me mostrado a impossibilidade de lhe ser sempre obediente. Não
diminuíra o medo que sentia, mas abalara, e muito, o respeito que ele poderia me
inspirar. De certa forma, exteriormente, isso não se tornava muito claro, porque o
tempo todo o ambiente em que se vivia era profundamente repressor e eu nunca fui
tão ousada a ponto de enfrentar o mundo.

Mas, a partir desse tempo, me dava o prazer, nas tardes de domingo, de ir ao


cinema com minhas amigas ou até mesmo dançar em algum clube de estudantes.
Notei aí que minhas roupas eram inadequadas e que seria bom ter outras melhores.
Ninguém me daria dinheiro para tanto, e mulheres da minha idade e condição não
eram bem vistas no mercado de trabalho. Ofereci meus serviços como professora
particular de francês e inglês, o que foi aceito. Em pouco tempo, o número de minhas
alunas era grande e como esse dinheiro era desconhecido de meu pai, minha liberdade
deu um pouco de colorido à minha juventude cheia de esforços.
69

Ouvimos nas faculdades diferentes a notícia de que um aparelho já existente na


casa de pessoas ricas transmitia a imagem de uma pessoa enquanto ela aparecia numa
tela. Não teríamos, Helena, Graça e eu, acesso a nenhuma dessas casas, mas fomos
informadas de que uma loja da cidade permaneceria aberta no domingo para que um
jogo de futebol pudesse ser visto por quem se interessasse.

Vestidas com roupas de domingo, descemos até o centro da cidade e sob um sol
escaldante, no meio de muitos homens já bem mais velhos do que nós, pudemos ver
esse aparelho, cujo nome nos era estranho e novo. Televisão.

Houve de nossa parte um encantamento. E quando falamos do assunto com as


moradoras mais velhas do nosso pensionato, elas, já escandalizadas por nós que
seríamos mais tarde profissionais de algum trabalho inadequado a mulheres, tiveram a
certeza de que aquele aparelho seria um instrumento desagregador da família.

Quando nós, as mais novas do pensionato, começamos a ir ao cinema, as mais


velhas se posicionaram. Uma aposentada, nos seus quarenta anos de idade e que
passava todos os dias usando sempre o mesmo agasalho, os braços cruzados à frente
do peito como se fosse morrer de frio, qualquer que fosse a temperatura, comentou
que estávamos tendo um comportamento muito censurável e arriscado, porque, além
de nos expormos às imoralidades da tela, ficávamos numa sala escura onde homens
poderiam entrar e até se assentar ao nosso lado. Clara sugeriu que o governo deveria
tomar providências no sentido de que a televisão não entrasse em casas de família,
pois, do contrário, mães e professoras teriam todo o seu trabalho inutilizado por esse
invento desnecessário.

E, não demoraram muitos dias, Eva, uma senhora gorda, alta, de cabelos ruivos,
que vivia de uma pensão deixada pelo pai, comunicou-nos o seu noivado com o
presidente da república. Todos os dias, ela dizia receber cartas amorosíssimas, que
eram lidas em voz alta no horário das refeições.

A história, absolutamente inverossímil, nos trouxe uma grande curiosidade, que


veio a ser esclarecida quando o cônsul de um país estrangeiro veio procurá-la,
munido de uma ordem judicial. Eva tivera os pais mortos na guerra e não se sabia ao
certo como se salvara. Tudo o que ela falava a respeito da própria vida era fantasioso.
Conhecera o presidente pela televisão e a partir de então escrevia cartas para si
mesma como se fosse o presidente apaixonado. Ficamos tristes por ela, que já havia
perdido tantas coisas na vida, e agora perderia outras num hospital psiquiátrico.
Tranqüila, nunca nos incomodava, se dava bem com todo mundo, apenas dizia
mentiras que ela inventava para ocultar uma realidade que não lhe era agradável.
70

Razões começaram a aparecer para que desejássemos mudar de pensionato.


Nesse tempo, fora no horário de aula, estávamos sempre juntas. Clara não ia ao
clube, continuava noiva. Quando chegávamos, contávamos a ela tudo o que havia nos
acontecido naquelas tardes dançantes, românticas e inocentes.

Procurávamos um lugar para morarmos, o que não era muito fácil, quando uma
noite, na hora do jantar, Nadir, uma moça de quarenta anos, velha para os nossos
dezoito anos, bonita, de pele e cabelos sempre bem cuidados, constrangida, nos disse:
“Não sei como contar-lhes uma coisa, penso que muitas me censurarão, mas sou
sozinha, então,” - ela engoliu seco, olhou nossos rostos, e continuou como se temesse
alguma coisa, - “encontrei um homem, honesto, trabalhador e “, - parou e pensou, -
“vou me casar com ele”. Nós, as mais novas, ficamos contentes por ela. As demais
fizeram comentários os mais variados, todas alertando-a sobre os perigos e a
inutilidade de um casamento tão tardio. Nadir se sentiu segura com o que lhe
dissemos e a partir desse dia muitas vezes nos falava do homem com quem se casaria.

Pensávamos em deixar o pensionato apenas porque muitas vezes não podíamos


ir a alguma festa, ou mesmo conferência, se essas terminassem depois das oito horas
da noite. Mas o casamento de Nadir nos trouxe outras razões.

As moradoras do pensionato acirraram uma vigilância sobre nós, não sobre


nossos atos ou comportamentos, que elas desconheciam, mas sobre nossas palavras. O
almoço e o jantar se transformaram em horas de doutrinação, e nós, que passávamos
horas estudando, já não tínhamos disposição para ouvir e nem para contradizer
aquelas idéias que nos pareciam de outro mundo.

Conseguimos um lugar, uma república, onde, com exceção da empregada,


éramos todas universitárias ou recém-formadas em curso superior.
71

Capítulo 9

Decidimos mudar depois de terminadas as provas. Nossos objetos seriam


deixados na chamada República de Moças, enquanto iríamos cada uma de nós para
sua cidade. Não falei disso a meus pais, ou se falei não lhes disse a verdade inteira.

Em casa, encontrei de novo meus irmãos menores. Isabel, o olhar amedrontado,


era mocinha de seus quatorze anos que, por medo de meus pais, escondia sua
adolescência e ainda brincava de boneca. Sofia, menor e sempre mais acariciada, era o
único sinal de espontaneidade naquela casa, onde se tinha a certeza de que as atitudes
por si só nada diziam.

Sempre que possível, eu aproveitava a presença do Dr. Ulisses, com quem


podia falar e sobre tudo mostrar-me grata pela sua intervenção em minha vida.

Nesse tempo, aproximei-me um pouco de minha mãe, que me parecia mais


acessível e sem muitos medos, de vez que minha família havia sido vitoriosa
coincidentemente em todas as eleições.

O presidente da República, muitas vezes criticado por professores de minha


escola, fazia a alegria incontestável do povo simples da minha cidade.

Nossos adversários políticos estavam silenciosos. Ninguém fazia ameaça,


porque as eleições eram recentes, e, contentes ou não, teriam de suportar por quatro
anos aqueles homens que a maioria inconsciente havia eleito, a mando de outros
muitos inconscientes e em proveito de uns poucos que, sempre diziam, lutariam pelo
interesse de todos. Meu pai andava, contudo, muito preocupado, e percebi que ele
vivia algum problema que ultrapassava os limites de nossa casa.

De toda forma, eu não teria condições de descobrir o que se passava com ele,
mas via que seu relacionamento com minha mãe estava bem melhor do que antes.
Verdades mesmo, eu poderia falar com minha avó, mas era certo que, a respeito
de meu pai, ela não saberia coisa alguma
.
E foi na casa de minha avó que pela primeira vez verbalizei o que de novo
encontrei na minha Faculdade. Ela não havia imaginado a possibilidade de moças e
rapazes estudando na mesma escola, e muito pouco havia ouvido falar do que se
poderia estudar numa escola de onde não sairiam professores, médicos ou advogados.

E eu disse: “Sobre certos aspectos, minha escola não difere do colégio: alunos
72

que devem estudar, professores que devem ensinar. A maioria cumpre sua função.
Alguns, nem tanto. Onde houver ser humano, hoje percebo, nada tem sentido
absoluto. Os moços da faculdade são sempre bons amigos, mas ainda não os conheço
bem. Suas vozes, mais do que suas atitudes, me surpreendem. Até então, nas minhas
escolas só havia escutado vozes femininas e por isso ouvir me surpreende tanto que às
vezes tenho medo de falar. Por isso, na verdade,, só tenho entre meus colegas uma
nova amiga, a Silvia, porque é muito alegre e com quem os moços conversam. Eles
são bem educados e às vezes falam também comigo. Com o tempo aprenderei a lidar
com eles.”

Minha avó queria saber mais e me perguntou se se aprendia muito numa escola
onde os alunos já tinham idade para se casar e em que escola haviam estudado aqueles
que sabiam tanto que poderiam ensinar aos adultos.

Respondi-lhe as perguntas e vi que seu interesse e entusiasmo pelo assunto era


maior do que o meu, ela, cujo grau de escolaridade não ia além de três rápidos anos
que a prepararam para lecionar em escolas rurais e, apesar disso, por razões de brigas
políticas, não encontrara numa cidade analfabeta uma escola onde pudesse ensinar.

Foi a propósito disso que lhe perguntei por que ela não tivera interesse de
ensinar algumas coisas a meu avô.

Agora minha avó e eu, adultas, conversávamos trocando informações uma com
a outra, e foram interessantes as razões que ela me deu em resposta à minha pergunta:
“Seu avô era um homem de muito saber. É que às vezes o saber do outro corre por
caminhos tão diferentes dos nossos que pensamos que não é saber. E, além do mais,
não importa tanto o que se sabe, importa o que se fará com o que se sabe. Nunca me
interessei que seu avô aprendesse coisas de leitura. Não tenho certeza se é maior a
maldade que vem do sangue ou aquela que os homens aprendem na leitura. Meus
irmãos tinham leitura e nem por isso foram menos maus, de uma maldade silenciosa
que os outros nunca tiveram certeza se ela existia. Seu avô sem livros era puro e bom,
e só porque eu não tinha certeza se o mal vem dos livros ou do sangue eu tive
coragem de ter filhos e, mesmo assim, a cada um que nascia sempre me esforçava em
pensamento, para que neles não houvesse mais que o sangue do pai, uma vez que, de
tudo que vier do meu, eu terei sempre medo.”

Desde sempre ouvi minha avó, mas o que ela me dizia agora era surpresa, e eu,
com todo cuidado para não feri-la mais do que ferida já estivera, lhe fiz muitas
perguntas, para que respostas tivesse, sobre aqueles de cuja corrente eu não podia
deixar de ser um elo.
73

E nesse dia fiquei sabendo. Nunca se disse ao certo quem havia matado e aos
poucos tomado todos os bens que foram do pai de meus avós, porque há coisas de que
não se falam, mas era quase certo que os assassinos do meu bisavô eram os irmãos da
minha avó. E assim também, sem que ninguém tivesse certeza, um acidente matou a
irmã de minha avó, boa nadadora que se afogou num rio, na casa de seus irmãos, no
dia seguinte em que, no mesmo rio, seus pés tocaram numa pedra que, levada à mão,
era muito bonita e seus irmãos souberam que era um diamante. Calou-se tudo que se
podia sobre esse afogamento e sem palavras os irmãos se tornaram distantes um do
outro, mantendo como convinha a aparência de uma união que não existia. E essa
aparência era tão sólida que nem mesmo quando Antônio morreu sem que nenhum de
nós tentasse tirá-lo de sua loucura, ninguém teve coragem de dizer que não estávamos
nós interessados em ajudar um irmão enlouquecido.

De segredos vive muitas vezes a honra das famílias, e isso é tão sério que se
transformou em norma entre aqueles que se pretendem pessoas educadas.

Naquele dia, quando voltei à casa de meus pais, eu me perguntava os muitos


segredos que eu haveria de guardar à medida que de minha casa novas famílias
nascessem e me assustava a hipótese de um dia eu ter um filho.

Neste ano descobri que meu pai, tão consciente de seus conhecimentos que se
julgava no direito de dirigir com mão pesadas a vida de todas as pessoas de nossa
casa, era de muito pouco conhecimento, quando ele me chamou para dirigir o
balanço de suas empresas, porque eu já havia cursado o primeiro ano numa faculdade
de Economia.

Meu primeiro semestre naquela escola, no meu entender, havia sido muito
produtivo, mas o que eu havia aprendido não se assemelhava sequer com o que,
suponho, meu pai pensava que eu sabia.

Dirigi minhas perguntas ao contador, e o que fiz naquele balanço não foi mais
do que faria uma secretária interessada em que as coisas corressem realmente bem.

O resultado me deixou muito preocupada : o resultado positivo de algumas


lojas estava longe de cobrir o prejuízo de outras. Meu pai já esperava por isso, mas de
maneira alguma imaginava a gravidade da situação.

Minha tarefa mais pesada era informá-lo disso e, ao sabê-lo, a única coisa que
ele me pediu foi que mantivesse segredo a respeito do assunto, do qual nem mesmo
minha mãe devia tomar conhecimento.
74

Minhas férias não passaram disso, já que, mesmo estando na faculdade, meu
pai não me permitia sair a não ser para a casa de minha avó. É certo que eu poderia
desobedecê-lo, mas se o fizesse ouviria naturalmente suas reprimendas, nas palavras
que ele costumava dirigir a Otávio e que além de tudo atingiriam também minha mãe
e até mesmo minhas irmãs.

Neste ano, Sofia iria para o colégio. Nenhum dos filhos estaria em casa. As
despesas teriam um grande acréscimo. Meu pai teria mais uma razão para ficar muito
irritado. Então, tudo o que eu poderia fazer era tentar obedecê-lo, até nas ordens não
verbalizadas.

Minha mãe se ocupava de preparar nossas roupas, todas feitas por ela, ainda
não se pensava na hipótese de se usar roupas compradas prontas nas lojas.

Agora, quando à tarde voltava à casa de minha avó, guardava para ela o
segredo a respeito dos negócios de meu pai. Falávamos de novo de sua família, que se
perpetuava nos filhos de minha mãe e haveria de continuar nos meus filhos e nos de
meus irmãos. Perguntei-lhe por suas irmãs, que por vezes apareciam em casa de meus
pais em dias de aniversários, mas com quem eu nunca tivera mais do que palavras de
cortesia. Minha avó me deu a resposta, marcada por suas dolorosas experiências:
“Quando se sabe que seus irmãos, educados na casa de seus pais, são capazes de
matar até mesmo uma de suas irmãs que não teve culpa de encontrar quase dentro de
casa uma pedra de valor, mesmo que suas irmãs sejam as melhores que se conhece,
você nunca fica sabendo se nelas a bondade não é mais do que a impotência para
serem más”.

Minha avó estava se tornando amarga, e eu não podia censurá-la. Tantas vezes
eu estivera em sua casa e em nenhuma delas encontrei meu tio ou minha mãe. A
cidade era pequena, o tempo ali pouco se ocupava e os filhos de minha avó não eram
vistos em sua casa. Disto ela não se queixava.

Dias depois de terminado o balanço, meu pai me chamou em seu escritório e


pela primeira vez manifestou confiança em minha capacidade, diríamos, profissional.
Falou-me que o resultado do balanço havia sido ruim, mas o meu trabalho havia
sido bom. Disse-me de suas esperanças de eu lhe dirigir os negócios e pediu-me que
na minha escola procurasse obter informações de utilidade prática para o problema de
seus negócios.

Meu pai naturalmente começava a perder a confiança em si mesmo; em outros


tempos, tenho certeza de que ele jamais me falaria coisas assim.
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Procurei mostrar-lhe que meus livros não me fariam em tão pouco tempo capaz
de substituir-lhe a experiência.

Mesmo que em meu pensamento eu discordasse do que dissera, naquele


momento era o que poderia ser dito. Começava naquele dia a entender que nem
sempre se diz o que se pensa, precisamos dizer o que é de conveniência.

Tínhamos ao tempo um presidente da República de espírito jovial. Automóveis


começaram a ser fabricados no País. Construía-se uma capital de onde se acreditava
cairiam sobre todos bênçãos que nos fariam eternamente felizes e a (*? cap. 9 p.6).

Estudantes, tínhamos quase todos um mundo pequeno de livros, escolas,


colegas e festas. E foi um grande susto quando uma de nossas colegas comprou um
tecido e, quando voltou de novo na loja para comprar o que lhe havia faltado,
verificou que o preço já não era o mesmo. Não se pensou em quaisquer conseqüências
daquilo que na minha escola já estudávamos teoricamente e que se chamava inflação.
Estávamos todos tão felizes e cheios de esperança e nada nos interessava além de
nossa casa, nossa escola e, sobretudo, o clube onde aos domingos podíamos dançar.

Nem mesmo quando em outra região do País rompeu-se um açude e a água


jorrou sobre casebres, desabrigando milhares de pessoas e, estudantes, fomos todos à
rua pedir remédios, roupas, dinheiro e alimento para o nosso povo sofrido, tivemos
em nosso pensamento a idéia do sofrimento.

Nas praças, estudantes faziam pedidos e eram felizes no seu momento tão
individualista. Ao final do dia, nos reuníamos todos muitas vezes com um inocente
novo amor. Valia a juventude do presidente e principalmente a nossa.

Foi por esse tempo que um dos irmãos de uma colega da república comprou um
automóvel e nos veio convidar a todas da casa para um passeio pela cidade. Fomos
seis, o carro absolutamente lotado, e, no dia seguinte, vizinhos passaram a nos
considerar como moças de hábitos inconvenientes, e que, quando nossos namorados
também pudessem ganhar de seus pais um carro, em nossa casa muitos deles viriam
estacionar. Mesmo se nunca saíssemos sozinhas no carro de um homem, passamos a
ser vistas como incômodas às “pudicas famílias de um bairro conservador”. E isso
não nos importava, porque também dispúnhamos de um título ao tempo valioso:
éramos universitárias.

Jacira, uma de nossas colegas de república, estudante de Odontologia,


namorava há muitos anos um de seus colegas. Pensavam ambos em casamento e em
vista disso devia ela ser apresentada à família do noivo em potencial. Os preparativos
76

foram como se o dia fosse o do casamento, e todos nós pusemos à disposição de nossa
colega colares, brincos e tudo mais que a pudesse fazer uma mulher de sonhos. E não
faltaram mesmo aquelas mais preocupadas com a ocasião, a ensinar-lhe várias normas
de como proceder na ocasião. No entanto, quando uma das tias do suposto noivo
soube que a moça estudava numa faculdade, e, pior do que isso, exerceria a profissão
e não seria odontopediatra, percebeu-se o mal-estar criado entre os presentes.
Definitivamente, não seria um bom casamento para um jovem, e não se passou muito
tempo para que o namoro tivesse fim.

Fora do meio universitário, o ambiente nos era inteiramente hostil. Rompíamos


com uma barreira, nós, que o tempo viria mostrar, éramos ainda conservadoras e até
certo ponto preconceituosas. Fatos desse gênero mostravam um mundo diferente do
que vivíamos na escola e em nossa casa.

Isoladas do bairro, nos tornávamos a cada dia mais independentes. Nossa


liberdade crescia até o limite de nossos curtos pensamentos. Em geral, estudávamos
muito, pensávamos em nosso futuro profissional, mas mesmo isso se colocava num
plano irreal de meninas obedientes a seus pais, moradores a quilômetros de distância.

Aqui não havia o pai. Havia o professor, cujas palavras e idéias não eram
questionadas, e foi assim que chegamos ao término de nossos cursos superiores, no
mesmo ano em que terminaria o mandato de nosso alegre e ousado presidente.

Meu pai me mandava cartas e não me falava de seus negócios, nem de política.
Suas cartas eram normas de vida por escrito, normas que me vinham de uma cidade
ainda mais repressora do que esta em que eu vivia. Selecionadas, eu obedecia quase
todas, descumpria todas que me indicavam o caminho para meus estudos e minha
profissão. Não tinha a menor intenção de deixar que ele interferisse nisto e nem
mesmo pensava em, na cidade pequena, cuidar de seus negócios.

Desde que estivera na Faculdade, aprendi com Otávio e Mira a dizer a meus
pais que passaria férias longe de casa, em razão dos meus estudos. Meu pai, não sei se
acreditando nestas alegações ou se por conveniência, fazia como se acreditasse. Mas
naquele ano uma de suas cartas me levou a entender que minha ida à casa seria
necessária. Meu pai tecia comentários sobre o comportamento de minha irmã, que lhe
comunicara, através de um simples recado, sua ida para um país estrangeiro.
Informações faziam-nos acreditar que minha irmã havia se formado, mas ela não
havia falado nisso, e agora, de repente, comunicava uma viagem da qual também não
se tinha conhecimento anterior. Otávio não fizera questão de nossa presença em sua
formatura, mas toda sua disposição havia sido acertada com a família e, tendo se
casado recentemente, entendeu ser melhor que ele fosse até nós para que lhe
77

conhecêssemos a esposa do que exigir nossa ida a uma cidade distante, onde a viagem
de toda a família seria, se não muito dispendiosas, bastante incômoda. Reuniríamos
em casa, todos, menos Mira, que já há tanto tempo não se fazia contar entre nós.

Uns em dias diferentes dos outros, acertados cada um de acordo com o respeito
às suas conveniências, estávamos em casa em dezembro.

A mulher de Otávio estava despreparada para viver, ainda que por poucos dias,
na cidade onde morávamos. A terra vermelha de uma cidade sem calçamento a
incomodava muito. Horrorizava-se com a simplicidade do lugar, onde, com
freqüência, víamos cavaleiros na rua. E tanto falou disso que em certa hora meu
irmão, mesmo estando apaixonado, lhe disse com certa aspereza que sua admiração
não passava de jogo para nos impressionar, ou se não fora isso era sinal de
ignorância, porque no País havia muitas cidades sem calçamento.

De início, censurando o fato de as irmãs de Otávio estarem procurando


profissões masculinas, envergonhou-se depois vendo que, apesar de tudo, sabíamos
todas nós fazer trabalhos domésticos tão bem quanto receber pessoas de cerimônia, o
que ela comprovou quando à nossa casa chegaram os que movimentariam as eleições
do próximo ano.

Aqueles estranhos que apareciam em nossa casa quando se pensava em eleições


se foram depois de acertarem com meu pai estratégias para o pleito que ocorreria dez
meses depois. Meu pai chamou-me a mim e ao Otávio e nos falou de seus negócios
em decadência. E não eram apenas os negócios. Meu pai estava envelhecido, era
quase outro homem, parecia agora consciente de sua possibilidade de errar. Já não era
tão seguro e não interferiu quando Isabel lhe disse que, a todas as profissões, preferia
ser advogada.

Fizemos os três mais que um balanço comum aos negócios: visitamos e


contabilizamos sua loja de tecidos e armazém, verificamos o movimento comercial
da firma beneficiadora de café e arroz, estivemos em todas as fazendas alheias, onde o
gado bovino e eqüino eram de propriedade do meu pai. Havia um bom patrimônio
mas, quando verificamos a sua dívida em bancos fora da cidade, compreendemos o
envelhecimento estampado no rosto do meu pai. O que nos restava era muito pouco.
Meu pai tinha empregados bons e amigos . Podíamos contar com eles e aos mais
próximos a situação foi comunicada, com o pedido de sigilo absoluto.

As férias terminavam e eu nem sequer havia tido tempo de estar com minha
avó, ainda agora presença mais importante do que qualquer outra em minha cidade
ou em minha casa.
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Fui estar com ela um dia inteiro antes de minha viagem. Estava menos triste.
Mostrou-me sua casa. Pintada de novo. O jardim bonito, e ela forte, parecia mais
jovem, tecia suas rendas, mas não por tanto tempo como antes. Havia compreendido a
ausência já longa de meu avô e agora fazia muitas coisas que eram sempre feitas por
ele. Perdera um pouco da quietude que sempre estivera com ela, mesmo quando eu
era criança. Era jovem nos seus sessenta anos. Parecia feliz, embora, que eu saiba,
não tivesse razões para isso.

Depois de feitos alguns planejamentos para os negócios de meu pai, deixamos


a casa todos nós que nela não éramos permanentes.
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Capítulo 10

Era 1960. Um ano de grandes mudanças.


Na faculdade, escolheríamos um paraninfo; no País, um presidente.
E um professor, isento de política partidária, nos convidou a todos os alunos
para conhecer, numa grande construtora, um novo aparelho que havia chegado, não
fazia muito, mas que facilitaria em muito todos os trabalhos que dependessem de
cálculos. Nem mesmo o professor sabia exatamente todas as excelências daquela
máquina, mas podia prever que junto com a televisão, que modificava costumes,
aquela máquina seria um princípio de revolução nas relações de trabalho e no mundo
dos negócios. O fascínio do professor nos levou a todos para conhecer o novo
aparelho. Eram duas enormes caixas brancas, colocadas numa sala de aquecimento
controlado e que faziam toda a folha de pagamento de uma empresa em uma noite.
Sim, uma noite. Não me lembro por que, preferiam que a máquina trabalhasse depois
do sol posto. Aquela máquina enorme chamava-se computador, e o seu preço era tão
alto que mesmo grandes empresas preferiam alugá-la para não desembolsar num só
aparelho um grande capital.

Algumas das mulheres, mais ousadas ainda, fumavam nas ruas e nos cabelos
lembravam as mulheres de “Arroz Amargo”; o corte conservava o nome “a la
garçon” . Iniciamos com certo orgulho os preparativos para nossa festa de formatura.

Não queria participar, porque sabia dos negócios de meu pai. Ele insistiu, já que
Mira e Otávio nem o consultaram a respeito do assunto. Meus pais vieram à festa e
minhas irmãs estavam aqui.

Minha mãe veio pela primeira vez à cidade que não era a sua. Espantou-se com
a liberdade dos mostruários das lojas que despudoradamente exibiam roupas íntimas
femininas, e não havia imaginado que nenhuma de suas filhas teria coragem de
comprar das mãos de um homem desconhecido peças de roupa que só um marido
deveria ver.

Minha mãe extasiou-se diante da cidade grande, e agora não era para criar
filhos que ela queria mudar de nossa cidade. Ela apenas queria ser feliz, vendo uma
cidade onde o progresso - ela imaginava - tornava a vida tão simples.

No dia seguinte à festa de minha formatura, jantávamos todos num restaurante,


e meu pai, derrotado nas eleições para presidente, com seus negócios em decadência,
me pareceu de uma felicidade sem manchas e falou-me do seu contentamento. Estava
na metade do seu caminho, dizia. A formatura de Otávio não lhe fora tão grata. Mas
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agora Mira e eu éramos independentes e, não demoraria muito tempo, as duas outras.
E ele estava feliz, disse, porque se suas filhas não se casassem estariam livres pelo
menos de uma pobreza humilhante. E, se casadas, não estariam obrigadas a suportar
nenhum marido por um prato de comida.

Meu pai estava feliz, e eu não iria lhe perguntar por que, sendo ele homem, nos
preparava para um casamento com um homem de quem mais tarde quereríamos nos
livrar.

Falei-lhe do meu desejo de permanecer na cidade onde eu estava, mostrei-lhe


que meus conhecimentos de economia eram ainda muito teóricos e que meu trabalho
junto dele não iria alterar o rumo das coisas. Percebi que meus argumentos excediam
aos necessários. Ele já mudara de idéia. Agora concordou comigo, sem dizer muito de
suas razões.

Foram os meus cada um para o seu lugar, e eu estava só numa cidade grande,
tendo nas mãos o peso enorme de um diploma.

O novo presidente tomou posse de seu cargo. Prometia austeridade. Era um


homem feio, de nariz adunco e parecia sempre nervoso consigo e com o resto do
mundo. O presidente tinha um cão e uma esposa. Com o cão ele partilhava a maior
parte do tempo, mas quando falava dizia sempre o nome da esposa.

As oportunidades de trabalho não eram fáceis para ninguém de minha condição.


Ser filha de meu pai na minha cidade era alguma coisa de tão importante que lá, creio,
nem sabiam meu nome. Eu era filha do Homero, a segunda das moças, porque minhas
irmãs eram a primeira, a terceira e a quarta. Aqui, o nome de meu pai não tinha
significado e a maioria de meus colegas era filho de alguém, e para eles o nome de
família abria todas as portas.

Parti à procura de emprego. O mesmo que procuravam meus colegas. Eu era


sempre a preterida.

Meus colegas eram na maioria nascidos na cidade onde haviam estudado.


Tinham família e relacionamentos sociais aqui. Quase todos homens, eu mulher,
tímida, não conhecia ninguém. Fazer um favor para a filha de meu pai não
interessava muito. Nem mesmo os votos que ele pudesse conseguir em eleição
valiam um emprego para a sua filha. E foi por isso que me dirigi aos meus colegas
para pedir-lhes a ajuda de que precisava. Enviava meu currículo às mais diversas
empresas, lia anúncios de jornal e fui a vários escritórios para as necessárias
entrevistas. Um dia, Nicolau, um de meus colegas, de quem eu até havia sido distante
81

nos tempos de escola, foi à minha casa e me falou de um emprego, dentro da


profissão que eu pensava conhecer. Era um emprego ruim, de salário baixo, mas não
tinham restrições a que eu fosse mulher, e perguntou-me se eu me interessaria.
Deveria aceitar. Um emprego me bastava, qualquer detalhe era sem importância.
Apresentei-me na empresa indicada. Era um trabalho muito abrangente, não apenas de
minha área profissional. Aceitaram-me, e eu não cabia em mim de contentamento.

Não havia uma jornada de trabalho estipulada. O caminho por onde eu havia
passado à procura de emprego me dizia que eu teria de me esforçar ao máximo,
tornar-me um elemento de grande conveniência para a empresa e, em razão disso, não
poucas vezes trabalhava um número de horas excessivo.

As moças de minha idade, trabalhando ali em funções mais simples e com


salários mais baixos, olhavam-me com distância, mas sem qualquer animosidade. Os
homens se dirigiam a mim, chamavam-me senhora e doutora, e isso me deixava um
pouco desconcertada: eu me sentia ainda uma criança. Só eu me achava criança,
minha responsabilidade era a de uma profissional.

De toda forma, todos me mantinham afastada do restante do grupo. Não era


comum uma mulher ocupando meu cargo. Mas eu me fazia toda agradecimentos ao
Deus que eu nunca soube exatamente quem era, porque eu tinha um emprego e
ganhava dois salários mínimos. Muitos de meus colegas ganhavam dez salários
mínimos por jornada de trabalho que era exatamente a metade da que eu tinha que
trabalhar.

à medida que eu me esforçava, a empresa exigia mais de mim, e aos poucos eu


percebia que a maioria dos trabalhos que me eram confiados não eram adequados ao
profissional de minha área. Fazia-os bem, porque eram elementares, dado que a
empresa era pequena, e eu dispunha, na república onde morava, de boas amigas
formadas em administração de empresa e contabilidade que me ensinavam durante a
noite o trabalho que eu deveria fazer durante o dia. Encontrava outros problemas na
empresa, pois meu modo de encarar o trabalho e sobretudo as pessoas que
trabalhavam eram muito diferentes de tudo o que poderia imaginar o dono a
empresa.

Não me lembro exatamente quanto tempo fazia que eu era empregada ali,
quando um dia, como muitos, atrasada para o almoço, procurei um pequeno
restaurante onde bancários faziam normalmente uma refeição ligeira. Percebi um
enorme aparelho de rádio sobre o balcão, além do olhar assustado de todos me
anunciando algum acontecimento extraordinário. Não fiz perguntas. Perceberam
minha curiosidade, e alguém, que nem cheguei a identificar, informou-me : “O
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presidente renunciou”.

Estavam assustados apenas, mas seus comentários não envolviam


preocupações maiores. Continuaram a falar: “Esse homem iria dar jeito nesse país”, e
outro “Foi bom que deixasse o governo. Vivia sempre junto do cão e só fazia leis
sem qualquer importância: onde já se viu presidente da república cuidando de roupa
de banho das mulheres e de brigas de galos”.

Não demorei. Minha inexperiência profissional não era tanta que não me
deixasse ver algumas possíveis conseqüências daquele fato. Quando voltei ao
trabalho a notícia já estava lá. O diretor chamou-me em seu gabinete, onde um rádio
falava sem parar, na voz de um repórter cheio de medo. A porta da sala foi trancada.
O diretor, sua secretária e eu procuramos papéis que pudessem comprometer alguém
diante de uma situação que sabíamos exatamente qual seria. Alguém por telefone
informou que o Exército estava de prontidão e que não se sabia o paradeiro do vice-
presidente.

Não entendi bem as razões por que em uma empresa tão pequena seria
necessário fazer desaparecer papéis, simplesmente porque haveria mudança no
governo mais alto do País. A explicação me veio mais tarde. O proprietário da
empresa era ainda criança ao término da segunda guerra mundial. Filho de imigrantes,
vira a loja do pai ser praticamente destruída porque o seu país estivera contra os
vencedores. Desde então tinha medo de quaisquer mudanças políticas.

Fiz o que me era mandado, sem questionar, como sempre.

Bancos e lojas fecharam suas portas. Na rua, as pessoas estavam em silêncio.


Nas casas de muitos, os telefones, de que poucos dispunham, não paravam, mas
aviões e helicópteros foram vistos muitas vezes.

Continuei meu trabalho. Quando cheguei em casa, fomos todas para diante de
um pequeno rádio de uma de nossas colegas. À pilha, o rádio dava ao repórter uma
voz esganiçada, que nos deixou a todas mais felizes e tranqüilas quando disse que o
vice-presidente havia chegado e negociações eram feitas para que lhe permitissem
tomar posse do cargo que era dele por direito.

No meu trabalho, tudo voltou ao normal, mais do que na sala do diretor de


quem, sem querer, ouvi o telefonema, cujos termos me esqueci mas de cujo sentido
me lembro bem: o diretor convocava outros de seus colegas para, a partir daquele
momento, se portarem como homens de esquerda em tudo que não lhes fosse
comprometedor.
83

Não era esta a primeira vez que este homem me parecia desprezível. No
entanto, nos víamos todos os dias e dele eu recebia os maiores elogios profissionais e
provavelmente o menor salário que se pagava a alguém com meu nível de
escolaridade.

Determinou-se que o vice-presidente seria empossado no cargo vago e não


demoraria muito deveria ser submetido um plebiscito. Apesar de tudo, era um alívio.

O presidente pensava em fazer algumas reformas, muitas foram feitas, outras


iniciadas. O diretor da empresa onde eu trabalhava dizia muitas vezes em sua sala ou
nos corredores: “Sou um homem de esquerda, mas o presidente é muito moço, um
comunista, reformas não podem ser tão radicais, empregados não saberão lidar com
tantos direitos. Continuo sendo um homem de esquerda, mas nem por isso
imprudente”.

Pensei que eu devia sair daquele emprego. Não fazia sentido, para trabalhar na
minha função eu precisava de me apresentar bem, queria também aproveitar um
pouco minha juventude que eu sentia acabava antes da hora e, com aquele salário,
isso era impossível. Minhas idéias continuavam entrando em silencioso choque com
as do dono da empresa.

Um dia, quando chegava em casa depois do trabalho, percebi um carro com


placa da minha cidade, e minhas irmãs, Isabel e Sofia, os rostos assustados falavam
com um homem que conhecia como empregado de meu pai. Alguma coisa muito
grave havia acontecido. Ninguém precisava me dizer.

O empregado, que se chamava Jovino, se encaminhou para mim e falou: “Seu


pai sofreu um acidente. Não é muito grave”. Percebi que ele estava mentindo. Sabia
que era grave. Minha mãe não nos chamaria por pouco. Deixei que ele continuasse.

“Seu pai levou um coice de cavalo. Sua mãe quer vocês todas em casa”.

Respondi-lhe:” Estarei pronta em minutos”.

Minhas irmãs me acompanharam. Fizeram-me uma pequena mala, enquanto


cuidei de mim e ainda tive tempo para comunicar minha viagem à secretária do
homem de esquerda.

Tomamos o automóvel. Não fiz perguntas para que Jovino não me dissesse a
verdade. Não queria antecipar o sofrimento de minhas irmãs. Sabia que meu pai
estava morto, porque do contrário ele teria vindo, ainda que de helicóptero ou num
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avião pequeno. Minha cidade não tinha hospital e o nosso grande amigo Dr. Ulisses já
estava bem velho para enfrentar um problema cuja gravidade exigia nossa presença.
Tenho certeza de que minhas irmãs pensavam a mesma coisa e nos preocupávamos
todas.

Nunca aquela estrada havia sido tão longa. Jovino deixava escapar uma sombra
de verdade, imediatamente voltava atrás com palavras confortadoras. Faltava-me
ânimo para convencê-lo de que todas nós sabíamos o que nos esperava. Perguntei-lhe
como havia sido o acidente. Ele me disse que meu pai pretendia vender alguns de seus
cavalos e ao montar num deles teria sido jogado ao chão. O animal bateu-lhe algumas
vezes a pata na cabeça e o pisoteou. Jovino, no seu esforço de nos proteger da dor,
chegou a dizer coisas que meu pai teria falado. O relógio dizia que havíamos feito
uma viagem muito rápida, mas nossa ansiedade a tornou muito estressante.

Ao chegarmos na cidade, vimos nossa casa, na frente da praça, cheia de gente.


Não fizemos perguntas. Não era mais necessário. O choro de Sofia, até então
silencioso, tomava proporções de gritos desesperados. As pessoas nos cederam o
lugar. Minha mãe estava assentada em uma cadeira e as flores da morte exalavam o
seu trágico perfume. O rosto de meu pai era dele o que se podia ver. Hematomas no
lado esquerdo da testa desciam até o ouvido, a orelha estava cortada. Esperariam
Otávio no dia seguinte até quando fosse possível. Mira havia sido comunicada por
alguém mandado a outra cidade, porque ali não havia telefones. Minha mãe não
chorava. As pessoas insistiam em que ela comesse alguma coisa, tomasse um copo de
leite ou deitasse. Ela queria ficar junto do corpo do homem que em tantos anos ela
não havia conseguido descobrir se lhe inspirara amor ou ódio, mas que agora, morto,
ela daria tudo para que estivesse vivo.

Foi inútil ter esperado Otávio. Ele não veio. Ao sepultamento, minha mãe não
teve condições de ir. Isabel e minha avó ficaram com ela. Não tive lágrimas, mas
minhas pernas perderam a condição de amparar o meu corpo. Sofia ia junto de mim.
Mulheres que mal conhecíamos nos deram o apoio de seus braços, e no meio daquela
multidão, lojas fechadas, trabalhadores dos campos presentes, o mundo imenso
parecia não ter ninguém. Creio que isso se chama dor. E eu a senti. Talvez perguntem
por que. Ele era meu pai.

Nos dias que se seguiram, minha avó conosco, ficávamos quase todo o tempo
assentadas numa sala pequena, como a dizer aos outros que ali não havia lugar para
mais ninguém. Falava-se alguma coisa, vazia de sentido, informante apenas de que
estávamos vivas. Minha avó por vezes nos oferecia quaisquer coisa que só
começaram a ser aceitas no segundo dia. A empregada nos servia em silêncio. As
vezes, alguma visita, o que nos fazia agradecidas, mas não felizes.
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Otávio chegou e pareceu um pai de todas, especialmente de minha mãe.


Mandou buscar um médico na cidade vizinha, temendo que por falta de alimento e
sono ela se enfraquecesse demais.

Uma semana depois, começamos a revisar os negócios de meu pai, porque meu
irmão se lembrou de que era necessário contratar um advogado. Otávio encarregou-
me de fornecer ao advogado todas as informações que se fizessem necessárias, porque
embora eu nada entendesse, morava mais perto e meu emprego era de pouca
importância. Teve o cuidado de procurar pessoas de nossa família e pediu que
visitassem minha mãe, principalmente quando nenhuma das filhas estivesse na
cidade. Quis levar minha mãe com ele, mas ela se recusou. Meu irmão viajou de volta
à casa. Isabel e Sofia aproveitaram-lhe a companhia, porque estavam em tempo de
aulas. Fiquei mais uns dias, para cuidar de tudo que se fizesse necessário.

Uma tarde, estávamos na sala, minha avó e eu. Minha mãe, sob efeito de
remédio que lhe fora receitado, dormia um pouco, minha avó e eu falávamos a
respeito de meu pai, um homem honesto e trabalhador de quem ninguém conhecera a
família, e menos ainda qualquer lembrança do passado.
Indaguei de minha avó a respeito. Acreditava que ela me pudesse falar disso,
porque me lembro que certa vez ela se esquivou do assunto, dizendo que aquele
segredo não era dela. Naturalmente, ela sabia o segredo e talvez se eu o soubesse
entenderia melhor as atitudes de meu pai, que não podiam ser entendidas dentro da
normalidade.

Minha avó olhou com espanto, ante minha pressa de conhecer o que era mau,
mas entendeu que era de meu direito sabê-lo, uma vez que, disse ela, o tempo me faria
repositório dos dramas da família, porque mais que meus irmãos eu havia aprendido a
ouvir.

E foi assim a história que ela me contou: meus avós paternos eram Vitor e
Marta. Vítor era muito rude, um homem cheio de valentia e autoritarismo. Quando
quis se casar com Marta, a família da moça não concordou, porque ela era meiga e
boa, alegre e se comunicava com todos. Mas qual pai pode impedir o casamento de
uma filha, quando esta entende estar apaixonada ? E ela se casou. Em um ano,
nasceu-lhe um filho que se chamou Homero, o meu pai. Não houve outros filhos e
ninguém sabe sequer se havia razão para havê-los, pois que Vítor passava a maior
parte do tempo na fazenda, e de lá, fala-se, todas as mulheres um dia foram dele.
Quando vinha à cidade, o pai encontrava uma razão para fazer a Marta todas as
humilhações que se pode fazer a uma mulher. Separar de um marido, mesmo que dele
separada estivesse, era alguma coisa em que não se podia pensar. Homero estava para
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fazer doze anos, quando, um dia, o pai chegou em casa e, com toda a frieza que se
pode imaginar, matou a mulher, que nem sequer sabia por que estava morrendo.
Acontece que Vítor costumava fazer grandes doações à igreja, e a família de Marta,
querida na cidade, não podia tanto. O prestígio do assassino e o apoio do padre não
aplacaram a revolta da cidade e marcou-se um julgamento.

O padre orientou a criança para denegrir a lembrança da mãe, sob algumas


ameaças, até mesmo a perda de direito ao Céu. E, no dia do julgamento, o menino,
chorando, falou o que lhe haviam ensinado. Mas, não resistindo, entrou em pânico e
disse a verdade. O pai foi condenado a mais de vinte anos de prisão. O menino foi
morar na casa de uma tia, cujo marido o maltratava. Um dia fugiu, passou fome, até
que passou a morar junto de um casal de velhos e, quando estes morreram, não se
sabe por que, escolheu esta cidade, acreditando que aqui ninguém lhe conheceria a
história. Mas em todos os lugares do mundo há sempre alguém que ouve e alguém
que fala. E aqui tanto se falou e tanto se ouviu, que justamente as filhas eram as
únicas pessoas da cidade que nunca haviam ouvido tais falas.

Penalizava-me o menino ferido, que se havia feito meu pai. Era tarde para
compreendê-lo. Não pude dizer-lhe que ele tinha razão. Só consegui entendê-lo
quando ele não mais precisava de minha compreensão.

Minha mãe estava descansando. No dia seguinte, eu entregaria ao advogado a


relação dos bens que meu pai havia perseguido a vida inteira. Minha mãe assinaria um
papel cujo conteúdo ela ignorava por falta de interesse em conhecê-lo, e eu partiria de
novo, com tudo apropriado para ser a mulher independente que meu pai me quisera.

Ele estava certo de que havia conseguido o seu intento. Tarde eu descobri que
viver significa estar mudando. Eu, toda transformações, continuaria o caminho. Ainda
não sabia qual, como todos nós.
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Capítulo 11

Minha vida seria agora inteiramente dirigida por mim.


Em minha casa,minhas amigas me ajudavam nos meus medos e sofrimentos.
Entre o pessoal do meu trabalho, percebi que eu não existia como pessoa. Para os
empregados, eu estava ligada aos interesses do empresário que lhes explorava. Para o
dono da empresa, eu era a pessoa que trabalhava com perfeição e afinco, se não pelo
salário, pelo menos para construir meu nome profissional. Ninguém tomou
conhecimento da minha ausência nos dias em que sobre mim pesava a morte de meu
pai. Disseram-me apenas que meu serviço estava atrasado.

Otávio, voltando à casa de minha mãe para cuidar de negócios que agora eram
de sua responsabilidade, informara-me que minha irmã, há tanto tempo ausente, não
concordara em ter como seu o advogado por ele contratado para o inventário dos
bens de meu pai. Nenhum de nós se preocupou com isso, e até hoje não sei de
qualquer conseqüência do fato.

Na mesma oportunidade, Otávio pediu a um dos empregados de meu pai que


continuasse zelando pelos nossos interesses como costumava fazer nas viagens de
meu pai e que, em tanto quanto possível, cuidasse de minha mãe.

O empregado, sabíamos, seria zeloso. Havia sido um grande amigo durante


trinta anos, e sabíamos que não seria diferente agora.

Meu irmão, durante todo o tempo em que minha mãe se recuperava de seu
sofrimento, que por muitas razões pensávamos não deveria ser tanto, fazia viagens
cansativas, para seguir de perto não apenas os negócios, como também o andamento
do processo de inventário.

Eu trabalhava, trabalhava, sem parar nunca, nem mesmo para ver que eu devia
deixar a empresa e procurar outro emprego.

Comecei, no entanto, a pensar nisso, quando percebi que eu me tornara uma


funcionária especialmente destacada na empresa. Empregados mais antigos do que eu
consideravam que eu lhes tomava o prestígio e o valor do seu emprego. O diretor
conferia-me atribuições que, sobre não fazerem parte do meu trabalho específico, me
eram muito desagradáveis: avaliar técnica e moralmente o trabalho de outros
empregados. No entanto, um dia presenciei um fato que me levou a pedir demissão,
sem pesar as conseqüências.
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A esse tempo, os empregados de empresas particulares, quando completassem


dez anos de trabalho, adquiriam o direito de não serem demitidos do emprego, a não
ser que cometessem falta muito grave. Sem que a direção da empresa percebesse, um
funcionário havia completado esse tempo de serviço. Foi então que, estando eu na
sala do senhor diretor, pude ouvi-lo ordenar a um gerente de loja que colocasse nos
bolsos da roupa do funcionário decente e antigo certa importância em dinheiro, ao
mesmo tempo que providenciasse para que um dos cofres da empresa fosse
arrombado, e que, em seguida, chamasse a polícia. Assim, aquele empregado, com
mais de dez anos de serviço, seria preso em flagrante e sua posterior dispensa não
daria qualquer despesa à empresa.

O gerente discordou da idéia.Nenhum outro funcionàrio ficou sabendo por que


no dia seguinte, aquele gerente, que se chamava Duarte, e eu pedimos demissão
daquela casa.

Novamente desempregada.
Pior ainda, agora não tinha meu pai.
Não tinha alunas para aulas particulares. Na cidade, ninguém a quem recorrer.
Minhas colegas de casa eram estudantes ou recém-formadas e em nada poderiam me
ajudar.

O caminho não me era novo: procurar emprego, ler anúncios de jornal, fazer
concursos, pedir ajuda a quem quer que seja.

Havia desta vez uma vantagem: já havia trabalhado antes e poderia contar com
o que chamam experiência anterior.

O País votaria na época, um plebiscito. O povo em geral não sabia qual era o
sentido da votação, mas todos votaram, para que tudo continuasse do mesmo jeito que
sempre estivera e votara muito mais para dizer que aquela eleição era
antidemocrática e sem sentido.

Não havia qualquer concurso que eu pudesse fazer.


Foi um tempo de sindicatos e muitas greves.
Fiquei à procura de trabalho e nada acontecia . Minhas roupas envelheciam,
meus sapatos estavam gastos e até os cuidados que tinha com o meu rosto e meus
cabelos pareciam diminuídos, porque o dinheiro era escasso e eu não sabia quando
deixaria de ser. E eu não conseguia nenhum trabalho.

Seria mais um dia de desalentada procura de emprego. Meu dinheiro havia


acabado há meses, e minha mãe enviava, de seus poucos rendimentos, o suficiente
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para que eu permanecesse viva.

Concursos, alguns não pude fazer porque a taxa de inscrição superava minhas
possibilidades.

E de manhã soubemos que o governo havia caído nas mãos dos militares.
Praticamente sem resistência.

Havia um susto em cada rosto.

E, em nosso bairro, mulheres sorridentes, cujos mundos eram simplesmente


sua casa e a instrução quase nula. Esposas de maridos ricos, nos olhavam felizes
porque acreditavam que o País estava no caminho da honestidade e do trabalho.

Rapazolas socialmente inúteis, com fitas amarradas nos braços, se davam o


direito de invadir casas para, orientados pela paranóia não identificada, fazer prisões
e destruir tudo aquilo cujo conteúdo não conseguiriam entender.

O horror andava nas ruas, e não foi por pouco tempo.


Não sei de onde partiu um convite para que os partidários da nova ordem, à
noite, pusessem velas nas janelas de suas casas.

Na casa onde eu morava nos recusamos a isso.

O povo do bairro achou esse comportamento normal, éramos mulheres


estranhas que pretendiam exercer profissões masculinas.

Na rua, amigos tinham medo de nos dirigir a palavra.


Ninguém sabia o que pensava o outro, mesmo que o outro fosse seu irmão ou
seu amigo. Prisões se sucediam.

Soube que um de meus colegas abandonara o trabalho porque, sentindo-se


ameaçado, deixara o País. Quem me deu a notícia falou-me da possibilidade de eu
trabalhar onde trabalhara o meu colega que se fora.

Apresentei-me. Era uma questão de urgência para aquela firma. Pediram-me


documentos que eu sabia onde conseguí-los, mas um deles me era totalmente
estranho: atestado de ideologia. Indicaram-me onde eu poderia conseguí-lo e eu o
consegui.

No dia seguinte, estava de novo no trabalho mas, apesar disso, triste e de certa
90

forma revoltada como todo o povo.

O lugar onde eu deveria trabalhar era uma grande construtora.

Providenciados os documentos, apresentei-me ao trabalho. Foi o próprio diretor


que me mostrou todas as instalações da empresa, apresentou-me a engenheiros,
arquitetos, desenhistas e datilógrafos. Onde eu passava, olhares curiosos viam a
estranheza de uma mulher que ocuparia um cargo até então ocupado por homem.

O barulho feminino dos saltos de meus sapatos, creio, incomodava e se tornou


um marco da minha presença. As outras moças, ainda que chegassem ao trabalho com
sapatos mais finos, tinham o cuidado de trocá-los por sapatilhas. Sapatos altos
sempre me foram confortáveis, e em razão disso não precisava daquele cuidado.
Atribuíam esse fato à minha preocupação de me manter impecável no trabalho. Não
era isso: minhas roupas, já gastas, eram incompatíveis com esse tipo de pretensão.

Minha sala, isolada de todos, era ao lado daquela onde ficava o diretor.
Deram-me uma secretária. Minha incumbência inicial era a de reestruturar o
Departamento de Pessoal. Meu contato com outras pessoas era ocasional, e elas eram
gentis comigo. Aconselhava-me um certo instinto de profissionalização que eu me
mantivesse um pouco distante das pessoas, para que ninguém me percebesse em
minha inteireza. Tinha receio de que meus modos tímidos e minha cabeça tão livre de
preconceitos pudesse me trazer incompreensões num lugar onde eu pretendia
permanecer até quando me fosse conveniente.

Mesmo assim, não pude fugir da alegria e delicadeza de Manuel, um jovem


engenheiro chinês. Manuel era um nome que lhe haviam dado em substituição ao que
trouxera da casa de seus pais e que se entendia não ser entre nós de uma pronúncia
muito fácil.

Manuel brincava sempre comigo com uma liberdade de pessoas que se


conheciam há muito tempo. Ao fim do expediente, se tínhamos oportunidade de
sairmos juntos, levava-me em seu carro, já que a esse tempo eu nem pensava na
possibilidade de ter um.

Um dia eu lhe falei que me admirava de sua linguagem em Português correto e


sem marcas de língua estrangeira. Foi quando soube que ele estava entre nós desde os
quatro anos de idade.

Nesse dia, Manuel me contou um pouco de sua história. Saíra de seu país aos
quatro anos de idade. Viera com um casal, em que a mulher era sua tia. Tinha dois
91

primos em casa. Os pais haviam morrido. Ele, morto em combate. A mãe, de


inanição. O país de onde vinha estava sujeito a um racionamento não apenas de arroz,
mas de tudo. A comida que recebiam era insuficiente para a mãe e os filhos e, para
que estes não sentissem a fome que os rodeava a todos, a mãe deixava de comer,
dando o que era seu a eles. Adoeceu e, como a fome só se cura com alimentos, ela não
se curou. Morreu para que os filhos pudessem viver. Manuel me falou disso sem
qualquer mágoa, como se se tratasse de alguma coisa que deve normalmente
acontecer. Tinha um grande carinho pela mãe. Esse carinho ele o passava a todas as
outras mulheres.

A guerra, que se pensava ter acabado há tanto tempo, me trouxe muitas pessoas,
cujas vidas tiveram seu curso normal inteiramente desviado, porque um poder adulto
numa briga infantil havia se dado direito a isso. Minha secretária era etíope. O pai era
general do exército italiano, porque a Etiópia pertencera à Itália. Aqui este homem
sofreu terríveis discriminação. Representava um país vencido na guerra. Minha
amiga, ao chegar aqui, fora entregue por um organismo internacional a um colégio de
freiras, onde a língua era o Francês. Minha amiga falava bem o Italiano, o Francês e o
Português, mas não sabia escrever senão o último. Esses estrangeiros conviviam
conosco. Eram cheios de amizade e muito gratos ao país que os recebera.

Todos os outros funcionários haviam nascido entre nós, e tínhamos todos


notícias da guerra entre países porque estudávamos o assunto na escola. A história é
sempre a história do poder e quase sempre contada como o poder o determina.

Meu trabalho era bem diferente do que eu fizera antes. O diretor, a quem
chamávamos Sr. Álvaro, estava sempre aberto para as coisas que ainda não haviam
chegado. Era um homem entusiasta e otimista. Aceitava projetos que mesmo os
engenheiros achavam arriscados e eram quase sempre estes que rendiam mais lucro
para a empresa.

Meu salário não era menor do que o dos engenheiros e arquitetos. Isto era um
grande privilégio, porque, embora eu já me reconhecesse como uma profissional
competente, na maioria das empresas o salário da mulher era sempre inferior. Em
pouco tempo pude fazer roupas bonitas, freqüentar cabeleireiros e até fazer limpeza
de pele. Depois, pensaria em comprar um carro, e mais tarde um apartamento. Foi
quando Otávio me comunicou que o inventário dos bens de meu pai havia terminado
e que, segundo havia se informado com Mira, ela exigia que se fizesse a partilha dos
mesmos e que lhe fosse entregue o que lhe era de direito.

Entre nós, os outros irmãos, combinamos que tudo ficaria entregue à minha
mãe e nós a ajudaríamos nos negócios, assegurando a minhas irmãs que ainda
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estudavam a percepção de alguma importância necessária à sua manutenção.

Não era muita coisa. Se cada um recebesse o que era seu, minha mãe teria uma
renda insuficiente e os estudos das outras irmãs ficariam prejudicados. Mira receberia
o que lhe pertencia.

Foi inesperada a vinda de Mira. Há tanto tempo ela estivera distante e nem
mesmo a morte de meu pai a trouxera entre nós. Agora viera. Hospedara-se num
hotel de luxo e, através de seu advogado, pediu que todos fôssemos vê-la. Minhas
irmãs, as mais novas, nem a conheciam bem. Otávio estava conosco, e foi bom. Só ele
poderia nos livrar da agressividade de minha irmã. Mal a cumprimentamos e ela nos
apresentou o papel da partilha e sobre mim e Otávio lançou injúrias não esperadas.
Ela estava certa de que meu pai nos havia deixado muito dinheiro e nós a teríamos
prejudicado. Sua agressão não tinha o menor fundamento e não passava da
imaginação esteada num tempo e numa idéia de que meu pai era um homem rico.
Não fui capaz de dizer coisa alguma. Otávio tentou ser paciente, explicando
calmamente como as coisas se passaram. Minha irmã manifestava sua desconfiança
infundada. Otávio se cansou e disse-lhe tudo o que tinha a dizer: que ela havia saído
de casa sem ter tido sequer a delicadeza de dizer para onde ia. Nunca perguntara pelo
menos como estavam os nossos e nem estivera presente quando da morte de meu pai.
Agora, vinha reclamar direitos que não tinha.

Embora as acusações de Mira pesassem sobre mim muito mais do que sobre
Otávio, foi ele quem a desafiou a procurar um contador para que fizesse uma perícia
sobre os passados negócios de meu pai e verificasse em quanto estaria o suposto
prejuízo que nós lhe teríamos dado. Vendo a segurança de Otávio, minha irmã
reconheceu que os fatos haviam se passado exatamente como lhe havíamos falado e
se desculpou conosco. Em palavras, tudo voltou ao normal. No entanto, dentro de
mim alguma coisa fez diminuir o pouco afeto que eu já sentia por aquela irmã que
sempre me tivera como uma intrusa em sua vida.

Mais do que esse incidente, a mim, e creio que a todos, incomodavam os


carros incendiados nas ruas, as greves de empregados cujos direitos eram violados por
um grupo de homens que de um dia para o outro havia pela força se intitulado como
governo.

No trabalho, o ambiente de confiança parecia diminuir, porque nunca sabíamos


se nosso melhor amigo não era o mais próximo espião.

Meu dinheiro crescia, porque meu salário era bom, minha despesa pouca e com
isso eu podia fazer boas aplicações, pois que essas se corrigiam por uma inflação a
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cada dia maior. Assim, antes de comprar um automóvel, decidi comprar um pequeno
apartamento. Não era esse o meu desejo. Sentia que era o caminho mais sensato.
Minhas irmãs moravam cada uma perto de sua escola e, mesmo que continuássemos
cada uma em seu lugar, teríamos mais liberdade se nos encontrássemos numa casa
que fosse só minha.

Isabel namorava um de seus colegas e entre eles havia uma liberdade


impensável no tempo em que eu tivera a idade dela. Sofia também namorava um de
seus colegas, e ambos me pareciam muito revoltados com a situação política. Isso me
preocupava muito e me dava pouca oportunidade de fazer qualquer coisa para evitar
algum problema. Na verdade, eles nunca me falaram nada a respeito.

Nesse tempo, estudantes desapareciam e até a casa onde eu morava foi várias
vezes invadida pela polícia, que nos subtraiu livros considerados inconvenientes ao
regime político. A inconveniência de tais livros devia ser descoberta por algum
processo adivinhatório, pois percebia-se que entre aqueles invasores ninguém lia coisa
alguma.

Manuel comprou o apartamento que era meu, e eu o paguei. Foi ele quem
verificou a validade dos papéis, idoneidade da firma vendedora e até mesmo me
aconselhou sobre as conveniências da localização de minha morada.

Na empresa, ninguém entendia o nosso relacionamento. Nem eu o entendia.


Tinha medo de fazer algum questionamento e perder além de tudo a amizade dele,
que já me era imprescindível. Muitas vezes, de modo vago, ele me falava de
problemas, e minha discrição não pedia esclarecimentos maiores. E tudo continuava
como sempre estivera desde o primeiro dia em que o conheci. Éramos amigos,
dizíamos sempre. Não sei se algum de nós acreditava nisso.

Estando de férias, decidi por uma visita à minha mãe e à minha avó, há tanto
tempo não vistas. Queria que ambas me viessem visitar, já que eu tinha uma nova e
exclusiva moradia. E, quando lhes fiz a proposta, ambas a recusaram, porque se
sentiriam em dificuldade fora de suas casas. A casa de minha mãe, que não era a de
meu pai, havia mudado. Estava cheia de gente, a cada hora uma amiga, muitas
daquelas que lhe foram amigas desde a infância e que os hábitos de meu pai fizeram
fugir de nós. Minha mãe era agora uma pessoa alegre, e isso me fez pensar que a
morte de meu pai não teria sido um pesar para ela. Isso me entristeceu.

Meu pai, sabia eu, havia nos amado muito a todas e se dava o direito de
determinar com mão de ferro o caminho de nossas vidas. Outra não era a razão, além
daquela de ter encontrado em nós a figura de sua mãe querida, e brutalmente
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assassinada. Queria tirar de nossas vidas a possibilidade de nos acontecer o mesmo.

Mas minha mãe estava feliz, e agora muitas vezes visitava minha avó, levava-
lhe pequenos agrados, como se, de repente, aquela mulher cheia de nervos houvesse
se tornado jovem e feliz.

Como viver é difícil! Meu pai e minha mãe se fizeram infelizes e ambos eram
cheios de amor.

No dia seguinte, não fui à minha casa para o almoço. Esperei Sofia na porta de
sua escola, o mesmo prédio onde eu havia estudado, e eu me sentia tão longe daquele
mundo feito de estudantes. Minha irmã me viu de longe e veio até mim. Seus olhos,
de um azul cinzento, a boca sorrindo inocência. Almoçamos num restaurante, onde
almoçavam pobres comerciários cuja jornada de trabalho, aumentada de horas
extraordinárias, não lhes permitia almoçar com a família e nem se alimentar num
lugar decente. Falávamos baixo e em códigos. Disse-lhe de minhas preocupações. Ela
me disse que, com um nome suposto, estava mesmo ligada a um movimento que tinha
por fim a queda do governo ditatorial. Dei-lhe minhas razões para que se afastasse de
tamanho perigo. Foi quando ela me disse: “Estou nesse movimento porque entendo de
meu dever, e mesmo se me afastasse agora continuaria da mesma forma correndo
muitos riscos”. E depois, com ternura me disse: “Pobre Irene, sua liberdade foi
sempre tão reprimida que você nem sequer sabe que ela vale mais do que a nossa
própria vida. Fique tranqüila. Veja, eu não tenho nenhum sinal de medo”. Tentei
tomar para mim um pouco da tranqüilidade de minha irmã, mas éramos pessoas muito
diferentes. O medo foi meu companheiro por tanto tempo, que eu não conseguiria me
separar dele nunca.

Nos despedimos. Vi no meio da multidão minha irmã que se perdia em sua


juventude, a calça jeans, os cabelos cor de mel, a bolsa de pano jogada nas costas. Se
confundiria com tantos jovens daquela época, crianças ainda, que a um grito
voltariam ao seio de suas mães, e muitos deles estavam algemados no fundo das
prisões, se não mortos ou torturados.

Voltei ao meu trabalho. Não disse a ninguém de meus medos. Todos eram
meus amigos, sabia. Mas isso não impedia que algum deles fosse um delator. O
governo do alto do seu poder, havia minado qualquer forma de confiança. E dizíamos
estar num país democrático.

Além do meu trabalho, ocupava-me agora em fazer do meu apartamento um


lugar de morar, e nele coloquei coisas simples, mas que o fizeram agradável como
gostaria que fosse a minha casa. Manuel ajudava-me e, quando tudo ficou pronto,
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convidei minhas colegas de casa para uma visita. Vieram todas e eu fiquei feliz de
saber que naquele lugar onde passei tantos anos fizera eu tantas amizades. Dias
depois, convidei minhas irmãs, seus namorados e Manuel para que viessem jantar
comigo. Tantos desconhecidos se fizeram tão íntimos num instante e estivemos tão
felizes que muitos de nós não nos lembrávamos de que, na rua, aconteciam carros
incendiados, greves, prisões. O governo era duro e entendia que só a sua cúpula sabia
pensar. Depois do jantar, Sofia quis ver o noticiário. De nós todos, era ela a que mais
se interessava pelo que se passava além de seus domínios. Nós, os mais adultos, já
sabíamos que os fatos neste lugar e neste tempo não sofriam variações dos
personagens, poder ou povo: a única coisa que mudava era o aspecto físico, tudo o
mais era sempre o mesmo. Até a novidade nos parecia velha. Foi quando Sofia nos
alertou: “Seqüestraram um embaixador e não se sabe quem são os autores da
bravura”. Ela ficara feliz e, logo em seguida, junto com o namorado, nos deixou,
como se o acontecimento a houvesse atingido num interesse imediato. Isto me
preocupou e creio que também aos outros, os que estavam em minha casa.

Quando a noite ia pela hora em que se lembra o levantar do amanhã, meus


convidados se despediram e, sem me lembrar da desordem em que se encontrava a
minha casa, tentei dormir, no que fui impedida por meus pensamentos relacionados à
minha irmã que, indisfarçavelmente, estaria ligada, se não por atos, pelo menos por
idéias, a algum grupo que ousava estar contra o poderoso governo que se intitulava
revolucionário.

Minha preocupação com as idéias e atos de Sofia aos poucos ia se diluindo


com o manuseio de papéis e cálculos que eram os meus dias. Quando o tempo me
permitia, a lembrança de minha irmã, criança idealista, chegava até mim e eu ia
procurá-la em sua casa ou na escola. Em qualquer dos lugares, encontrava alguém que
me falava que ela estava em outro lugar e sempre diziam o que ela estaria fazendo e
convencendo-me de que só muito tarde da noite eu poderia encontrá-la. Todos tinham
tanta certeza da normalidade de sua vida de jovem estudante que, apesar de minhas
desconfianças, eu conseguia me pôr tranqüila.

Uma noite, depois de um dia de muito trabalho e acumulando todo o desgaste


de uma semana, adormeci, a aparência tranqüila, mas sempre no íntimo aquela
preocupação que nunca mais me deixara desde o último dia em que almocei com
minha irmã. Eram provavelmente três horas da manhã e eu sonhava com ela: era
criança e eu brincava com ela, dizendo-lhe que queria tanto vê-la em seu vestido cor
de rosa. O telefone interrompeu meu sono e meu sonho. Uma voz masculina, grave e
ríspida me disse: “Sofia foi presa”. Não tive tempo de fazer perguntas. O aparelho
desligou. Faltavam-me pessoas a quem eu me desse a liberdade de acordar no meio
da noite para falar de um problema com o qual eu não sentia que os outros estivessem
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envolvidos. Andei mil vezes pelo meu quarto que, agora eu percebi, era tão pequeno.
Assentava-me em minha cama e tentava raciocinar sobre uma situação que me era
desconhecida. Quando o dia amanheceu, liguei para Otávio. Ele gastou um tempo
enorme censurando o comportamento irresponsável de minha irmã e só ao final me
aconselhou a procurar um bom advogado, o melhor possível, que quanto antes
conseguisse a liberdade de nossa irmã. Ele me mandaria o dinheiro, pois que, em face
de minhas últimas despesas, grandes para o meu orçamento, ele sabia que me
faltavam condições. Quando o dia acabou de amanhecer, fui à casa onde morava
minha irmã. Lá ninguém sabia de nada. Postei-me diante da escola onde ela estudava,
não vi ninguém que eu pudesse imaginar fosse amigo, meu ou dela. Um caminho
longo e duro era o que estava à minha frente. Isabel seria minha companhia, e juntas
conheceríamos a dor. E a dor dos outros tem um tamanho que nos é desconhecido.
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Capítulo 12

A impossibilidade de obter qualquer informação a respeito de minha irmã


levou-me ao trabalho. Minha hora normal de chegada havia passado, e meu rosto
denunciando minha aflição provocara perguntas de meus colegas. Para os mais
distantes, disse simplesmente: estou com um problema em família. Aos mais íntimos,
contei o que se passou e percebi a aflição de todos. Aconselharam-me a que
procurasse o diretor e lhe pedisse alguma ajuda, não se sabia qual.

Ele me tratou como se fora meu pai. Telefonou ao advogado da empresa, que
lhe indicou um profissional especializado e de sua própria iniciativa procurou amigos
que, envolvidos nas redes do poder, pudessem ao menos nos informar onde se
encontrava minha irmã.

Procurei o advogado. O senhor, de uns quarenta e cinco anos, se chamava


Tobias. Esse homem foi de uma honestidade a toda prova ao informar-me o pouco
que poderia fazer por mim na qualidade de profissional. Direitos estavam cerceados
por normas autoritárias e tudo o que os ditadores fizessem não poderia sequer ser
analisado pelos tribunais. No entanto, o Dr. Tobias procurou e conseguiu descobrir
que minha irmã já não se encontrava na cidade. Fora levada para uma repartição do
exército, e o muito que se pôde obter, depois de dois meses de esforços, foi permissão
para que a visitássemos. Isabel, no seu último ano de faculdade, estava noiva e foi o
seu noivo que se dispôs a nos levar as duas para uma visita a Sofia. Na portaria do
presídio, no horário determinado, nossas bolsas e embrulhos foram revistados, tudo
feito com uma cortesia absolutamente ridícula em pessoas que auxiliavam o governo,
máquina de fazer violência. Um guarda portando fuzil assistia à visita e escutava
nossa conversa. Falamos pouco e desse pouco todas as palavras eram desnecessárias.

Minha irmã estava magra e os sinais de noites mal dormidas estampavam-se em


seu rosto. Choramos. Choramos as três. Lágrimas por tudo. Pela nossa infância, pela
vida de tantos sacrifícios, sempre subjugadas por alguma forma de poder.
Chorávamos a impotência de sempre e a inutilidade de quaisquer reações, mesmo que
estas não passassem de um simples grito.

Poucos e longos dias se haviam passado, quando o Dr. Tobias chamou-me a seu
escritório. Deu-me informações até então não sabidas, a respeito das razões pelas
quais minha irmã, sem julgamento formal, havia sido condenada a um tempo não
determinado de prisão, torturas e a tudo mais que a maldade humana pode imaginar.
O grupo a que ela se ligava havia alugado uma casa num bairro distante, onde se
reuniam para discutir idéias e fazer planos, nem sempre executados. A casa havia sido
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cercada por um batalhão de militares. Houve tiroteio. Morreram estudantes e um


policial. Descobrir a autoria das mortes era desnecessário. Ressaltava-se que o militar
morto era um homem casado, pai de seis filhos. Não se questionou se bom marido ou
bom pai. Não se falou que todos eles eram seres humanos. Os policiais se
transformaram em heróis de passado ilibado e todos os estudantes envolvidos
considerados monstros, autores de crimes hediondos. Minha irmã, menina idealista,
era um deles.

Foi por isso que o Dr. Tobias não encontrou para ela, nem poderia ter
encontrado, solução melhor do que conseguir que ela fosse expulsa do País, e isso o
quanto antes, pois que alguma doença forjada poderia oficialmente matá-la, quando
seu corpo frágil não mais resistisse às muitas formas de tortura. Pedi ao advogado que
tentasse fazer alguma coisa nesse sentido e me ensinasse os caminhos para que eu
pudesse também tentar alguma coisa .

Procurei o Sr. Álvaro, diretor da empresa onde eu trabalhava, e não posso negar
o grande esforço de que ele foi capaz. Solidariedade não me faltou, mesmo quando o
medo me cerrava praticamente todos os caminhos. O tempo de angústia caminhava a
passos lentos.
Isabel entendeu que era hora de se casar. O noivo era Rodrigo, o namorado de
todos os anos em que ela estivera na faculdade, de onde ela saiu sem qualquer ânimo
para festas, logo nos dias em que Sofia havia sido encarcerada.

O casamento de Isabel nos trazia, entre muitos, o problema de ter que falar com
minha mãe a respeito de Sofia. Tínhamos o cuidado e a esperança de podermos deixar
que minha mãe não tomasse conhecimento de nossas vidas: nossa realidade era muito
diferente de tudo que ela vivera. Nenhuma ajuda nos viria de sua parte. Seu grau de
conhecimento e de afeto por nós, suas filhas, faziam-na uma pessoa distante, e ela não
poderia, no caso, ter outro sentimento senão o de uma culpa inútil. Apesar disso,
pensávamos que a vida reservasse aos pais um tempo certo para sofrer. Esse tempo,
para ela, acreditávamos, já devia ter passado. No entanto, minha mãe viria ao
casamento. Notaria a ausência de Sofia e era melhor que tudo fosse falado, não só
para ela, mas a todos que quisessem ouvir. Minha mãe se preocupou um minuto com
as notícias, e logo no dia seguinte indagou quem de nós poderia levá-la para ver de
novo a cidade e, se possível, comprar alguns vestidos. Então compreendí que minha
mãe era feliz independente de quaisquer fatos...

O casamento não passou de uma cerimônia muito simples, no apartamento onde


os noivos iriam, pensava-se, viver por muito tempo.

Isabel queria filhos, e deles seria mãe indispensável, não querendo repetir nossa
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mãe que, de tanto se pensar inútil, passou realmente a sê-lo.

Tudo voltou em seguida ao normal, cada um em seu trabalho, minha mãe de


volta à casa. E de novo, fazer alguma coisa por Sofia era tudo a ocupar minha cabeça
e a do próprio Otávio, cuja distância de nós era apenas de espaço.

Uma angustiante alegria nos veio quando formos informados de que o governo
havia assinado o decreto de expulsão de minha irmã.

Tentamos descobrir o dia em que minha irmã deixaria o País. Vinte anos,
jogada numa terra estranha, sem documentos, sem dinheiro, sem ninguém, sem nada.
Tudo muito rápido como se quisessem depressa dispor de um elemento cuja presença
fosse danosa até ao ar. Minha mãe se encontrou conosco e todas nos encontramos
com Otávio, apenas para ver Sofia desaparecer num aeroporto, sem esperança ao
menos de poder falar com ela. Mira estava ausente, mas sua ausência tão antiga não
passava de uma lembrança vaga e sem muito sentido. Por que ela era tão diferente de
nós? No entanto, era certo que também ela era um ser humano, alguma coisa lhe
havia feito tanta falta que naturalmente longe de nós ela a buscava, sem tempo sequer
para estar junto dos seus. Não sabia quem era mais infeliz, Mira, que nos deixara por
querer, ou Sofia, que era obrigada a nos deixar.

No aeroporto, ficamos todos parados, quando vimos minha irmã, uma mochila
nos ombros, as mãos algemadas, ser colocada no avião como um pacote qualquer, os
olhos como que perfurando a distância, tentando nos ver. Como nos doía! A todas as
dores somava-se a impotência de alguma coisa se poder fazer.

De novo em casa, no trabalho tudo igual a esse presente novo, inconsolável


prêmio de um passado cheio de sacrifícios. Trabalhávamos todos, e uma esperança
infundada servia de assunto em nossas horas de encontro.

Isabel quis um filho e às vezes ficava contente. Dizia que a vida tinha de
continuar, e que ela seria continuada pelo filho que haveria de ser tão bom quanto o
seu marido, e teria um País livre como não haviam tido seus pais.

Às vezes, quando deixava o trabalho, passava pela casa de minha irmã e a


encontrava bordando panos simples, ou preparando o berço do filho que iria nascer.
Éramos diferentes, Isabel e eu. Eu teria medo por um filho que me viesse, mesmo que
supostamente de um ato de amor. O ser humano já me causava dúvidas, e o mundo
me parecia de cores apagadas e de poucas luzes.

A empresa onde eu trabalhava havia crescido, o número de funcionários


100

aumentado. Por esse tempo, Manuel chegara de férias e pedira sua demissão. Nós nos
havíamos afastado muito, porque o trabalho e sobretudo meu envolvimento com os
problemas de Sofia não me permitiam sequer pensar em outras coisas. O governo
mudava o corpo do seu dirigente, mas a cabeça e a alma de um não era mais do que a
continuação do outro. Tudo continuava igual, e o progresso e a ordem que serviam
de justificativa para tanto desrespeito não haviam chegado. Homens e mulheres que
se orgulhavam de seu espírito prático afastavam-se do poder político ou com ele
faziam acordos. Uma multidão de indiferentes caminhava pelas ruas, cuidando de
uma aparente e imediata acomodação. Faltavam-me notícias de minha irmã Sofia.
Meus sonhos se povoavam de pesadelos. Foi tanto tempo que se passou assim, que
nele não tenho certeza se vivi.

Atentados continuavam e, mesmo quando as evidências diziam que eles vinham


do poder, conseguiam eles uma prova de que o mesmo havia sido provocado por
outras pessoas inocentes, cuidadosamente escolhidas para receberem a culpa.

Apesar de tudo, na guerra do poder contra a sua própria incapacidade, esse


começava a ser o grande derrotado e algumas liberdades cheias de medo começavam
a despontar. Como obcecada, meus pensamentos repetiam incessantemente: “Onde
está Sofia?” Sua volta ou simplesmente uma notícia me faziam falta.

Um dia recebi uma visita. Viera sem avisos. Era uma garota de nome Débora.
Vinha de um curso de música em Paris. Falou-me de minha irmã como de uma
pessoa muito triste e envelhecida. Tomava conta de crianças numa casa de pessoas
abastadas. Pensava em estudar de novo. Faltava-lhe dinheiro e documentos adequados
para suas pretensões. Débora me disse que se eu pudesse deveria ir ver minha irmã.
A moça se despediu em seguida, sem deixar endereço, desculpou-se, dizendo que não
ficaria na cidade. Nunca soube se era verdade, mas ela me trouxe as preciosas
informações sobre o paradeiro de minha irmã. Era uma esperança.

Uma viagem para ver Sofia me daria tempo para entender melhor as razões não
ditas que levaram Manuel a se demitir de uma empresa onde era querido e bem pago.
Dele recebi um cartão amigo e nenhum outro. Para os outros não havia dúvida,
simplesmente meu amigo, ele se fora e se perderia no tempo como muitos outros. Não
me agradava acreditar nisso, e uma mulher tem sempre argumentos para não acreditar
nas verdades óbvias que não lhe são agradáveis.

Quando as férias me viessem, e antes dela chegasse o filho de Isabel, eu


poderia viajar. Falei disso com Otávio e ele considerou acertados os meus planos. Foi
por isso que, logo depois do nascimento de André e de ter brincado muitas vezes com
suas mãozinhas enrugadas e de me ter dito muitas vezes que era lindo o filho de
101

minha irmã, recolhi fotografias de todos nós, preparei documentos e embarquei para
um país distante, há muito querido pelos seus gritos em favor da liberdade e agora
especialmente amado, porque acolhera minha irmã, quando sua pátria lhe havia
faltado.

A alegria estava morta em Sofia, e ela, que me falou tão pouco, se desculpou
pelos transtornos que o seu sonho jovem nos havia causado. Foi então que eu lhe
disse que, se acaso se devesse pedir desculpas, seria eu a me desculpar por ter
assistido a prisões, torturas e mortes, e em todo esse tempo não ter sido capaz de
pensar em qualquer coisa que não fosse em mim mesma.

Andávamos juntas pelas ruas que não víamos, o céu cinzento e o frio pedindo
agasalho, e falávamos de esperanças. Mas eu vi aflita que ela não mais sabia o sentido
de palavras que a levassem a um futuro. Levei-a a um médico, esperando que ele
pudesse ressuscitar a irmã alegre, brincalhona e bonita que eu havia tido.

O tempo me disse que eu devia voltar. A vida continuava e de novo eu teria a


rotina do meu trabalho, onde o entusiasmo de meus primeiros anos cedia lugar a um
cansaço entediante.

Íamos ao meio de mais um dia de trabalho, quando o Sr. Antônio me disse que
estava cuidando de alguns papéis e depois precisava falar comigo. Nosso trabalho
não tinha coisa alguma em comum, e sua comunicação não me apresentava um
sentido evidente. E só quando todos os outros funcionários deixaram seus postos ele
me disse estar em condições de me receber em sua sala. A porta se fechou logo que
eu entrei. O Sr. Antônio me falou com cerimônia e sem objetividade: “Tenho algumas
filhas... Alguma experiência como pai... e quero lhe mostrar uma coisa que nos
chegou ontem, e que me parece não lhe será agradável”. Estava sobre a mesa um
grande envelope que me foi entregue, com delicada ordem: “Abra”.

Não fui capaz de imaginar o conteúdo. O estranho nome de Manuel me


assustou. O convite de casamento com uma mulher que não era eu. Não me lembro
como me senti. Sei que não fiz comentários, e quando deixei a empresa não fui para a
minha casa. Andei pela rua, procurei recompor o meu rosto. Aquela dor era diferente
e não devia ser pública, ninguém haveria de saber que eu a senti. Não havia
culpados. Manuel teria me falado se eu o tivesse permitido. Era uma nova perda no
meio de tantas outras. Quando criança, minha mãe me havia dito que chorar é um
luxo, eu não deixaria que minhas lágrimas tão íntimas fossem vistas por ninguém.
Voltei ao trabalho para o segundo expediente e naquele dia, mais que em qualquer
outro, fui gentil e alegre no meio dos meus colegas que, cientes de tudo, não
compreenderam como eu me sentia, e foram discretos o suficiente para me garantirem
102

a liberdade do silêncio.

Meus dias de trabalho eram compensados nos finais de semana, quando em


casa de Isabel eu sentia que eles eram felizes e se amavam e me dava paz tentar fazer
com o meu rosto o mesmo sorriso inocente do pequenino André, agora que,
prenunciando uma repetição de todas as vidas, suportava pequeninas quedas e à
cada uma delas se compensava tentando andar de novo. Meu mundo começava a
ficar vazio de quaisquer vínculos e minhas pequenas quedas se tornavam freqüentes e
demoradas.

A dor não nos pergunta se pode insistir nas incômodas visitas que nos faz.
Certa manhã, quando acreditava que pensando em mim mesma me havia esquecido de
Sofia e de todos os tropeços que a acompanhavam naquele país estrangeiro, alguém
tocou a campainha de minha casa. Dir-se-ia uma campainha que, à falta de visitas se
tornara praticamente inútil. Um jovem soldado, bonito, uniforme impecável, falando
de cor e sem emoção, começou o discurso do absurdo: “De ordem de meu superior
trago à Senhora um comunicado que diz :

- O comando militar das forças armadas informa à família de Sofia Lopes de


Macedo que na noite do dia 15 de dezembro, estando a mesma fora de seu país,
jogou-se diante de um trem, tendo morte imediata. O comando militar autoriza a
família, se esta o quiser, que providencie a remoção do corpo para este país. E
pesarosamente apresenta aos familiares os mais sentidos pêsames.”

Não vi, não sei por que, vizinhos vieram à minha casa. Um deles apanhou
minha agenda e telefonou para meus irmãos, cujos nomes nunca soube se eles sabiam.
Eu os olhava a todos e esperava... ainda hoje não sei o que esperava. Mas esperava e
todos os meus irmãos chegaram para que juntos testemunhássemos todos o absurdo
sofrimento de cada um. Alguém se lembrou de minha mãe. Era melhor que ela viesse
até nós. O tempo não nos permitia sair. Otávio providenciava a remoção do corpo e
ainda não nos havia permitido qualquer sinal de sofrimento.

Assentados em minha casa, estivemos muitos dias esperando. A maior parte do


tempo ficávamos a sós. Uma semana não é tempo que se possa esperar pelos outros.
Nós, os irmãos, podíamos, porque esperávamos um pedaço de nós mesmos, tirado a
força em nome de todas as mentiras.

Minha mãe chegou e sem palavras se assentou junto de nós. Otávio retornou da
rua e disse que alguém cuidaria de tudo e na hora exata em que um avião chegasse,
viriam nos buscar. Não se necessitava de maiores informações, nem mesmo de frases
completas.
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O homem chegou e na porta aberta do apartamento disse: “O carro está à


disposição”. Descemos a escada, Otávio amparando minha mãe e cada uma de nós
prestava atenção para que a outra houvesse entendido o comunicado. No carro, fomos
em silêncio. No aeroporto, esperamos até que a madrugada nos trouxesse o avião.
Para as providências, meu irmão envelhecido de dor e de cansaço, não teve outra
ajuda senão a de Mira.

Fomos ao cemitério, dois carros. Um nos levando, a nós que os outros


acreditavam estarmos vivas. O outro levava o corpo de minha irmã, que ninguém se
preocupou em ver. Sepultamos primeiro à noite, porque os sepultamentos são solenes
e se fazem à luz do dia. Mas sua solenidade não teve testemunho de padres, pastores
ou rabinos, nem mesmo de quaisquer amigos. Rodrigo estava conosco, mas ele havia
em tudo se tornado um de nós, não era apenas um amigo.

Quando tudo passou, voltamos para a casa de Isabel, o mundo exterior só fazia
aparecimento quando o pequenino filho de Isabel, andando pela sala, falava a língua
ingênua que os adultos sempre pensam que entendem.

Há um dia marcado para o término do sofrimento e quando ele chega, cada um


vai para sua casa e retorna ao seu trabalho. E foi assim que, como todos os outros,
também nós fizemos.

Quando cheguei de novo ao meu trabalho, meus colegas, mesmo estranhos,


abraçaram-me e disseram-me as coisas que também devem ser ditas nessas ocasiões, e
eu lhes respondi como respondem os outros.

O mundo não parecia entender que minha irmã estava morta, tinha vinte anos e
seu único desejo era o de que todos estivessem livres.

Não sei se eu queria que me ouvissem. Mas era preciso que alguma coisa
acordasse o mundo emudecido que me deixava tão só mergulhada em sofrimento. Foi
por isso, não sei, talvez tenha sido, que de repente abri meus braços sobre minha mesa
de trabalho e muitas coisas caíram pelo chão, os lápis e canetas espalhados, um copo
cheio de água molhou o que estava por perto. Meus colegas vieram até mim e depois
chegou um médico e eles se foram.

O médico chegou e, em silêncio, ficou me olhando muito tempo e depois me


perguntou se eu sabia meu nome, se sabia que minha irmã estava morta. Não sei por
que me perguntava essas coisas, e por isso não lhe quis responder. Ele, o médico da
empresa, me via todos os dias e nos parecia tão bom, mas poderia estar a mando da
polícia, e talvez quisesse saber o que eu pensava para contar aos homens maus que
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trabalhavam para o exército. Não lhe respondi, e quando ele insistiu, eu disse que me
chamava Sofia, porque se quisessem me matar, matariam minha irmã que já estava
morta há muitos dias. Ele disse que eu estava doente e quis levar-me para o hospital.
Meus amigos acreditaram que o médico estava certo, e eu exigi que um deles me
acompanhasse, porque o médico, pensando coisas sem sentido, poderia querer me
matar e dizer aos outros que, como minha irmã, eu me matei porque estava doente.

Puseram-me para dormir, porque o sono é a morte e, a morte, o descanso. E


quando me acordaram, o médico estava lá de novo, segurava minha mão e sorria, e foi
aos poucos me falando muitas coisas, cujo sentido tento agora organizar.

Ele me disse que não se pode ser feliz onde estamos, mas se desempenharmos o
papel de alegres artistas, e os outros pensarem que somos felizes, felizes seremos mais
amados. Disse-me também que eu devia me portar como uma pessoa capaz, porque os
incapazes são marginalizados. Se dissermos que somos capazes, os outros não
acreditarão, mas como são gentis e não têm tempo para discordar, todos dirão conosco
que somos realmente capazes. E os capazes são admirados. Feliz e capaz é uma
questão de saber fazer o jogo da conveniência no meio de todos, que outra coisa não
fazem a não ser se portarem bem diante dos jogos de suas vidas.

E em quarenta e cinco dias e no mesmo número de noites, o médico me falou


dessas coisas e com elas me disse que eu sou muito inteligente, não podia deixar de
compreender tudo que ele me disse, outros são mais inteligentes e não é preciso gastar
tanto tempo ouvindo um médico lhes dizer coisas tão óbvias.

O médico disse que eu era inteligente e capaz e então entendi o jogo dos felizes
e vitoriosos.

Quando deixei o hospital, pedi demissão de meu emprego e numa loja comprei
vestidos elegantes, e uma clínica de estética completou o quadro da mulher que o
médico me disse que eu devia ser. Os anúncios de jornal me indicaram um conjunto
de salas onde a mulher vitoriosa, descrita pelo médico, e independente como me
queria o meu pai, pôde abrir um luxuoso escritório de consultoria empresarial.
Comprei móveis e dei ordens autoritárias a todos que me vieram servir. Tudo se fazia
rápido, porque as pessoas importantes têm urgência do tempo e é preciso que se lhes
dê importância.

Lá fora, os homens do governo se disfarçavam cedendo seus espaços para que


distraidamente outros lhes ocupassem o lugar. As ruas continuavam cheias de gente,
cada uma no seu espaço, não tinham idéia de que poderiam estar juntas.
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Quando poucos dias se haviam passado e eu estava só, sem risco de prejudicar
minha nova imagem, me vi cansada, o rosto velho, a vida inútil e perdida, deixei-me
cair numa poltrona porque outro lugar mais perto não havia.

Chorei minhas verdades ocultas pela imagem de uma nova mulher, e foi
quando, de dentro de meu escritório, vi que a praça estava cheia de gente unida e
todos gritavam uma palavra cujo sentido eu agora podia compreender.

De pé lembrei-me de que um dia, minhas roupas envelhecidas, procurava


emprego em portas que se fechavam, de minha irmã que me acusara de roubar-lhe a
herança de meu pai, e de Sofia, a mais querida de todas, que, não tendo mais forças
para lutar pela liberdade, se jogara na frente de um trem.

Lágrimas desceram no meu rosto, e, no equilíbrio que nos leva a nos assumir
que somos nós mesmas, gritei com todos os outros uma palavra que rompendo o
tempo daria frutos de liberdade.

A noite havia terminado.

ERA A AURORA...

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