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Trans/Form/ Ação , São Paulo

5: 35-42, 1 982.

P LATÃO E O PENSAMENTO GREG O . *

Francisco Benjamin de SOUZA NETTO · ·

RESUMO: O Pensamento de Pla tão tem o encanto das estátuas de Dédalo: esvai-se pelos mean­
dros do discurso, tão logo se pretenda tra var com ele uma relação de domínio. A sua correta interpreta­
ção exige que se assuma a Polis com o o lugar na tural no qual emerge, como a limitação que ele se pro­
põe superar remontando à Fysis e ao Ser. Fazê-lo importa em captar o movimento que lhe é próprio,
partindo da questão sobre o ente e visualizando a resposta como o enunciado de sua essência, isto é, do
eidos, e de seu fundamento, isto é, do Bem como nome próprio do Ser. Determinando o ente em sua es­
sência, o eidos é a medida de toda a adequação, da episteme à Polis.
UNITERMOS: Platão; Aristóteles; Pré-Socráticos; Homero; Hesíodo; ser; ente; eidos; forma;
epÍsteme; ciência; lagos; mythos; mitologia; teologia; idealismo; racionalismo; polis; política; fysis; na­
tureza; metafísica; física .

INTRODUÇ Ã O ma(27). Assim sendo , uma Filosofia


Desde o Pensamento Grego, denomi­ Transcendental da H istória ou, m ais cor­
nação e conceito, Filosofia e H istória rentemente, uma Epistemologia desta e
não apenas uma Fenomenologia e uma
confrontam-se e se alteram em sua recí­
proca relação . Interrogar-se sobre a racio­ Ontologia da História é uma questão ain­
nalidade da História é filosofar sobre esta da em aberto , se não na preocupação do
e o é também o questionar radicalmente a Filósofo, ao menos na do Historiador e,
historicidade da Filosofia. Mas fazer am­ em especial, na do Historiador da Filoso­
bas as coisas só comporta uma resposta fia. É o que se expressa correntemente
que não se esvazie na pura abstração , se se quando se pergunta se a História é uma
procede à empresa de gerar e articular um Ciência (4) .
discurso que, ao ser " IOTOe la " , o faz sem­ É proveitoso deter a atenção por um
pre segundo uma certa racionalidade . A instante nesta última formulação da per­
Crítica ao Historicismo tornou menos gunta; mesm o no quadro de uma exposi­
presentes estas questões, não as tornou ção que deve passar ao caso particular do
men.os atuais: ao contrário , deixando-as pensamento antigo e de P latão em espe­
em aberto, por ter permanecido tão­ cial . Com efeito, a Ciência se concebe co­
somente "Crítica " , ela não foi até o seu mo obra do Entendimento e da Razão .
próprio fundamento, isto é, nem respon­ Com isto quer-se dizer que só é Ciência o
deu à questão, nem precisou qual a efetiva Saber que discorre sobre o seu objeto se­
possibilidade de uma resposta à mes- gundo uma certa racionlilidade. Isto é o

• Comunicação pronunciada pelo autor na mesa de debates sobre " Antiguidade Clãssica : Os impasses do H istoria­
dor", durante a VI Jornada de Filoso fia e Teoria das Ciências Humanas na UNESP - Campus de Marília, no dia
23/09/8 1 .
• • Departamento d e Filosofia - Faculdade de Educação, Filosofia, Ciências Sociais e d a Documentação -'- UNESP
- 1 7.S00 - Marília - SP.

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mínimo a se admitir . Ora, deste mínimo origem, como algo inserto no espaço­
decorre o seguinte: só pode haver Ciência tempo (embora a ênfase, por enquanto,
quanto ao objeto de um certo saber se re­ seja posta no tempo) e o que dela é mais
conhece a racionalidade, advenha esta do próximo são " algo" , são o referente do
sujeito, seja inerente ao próprio objeto, discurso, a "História" em accepção obje­
ou associe um e outro fundamento . Pen­ ti..a. Assim, poe-se a todo o pesquisador
sar um discurso racional sobre um objeto uma questão: o que precisamente tem ele
privado de toda a racionalidade é uma por referente quando diz uma Filosofia
contradição nos termos. Isto quer dizer: "Antiga" . Primeiramente, como já se es­
toda ciência e cada ciência pressupõe co­ clareceu, a sua remota situação "no tem­
mo seu campo, objeto ou referente algo po" . Nesse sentido, a Filosofia diz-se his­
caracterizado por uma certa ordem , algo tórica, mas ainda em accepção crônica e,
que, de algum modo, transcende a pura portanto, com referência a uma exteriori­
indeterminação . Por conseguinte, ser a dade inessencial . Ocorre, então a questão :
História Ciência pressupõe a racionalida­ quem a produziu? E esta se abre a uma
de do histórico, daquilo "de que" ela é a outra maior: qual o seu processus de pro­
" "
loToQla . dução nas dimensões e momentos que o
De forma muito geral, pode-se dizer definem? Em meio a estas questões, nelas
que a História visa a compreender a racio­ implicada, a questão essencial se formula:
nalidade do devir humano no espaço­ o que é precisamente esta Filosofia cuj o
tempo . Ora, ao fazê-lo , ela se dá conta processus de produção remonta a momen­
que a racionalidade deste mover-se, tos determináveis no tempo e neste se per­
de tudo o que o homem é ou realiza, não é faz sob esta ou aquela forma?
o que há de mais accessível . A Racionali­
A resposta deve formular-se a partir
dade, a própria Razão de ser do Sujeito
de algo. Este "algo" é, da parte daquele
da Razão, tem escapado não só ao Saber
que se interroga, o que ele próprio define
Imediato, mas mesmo ao esforço
como "Filosofia" . Usou-se, aqui, a pro­
mais sistemático . O Debate permanece
pósito e de propósito, o verbo "definir" .
aberto. De Hegel aos tempos que correm ,
Definir quer dizer demarcar, estabelecer
reluta-se ainda em se pensar a História co­
fronteiras . A grande questão da História
mo o puro domínio da inconstância e do
da Filosofia, visada como Saber, é discer­
arbítrio. E , se as Filosofias da História
nir o que lhe cabe considerar e que níveis
não estão mais na ordem do dia, não obs­
ou momentos de desigual importância es­
tante, faz-se História, faz-se Filosofia e a
ta consideração comporta, bem como
abordagem desta tem por sua via a mais qual a articulação racional destes momen­
habitual a sua própria História . Eis a tos . O presente estudo privilegia o "caso"
questão a ser abordada. Ampla em exces­
Platão e não por acaso . Visualizado de
so, ela o será, aqui, a partir do caso maisseu exterior, é o Pensamento deste Filóso­
restrito da Filosofia Antiga e de seu su­ fo accessível primeiramente em seus
posto apogeu em Platão. "Diálogos" . Há, depois, a Doxografia,
de Aristóteles e Diógenes Laércio e póste­
1 . PLATÃO E A CULTU RA HEL�NI­ ros . Enfim, há uma " Interpretatio Recep­
CA ta" , toda u ' a massa de leituras ainda pos­
Denominar uma Filosofia " Antiga " teriores, feitas de concórdia e discórdia, a
já é começar a fazer H istória. Mas, o que seu modo também uma doxografia. O que
faz uma Filosofia " antiga" ? Ao nível de haveria o autor de considerar? Os Diálo­
uma generalidade abstrata, o fato de ela gos? É a resposta espontânea, freqüente­
remontar no tempo a uma proximidade mente ingênua(6) . Neste caso, o de se as­
máxima de uma supo sta origem . Ora, esta sumirem os Diálogos como momento

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principal e sempre instância decisiva, a e a Filosofia e esta aberta à "tÚOIÇ" ou


História passa a ser História de um texto, restrita ao "VÓjlOç" •

isto é, de um discurso que chega ao histo­ Esta questão não é, porém, debatida
riador em sua tecitura escrita. A conside­ sob a forma de um Tratado Sistemático e
ração vale para o " Corpus Aristoteli­ muito menos segundo uma Didática que
cum" e para toda a Filosofia: esta é, em pretenda transferir conhecimentos como
si, um discurso e só como tal pode ser his­ quem faz a água fluir de um vaso a ou­
toriada. Nesse sentido pode-se chegar a tro ( 1 3) . A forma de seu Debate, sabe-se,
um acordo. Mas trata-se de um acordo é o Diálogo . Este, p o r sua vez , não deve
ainda abstrato . Resta saber como realizar ser concebido como um simples gênero,
a obra que se tem por objeto a partir de na acepção meramente formal da P ala­
um tal acord o . Com efeito , obtido este, vra: o seu autor é, neles, o M estre mesmo
põe-se a clássica " questão d o Méto­ da Academia a fazer fluir o P ensamento
do"(5 ) . Esta é tanto mais grave quanto vivo . É no elemento do Diálogo, desde a
menos se crê que não só como " Interpre­ invenção da Maiêutica, que aflora tudo o
tatio" mas mesmo como simples " inven­ que vem a ser na Fysis e tudo o que vem a
tio" . ser a Polis. Em verdade, mesmo reconhe­
O caso " P latão " é privilegiado na cendo a relatividade de cada homologia
História da Filosofia. Para uma historio­ considerada em separado, P latão reco­
grafia menos preocupada com a Crítica nhece, antes de Aristóteles (3), que a gêne­
ao H istoricismo do que com a sua própria se do saber se processa a partir d o que é
racionalidade, nele, P latão , o que se de­ mais chegado ao homem que a empreen­
para é a racionalidade do mundo helêni­ de. Parte-se daquilo com o que se faz
co. Sem dúvida, também , para ela tudo fronteira : empeiria, a experiência é limita­
principia por uma " quaestio disputata " . ção . E o que articula o helênico com a
Do epos homérico a o logos platônico, Fysis e o Ser é a P olis ! P arte-se dela como
caminhou-se. P ode-se pensar que este ca­ "niQaç" , como Finis e Terminus, como li­
minhar foi um mero aglutinar-se, uma mitação . Sobre ela o Pensamento incide
justaposição no tempo do que se acotove­ primeiro; os primeiros Diálogos debatem
lou no espaço . Mas nada assegura a nin­ as suas formas e instâncias , valores e figu'­
guém que esta confusão sej a mais do que ras o Entretanto , desde o início pode-se no­
aparência. O primeiro sinal disto é o pró­ tar: a força do Diálogo mede-se pela radi­
prio despertar no homem da preocupação calidade com que a questão se imposta e
histórica: resta sempre a aporia de o acaso responde. O que se procura é " aUTO TO E:I ­
jamais poder ser pensado sem a necessida­ doç . . . , . . . aÕT� T 'IV Id{au" (7) .
de. De qualquer forma, admitida a racio­ O contexto deixa claro que esta, a
nalidade, pode-se pensar que esta se ins­ idéia, responde à questão : "-?IÇ nOTI')
taura sob a forma de uma evolução ho­ ÉOTlV" (8). Em verdade, uma limitação
mogênea ou de uma Dialética na qual, de não é posta se não para ser transgredida:
algum modo, cada momento é o contrário a própria P olis remete a suas raízes na
do que o antecede. Fysis e esta a seu Fundamento : a questão
"o que é" só pode encerrar-se com o des­
No que concerne a Platão, admitida velamento do Ser. E o próprio Saber, se,
a última via, ao menos porque m ais ár­ na condição presente d o homem , não po­
dua, este m omento antecedente, mas tam­ de prescindir da gênese, só se perfaz quan­
bém englobante, é uma totalidade concre­ do a transcende e se eleva ao Bem : o seu
ta : a Polis grega com sua praxis própria, a lugar natural é a verdade deste irradiante .
política, e com suas formas simbólicas e Estas simples considerações esboçam
teóricas, m uito especialmen te a Tragédia a complexidade d o quadro . Platão debate

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a Polis c o m o totalidade e a totalidade de seu Pensamento mais maduro e m " O P ar­


suas relações com tudo o que recobre a mênides " ( 1 5), o próprio P latão perma­
"'VOII; " . Seria inútil descriminar : ele o nece ao nível da questão , do desafio que
faz na totalidade de sua obra: e não é por resulta em aporia e o resultado é uma exi­
acaso que, nesta, circulam e se confron­ gênc ia: a invenção d e u m n o v o
tam todos quantos a construíram e disse­ "JiE90óo<; " , d e u m caminho até então n ã o
ram . E o que se intenciona alcançar é algo s ó desconhecido m a s insuspeito . Deste ca­
que a tudo comunique a unidade cabível : minho, nenhuma exposição sistemática é
se se sujeita "vój.to<;" a " 'tlOI<; " , quer-se oferecida nos Diálogos P osteriores . Don­
transcender a simples exterioridade e su­ de só restar ao intérprete a possibilidade
perar o que é em parte . A " 'tloi<;" sim­ de tentar descobrir os seus segmentos na
plesmente vista e auscultada, calculada e estrutura dos Diálogo s . Nesta P rocura, a
medida, recobre algo que a transcende: c Maiêutica e a Dialética demarcam os ex­
"E:;óo<;" . É quando a demanda deste S I trem os. Na primeira, trata-se da inventio ,
instaura que se pode falar em Filosofia . da gênese " d o " e " n o " Saber : na Dialéti­
ca, remonta-se para além da simples
" ólávo la" em demanda do Bem e não só
2. O PENSAMENTO E O E I D O S
de sua j.t1ÍrJj.t1') (20) . A retratação deste es­
O " E: ;óo<;" é o " ens realissim um " . É forço ingente divide os intérpretes. Sem
ele o princípio de todo o ser e de todo o ele, todavia, o que fica é a tirania dos do­
saber . O que ele não é em sentido próprio, xógrafos, de ontem , de hoje e de sempre.
ele o fundamenta ou origina, a um título
A " inventio" do " tlóo<;" faz com
de aparência, " ' a lvoj.tE:VOV " , de apreen­
que o "vou<;" e a " 'eovl')o<;" se voltem
são , "j.tá9E:OI<;" , ou de entidade segunda,
para a "tpuXI')"" . A questão se desvela cla­
"TOj.tIXTOV" (24) . Ele é ainda o fundamen­ ra desde o seu amadurecer, à altura da
to do múltiplo enquanto multiplicidade
composição do Menon . Neste, ao logos
transcendente e transcendental, "Tà erístico do interlocutor, resp onde S ócra­
E:IÓI')" ( 1 4) . É ele, en fim , o U N O em que tes com um Mytho s . Eis a aporia: não me
tudo se resolve em seu ser, o próprio SER é possível vir a saber o que j á sei, porque
em absoluto, " T ' àÀa9óv " (22) . D etermi­
já o sei ; nem o é o que não sei, pois não
nar as precisas relações entre o " âóo<;" ,
me seria possível discernir se o que alcan­
enquanto uno e múltiplo , e todo o espec­
cei é o que procurava . O Mythos em que
tro do "j.tíXTOV" , isto é, do que é m esclado
se enuncia a resposta propõe simplesmen­
do "j.t), ót" , eis o primeiro desafio da his­
te a Doutrina dita da P ré-existência da Al­
toriografia filosófica do platonis m o . Isto
ma, momento e fundamento de uma pre­
se não se pretender que as articulações d o
cognição desta . Mas o significado deste
discurso constituam um s e r em si e para
Mythos se descerra em seguida. As pala­
si . E este desafio é tanto mais sério quanto
vras de P latão são de meridiana clareza :
implica a compreensao do " tióo<;" e do
Bem que P latão s ó rec o n h ec e à " ATE: yàe Tll<; ' tlOE:W<; d-náol')<; OtlYYE:VOÜ<;
"Ala ÀE:XTlXI')'lnL<;Tr}j.tI') " (2 1 ) . OUOI')<;, xa l j.tE:j.ta{J1') X ti ía<; TI{<; tptlxij<; ánavTa,
A questão axial d o Platonismo é, ovdEv XW ÀÚE:I f.V j.tÓVOV avaj.tVI') 09E:VTa, o ói!
portanto , em um primeiro m o m ento , a jJ.á9l')olv xaÀotlolv avgewnol, TaUa náVTa
questão sobre o "tló o <; " . É quando a difi­ aVTov avweúv, Ê.áv TIl; ávóeúo<; I') xal j.th
culdade emerge: nem o discurso platônico
ánoxáj.tvl') �I')TWV TO yae �I')Tdtl lxea xàl Tb
nem a sua doxografia mais q ualificada ex­
jJ.av(jávE:lv clváj.tvl')ol<; oÀov f.OTív . ( 1 2)
põem as determinações, senão exaustivas,
ao menos suficientes deste "E:ió o <; " . A c É , portanto , em uma natureza toda
contrário , ao refletir criticamente sobre o congênita que a alma é e conhece . O

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exercício com que o escravo faz as vezes do o Mundo G rego . Todavia, para o reali­
de prova : uma prova ao vivo ( 1 3) . Desde zar, tem ele que o negar .
então, estava traçado o destino do P lato­
Esta negação , para alguns, é a su­
nismo. O Banquete é o prelúdio do que es­ pressão da P olis (26) : no " logos" de P la­
ta há de servir: o Fedon e Fedro hão de
tão ela se dissolve, este logos é a forma
traçar uma ontologia da P syché; "A Re­
teórica que assinala o momento de sua
pública " VI-VII há de traçar-lhe uma pri­
dissolução . Todavia, devidamente lido, o
meira visão sinótica de sua M etodologia
discurso platônico aparece como uma
Geral, a doutrina em que o Logos, como
procura da P olis verdadeira e j usta face à
Via para o Bem, se eleva até a " A IO'ÀElCTllCt1
experiência histórica da H élade . Desde os
ÉntOTI'ÍIJ T} " . Com isto, o Logos, no início seus agentes e instituições, é ela o desafio
procurado como refúgio a p reservar a Al­
de que se parte e a que se retoma. E quan­
ma contra a cegueira decorrente da con­ do a questão sobre a Ju stiça se imposta,
templação direta dos entes sensívei s , se então, por inteiro, é ela posta em questão .
desvela capaz de superar a aparência,
Nessa altura, negada como experiência, a
elevando-se ao que efetivam ente é (9) . supressão que esta negação ongma
concebe-se como a via para a verdade que
3. PLATÃO E A P O U S H ISTÓR ICA
lhe é própria. A dissolução do ilusório e
Um outro desafio para a abordagem do sim plesmente aparente tem por escopo
histórica do platonismo consiste em se es­ o perfeito. Se, como se disse, é a P olis o
tabelecer o nexo entre a forma teórica que elemento em que o Diálogo nasce, é ela
constitui e o Mundo Grego, mas precisa­ também a proposta e o P rojeto a que ele
mente, o kosmos que, como Polis, emerge chega . Com efeito , a contraproposta à
da " +iíou;" . O próprio P latão fornece o Polis histórica é a P olis segundo o seu Pa·
itinerário que se deve percorrer para esta­ radigma e o seu Logos ( 1 8) , não o Despo­
belecer esta relação, não só com seus es­ tismo persa ou qualquer forma de Im pe­
critos políticos, mas no conj unto de seus rialismo Oriental ( 1 1 ) . Em verdade, se o
diálogos, desde a j uventude aos derradei­ discurso platônico é a forma teórica a as­
ros escritos. Trata-se de toda uma trama sinalar o momento em que a P olis se dis­
de nexos, tensões, antagonism o s . U m a solve na transgressão de sua " nCQat;" , isto
leitura atenta p o d e mostrar que a P olis é, em sua experiência, a supressão que ele
platônica, em verdade um logos, quis ser e opera é também o nascimento da P olítica
efetivamente foi a P olis genuinamente como Logos fundado e fundante a assina­
grega (23) . Mostrá-lo exige texto e tem p o . lar e dizer que é possível, sob formas a
Certamente, n ã o há q u e o n egar : para descobrir e criar, totalizar na P o lítica co­
Platão , a Polis histórica foi sempre a cor­ mo Praxis todo o fragm entado espectro
ruptela da P olis efetiva, da Polis em seu da prática humana.
"E!ÓOt;" , aquela que, s ó , torna efetivo o
"E!ÓOt;" da " ó tX:rJ " . A História desvela a 4. P LATO N I S M O E H ISTÓRIA
Polis em sua aparência ao imitá-la: esta O desafio representado pelo pensa­
aparência só pode iludir se for a aparência mento de P latão é, portanto , geral e espe­
da verdadeira Polis: eis o cam inho . Na cial, teórico e prático . É geral, isto é, não
"f.lClCÀrJoía " , -n a assembléia de escopo é uma exclusividade do P latonism o : em
político, ela debate o seu destino; na De­ toda a Filoso fia depara-se com um discur­
mocracia, este Debate põe em confronto a so e, desde então , a sua História passa a
totalidade das formas qye, desde a apa­ ser a H istória de um Discurso . Simples­
rência, conduzem ao " dó o t; " ( 1 6) . Com mente afirmado, isto equivale ao óbvio :
isto, o Platonismo se erg u e com o o term o en tretan to, o q u e seja a His tória de um
racional, lógico, isto é, "Év ÀóY8-l " de to- Discurso e em que medida tem um discur-

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so uma História é, a partir desta constata­ recobrar o significado maior do discurso ,


ção , uma questão a ser determinada e perdido ao termo da dissecação operada
uma questão cuja resposta há de ser deter­ pelo analista . Com efeito, o que resta,
minante para o trabalho do historiador . após uma análise estrutural, é uma certa
Entre outras coisas, é sempre um espinho relação no interior do " espaço gráfico " :
a relação a travar com outros discurso s . o que se tem em conta d e " o tempo lógi­
N o caso d e Platão, isto é problema, antes co" só pode recobrar-se no interior de
de tudo, no que concerne à sua relação uma leitura, de uma " lectio " , irredutível
com Sócrates . à simples análise estrutural . O que se pre­
O contraste com S ócrates aj uda a tende, com estas considerações, não é a
compreender o que tem de próprio o P la­ supressão desta, mas a sua redução ao es­
tonismo , ao mesmo tempo que assinala o tatuto que lhe cabe de " m omento " da lei­
desafio comum a se fazer História da Fi­ tura integral de qualquer discurs o .
losofia . Sócrates nada escreveu : é o que Todavia, n ã o é só a estas questões
assevera toda a tradição a seu respeito . que se reduz uma consideração histórica
Nem por isso a História de seu Pensamen­ do Platonism o . Haveria ainda a conside­
to deixa de ser a de um discurso : um dis­ rar a relação de P latão com o M ito, com
curso que tem de próprio ser o de outrem , os Pré-Socráticos e com Aristóteles . N o
de Platão , de Xenofonte, de Aristóteles, que concerne à s u a relação com o Mito , o
dos doxógrafos posteriores . E não é preci­ que aqui se pode dizer é menos do que um
so insistir o quanto isto é oneroso a quem escorço . I mporta, entretanto, assinalar
faz História. Ora, discípulo maior de Só­ que ela não se inscreve na tensão Mito­
crates, Platão tem de especial , de próprio, Logos, tal a formulou a sua interpretação
o ter sido o Filósofo -escritor por excelên­ ocidentalizada. Ao contrário , esta tensão
cia, o que foi à revelia de sua mais radical só deve ser assumida quando, como e se
concepção da Linguagem ( 1 0) . Nele, o verificar a sua ocorrência . Em rigor de
Discurso filosófico adota um gênero, o termos, Platão considera o Mito um Lo­
Diálogo e, neste, compromete toda a Filo­ gos e, como tal, solidário deste na antítese
sofia anterior e grande parte da Cultura que lhe é própria, a que se trava entre o
helênica com o debate e a " ICQ IÓIl;" a que verdadeiro e o falso ( 1 9) . É com funda­
Platão a submete . E m verdade, trata-se de mento neste pnncípio que se articula toda
um gênero em acepção ontológica e não a sua Crítica às formas assumidas pelos
meramente formal: com ele o seu Pensa­ Mitos nas M itologias de Homero e Hesío­
mento se compromete " E"IC WV " , ainda que do e, a fortiori, a todo o m itologar ( 1 7) .
se comprometa apenas " Qr-IC WV" com a sua Por isso, M ito e L ogos fluem dentro d e
forma escrita . Todavia, a Teoria do Diá­ seu Pensamento, aquele integrando este
logo apenas se esboça, o que não dispensa último como a totalidade na qual convive
o historiador de a procurar, mas, ao con­ com a forma nova da Filosofia, que vivifi­
trário , o obriga a encontrar uma totalida­ ca, na qual sobrevive e que demarca em
de a partir de indicações esparsas e me­ seus extrem os limites (25 ) . Vale aqui o que
diante uma análise estrutural . Ora, uma se afirmou acima a respeito do P ensamen­
análise de tal ordem , por mais que aspire to: sendo o seu lugar natural a v"erdade
a neutralidade científica, converte-se fa­ que irradia do Bem , do Ser, o que importa
cilmente em um ardil e em uma armadi­ é que as formas concretas nas quais perfaz
lha . No caso de P latão, a hora e a vez têm o seu devir lhe sej am adequadas, isto é,
sÍ/jo, quase sempre , a da caça, escapando sej am verdadeiras e não o limitem , blo­
0- Logos à análise . As " exigências" do queando o processus segundo o qual se
texto fragmentam a leitura e o historiador eleva em direção a este mesmo lugar ( 1 9) .
é a vítima predileta desta fragmentação , N o Diálogo , o M ito não é apenas u m re­
cuj os escombros tem que recompor para curso ou um momento necessário : é ele

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também um interlocutor que vive e se re­ radicalmente geraram uma abertura que o
nova. Estagirita ocupou de direito , mas que ca­
be a todo aquele que assuma em espírito e
Interlocutores e P ersonagens são
verdade a missão de pensar (2) .
também os P ré-Socráticos e, com eles , as
suas respectivas Filosofia s . Mesmo bre­
CONCLUSÃO
ves , as considerações aqui tecidas sobre o
" tlóoç" denotam o quanto o Logos pla­ O diálogo platônico tem de próprio
tônico levou a sério a radicalidade da pretender satisfazer a uma necessidade ra­
questão com a qual a Filosofia veio à luz: cional e a uma racionalidade necessária . É
a questão so bre a " áexrf" . É esta radicalida­ a este título que ele constitui um problema
de que o faz debater o todo representável do teórico : importa determinar o que é essen­
Kosmos, remontando da P olis ao Ser . É cial ao diálogo , o que não lhe pode faltar
ela igualmente que o leva a assumir a sua sem uma " + 90Qá" total . Pode-se falar das
mestria e paternidade, mesmo sob pena de leis do Diálogo como se pode falar das leis
vir a cometer um parricídio (23) . P ara ele, do trágico . Mas, onde encontrá-las? Em
é necessário ir além da P ré-Socrática Pós­ verdade, a teoria platônica do Diálogo
Parmenídea se se quiser fazer face à apo­ tem a forma de uma prática . Nesse senti­
ria eleática cumprindo a exigência de en­ do, uma caracterização dos " momento s "
contrar um novo " 1lE:90óoç" ( 1 5) . Nesse d e cada " Diálogo " , do s e u " m ovimen­
sentido , não é suficiente ir além da pra­ to " , das exigências impostas à sua conti­
xiologia sofística, mas importa superar nuidade, é de capital importância . Sem
todas as restantes soluçõe s : é necessário ela, não se passa de um arranj o m eramen­
elevar-se a um Logos mais radical que te­ te exterior a recobrir um simples monólo­
nha um valor de via em que os entes se go .
deixem visar em sua verdade (2 1 ) . E isto, A prática do D iálo g o : eis a questão .
Platão o realiza em permanente D iálogo O Diálogo como todo, na totalidade de
com todo o Pensamento G rego . É nessa seus componentes, na dialética de suas
perspectiva de um Diálogo permanente personagens, cuj os discursos se confron­
que cabe dizer uma palavra sobre Aristó­ tam e interagem , eis o desafi o . O Diálogo
teles . Este assinalou com suficiente clare­ é como praxis c o essencial ao " vouç" , o
za as suas diferenças em relação ao pensa­ Diálogo , "dIa + Àoyoç" isto é, a forma
mento do Mestre ( 1 ) . Aqui cabe apenas substanciosa d o " Àoyoç " , a sua forma
ponderar o seguinte : o caráter dialogal do forte, o único devir plenamente capaz do
pensamento platônico , a visão do filósofo Ser . O Diálogo, o Platonismo exposto à
de "A República" mas também de " O História, a opor-lhe o repto de o reencon­
Parmênides" e o incansável afã de pensar trar aticulado na letra, na " A.€� IÇ " .

'
SOUZA NETTO, F . B . de - Plato and lhe G reek though t . Trans/Form/ Ação, São Paulo, 5: 3 5 -42,
1 982.
ABSTRACT: Pla to 's thought is as charming as the sta tues of Dedalus: it disappears into the mean­
ders of the discourse, as soon as one proposes to esta blish with it a dominance relationship. The correct
interpretation of Plato 's thought demands the assumption of the Polis as the natural place from which
it emerges, as the limitation which he proposes to surpass remoun ting to the Fysis and to the Being. In
order to do it, it is important to catch its peculiar m o vem en t, starting !rom the question about the being
and visualizing Ú1e answer as the statement of its essence, i. e., of the eidos, and of its founda tion, i. e.,
of Good as the proper name of Being. As it determines the being in its essence, the eidos is the measure
of the whole adequacy, from the episteme to the Polis.
KEY- WORDS: Pia to; Aristotle; Pre-Socratics; Homer; Hesiodo; being; creature; eidos; form;
episteme; science; logos; myth; mythology; theology; idealism; racionalism; polis; politics; fysis; natu­
re; metaphysics; physics.

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SOUZA NETO, F . B . de - P latão e o pensamento grego . Trans/Form/ Ação , São Paulo, 5: 35-42, 1 98 2 .

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