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Digressão sobre o adorno 19/07/18 17(42

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DIGRESSÃO SOBRE O ADORNO


Trad. Simone Carneiro Maldonado1

O desejo que o homem tem de agradar os que o rodeiam, contém em si entrelaçadas


duas tendências opostas, em cuja alternativa se realiza em geral a relação entre os
indivíduos. Por uma parte há o desejo positivo de proporcionar aos outros uma alegria.
Por outra, há também o desejo de que esta alegria, este agrado, redundem em aceitação
e estima e sejam computados como um valor da nossa personalidade. Este desejo se
acentua de tal modo que chega a contradizer completamente o primeiro movimento, o
altruísta, que é o de agradar. Por conta do agrado que produzimos, pretendemos
distinguir-nos dos demais, queremos ser objeto de uma atenção não outorgada a outros,
produzindo a inveja. O agrado se torna assim um meio a serviço do desejo de poder, e
evidencia em algumas almas uma curiosa contradição que consiste em necessitar
justamente das pessoas sobre as quais predominam pelo seu modo de ser e sua conduta,
para construir sobre o sentimento de inferioridade destas, a sua auto-estima.

Estes motivos se combinam de maneiras ainda mais específicas quando se trata do


adorno, entretecendo-se nelas o exterior e o interior de suas formas.O seu sentido reside
em fazer ressaltar a personalidade, acentuando-a como algo que se sobressai, mas não
por uma manifestação imediata de poder, não por algo que se imponha de fora, mas pelo
agrado que no outro se desperta e que, portanto, contém algum elemento voluntário.
Esta é uma das combinações sociológicas mais admiráveis: um ato que serve
exclusivamente para acentuar a personalidade do sujeito e para aumentar sua
importância, alcança seu fim por meio do prazer que proporciona a outros, por uma
espécie de gratidão que desperta nos demais. Pois mesmo a inveja que o adorno produz,
não significa outra coisa senão o desejo do invejoso de conseguir para si o mesmo acato
e admiração provando até que ponto estes valores estão articulados ao adorno.

O adorno é de um egoísmo máximo quando destaca o seu portador dando-lhe um


sentimento de satisfação à custa dos demais (já que o mesmo adorno usado por todos a
ninguém adornaria individualmente). Mas ao mesmo tempo, é também uma forma
elevada de altruísmo, pois o agrado que produz é experimentado por outros, e o seu
proprietário só desfruta dele como um reflexo, que é o que dá valor ao adorno. Na
criação estética de modo geral, as manifestações vitais que na realidade se apresentam
como indiferentes ou como inconciliáveis, terminam intimamente aparentadas; do mesmo
modo na luta entre o egoísmo e o altruísmo do homem, o elemento estético do adorno
representa o ponto em que as duas correntes opostas remetem uma à outra, servindo
alternativamente como fim e como meio.

O adorno acentua ou amplia a impressão que a personalidade produz e atua como uma
irradiação dela. Por isso costuma ser feito de materiais brilhantes e de pedras preciosas
que são “adornos”no sentido mais estrito do que a roupa ou o penteado, os quais não
obstante também “adornam”. Poderíamos falar aqui de uma radioatividade do homem. Ao
redor de cada indivíduo há como que uma auréola resplandecente maior ou menor em
que submerge tudo o que com ele se relaciona. Esta auréola contém inseparavelmente
fundidos elementos corporais e espirituais. Do homem partem influxos perceptíveis que
recaem sobre o ambiente. Estes influxos são de certo modo portadores de um resplendor
espiritual e atuam como símbolo do indivíduo, ainda quando são meramente exteriores e
deles não flui nenhum poder de sugestão ou de importância pessoal. O que emana do

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adorno, a atenção que desperta, aumentam ou intensificam a aura que rodeia a


personalidade. Por assim dizer, a pessoa é “mais” quando está enfeitada. Junte-se a isso
o fato de que o adorno costuma ser também um objeto de valor considerável. Constitui,
pois, uma síntese do ter e do ser do sujeito. Graças a ele, um simples objeto de posse se
converte numa intensa manifestação sensível do homem. O mesmo não acontece com o
traje cotidiano; este não nos parece uma concretude individual, nem no aspecto do ter
nem no aspecto do ser. Só o traje requintado e, sobretudo, adornado de coisas preciosas
que condensam seu valor num ponto mínimo, convertem o ter da pessoa numa qualidade
visível do seu ser. E isto acontece apesar de ser o adorno algo “supérfluo”, talvez
justamente por isso. Aquilo que é imediatamente necessário vem estreitamente unido ao
homem e circunda o seu ser com uma auréola mínima.Já o supérfluo, como o termo
indica, “flui em excesso”, isto é, derrama-se além da sua razão de ser. Mas como também
adere ao sujeito, traça ao redor do estritamente necessário outro círculo mais amplo e
em princípio indefinido. O conceito de supérfluo não encerra em si nenhuma limitação.À
medida que o supérfluo aumenta, aumentam também a liberdade e a independência do
nosso ser.

Mas este acento sobre a personalidade ocorre justamente mediante um rasgo de


impessoalidade. As diferentes coisas que podem “adornar”o homem, estão ordenadas em
escala, a depender de se a personalidade física está mais ou menos estreitamente ligada
a elas. O adorno mais imediato, sem dúvida, são as tatuagens dos povos primitivos. O
extremo oposto está nos enfeites de metais e pedras preciosas que são absolutamente
impessoais e que todo mundo pode usar. Entre estes extremos se encontra a roupa, nem
tão definitiva e pessoal quanto as tatuagens, nem tão impessoal e destacável quanto os
“adornos” propriamente ditos. A elegância está nessa impessoalidade. O maior encanto
do adorno é que a condição dura e pouco maleável do metal e da pedra não se relaciona
a nenhuma individualidade, mas se vê forçada a servir à personalidade. A elegância por
excelência evita o excesso de individualização, rodeando o homem com uma esfera de
coisas gerais, estilizadas, abstratas por assim dizer, o que naturalmente não é obstáculo
ao refinamento com que essas coisas gerais se ligam à personalidade. Se a roupa nova
produz uma impressão de elegância, é porque ainda está “rígida”, isto é, não se
acomodou ainda ao corpo individual de um modo tão incondicional quanto as peças muito
usadas, que tendo recebido uma forma peculiar em virtude dos movimentos do seu
portador, lhe evidenciam a individualidade. Este “ser novos”, essa impossibilidade de
modificar-se e adequar-se segundo os indivíduos se mostra muito claramente nos
enfeites de metal. O metal não envelhece; permanece frio e inacessível, acima da
singularidade e do modo de ser do seu portador, coisa que não acontece com a
vestimenta. Uma roupa usada fica de tal modo afeita ao corpo, tem tal intimidade com
ele, que contradiz a essência da elegância. Pois a elegância é para os outros, é um
conceito social cujo valor vem da aceitação geral.

Assim, se o adorno amplia a esfera do indivíduo com algo transindividual, algo referente
a outros e que é acatado por eles, além de uma estrutura material, deve ter estilo. O
estilo é sempre geral, encaixando os conteúdos da vida e da criação pessoal em formas
compartilhadas por muitos e acessíveis a muitos.

Na obra de arte propriamente dita, o estilo vai nos interessar a depender da peculiaridade
pessoal maior ou menor da vida subjetiva que nela se expresse, pois a obra de arte se
destina à personalidade do contemplador que se encontra por assim dizer, sozinho no
mundo diante dela. Diferentemente, aquilo que chamamos arte industrial, pela sua
própria finalidade utilitária, destina-se a uma pluralidade de pessoas, assumindo uma
forma mais geral e típica; nos seus produtos não se estará expressando uma alma única,
e sim uma maneira se sentir ampla, social e histórica, que seja possível ordenar no
sistema de vida de muitos indivíduos. Seria um erro supor que pelo fato de serem
sempre indivíduos os que se adornam,o adorno tivesse que ser uma obra de arte
individual. Ao contrário, justamente por ter que servir ao indivíduo, não pode ter uma
natureza individual; assim como não podem ser obras de arte individuais os móveis em
que nos sentamos ou os utensílios com que comemos. Todo o conteúdo da vida humana
– ao contrário da obra de arte que se encaixa no geral da vida, sendo ela mesma um
mundo – haverá de rodear o indivíduo com esferas concêntricas cada vez mais amplas

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que a ele se destinem ou que dele partam. A essência da estilização está na dissolução
da marca individual numa generalização que ultrapassa a peculiaridade pessoal, mas que
tem o individual como base ou círculo de irradiação. Graças ao instinto que faz
compreender isso, o adorno sempre foi estilizado de modo relativamente severo.

Além da sua estilização formal, o adorno emprega um meio material para conseguir a sua
finalidade social; este meio consiste no “esplendor” do adorno, em virtude de que seu
portador se converte no centro de um círculo de irradiação que inclui tudo o que esteja
próximo, todo olhar que nele se detenha. O luzir da pedra preciosa parece dirigir-se ao
outro como o brilho do olhar. Nessa radiação está contido o significado social do adorno, o
ser para os demais, a dedicação aos outros, que aumenta a importância do sujeito, que
assim carregada a ele volta. Os raios deste círculo assinalam por um lado a distância que
o adorno põe entre os homens, pois que um deles pode dizer: “eu tenho uma coisa que
tu não tens”. Mas por outro lado, não só permitem que os demais participem do adorno,
como brilham para os demais e só existem realmente para eles. Pela sua matéria, o
adorno implica ao mesmo tempo em distância e conivência. Por isso serve de modo
especial à vaidade que precisa dos demais porém que os deprecia. Nisto reside a
profunda diferença entre a vaidade e o orgulho. Este, cuja satisfação está exclusivamente
em si, costuma desdenhar o adorno em todos os sentidos. Faz-se necessário agregar no
mesmo sentido, a importância do material “autêntico”. O encanto do “autêntico” consiste
em ser algo mais do que a sua aparência imediata, aparência esta que compartilha com
as falsificações.O adorno de material autêntico, verdadeiro, não é como a imitação; tem
raízes num solo mais profundo do que a simples aparência.A imitação nada mais é do que
aquilo que parece ser num dado momento. Assim, o homem “autêntico” é alguém em
quem se pode confiar, mesmo que não esteja ao alcance da vista. O valor do adorno
então, consiste em ser mais do que aparência, e isso não se vê, é antes algo que se
acrescenta à aparência, diferentemente do que acontece com a imitação bem feita. E
como este valor é sempre realizável, como é acatado por todos e possui uma relativa
independência quanto ao tempo, o adorno acaba sendo algo que está acima da
contingência e da pessoa. A bijuteria só vale como adorno pelo serviço momentâneo que
presta ao seu portador.O valor do adorno autêntico vai além; tem suas raízes nas idéias
de todo o círculo social, e ramifica-se nelas. Por isso o encanto e a distinção com que
recobre o seu portador individual se nutre neste solo supraindividual. Seu valor estético
que é um “valor para os outros” se converte pela autenticidade, em símbolo de estima e
se encaixa no sistema geral de valores sociais.

Durante a Idade Média foi editada na França uma ordenação proibindo a todas as pessoas
de determinados estratos sociais o uso de peças de ouro. Este exemplo mostra
claramente a combinação característica do adorno. Nele se reúnem a distinção sociológica
e estética da personalidade, e o “ser para si” e o “ser para os outros” daí resultam
alternativamente como causas e efeitos. Segundo esse edito, a distinção estética, o
direito a cativar e agradar não poderiam ultrapassar o que determinasse a esfera social
do indivíduo. Justamente por isso, ao encanto que em geral é apanágio do adorno, se
acrescenta o valor sociológico de figurar como representante de um grupo e ver-se
“adornado” com toda a importância do mesmo. Ao próprio brilho que, partindo do
indivíduo, determina a ampliação da sua esfera,soma-se o sentido da classe social
simbolizada no adorno. Este aparece aqui como meio de transformar a força ou a
dignidade social numa distinção pessoal.

Finalmente, as tendências centrípeta e centrífuga no adorno, se reúnem numa forma


particular. É sabido que entre povos primitivos, a propriedade privada da mulher aparece
geralmente depois da do homem e, em princípio, se refere, sobretudo, e às vezes
exclusivamente, ao adorno. A propriedade individual do homem costuma começar pelas
armas, o que constitui uma mostra da condição predominantemente ativa e agressiva do
varão, que amplia a esfera da sua personalidade sem esperar a vontade dos outros. Para
a mulher, esta ampliação da personalidade – formalmente igual, pesem as diferenças
exteriores – dada a maior passividade da natureza feminina, depende mais da boa
vontade alheia. Ora, toda propriedade significa uma extensão da personalidade; é
propriedade minha aquilo que obedece à minha vontade, quer dizer, aquilo em que o meu
eu se expressa e se realiza exteriormente. E isso se verifica mais completamente do que

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em qualquer outro lugar no nosso corpo, que por esse motivo constitui a nossa primeira e
indiscutível propriedade. Estando o corpo enfeitado, no entanto, possuímos mais. Somos,
por assim dizer, senhores de coisas mais extensas e distintas, quando dispomos de um
corpo adornado. Assim faz sentido o fato de que tenha sido o adorno o primeiro objeto de
propriedade privada; porque ele determina aquela ampliação do eu, traça em volta de
nós uma esfera mais extensa que preenchemos com a nossa personalidade e que está
constituída pelo agrado e pela atenção do nosso entorno – meio que não se deteria para
nos olhar se não estivéssemos adornados. O fato de que nas sociedades primitivas a
propriedade primeira das mulheres seja o adorno que essencialmente existe para os
demais, não se acrescentando ao valor nem à significação do eu, mas por via da
aceitação de que o adorno é objeto, revela uma vez mais o seu princípio fundamental.
Para as grandes aspirações da alma e da sociedade que se compenetram e influenciam
reciprocamente – elevação do eu pelo fato de existir para os outros, e elevação da
existência para os demais pelo fato de nos ampliarmos e nos distinguirmos a nós mesmos
– o adorno criou uma síntese própria na forma do estético. Esta forma está em si mesma
acima das diversas aspirações humanas, que nela encontram não só um campo de
convivência tranqüila, mas aquele apoio mútuo que, quando da contenda das suas
manifestações, se ergue como intuição e garantia da sua profunda unidade metafísica.

*********

O segredo como vimos, é uma determinação sociológica que caracteriza as relações


recíprocas entre dois elementos de um grupo, ou melhor, que junto com outras formas de
referência, constitui esta relação total. Mas ele também pode caracterizar um grupo na
sua totalidade; seria o caso das “sociedades secretas”. Sempre que a existência, as
atividades e os bens de um indivíduo são secretos, a significação sociológica do segredo
se situa no isolamento, no contraste e na individualização egoística. A significação do
segredo é externa, ou seja, é a relação entre aquele que detém o segredo e o outro que
não. Mas tão logo um grupo faz do segredo a sua forma de existência, o sentido passa a
ser externo: o segredo vai determinar as relações recíprocas entre os que o
compartilham. Mas uma vez que mesmo aqui ocorre a exclusão (em intensidades
específicas) dos não-iniciados, a sociologia da sociedade secreta se defronta com o
complexo problema de fixar as formas imanentes que vêm determinadas pela conduta de
um grupo que se conduz em segredo frente a outros elementos. Não pretendo prefaciar
esta discussão com uma classificação sistemática das sociedades secretas, cujo interesse
seria tão-somente histórico; suas categorias essenciais se mostrarão por si mesmas.

1.Proteção e Confiança

A primeira relação interna típica da sociedade secreta é a confiança recíproca entre os


seus membros. Ela é necessária em tão grande medida, porque o objetivo do segredo é
acima de tudo a proteção. De todas as medidas nesse sentido, a mais radical é a
invisibilidade. Nisto a sociedade secreta se distingue fundamentalmente do indivíduo que
busca a proteção do segredo. O indivíduo só o pode fazer bem, no entanto, em situações
ou para ações muito particulares; tanto pode esconder-se totalmente por algum tempo
como ausentar-se no espaço mas a sua existência mesma não pode constituir um
segredo, a não ser em casos muito pontuais. Isso é possível, no entanto, quando se trata
de uma unidade social que oculte a sua própria existência. Seus elementos podem viver
nas interações mais freqüentes; mas o fato de que constituam uma sociedade – seja uma
gangue de criminosos, uma seita religiosa ou um clube fechado que se reúne para orgias
sexuais, pode em princípio manter-se permanentemente secreto.

Neste tipo então, o que se oculta não são os indivíduos e sim o grupo que eles formam.

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Nisto se distingue de um outro tipo, em que a formação do grupo é amplamente


conhecida, permanecendo secretos os membros que o compõem, a sua finalidade, suas
decisões e regras específicas, sendo exemplos disso muitas sociedades secretas de
grupos primitivos e a Maçonaria. O segredo protege menos a este tipo do que ao outro,
de vez que aquilo que é de conhecimento geral sempre oferece pontos de abertura para
maiores questionamentos. Por outro lado essas sociedades relativamente secretas
costumam ter certa flexibilidade; como a sua existência é manifesta em certa medida
desde o começo, elas conseguem resistir a futuras revelações com maior facilidade do
que aquelas sociedades cuja própria vida é secreta, e cuja mera descoberta possa levar à
destruição – por situar-se o seu segredo nas alternativas radicais de “tudo ou nada”.

A fragilidade das sociedades secretas está em que os segredos não se sustentam para
sempre, chegando-se mesmo a dizer que um segredo entre dois já não é mais segredo.
Por isso, a proteção oferecida pelas sociedades secretas se bem que absoluta é
temporária; e para objetos de valor social positivo, a sociedade secreta é de fato uma
transição de que, após um certo período desenvolvimento e de reforço, eles já não
precisam. Assim, o segredo pode se assemelhar à mera proteção que se ganha quando,
em vez de combater os obstáculos, nos poupamos disso mediante rodeios; chega o
momento em que emerge outro tipo de proteção, qual seja a força, que é capaz de
vencer os obstáculos e a evitação dos mesmos já não é tão necessária. Nestas condições,
a sociedade secreta é forma social apropriada para conteúdos que ainda se encontram
por assim dizer na infância, estando sujeitos à vulnerabilidade dos primeiros estágios de
desenvolvimento. Novas idéias, novas religiões, novas moralidades e novos pactos
costumam ser frágeis, necessitando de proteção, e por esta razão, se ocultam.

Assim, os períodos em que se desenvolvem novos conteúdos da vida que se levantam


contra os poderes existentes, parecem predestinados a testemunhar o florescimento de
sociedades secretas. Vejamos o século XVIII. Então – só para dar um exemplo – os
elementos do partido liberal já existiam na Alemanha, mas as condições políticas ainda
não comportavam o seu surgimento na forma de uma estrutura permanente. A ordem
secreta foi a forma sob cuja proteção puderam ser preservados e reforçados os germes
de uma nova organização -sobretudo a ordem dos Iluminados.

Mas a sociedade secreta tanto protege a decadência quanto a emergência e o vigor. O


mergulho no segredo é um instrumento para aspirações e forças sociais que estão sendo
substituídas por outras. Nestes casos, o segredo é uma espécie de transição entre o ser e
o não-ser. Quando, em fins da Idade Média as associações comunais alemãs começaram
a ser perseguidas pelos poderes centrais fortalecidos, desenvolveu-se entre elas uma
ampla vida secreta. Refugiavam-se em assembléias e associações ocultas, no exercício
secreto do direito e do poder, como animais que procuram um abrigo quando estão perto
da morte. Esta dupla função protetora da ordem secreta – como um estágio intermediário
tanto para poderes ascendentes como para forças decadentes – fica mais evidente em
agrupamentos religiosos. Enquanto os cristãos foram perseguidos pelo Estado, tiveram
que buscar lugares ocultos para as suas reuniões, seus rituais e a sua própria existência.
Mas uma vez que o cristianismo se tornou a religião do estado, foram os seguidores do
paganismo moribundo que recorreram à mesma ocultação das suas associações a que
haviam votado antes a religião agora dominante. Em geral a sociedade secreta surge
como contrapartida do despotismo e da restrição policial como proteção tanto defensiva
como ofensiva na luta contra a opressão do poder central – isso não só na política como
também no meio da Igreja, dos estabelecimentos de ensino e das famílias.

A esse caráter de proteção – que como qualidade exterior existe na sociedade secreta –
se soma a qualidade interna de confiança recíproca entre os membros; uma confiança
muito específica, a confiança na capacidade de guardar silêncio. Segundo o seu conteúdo,
as associações repousam sobre diversas premissas de confiança: confiança na capacidade
nos negócios, na convicção religiosa, na coragem, no amor, no senso de honra ou – como
no caso dos grupos criminais – na ruptura radical com as veleidades morais. Porém logo
que a sociedade se torna secreta, ela acrescenta a todas as formas de confiança
determinadas pelos objetivos da associação, a confiança formal no segredo. Em última
instância, esta confiança vem a ser a fé na personalidade; uma fé que tem caráter mais

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sociológico e abstrato do que qualquer outra, pois sob o seu conceito podem-se colocar
todos os conteúdos da vida comum que se queira. Além disso, acrescente-se que, salvo
exceções, não há outro tipo de confiança que necessite como esta, de renovação
subjetiva tão constante; pois quando se trata de crer na inclinação ou na energia, na
moral ou na inteligência, na honradez ou na discrição de uma pessoa, mais facilmente se
produzem fatos em que esta se possa fundamentar reduzindo ao mínimo as
possibilidades de desengano. Ao contrário, a chance de “falar”, a indiscrição, depende de
uma imprudência momentânea, de uma fragilidade ou excitação ocasional de um estado
de espírito com acento inconsciente.A preservação do segredo é algo instável; as
tentações da traição são muitas; o caminho que vai da discrição à indiscrição muitas
vezes é tão contínuo que a confiança incondicional na discrição implica uma
preponderância incomparável do fator subjetivo. Por esta razão, as sociedades secretas –
cuja forma rudimentar é o segredo compartilhado entre dois e cuja extensão por todos os
lugares e em todos os tempos ainda não foi apropriadamente avaliada, nem sequer do
ponto de vista quantitativo- são uma excelente escola de relação moral entre os homens.
Pois a confiança de um homem em relação a outro possui um valor moral tão elevado
quanto a devida correspondência a essa confiança; e esta ainda é mais meritória e livre,
porque a confiança que se nos outorga contém um uma força por assim dizer
compulsória, e para trai-la é preciso ser positivamente mau. Em contraste, a confiança é
“dada”; não podendo ser solicitada na mesma medida em que se pode exigir que a
honremos ao ser seus depositários.

2.O Silêncio

As sociedades secretas procuram, como é natural, meios de favorecer psicologicamente a


discrição, uma vez que esta não se impõe diretamente. Em primeiro lugar estão o
juramento e a ameaça de castigo, meio que dispensa qualquer explicação. Mais
interessante é uma técnica bastante disseminada que é a instrução sistemática do noviço
na arte do silêncio. Diante das dificuldades já mencionadas de calar-se completamente,
sobretudo em vista da conexão entre o pensamento e sua expressão verbal que se
manifesta nos estágios mais primitivos ( entre crianças e povos da natureza pensar e
falar são quase a mesma coisa) é preciso antes de tudo ter aprendido a guardar silêncio
para poder esperar que os demais confiem em que haveremos de manter ocultas
determinadas coisas. Relata-se que numa ordem secreta na ilha de Ceram, arquipélago
das Molucas, o rapaz que solicita admissão não só há de calar tudo o que presencia ao
entrar, como durante algumas semanas não poderá trocar uma só palavra com quem
quer que seja, nem sequer da sua família. Certamente não é só o fator educacional de
silêncio absoluto que atua neste caso; à indiferenciação espiritual própria deste estágio
corresponde a absoluta proibição da palavra num período em que algo específico deve ser
mantido em segredo. Este radicalismo é o mesmo em que povos primitivos usam a pena
de morte para casos em que mais tarde um delito parcial recebe uma pena parcial, ou a
pagar com uma parte desproporcionada dos seus bens por algo que no momento parece
justificar tal ônus.

Em tudo isto, se expressa uma “falta de jeito” específica cuja essência parece consistir na
incapacidade de engendrar uma inervação adequada a determinado fim concreto: o
desajeitado move o braço inteiro quando para o fim desejado bastaria mover dois dedos
ou o corpo inteiro quando um movimento preciso e articulado do braço seria suficiente.
Por isso, no caso a que nos referimos, a associação psicológica intensifica em muito o
perigo da indiscrição e ao mesmo tempo não limita a sua proibição ao seu objetivo
concreto, estendendo-a a toda a função de falar. Se, por outro lado, a ordem secreta dos
Pitagóricos prescrevia vários anos de silêncio aos noviços, provavelmente pretendia mais
do que simplesmente educar para proteger os segredos da ordem – mas não por causa
daquela “falta de jeito”, mas ao contrário, com o objetivo de ampliar esse ensinamento,
levando o adepto não só a calar-se sobre os segredos da associação, mas também a
adquirir auto-controle em assuntos gerais da vida. A ordem objetivava uma rigorosa

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autodisciplina e uma pureza estilizada no estilo de vida; e quem conseguisse passar


vários anos sem falar, seria também capaz de resistir a outras tentações além da
indiscrição.

Outro meio de dar uma base sólida à discrição, foi aplicado pela ordem secreta dos
Druidas Gálicos. O conteúdo dos seus segredos estava contido particularmente em cantos
religiosos que todo druida deveria aprender de memória. Mas as coisas eram arranjadas
de tal maneira – especialmente graças à proibição de escrever esses hinos – que era
necessário um tempo extremamente longo que poderia atingir os vinte anos. Essa longa
duração do aprendizado resultava em que, antes de conhecer algo importante, digno de
revelação, produzia-se o hábito gradual da discrição e da habituação ao silêncio. A
tentação de revelar os segredos assim não caía de uma hora para outra sobre o espírito
ainda não disciplinado, o qual ia se preparando progressivamente para resistir a essa
tentação. No entanto a regra que não permitia que os cânticos fossem escritos alcança
uma esfera mais ampla do que a de simples medida protetora do segredo, alcançando
também assim uma relevância sociológica maior. O fato de os ensinamentos se basearem
no trato pessoal, da fonte da aprendizagem consistir exclusivamente na associação e não
em textos escritos objetivos, liga os indivíduos de um modo incomparável com a
comunidade e os faz achar que, desprendidos da substância coletiva perderiam a sua
própria e nunca a encontrariam em outro lugar.

É possível que não tenhamos enfatizado bastante até que ponto nas civilizações mais
antigas, a objetificação do espírito favorece a independência do indivíduo. Enquanto a
vida intelectual se faz determinar pela tradição imediata, pelo ensino individual e,
sobretudo, por normas estabelecidas por autoridades pessoais, o indivíduo permanece
encaixado solidamente no grupo vivo que o rodeia; só no grupo ele encontra a
possibilidade de ter paz interior; todos os canais pelos quais passam os conteúdos da
vida chegam até ele a partir do meio. Mas quando a tarefa da espécie passa a realizar
seus produtos visíveis em coisas duradouras em forma escrita, se interrompe aquela
corrente orgânica antes existente entre o grupo e seus membros individuais; o processo
da vida não liga o indivíduo de maneira contínua e exclusiva ao grupo, podendo ele
nutrir-se de fontes objetivas que não necessariamente se fazem presentes. O fato de que
essa provisão acumulada tenha origem em processos sociais é relativamente irrelevante.
Esses processos são bem remotos, tendo ocorrido em gerações que já não mantêm
sintonia com os sentimentos do indivíduo. Acima de tudo não obstante, está a forma
objetiva dessa provisão que está separada da personalidade subjetiva, abrindo assim
uma fonte suprasocial dependendo a medida e o tipo do seu conteúdo da sua capacidade
de aprender o que está sendo oferecido. Os laços especialmente estreitos que unem os
membros de uma sociedade secreta (de que falaremos depois) têm a sua categoria
afetiva principal na “confiança” o que sugere que quando a sociedade secreta tem como
objetivo principal a comunicação de conteúdos espirituais, é apropriado evitar a fixação
dos mesmos na forma escrita.

3. A Comunicação Escrita

Como a carta apresenta um caráter bem peculiar dentro da categoria do segredo, se


fazem necessárias algumas digressões sobre a sociologia da comunicação escrita. Em
princípio a escrita se opõe essencialmente ao segredo. Antes que se a usasse, toda
transação jurídica por simples que fosse, tinha que ser celebrada na presença de
testemunhas. A forma escrita torna inútil este requisito, pois implica numa “publicidade”
tanto potencial como ilimitada: significa que não só as testemunhas como quaisquer
outras pessoas podem eventualmente ter acesso ao conteúdo do contrato celebrado.

Nossa consciência tem ao seu dispor uma forma peculiar a que podemos chamar “espírito
objetivo”, que consiste em que as leis naturais e os imperativos morais, conceitos e
formas artísticas estão ao dispor de quem quiser e puder apreendê-los, mas são
independentes quanto à sua validade de por quem e quando sejam apreendidos. A

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verdade como fenômeno intelectual é algo bem diferente do seu objeto efêmero:
continua a ser verdade, quer seja conhecida e reconhecida quer não. A lei moral e
jurídica é válida quer seja cumprida quer não. A escrita é um símbolo ou veículo visível
dessa categoria tão importante. Uma vez escrito, o conteúdo intelectual recebe uma
forma objetiva, uma existência em princípio independente do tempo e acessível a um
número ilimitado de reproduções sucessivas e simultâneas na consciência subjetiva, não
dependendo a sua significação ou a sua validade da presença ou da ausência dessas
realizações na alma dos indivíduos. Assim, a escrita é dotada de uma existência objetiva
que por assim dizer abre mão de toda a garantia de permanecer secreta.

A carta mais especificamente está desprotegida contra a indiscrição. Talvez seja por isso
que nos indignemos tanto diante da indiscrição quando se trata de cartas – de modo que
parece ser essa fragilidade que as protege e ao seu segredo. A mistura destes dois
contrastes – a ausência objetiva de qualquer garantia de segredo e a intensificação
subjetiva dessa garantia – faz da carta um fenômeno sociológico específico. A forma de
expressão escrita numa carta é uma objetificação do seu conteúdo que implica por sua
vez por um lado o fato de a carta ser endereçada a uma pessoa específica e por outro a
contrapartida deste fato, ou seja, o caráter pessoal e subjetivo em que o autor da carta
(diferentemente do escritor) se apresenta. É principalmente neste segundo aspecto que a
carta é uma forma única de comunicação. Quando os interlocutores estão no mesmo
lugar, um dá ao outro mais do que o conteúdo das palavras. Quando em presença de
outra pessoa penetramos na esfera dos seus sentimentos que nem sempre cabe em
palavras, porém manifesta em mil matizes de acento e de ritmo, o conteúdo lógico ou
desejado das suas palavras enriquece e se modifica, pois a carta oferece apenas
analogias mínimas. A vantagem e o inconveniente da carta consistem em que ela contém
em princípio só o conteúdo puro, momentâneo, objetivo, da nossa vida ideacional e calar
o que não podemos ou não queremos dizer. Mas a caraterística da carta é ser não
obstante, algo inteiramente subjetivo, momentâneo, unicamente pessoal, de modo algum
só quando é uma explosão de lirismo mas também quando é uma comunicação concreta
e perfeita. Esta objetivação do subjetivo, este desnudar o subjetivo de tudo o que no
momento não se queira revelar acerca da coisa e da própria pessoa, só é possível em
estágios culturais elevados em que os homens dominam a técnica psicológica o bastante
para imprimir forma duradoura aos seus pensamentos e sentimentos momentâneos, e
para considerá-los e recebê-los no entendimento de que eles são momentâneos e
comensuráveis na perspectiva do estado de coisas em questão. Quando um produto
interior assume o caráter de “obra”, esta forma permanente é inteiramente adequada;
mas na carta jaz uma contradição entre o caráter do seu conteúdo e o da sua forma. Só
mediante objetividade e diferenciação se pode produzir, tolerar e utilizar essa
contradição.

Esta síntese tem outra analogia na mistura de firmeza e de ambigüidade própria da


comunicação escrita, sobretudo da carta. Firmeza e ambigüidade são categorias
sociológicas de primeira ordem nas interações homem a homem; evidentemente as
nossas discussões cabem bem aqui. No entanto não se trata do mais ou do menos que
uma pessoa dá a conhecer a outra sobre si mesma, e sim da clareza maior ou menor do
comunicado àquele que o recebe, sendo a falta de clareza compensada por uma
pluralidade correspondente de possíveis interpretações. Pode-se dizer com certa
segurança que não há relação duradoura entre indivíduos em que as mudanças nas
proporções de clareza e interpretabilidade nas manifestações não desempenhem um
papel essencial, apesar de só nos darmos conta desse papel através dos seus resultados
práticos. Superficialmente a manifestação escrita parece ser mais segura no sentido de
que parece ser a única de que “não se pode tirar uma vírgula”. No entanto tal
prerrogativa é unicamente a conseqüência da falta de todos os acompanhamentos – tom
da voz, gestos, expressões faciais – que na comunicação falada são ao mesmo tempo
fontes de obscurecimento e de esclarecimento.Na verdade, o receptor nem sempre se
contenta com o sentido puramente lógico das palavras que a carta transmite com muito
menos ambigüidade do que a fala; inúmeras vezes o receptor não pode fazê-lo porque
mesmo para alcançar o mero sentido lógico precisa-se de algo mais. Por isso a carta,
graças à sua clareza é, mais do que a conversa, o lugar das “interpretações” e portanto

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dos desentendimentos.

Correspondendo ao nível de cultura em que uma relação ou período de relações baseados


na comunicação escrita é possível, as características de uma relação assim são também
altamente diferenciadas: aquilo que é claro e distinto nas manifestações humanas, fica
ainda mais claro e distinto na carta do que na fala, e o que é essencialmente ambíguo,
fica mais ambíguo. Se o expressamos nas categorias de liberdade ou de sujeição por
parte do que recebe a comunicação: a sua compreensão é menos livre; mas no que diga
respeito à sua significação mais profunda e mais pessoal, o seu entendimento fica mais
livre no caso da comunicação escrita do que na fala. Podemos dizer que enquanto o
discurso revela o segredo do interlocutor por meio do que o rodeia – que é visível, mas
não audível, e que também inclui os imponderáveis deste mesmo falante – a carta oculta
este segredo. Por tal razão, a carta é mais clara do que a comunicação falada, sempre
que o segredo do outro não esteja em questão; por outro lado, é mais obscura e
multívoca no que a este segredo se refira. Entenda-se por “segredo do outro” os
sentimentos e qualidades que não se podem expressar logicamente, mas aos quais
recorremos inúmeras vezes para compreender manifestações plenamente concretas. No
caso da comunicação falada, estes elementos auxiliares da interpretação de tal modo se
fundem com seu conteúdo conceitual que ambos resultam numa unidade intelectiva.
Talvez seja esta a instância mais decisiva do fato geral de que o homem não é capaz de
distinguir o que realmente vê, ouve, averigua, do que a interpretação lhe sinaliza,
mediante adições, deduções, transformações. Um dos resultados intelectuais da
comunicação escrita é que esta isola um dos elementos desta ingênua homogeneidade,
tornando assim visíveis os vários fatores heterogêneos que constituem o fenômeno
aparentemente simples da “compreensão mútua”.

4. Segredo e Sociação

Ao estudar as questões relativas às técnicas do segredo, não se deve esquecer que o


segredo não é só um meio sob cuja cobertura se podem fomentar os objetivos materiais
de um grupo; muitas vezes a própria formação do grupo objetiva garantir que
determinados conteúdos permaneçam secretos. Isto acontece num tipo especial de
sociedades secretas, cuja substância é uma doutrina secreta, um “saber” teórico, místico,
religioso. Nestes casos, o segredo é em si mesmo um fim sociológico; os que o detêm
formam uma comunidade para garantir mutuamente a ocultação desejada. Se os
iniciados fossem apenas uma soma de individualidades desconexas, o segredo logo se
perderia; mas a sociação oferece a cada um deles suporte psicológico contra a tendência
à indiscrição. A sociação contrabalança o efeito isolante e individualizante do segredo.
Todos os tipos de sociação deslocam as necessidades de individualização e socialização no
interior das suas formas – como se os termos de uma mistura duradoura fossem
cumpridos mediante o emprego de elementos cuja qualidade muda constantemente.
Assim, a sociedade secreta compensa o fator de separação inerente ao segredo pelo
simples fato de constituir uma sociedade.

O segredo e a individualização estão tão estreitamente associados, que a sociação pode


desempenhar dois papéis totalmente diferentes quanto ao segredo. Ela pode tornar-se
um objetivo de modo a compensar o efeito isolante do segredo – de modo a satisfazer
dentro da sociedade secreta o impulso de sociabilidade que o segredo destrói com relação
aos de fora. Por outro lado, o segredo perde em significação sempre que, em razão do
conteúdo, a individualização fica fundamentalmente excluída. A Maçonaria pretende ser a
sociedade mais geral, a “associação das associações”, o único grupo que rejeita todos os
elementos particularistas e quer utilizar como conteúdo exclusivo só o que seja comum a
todos os homens de bem. Pari passu com esta tendência, desenvolveu-se no meio deles
uma crescente indiferença para com o caráter secreto das lojas que se reduziram a
exterioridades meramente formais. Assim, não é contraditório que o segredo seja
algumas vezes favorecido, algumas vezes menoscabado pela sociação – trata-se apenas

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de formas diferentes em que se expressa a relação entre o segredo e a individualidade.


Uma analogia disto é a conexão entre a fraqueza e o medo, que se deixa ver na pessoa
frágil que tanto pode procurar a sociação para proteger-se, como pode evitá-la por achar
que esta lhe oferece maiores perigos do que o isolamento.

5. Hierarquia

A iniciação gradual dos membros à sociedade secreta de que já falamos, pertence a um


grupo mais amplo de formas sociológicas dentre as quais as sociedades secretas se
situam de modo especial. Trata-se do princípio da hierarquia, ou diferenciação de graus,
nos elementos de uma sociedade. As sociedades secretas, mais que as outras, organizam
sua divisão do trabalho e a gradação dos seus membros com finura e sistematização, em
relação a um dos seus traços característicos a que nos referiremos mais tarde, qual seja
uma consciência altamente desenvolvida que têm da sua vida. Em virtude desta, forças
organizadoras instintivas são substituídas por uma vontade reguladora constante; e o
crescimento a partir do seu interior é trocado por uma previsão construtiva. A expressão
mais visível desta natureza racionalista da sua organização é a sua arquitetura definida e
equilibrada. Assim era, por exemplo, a estrutura da sociedade secreta tcheca, “Omladina”
que se constituiu sobre o modelo de um grupo de Carbonários e que veio a público em
1893 através de um processo legal. Os diretores da Omladina eram divididos em
“polegares” e “dedos”. Os “polegares”, escolhidos pelos membros em sessões secretas,
escolhiam quatro “dedos” que por sua vez escolhiam um “polegar”entre eles. Este
segundo polegar se apresentava ao primeiro, escolhendo entre os demais mais quatro
dedos que escolhiam um polegar e assim a organização se organizou e teve continuidade.
O primeiro polegar conhecia todos os outros polegares, mas estes não deveriam
conhecer-se entre si.Os dedos só conheciam aos outros que estavam subordinados ao
mesmo polegar. Toda a atividade da Omladina estava dirigida pelo primeiro polegar, “o
ditador”. Este informava os outros polegares das ações planejadas, que por sua vez
mandavam ordens para os dedos a ele subordinados, que repassavam as ordens aos
membros ordinários por quem eram responsáveis.

O fato de que a sociedade secreta se deva organizar desde a base reflexivamente e por
vontade consciente, oferece um amplo campo de ação ao singular prazer de criação que
produzem semelhantes construções arbitrárias. Todo sistema – a ciência, a conduta, a
sociedade – implica uma manifestação de poder: submete uma matéria alheia ao
pensamento, a uma forma elaborada de pensamento. Se isto é verdadeiro quando se
trata das tentativas de organizar um grupo segundo certos princípios, com maior motivo
poderá dizer-se da sociedade secreta que não cresce, mas é construída, e que pode
contar com menos elementos parciais já formados do que qualquer outro sistema
despótico ou socialista. Ao prazer de planejar e construir, que já em si expressa uma
vontade de poder, soma-se, neste caso, uma incitação específica: a de dispor de um
amplo círculo de seres humanos idealmente submissos, para construir um sistema de
posições e hierarquias. Ocasionalmente tal paixão poderá desprender-se de toda utilidade
e espraiar-se na construção de edifícios hierárquicos totalmente fantásticos, como, por
exemplo, nos “altos graus” da Maçonaria. Como exemplo, indicarei algumas
particularidades da organização da “Ordem dos Mestres Construtores Africanos” que
vigorou na Alemanha e França em meados do século XVIII. Apesar de concebida sob
princípios maçônicos, objetivava a destruição da Franco-maçonaria. A administração
desta sociedade estava a cargo de quinze categorias: Summus Magister, Summi Magistri
Locum Tenens, Prior, Subprior, Magister, etc. Os graus da Ordem eram sete: o Aprendiz
Escocês, o Irmão Escocês,o Mestre Escocês, o Cavaleiro Escocês, o Eques Regii, o Eques
de Secta Consueta, o Eques Silentii Regii, etc.

6. Ritual

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O ritual evolui nas sociedades secretas em condições análogas às da hierarquia. A sua


extraordinária liberdade e riqueza de formas derivam do fato característico de que a
organização da sociedade não é pré-determinada por antecedentes históricos, estando
construída sobre a sua própria base. Talvez não haja outros traços externos que sejam
tão típicos da sociedade secreta distinguindo-a da sociedade abrangente, além da alta
valorização do uso de fórmulas e ritos e a sua preponderância sobre os conteúdos e fins
da associação. Muitas vezes os conteúdos são objeto de menos ansiedade quanto à
ocultação do que o segredo do ritual. A Franco-maçonaria declara expressamente que
não é uma sociedade secreta, que não há motivo para ocultar o pertencimento a ela, que
não são secretas as suas intenções e suas atividades, e que o juramento de segredo se
refere exclusivamente às formas do ritual maçônico. Em fins do século XVIII, a ordem
estudantil dos Amicistas decretava no primeiro artigo dos seus estatutos: ”O mais
sagrado dever dos membros é manter o mais profundo silêncio sobre coisas relativas ao
bem-estar da Ordem. Entre elas figuram os signos da Ordem e de reconhecimento, os
nomes dos irmãos, as cerimônias e solenidades, etc.Mais adiante, no mesmo estatuto, o
objetivo e a natureza da Ordem estão indicados detalhadamente e sem qualquer
tentativa de dissimulação.Num pequeno livro que descreve a constituição e a natureza
dos Carbonários, a enumeração das formulas e práticas da iniciação de novos membros
assim como das reuniões, ocupa 75 páginas. Nem precisamos de mais exemplos. O papel
desempenhado pelo ritual nas sociedades secretas é bem conhecido, desde as ordens
religiosas e místicas da antiguidade até os Rosacruzes do século XVIII por um lado, e por
outro os mais famosos bandos criminais. As motivações sociológicas da conexão entre o
ritual e a sociedade secreta são as seguintes.

Chama a atenção nos rituais das sociedades secretas não só o rigor com que são
observados, mas sobretudo a ansiedade e o cuidado com que se os mantém secretos,
como se o seu desvelamento fosse tão perigoso quanto o dos fins e atividades da
associação ou o da sua própria existência.

O aspecto teleológico deste traço é provavelmente, que a sociedade secreta só se


converte em unidade fechada quando introduz um complexo de formas exteriores no
segredo da sua atividade e dos seus interesses. Sob as suas categorias características, a
sociedade secreta haverá de estar constituindo uma certa totalidade de vida; por isso, em
volta do seu objetivo energicamente reforçado e acentuado, constrói um sistema de
fórmulas que o rodeiam como o corpo à alma, e põe tudo isto sob a proteção do segredo,
porque só assim se transforma tudo num conjunto harmônico cujas partes se apoiam
mutuamente.É necessário acentuar particularmente o segredo do exterior porque este
não está tão claramente justificado pelo interesse imediato quanto os fins reais da
associação. Este fenômeno é semelhante ao que se produz no exército ou nas ordens
religiosas. O fato de que em ambos os conjuntos o esquematismo e as fórmulas tenham
papel tão importante se deve a que estes assumem o homem na sua totalidade, quer
dizer, cada um deles projeta a totalidade da vida sobre um plano específico; cada um, do
seu ponto de vista, reúne numa unidade fechada uma pluralidade de energias e
interesses. Esta é também uma aspiração das sociedades secretas, cujos traços
essenciais levam a que estes grupos reunam os indivíduos unicamente para fins parciais,
mesmo quando, pelo seu conteúdo, sejam apenas uma associação de fins, exige a
assistência do homem inteiro, liga e obriga mutuamente as individualidades, numa
medida muito maior do que faria, com a mesma finalidade, uma associação de caráter
público.Através do simbolismo do ritual que evoca muitos sentimentos vagamente
delimitados, e que vão além de interesses racionais e particulares, a sociedade secreta
sintetiza estes interesses numa totalidade que recai sobre o individual. Graças à forma
ritual, amplia-se o objetivo particular da sociedade secreta numa unidade fechada, um
todo, tanto subjetiva como sociologicamente.

Some-se a isso que, mediante tal formalismo, assim como através da própria organização
hierárquica, a sociedade secreta se converte numa espécie de reflexo do mundo oficial, a
que se contrapõe. É amplamente difundida a norma sociológica segundo a qual os
organismos que surgem em oposição a outros mais amplos, repetem eles mesmos as

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formas das próprias estruturas a que se contrapõem. Só uma estrutura que possa ser
considerada um todo tem poder bastante para manter ligados a si os seus elementos.
Esse tipo de conexão orgânica em virtude da qual a mesma corrente de vida flui
passando por todos os membros do grupo, já é um empréstimo ao todo maior, a cujas
formas os membros estavam adaptados.É viável que a estrutura menor construa esse
todo justamente por imitá-lo nas suas estruturas.

7. Liberdade

Finalmente, as mesmas condições circundam um outro tema na sociologia do ritual em


associações secretas. Trata-se do seguinte. Toda sociedade secreta implica numa certa
medida de liberdade que a estrutura da sociedade maior que a contém, não oferece.Quer
seja a sociedade secreta um complemento das deficiências da justiça administrada pelo
círculo político, quer se trate de conspirações, bandos de malfeitores, conjurações contra
a lei, ou ainda dos cultos de mistério,instâncias estranhas aos mandamentos e proibições
do círculo maior, o isolamento que caracteriza a sociedade secreta tem sempre um tom
de liberdade que supõe sempre a existência um território onde as normas públicas não
se aplicam.A essência da sociedade secreta como tal é a autonomia. Mas esta autonomia
se aproxima da anarquia: as conseqüências do distanciamento da ordem normativa geral
são o desenraizamento e a ausência de estabilidade no sentimento da vida, e dos
suportes que a norma oferece.O caráter determinado e o detalhamento circunstanciado
do ritual vêm não obstante de certo modo remediar esta falta. Nisto, podemos ver mais
uma vez quanto o homem precisa de um certo equilíbrio entre a liberdade e a lei e como,
quando ele não o encontra numa única fonte, procura suplementar o que recebe de uma
fonte com o que pode encontrar em outra, até alcançar a proporção desejada. Através do
ritual, a sociedade secreta se impõe voluntariamente uma coerção formal, complemento
da sua vida marginal e da sua independência material. É interessante notar que é entre
os maçons americanos, precisamente os que usufruem de maior liberdade política, que se
exige a mais severa unidade no trabalho e a maior uniformidade no ritual das lojas,
enquanto na Alemanha a prática envolve uma maior autonomia de cada loja
individualmente: isto se explicaria pelo alto nível de integração da Maçonaria à
sociedade maior. Em suma, na sociedade secreta a natureza do ritual – objetivamente
sem sentido e esquematicamente coercitiva – não é inconsistente com a liberdade que
fomenta e que se assemelha à anarquia, desvinculando-se das normas vigentes no
círculo maior que as envolve. Pelo contrário: na medida em que a difusão das sociedades
secretas é um sintoma de pouca liberdade, de uma tendência ao patrulhamento e à
opressão política, em suma, uma reação nascida da necessidade de liberdade, por outro
lado, a regulamentação ritual interna dessas sociedades reflete uma medida de liberdade
e de desvinculação da sociedade maior que encompassa a contra-norma deste mesmo
esquematismo, de modo a restaurar o equilíbrio na balança do ser humano.

8.Traços da Sociedade Secretas como Modificações Quantitativas dos Traços


do Grupo Geral

Estas últimas reflexões conduzem aos princípios metódicos com base nos quais quero
analisar os traços das sociedades secretas que ainda é preciso examinar.A questão é, em
que medida estas sociedades representam modificações quantitativas essenciais dos
traços típicos que se dão na sociação de modo geral.A fundamentação da sociedade
secreta nos leva a considerar mais uma vez a sua posição no todo complexo das formas
sociológicas.

O elemento secreto nas sociedades é um fato sociológico primário, um tipo particular de


convivência, uma qualidade formal de relacionamento.Na interação direta ou indireta com

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outras qualidades, vai determinar a forma dos elementos do grupo ou do próprio grupo.
No entanto, de um ponto de vista histórico, a sociedade secreta é um fenômeno
secundário, por desenvolver-se no seio de uma sociedade já completa em si. Colocando
as coisas de outro modo, a sociedade secreta está tão caracterizada pelo seu segredo,
como outras – ou elas mesmas – se caracterizam pelas suas relações de superioridade ou
de subordinação, pelos seus fins agressivos, ou ainda pelo seu caráter imitativo. Mas o
fato de que se possa formar com tal caráter só é possível à condição de que já exista
uma sociedade. Dentro deste círculo mais amplo, ela se oporá como um círculo mais
restrito; qualquer que seja o objetivo da sociedade, esta oposição tem sempre um
caráter de isolamento. Mesmo a sociedade secreta altruística, que só se propõe a prestar
um certo serviço à totalidade pretendendo desfazer-se uma vez realizado este objetivo,
necessita inexoravelmente recorrer ao isolamento temporal como técnica para a
realização dos seus objetivos.

[a] Separatividade, Formalidade, Consciência

Dentre os muitos grupos menores rodeados de outros maiores, nenhum há cuja


constelação sociológica o force a acentuar tanto a sua autonomia quanto a sociedade
secreta. O seu segredo a envolve como um limite fora do qual nada mais há do que
forças materialmente ou formalmente opostas; este limite a reúne, pois, numa unidade
acabada. Em grupos de outro tipo, o conteúdo da vida grupal, as ações dos membros em
termos de direitos e deveres, pode então ocupar a consciência dos mesmos de modo que
normalmente, o fato formal da sociação praticamente não desempenha papel nenhum.
Por outro lado, a sociedade secreta não permite que seus membros percam de vista a
consciência enfática, clara e acentuada de que constituem uma sociedade. Em
comparação com outras associações, neste caso é a paixão do segredo – algo que se
trata sempre de preservar – que confere ao grupo uma significação que chega a ser
superior ao significado do conteúdo. Fazem falta à sociedade secreta o crescimento
orgânico, as expansões instintivas, e, da parte dos seus membros, todo o sentimento
ingênuo e inquestionado de formar um grupo e de ser uma unidade.Os conteúdos da
sociedade secreta poderão ser irracionais, místicos, emocionais ou o que mais se quiser,
mas a sua formação é sempre consciente e produzida pela vontade. Na sua consciência
de ser uma sociedade – consciência esta que é constantemente reforçada não só no seu
período formativo como no decorrer da sua vida – ela se opõe a todos os grupos
espontâneos em que a adesão é apenas a expressão de elementos que cresceram
juntos,tendo raízes comuns. A sua forma psicosociológica é claramente a dos grupos de
interesse (Zweckverband). Este estado de coisas torna compreensível por que as
características formais do desenvolvimento dos grupos em geral costumam ser
especificamente intensificadas na sociedade secreta e por que alguns dos seus traços
sociológicos essenciais se desenvolvem como meras intensificações quantitativas de tipos
de relações.

[b] Reclusão: Sinais de Reconhecimento

Já caracterizamos a coesão nas sociedades secretas que utiliza a reclusão contra o meio
que a envolve. Esta função encompassa sinais muitas vezes complicados de
reconhecimento mediante os quais o indivíduo se legitima como membro. Note-se que
antes de que houvesse uma difusão mais geral da escrita, estes sinais eram ainda mais
indispensáveis do que depois, quando os seus outros usos sociológicos se tornaram mais
importantes do que a mera legitimação. No que diz respeito às inscrições das pessoas,
uma associação que tivesse ramos em vários lugares diferentes, só tinha estes sinais
para excluir pessoas não-autorizadas, e para garantir que só certas pessoas pudessem

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receber benefícios e comunicações. Estes sinais só eram conhecidos dos membros


legítimos que por sua vez através deles os legitimavam onde quer que o grupo existisse,
guardando-os em absoluto segredo.

O objetivo da reclusão fica bem claro no caso das ordens secretas entre povos da
natureza, especialmente em sociedades tribais africanas. São ordens constituídas só de
homens. O seu objetivo primeiro é marcar a diferenciação entre homens e mulheres.
Seus membros só aparecem mascarados e as mulheres são proibidas de aproximar-se
deles sob severas penalidades. No entanto, às vezes elas descobrem o segredo, no
momento em que se dão conta de que aquelas aparições tenebrosas nada mais são do
que os seus maridos. Quando isto acontece, as ordens perdem o seu significado e se
banalizam. O homem da natureza, com a sua concepção sensual e indiferenciada, não
pode imaginar separação mais perfeita do que a dos que se desejam ocultar, tornando-se
invisíveis. Este é o modo mais elementar e mais radical da ocultação: aquele em que o
segredo não se refere a uma atividade concreta do homem, mas ao homem inteiro.O
grupo não faz algo secreto, sendo a totalidade dos seus membros o que se faz secreto.
Esta forma de sociedade secreta corresponderia à mentalidade primitiva, para a qual a
personalidade como um todo se vê absorvida em cada atividade particular; a mentalidade
primitiva não objetiva uma ação específica nem lhe confere caráter distinto do sujeito
total. Assim se explica por que o isolamento do todo se torna inválido uma vez quebrado
o segredo da máscara e por que então, a associação perde a sua significação interna
junto com os seus meios de manifestação externa.

[c] A Motivação Aristocrática

No âmbito das sociedades secretas, o isolamento é a expressão de um valor:as pessoas


se separam porque desejam diferenciar-se das demais, fazendo-lhes sentir a sua
superioridade. Este valor tem levado à formação de grupos por toda parte, estes bem
diferentes dos que se formam com propósitos objetivos. Reunindo-se, aqueles que
desejam marcar esta diferenciação levam a que se produza uma aristocracia que ao
próprio peso da soma de indivíduos, fortalece e por assim dizer amplia a posição e a
auto-consciência dos mesmos.O fato de que a associação e o isolamento se entreteçam
com o motivo aristocrático, muitas vezes confere a estes grupos um caráter “especial” no
sentido honorífico.Mesmo nas salas de aula pode-se observar como alguns alunos
formam círculos reduzidos estreitamente integrados, que se consideram uma elite diante
dos demais que não se organizam como eles -unicamente pelo fato formal de
constituírem um grupo separado; esta valoração se vê reforçada pelos próprios excluídos
do grupo que a legitimam com a sua animosidade, hostilidade e inveja, reconhecendo,
portanto, a valorização de algo a que não se tem acesso. Nestes casos, o segredo
funciona como um muro de isolamento que como dissemos, acentua o caráter
aristocrático do grupo.

Esta significação do segredo como intensificação do isolamento sociológico é bastante


visível nas aristocracias políticas. O segredo sempre foi um dos elementos estruturais do
regime aristocrático. Em primeiro lugar, trabalhando no sentido de ocultar a
insignificância numérica da classe dominante, as aristocracias se aproveitam do fato
psicológico de que o desconhecido parece ameaçador, poderoso e terrível. Em Esparta se
guardava o maior segredo possível acerca do contingente de guerreiros.O mesmo tentou-
se em Veneza mediante um decreto determinando que todos os nobili (nobres) usassem
um simples traje negro, para que as roupas revelassem o pequeno número de poderosos
ao povo. Chegou-se a ponto de ocultar inteiramente o círculo dos mais altos dignatários;
os nomes dos três inquisidores do Estado só eram conhecidos pelo Conselho dos Dez, que
os elegia. Em algumas aristocracias suíças, os ocupantes dos cargos mais importantes se
chamavam “os Secretos”, e em Friburgo as famílias aristocráticas se denominavam “as
estirpes secretas”. Em contraste, o princípio aristocrático se associa ao princípio da
publicidade com a tendência a ditar leis gerais e fundamentais. Pois estas leis se aplicam

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a um número indefinido de sujeitos, sendo públicas pela sua própria essência. Ao


contrário, o uso do segredo pelos regimes aristocráticos nada mais é do que a exaltação
suprema do isolamento a que se propõem e as imunidades em virtude dos quais a
aristocracia costuma se opor a uma legislação geral e isenta de exceções, valendo para
todos.

Quando a noção de aristocracia não caracteriza as idéias de um grupo, mas uma


disposição individual, a relação entre exclusividade e segredo se manifesta em planos
diferentes. A pessoa moral e intelectualmente diferenciada desdenha toda ocultação,
porque a sua diferenciação é espiritual e a sua consciência dela o torna indiferente a se
isso é do conhecimento de outros ou não, a se o apreciam ou não ou a como o
consideram os demais. Nesta perspectiva, o segredo é uma concessão, uma maneira de
subsumir-se a conduta à apreciação de outros. Por isso, a “máscara” que muitos
consideram como sinal e prova de uma personalidade aristocrática, que se distancia da
multidão, vem comprovar a importância da massa para os que se mascaram. A “máscara”
do verdadeiro nobre consiste em que, quando se mostra sem ela não o compreendem, e
por assim dizer, sequer o vêem.

[Graus de Iniciação: isolamento formal e informal]

A separação de tudo o que esteja fora do círculo é então uma forma sociológica que
simplesmente usa o segredo como técnica para acentuar-se. Esta separação assume um
matiz específico nos múltiplos graus em que se verifica a iniciação nas sociedades
secretas, até que se alcance os seus mistérios mais profundos. A existência destes graus
já foi alumiada quando falamos dos traços sociológicos da sociedade secreta. Via de
regra, se exige do noviço a declaração solene de guardar segredo sobre tudo o que vier a
experimentar, objetivando-se a separação absoluta e formal que essa atitude produz.No
entanto, uma vez que o real conteúdo ou objetivo da sociedade se torna acessível ao
neófito – quer este propósito seja a purificação e a santificação da alma mediante a
consagração de mistérios ou a absoluta supressão de toda barreira moral, como entre os
Assassinos e outros grupos criminais – o isolamento material se dá de modo diferente, de
maneira contínua e relativa. Neste aspecto, o novo membro ainda se encontra próximo ao
estado de não-iniciado, precisando ser posto à prova e educado, até conhecer todos os
objetivos da associação e considerar-se membro da mesma. Com isto,consegue-se ao
mesmo tempo proteger o coração da associação isolando-o do exterior, num grau maior
do que o produzido pelo juramento feito por ocasião do ingresso na ordem. Zela-se
(como no caso dos Druidas de que já falamos) para que o neófito ainda não confirmado
não tenha muito a revelar: no interior do segredo geral que encompassa o grupo como
um todo, estas revelações graduais levam a uma esfera elástica de proteção por assim
dizer, do mais íntimo e essencial da sociedade,(como se isso fosse possível).

O contraste entre os membros exotéricos e esotéricos, como no caso das ordens


Pitagóricas, é a forma mais pungente desta medida de proteção. O círculo formado pelos
parcialmente iniciados constitui uma espécie de fosso que os separa dos não-iniciados. No
caso, o “intermediário” desempenha a função de unir e separar, que termina sendo uma
só.Do mesmo modo, a real unidade de atividades superficialmente contraditórias é vista
com bastante clareza: precisamente porque os graus mais baixos da ordem mediam a
transição para o centro do segredo, criam uma densidade gradual à esfera de repulsa que
envolve este centro e que o protege com maior segurança do que o faria qualquer
alternativa abrupta e radical entre a inclusão total e a exclusão total.

[Egoísmo de Grupo]

Na prática, a autonomia sociológica se manifesta sob a forma de egoísmo: o grupo


procura alcançar seus fins com a mesma ausência de consideração para com o que esteja
fora dele, numa atitude que, ao nível individual, se chama de egoísmo.Na consciência dos

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membros individuais, essa desconsideração se justifica moralmente pelo fato de que os


pressupostos e as finalidades do grupo têm um caráter objetivo e supra-individual, sendo
geralmente impossível que um indivíduo usufrua de qualquer benefício advindo da
conduta egoística do grupo, que por sua vez exige dos membros individuais,
desprendimento e sacrifícios. Mas não estamos tentando estabelecer qualquer valoração
ética, e sim enfatizar o isolamento do grupo do seu ambiente maior, que se realiza ou se
caracteriza por este egoísmo de grupo. Todavia, no caso dos círculos pequenos, que
objetivam viver e manter-se dentro de um grupo maior e se desenvolvem a olhos vistos,
este egoísmo tem limites. Qualquer associação aberta, não importando com que violência
lute contra outras associações dentro da sociedade maior ou contra os fundamentos
dessa mesma sociedade, deve sempre afirmar que a realização dos seus objetivos virá
em benefício do todo; e a necessidade dessa afirmação de certo modo põe algum limite
ao egoísmo efetivo da sua conduta. Tal não se faz necessário no caso das sociedades
secretas que pelo menos potencialmente podem contrapor-se a outros grupos ou ao
todo.Nada simboliza ou promove o isolamento da sociedade secreta no seu ambiente
social tão decisivamente quanto a eliminação da hipocrisia ou da condescendência
mediante as quais a sociedade secreta é inevitavelmente integrada à teleologia do seu
ambiente.

[Inclusão e Exclusão como Princípios]

Apesar da delimitação quantitativa que caracteriza toda comunidade real, há não


obstante uma série de grupos cuja tendência interior é de incluir todos os que não estão
explicitamente excluídos. Em certas periferias políticas, religiosas, sociais, todo aquele
que satisfizer determinadas condições externas, não voluntariamente adquiridas, mas
dadas pela própria existência, é passível de ser considerado como ”membro”. Por
exemplo, todos os que nasçam no território de um Estado a ele pertencem, a não ser que
circunstâncias específicas os excluam.O membro de uma determinada classe social está
incluído nas convenções sociais e formas de articulação daquela classe, a não ser que se
declare voluntária ou involuntariamente dissidente. O caso extremo seria uma igreja que
pretendesse abarcar em seu seio a totalidade dos humanos, de sorte que, os indivíduos
que porventura sejam excluídos da dita associação religiosa, o sejam por um acidente
histórico, uma obstinação no pecado ou por um desígnio particular de Deus.

Aqui se evidencia a distinção de dois princípios que indicam claramente uma


diferenciação da significação sociológica dos grupos em geral,por muito que a razão
prática misture os dois,diminuindo o rigor da distinção.De um lado fica o princípio de
incluir todos os que não estejam explicitamente excluídos e do outro, o princípio de
excluir os que não estiverem implicitamente incluídos.O segundo tipo se encontra em
estado bem puro na sociedade secreta.O caráter incondicional deste isolamento mantém
clara a consciência dos seus movimentos,e as sociedades secretas se baseiam na idéia de
que quem não tiver sido expressamente admitido, delas se encontra excluído.Para
reforçar a sua negativa de ser uma “ordem secreta”, a maçonaria assumiu o ideário de
abarcar em seu seio toda a humanidade.

[Isolamento contra o Exterior e Coesão Interna]

A intensificação do isolamento para com os de fora, corresponde neste caso à ênfase na


solidariedade interna,sendo estes apenas dois aspectos ou formas de manifestação de
uma mesma atitude sociológica. Os objetivos que levam um indivíduo a entrar em
associação secreta com outros, quase sempre exclui um setor tão amplo e representativo
do círculo social geral, que os participantes reais e potenciais assumem valor de raridade.
O indivíduo deve então manter-se em bons termos com estes, pois seria muito mais
difícil substituí-los aqui do que numa associação legítima. Além disso, toda dissensão no
interior da sociedade secreta acarreta o perigo da traição, estando os indivíduos e o
grupo igualmente interessados em evitá-la.

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Finalmente, o isolamento da sociedade quanto ao entorno social, minimiza toda uma


série de possíveis conflitos. De todos os vínculos que o indivíduo assume, o constituído
pela associação secreta tem sempre uma posição especial frente à qual os demais laços -
familiares, cívicos, religiosos e econômicos, sociais e amistosos, por variado que seja o
seu conteúdo, têm diferentes tipos e medidas de contato. Só o contraste com as
sociedades secretas deixa ver que as pretensões daqueles vínculos, estando em princípio
no mesmo plano, são divergentes.

O isolamento sociológico da sociedade secreta em grande medida limita colisões.A


depender dos seus objetivos e métodos de ação, os interesses originados da sociedade
maior são deixados de fora. Toda sociedade secreta – mesmo que só por preencher por si
mesma a sua dimensão, já que dificilmente um indivíduo pertence a várias sociedades
secretas – exerce uma espécie de império absoluto sobre os seus membros, o que lhes
deixa pouca oportunidade de entrar em conflito como resultante da coordenação da
pluralidade de esferas que os grupos abertos representam. A “paz real” que na verdade
deveria reinar em toda associação, é promovida de maneira insuperável pelas condições
peculiares e excepcionais da sociedade secreta. De fato, o que parece é que além das
razões mais realísticas em favor da ”paz real”, a própria forma secreta mantém os
membros distanciados de outras influências e perturbações, facilitando assim o acordo
entre eles.Um político inglês certa vez chegou a explicar a força do Gabinete Inglês pelo
segredo que o rodeia.Quem tiver atuado na vida pública sabe que é tanto mais fácil
conseguir a unanimidade de um número pequeno de pessoas quanto mais secretas forem
as deliberações tomadas.

[h] Centralização

À especial coesão que se produz no interior da sociedade secreta, corresponde a sua


acentuada centralização. Nela se encontram exemplos de obediência cega e incondicional
aos chefes que – apesar de certamente ocorrerem também em outros lugares – são
particularmente notáveis em vista do caráter anárquico dessas sociedades que se negam
a todo tipo de lei. Quanto mais criminais forem os fins da sociedade secreta, mais
ilimitado será o poder dos chefes e mais cruel o seu exercício.Os “Assassinos” da Arábia,
os ”Chauffeurs”, um bando de vândalos com uma organização amplamente ramificada
que assolou a França especialmente no século XVIII, os Gardunas, uma sociedade
criminal que se relacionou com a Inquisição entre o século XVII e inícios do século XIX –
sociedades cuja essência era contrapor-se à lei e afirmar a rebeldia, estiveram todas
submetidas a um chefe supremo, nomeado em parte por elas mesmas, e a quem todos
se dobravam sem crítica nem condição alguma. Para isto contribui sem dúvida, a
compensação de que há de existir sempre entre as necessidades de liberdade e de
norma, compensação que como vimos, se manifesta também na severidade dos rituais.
Aqui os extremos se encontram: o excesso de liberdade que este tipo de associação
detinha, no que concerne o restante das normas vigentes, necessitava, para estar em
equilíbrio, ser compensado por um excesso análogo de submissão e de renúncia à
vontade pessoal. Mais essencial, provavelmente, seria a necessidade de centralização,
que é condição vital à sociedade secreta, sendo ainda mais importante para certos tipos -
como os bandos criminais – que vivem do círculo que os rodeia, misturando-se a este de
variadas maneiras, vendo-se assim constantemente ameaçada pela traição e de abuso se
nela não reinar mais uma autoridade rígida que oportunize a coesão.

As sociedades secretas que por qualquer razão não desenvolverem essa autoridade
solidificadora estarão expostas a graves perigos. Os Waldenses, por exemplo,
originalmente não foram uma sociedade secreta; o grupo se tornou secreto no século
XIII, obrigado por pressões externas que os levaram a ocultar-se. Isso tornou impossíveis
as reuniões regulares, levando a que a sua doutrina perdesse a unidade e que se
produzissem vários ramos que passaram a viver e a se desenvolver separadamente,
sendo inclusive hostis entre eles mesmos. A ordem declinou à falta de um elemento

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essencial à sociedade secreta: uma centralização efetiva. A Franco-Maçonaria


provavelmente deva o retardo evidente do seu poder que não está em relação com a sua
difusão e os seus recursos à ampla autonomia das suas partes, que não têm uma
organização unificada, nem uma autoridade central.Os seus traços comuns cobrem
apenas princípios e sinais de reconhecimento, traços de igualdade e de relações pessoa a
pessoa, sem a centralização que mantém juntas as energias dos membros e promove o
isolamento próprio a toda sociedade secreta.

O fato de que as sociedades secretas costumem ser dirigidas por superiores


desconhecidos é apenas uma exacerbação deste princípio formal. Refiro-me ao fato de
que os graus inferiores não sabem a quem obedecem. Isto se dá em primeira instância,
em razão do segredo. E este propósito pode chegar a extremos como no caso dos
Cavaleiros Guélficos que lutaram pela liberação e unificação da Itália. Em cada um dos
seus vários desdobramentos, nas diferentes cidades onde existiam, os cavaleiros tinham
um conselho supremo de seis membros que não se conheciam e só se comunicavam
através de um intermediário, chamado”o Visível”.Mas o único objetivo do
desconhecimento desses chefes não era a preservação do segredo.Na verdade ele
exemplifica a sublimação mais extrema e abstrata da dependência de um centro: a
tensão entre o subordinado e o chefe alcança o grau máximo quando o chefe está além
do visível. Permanece então apenas a pura e implacável obediência, destituída de matizes
pessoais. Sem dúvida a invisibilidade eleva a força da obediência a uma autoridade
impessoal, mas quando desaparece a individualidade,o poder da personalidade
desaparece também por parte do poder, e a dominação perde todos os atenuantes, todos
os elementos relativos e “humanos”inerentes à personalidade individual e única. A
obediência então faz-se acompanhar do sentimento de estar-se submetido a um poder
inacessível e sem limites determinados,poder que não se vê em nenhuma parte, mas que
pela mesma razão, pode estar em qualquer lugar. A coesão sociológica geral de um grupo
através da unidade da autoridade dominante se transfere por assim dizer para um foco
imaginário, onde atinge a sua forma mais pura e mais intensa.

[A Desindividualização]

O traço sociológico que corresponde a esta subordinação centralista dos elementos


individuais na sociedade secreta é a sua desindividualização. Quando a sociedade não
tem como finalidade imediata os interesses dos indivíduos, utilizando os seus membros
como meios para fins e ações estranhas e superiores a eles, acentua-se na sociedade
secreta o caráter de despersonalização, este nivelamento da individualidade pelo qual
passa todo ser social, apenas pelo fato de sê-lo. Apesar de em certa medida tratar-se de
uma característica de tudo o que é social, a sociedade secreta usa a desindividualização
para compensar o caráter diferenciador e individualizante do segredo. Talvez seja por isso
que o costume vigente entre povos da natureza de apresentar-se e assumir certas ações
recobertos por máscaras tenha levado a presumir-se a existência de sociedades secretas
no meio delas. A ocultação dos seus membros está na natureza das sociedades secretas.
Mas quando um indivíduo se deixa ver e age claramente como membro de uma ordem
secreta e simplesmente não mostra que individualidade está associada com ele, o
desaparecimento da personalidade é muito enfatizado por trás do papel representado na
sociedade secreta. Na conspiração irlandesa que se organizou na América do Norte em
1870 sob o nome de Clannagael, os membros individuais nunca eram chamados pelos
seus nomes,e sim por números. Isso certamente vinha em favor do segredo, mas ao
mesmo tempo exemplifica como esse objetivo suprime a individualidade. Os próprios
chefes podem agir com maior indiferença e objetividade sobre desejos e interesses
individuais de pessoas que só são conhecidas por números e cujos nomes seriam
desconhecidos até dos outros membros, do que quando o grupo encompassa cada
membro enquanto entidade pessoal. Não é menor a influência que tem no mesmo
sentido, a abrangência e e severidade do ritual, que sempre indica que a organização
objetiva superou o elemento pessoal nas atividades e contribuições dos membros do
grupo. A ordem hierárquica só admite o indivíduo enquanto ator de um papel por ela

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determinado de antemão, tendo para cada um deles um traje estilizado que recobre os
contornos pessoais, fazendo-os desaparecer.

[Igualdade dos Membros]

Outro aspecto da eliminação da personalidade se encontra nas sociedades secretas que


cultivam uma grande igualdade entre os seus membros. Isto não contradiz o caráter
despótico deste tipo de organização: em todos os outros tipos de grupo, o despotismo
está correlacionado ao nivelamento dos dominados. No interior das sociedades secretas
costuma existir entre seus membros uma igualdade fraternal que se opõe clara e
tendenciosamente às diferenças que os possam separar nas demais situações da
vida.Isto é mais notável nas sociedades secretas de natureza ético-religiosa – que põem
grande ênfase na fraternidade – e de outro lado nas de caráter ilegal. Nas suas
Memórias, Bismarck fala de uma organização de pederastas existente em Berlim de que
ele haveria tomado conhecimento quando jovem funcionário judicial; enfatizando
especialmente ”o efeito igualizante que em todas as classes sociais produz a prática
comum do que é proibido”.

Esta despersonalização a que as sociedades secretas reduzem a relação típica que se dá


em geral entre indivíduo e sociedade, termina por assumir a forma característica de
“irresponsabilidade”. Também neste caso a máscara é um fenômeno primitivo. A maior
parte das ordens secretas africanas se fazem representar por um homem disfarçado de
espírito da mata, que comete todo tipo de transgressão inclusive o roubo e o assassinato
contra qualquer pessoa que encontrar.No entanto ele não é responsabilizado por seus
crimes,já mediante o uso da máscara. Esta é uma forma um tanto desajeitada de que
estes grupos se utilizam para fazer desaparecer as personalidades dos membros, e sem
a qual sobre eles recairiam a vingança e o castigo pelos desacertos cometidos. A
responsabilidade está de tal modo equacionada ao eu (filosoficamente, inclusive, a
responsabilidade é algo da ordem do ego) que, para a mentalidade ingênua, o disfarce da
pessoa livra-a deste ônus. E não só entre primitivos. Os sistemas políticos mais refinados
se servem deste equacionamento. Na Câmara norte-americana, por exemplo, as decisões
propriamente ditas são tomadas por comissões permanentes e depois levadas a
plenário.Mas as deliberações dessas Comissões são secretas, ficando assim a parte mais
importante da atividade legislativa, oculta aos olhos do público. Isto faz com que a
responsabilidade política dos deputados de certo modo seja dissolvida, uma vez que não
se lhes as pode imputar por serem deliberações invisíveis e incontroláveis. Além disso,
desde o momento em que a participação dos indivíduos nas decisões permanece oculta,
estas parecem ser obra de alguma instância supra-individual. Também neste caso a
irresponsabilidade é conseqüência ou símbolo da marcada despersonalização sociológica
que corresponde ao segredo dos grupos.O mesmo se pode aplicar a corpos diretores,
faculdades, comissões, administrações, cujas deliberações sejam secretas:o indivíduo
desaparece como pessoa,sendo esta substituída pelo anonimato, de modo que
desaparece também a responsabilidade que não pode ser atribuída a um ser inacessível
na sua conduta pessoal.

Finalmente esta acentuação uniforme dos traços sociológicos gerais se confirma no perigo
que com ou sem razão, o círculo maior acredita haver nas sociedades secretas. Sempre
que a sociedade maior – sobretudo no campo político – deseja instaurar uma
centralização acentuada, costuma-se coibir as associações, independentemente dos seus
conteúdos e propósitos. Simplesmente por ser unidades, estes grupos competem com o
princípio da centralização que deseja reservar unicamente a si a faculdade de reunir
elementos numa unidade. A preocupação do poder central com as “associações especiais”
perpassa toda a história política -ponto este que é relevante em muitos aspectos para
este estudo. Um exemplo representativo deste tipo de preocupação é a Convenção Suíça
de 1481, segundo a qual não podiam ser celebradas quaisquer alianças entre os dez
Estados confederados. Outro exemplo, são as perseguições de que foram alvo as
associações de aprendizes por parte do despotismo nos séculos XVII e XVIII. Um terceiro
é a tendência do Estado Moderno de despojar comunidades políticas locais dos seus

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direitos. Este perigo das associações particulares para como o todo que as rodeia,
aparece claramente na sociedade secreta. Raramente o homem tem uma atitude serena
e racional diante de pessoas e de coisas desconhecidas ou pouco conhecidas. A sua
atitude consiste em parte em tratar o desconhecido como se este não existisse e por
outro lado, numa ansiosa fantasia que, ao contrário, faz com que se vejam grandes
perigos levando ao terror. Assim, a sociedade secreta parece perigosa meramente em
virtude do segredo. É impossível saber se uma certa associação virá um dia a usar as
suas energias e os seus recursos em princípio legais, com propósitos indesejáveis : daí a
suspeita e o medo que os poderes centrais votam a qualquer forma de associação dos
seus súditos.

Com relação a grupos que têm como princípio a ocultação, a suspeita que recai sobre os
perigos desse segredo ainda é maior. As Sociedades Orangistas que existiram na
Inglaterra no século XIX com objetivo de reprimir o catolicismo, evitavam qualquer
discussão pública trabalhando sempre em segredo, através de relações e
correspondências pessoais. Foi justamente esse comportamento secreto que as fez
parecer perigosas: suspeitou-se de que “homens que evitavam expor-se à opinião
pública, viessem a tentar um golpe de força”. Só por causa do seu segredo, as ordens
secretas se afiguram demasiadamente próximas de uma conspiração contra os poderes
existentes.Mas se trata de uma suspeita exacerbada que em geral as associações
despertam no mundo da política, como bem mostra o exemplo seguinte. As guildas
germânicas mais antigas ofereciam aos seus membros uma proteção legal efetiva, assim
substituindo a proteção que viria do Estado. Por isso, os reis dinamarqueses as
favoreceram, vendo nelas um suporte à ordem pública. Por outro lado, pela mesma
razão, as guildas foram consideradas competidoras diante do Estado e os seus capítulos
franceses condenados como conjurações sediciosas . A sociedade secreta é considerada
uma inimiga do poder central a tal ponto, que se qualifica como tal qualquer associação
política indesejável.

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