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A despolitização da democracia

liberal no pensamento de Carl


Schmitt*

Pedro Villas Bôas

Introdução no século XIX da democracia de massas. Todavia,


as primícias de tais tensões já podem ser observadas
A investigação de premissas da despolitização a partir de sua abordagem de dois sentidos distintos
provocada pela democracia liberal abre caminho do conceito de secularização: o de secularismo de
para a reflexão sobre a coexistência dos fundamen- cunho iluminista e a secularização com o sentido
tos do liberalismo e da democracia. A origem das de emancipação e inteligibilidade do político.
tensões existentes entre liberdade e igualdade, auto- A proposta deste estudo é percorrer alguns tra-
nomia e heteronomia, razão pública e razão privada balhos de Schmitt a fim de mostrar que o tratamen-
podem ser pensadas à luz da distinção entre o foro to conferido pelo autor ao conceito de secularização
íntimo e foro externo, alcançada por meio do pro- é indispensável para compreender as origens do pro-
cesso de secularização. Carl Schmitt (1888-1985) cesso de despolitização conduzido pela democracia
expõe em diversos trabalhos a incompatibilidade da liberal. A despolitização suscitada pelos conceitos da
identidade pretensamente existente entre democra- democracia liberal pressupõe a compreensão da co-
cia e liberalismo, sobretudo a partir do surgimento nhecida fórmula schmittiana segundo a qual todos
os conceitos relevantes da teoria do Estado moderno
seriam conceitos teológicos secularizados.
* Agradeço aos pareceristas anônimos da RBCS pela Na primeira parte do trabalho, investigo o sen-
contribuição à versão final deste artigo. tido atribuído por Schmitt à secularização de concei-
Artigo recebido em 04/01/2010 tos teológicos e sua relação com a despolitização da
Aprovado em 28/06/2011 democracia liberal. Na segunda parte, abordo o tema
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da secularização do político por meio do desvela- ca dos conceitos políticos e jurídicos da teoria do
mento dos antagonismos existenciais ocultados pelo Estado moderno poderia ser demonstrada de dois
fundamento dos conceitos democráticos liberais. Na modos: o primeiro seria indicado pelo decurso his-
terceira, procedo à discussão do grau de intensidade tórico mediante o qual se observa uma transferência
do político e sua relação com a despolitização provo- da esfera teológica a uma esfera política. A transfor-
cada pela democracia liberal. Vale a pena mencionar mação de um Deus todo-poderoso num legislador
que o conceito de secularização é utilizado como ca- onipotente seria um exemplo dessa transferência.
tegoria heurística capaz de revelar a tensão entre a vi- O segundo sentido, de cunho hermenêutico,
sibilidade do político e sua invisibilidade promovida mostra uma afinidade estrutural que pode ser obser-
pelo pensamento liberal e positivista. vada através de uma analogia entre conceitos teoló-
gicos e políticos. O exame desta afinidade estrutural
entre a teologia e a política torna inteligível o fato
O político pressupõe a secularização dos de ambas as áreas do conhecimento compartilha-
conceitos teológicos rem de uma estrutura comum: a imagem metafísica
do mundo. Para Schmitt, todo pensamento inclui
Schmitt, no livro Politische Theologie, apresen- um comportamento metafísico diante do mundo,
ta o conceito de secularização com dois sentidos: observado em representações e projeções de ima-
um histórico e outro hermenêutico. O sentido his- gens. Com isso, o jurista pretende tornar explícito
tórico1 busca reconduzir os conceitos do Estado que o processo de secularização, a despeito de afas-
moderno ao seu caráter polêmico, observado em tar representações e imagens sagradas do mundo,
distintos contextos de luta política, por meio dos não significa a perda de uma atitude metafísica:
quais o conceito de secularização amplia sua ex-
tensão semântica. Além de esse conceito adquirir [...] existem hoje muitos tipos de atitude me-
diferentes acepções polêmicas no curso do desen- tafísica em forma secularizada. Para o homem
volvimento histórico, contém um caráter herme- moderno, em grande medida, surgiram no
nêutico por meio do qual seria possível desvendar lugar de Deus outros fatores e, precisamente,
a estrutura metafísica da realidade. Para Schmitt, fatores terrenos: a humanidade, a nação, o in-
toda realidade histórica, assim como toda con- divíduo, o desenvolvimento histórico [...]. A
cepção do mundo, tem um núcleo metafísico que atitude não deixa com isso de ser metafísica.
corresponde a uma última instância, a um centro O pensamento e o sentimento de cada homem
absoluto (Schmitt, 1998, p.17). A formulação de conservam sempre um determinado caráter
Schmitt revela que: metafísico; a metafísica é algo inevitável e [...]
não se pode lhe escapar renunciando a se tor-
[...] todos os conceitos marcantes da teoria do nar consciente dela (Schmitt, 1998, p.18).
Estado moderno são conceitos teológicos secu-
larizados. Isso vale tanto para o seu desenvolvi- Nenhuma realidade histórica poderia libertar-
mento histórico, já que foram transferidos da -se de um núcleo metafísico. A secularização assu-
teologia para a teoria do Estado, transforman- me aqui o sentido de substituição e não de trans-
do-se, por exemplo, o Deus todo-poderoso no ferência. Diz respeito à substituição da posição
legislador onipotente, como para sua estrutura ocupada por Deus por fatores terrenos, o que não
sistemática, cujo conhecimento é necessário implica o desaparecimento de uma raiz metafísi-
para uma consideração sociológica dos concei- ca. Toda projeção de imagem compartilha com a
tos (Schmitt, 2004, p. 43).2 realidade política e social uma estrutura metafísica
comum. Tanto a realidade histórica como uma con-
O enunciado acima é uma resposta às doutri- cepção de mundo apresentam uma imagem meta-
nas do Estado moderno que visam privá-lo de seu física fundada num fator último de legitimidade,
conceito de soberania. A suposta origem teológi- seja ele representado por um elemento divino ou

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terreno. A realidade histórica e a imagem de mun- tória. Completamente irracionais, se as obser-


do estruturam-se a partir de um centro ou de uma varmos pela lógica da filosofia racionalista do
instância absoluta que podem ser substituídos por século XVII, mas objetivas e evidentes na sua
outros elementos: configuração supraindividual, elas dominaram
in realitate o pensar da humanidade como dois
[...] certamente, porém, aquilo que os homens novos demiurgos (Idem, p. 68).
consideram como instância absoluta última
pode mudar, e Deus pode ser substituído por A sucessiva reocupação da posição central por
fatores terrenos deste mundo. É a isso que cha- distintas imagens de mundo encontra sua dinâmica
mo secularização, e é sobre isso que falo e não nos conflitos travados entre homens, como se ob-
sobre aqueles casos também muito significati- serva na Revolução Francesa inspirada pelos ideais
vos, mas em comparação com esses, são casos universais do iluminismo. As representações de uma
superficiais (Idem, ibidem). imagem universal da humanidade e de uma histó-
ria geral orientada para o progresso retiravam sua
A secularização consiste numa substituição de pujança de uma concepção metafísica do mundo.
imagens cuja dissolução de representações tradicio- A substituição de Deus pelas representações ima-
nais não implica na eliminação de um fundamento nentistas de humanidade e história não eliminaria
metafísico. De um lado, o surgimento do Estado o resíduo teológico ou metafísico, pois a toda época
moderno e seus conceitos jurídicos e políticos resul- é subjacente um núcleo metafísico. Assim, mesmo
tam de um processo de secularização compreendi- destronando o Deus pessoal teísta, a humanidade
do a partir da neutralização dos conflitos religiosos e a história continuariam exercendo um papel de-
dos séculos XVI e XVII. De outro, a secularização miúrgico. Dominados por tais crenças, os homens,
é apresentada como uma sucessiva substituição de como seria o caso dos jacobinos, seriam arrebatados
imagens metafísicas. Em outras palavras, a secula- pelo fanatismo, e as lutas revolucionárias assumi-
rização revela que a realidade, apesar das suas mu- riam um sentido religioso. Comenta Schmitt que
tações históricas, conserva uma estrutura na qual em face do espírito revolucionário jacobino a
haveria uma instância absoluta constantemente
substituída de acordo com distintas imagens ou [...] política se torna um assunto religioso, o
concepções de mundo. Desse ponto vista, a estru- órgão político um sacerdote da república, da
tura ontológica da realidade seria formada pelas re- lei, da pátria. Contra todo dissidente político,
presentações do mundo que ocupam uma posição toda opinião desviante, o jacobinismo se en-
central. Posto de outra forma: as qualidades da re- furecia com fervor sanguinário. Seu fanatismo
alidade são conformadas pelas projeções de crenças tinha caráter religioso, o novo culto da liber-
que alcançam um lugar central ou “ponto último dade, a virtude ou o “ser supremo” era uma
de legitimidade” para suas representações. No sécu- consequência natural. [Da perspectiva dessa
lo XVII, o Deus teísta da realidade segura da velha religião imanentista] todo inimigo político [...]
metafísica havia sido destronado e para o conceito era um “ateu” (Idem, p.69).
de secularização concebido por Schmitt
Mediante o conceito de secularização é possí-
[...] mais importante do que a controvérsia dos vel compreender o fenômeno da despolitização e da
filósofos era a questão de quem assumiu sua neutralização das doutrinas do Estado moderno –
função como realidade mais segura e elevada como é o caso da concepção de um Estado fundado
e, assim, como último ponto de legitimidade nos princípios da democracia liberal – dos séculos
na realidade histórica. Duas novas realidades XIX e XX, que buscavam privar o Estado de seu
surgiram neste mundo e impuseram uma nova sentido político. Conforme Schmitt, a despolitiza-
ontologia sem esperar pelo fim da discussão da ção das doutrinas do Estado moderno ocorreria por
teoria do conhecimento: a humanidade e a his- meio da tentativa de substituir o sentido político

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da soberania por “representações de imanência” to dos sujeitos que ocupam o centro absoluto, es-
(Schmitt, 2004, p. 53). Através do exame da con- truturante da realidade, encontra sua maior expres-
cepção que uma época faz do mundo seria possível são no indivíduo burguês “apolítico”, na filosofia
conhecer a sua forma de organização política, e a da história voltada para o progresso e na noção uni-
elaboração de seus conceitos correspondentes, pois versalista de humanidade (Schmitt, 1998, p.78).
“a imagem metafísica que uma determinada época Schmitt, nos trabalhos Politische Theologie e Der
faz do mundo tem a mesma estrutura daquilo que Begriff des Politischen, busca mostrar que o político
lhe parece evidente como forma de sua organização é irredutível à dimensão de imanência que exclui a
política” (Idem, p. 50). contingência a fim de se constituir em um sistema
A secularização revelaria uma sucessão de re- de funcionamento autônomo. A irredutibilidade
presentações de imanência manifestadas por meio do político revela-se no seu caráter transcendente,4
de noções como autogoverno, autofuncionamen- que descortina uma filosofia da vida cuja concep-
to, autorregulamentação. A realidade estaria do- ção existencialista escapa a qualquer normatividade
minada por imagens de mundo na qual as ações positivista ou liberal. Schmitt, em Gesetz und Urteil
políticas, a realização do direito, a soberania e a de- de 1912, já havia transformado a contingência ou
cisão política tornam-se supérfluas, pois o mundo ruptura no princípio epistemológico de sua investi-
funcionaria por si mesmo, se autorregulamentaria. gação, demonstrando a necessidade de uma decisão
Nas representações de imanência as ações políticas para determinação do direito. Na Politische Theo-
são inócuas, pois o mundo político, social e eco- logie, a contingência ou ruptura assume a ideia de
nômico funciona por si mesmo, possui um motor exceção como ferramenta epistemológica capaz de
próprio. Em tais representações, como é caso da minar concepções racionalistas imanentistas, que
liberal, “espera-se que a vida pública se governe a tomam a normalidade do ordenamento jurídico e o
si mesma” (Schmitt, 1984, p. 47). Às concepções autofuncionamento da vida social como harmonia
de imanência, evidenciadas pela analogia entre te- preestabelecida. Conforme o jurista,
ologia e política, seriam comuns emanações, pan-
teísmos e o deísmo, cuja expressão pode ser encon- [...] a exceção é mais interessante do que o caso
trada sob a forma da mão invisível reguladora do normal. O caso normal não prova nada, a ex-
mercado no lugar de ações humanas, e o governo ceção prova tudo; ela não só confirma a regra
das leis econômicas no lugar de decisões políticas como é a própria regra que vive tão-somente
soberanas. Assim, “nem os homens tampouco as da exceção. Na exceção a força da vida real ir-
coisas necessitam ‘governo’ quando se abandona o rompe da crosta de uma mecânica enrijecida
mecanismo do econômico e do técnico à sua regu- na repetição. Um teólogo protestante que de-
laridade imanente” (Idem, p. 60). monstrou de que intensidade vital a reflexão
Na Politische Theologie, o sentido do conceito teológica também podia ser capaz no século
de secularização de Schmitt surge de forma contrá- XIX disse (Carl Schmitt, 2004, p. 21): “A ex-
ria à acepção iluminista da secularização. A secula- ceção explica o geral e a si mesma. E se por-
rização iluminista, também denominada secularis- ventura se quiser estudar corretamente o geral
mo,3 procede – segundo a concepção do jurista – à basta procurar uma exceção real. Ela põe tudo
substituição de representações de transcendência mais às claras do que o próprio geral. Com o
por representações de imanência. Essa substitui- tempo fica-se farto desse eterno falatório do
ção teria o escopo de eliminar a contingência da geral; exceções existem. Se não se pode explicá-
vida humana. Ora, para Schmitt é justamente na -las, então também não se pode explicar o ge-
inteligibilidade e na percepção da contingência que ral. Habitualmente não se repara na dificulda-
se descortina a responsabilidade do agir e decidir de, pois se pensa o geral não com paixão, mas
político no mundo. O propósito de seu conceito com cômoda superficialidade. A exceção, pelo
de secularização é desvelar tais representações de contrário, pensa o geral com enérgica paixão”
imanência e exibir seus demiurgos. O desvelamen- (Kierkegaard apud Schmitt, 2004, p. 21).5

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Os sujeitos e os conceitos que ocupam e desem- mesmo modo recusa a intervenção imediata do
penham a antiga função do Deus pessoal teísta da soberano numa ordem jurídica vigente (Sch-
velha metafísica, como o indivíduo burguês, a filo- mitt, 2004, p.43).
sofia progressista ou conceito universalista de huma-
nidade são incapazes de lidar com os casos-limite ou A teologia ou a metafísica deísta “que bane o
situações críticas, pois a racionalidade normativa das milagre do mundo” e não admite a ruptura de leis
leis gerais não prevê tais situações. O grande proble- naturais encontra sua analogia ou correspondência
ma que percorre boa parte dos trabalhos de Schmitt no Estado de direito que nega a soberania que de-
se revela na luta contra a negação da contingência cide sobre a exceção a fim de intervir na realidade.
que, como disse, assume um sentido mais especí- A soberania transcendente quebra a regularidade
fico na Politische Theologie. No referido trabalho, o imanente à normalidade das leis do Estado de di-
jurista admoesta: “o racionalismo do esclarecimento reito da mesma forma que o milagre interrompe o
recusou a exceção de toda forma” (Schmitt, 2004, ordenamento natural das coisas. Exceção, decisão
p. 43). Creio que seja fundamental ter em vista que e intervenção apresentam uma afinidade estrutu-
o esforço liberal e positivista para varrer a contin- ral com a ideia de um Deus transcendente que se
gência, precisamente a exceção para fora do mundo, posiciona acima do mundo, assim como a pessoa
corresponde à eliminação do núcleo político funda- do soberano sobrepõe-se ao Estado (Idem, p. 53).
mental compreendido pelo conceito de soberania. A substituição de representações de transcendência
Por isso, o jurista o define como “conceito-limite” por concepções de imanência não teria no âmbito
(Grenzbegriff ). O caso de exceção ou da contingên- da teoria do direito e do Estado deixado de lado um
cia extrema é a situação extraordinária na qual se núcleo metafísico que conferia caráter sagrado à lei
revela o ponto mais alto do político: a soberania. ou à vontade do legislador, no século XIX, domi-
Da perspectiva de Schmitt, o “conceito-limite nado pela cultura positivista, precisamente pelo
não significa um conceito confuso como na termi- positivismo jurídico. Segundo Carl Schmitt, a
nologia obscura da literatura popular, mas um con- dinâmica das lutas e a imposição de ideais leva-
ceito da esfera extrema. A isso corresponde o fato ram à substituição de um Deus teísta pelo Deus
de que sua definição não pode se vincular ao caso deísta.6 Em outras palavras, a substituição de re-
normal, mas a um caso-limite” (Idem, p. 13). O presentações de transcendência por representações
caso-limite da guerra, por exemplo, revelaria o jus de imanência implica a invisibilidade ou a ininteli-
belli ou o direito de dispor sobre a vida dos mem- gibilidade do poder político cuja desontologização7
bros da associação política (Schmitt, 2002b, p. 46). o reduz à impessoalidade normativa do dever ser.
Na normalidade, no funcionamento regular do or- Assim, o poder político outrora encarnado num
denamento jurídico, a soberania é invisível, mas no soberano pessoal passa a ter a forma abstrata da
caso-limite ou crítico se revelaria a própria estrutu- lei, mas o governo da lei não substitui o governo
ra da realidade e a essência do direito proveniente dos homens, pois homens concretos continuam
de uma decisão. Todavia, a partir do iluminismo governando homens concretos por trás da fachada
surge uma imagem deísta de mundo cuja identi- da lei. As representações de imanência apresenta-
dade estrutural é encontrada no Estado de direito riam um paralelismo com a forma de organização
liberal, que não tolera nenhuma espécie de exceção política que se empenha em substituir o pessoal
ou rompimento das leis imanentes à natureza: pelo impessoal, o subjetivo pelo objetivo, a exce-
ção pela normalidade, enfim negam o político.
[...] a ideia do moderno Estado de direito se Desse modo, a complexa realidade política e so-
impõe com o deísmo, com uma teologia e me- cial é subsumida à uniformidade e à regularidade
tafísica, que bane o milagre do mundo e recu- de uma ordem imanente ao mundo. Ao retratar o
sa o rompimento das leis naturais, contido no espírito romântico, cujo portador seria a burguesia
conceito de milagre, que estabelece uma exce- liberal, Schmitt apresenta uma interessante ima-
ção por meio de uma intervenção imediata, do gem do que poderia ocorrer com as representações

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de imanência do mundo do normativismo liberal lítico é imprescindível analisar como o jurista in-
e do positivismo que, ao negar a decisão, eleva as terpreta e retoma algumas ideias de Thomas Ho-
oportunidades. A ampliação das oportunidades bbes (1588-1679). Ninguém percebera melhor do
sem o fator indispensável da decisão pela sua redu- que Hobbes “que conceitos e distinções são armas
ção não significa outra coisa senão a elevação dos políticas, e, precisamente, dos poderes ‘indiretos’”
níveis de contingência: “a partir de oportunidades (Schmitt, 2003a, p. 26). O caráter político do po-
sempre novas surge um mundo sempre novo, mas der “indireto” se tornaria patente nas oposições
sempre só ocasional, um mundo sem substância e concretas dadas pela realidade de uma situação-
ligação, sem condução firme, sem um último tri- -limite como seria o caso da guerra civil-religiosa.
bunal, que segue em diante infinitamente condu- O filósofo inglês teria tornado claro que toda con-
zido apenas pela mão mágica do acaso, the magic trovérsia entre o espiritual e o temporal se converte
hand of chance”­(Schmitt, 1998, p. 19). numa disputa política, na medida em que se torna
Na visão de Schmitt a tentativa de negar ou uma questão existencial que só poderia ser decidida
ocultar o político, com seu caráter transcenden- por quem tem o monopólio da decisão. A observância
te pessoal e soberano, poderia sujeitar os homens dessa questão existencial, identificada numa situação
à condução da mão mágica da contingência. No extrema de luta pela conservação da vida, permitira
eclipsamento do político, a secularização revela seu distinguir um sentido eminentemente político de
sentido de imanência tornando invisível a contin- outros conteúdos que o teriam desencadeado. Sch-
gência. Este sentido também é observado por Ni- mitt acredita retirar de Hobbes o conhecimento de
klas Luhmann (1927-1998) ao salientar que “com que a luta travada entre homens pode extrair seu
a secularização é finalmente registrada a invisibili- fundamento nas mais diversas áreas de conteúdo.
dade da mão de Deus e da noção ‘le monde va Todavia, se a luta atingisse um nível mais elevado,
de lui-même’” (Luhmann, 2002, p. 285). O em- ela se tornaria existencial e, justamente aí, no grau
penho da democracia liberal em recalcar o polí- mais extremo de sua medida, assumiria uma tensão
tico não elimina o exercício do poder político e especificamente política. Tal tensão se torna níti-
tampouco a produção de seus efeitos. Todavia, da da a partir da possibilidade da negação ontológica
perspectiva de Schmitt, a tentativa de escamotear recíproca entre agrupamentos humanos, que pode
seu caráter transcendente e pessoal o relega ao pla- sempre ocorrer a partir de uma situação extrema
no secreto, tornando-o invisível e, portanto, espú- que escapa a qualquer previsibilidade normativa.
rio. O problema da negação do político é que nos A interpretação que Schmitt faz de algumas
bastidores o poder não deixa de ser exercido e con- ideias de Hobbes é da maior importância para com-
centrado na mão de poucos homens que com “mal- preender a secularização do conceito do político que
dade suprema dirigem a história dos homens de o jurista não só pensa ter se iniciado com Hobbes,
forma invisível [...] por meio da crença secularizada mas considera necessário dar continuidade. A re-
numa providência”. A crença na salvação imanente ferida interpretação mostra que a extrapolação do
a fatores terrenos, como a história, leva Schmitt a grau extremo alcançado pelo político, isto é, pelos
dizer: “estamos desamparados na mão do poder que dos antagonismos humanos, no cenário das guerras
joga conosco” (Schmitt, 1998, p. 88). O velamento civis-religiosas extrairia sua intensidade dos poderes
ou a invisibilidade do político traduz-se na vitória espirituais, precisamente de suas argumentações te-
da fortuna sobre a ação política decisória, no triun- ológico-morais. Schmitt concorda com Hobbes que
fo da imprevisibilidade sobre a previsibilidade. o político, compreendido como dimensão existen-
cial do conflito, deve ser alijado dos fundamentos
teológicos que tornariam os antagonismos exorbi-
A secularização do político tantes, impossibilitando a distinção entre amigo e
inimigo. O véu teológico-moral encobre o sentido
A fim de compreender o empenho de Schmitt político existencial e, por este motivo, cabe proceder
em promover a secularização do conceito do po- ao seu desvelamento secularizante a fim de reconhe-

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cer o conflito entre agrupamentos humanos como apresenta-se à apreciação de Schmitt como moral
algo pertencente à esfera existencial e não ao âmbito universalizante, cujo escopo é banir a contingên-
teológico, divino ou moral que estigmatiza e cri- cia do mundo e, consequentemente, negar o po-
minaliza o inimigo. Aqui é necessário apontar uma lítico. Certamente Lubbe concorda com Schmitt
dificuldade que pode surgir com relação à compre- ao afirmar que a secularização de cunho iluminis-
ensão do conceito de secularização de Schmitt. A ta, precisamente o secularismo, teria o sentido do
despeito de o autor constatar uma relação metódica “banimento de Deus da vida pública e privada e a
ou formal entre teologia e política, opõe-se veemen- deificação da natureza humana”. O secularismo, diz
temente ao fundamento moral ou teológico-moral Lubbe, “surgiu a partir do iluminismo, recebendo
de conceitos políticos. O fundamento teológico-mo- então da revolução francesa um impulso rígido que
ral oculta o político com suas tendências normativas foi adotado pelo liberalismo do século XIX” (Lub-
e generalizantes, abstraindo do caráter existencial e be, 2003, p. 132).
contingencial do político. Isso significa que o polí- A determinação do político, segundo a inter-
tico e seus conceitos, entendidos a partir da contin- pretação de Schmitt, advém da impossibilidade
gência máxima representada pelo conflito, se eleva do caráter exorbitante dos conflitos provocados
exageradamente – ultrapassando a medida tolerável pelo fermento moral universalizante. Por isso, para
de risco – quando os conflitos são velados. Em vir- o jurista, a efetiva secularização, racionalização ou
tude das razões apresentadas, Schmitt esclarece que humanização dos antagonismos só é possível por
meio do reconhecimento dos antagonismos como
[...] a relação metódica de pressupostos do algo existencial (Schmitt, 1997, p. 113). A condi-
pensamento político e teológico é, portanto, ção de possibilidade do político é a neutralização
clara. Porém, o apoio teológico frequentemen- da política teológica da moral cristã por meio da
te confunde os conceitos políticos, porque co- secularização do conceito teológico de inimizade.
mumente desloca as distinções para o teológi- A partir daí, Schmitt considera possível não apenas
co-moral, ou no mínimo se mistura com isso, discernir, mas também desconectar, pela neutrali-
e então na maioria das vezes um ficcionalismo zação, a intensidade política extrema proveniente
normativo obscurece ou mesmo um oportunis- de doutrinas teológicas moralizantes do âmbito
mo prático-pedagógico obscurece o conheci- político existencial da vida humana. Promoven-
mento dos antagonismos existenciais (Schmitt, do essa desconexão secularizante, cujo efeito livra
2002b, p. 64). o político do suporte moral absolutizante – esteio
da democracia liberal –, o jurista pretende diluir o
A passagem revela que se, de um lado, Schmitt fundamento metafísico do liberalismo democráti-
reconhece uma relação formal ou metódica entre co, cuja expressão maior surge na sacralização uni-
premissas teológicas e políticas, de outro, o polí- versalizante do sujeito individual.
tico e seus conceitos devem ser secularizados ou Diante do que foi até aqui exposto, caberia in-
distinguidos do ficcionalismo normativo da moral- dagar como se procede à secularização do político.
-teológica que escamoteia o caráter existencial dos A alusão de Schmitt ao autor do Leviatã nos forne-
antagonismos. É imprescindível notar que o sentido ce uma pista relevante. Segundo ele, Hobbes
do conceito de secularização empregado por Sch-
mitt pretende separar a moral do político, em vir- [...] não foi nem um grande matemático nem
tude de a qualidade universalista da moral abstrair um grande físico, tampouco um filósofo das
o sentido contingencial da existência humana. Para ciências naturais. Sua realização científica per-
tanto, Schmitt retoma a ideia política secularizante, tence inteiramente à philosophia practica. Ele
encarnada pelo Leviatã (1651) de Hobbes, a fim de percebeu que todo conflito entre uma compe-
combater o sentido que o conceito de secularização tência espiritual-eclesiástica e uma competên-
assume com o iluminismo. Tal sentido, também cia secular-política se torna um conflito político
denominado por Hermann Lubbe de secularismo, no mesmo momento em que se eleva a uma

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questão de autoconservação (Selbstbehaup- espiritual do poder decisório – pertence ao político,


tung); assim, o conflito não pode ser decidido na medida em que é uma questão existencial dis-
por meio de distinções tão perspicazes entre es- tinguir entre amigo e inimigo, guerra e paz, civil e
piritual, temporal e gênero misto (res mixtae) combatente, sagrado e profano, verdade ou falsida-
senão apenas formalmente através da resposta de. A compreensão de que o maior poder corres-
à pergunta formal: Quis judicabit?”(Schmitt, ponderia àquele pertencente à autoridade espiritual,
2003a, p.166). precisamente o da decisão última (do juízo final ou
do tribunal último), é para Schmitt a grande lição
Devemos nos ater ao aspecto central que Sch- aprendida com seu professor Thomas Hobbes. A
mitt assimilou dos ensinamentos de Hobbes: o necessidade de transferir às mãos do domínio estatal
filósofo inglês teria notado que, da perspectiva da tal espécie de decisão primária ou instância última
Igreja romana, o maior poder seria sempre o poder decisória, a qual compete a distinção entre amigo
espiritual. A competência para responder quem de- e inimigo, indicaria impossibilidade de secularizar
cide, quem interpreta, quem jurisdiciona, caberia ou conferir visibilidade ao domínio político secular
sempre ao detentor do poder espiritual. Acredito sem o monopólio da instância última de decisão.
que tal constatação não seja de modo algum tri- Não bastariam os meios legítimos de violência para
vial. Aliás, muito pelo contrário, pois a constitui- a esfera secular do poder político, pois sua emanci-
ção de uma ordem jurídica dependeria sempre da pação dependeria de uma instância última de deci-
determinação das distinções últimas a partir das são, cuja competência tradicionalmente pertencera
quais poderia se distinguir entre direito e lei, ami- ao poder espiritual. Conforme Schmitt:
go e inimigo, guerra e paz, crime e pecado. Uma
leitura atenta da terceira e quarta partes do Leviatã [...] todas as distinções metafísicas, teológicas-
de Hobbes revelam que a sua hermenêutica das Sa- -morais, jusnaturalistas e canônicas-jurídicas
gradas Escrituras pode ser sintetizada na insistente da Igreja romana sempre foram, por fim, res-
pergunta: de onde as Escrituras retiram sua autori- pondidas com o fato de que é ao poder espi-
dade? Subjacente a essa preocupação crucial residi- ritual, como poder supremo, que compete
ria a indagação sobre quem decidiria sobre o que é responder Quis Judicabit. Antes de tudo, a
sagrado ou profano, divino ou demoníaco, bondo- distinção de assuntos direta e indiretamente
so ou herético etc. Aqui o problema da pretensão espirituais significava, do ponto de vista do
do monopólio da decisão sobre autenticidade, ver- resultado prático, que era o poder espiritual
dade ou definição conceitual é uma questão emi- que decidia tão logo seu interesse existencial
nentemente política de quem detém a autoridade. na questão concreta fosse forte o suficiente. O
À secularização do político não basta a disposição significado epocal de Thomas Hobbes consiste
de um poder qualquer, que, na acepção de Schmitt, em ter reconhecido de forma conceitualmente
não é outra coisa senão um instrumento técnico. clara o sentido puramente político da preten-
Poder destituído de uma autoridade (espiritual no são espiritual da decisão (Idem, pp. 166-167).
sentido intelectual) capaz de definir o que ele seja
ou a que fim se destine é puro recurso técnico. Os conflitos entre poder espiritual e temporal
É imprescindível compreender que a existência não só revelariam o caráter político de distinções,
de um agrupamento humano depende da autorida- ideias e conceitos do poder espiritual, mas torna-
de que detém o monopólio das distinções últimas riam patente que ele é o poder mais importante,
(poder espiritual), precisamente da determinação de porque determina o sentido dos conceitos mais re-
quem é o inimigo a ser combatido. Tal poder espiri- levantes do político, como é caso do par conceitual
tual, capaz de determinar quem ameaça a existência amigo e inimigo. A esfera do político somente se
de uma coletividade humana, consiste numa decisão torna visível a partir da estatização da decisão últi-
última, espiritual cujo caráter é, ao mesmo tempo, ma, da sujeição do poder espiritual ao poder tem-
existencial. Mais ainda, tal questão – o monopólio poral. Aqui se torna claro que sem o controle do

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A despolitização da democracia liberal...  121

poder espiritual ou intelectual, entendido como da Montanha do Diabo, olhasse o mundo e


determinação das distinções últimas, não é possível observasse as ações dos homens, sobretudo na
emancipar uma ordem política e governar as ações Inglaterra, descortinaria um panorama de to-
humanas. A lição do poder espiritual que Schmitt das as espécies de injustiças e de loucura que o
extrai de Hobbes é indispensável para o desenvol- mundo pôde proporcionar, e de como foram
vimento do conceito do político como um critério geradas pela hipocrisia e presunção – aquela,
heurístico de distinção do que seja político. dobrada iniquidade, esta dupla loucura (Hob-
bes, 2001, p. 31, grifos meus).

O grau de intensidade do político Hobbes percebera que a insanidade das conten-


das civis e religiosas não era apenas provocada pe-
O político diferenciar-se-ia da política por não las armas convencionais visíveis, mas que as ideias,
se constituir numa substância, forma de governo ou “distinções ininteligíveis” e conceitos também eram
conjunto de objetivos, mas num critério, uma me- fatores que poderiam elevar ao extremo o grau de
dida que poderia ser observada na “distinção ami- intensidade das lutas (Idem, p. 40). A intensida-
go inimigo que tem o sentido de designar um grau de política de ideias, conceitos, distinções poderia
de intensidade extremo de ligação ou separação da derivar de qualquer conteúdo, fosse ele teológico,
associação ou dissociação” (Schmitt, 2002b, p. 27, moral, jurídico ou econômico. Hobbes identificou
grifo meu). Schmitt introduziu o critério do grau com tanta clareza as distinções políticas dos pode-
de intensidade na segunda edição de 1932 do Der res indiretos ou invisíveis que chegou a exibi-las
Begriff des Politischen a fim torná-lo mais claro, o que no frontispício de seu Leviatã (1651). A realidade
não deixou de lhe render inúmeras críticas (Noack, concreta das lutas sangrentas entre os poderes espi-
1996, pp. 118-119). A descrição do político como ritual e temporal que dilaceram a Europa teria de-
grau mais extremo de uma luta não significa que a monstrado a extensão da letalidade exercida pelos
distinção entre amigo e inimigo provoca uma ini- conceitos e distinções do poder espiritual. Não é
mizade absoluta ou uma guerra total. Muito pelo por acaso que Schmitt insiste neste ponto no seu
contrário, o político fundamenta-se na impossibi- trabalho sobre o filósofo inglês e comenta que além
lidade da radicalidade extrema dos conflitos. Para de “Hobbes ter reconhecido conceitos e distinções
Schmitt, a secularização do político significa sua como armas políticas, [...] não há nenhum outro
desconexão de uma moral teológica ou humanitá- filósofo cujos conceitos tenham tido tanto efeito,
ria. A desteologização do político descortina uma ainda que, ao mesmo tempo, tivessem tanto impac-
esfera secularizada da inimizade existencial, livre de to negativo sobre seu próprio pensamento”. Assim,
um fundamento moral que elevava o antagonismo Schmitt revela a lição que extrai de Hobbes “na luta
ao grau mais extremo, tornando impossível a sua do grande professor contra todas as espécies de po-
delimitação. O jurista parece extrair a referida me- der indireto”. Exatamente nesse aspecto, prossegue
dida da observação da intensidade máxima da radi- o jurista, “concluímos hoje sua reconhecível e du-
calidade das guerras civil-religiosas europeias, que radoura realização frutífera” (Schmitt, 2003a, pp.
o domínio do reino secular conseguiu eliminar de 130-131). Creio não haver dúvida quanto ao fato
seu interior. Em Behemoth or the long Parliament, de Schmitt pretender continuar essa “duradoura re-
Thomas Hobbes sugere um critério para aferir o alização frutífera”: a luta secularizante contra pode-
grau de intensidade do antagonismo extremo dos res invisíveis que encobrem o sentido polêmico dos
conflitos religiosos que devastavam a Inglaterra: conceitos políticos da teoria do Estado moderno.
Gunther Maschke relata que Carl Schmitt “foi du-
Se no tempo, como no espaço, houvesse graus rante sua vida inteira adversário de toda forma de
de alto e baixo, acredito firmemente que o mais potectas indirecta” (Maschke, 2003, p. 187).
alto dos tempos seria o que transcorreu entre A secularização, como luta contra os poderes
os de 1640 e 1660. Pois quem do topo, como indiretos ou invisíveis que se arrogavam o domínio

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político, seria um processo inacabado e jamais ple- apresentar-se-ia sob a forma de uma religiosidade
namente concluído para um pensamento compro- extrema, cuja fé cega se revelaria numa despoliti-
metido com a situação concreta do presente. Nesse zação absoluta, o que intensificaria ainda mais os
sentido, a democracia liberal seria o poder indireto conflitos (Schmitt, 2002b, p. 94). O sentido atri-
a ser secularizado. Enquanto houver obscurecimen- buído à secularização por Schmitt certamente difere
to, negação ou confusão quanto à existência de do apresentado no Leviatã de Hobbes, sobretudo,
conflitos entre seres humanos seria necessário secu- no que respeita ao inimigo a ser confrontado. A
larizá-los ou torná-los visíveis. A guerra civil-reli- questão do “tempo presente” de Schmitt não exigi-
giosa não deve ser considerada como a lembrança ria mais combate ao poder eclesiástico presbiteriano
de um terror que passou, mas deve ser encarada ou aquele exercido por papas, bispos, falsos profetas
como conhecimento presente da potencialidade que ameaçavam o domínio secular do poder políti-
de um conflito extremo, cuja neutralização permi- co visível. A realidade concreta de Schmitt deman-
te distinguir entre amigo e inimigo. Os escritos de daria o combate às forças “apolíticas” que negam
Schmitt sobre Hobbes8 são a maior prova da con- ou procuram recalcar o político. Certamente não
vicção do jurista de que caberia mais mostrar que o poder de excomunhão
do papa era uma poderosa arma política capaz de
[...] todo conhecimento histórico é conheci- mudar os rumos da política secular, determinando
mento do presente, porque ele recebe sua luz e o inimigo do reino de Cristo. Cabe para Schmitt,
sua intensidade do presente e no sentido mais por exemplo, elucidar que a imposição de embargos
profundo serve ao presente, porque todo espí- econômicos, a proibição da guerra, a conversão do
rito somente é espírito presente nos disseram inimigo em concorrente de negócios, a desmilitari-
muitos desde Hegel e ninguém melhor que Be- zação não deixam de apresentar um caráter político.
nedetto Croce (Schmitt, 2002b, p. 79). Segundo o jurista, os poderes espirituais apolí-
ticos de hoje buscariam negar o político por meio
O sentido secularizante atribuído ao Leviatã de de uma movimentação entre ética e economia.
Hobbes é interpretado por Schmitt como a questão Desse modo, toda questão poderia ser subsumida
fundamental de seu tempo “presente”: a seculariza- ao conceito de propriedade privada, à ideia de pro-
ção, a visibilidade da dimensão político-existencial gresso humanitário e moral, ao desenvolvimento
da vida humana. A questão é, paulatinamente, iden- dos meios técnicos. A confusão entre política, mo-
tificada desde os seus primeiros trabalhos, passa a ral, economia e direito seria repleta de eufemismos
ser formulada e enfrentada de forma cada vez mais e fórmulas de mitigar a real potencialidade de um
explícita. A investigação da oposição entre lei e de- antagonismo extremo entre os homens. Considero
cisão, direito e força, Estado e poder, nos primeiros que a questão para qual Schmitt busca resposta não
estudos do autor, focalizava o problema da contin- difere daquela de Hobbes quanto à necessidade de
gência que não só não poderia ser negado, como combater os poderes indiretos. O jurista alemão e
também seria uma condição de possibilidade para o filósofo inglês disparam suas armas políticas, res-
compreensão da estrutura da realidade concreta. No pectivamente, o Der Begriff des Politischen e o Le-
Der Begriff des Politischen, Schmitt busca mostrar viatã, contra o obscurecimento do âmbito secular
que a negação do conflito pode elevar a contingên- da esfera do político “ocasionado pelas desordens
cia ao extremo, extrapolando o limite máximo do do tempo presente” (Hobbes, 1983, p. 410).
político. O reconhecimento da possibilidade do an- Da perspectiva de Schmitt, a promessa de ba-
tagonismo extremo é a condição para restringi-lo. nimento da guerra da vida humana seria um em-
Schmitt dedicou-se durante quase toda sua buste observável nas falsas profecias secularizadas
vida à secularização do político, cujo sentido se ex- em forma de prognósticos, nas filosofias progressis-
pressa no enfrentamento dos poderes invisíveis que tas da história orientadas pela propaganda da feli-
buscam eclipsá-lo por meio de sua subordinação à cidade da vida na Terra. O desiderato do conforto
moral, à economia, ao direito. A crença na técnica e de uma vida melhor seria assegurado pela supera-

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ção da política mediante a crença no progresso vin- da reserva de crença na interioridade privada que
douro. A usurpação do político por meio da mani- abriu o caminho para novos e perigosos modos e
pulação de outras formas de crença, alicerçadas em formas de poderes indiretos” (Schmitt, 2003a, pp.
ideias “apolíticas”, poderia ser percebida no caso da 140 e 127, grifo meu). A porta deixada aberta por
filosofia progressista da história forjada pela burgue- Hobbes à crença privada tornar-se-ia o fermento da
sia liberal. Ainda assim, permanece a questão: quem destruição do Estado pela via de seu próprio inte-
são os novos inimigos da teologia política e do con- rior. A reserva de crença “resultou no germe letal
ceito do político de Schmitt? À indagação responde que destruiu pelo interior o poderoso Leviathan e
o jurista: “os antigos inimigos, os poderes ‘indiretos’ abateu o Deus mortal” (Idem, p. 86). Não demo-
da Igreja e de organizações de interesses, reaparecem raria muito para a distinção entre confissão e fé,
neste século sob a forma moderna de partidos polí- exterior e interior se converter em uma das formas
ticos, sindicatos, associações, com uma palavra: ‘os de oposição entre poderes visíveis e invisíveis, entre
poderes da sociedade’” (Schmitt, 2003a, p. 116). público e privado até o momento em que a reserva
O problema de tais formas de organização social de crença, até então situada num segundo plano,
seria a impossibilidade de integrá-las no interior invertesse a situação de poder. Daí em diante o po-
do sistema de representação parlamentar, o que der invisível proveniente do espaço secreto privado
excluiria minorias e deixaria de fora uma multipli- e associado à burguesia liberal ascendente passava
cidade de interesses. Um dos problemas principais a subjugar, de forma indireta, o espaço público do
que o jurista depreende do século XIX decorre da político (Idem, pp. 88 e 93). A inversão pela qual
interpenetração do Estado e da sociedade. Dessa fu- o espaço secreto do privado passa a se sobrepor ao
são resultaria a perda das distinções, não sendo mais público provocaria o esvaziamento do espaço públi-
possível discernir com nitidez o Estado de outras co do poder, gerando um problema de representa-
associações. O pluralismo social significaria a perda ção. Para Schmitt,
da unidade política, das distinções últimas determi-
nadas pelo monopólio do poder político do Estado. [...] se o poder público realmente só quiser ser
As formas do poder indireto diluiriam o políti- público, se o Estado e a confissão empurram
co na economia, na organização técnica, na empre- a fé interior para o “privado”, então a alma de
sa, na autorregulamentação da vida social. Contra um povo se dirige para o “caminho do secreto”
a sujeição do político ao econômico e ao domínio que leva ao interior. Assim cresce a contraforça
da moral da democracia liberal, Schmitt protesta: do silêncio e da tranquilidade. No momento
em que a distinção entre interior e exterior é
[...] hoje não há nada mais moderno do que a reconhecida, a superioridade do interno sobre
luta contra o político. Americanos financistas, o externo, e, portanto, a do privado sobre o
técnicos industriais, socialistas marxistas, e re- público já é, no seu âmago, coisa decidida. Um
volucionários anarco-sindicalistas se unem na poder e força públicos podem ser completa e
exigência de que se elimine a falta de objetivi- enfaticamente reconhecidos e lealmente res-
dade do domínio político sobre a objetivida- peitados, mas somente como poder público e
de da vida econômica. Somente devem existir externo é oco e já sem vida a partir do interior
tarefas técnicas organizacionais e econômicas, [entseelt] (Idem, p. 94).
mas não mais problemas políticos (Schmitt,
2004, p. 68; 1950, p. 38). A divisão interna do Estado em interno e ex-
terno levaria à polarização: entre a moral liberal e
Hobbes foi reverenciado por Schmitt como a política absolutista, entre a divisão dos poderes e
“o pioneiro da secularização”, cujas ideias contri- a indivisibilidade do poder soberano, entre a ver-
buíram para o surgimento do Estado moderno dade parlamentarista e o executivo decisionista,
europeu. Todavia, afirma que o autor inglês “con- entre pluralismo social e unidade política. “Quem
comitantemente escancarou o contraste através se envolve com a contraposição entre interior e ex-

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terior em geral já reconheceu com isso, por fim, a A sustentação de seu caráter representativo residi-
superioridade do interno sobre o externo, do invi- ria na crença de que suas sessões secretas, acordos
sível sobre o visível, do silêncio sobre audível [Lau- e deliberações reservadas, comitês, comissões par-
tem], do outro mundo [Jeinseits] sobre este mundo lamentares de inquérito seriam atividades públicas
[Jenseits]” (Idem, p. 95). Ora, aqui se verificaria a (Schmitt, 2003b, p. 208). A ausência de uma forma
impossibilidade da forma política de um poder es- jurídica adequada à representação encontraria suas
tatal, “pois não existe Estado sem representação” raízes na substituição do absoluto que tinha lugar
(Idem, p. 206). na pessoa do soberano pelo absoluto do indivíduo
A representação política inexiste no interior do particular. Esse deslocamento do absoluto para o
espaço privado, pois representação “somente pode assento privado do sujeito individual, relativo e
ocorrer na esfera do público. Não há nenhuma re- desvinculado de referências heterônomas, seria o
presentação que aconteça em secreto e a sós; nenhu- lugar onde se iniciaria a fragmentação da experiên­
ma representação que seja ‘assunto particular’”. As- cia política da forma jurídica e do princípio de
sim, “todos os conceitos e ideias que essencialmente representação. O sentido absoluto não deixou de
fazem parte da esfera do privado, do direito privado existir a partir do momento em que a burguesia
e do unicamente econômico são excluídos; portan- emergente do espaço privado tomou o centro do
to, gestão de negócios, percepção e representação poder. A diferença é que seu acento passa a residir
[Vertretung] de interesses privados etc.”. Do ponto nas coisas privadas, nas propriedades particulares,
de vista político, o Estado liberal age como uma desencadeando-se uma crescente coisificação. Vale
pessoa “invisível”, pois serve aos interesses econô- elucidar que, da perspectiva de Schmitt, um caráter
micos como os de uma empresa representante dos sagrado ou uma reminiscência teológica se conserva
interesses particulares (Schmitt, 2004, pp. 44 e 66). quando uma crença se torna absoluta. Ao discutir
A representação política do Estado tornar-se-ia in- a noção de representação do liberalismo burguês,
viável, sofreria uma distorção indicada também por o jurista comenta que: “nada neste sistema é repre-
conceitos e ideias cuja confusão se explicaria pelo sentativo, tudo é uma coisa privada”. A origem do
uso da semântica conceitual do direito privado para problema de representação derivaria da liberdade
tratar de coisas públicas. Os direitos particulares e de crença religiosa. Do ponto de vista de Schmitt, a
interesses privados subordinariam gradativamen- religião poderia se constituir em uma ameaça, pois
te o direito público. A perda de referência a algo se o religioso estiver no espaço privado, o privado
externo, supraindividual, estaria relacionada com se tornaria uma coisa religiosamente sagrada:
ausência da “unidade política de um povo”.
A representação de uma unidade política so- [...] a propriedade privada é então sagrada exa-
mente seria possível pela mediação de uma ideia tamente por ser uma coisa privada. Esta união,
transcendente, pois no plano empírico inexiste a que até agora quase não se tornou consciente,
unidade devido à sua pluralidade e relativismo ima- explica o desenvolvimento sociológico da so-
nentes. A ideia de unidade de um povo somente ciedade moderna europeia. [...] Nela também
ganharia forma na pessoa de um soberano e jamais há uma religião: a religião do privado [...] con-
na impessoalidade da lei, cuja abstração e generali- siderada historicamente a “privatização”, ini-
dade velariam o caráter pessoal e a responsabilidade cia-se no fundamento, na religião. O primeiro
política de quem realmente toma as decisões. Seria direito individual, no sentido da ordem social
uma característica típica do poder indireto ou invi- burguesa, foi o direito de liberdade religiosa
sível da burguesia liberal fazer política na seguran- (Schmitt, 1984, pp. 48-49).
ça do espaço privado por meio da transferência de
responsabilidade à lei, ao legislador, à moral, à opi- A partir daí seria possível entender como se for-
nião pública. O parlamento retratado como espa- mam as “representações de imanência” que emanam
ço fechado em que teriam lugar discursos e sessões da crença que eleva o espaço privado do indivíduo a
intermináveis seria o palco de um poder indireto. uma instância absoluta. Schmitt investiga a submis-

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A despolitização da democracia liberal...  125

são do Estado e da política à moral liberal, buscan- que culmina no niilismo, numa imagem de mundo
do entender a despolitização a partir dos pressupos- ilimitado, sintetizada na noção romântica do ludus
tos metafísicos que conduziriam ao esvaziamento globi (Idem, p. 111). A sujeição do mundo ao acú-
da substância política da realidade por meio de ca- mulo ilimitado de possibilidades incidiria no niilis-
tegorias econômicas e noções do direito privado. A mo, pois num universo em que tudo é uma ocasião
compreensão das premissas do liberalismo burguês nada ou nenhuma possibilidade se torna realidade,
poderia ser observada na analogia de seus concei- pois somente a decisão pode reduzir as possibilida-
tos, ideias e forma de organização política com o des e conferir uma forma à realidade. A indecidibi-
movimento romântico do século XIX. A analogia lidade ou suspensão da decisão pelo ocasionalismo
descortinaria a relação entre a cultura romântica do seria um drama romântico interminável que pode-
século XIX e as instituições políticas e sociais do li- ria ser observado nas conversações infindáveis no
beralismo. A declaração de Schmitt segundo a qual parlamento da burguesia liberal. A atitude do su-
“o portador do movimento romântico é a nova bur- jeito romântico, retratada como subordinação do
guesia” sugere que as ações e, sobretudo, as motiva- mundo à mera ocasião, encontraria ressonância na
ções liberais se orientariam pela crença em ideais do elevação do indivíduo liberal à instância absoluta
romantismo (Schmitt, 1998, p. 14). O problema, da ordem social e política. Romantismo seria, con-
entretanto, do romantismo seria encontrar uma de- forme a interpretação de Schmitt, ocasionalismo
finição de suas características, pois um de seus traços subjetivado e encontraria manifestação análoga no
fundamentais seria percebido na sua indefinição indivíduo liberal burguês, incapaz de conferir for-
atribuída à sua existência labiríntica, à sua falta de ma política à realidade a partir da universalização
forma e representação (Idem, p. 10). Sua carência do espaço privado.
de forma evidenciar-se-ia numa peculiar capacida-
de de dissolver liames, desatar vínculos com algum
ponto ou direção fixada pela realidade. Conclusão
Um comportamento tipicamente romântico
jamais se guiaria por uma orientação segura, mas A secularização é sempre um processo inacaba-
se levaria pela ocasião de transformar elementos ex- do. A dimensão secularizada – existencial do políti-
ternos em possibilidade de experiência e de consu- co – apresenta-se como algo intolerável às doutrinas
mo subjetivo. A postura romântica, orientada pela do Estado de cunho democrático-liberal, devido à
ocasionalismo, desmancharia todo nexo de causa- inteligibilidade dos antagonismos entre seres hu-
lidade da realidade, convertendo tudo num liris- manos. Schmitt pretende por meio de seu conceito
mo. O movimento romântico encontraria um de de secularização expor os riscos da democracia libe-
seus núcleos centrais na esteticização, que poderia ral ao revelar que a despolitização ou a negação da
ser compreendida como uma forma de privatiza- forma mais extrema da contingência, isto é, a dos
ção ou esvaziamento das qualidades ou substâncias antagonismos humanos, eleva os níveis de instabi-
da realidade, levando à dissolução de referências lidade política. A subsunção da realidade a repre-
externas, vínculos de causalidade, pontos de fixa- sentações de imanência às normas jurídicas e leis do
ção e fatores de duração. A atitude romântica seria mercado não só oculta a decisão política soberana,
retratada pela occasio, isto é, a conversão de tudo mas também transfere a responsabilidade decisória
numa ocasião, numa oportunidade para o sujeito para uma entidade abstrata e impessoal: o governo
romântico, cuja postura seria subjetivar o que é da lei. A secularização operada por Schmitt preten-
lhe exterior. O espaço de experiência da realida- de revelar a hipóstase do deslocamento liberal da
de seria uma fonte inesgotável de possibilidades a responsabilidade do agir político humano, concreto
serviço do sujeito romântico. A ocasião seria um e personalístico para impessoalidade da norma jurí-
acúmulo de possibilidades sem fim (Idem, p. 79). dica abstrata e genérica. O político, compreendido
Aí ressurge o problema, tratado nos trabalhos de como o inexorável caráter contingente da vida hu-
juventude de Schmitt, da elevação da contingência mana, condicionada à finitude e à inabalável possi-

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bilidade de conflito existencial não pode ser negado mediante um processo intenso de subjetivação ou
por uma simples razão: a negação da contingência remissão do sujeito individual para o interior de seu
ou dimensão existencial dos conflitos eleva seus ní- pensamento. A desontologização de um sujeito sobe-
veis, pois a contingência não poder ser eliminada rano, pessoal e supraindividual, dotado de autoridade,
teria ocorrido segundo Schmitt no século XVII com
da vida humana, mas apenas reduzida.
“reviravolta cartesiana”. Vale salientar que tal processo
conduz a uma fuga do ser para dever ser, e “quanto
mais se torna puramente normativista, conduz a uma
Notas separação cada vez mais explícita entre a norma e a
realidade, entre ser e dever ser, entre regra e conjunto
1 De acordo com o autor, conceitos políticos precisam de fatos concretos” (Schmitt, 1993, p. 15).
ser compreendidos em conformidade com o seu sen- 8 O sociólogo alemão Helmut Schelsky observa “que
tido histórico, precisamente a partir uma situação his- Hobbes não era apenas do ponto de vista científico-
tórica específica que se refere sempre a um antagonis- -acadêmico o autor ‘predileto’ de Carl Schmitt, mas
mo concreto. Isso significa que os conceitos políticos que Schmitt” é o “‘Hobbes alemão do século XX’”
são ininteligíveis fora da situação concreta de conflito (Schelsky, 1981, p.5).
que constitui seu núcleo semântico. Desse ponto de
vista, se porventura nos furtamos à compreensão do
sentido histórico concreto do antagonismo, os con-
ceitos políticos “se convertem em abstrações vazias” BIBLIOGRAFIA
(Schmitt, 2002b, pp. 30 e 31).
2 Todos os trechos de livros citados neste trabalho, pu- FERREIRA, Bernardo. (2004), O risco do político:
blicados em alemão e constantes da bibliografia, fo- crítica ao liberalismo e teoria política no pensa-
ram traduzidos por mim. mento de Carl Schmitt. Belo Horizonte, Editora
3 O termo secularismo (Säkularismus) é empregado por da UFMG.
Hermann Lübbe no livro Säkularisierung. Geschichte KIERKEGAARD, Soren. (1997), La repetición.
eines ideenpolitischen Begriffs [Secularização. História Buenos Aires, Juan Ventura Squivel.
de um conceito político de ideia]. LUBBE, Herman. (2003), Säkularisierung. Geschi-
4 O caráter transcendente do político revela-se no fato chte eines ideenpolitischen Begriffs. 3 ed. Mun-
de os antagonismos existenciais (dimensão do político) chen, Alber Studienausgabe.
não poderem ser subordinados a nenhum conjunto de LUHMANN, Niklas. (2002), Die Religion der Ge-
regras, sejam elas morais, jurídicas ou econômicas. O sellschaft. Frankfurt am Main, Suhrkamp.
político transcende a qualquer normatização cuja ge-
MASCHKE, Gunter. (2003), “Zum ‘Leviathan’
neralização oculte a dimensão existencial do conflito.
von Carl Schmitt”. In: Carl Schmitt, Der Le-
5 Esta passagem é extraída por Schmitt do trabalho La
viathan in der Staatslehre des Thomas Hobbes.
Repéticion da autoria de Kierkegaard (1997, p. 66).
Sinn und Fehlschlag eines politischen Symbols. 3
6 O conceito de Deus teísta e deísta é, respectivamen-
ed. Stuttgart, Klett-Cotta, p p. 179-244.
te, compreendido por Schmitt como a representação
NOACK, Paul. (1996), Carl Schmitt. Eine Biogra-
de duas diferentes imagens que se opõem: a primeira
revela um Deus pessoal que cria e governa o mundo; phie. Frankfurt am Main, Ullstein.
a segunda retrata um Deus impessoal que, a despeito PREUSS, Ulrich. K. (2003), Krieg, Verbrechen,
de ter sido o criador do mundo, nele não intervém. Blasphemie. Gedanken aus dem alten Europa.
Tais concepções de Deus correspondem, respectiva- Berlim, Klaus Wagenbach.
mente, a imagens de transcendência e imanência, que SCHELSKY, Helmut. (1981), Thomas Hobbes: eine
encontram sua estrutura análoga na organização social politische Lehre. Berlim, Duncker & Humblot.
e política cujo soberano é uma autoridade pessoal capaz SCHMITT, Carl. (1950), Donoso Cortés in gesamteu-
de intervir na realidade concreta, e um soberano impo- ropäicher Interpretation. Köln, Greven Verlag.
tente, incapaz do governar (Schmitt, 2004, pp. 51-55).
. (1984), Römischer Katholizismus und
7 Emprego desontologização no sentido de privatização politische Form. Berlin, Klett-Cotta [reimpres-
ou esvaziamento das qualidades da realidade do ser, são da 2ª edicão de 1925].

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A despolitização da democracia liberal...  127

. (1993 [1934]), Uber die drei Arten des


rechtwissenschaftlichen Denkens. 2 ed. Berlim,
Duncker & Humblot.
. (1996 [1923]), Die geistesgeschichtliche
Lage des heutigen Parlamentarismus. 8 ed. Ber-
lim, Duncker & Humblot.
. (1997), Der Nomos der Erde im
Völkerrecht des Jus Publicum Europeum. Berlin,
Dunckler & Humblot.
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246  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 26 N° 77

A despolitização da demo- depolitizaTION OF LIBERAL LA DÉPOLITISATION DE LA


cracia liberal no pensamen- democracY IN THE THOUGHT DÉMOCRATIE LIBÉRALE DAnS
to de Carl Schmitt OF Carl Schmitt LA PENSÉE De Carl Schmitt

Pedro Villas Bôas Pedro Villas Bôas Pedro Villas Bôas

Palavras-chave: Despolitização; Demo- Keywords: Depolitization; Liberal de- Mots-clés: Dépolitisation; Démocratie
cracia liberal; Secularização; Contingên- mocracy; Secularization; Contingency; libérale; Sécularisation; Contingence;
cia; Estado. State. État.

A secularização de teorias do Estado mo- The secularization of State theories is La sécularisation des théories de l’État
derno ainda é um processo inacabado. A still an unfinished process. The depoliti- moderne demeure un processus inachevé.
despolitização promovida pela democra- zation conducted by the liberal democ- La dépolitisation menée par la démocra-
cia liberal priva as concepções do Estado racy deprives the conceptions of modern tie libérale prive les conceptions de l’État
moderno de seu conceito de soberania State from its concept of sovereignty as moderne de leur concept de souveraineté
ao reduzir o político ao âmbito da mo- it reduces the political to moral, law, en réduisant la politique à son aspect mo-
ral, do direito e da economia. O concei- and economy only. The concept of secu- ral, de droit et d’économie. Le concept de
to de secularização, empregado por Carl larization used by Carl Schmitt unveils sécularisation, employé par Carl Schmitt,
Schmitt, permite desvelar as concepções the conceptions of immanence which permet de dévoiler les concepts d’imma-
de imanência que ocultam as ações po- conceals the concrete political actions nence qui cachent les actions politiques
líticas concretas revestidas com o manto dressed in the cloak of the rule of law. concrètes revêtues de l’autorité du gouver-
do governo da lei. Para Schmitt, a secu- For Carl Schmitt, the secularization of nement de la loi. Pour Schmitt, la séculari-
larização do político confere visibilidade the political confers visibility to the hu- sation de la politique donne une visibilité
aos antagonismos existenciais humanos man existential antagonisms which are aux antagonismes existentiels humains que
escamoteados pela democracia liberal. usurped by the liberal democracy. la démocratie libérale se charge de cacher.

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