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Kinsey fala de sexo

Para uns, um grande pesquisador. Para outros, um devasso fraudador da ciência. Conheça a vida e o trabalho do
homem que passou a vida tentando provar que, no sexo, tudo é normal

Por Da Redação, Publicado em 28 fev 2005, 22h00, escrito por Álvaro Oppermann

Não era fácil viver no ambiente puritano dos Estados Unidos no início do século 20. Em 1902, dois homens foram
internados num hospital de Nova Orleans com o diagnóstico de masturbação compulsiva. Em um deles, foi colocado
um anel no prepúcio, que tornava extremamente dolorosa a masturbação. O outro foi circuncidado para ter a
sensibilidade reduzida. Como os tratamentos não funcionaram, ambos foram castrados. Os pacientes não resistiram
aos procedimentos brutais e morreram ainda no hospital.

Alfred Charles Kinsey tinha 8 anos quando isso aconteceu. Seu pai era um religioso fanático, que proibia o álcool, o
fumo e até as danças de salão. A repressão em casa não ajudou muito quando ele, adolescente, se deu conta que
sentia atração por garotas e garotos. Kinsey se casou virgem aos 25 anos. Na lua-de-mel, uma nova descoberta: sexo
não era nada divertido. Seu pênis era grande demais e a penetração, terrivelmente dolorosa para sua esposa.

O jovem foi buscar ajuda com médicos e viu que nenhum deles tinha a menor noção do que estava acontecendo.
Naquela época, sexo era um assunto que não deveria ser discutido nem entre quatro paredes. Foi aí que Kinsey decidiu
estudar o assunto. Durante todo o tempo, era guiado pela sua própria necessidade de entender – ou justificar, como
afirmam alguns críticos – sua falta de ortodoxia quando o tema eram preferências sexuais. Kinsey investiu 30 anos de
sua vida para provar que, quando o que está em jogo é a intimidade de cada um, o normal e o anormal são meras
convenções.

AULAS DE HIGIENE

Sexo não foi o primeiro interesse do cientista Alfred Kinsey. Logo depois de se graduar como zoólogo no Bowdoin
College, ele foi pesquisar vespas. Obcecado pelo objeto de estudo, chegou a catalogar 1 milhão de exemplares do
gênero Cynips. Tamanha dedicação lhe rendeu respeito entre os colegas e um convite para lecionar na Universidade
de Indiana. Foi lá que conheceu Clara McMillen, a estudante de química que se tornou sua esposa. Foi lá também que
começou a ministrar aulas no Curso de Higiene (um eufemismo para o programa de educação sexual da universidade).
O jovem professor deixou de lado metáforas e explicações teóricas e exibiu slides com detalhes de genitálias e órgãos
reprodutores.

As respostas positivas dos alunos atiçaram o desejo de Kinsey de aprofundar-se no estudo da sexualidade humana.
Colocou a si mesmo a meta de coletar 100 mil depoimentos sobre a intimidade dos americanos nos dez anos seguintes
(um objetivo que ele nunca alcançou).

A experiência na catalogação de vespas deu a ele o instrumental metodológico necessário para elaborar um complexo
questionário, com 521 perguntas que iam de memórias na infância a episódios de experiência sexual. “Kinsey era um
biólogo. Ele usou seu treinamento científico para fazer perguntas importantes sobre a biologia sexual dos humanos e
sua maneira de pensar era essencialmente classificatória”, diz o sociólogo Edward Laumann.

FALANDO DE SEXO

O trabalho começou dentro do campus da universidade, mas, em 1941, despertou o interesse da Fundação Rockefeller,
que concedeu uma bolsa a Kinsey. Com o dinheiro, conseguiu ampliar o âmbito da pesquisa a várias cidades americanas
e contratar três colaboradores.

A ênfase da pesquisa era a diversidade sexual. “Meu trabalho com insetos salientou as variações individuais dentro
dos grupos. Procedo da mesma maneira no estudo de seres humanos”, dizia. Kinsey sempre negou que o
comportamento humano pudesse ser dividido em categorias rígidas como “hetero” e “homo” e classificava tal
mentalidade como “pensamento binário”. Um dos melhores biógrafos do pesquisador, James H. Jones, acredita que o
fato de o cientista privilegiar padrões que fugiam à regra geral de comportamento era uma forma de entender sua
própria sexualidade. Já a mais ferrenha crítica de Kinsey, a terapeuta e estudiosa do sexo Judith Reisman, acredita que
a tendência homossexual do pesquisador invalida seu trabalho. “Kinsey estava mais preocupado em legitimar a
nascente ideologia gay do que em esboçar um amplo painel sobre a sexualidade nos EUA”, diz ela.
Junto com seu staff, Kinsey entrevistou mais de 18 mil voluntários de costa a costa nos Estados Unidos. As entrevistas,
contudo, eram só uma parte do trabalho. Para analisar as reações humanas durante a penetração vaginal e anal, o
coito e a masturbação, Kinsey filmava relações sexuais no sótão de sua casa. As primeiras sessões – onde troca de
casais e relações homossexuais eram regra – contaram apenas com seus subalternos e esposas. Com o tempo, Kinsey
conseguiu engrossar a lista de voluntários com prostitutas, garotos de programa e até personalidades (o cineasta
underground Kenneth Anger, por exemplo, concordou em ser filmado se masturbando).

O resultado das pesquisas foi publicado em 1948, no livro Sexual Behavior of Human Male (“Comportamento Sexual
do Homem”, sem edição no Brasil. A obra revelava coisas que a sociedade puritana do século 20 jamais havia admitido
em voz alta. Foi um sucesso inesperado. Em dois meses, 200 mil exemplares sumiram das livrarias e Alfred Kinsey
transformou-se em celebridade. O sucesso, porém, fez emergir diversas críticas ao seu trabalho. Margaret Mead, uma
das maiores antropólogas da cultura na época, viu na obra, ironicamente, um puritanismo disfarçado: em nenhum
momento havia a sugestão de que o sexo podia ser algo prazeroso. Outro antropólogo, Geoffrey Gorer, identificou
problemas estatísticos na pesquisa. Para ele, os entrevistados – muitos deles presidiários condenados por atentado ao
pudor e pedofilia – não representavam uma amostra válida da sociedade americana.

O ponto mais polêmico do livro, contudo, foram revelações sobre o orgasmo infantil. Kinsey se correspondia com
regularidade com homens pedófilos e foi acusado de conivência pelos críticos. Judith Reisman, por exemplo, costuma
se referir a ele como “o maior propagandista de pedofilia na história da ciência”. Grande parte dos dados apresentados
provinha das anotações de um misterioso “Sr. X”, que havia mantido relações sexuais com mais de 600 pré-
adolescentes.

O livro seguinte, Sexual Behavior of Human Female (“Comportamento Sexual da Mulher”, também sem edição no
Brasil) saiu em 1953 e não escapou das críticas. Prostitutas e presidiárias ganharam uma participação desproporcional
nas páginas da obra, enquanto 934 depoimentos de mulheres negras do sul dos EUA (uma parcela conservadora da
sociedade americana) foram excluídos do livro. Os críticos acreditam que essa seleção visava dar ao volume tons não
puritanos.

O livro não teve uma reação tão calorosa do público. As vendas foram minguadas e, para piorar, a Fundação Rockefeller
retirou-lhe o financiamento no ano seguinte. Com a saúde já debilitada pela idade e pelas experiências masoquistas
que infligia a si mesmo (para testar os limites humanos da dor, Kinsey introduzia objetos pela uretra e fez a circuncisão
em si mesmo sem anestesia), Kinsey morreu em 25 de agosto de 1956, vítima de complicações cardíacas.

SEXO DEPOIS DE KINSEY

Kinsey mudou a história da ciência sobre sexo. “Ele foi um pioneiro e nos ajudou a dar os primeiros passos em pesquisas
sexuais”, diz Beverly Whipple, uma das sexólogas mais renomadas da atualidade. O instituto criado por ele em 1947
continua a fazer pesquisas no campo da sexualidade humana. O foco, no entanto, não é mais a catalogação de
diferenças comportamentais. “Hoje não estamos mais tão interessados no que as pessoas fazem, mas sim no porquê
de o fazerem”, afirma Vern Bullough, do Centro de Pesquisa sobre o Sexo da Califórnia.

A repressão sexual, no entanto, ainda está longe de desaparecer e o país natal de Kinsey é um dos melhores exemplos
disso. No estado do Texas, por exemplo, relações homossexuais eram consideradas crime até junho de 2003. E, em
novembro de 2004, quando o filme do cineasta Bill Condon que retrata a vida de Kinsey foi lançado, a reação de uma
parte dos americanos não foi nada receptiva. Grupos fundamentalistas montaram piquetes na entrada das salas de
cinema para impedir a exibição e espalharam mensagens acusando o diretor de fazer um retrato suave do “homem
que degradou os valores morais da América”.

Usando como justificativa os alarmantes dados sobre doenças venéreas no mundo, os conservadores – entre eles, o
governo Bush – se opõem à liberdade sexual (que classificam como libertinagem) e pregam a abstinência até o
casamento, uma recomendação muito parecida com a que era dada nos Cursos de Higiene da Universidade de Indiana
em 1938. A cruzada de Kinsey, pelo visto, ainda não terminou.

O fracasso na lua-de-mel mostrou a Kinsey que sexo era tabu até entre cientistas. Ele resolveu investigar o que os
americanos faziam na cama

Kinsey catalogou detalhes da intimidade de pelo menos 18 mil homens e mulheres. Foi pouco, perto do projeto inicial
As revelações do sexólogo causaram tanto alvoroço que Kinsey virou uma celebridade. Seu nome foi parar em letras
de música de gente como Cole Porter e da cantora pop Martha Raye.

Apesar de escritos numa área linguagem científica, Comportamento Sexual do Homem lançado em 1948 (capa preta)
e Comportamento Sexual da Mulher lançado em 1953 (capa de azul), tornaram-se best sellers e iniciaram uma cruzada
contra a repressão sexual nos EUA.

Olho no olho

Como eram feitas as entrevistas que compõem os relatórios

Kinsey contratou o antropólogo Paul Gebhard, o psicólogo Wardell Pomeroy e seu aluno Clyde Martin como ajudantes.
Treinou-os de forma obstinada até que estivessem prontos para as entrevistas. Mudanças no tom de voz, na expressão
facial e no olhar eram ensaiadas de forma minuciosa, a fim de ganhar a cumplicidade do entrevistado. O nome de
todos os voluntários era mantido em sigilo. Os quatro percorreram todos os estados americanos, concentrando-se em
grandes cidades como Nova York, Los Angeles e Chicago. Os locais preferidos para entrevistas eram universidades,
prisões, bares e banheiros públicos. Lugares gays, onde era possível falar de sexo sem ser literalmente apedrejado,
entravam na lista com freqüência.

O que Kinsey revelou

Comportamentos “anormais” eram regra na intimidade dos americanos


O que eles fazem
Os dados divulgados por Kinsey eram chocantes e foram contestados por muitos cientistas. Pesquisas posteriores mostraram
números bem mais baixos em vários dos quesitos relacionados em seus relatórios
• 90% dos americanos se masturbam
• 37% já tiveram alguma relação homossexual
• 10% são exclusivamente homossexuais
• 11% fazem ou já tentaram fazer sexo anal com suas esposas
O que elas fazem
O relatório sobre comportamento feminino provava que a mulher era tão sexualmente ativa quanto o homem. Por causa das
informações que divulgou, Kinsey foi acusado de comunista e de querer destruir os lares americanos
• 69% têm fantasias sexuais com outros homens que não os maridos
• 62% das mulheres se masturbam
• 26% traem os maridos
• 19,1% praticam sexo oral antes do casamento
• 13% já tiveram alguma relação homossexual
• 3% a 6% são exclusivamente homossexuais
Sobre crianças
A parte mais polêmica das pesquisas de Kinsey tratava da sexualidade infantil. Colhendo depoimentos de homens pedófilos, o
sexólogo montou tabelas de estimulação erótica em crianças. Veja algumas das informações que ele recolheu
• Um bebê de 11 meses teria tido 10 orgasmos em uma hora
• Uma menina de sete anos teria tido 3 orgasmos em uma hora
• Um menino de 13 anos podia chegar a 19 orgasmos por hora

Ascensão e queda

Reportagens da imprensa americana mostram a trajetória da vida de Alfred Kinsey

O primeiro volume da pesquisa é recebido com grande entusiasmo

“As descobertas do Dr. Kinsey oferecem uma nova base para a compreensão do sexo. Precisamos revisar nossos
conceitos morais e legais sobre o assunto.”

The New York Times, 4/4/1948, após o lançamento de seu primeiro livro

“O doutor Kinsey colocou o sexo em pauta até na mesa de jantar. O sucesso da obra é merecido. Ela é revolucionária.”

The New York Times, 16/5/1948. Comportamento Sexual do Homem já era um best seller

A reação do público e da mídia ao segundo livro, sobre mulheres, é menos entusiasmada


“Estamos em dívida com Kinsey por causa da sua contribuição à ciência. Trata-se, porém, de uma contribuição, e não
de um tratado definitivo. Ao leitor, recomenda-se cautela.”

Revista Time, 13/9/1953, após o lançamento de Comportamento Sexual na Mulher

A polêmica em torno de seu trabalho fez Kinsey perder o patrocínio

“Kinsey afirma que grupos religiosos têm feito pressão para que a Universidade de Indiana e a Fundação Rockefeller
acabem com o patrocínio para seus estudos”

The New York Times, 6/5/1954, alguns meses antes de ele perder o patrocínio

“O presidente do Comitê para Assuntos Sexuais disse ontem que os fundos da Fundação Rockfeller para o Dr. Kinsey
foram retirados porque seu instituto não solicitou uma renovação do patrocínio”

The New York Times, 24/8/1954, um dia após o sexológo perder o patrocinador
Para saber mais
Nos cinemas:
Kinsey – Vamos falar de sexo – Direção e roteiro de Bill Condon. Lançamento: 11 de março
Na livraria:
Alfred. C. Kinsey: A Life – Ralph Keyes, St. Martin’s Press, EUA, 2004
Na Internet:
Kinsey Institute – http://www.indiana.edu/˜kinsey
The Institute For Media Education – http://www.djrudithreisman.com

Disponível em: https://super.abril.com.br/historia/kinsey-fala-de-sexo/


Acesso em: 05.04.2017

Questões para observação no filme:

1 – “Kinsey” retrata duas pesquisas, uma realizada por vespas (insetos) e outra com seres humanos. Qual a
importância ou relevância, ou impacto, que cada pesquisa tem?
2 – Observe as técnicas de coleta de informações/dados para cada um dos tipos das pesquisas (Vespas e
seres humanos). As formas de coleta mudam com o avançar das pesquisas?
3 – Como podemos classificar cada uma das duas pesquisas retratadas no filme “Kinsey”?
4 – Observe como o filme retrata os bastidores da produção científica: financiamento, opinião pública, apoio
das universidades, repercussão etc.? As ideias e resultados de Kinsey foram aceitas pacificamente? O nível
de aceitação variou nas duas pesquisas?
5 – Observe como o filme retrata a relação da pesquisa com seres humanos e a opinião pública e a mídia da
época.
6 – O pesquisador Alfred Kinsey e sua equipe utilizam-se de vários fontes e forma de coleta de dados:
entrevistas, depoimentos, objetos culturais, vídeos etc. Há um destaque para uma forma de coleta de dados,
a entrevista. Descreva a postura do pesquisador para e durante as entrevistas.
7 – Na medida em que envolvem seres humanos, há questões éticas, controvérsias sócio científicas, nas
pesquisas científicas. Como as questões éticas são retratadas no filme?
8 – Observe a atitude desenvolvida pelo pesquisador Alfred Kinsey. Como um abnegado, um asceta da
ciência, ele converte grande parte da sua vida à causa da pesquisa e se deixar absorver pelo programa de
pesquisa elaborado.

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