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LIBRO DE ACTAS

RFUNION DE ANTROPOLOGIA DEL MERCDSÜR


EXPERIENCIAS ETNOGRÁFICAS
DESAFIOS Y ACCIONES PARA EL SIGLO 21

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XII Reunion de Antropologia del Mercosur Experiencias Etnográficas
Libro de Actas: XII Reunión de Antropologia del Mercosur Experiencias Etnográficas: desafios y acciones para el
Siglo 21; compilado por Marilyn Cebolla Badie ... [et al.]; coordination general de Ana Maria Gorosito. - la ed
compendiada. - Posadas: Ana Maria Gorosito, 2018.
Libro digital, PDF/A

Archivo Digital: descarga y online


ISBN 978-987-42-7173-0

1. Antropologia. 2. Antropologia Social. 3. Antropologia Cultural. I. Cebolla Badie, Marilyn comp. II. Gorosito, Ana
Maria, coord.
CDD 306

Libro de Actas. XII Reunión de Antropologia del Mercosur “Experiencias etnográficas:


desafios y acciones para el Siglo 21”

Coordination General: Ana Maria Gorosito.

Compilation: Marilyn Cebolla Badie ... [et al.].

Disefio web y diagramación: Diana Patricia Soto.

Diseno Gráfico: Martin Errecaborde.

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GT N° 9: MÉTODOS Y TÉCNICAS EN ANTROPOLOGIA DE LA SALUD

EXPERIENCIAS ETNOGRAFICAS EM SERVIÇOS DE SAUDE NO RIO DE JANEIRO

Autor: Octavio Bonet':< e Natália Fazzioni•424

Resumo
O presente trabalho se fundamenta em duas experiências etnográficas distintas com médicos de
família na cidade do Rio de Janeiro. Na primeira delas, observamos a formação de médicos no
cotidiano de uma residência em medicina de família e comunidade em um grande hospital
universitário. No segundo contexto, acompanhamos o dia-a-dia de médicos que trabalham em uma
unidade de atenção primária à saúde situada em uma das maiores favelas da cidade. Pretendemos, a
partir destes contextos, tensionar a categoria médico de família, compreendendo como ela é
performatizada de diferentes maneiras e através de ferramentas e competências variadas.
Refletindo, por fim, sobre como as etnografias realizadas em serviços de saúde podem contribuir
em processos de avaliação na área da saúde.

Palavras Chave
Antropologia da saúde, Etnografia, Medicina de família, Rio de Janeiro.

423 Docente em Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia IFCS/UFRJ,


octavio.bonet@gmail.com
424 Doutoranda em Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia IFCS/UFRJ,
nataliafazzioni@ gmail .com

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Introdução
Este texto teve sua origem em um diálogo entre os autores no qual ficou explícito que quando falá­
vamos das práticas dos “nossos” médicos de família se produzia um estranhamento, embora ambos
trabalhássemos com médicos de família e em contextos de atenção primária à saúde. Esse estranha­
mento se manifestou na frase “quando você fala das práticas dos médicos de família que está pes­
quisando, eu não consigo identificá-los com as práticas dos médicos de família que eu estou pesqui­
sando”. Essa simples constatação nos levou a problematizar práticas, contextos e categorias. Come­
çamos a pensar, acompanhando o trabalho de Annemarie Mol (2002; 2010), como em cada contexto
particular práticas e categorias são enactnient, ou performatizadas, diferencialmente. Pode-se argu­
mentar que isto não tem nada de novo, mas nossa questão é como dar conta da “fluidez” das catego­
rias na prática e como isso incide sobre os resultados dos encontros terapêuticos nos contextos de
atenção primaria à saúde.
Atrelada a essa questão sobre as práticas dos médicos de família, apresentou-se uma segunda ques­
tão que nos direcionou para pensar nos efeitos da nossa própria prática antropológica em contextos
terapêuticos.
A partir da comparação dessas situações etnográficas, nesta comunicação perseguimos dois objeti­
vos: refletir sobre a categoria “médico de família” considerando sua heterogeneidade no contexto
brasileiro e mais especificamente no Rio de Janeiro e levantar uma discussão, ainda inicial, sobre as
potencialidades da etnografia comparativa como ferramenta em pesquisas de cunho participativo-
avaliativo na área da antropologia da saúde.

Contextos etnográficos
De acordo com o Conselho Federal de Medicina, um médico só pode ser considerado especialista,
caso possua residência médica, ou tenha sido aprovado na prova de títulos de especialista - que
deve ser organizada e aplicada pela sociedade médica da especialidade em questão. No caso da M e­
dicina de Família e Comunidade, este exame é aplicado pela Sociedade Brasileira de Medicina de
Família e Comunidade (SBMFC). A especialidade é reconhecida desde 1981 pelo Conselho Nacio­
nal de Residência Médica, sendo, entretanto, designada inicialmente como Medicina Geral Comuni­
tária425. Segundo a SBMFC existem hoje no Brasil apenas 2.227 médicos titulados como médicos de

425 Informação disponível em: http://www.sbmfc.org.br/default.asp7site Acao=mostraPagina&paginaId=3


(acesso 17/09/2017).

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família e comunidade426. Os dados sobre quantos possuem residência em medicina de família e co­
munidade não foram encontrados.
Apesar da existência desse sistema formal de titulação, no Brasil se convencionou chamar de médi­
co de família todos aqueles que atuam na Estratégia de Saúde da Família. No site da ONG Viva
Rio, que faz a gestão de diversas unidades de atenção básica à saúde no Rio de Janeiro, por exem­
plo, a chamada permanente para a contratação de médicos para atuar nas clínicas diz: “Seja um
médico de família”427. Ao clicar no anúncio, o site direciona para outra página chamada “www.ome-
dicodefamilia.com.br”, que anuncia logo no início “Vagas para médicos: vencimentos até R$18 mil
entre salários e benefícios”. No entanto, ao preencher a ficha de inscrição, o único pré-requisito
básico é ser graduado em medicina.
O programa de implantação das “Clinicas da Família” no Rio de Janeiro, lançado em 2009, fez com
que a cobertura da Estratégia de Saúde da Família na cidade passasse de 3,5% da população para
56,8% até setembro de 2016, conforme consta no site da Prefeitura Municipal.428 Não há registros
da porcentagem de médicos com titulação ou residência em medicina de família e comunidade atu­
ando na atenção básica no Rio de Janeiro neste momento, o último dado disponível é de 2013 e
consta a informação de que em torno de 8% dos médicos possuía residência na área e 7% titulação
outorgada pela SBMFC (Harzheim 2013).
A proposta da ONG Viva Rio mencionada anteriormente, “seja um médico de família”, coincide
com um discurso que temos encontrado em nossas pesquisas de campo nas quais pudemos ouvir
“virei médico de família” ou “me tomei médico de família”. Em contraposição com esse discurso,
outros profissionais escolhem realizar a sua formação nas residências em Medicina de Família e Co­
munidade. Estas distintas alternativas de formação e de ingresso à especialidade redundam em uma
acentuada diferenciação interna da categoria “médico de família” o que incide nas práticas que pu­
demos observar no cotidiano das clínicas. Não é nosso interesse neste texto realizar um trabalho de
mapeamento dos processos de inclusão e exclusão na formação da categoria (Bonet 2014), mas pen­
sar nas conseqüências nas práticas desses diferentes percursos.
Os contextos etnográficos aqui explorados ilustram bem a diversidade deste cenário. No primeiro
caso, estamos diante da exceção à regra: os profissionais que realizam uma residência em medicina

426 Agradecemos a Leandro David Wenceslau que vem trabalhando nesses dados para sua pesquisa de doutorado
e gentilmente os compartilhou conosco.
427 Informação disponível em: http://www.vivario.org.br/saude-da-familia/ (acesso 17/09/2017).
428 Informação disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/web/sms/clinicas-da-familia (acesso 17/09/2017).

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de família e comunidade. A residência onde fizemos o trabalho etnográfico está associada a um ser­
viço de medicina de família e comunidade, e sediada em um hospital-escola ligado a uma universi­
dade.429 Embora faça parte de um hospital, no qual se realizam atendimentos ambulatoriais no servi­
ço de medicina de família, os residentes cumprem parte da sua atividade cotidiana na malha de
clínicas de família, que dependem da Secretaria de Saúde do Município.4311 Desse modo, parte da
sua carga horária é despendida nos consultórios das clínicas de família, ou em visitas domiciliares
dentro da área de cobertura do hospital, quando a situação do usuário ou da família assim o requer.
No cotidiano do hospital, os residentes, além do atendimento em consultório e das visitas domicilia­
res, recebem aulas teóricas sobre as ferramentas técnicas que empregarão no cuidado dos usuários,
suas famílias e a comunidade. Essas atividades de formação se dividem entre os residentes de pri­
meiro e de segundo ano, e são ministradas ou por docentes do serviço, preceptores, ou por professo­
res convidados para temáticas especiais. Finalmente, uma vez ao mês, promovem um encontro em
que todo o serviço discute casos clínicos segundo a abordagem familiar e comunitária. Essas discus­
sões clínicas são apresentadas por um residente e pelo preceptor que o acompanhou no atendimento;
posteriormente, abrem a discussão em que, coletivamente, tentam responder às dúvidas e, também,
sugerir condutas a serem tomadas.431
Como anteriormente mencionamos, as atividades de atendimento nas consultas se complementam
com as visitas domiciliares aos usuários da área de cobertura. Estas visitas são efetivadas pelos resi­
dentes, geralmente em duplas e, dependendo da complexidade da situação, eles são acompanhados
por preceptores e/ou por docentes do serviço. Esta atividade extramuros, além do atendimento, tem
como objetivo transmitir/adquirir habilidades para lidar com a visão comunitária, atentando para os
problemas populacionais que se apresentam na área de cobertura.
Já no segundo caso, tratamos dos médicos que trabalham em uma unidade no Complexo do Ale­
mão, umas das maiores favelas e áreas mais violentas da cidade. A etnografia nessa unidade tem
sido realizada desde o início de 2015. Ali, prevalece uma alta rotatividade de profissionais, incluin­
do desde um único médico especialista em medicina de família e comunidade que trabalha na uni­

429 Por questões de ética em pesquisa, não explicitaremos mais dados sobre a residência e o hospital.
430 Para uma maior explicitação da ideia de malha para indicar uma constituição da rede de saúde que incorpore a
perspectiva do usuário e suas improvisações ver Bonet (2014).
431 Nas clínicas da família, os residentes são acompanhados por preceptores aos quais apresentam suas dúvidas e
que eventualmente vão com eles às consultas domiciliares. A relação é de um preceptor para cada quatro
residentes.

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dade há 12 anos, passando por três médicos cubanos provenientes do programa Mais Médicos432 e
inúmeros médicos recém-formados, sem residência ou experiência profissional. No ano de 2017,
com o fim do contrato dos médicos cubanos, a rotatividade na unidade - que funciona desde o iní -
cio dos anos 2000 - atingiu seu recorde de acordo com os profissionais mais antigos (enfermeiros e
Agentes Comunitários de Saúde). Nenhum médico contratado permaneceu por mais de três meses
na unidade, todos pediram demissão ou transferência para outra unidade. Até julho do mesmo ano,
ao menos dez médicos entraram e saíram da unidade, a maior parte deles era recém-formado ou
nunca havia atuado na atenção básica.
As indagações sobre o motivo da não permanência destes profissionais fazem parte de nossos inte­
resses de pesquisa, mas estão também presentes no cotidiano da unidade entre os interlocutores. En­
tre eles, encontramos, por um lado, explicações bastante objetivas e estruturais. Estas explicações se
referem sobretudo ao tamanho da população adscrita as equipes de saúde da família que contam
com até 4.000 pessoas - a depender do grau de “vulnerabilidade” da área (retomaremos essa discus­
são adiante) - inviabilizando, segundo os profissionais, um atendimento de qualidade devido ao alto
número de pacientes atendidos. Neste mesmo sentido, eles afirmam não receber suporte apropriado
de outros serviços ligados à rede pública de saúde local. A principal reclamação recai sobe a UPA
(Unidade de Pronto Atendimento) também localizada no Complexo do Alemão, que comumente en­
caminha os pacientes que recebe à unidade de atenção básica, alegando não se tratar de uma situa­
ção de urgência ou emergência. Assim, os médicos da atenção básica acabam atendendo muitos ca­
sos de “demanda espontânea” (consultas não agendadas), ao longo do dia, além das consultas agen­
dadas e outras tarefas que realizam, como inserir pedidos de encaminhamento no sistema, assinar
pedidos de exame, atualizar receitas médicas, reuniões de equipe, etc., sentindo-se, desse modo, so­
brecarregados. A questão da falta tempo e excesso de trabalho, se confunde ainda com problemas
de relacionamento interpessoal entre profissionais da mesma equipe e sobretudo, pela dificuldade
de diálogo com a gerência da unidade.
Finalmente, a questão da formação e experiência profissional aparece não entre os próprios médi­
cos, mas na fala de enfermeiros e Agentes Comunitários de Saúde, como um dos motivos pelos

432 De acordo com Kemper e colaboradores, o Programa Mais Médicos (PMM) é lançado no Brasil “instituído
pela Lei n° 12.871 de 22 de outubro de 2013, como uma proposta para avançar na solução dos problemas da APS
no SUS, com medidas que intervêm na formação, na estrutura e no provimento de médicos nos serviços de APS.
A vinda de médicos estrangeiros para atuar na Atenção Básica causou grande reação negativa das entidades
médicas, com inúmeras disputas ideológicas e judiciais” (Kemper et al., 2016: 2786). Conferir o mesmo artigo
para uma sistematização da literatura já existente sobre o programa.

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quais os médicos não permanecem nesta unidade. A falta de experiência e formação adequada con­
tribuiria, segundo eles, com a dificuldade dos médicos em suportarem a demanda intensa de traba­
lho. Em conversa com uma Agente Comunitária sobre um novo médico que iria começar a trabalhar
na unidade, ela nos disse que iria alertá-lo quando chegasse: “olha, aqui é muita demanda, você vai
aguentar? Se não, é melhor nem começar”. Já outro Agente, também envolvido na conversa, res­
pondeu: “Mas esse parece que tem residência, não sei no que é, mas pelo menos tem alguma expe­
riência né? Já ajuda”. Demonstrando o reconhecimento destes outros profissionais, da importância
de que o médico já tenha passado por uma transição entre a faculdade de medicina e a experiência
médica ou entre o “saber’ e o “sentir” (Bonet, 2004).
Uma distinção fundamental nos dois contextos descritos se configura em torno do fato de ser, no
primeiro caso, um contexto de formação de residentes e de estar associado a um hospital escola e no
segundo caso configurar um contexto não associado a ensino-institucionalizado. Essa característica
tem consequências importantes tanto no que diz respeito a quem são e como atuam os médicos que
trabalham nas unidades de atenção básica na cidade, mas também, em relação à infraestrutura que
apoia sua prática profissional. Em outras palavras, essa característica se associa à trajetória e ao
modo em que entendem as práticas de cuidado em que participam, e à resolutividade dessas práti -

Neste sentido, embora tenhamos demonstrado a importância destes aspectos, é fundamental afirmar
que a formação profissional e a infraestrutura de trabalho não são os únicos pontos que diferenciam
estes médicos. No contexto do Complexo do Alemão, o caso do único médico que permanece nesta
unidade desde sua fundação, há doze anos, revela pistas significativas para pensarmos nestas dife­
renças. Cláudio é constantemente elogiado pelos usuários, por sua atuação, paciência e competên­
cia. Entre os profissionais, ele também é uma referência com relação a protocolos, procedimentos e
diagnósticos. O fato de ser uma referência faz com que ele possua certa autonomia diante da gerên­
cia da unidade, criando uma dinâmica própria - e mais eficaz - de funcionamento para a sua equipe.
E há ainda um último ponto a ser destacado, o médico possui uma trajetória de ascensão social e de
sucesso, conhecida por seus pacientes e colegas. Sua família é de origem popular, proveniente de
uma área pobre da baixada fluminense. Aos 18 anos, ele ingressou na Marinha do Brasil, a partir de
onde começou a construir um patrimônio, o que lhe permitiu cursar medicina alguns anos depois.
De algum modo, portanto, a vida de seus pacientes no Alemão não lhe é estranha ou tão diferente
do que ele próprio já viveu ou conhece. Ao mesmo tempo, ele é reconhecido pela população e pelos

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outros profissionais (enfermeiros e agentes) como alguém mais próximo, já que não é radicalmente
diferente destes com relação a sua origem social.
Tal caso, nos permite ampliar a discussão sobre médicos de família no Brasil, para além da questão
da formação e experiência específica em medicina de família ou até do tipo de formação que rece­
bem na faculdade de medicina, remetendo a uma discussão sobre a origem e trajetória dos estudan­
tes de medicina433. Embora não seja determinante, este aspecto complexifica ainda mais as relações
estabelecidas por esses profissionais em sua atuação.
Assim, lançaremos mão de algumas situações etnográficas de modo de perceber a complexidade
dos encontros vividos entre os profissionais e usuários. Dizer que analisamos as situações a partir de
uma perspectiva complexa, quer dizer que pensamos esses contextos como mundos múltiplos, que
coexistem e que estão em processos permanentes de transformação. Esses mundos estabelecem en­
tre eles conexões múltiplas e parciais, isto quer dizer que não podem ser entendidas como relações
binárias e simplificadas (Law e Mol: 2002: 20).

A “medicina de família” na prática: a propósito da Escala de Coelho-Savassi


No livro Complexities de John Law e Annemarie Mol, anteriormente citado, os autores expressam
que cada caso estudado pode ser instrutivo para além da sua situação específica; entretanto, uma
condição tem que ser aceita: as similaridades e diferenças não podem ser dadas como garantidas,
mas tem que ser vistas, experimentadas e investigadas (Law e Mol: 2002: 15). Seguindo essas idei­
as é que trataremos as práticas dos médicos de família a partir da ideia de situação-centrada, como
já foi desenvolvido em outro texto (Bonet et al: 2009). Esta perspectiva de situação-centrada, ou
atentando para a positioncility dos sujeitos e dos pesquisadores não é nova na antropologia, dão que
todos estamos incluídos nessa situação-centrada (Duarte 1986; Abu-Lughod 1991). Assim, toda po­
sição é uma posição de “dentro” e toda identidade é complexa; como expressado no texto citado:
“Este tipo de abordagem permite pensar em sujeitos que estão numa permanente reconstrução de
seus discursos e de suas posições no cotidiano. Esta perspectiva sobre o usuário se diferencia da
ideia de usuário-centrado e nos aproxima da ideia de usuário como mediador; é mediador porque

433 A discussão sobre o perfil socioeconômico dos estudantes brasileiros de medicina foi bastante acalorada no
período de anúncio do programa Mais Médicos no país, sobretudo com a chegada dos médicos cubanos, como já
mencionado acima. As discussões na época se remeteram ao fato da maioria dos médicos brasileiros atualmente
serem mulheres, brancas, das grandes cidades e de classe média alta, que preferiam atuar no sistema privado do
que no público e nas áreas centrais das grandes cidades. Para um perfil demográfico dos médicos no país hoje, ver
Scheffer (2015).

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ele próprio, suas ações e seu mundo dependerão da configuração posicionai e, portanto, relacional,
que os outros mediadores adquirirão numa estrutura conjuntural específica” (Bonet et ali, 2009:
243). A ideia de mediador, que traz implicitamente reminiscências à figura de Latour (2012), pode
ser estendida para além do usuário, a fim de incorporar o profissional e o antropólogo enquanto me­
diadores. Tanto um quanto outro, estão mobilizando modos distintos de produção da verdade, trans­
portando e transformando informação e, assim, produzindo as situações, as categorias e os saberes.
A primeira situação que queremos descrever se compõe de três momentos diferentes que encontram
um fio condutor associado a uma ferramenta da prática dos médicos de família, a Escala de Coe-
Iho-Savassi. Cada um desses momentos poderiam ser analisados independentemente, já que confi­
guram em si mesmos uma situação; a escolha de associá-los se justifica porque permite mostrar
como as categorias e os saberes estão em movimento e é nele que são enactment ou performatizados
(MOL 2002).
A Escala de Coelho-Savassi é um instrumento de estratificação de risco familiar que foi desenvolvi­
do no município de Contagem, Minas Gerais; visa avaliar o risco social e de saúde de um núcleo fa­
miliar a partir de sentinelas de risco (Coelho e Savassi 2004; Coelho, Lage e Savassi 2012). Aplica­
do às famílias adscritas a uma equipe de saúde utiliza dados da ficha A do SIAB (Sistema de Infor­
mações da Atenção Básica), refletindo o potencial de adoecimento do núcleo familiar. Cada um
desses sentinelas recebe um valor, os quais devem ser somados para obter o escore de risco do gru­
po familiar. Segundo os idealizadores da escala, esta deve ser aplicada na primeira visita domiciliar
pelo Agente comunitário de saúde (ACS).
Os chamados sentinelas de risco434, que integram a ficha A, se referem, por exemplo, ao fato do
núcleo familiar ter um membro acamado (3), ou baixas condições de saneamento (3), membros com
deficiência física (3), membros com deficiência mental (3), desnutrição grave (3), drogadição (2),
desemprego (2), analfabetismo (1), membros com menos de seis meses de vida (1) ou com mais de
70 anos de idade (1), membro com hipertensão arterial sistêmica (1), com diabetes mellitus (1), re­
lação morador/cômodo maior que 1 (3), relação morador/cômodo igual a 1 (2), relação morador/cô­
modo menor que 1 (0).
A pontuação de cada sentinela de risco é calculada levando em consideração a relevância epidemio-
lógica, a relevância sanitária e o impacto na dinâmica familiar, sendo que cada sentinela é observa­
do em relação a cada indivíduo do grupo familiar.

434 O número entre parêntesis se refere ao valor de cada sentinela.

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Com a somatória desses escores se chega a um valor que se for entre 5 e 6 se considera R l, ou risco
menor, entre 7 e 8 R2 ou risco médio e, finalmente, acima de 9 R3 ou risco máximo. Segundo Coe­
lho e Savassi (2012) “oferece acesso na medida em que prioriza a atenção no domicílio e favorece a
integralidade e equidade das ações desenvolvidas pela equipe de saúde da família” (Coelho e Savas­
si 2012: 181).
A primeira vez em que foi mencionada a Escala de Coelho-Savassi em campo no primeiro contexto
(associado à residência em Medicina de Familia e Comunidade) foi quando um dos médicos resi­
dentes do segundo ano em uma reunião previa as visitas domiciliares (VD) perguntou para a ACS:
“qual familia visitaremos hoje? Após a resposta perguntou “Como você priorizou? Como fez a sua
escolha?” Seguidamente, Mario, o residente, apresentou e ensinou como se usa a escala para a ACS
e para nós. O modo como realizaram a avaliação demonstrou o que dissemos anteriormente sobre
como as ferramentas e categorias são performatizadas, porque a primeira visita avaliada deu como
resultado um risco baixo, mas a ACS diz “ela quer ser visitada”; assinalando mais um fator (que tal­
vez poderíamos chamar de emocional-afetivo) que não estava incluído na escala. Outro grupo fami­
liar composto por quatro pessoas que moravam em dois cômodos, no qual os dois adultos estavam
desempregados e tinham uma criança de sete meses doente alcançou um escore alto na escala. As
outras duas visitas planejadas foram as casas de pessoas idosas acamadas e que tinham tido acidente
vascular cerebral. Em todos os casos se apresentava mais de um sentinela de risco, dada a vulnera­
bilidade, não só pela precariedade das moradias mas também por uma forte comorbidade.
Este exemplo também permite que analisemos as situações nos contextos em que se produzem, que­
remos dizer que, em primeiro lugar, a situação da equipe era relativamente tranquila dado que a
ACS e o médico concordaram em visitar um grupo familiar, embora o escore na escala fosse baixo.
Isso evidencia de que a equipe não estava com uma micro-área com muitas situações críticas (pelo
menos nessa semana). Em segundo lugar, demonstra também a questão da trajetória e da formação
do profissional médico. Independentemente de que o modelo de prática da MFC inclua a dimensão
afetiva como uma parte importante da relação médico-usuário e da importância desta dimensão no
desenvolvimento das itinerações de cuidado e da resolução dos padecimentos, Marcelo era um pro­
fissional que prezava por uma visão integralizada dos usuários e que estabelecia relações afetivas
com eles. Podemos afirmar isso, porque outros residentes que também compartilharam a passagem
pela mesma residência, não demonstravam a mesma preocupação. Estabelecendo relacionamentos
mais “burocráticos” .

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A segunda situação associada à Escala de Coelho-Savassi que queremos mencionar é interessante


porque tem implicações metodológicas diretas, no sentido de como nós utilizamos as referências
dos médicos. A ferramenta foi mencionada em uma das apresentações que se realizam nas residên­
cias para discutir casos clínicos numa perspectiva centrada na pessoa.435 O caso que estava sendo
discutido era o de Ariel, um homem de 39 anos, solteiro, diagnosticado com hipertensão, tabagis­
mo, usuário de drogas e com epilepsia. Mora junto com o irmão que tem tuberculose, também sol­
teiro. Após uma briga com este último passou a morar num cômodo sob a laje da casa do irmão,
sem janelas e sem ventilação. Numa crise convulsiva fraturou uma vértebra lombar, o que ocasio­
nou problemas para andar. Na visita, o médico solicitou um exame de urina, que deu positivo e co­
meçam o tratamento com antibiótico. A preocupação do médico era como organizar o cuidado.
Quando o irmão sai para trabalhar, Ariel fica deitado na cama e se o irmão não deixar o almoço, não
come até ele voltar. Quando começa a apresentação o residente se refere a Escala de Coelho-Savas-
si dizendo que tem um “índice de vulnerabilidade tipo 1”, mas que se desce para o espaço onde ele
mudou depois da briga, a vulnerabilidade cresce para tipo 3. Na apresentação do caso continuaram
incluindo dados da situação de saúde do Ariel e do seu irmão, os quais conformavam uma rede de
apoio social muito estreita.436
Dissemos que esta apresentação tinha implicações metodológicas, porque esse relato do primeiro
contexto de campo, remete à aparição da ferramenta Escala de Coelho-Savassi em uma situação no
segundo contexto, no Complexo do Alemão.
Neste segundo contexto apareceu em uma visita domiciliar na qual acompanhávamos a equipe
quando Cláudio, o médico mais antigo da unidade já mencionado, explicava que apenas uma das
equipes da unidade possuía um número reduzido de pessoas cadastradas. Tratava-se da equipe res­
ponsável pela micro-área com maior “vulnerabilidade”. Ao ouvir o termo, a pesquisadora que
acompanhava o grupo composto pelo médico e duas ACS, questionou sobre como se media o grau
de vulnerabilidade. O médico respondeu prontamente: “temos um índice para medir, são os ACS
que medem. Como é mesmo que vocês fazem?”, perguntou às agentes que nos acompanhavam.
Uma delas então respondeu: “Medimos pela área que tem mais beneficiários do Bolsa Família”. Um

435 A medicina de família propõe uma medicina centrada na pessoa e não centrada nos profissionais; assim, fazer
uma discussão sobre um caso clínico centrado na pessoa quer dizer que estão implementando uma apresentação de
caso desde o ponto de vista de como o usuário “está no mundo” e não de como a biomedicina olha para ele. Estão
tentando perceber os usuários do ponto de vista da medicina de familia que tem que começar a confluir com a
perspectiva dos usuários.
436 Para mais informações sobre esse caso clinico remetemos a Bonet (2015).

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pouco constrangido, o médico disse que não era a isso que ele se referia e sim a uma escala, que não
conseguia lembrar o nome e que eles usavam “lá no começo, quando iniciamos o PSF aqui no Ale­
mão”. A ACS, também antiga na unidade, disse que não se lembrava dessa escala e que o que o cri­
tério usado atualmente era o Bolsa Família. Poucos dias depois, o médico entrou em contato com a
pesquisadora pelo Whatsapp dizendo que havia se lembrado do nome da escala que utilizavam para
medir vulnerabilidade, tratava-se da Escala de Coelho-Savassi.
Na verdade, a escala já era conhecida pela pesquisadora, justamente pela situação etnografada na re­
sidência médica que havia sido descrita em outro artigo (Bonet, 2015). A curiosidade em torno de
como era a feita a medição do grau de vulnerabilidade pelos profissionais do Alemão tinha como
pano de fundo, saber se eles conheciam a escala e se a utilizavam. A desconfiança de que outras téc­
nicas eram utilizadas para medir a vulnerabilidade neste contexto provinha das conversas já estabe­
lecidas entre nós que revelavam a enorme diferença existente da medicina de família que se exercia
em um e noutro contexto. Na Estratégia de Saúde de Família no Complexo do Alemão, as Visitas
Domiciliares ocorriam sempre com base em uma listagem feita pelos ACS sobre quais eram os pa­
cientes de sua área acamados, deficientes ou domiciliados, priorizando aqueles que haviam solicita­
do a visita pessoalmente ou através de um parente ou vizinho que havia encontrado o agente. Em al­
guns casos, levava-se em conta também um comentário feito por algum morador sobre o estado de
saúde ruim de um vizinho ou vizinha, mesmo que este não tivesse pedido para solicitar a visita.
Cláudio era o único médico que discutia essa listagem com a agente que o acompanharia no dia, al­
terando a ordem das visitas ou até incluindo algumas casas, já que conhecia bem a área e as famí­
lias. Embora ele tenha se esforçado em lembrar da escala quando foi indagado sobre a ferramenta
de medida - preocupado em afirmar que conhecia as ferramentas próprias da MFC - Cláudio não a
utilizava em seu dia-a-dia porque ela simplesmente não era necessária em sua prática, o conheci­
mento que possuía das famílias, aliado ao trânsito cotidiano dos ACS pelo território, eram o sufici­
ente para ordenar as visitas e possivelmente em um contexto de pouco tempo para realizar o traba­
lho, essa era uma maneira mais ágil de organizar a rotina. Isso, no entanto, só ocorria no caso desse
médico, que possuía mais de doze anos de experiência ali. No caso dos outros médicos, a maior par­
te deles quase não realizava visitas, somente em casos de extrema urgência, devido à falta de tempo,
situação de violência no Complexo do Alemão e acúmulo de demanda em suas equipes437.

437 Esse ponto é discutido mais amplamente em outro artigo (Fazzioni, 2017).

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Com isso, não pretendemos afirmar que a Escala de Coelho-Savassi fosse mais ou menos eficaz que
outras ferramentas existentes, apenas demonstrar que existem diferentes maneiras de se performati-
zar a medicina de família, como nos casos citados acima. Marcelo opta por incluir uma casa na visi­
ta mesmo que ela não atenda ao critério da escala. Cláudio conhece a escala e os critérios, que tal -
vez estejam presentes em sua prática indiretamente, ou como um conhecimento corporificado, mas
não se lembra do nome da escala quando questionado e tampouco a utiliza explicitamente para defi­
nir as visitas. Ambos os médicos são mediadores nessas situações e se utilizam de um acumulo de
experiência profissional e formação específica na área para desempenhar seus trabalhos, contando
em algumas situações com improvisos e decisões não previstas na escala ou em outras ferramentas
como essa.

Etnografias participativas e o lugar do antropólogo no campo


O antropólogo que realiza trabalho de campo em serviços de saúde, sobretudo acompanhando con­
sultas individuais, dificilmente consegue se colocar de forma discreta nessas situações. Muitas ve­
zes, sentamos em consultórios apertados, ao lado de um armário ou de uma balança que eventual­
mente será utilizada pelo médico e precisaremos nos mover para que isso ocorra. Outras vezes so­
mos motivo de indagação sem cerimônias pelos pacientes assim que entram na sala ou quando en­
tramos em suas casas nas Visitas Domiciliares: “mas e ele/ela, quem é? E médico também?”, fazen­
do com que nos posicionemos de imediato. Em alguns momentos, nós mesmos não conseguimos
nos manter quietos e imparciais, diante de situações que acreditamos poder colaborar ou que nos ve­
mos diante de enormes injustiças, sobre a qual não conseguimos permanecer calados.
Somos, portanto, observadores privilegiados das interações que se desenvolvem nos serviços de
saúde, mas também mediadores enquanto elas ocorrem, como descrito nas situações acima sobre a
Escala de Coelho-Savassi. No último caso, a pesquisadora se aproveita de um momento em que a
discussão sobre vulnerabilidade aparece para questionar os profissionais com a intenção de saber se
eles conhecem especificamente as ferramentas próprias da MFC. O questionamento, no entanto, só
é possível porque havia uma troca entre os pesquisadores e uma comparação com a etnografia reali­
zada no primeiro contexto, o que permitiu levar essa discussão ao segundo contexto. Em nenhum
momento, no entanto, a pergunta feita é sobre a escala, mas sim, sobre como eles medem a vulnera­
bilidade. A resposta não poderia ter sido mais espontânea, no diálogo entre a agente e o médico, fi­
camos sabendo que a escala é sim conhecida por eles, mas não utilizada diretamente. A etnografia

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de longa duração realizada nesta unidade, permite complementar este dado, ao passo em que sabe­
mos que a equipe não possui queixas na gerência pela falta de visitas domiciliares (situação comum
em outras equipes) e que conseguem sempre visitar as famílias já previstas na visita, além de incluí­
rem outras que solicitam. Notamos ainda que eles se utilizam da importante rede de fofocas e soli­
dariedade existente na favela para incluir novos casos em sua agenda de visitas, o que parece ser
uma ferramenta importante em situações como essa.
Tal conhecimento do antropólogo que etnografia um serviço de saúde ou uma instituição de ensino
em saúde, não é imperceptível aos olhos dos profissionais e usuários que se encontram ali. Aos pou­
cos, o antropólogo vai sendo reconhecido e passa a ser indagado de ambos os lados: “mas então, o
que você acha?”. Um jovem medico recém contratado na unidade do Complexo do Alemão, logo no
primeiro dia em que foi acompanhado, indagou à pesquisadora: “mas então, temos que discutir os
casos ao final das consultas?”. A resposta foi negativa, mas a verdade é que os casos sempre foram
discutidos, por desejo de ambos: uma antropóloga interessada em saber mais sobre os casos, um jo ­
vem médico querendo uma opinião sobre sua conduta como médico e os diagnósticos que fazia. Em
um dos momentos dessa troca, o médico perguntou à pesquisadora o que ela achava dele como
médico, se tinha alguma sugestão do que poderia melhorar em seus atendimentos. A resposta foi a
de que como antropóloga não saberia avaliá-lo, apenas acompanhar e descrever seu trabalho. Mas
não era verdade.
Ao acompanhar o trabalho de mais de um médico de família e conhecendo mais de um contexto de
desenvolvimento da Estratégia de Saúde da Família, é impossível não fazer avaliações sobre seu
funcionamento e suas práticas. Este foi outro dado que apareceu nas conversas entre os autores
quando falávamos sobre os dois contextos aqui descritos, o que funciona bem ou mal em cada um
deles e o motivo. Assim, passamos a nos questionar sobre por que raramente vemos antropólogos
envolvidos em pesquisas avaliativas na área da saúde. Em artigo de 1991, Cecilia Minayo faz justa­
mente a mesma pergunta, lembrando que a abordagem antropológica para avaliação da saúde pode
possuir um caráter estratégico no sentido de formular e aprimorar políticas sociais. Minayo escreve:
Ao propor uma abordagem qualitativa para avaliação, a antropologia introduz de forma positiva
a importância do "subjetivo" em qualquer abordagem do social, oferecendo instrumentos para
sua apreensão. Desta forma, enquanto opera ao nível dos Significados a antropologia (nas suas
mais diversas correntes) passa a questionar, pela contribuição que dá, os fundamentos do
positivismo sociológico. Sem negar a possibilidade de quantificar determinados dados da

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realidade, aponta para o problema fundamental das ciências sociais, que é o caráter específico
de seu objetivo, que é sujeito e que se recusa peremptoriamente a se revelar apenas em número
ou a se igualar com sua própria aparência. (MINAYO, 1991: 236)

Assim, concordamos com Minayo sobre o potencial que etnografias realizadas em serviços de saú­
de possuem para fins de avaliação, dos serviços e dos profissionais. Apenas a partir dos casos aqui
apresentados, poderíamos elencar três pontos que podem ser fruto dessa avaliação com os quais po­
deríamos contribuir, são eles: desempenho dos médicos a partir de sua formação e experiência pro­
fissional, importância da trajetória pessoal e profissional para a prática médica e impacto da infraes-
trutura do serviço nos atendimentos. A partir destes apontamentos, ainda iniciais, pretendemos
aprofundar a reflexão e metodologia de pesquisas de cunho participativo avaliativo em antropologia
na área da saúde, considerando também as experiências já sistematizadas sobre o tema, tais como
em Trad (2002).

A modo de conclusão
Neste texto nos propusemos pensar a diferenciação na auto referência à categoria e às práticas da
medicina de família como derivadas da formação, da trajetória e dos contextos de prática. Utilizan­
do como eixo argumentai a Escala de Coelho-Savassi para comparar situações diferentes, pudemos
analisar as variações das práticas associadas aos diferentes graus de conhecimento dos contextos e
às diferentes idiossincrasias dos profissionais.
Nossos dados mostram como, para além da formação específica em Medicina de Família e Comuni­
dade, outras variáveis se tornam fundamentais na estruturação da prática dos médicos que atuam na
atenção básica. Uma delas é o tempo de permanência no contexto de trabalho. Isto vai de encontro
aos atributos centrais da prática da APS tal como a longitunalidade. Por outro lado, encontramos
competências mais ligadas a emoções e trajetória dos profissionais - pessoal e profissional - de­
monstrando que estas também afetam sensivelmente o modo pelo qual se relacionam com os usuá­
rios, com os outros profissionais e com a prática no dia-a-dia de um modo geral.
Finalmente, fazemos menção às possibilidades de praticar uma antropologia avaliativa, ou uma an­
tropologia implicada a partir do conhecimento produzido no trabalho de campo como modo de con­
tribuir para aprimorar as práticas de cuidado e de lidar com o sofrimento tanto dos usuários e dos
profissionais.

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