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Morte e conflitos sociais na Jamaica escravista

Cláudia Rodrigues

BROWN, Vincent. The Reaper’s Garden: Death and relações de pertença grupais, as hierarquias sociais
Power in the World of Atlantic Slavery. Massachusetts/ e a riqueza se manifestavam – não só entre negros
London: Harvard University Press, 2008. e “brancos”, mas também no interior de cada um
destes grupos –, potencializando conflitos.
Até que ponto a morte e seus significados Através de uma narrativa fluente, empirica-
podem ser centrais tanto para a manutenção da mente embasada, sensível e politicamente enga-
ordem como para os conflitos sociais? Em Reaper’s jada – o que não prejudica a leitura em nenhum
Garden, Vincent Brown consegue demonstrar esta momento –, Brown demonstra ao longo de sete
possibilidade. Segundo ele, os indivíduos atri- capítulos que as atitudes diante da morte afetaram
buem profundo significado político às crenças e intensamente a história dos vivos na Jamaica escra-
práticas associadas à morte, relacionando-as a dis- vista. E este é justamente um dos motivos pelos
putas por objetivos específicos, no que denomi- quais o texto prende a atenção do leitor. Por dife-
nou de política mortuária. O autor parte da cons- rentes e inusitados caminhos, o autor consegue
tatação de que as altas taxas de mortalidade têm expor características essenciais àquela sociedade: de
sido amplamente reconhecidas – e Brown se dá ao que modo os indivíduos formularam suas relações
direito de não apresentá-las – como um dos fato- com os mortos; como crenças e práticas mortuá-
res mais marcantes das sociedades escravistas colo- rias responderam a mudanças demográficas, socio-
niais e que pouco se sabe sobre suas implicações econômicas, políticas e religiosas; de que maneira
sociais e políticas. Diante disto, propõe-se a inves- as relações com os mortos estiveram embutidas em
tigar de que forma a morte moldou o cotidiano conflitos políticos; e como as políticas mortuárias
em sociedades escravistas e como a população sim- moldaram o curso da história jamaicana – e por
bolizou as atitudes diante da morte em disputas que não, do próprio Império britânico –, haja vista
por autoridade, moralidade, memória, proprie- que as relações com os mortos se fizeram presen-
dade, território e pertences. tes em conflitos, rebeliões e até mesmo na polí-
Para desenvolver sua argumentação, analisa tica parlamentar. Sobre este aspecto, por exemplo,
o caso da Jamaica no período escravista – a colô- o Capítulo V (The soul of the Britsh Empire) exa-
nia mais importante do Império britânico – entre mina como as mortes violentas de escravos – em
o século XVIII e o início do XIX. Apresentando especial, o caso Zong, em 1781, quando o capi-
altos índices de mortalidade, era reconhecida na tão de um navio negreiro resolveu lançar ao mar
época como o “cemitério dos europeus”. O autor os africanos doentes e fracos, diante de uma epi-
se debruça, então, sobre o cenário ideal para uma demia, para não depreciar a “carga” – influencia-
análise que associa morte, poder e escravidão, ram daí por diante o desenvolvimento do movi-
demonstrando no Capítulo I (World of wealth and mento antiescravista entre os britânicos. Servindo
death) que a onipresença da morte abrangia todos de instrumento retórico aos abolicionistas, o caso
os segmentos sociais, determinando a constante e a temática da morte potencializaram as lutas pelo
reposição tanto de cativos – através do lucrativo fim do tráfico atlântico (1807) e pela abolição da
tráfico atlântico –, como de europeus – por meio escravidão (1838), tendo sido usados de diferen-
tes formas enquanto eficazes símbolos das críticas
do constante fluxo migratório em busca de fortuna
abolicionistas à “decadência moral” daquele Impé-
e enriquecimento rápido. Apesar de seu domínio
rio escravista. Mas, interessante também é consta-
universal naquela sociedade, podemos observar no
tar que a mortalidade escrava se transformou no
segundo capítulo (Last rites and first principles) que
campo temático no interior do qual não só os abo-
a morte não igualava, sendo os ritos fúnebres um
licionistas, mas também os escravistas procuraram
dos caminhos através dos quais as fronteiras e as
defender seus pontos de vista.

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Morte e conflitos sociais na Jamaica escravista
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Em termos metodológicos, Brown fez um ram para a América, Brown enfatiza a criatividade
bom uso de variadas fontes discursivas, que lhe cultural dos escravizados. Assim, no Capítulo VI
pareceram díspares e fragmentadas, mas que jus- (Holy ghosts and eternal salvation) analisa como a
tamente por isso conferiram riqueza à sua análise. adaptação do cristianismo também se fez segundo
Através de uma meticulosa pesquisa no rico acervo os interesses básicos dos negros na associação da
documental sobre a Jamaica escravista – diários, morte e dos espíritos às tensões políticas da escra-
relatos de viajantes, crônicas, apontamentos paro- vidão. A mensagem cristã de igualdade no além,
quiais, registros das fazendas, atas parlamentares, transposta para a esfera terrena (devido à forte
imagens, autobiografias de ex-escravos, literatura, vinculação que os africanos estabeleciam entre
transcrições tumulares, testamentos etc. –, o autor mundo espiritual e o imanente), associava os hor-
conseguiu identificar as mais diretas e indiretas rores da escravidão aos temores do Inferno. O cris-
referências à morte, aos mortos e às visões sobre tianismo, portanto, foi utilizado como poderosa
o além-túmulo entre os livres e, principalmente, arma para o movimento por reformas políticas, ao
entre os cativos. Neste sentido, o belo Capítulo ponto de convertidos ao protestantismo terem se
IV (Icons, shamans and martyrs) demonstra de tornado importantes líderes na luta contra a escra-
que forma senhores e escravos tentaram apoiar vidão. Brown examina a oposição de proprietá-
sua autoridade na Jamaica tendo como base uma rios e missionários aos rituais funerários africanos
conexão com o transcendental, conferindo signi- por se constituírem em ocasião para o ajunta-
ficado sobrenatural a assuntos do mundo terreno. mento de centenas de escravos à noite, distantes
Na tentativa de controlar as práticas de suicídio do olhar senhorial, possibilitando-lhes a articula-
entre os cativos – utilizadas como um recurso para ção de revoltas. Aos missionários evangélicos, tais
escapar da escravidão e reencontrar os ancestrais práticas repugnavam por apresentarem rituais e
–, proprietários de escravos aterrorizavam-nos por concepções divergentes das cristãs, tais como as
meio de mutilações e da exposição pública de par- práticas divinatórias sobre caixões, as inquirições
tes dos cadáveres para demonstrar que os suici- espirituais aos mortos, os sacrifícios de animais e
das não haviam “retornado” para a África, como as oferendas sobre as sepulturas. Daí, as tentativas
se acreditava, uma vez que suas cabeças estavam de intervenção política e religiosa que seriam con-
ali expostas. Com isso, os senhores tentavam dis- duzidas no processo de conversão, mas que nem
seminar a ideia de punição vingativa aos espíri- sempre foram controladas pelas autoridades.
tos dos cadáveres de rebeldes e suicidas. Em con- Procurando ir além de uma história cultural
traposição, Brown demonstra como a tradicional da identidade, Brown demonstra que as práti-
crença nos espíritos levava os escravos a fazer uso cas culturais, em especial as relacionadas à morte,
dos mortos a seu favor, provocando a autoridade representaram um significativo papel na história
política e senhorial, recorrendo a práticas xamâ- política da escravidão. Ele, de fato, consegue con-
nicas no contato com o mundo dos mortos, para vencer o leitor de que as relações dos vivos com a
obter a proteção para revoltosos, bem como con- morte e os mortos transformaram o transcenden-
trolar as forças consideradas malévolas dos espí- tal em instrumento para conflitos terrenos. Três
ritos errantes que pudessem causar desarmonia à exemplos são significativos.
comunidade cativa. No Capítulo III (Expectations of the death), ao
Um dos méritos da obra de Brown é a forma analisar as expectativas de brancos e negros em
como se insere teoricamente no conjunto dos tra- torno da morte, destaca que se tratava de uma oca-
balhos produzidos acerca da escravidão atlântica. sião para se (re)afirmar fortunas e posição social
Situando-se na esteira das pesquisas que seguiram através dos legados. Se os brancos buscavam per-
a advertência de Sydney Mintz e Richard Price petuar suas linhagens por meio da transmissão
(The birth of African-American culture, 1976) sobre de heranças, os cativos também o faziam. Ape-
a necessidade de se examinar cuidadosamente as sar dos limites jurídicos impostos pela sociedade
formas pelas quais a vida material moldou a evolu- escravista – proibição da redação de testamen-
ção das crenças e práticas que os africanos trouxe- tos cartorários aos cativos –, a morte proporcio-

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nava ganhos para alguns escravos: pela obtenção plo das concepções acerca da morte e dos mortos –
da alforria e de recursos financeiros, após o faleci- que Brown apenas cita rapidamente no Epílogo. É
mento dos senhores, ou pelo recebimento de lega- fato que no Capítulo VI, diferentemente de Sweet,
dos de companheiros e parentes cativos que tives- Brown defende a ideia de uma “crioulização do
sem acumulado com a venda dos produtos de sua mundo espiritual”, ao analisar o processo de con-
roça. Neste ponto, Brown apresenta uma bela aná- versão de escravos ao cristianismo e a utilização da
lise de como alguns escravos conseguiram trans- morte para transformar as tradicionais crenças afri-
mitir, oralmente e em “testamentos” anotados canas nos espíritos e no poder dos mortos. Para isso,
pelos senhores, seus pertences e roças, envolvendo recorre a John Thornton e a sua tese acerca do cris-
negociações e conflitos pela posse de lotes de terra. tianismo africano (Africa and Africans in the making
No Capítulo VII (Gardens of remembrance) des- of the Atlantic world, 1992) para investigar o pro-
creve, com primor, como os rebeldes usurparam cesso de incorporação do cristianismo pelos negros,
o improvisado caixão de um membro das tropas no contexto das transformações sociais, demográfi-
escravistas para sepultar o cadáver de um coronel cas e políticas das primeiras décadas do século XIX.
negro envolvido na Guerra Batista, em 1831, con- Mas, ainda assim, poderia ter oferecido ao leitor
siderada a maior rebelião negra a ameaçar a colô- interessado na diáspora africana no Novo Mundo
nia britânica, e que precipitou a abolição da escra- e nas atitudes africanas diante da morte uma exce-
vidão, sete anos mais tarde. No mesmo capítulo, lente oportunidade para acompanhar a discussão
Brown destaca a mobilização de memórias indivi- sobre a transposição das crenças africanas – a exem-
duais e coletivas – tanto por escravos, quanto por plo da persistente crença nos espíritos dos mortos
livres – no sentido de que os feitos dos mortos fos- – para a América, no contexto da complexa con-
sem empregados para legitimar disputas, durante versão ao cristianismo. O diálogo com Sweet, por-
e após a escravidão. São exemplos os monumentos tanto, poderia ressaltar divergências e aproximações
funerários, como instrumentos de perpetuação de entre duas análises recentes que enfocam o grande
uma determinada versão sobre os conflitos entre significado dos mortos, dos espíritos e dos ances-
proprietários e escravos (apresentando os senho- trais para africanos e seus descendentes, no bojo
res mortos como mártires e benfeitores daquela das análises sobre o processo de transformações cul-
sociedade) e, do lado dos cativos, a reverência aos turais dos africanos nas Américas. Seria, também,
locais de sepultura dos entes queridos e a insistên- uma excelente oportunidade para situar tais abor-
cia em permanecer próximo a eles, recusando-se a dagens no já clássico debate iniciado por Mintz e
abandonar seus lotes e casas. De uma sensibilidade Price acerca da criolização da cultura negra.
ímpar e, ao mesmo tempo, convincente histori- Esta ausência, no entanto, não tira o mérito do
camente, este último capítulo também nos mos- trabalho de Brown, que nos convence da viabili-
tra, por um lado, como os negros usaram os ritu- dade de se pensar a política mortuária vivenciada
ais fúnebres para literalmente enterrar a escravidão na Jamaica escravista como lócus de análise para
no dia marcado para a sua extinção, construindo as implicações políticas das práticas culturais e –
túmulos e epitáfios para ela, e por outro, analisa como o autor muito bem defende – para uma his-
os processos de afirmação e de esquecimento da tória material do imaginário sobrenatural. Além
memória, ao examinar os diferentes significados disso, em vários momentos, o autor nos brinda
e destinos dados às sepulturas de um importante com instigantes reflexões sobre as concepções e
membro da elite jamaicana, de um missionário atitudes diante da morte no século XVIII, princi-
antiescravista e de um rebelde negro. palmente as de matriz protestante – pouco investi-
Mas, a forma como Brown tece seus argumen- gadas –, lançando luz também sobre a história da
tos também nos leva a cogitar se sua análise não morte no Ocidente e não apenas sobre a história
poderia ter avançado. Um caminho seria a interlo- social e cultural da escravidão e da diáspora afri-
cução com o trabalho de James Sweet (Recreating cana na Época Moderna. Por todos estes motivos,
África, 2003) – que defende que os negros man- Reaper’s Garden é um livro que não se pode deixar
tiveram a essência africana nas Américas, a exem- de ler e que, oxalá, venha a ser traduzido.

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