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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

ESCOLA DE MÚSICA
MESTRADO EM MÚSICA

ASPECTOS MUSICAIS NO TOLÊ FULNI-Ô: EVIDENCIANDO A IDENTIDADE


ÉTNICA

DISSERTAÇÃO SUBMETIDA AO PROGRAMA


DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA, EM
ATENDIMENTO PARCIAL AOS REQUISITOS
PARA O GRAU DE MESTRE EM MÚSICA,
CONCENTRAÇÃO EM ETNOMUSICOLOGIA

ROMÉRIO HUMBERTO ZEFERINO NASCIMENTO

SALVADOR, BAHIA
JULHO DE 1998
N244t Nascimento, Romério Humberto Zeferino
Tolê Fulni-ô: evidenciando a identidade étnica.
Salvador: UFBA-EMUS, 1998.
188 pp.

1. Índio, 2. Etnomusicologia, 3. Música,


4. Antropologia, 5. Identidade Étnica,
6. Organologia, 7. História, 8. Partitura.

CDD 780.89

Copyright © 1998 - por Romério Humberto Zeferino Nascimento. Todos os direitos


reservados.
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
ESCOLA DE MÚSICA
MESTRADO EM MÚSICA

ASPECTOS MUSICAIS NO TOLÊ FULNI-Ô: EVIDENCIANDO A IDENTIDADE


ÉTNICA

ROMÉRIO HUMBERTO ZEFERINO NASCIMENTO

SALVADOR, BAHIA
JULHO DE 1998
ii

Membros da Banca

Kilza Setti Castro Lima

Manuel V. Ribeiro Veiga Jr.

Angela Elizabeth Lühning, orientadora


Epígrafe

Prestem atenção meus amigos Hoje nos restam ainda


Que agora vou lhes falar algumas tribos valentes
Coisas que toda a imprensa que com garra, luta e força
não costuma divulgar os bravos sobreviventes
e diz respeito às gentes mantém viva sua cultura
de costumes diferentes seus costumes, suas crenças
e hoje são nomes de ruas exercitando suas diferenças
viviam com as peles nuas apesar da sociedade envolvente
nestas terras de cá
Muito sangue, muitas vidas
Onde hoje só o asfalto a cultura branca exterminou
Concreto, ferro e cimento em nome de um progresso
Constituem a paisagem de um rei, ou de um salvador
Num tom mórbido e cinzento carniceiros e assassinos
Pés velozes em viagens recebem aplausos e louvor
Por entre densas florestas tornaram-se heróis da nação
Fazendo grandes e belas festas apesar de que as suas mãos
e daquilo quase nada resta só produzem miséria, morte e dor
pois morreram por fuzilamento

Por volta de cem milhões


de índios aqui viviam
dos quais a grande maioria
foram massacradas por canhões
e à sombra da cruz e da espada
se formou uma estrada
triste, sinistra e esquálida
na qual caiam metralhadas
as vidas dos valentes dos sertões

Banda C.U.S.P.E., Resistência Indígena


ÍNDICE

LISTA DE ILUSTRAÇÕES.................................................................................................vi

AGRADECIMENTOS .......................................................................................................viii

GLOSSÁRIO.......................................................................................................................xii

RESUMO.............................................................................................................................xv

ABSTRACT........................................................................................................................xvi

PRELÚDIO: UM SERTÃO NORDESTINO COM OUTRO SOTAQUE........................xvii

CAPÍTULO

1. INTRODUÇÃO.................................................................................................1

PARTE I: ASPECTOS ANTROPOLÓGICOS E ETNOMUSICOLÓGICOS

2. REFERENCIAL TEÓRICO............................................................................11

2.1 Contribuições antropológicas....................................................................11


2.2 Contribuições etnomusicológicas ............................................................21

3. HISTÓRICO DO GRUPO: SOBRE NOMES E TERRAS.............................27

4. UMA VIVÊNCIA INTRA E INTERÉTNICA................................................40


iv

PARTE II: A MÚSICA NO TOLÊ

5. FESTAS NA ALDEIA.....................................................................................58

5.1 Festa da Padroeira.....................................................................................58


5.2 Ouricuri, um enfoque extra-ritual.............................................................74
5.3 Sobre a Padroeira e o Ouricuri..................................................................84

6. O TOLÊ............................................................................................................87

7. ASPECTOS ORGANOLÓGICOS NO TOLÊ FULNI-Ô...............................95

8. RUMO A UMA ANÁLISE DA MÚSICA NO TOLÊ FULNI-Ô.................103

8.1 Um cântico sem letra...............................................................................103


8.2 Uma ponte para a relação interétnica......................................................105
8.3 Quem participa?......................................................................................106
8.4 Sobre as performances............................................................................107
8.5 Observando cada exemplo musical.........................................................109
8.6 Aonde queremos chegar?........................................................................117

9. CONCLUSÃO...............................................................................................119

ANEXO I: ENTREVISTA E COMENTÁRIOS

1ª PARTE.............................................................................................................124

2ª PARTE.............................................................................................................126

ANEXO II: AS TRANSCRIÇÕES

TRANSCRIÇÃO MUSICAL 1............................................................................129

TRANSCRIÇÃO MUSICAL 2............................................................................139


v

TRANSCRIÇÃO MUSICAL 3............................................................................153

TRANSCRIÇÃO MUSICAL 4............................................................................164

TRANSCRIÇÃO MUSICAL 5............................................................................178

TRANSCRIÇÃO MUSICAL 6............................................................................179

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................................180
Lista de Ilustrações

Ilustração 01. Localização do território 27


Fulni-ô

Ilustração 02. Rio Ipanema 28


Ilustração 03. Panorama geral da região 29
Ilustração 04. Índia Valentina 30
Ilustração 05. Antiga Aldeia Fulni-ô 34
Ilustração 06. Manoel Francisco Ribeiro 36
Ilustração 07. Índio Joventino 38
Ilustração 08. Distribuição de carne 41
Ilustração 09. Iudete Correia de Amorim 42
Ilustração 10. Procissão da Nossa Senhora 46
da Conceição acompanhada

do Tolê

Ilustração 11. Procissão da Nossa Senhora 58


da Conceição

Ilustração 12. Rua da Aldeia do Ouricuri 59


Ilustração 13. Busto do Padre Alfredo 60
Damaso

Ilustração 14. Nossa Senhora da Conceição 62


Ilustração 15. Apresentação da Banda de 65
Pífano

Ilustração 16. Índias conduzindo os cânticos 67


vii

na Festa da Padroeira

Ilustração 17. Apresentação do Tolê 68


Ilustração 18. Apresentação do Tolê 69
Ilustração 19. Líderes celebrantes da missa 71
Ilustração 20. Líderes celebrantes da missa 72
Ilustração 21. Família saindo da Aldeia Sede 75
para a Aldeia do Ouricuri

Ilustração 22. Aspectos físicos da Aldeia

Xixia-khla

Ilustração 23. Interior da Casa das Mulheres,

no Ouricuri

Ilustração 24. O Juazeiro Sagrado e a Casa

dos Homens

Ilustração 25. Missa de abertura do Ouricuri

Ilustração 26. Apresentação do Grupo de

Tolê

Ilustração 27. Descrição gráfica do Buzo e

do Maracá

Ilustração 28. Índio Manoel Mattos

segurando dois Buzos

Ilustração 29. Índio Aristides Leite

segurando um Maracá
Agradecimentos

Cheguei até aqui porque instituições, pessoas e divindades, de diversas formas,

atrelaram-se comigo na construção deste trabalho. Foram dias e mais dias de aprendizados:

acadêmico, onde tenho compreendido que a autodisciplina é um fator imprescindível para

que cada etapa posta possa ser bem atingida; humano, em que pude melhorar os meus

conceitos do que é ser companheiro, do que é ser pai e mãe, do que é ser amigo, do que é

ser irmão, do que é ser educador e educando, do que é ser pesquisador e pesquisado, e

desses mesmos conceitos abstrair novas formas de convívio com o semelhante e o

diferente; e espiritual, cuja sensibilidade de seres metafisicamente existentes, levou-me a

compreender na existência de um Deus fragmentado de poder, onde tais domínios e presenças

refletem-se ou corporificam-se em coisas telúricas.

Diante disto, quero agradecer:

- A todo um povo brasileiro que com seus impostos possibilita a existência de

instituições nas quais tenho trabalhado ao longo desta pesquisa, tais como: CNPq, CAPES,

UFPB e UFBA. E a essas mesmas instituições agradeço as bolsas de pesquisas cedidas,

sem as quais seria praticamente impossível chegar até aqui.

- Ao Mestrado em Música da Universidade Federal da Bahia por todo apoio

com materiais de registro etnográfico e incentivos para a participação de congressos, onde

estes últimos muito me ajudaram na definição do que viria a ser este trabalho.

- A Professora e Orientadora Dra. Angela Elizabeth Lühning, que além de

contribuir com cada etapa de construção deste trabalho e com as disciplinas dadas durante

o mestrado, tem ensinado-me a ver e viver no mundo sem muitos anseios consumistas, os

quais estamos sempre inclinados a viver.


ix

- Ao Professor Dr. Manuel Veiga, que me ajudou a não aceitar tudo o que

dizem e, desta forma, me ensinou a levantar questionamentos sobre tudo e todos, e,

sobretudo, defender, o meu ponto de vista. Devo-lhe ainda a gratidão da problematização

do que vem a ser música. Problematização que se por um lado, não me permitiu ter

encontrado respostas universais e ter colocado em cheque a própria disciplina da qual faço

parte (a etnomusicologia), por outro, contribuiu para que eu seguisse com uma reflexão

teórica presente neste trabalho.

- Ao Professor Dr. Jamary Oliveira, Coordenador do Mestrado em Música, por

mostrar-me os caminhos que devem ser seguidos para a realização de um bom trabalho

acadêmico.

- A Anorita, ex-secretária do Mestrado em Música, por ter-me dedicado uma

valiosa atenção durante todo o período do curso.

- Aos meus amigos, de mestrado, Albergio e sua esposa Mírian, Luciano e família,

Maurílio, Regina e família, Ricardo, Tom K, Vladimir e sua esposa Jane, que muito me

ajudaram com suas opiniões e carinhos.

- A Professora Otília Telles Storni, do Departamento de Ciências Sociais da

Universidade Federal da Paraíba (Campus I), que me ajudou a dar os primeiros passos no

campo da etnografia e etnologia. E ao grande mestre e Professor Antônio Gomes, também

da mesma instituição e departamento, pelo grande incentivo ao meu trabalho.

- Ao amigo e Professor José Mário, do Departamento de Letras da

Universidade Federal da Paraíba (Campus II), pela revisão gramatical do português.

- A Ivonildes e Torquato por cederem sua casa para eu morar durante boa parte

do Mestrado. E a Dona Iaia, mãe de Ivonildes, pelo convívio diário, com a qual extrai

muitas lições de vida.


x

- A teatróloga e arquiteta Luciana Dias pela organização das fotografias e

figuras presentes neste trabalho. E, acima de tudo, por sua grande amizade refletida em seu

carinho, atenção e companheirismo.

- Ao meu tio Dilvan e minha tia Socorro, que juntamente com sua família

hospedaram-me em sua casa durante todo o curso de graduação até o meu ingresso neste

mestrado.

- Ao Padre Zé Luiz, do município de Águas Belas, pelas extensas horas que

passamos conversando sobre o viver diário dos índios Fulni-ô.

- A Professora e Pesquisadora Januacele pela companhia, na qual tive a feliz

oportunidade em conhecer as serras, as cachoeiras, o rio Ipanema, a vida Fulni-ô e águas-

belense.

- A todos os índios Fulni-ô, que me suportaram enquanto observador de suas

relações sociais. Mais precisamente quero agradecer: Ao Cacique João Pontes; ao Pajé

Cláudio; a Ivonildes e família; a Valério e família; a Léia e família; ao Sr. Manoelzinho (In

Memoriam); a Joventino e família; ao Sr. Nézio; ao Sr. Matinho; ao Sr. Fipa; ao Sr. Zé

Domingos (In Memoriam); as irmãs Ivolene, Sônia, Zélia e família; a Toinha; a Abidom; a

Dona Valentina, matriarca da aldeia Xixia-khla; ao grupo principal do Tolê Fulni-ô; aos

grupos Unakesa, Fuly e Fetxa de apresentação musical Fulni-ô. Quero dispensar especial

gratidão ao casal Fulni-ô Cícero Ferreira de Sá e a Marilena Araújo de Sá, que, juntamente

com seus filhos, me acolheram em sua casa durante todas as minhas viagens para a aldeia,

repartindo, desta forma, suas comidas, seus leitos e suas atenções.

- A minha irmã Goretti, que através de sua simples existência ajuda-me a

conviver e amar pessoas com uma visão de mundo diferente da minha.

- Ao meu cunhado Tony, ao meu tio José e minha tia Leolina, por depositarem

seu apoio na reta final deste trabalho.


xi

- Ao meu irmão Rogério, Professor do Departamento de Ciências Sociais da

Universidade Federal da Paraíba (Campus II), pelo companheirismo diário, através de

longos bate papos, que têm enriquecido grandemente as minhas reflexões e ações para com

a construção de um mundo mais digno.

- Ao meu Pai José Severino do Nascimento, que, apesar de não estar mais aqui

entre nós para compartilhar comigo mais uma etapa de minha vida, me ensinou a encarar o

mundo com coragem, sem covardia ou lamentações vagas.

- A minha mãe Luzinete Zeferino Nascimento por ser a minha eterna torcedora

e amiga. Sem ela eu jamais teria chegado aonde cheguei, devo-lhe toda a minha vida.

Por fim, agradeço ao ar, ao sol, a chuva, a lua, as estrelas, a terra, as pedras, as

plantas, aos rios, aos mares e aos animais, todos corporificações Divinas presentes

diariamente em minha vida.


Glossário1

Bambu - Planta arborescente, da família das Gramináceas, em que os Fulni-ô utilizam a

casca do seu colmo como material para o fabrico da palheta do taquari.

Cabaça - Fruto do cabaceiro amargoso (Lagenaria vulgaris), que, preenchido com

algumas sementes e interligado a um pedaço de pau maciço, é utilizado como

instrumento musical pelos Fulni-ô.

Canela de Veado - Árvore de grande porte cuja madeira é de lei. Os Fulni-ô a utiliza para

fabricar o corpo do Buzo.

Crauá - Também conhecida como caroá, é uma planta da família das bromeliáceas, de

onde os Fulni-ô extraem uma tinta de cor vermelha para pintar o Buzo.

Cuité - (Do Tupi kuya e'tê) - Fruto do cuitezeiro (Crescentia cujete), que, preenchido com

algumas sementes e interligado a um pedaço de pau maciço, é utilizado como

instrumento musical pelos Fulni-ô.

Facheiro - Também conhecido por facheiro preto (Cereus squamosus), é uma planta da

família das cactáceas em que os Fulni-ô utilizam para fabricar o corpo do Buzo.

FUNAI - Fundação Nacional do Índio.

Juazeiro - (Zizyphs joazeiro) Árvore dos sertões brasileiros, armadas de espinhos, de

flores pequenas, frutos amarelos e folhas procuradas pelos gados. Dentro da aldeia

do Ouricuri possui um Juazeiro Sagrado no centro do terreiro da casa dos homens.

Vale salientar, que este Juazeiro não possui espinhos.

Meiru - É a semente do meiru-de-preto, planta da família das anonáceas, que os Fulni-ô

utilizam dentro do Maracá.

1
Utilizamos como auxílio bibliográfico Corrêa (1926, 1; 1931, 2 e 3; 1969, 4; 1974, 5),
xiii

Mulungu - Árvore de porte alto, da família das Leguminosas-Papilionáceas, que produz

uma semente do mesmo nome que os Fulni-ô usam dentro do Maracá.

Ouricuri - (Do Tupi urucu'ri) - Também chamada de aricuri ou aricury, é uma espécie de

palmeira com mais de10 m de altura. Suas folhas são utilizadas, entre os Fulni-ô,

como meio de sobrevivência no fabrico de artesanato. Até os anos cinqüenta estas

folhas eram usadas como cobertura de muitas casas do grupo. Pode também

referir tanto a Aldeia sagrada em que os Fulni-ô passam reunidos durante o final

de agosto ou começo de setembro até o início de dezembro, como também as

práticas religiosas feitas nesta mesma Aldeia.

Piriquiti - (Do Tupi piriki'ti) - Semente da erva piriquiti (Canna glauca) que os Fulni-ô

usam dentro do Maracá.

Sabugo de Milho - Espiga do milho (Talysia mays) que, debulhada, serve de base para

apoiar o taquari.

SPI - Serviço de Proteção ao Índio.

Taboca - (Do Tupi ta'boca) - Pedaço de madeira cavada, geralmente bambu, que é

utilizado pelos Fulni-ô como base para colocar velas.

Taquari - (Do Tupi takwa'ri) - O mesmo que taquara, nome dado a diversas gramíneas e a

vários tipos de bambu, onde o seu caule é oco. Os Fulni-ô utilizam como corpo do

instrumento de sopro, de palheta simples, também chamado de taquari,

Tauá- (Do Tupi ta'wa) - Espécie de argila vermelha em que os Fulni-ô utilizam para pintar

seus corpos e alguns instrumentos musicais, como por exemplo o Maracá.

Xixia-khla - Palavra da língua yaathê que significa caatinga. Os Fulni-ô a utilizam para

referirem-se a um pequeno aldeamento do grupo localizado a cerca de 2 km da

Aldeia Sede. Esta aldeia também é conhecido pelo nome de Cipriano.

Ferreira (1975) e Almeida (1984).


xiv
Resumo

Os índios Fulni-ô, antigos moradores no sertão pernambucano do Nordeste

brasileiro, têm procurado de diversas formas conviver com os diferentes modos de

dominação cultural e econômica presentes na sociedade contemporânea. Os mecanismos

de defesa podem ser percebidos dentro de um arcabouço cultural contidos entre os Fulni-ô.

Todavia, buscamos nos aspectos musicais manifestos dentro do Tolê Fulni-ô

algumas respostas que apontem para uma particularidade étnica do grupo. Para chegarmos

a tais respostas, nos propomos a abordar: a) algumas vertentes etnomusicológicas e

antropológicas que lidem com o fazer musical e com alguns conceitos de grupos étnicos,

respectivamente; b) os aspectos da vida Fulni-ô, enfatizando suas histórias internas e com a

sociedade envolvente; c) a importância da organização social para a realização deste

evento no que diz respeito à conduta dos próprios Fulni-ô como também da conduta dos

membros do Tolê; d) e, sobretudo, o Tolê Fulni-ô nos seus aspectos musicais.

Com isto, podemos constatar na conclusão que a música contida no Tolê

expressa toda uma especificidade na identidade étnica dos Fulni-ô e também funciona

como um elo de comunicação com outras sociedades. Isto quer dizer que ao mesmo tempo

em que a música possui códigos gramaticais próprios do grupo, interligados a toda uma

rede social Fulni-ô, ela constrói limites com as demais sociedades que não fazem parte do

seu contexto étnico, sendo estes limites percebidos através da própria estrutura musical e

do contexto social presentes no Tolê.

O trabalho vem sendo complementado com transcrições musicais, fotos,

glossário e transcrições de entrevistas.


Abstract

The Fulni-ô indians, former inhabitants in the inward areas of the state of

Pernambuco in the Northeast of Brazil, have been searching different ways to live with the

different cultural and economic domination processes in the contemporary society. The

mechanisms utilized in their defense can be noticed within a cultural skeleton that is

present among the Fulni-ô tribe.

We try to find in the musical aspects manifested inside the Tolê Fulni-ô some

of the answers that can point out to an ethnic particularity of the group. Reaching these

answers require us to be willing to observe: a) some ethnomusical and anthropologic areas

that deal with the musical aspect and some concepts of ethnic groups, respectively; b) the

aspects of the Fulni-ô life with an emphasis on the inside stories and along with the

surrounding society; c) the importance of the social organization for the realization of such

an event concerning the conduct of the Fulni-ô themselves as well as the conduct of the

members of the Tolê; d) and above it all, the Tolê- Fulni-ô in its musical aspects.

Through all of this we can come to the conclusion that the music inside the

Tolê expresses a singularity in the ethnic identity of the Fulni-ô tribe and it also works as a

link to communicate with other societies. It all means that at the same time that the music

contains grammatical codes pertaining to the group, interlinked to an extensive Fulni-ô

social web, it establishes limits with the other societies that are not within its ethnical

context. These limits can be noticed through the musical structure itself and the social

context present in the Tolê.

The work is complemented with musical transcriptions, pictures, glossary and

transcriptions of interviews.
Prefácio: um sertão nordestino com outro sotaque

Devo traçar alguns dos caminhos que levaram à construção desta dissertação.

Com essas mesmas veredas e estradas chegar à minha vivência com os índios Fulni-ô: os

primeiros contatos, as viagens, os anfitriões, o dia a dia na aldeia, a vegetação, o clima, as

serras, enfim, um sertão nordestino com outro sotaque e com olhares direcionados a mim

que se traduziam quase sempre em “quem é este intruso?”.

Meu encontro com os Fulni-ô deu-se no primeiro semestre de 1990, quando um

time de futebol desse grupo indígena veio da cidade do Recife jogar contra o Trezinho,

time de futebol juvenil da cidade de Campina Grande, minha cidade natal na Paraíba. Até

esse momento não havia conhecido nenhum índio de “carne e osso”, apenas os índios de

filmes estadunidenses, de bang bang, ou de alguns documentários e fotos sobre os índios

do Xingu. Lembro-me que quando criança tinha uma forte admiração pelos índios dos

filmes estadunidenses, principalmente os da série de filmes em torno do polêmico General

Custer. Embora esses índios fossem invariavelmente apresentados como bandidos, cansei

de pedir a minha mãe que fizesse roupas desses grupos para eu vestir. Até hoje espero tais

vestes!

Como minha curiosidade em conhecer qualquer índio era muito grande fui ao

encontro do time indígena, quando o mesmo estava hospedado em um convento de padres

na cidade de Lagoa Seca – PB – e sendo recebido por várias pessoas da região que talvez

estivessem com a mesma ansiedade presente em mim.

Embora bastante ansioso em conversar com qualquer um daqueles hóspedes,

tive uma certa dificuldade de aproximar-me deles pelo fato de estarem muito sérios e
xviii

falarem outra língua. Vale salientar que o time de futebol estava acompanhado por um

grupo musical Fulni-ô composto por homens e mulheres.

Mesmo com toda dificuldade e constrangimento consegui conversar com

alguns índios Fulni-ô e dar início a uma amizade que perdura até hoje. Fiz perguntas

simples tais como o que comiam, como dormiam, como casavam, quais as dificuldades

sociais que passavam, entre outras. E neste emaranhado de perguntas, um tanto

indelicadas, fui convidado para ir às festas juninas da aldeia, que segundo os índios eram

as melhores que existiam. O índio Joventino, que estava acompanhando o time, deu-me o

endereço de uma professora de língua yaathê, a índia Marilena Araújo de Sá para quem

dias depois escreveria. Passados alguns dias, o convite para participar das festas juninas

estava sendo endossado com a carta de Marilena.

Em junho de 1990 juntei alguns trocados, que pouco ultrapassavam o valor das

passagens e fui para a aldeia, com um colega, conhecer os Fulni-ô. A chegada ao grupo foi

dada da melhor forma possível, parecia que já conhecia todos há muito tempo. Talvez

tenha sido nesta mesma data que se iniciou a minha observação da vida Fulni-ô. Pude

perceber suas farturas e misérias, suas desconfianças, a visão que tinham dos estranhos, as

mágoas com os diversos segmentos da sociedade nacional e, ao mesmo tempo, a espera

dessa mesma sociedade por uma solução para os seus problemas internos, a existência de

um segredo grupal o qual estranho nenhum poderia conhecer. Convivi com alguns gêneros

musicais tais como o forró e o coco de roda. Isto é, nestes primeiros contatos presenciei

um viver em coletividade que jamais tinha visto em qualquer outra “cidade”2 pequena do

interior nordestino, onde os mais velhos confundiam-se com os mais jovens nas

brincadeiras e danças naqueles momentos festivos.

2
Embora adiante venha a tratar de aldeia esta categoria espacial na qual os Fulni-ô vivem,
refiro-me a “cidade” pelo fato deste espaço social possuir uma infra-estrutura semelhante ao das cidades do
interior nordestino, tais como: casa em alvenaria, energia elétrica, água encanada, esgoto, clubes etc.
xix

Apesar daquele sertão nordestino ter uma vegetação de caatinga, um solo

arenoso, serras pedregosas, rios e riachos não perenes, uma economia praticamente rural

com criações bovinas, caprinas e ovinas e plantações de milho e feijão, além do artesanato,

que é uma das significantes fontes de renda Fulni-ô, o viver coletivo desse grupo dá um

caráter diferente, talvez mágico, a todos estes aspectos, o qual é intraduzível fora de sua

vivência diária.

Contudo, a minha observação de forma sistemática entre os Fulni-ô iniciou-se

em agosto de 1993, quando ainda estava fazendo o curso de Educação Artística,

habilitação em música, na Universidade Federal da Paraíba, através do

PIBIC/CAPES/UFPB e tendo como Orientadora da pesquisa a professora do Departamento

de Ciências Sociais, UFPB, Maria Otilia Telles Storni, com a qual engajei-me no projeto

"Fulni-ô: Ser ou não ser . . . índio”? Este projeto teve como pretensão encontrar os

principais elementos que compõem a identidade étnica Fulni-ô. Sendo a terra, o idioma e a

religião os elementos identificadores e agregadores do grupo, concluiu-se também que

existe um forte sentimento de orgulho entre os Fulni-ô a partir do momento em que

apresentam um viver cultural muito mais dinâmico e envolvente do que a sociedade não

índia vizinha. Este trabalho conceituou este orgulho como sendo "uma série de expressões

presentes constantemente no olhar, no falar e agir de cada membro do grupo". Concluiu-se

também que "o idioma [yaathê] é o veículo da indianidade Fulni-ô" e "a religião é a

essência da indianidade Fulni-ô".

Fiz parte também de um segundo projeto "Orgulho e Resistência Fulni-ô"3,

onde observei que a religião e o idioma são as principais fontes de motivação e reforço da

identidade étnica Fulni-ô.

3
Também aprovado pelo PIBIC/CNPq/UFPB em julho de 1994.
xx

Um terceiro projeto, "Música Ritual e Orgulho Fulni-ô",4 embora aprovado

pela mesma instituição, não foi realizado, no tocante ao cronograma de atividades, devido

à minha aprovação para cursar o Mestrado em Etnomusicologia. Durante esse curso dei

continuidade aos objetivos propostos neste projeto com a visita à aldeia nas festas juninas

de 1996.

Ao iniciar o curso de etnomusicologia passei a reformular e acrescentar todo

um material teórico que até então não tinha observado. Desta forma, os objetivos para o

estudo das manifestações musicais Fulni-ô foram também acrescentados a partir de um

novo enfoque etnomusicológico, com que até então não tinha me deparado de forma tão

profunda.

As circunstâncias que me levaram a construir todo um apanhado etnográfico

entre os Fulni-ô foram as mais diversas possíveis. As viagens, por exemplo, para chegar à

aldeia tanto podiam ser longas, quando fazia o trajeto João Pessoa – Campina Grande –

Caruaru – Garanhuns – Águas Belas (Município no qual está localizado o território Fulni-

ô), pois nem sempre as conduções estavam disponíveis em um horário simultâneo ao das

chegadas nas rodoviárias, como curtas, neste caso quando fazia o trajeto João Pessoa –

Recife – Águas Belas ou melhor ainda quando passei a fazer o trajeto Salvador – Águas

Belas. Vale salientar, que na maioria das vezes estavam comigo alguns equipamentos de

campo, principalmente quando passei a viajar de Salvador, ou seja, quando já estava

cursando este mestrado. Os equipamentos foram filmadora, tripé, gravador DAT,

microfone, máquina de fotografar etc., na sua maioria não pertenciam a mim e sim ao

mestrado de música da EMUS (UFBA).5

4
Também aprovado pelo PIBIC/CNPq/UFPB em julho de 1995.
5
Os materiais de gravação que utilizei na minha última pesquisa de campo (julho/1997), a qual
considero mais importante para o desenvolvimento final deste trabalho, foram: gravador DAT-CORDER
TCD-D3 (Walkman) da Sony, um microfone ECM-909A e o seu suporte MD Side Stereo, um tripé para
xxi

Outro fator circunstancial era a recepção na aldeia que algumas vezes tinha

uma acolhida bastante calorosa e outras não, pelo simples fato dos anfitriões Cícero

Ferreira de Sá, Marilena Araújo de Sá e família terem seus problemas corriqueiros de

qualquer família. E, por sua vez, os pesquisadores nem sempre sabem o melhor momento

de estar entre eles, acredito que só a prática ensina como deve ser o comportamento do

pesquisador entre seus informantes, ou melhor, seus professores.

Minha presença no dia a dia da aldeia Fulni-ô, ao longo desses anos, tem sido

um exercício constante na reelaboração daquilo que resolvi chamar de diferente e que,

muitas vezes, este mesmo diferente tornava-se igual ao que eu sempre fui no meu convívio

social. Embora esta semelhança social estivesse presente entre mim e eles, era bastante

visível a alteridade entre nós. Diferença esta que podia ser percebida nos olhares dos Fulni-ô

desconfiados com a minha presença enquanto pesquisador, afinal de contas à entrada de

vários pesquisadores entre os Fulni-ô deu-se de forma brutal e antiética, como exemplo

desta categoria de pesquisador não poderia deixar de citar Estevão Pinto – ao qual refiro-

me neste trabalho – que é consagrado pelos índios Fulni-ô como delator do segredo do

grupo. Pessoas como Estevão Pinto fizeram com que qualquer pesquisador entre o grupo

seja sempre visto com diversos olhares, sobretudo negativos.

E como a cultura “matriz” Fulni-ô é sempre envolta por uma cortina, como um

mecanismo de autodefesa dos bens sociais, tive inúmeras dificuldades em registrar as

apresentações musicais do grupo do ToleLha Fulni-ô – sobre as quais faço maiores

considerações no desenvolvimento deste trabalho, visto ser o principal objetivo de minha

observação. Estes obstáculos ocorriam por diversos motivos, tais como: as apresentações

estavam sempre interligadas aos cerimoniais religiosos e, portanto, de caráter secreto; por

ter um único dia fixo de apresentação para o público que não faz parte do grupo (Festa da

câmara de vídeo Photo Tripod PVG 135, gravador stereo TP-8S da Cassio, câmara de vídeo GR-AX650 da
xxii

Padroeira Nossa Senhora da Conceição); pelo fato de não poder conversar sobre algumas

gravações feitas no decorrer da pesquisa, quando fui impedido, algumas vezes, de

cantarolar os exemplos musicais no Tolê que havia gravado; e, sobretudo, pela minha

pouca convivência entre os Fulni-ô, que na maioria das vezes resultou em

constrangimento, com olhares ou palavras ríspidas em yaathê, ao fazer meus registros.

Mesmo com tantas desconfianças para comigo, enquanto pesquisador, creio

estar aprendendo a pisar no chão Fulni-ô e desta forma me livrando de algumas areias

movediças para onde a pesquisa de campo muitas vezes conduz o pesquisador. Embora,

não tenha apresentado cada diário de campo neste prólogo com todas as minhas emoções,

percepções, frustrações, avaliações, anseios in loco, basta para o momento às reflexões que

aqui faço, pois refletem parte do que tenho feito e aprendido entre os Fulni-ô.

JVC e máquina de fotografar F.3 (34 mm, foco livre) da Yashica.


1. Introdução

Os Fulni-ô, que têm o yaathê6 como língua materna, são povos que vivem

nestas terras brasileiras desde tempos imemoriais. Desde o século XVIII habitam o sertão

do atual estado de Pernambuco, no presente município de Águas Belas. Entretanto, sua

vida sociocultural é marcada intensamente pela presença da música, sendo o Tolê,7 nos

aspectos musicais de identificação do grupo, o elemento mais importante nas

manifestações culturais diante das sociedades estranhas à sua. Contudo, é de fundamental

importância, antes de adentrarmos em nosso principal objetivo, visualizarmos,

panoramicamente e de modo genérico a trajetória do índio durante estes cinco séculos de

contatos com uma sociedade colonizadora, para então melhor compreendermos o fator

musical com o qual temos trabalhado.

Desde a chegada dos europeus às terras do Novo Mundo, milhares de nações

indígenas, com exceções de algumas centenas, foram dizimadas. Das que desapareceram,

apenas algumas ficaram registradas nos escritos dos viajantes. Contudo, salientamos que

grupos indígenas são aqueles que “tendo uma continuidade histórica com sociedades pré-

colombianas se consideram distintos da sociedade nacional” (Cunha 1986, 111).

6
O yaathê, que significa a nossa língua (fala), pertence ao tronco lingüístico Macro-Gê, porém
não é classificada dentro de uma determinada família lingüística, por ser unicamente falada pelos índios Fulni-ô.
Contudo, em Camêu (1979, 66), encontramos entre os índios Ramkôkàmekra, Município Barra do Corda – MA,
um instrumento musical chamado ka-txo-tsê (espécie de cítara), cujos fonemas assemelham-se com os fonemas
Fulni-ô tka-txo-tsê, que literalmente, conforme a índia Marilena Araújo de Sá, significa “a sujeira do
travesseiro”. Embora esta observação esteja bastante limitada em termos quantitativos, podemos supor uma
possível ligação lingüística Fulni-ô com este grupo.
7
De acordo com Andrade (1986 522-23) Tolê é o nome que os Fulni-ô dão à dança do Toré,
realizada por muitos grupos indígenas no Nordeste. Além de dança notamos que os Fulni-ô chamam de Tolê
tanto o Buzo, instrumento de sopro utilizado neste evento, quanto os cânticos. Além do que, o Tolê é tratado
pelos Fulni-ô como algo extremamente sagrado, cheio de significados religiosos. De acordo com o que
podemos observar estes significados podem estar presentes no Toque do Buzo e do Maracá (instrumento que
serve como marcação rítmica do evento), no canto e na dança. Desta forma, podemos concluir que o Tolê não é
apenas canto, dança ou instrumento musical, mas também um complexo de significados secretos que de algum
modo direcionam o fazer religioso do grupo.
2

No Brasil, pessoas exaltadas como heróis em alguns livros didáticos oficiais,

como "Mem de Sá, Jerônimo de Albuquerque e outros, mandavam amarrar indefesos

indígenas à boca do canhão para despedaçá-los" (Almeida 1988, 33). Ao mesmo tempo

padres das várias missões e ordens do Brasil Colônia, tentavam mostrar aos velhos

habitantes das terras do além-mar-europeu o que deveriam fazer para darem melhore

impressão aos colonizadores recém chegados. Uma das exigências era de que os povos

indígenas aprendessem a cantar e a tocar os instrumentos trazidos pelos europeus. Muitos

desses povos cujas economias, sistemas sociais e culturais eram incompatíveis com os

novos sistemas impostos, foram destruídos, inseridos na sociedade majoritária,

escravizados, ou migraram para o interior por não terem um poderio bélico que pudesse

competir com o dos novos habitantes.8 Já outros conseguiam um convívio diário, sem que

isto significasse a perda total de seus elementos culturais, o que é, num dizer sociológico,

um estado de acomodação social, pois estes grupos passaram a ter um viver sócio-cultural

“subjugado” ao do grupo dominante, como forma de autodefesa.9 Ou melhor, este tipo de

convivência com a sociedade dominante fez com que diversos grupos indígenas,

principalmente aqueles localizados na região Nordeste, até antes de 1970, elaborassem um

certo “mascaramento étnico” (Bastos 1997, 500) diante desta sociedade majoritária.

Passados quase quinhentos anos de contatos essas histórias continuam a ser

repetidas. Temos muitos exemplos intoleráveis de matança, genocídio que muitos desses

grupos continuam a sofrer e seus agressores continuam impunes. Entre tais citaremos dois:

8
Em Leite (1938), encontraremos vários relatos que descrevem estes fatos.
9
Brown (1973), traz diversas situações, na segunda metade do século XIX, nas quais as nações
indígenas que habitavam grande parte dos Estados Unidos vivenciaram junto da sociedade estadunidense,
relatando as guerras com seus principais personagens, os tratados que os índios faziam com o governo
estadunidense, onde este último sempre desfazia os tratados. Enfim, mostra um outro lado da moeda entre
dominadores e dominados.
3

O primeiro diz respeito a um depoimento presente em Martins (1978, 16)10, onde o autor

relata que

Recentemente o Padre Egídio Schwabe, do Cimi – Conselho


Indigenista Missionário –, me revelava um depoimento de um índia
kaxinaua, no vale do rio Envira [. . .] Ele – citando o nome do assassino
que eu faço questão de omitir – jogava as criancinhas índias para o ar, e
as aparava com a ponta do terçado (facão).

Um segundo caso é o da morte do índio Pataxó Hã Hã Hãe, Galdino Jesus dos

Santos, que no dia 21 de abril de 1997, quando estava dormindo em uma parada de ônibus em
11
Brasília, foi assassinado por cinco rapazes, que jogaram álcool em todo seu antes de lhe

tocarem fogo. Infelizmente, como tem ocorrido com os assassinos do índio Marçal de Souza que

continuam impunes, com o massacre Ticuna que já completou 10 anos de impunidade, ou no

assassinato do Cacique Chicão que foi morto em 20 de maio de 1998 por fazendeiros que

haviam invadido as terras do seu povo, a juíza Sandra de Santis, reafirmada pela 2ª Turma

Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, desqualificou o crime cometido contra

Galdino de homicídio qualificado por lesões corporais seguidas de morte. 12

São essas e muitas outras situações que rodeiam os povos indígenas no Brasil que

fazem com que tentemos compreender como se dão às diversas formas de resistência cultural

destes povos. Diante disto, concordamos com Bastos (1997, 495) ao dizer que o

branco é visto sempre no papel nodal de civilizador, ao negro


cabendo uma figuração às vezes laborativa, às vezes lúdica, sendo
que o índio é remetido para os confins do sistema, para seus limites
mais remotos, onde pode assumir personificações diversas, entre as

10
Além de Martins (1978) podemos ver Melatti (1980), Ribeiro (1983), Ramos (1986),
Almeida (1988), Tassara (1991), Mota (1994), Ribeiro (1996), Ricardo (1996), Santos (1997), Moonem e
Mariz (1992), que relatam experiências semelhantes junto a outros grupos indígenas no Brasil.
11
Os nomes dos rapazes envolvidos são: Max Rogério Alves, 19 anos; Antônio Novély
Cardoso de Vilanova, 19 anos; Eron Chaves de Oliveira, 19 anos; Tomaz Oliveira de Almeida, 18 anos; e o
menor G., 16 anos.
12
Através do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) recebemos um total de 18 informes, 12
cartas (cimi@embratel.net.br) e 2 jornais PORANTIM (Cavalcante 1997 e 1998), que muito nos ajudaram a
entender como caminham as questões políticas a que estão sufeitas as diversas sociedades indígenas no
Brasil.
4

quais as da pureza, heroísmo e originalidade animal-humana são


especialmente relevantes.

No tocante às manifestações musicais entre os índios brasileiros, percebemos

sua presença na história do Brasil a partir das observações presentes na Carta de Pero Vaz

de Caminha, vindo depois outras séries de considerações de cronistas, viajantes, religiosos

e pesquisadores, seguindo um período que vai do “descobrimento” até este século. Este

fazer musical é um exemplo importante do que tem sobrevivido nestes últimos 500 anos de

contatos, pois representa um dos principais veículos de identidade, entre os diversos grupos

indígenas, sejam eles tradicionais ou emergentes, os quais estão presentes até hoje para

lembrar que nem tudo está perdido.

Apesar disso, grande parte da cultura musical brasileira ainda não foi

observada pela comunidade acadêmica que lida com música no Brasil. Suas atenções têm

se direcionado, quase que exclusivamente, às músicas artísticas produzidas pela Europa

desde o século IX até o século XIX. Essa falta de atenção e interesse levou, e tem levado,

ao esquecimento toda a riqueza musical que vem sendo construída ao longo destes cinco

séculos de Brasil. Mais grave ainda - e desta vez bem menos observada- é a falta de

atenção dada para as manifestações musicais das comunidades indígenas brasileiras. São

atualmente cerca de 206 povos indígenas (Ricardo 1996) existentes no Brasil, que quase

nada têm recebido em termos de registro no tocante a uma devida observação científica de

suas manifestações musicais. Esses grupos vêm reproduzindo, reconduzindo, recriando

todo um viver musical sui generis que refletem as suas experiências sócio-históricas.13

Diante deste grande quadro musical, ainda não suficientemente observado, este trabalho

pretende direcionar as observações para uma parte do universo musical Fulni-ô.

13
Em Aytai (1985, 10) são apresentados alguns autores que se dedicaram ao estudo da música
indígena brasileira. Porém, com relação aos índios no Nordeste ver o trabalho de Magalhães (1994), que faz
um estudo da música do Toré dos índios Kiriri do Município de Mirandela.
5

Em termos musicais, os Fulni-ô apresentam semelhanças e diferenças da

sociedade nacional envolvente, ou seja, a presença de algo musical entre o grupo tem tanto

características (estruturais e simbólicas) próprias, quanto também análogas à sociedade

envolvente ou semelhantes a outros grupos indígenas no Nordeste. Com relação a estes

dois últimos aspectos percebemos a presença do coco de roda, da cafurna, do forró, de

hinos da igreja católica e até do rock. Ou seja, uma série de gêneros musicais que fazem

parte de um contexto não Fulni-ô. Mas, que, em alguns casos, foram reintroduzidos na

cultura Fulni-ô. Temos como exemplo destes o coco de roda, que é uma herança que os

ancestrais Fulni-ô tiveram do povo negro e a cafurna, uma herança dos grupos indígenas

Kariri-Xokó e Xucuru.

O coco de roda tem a função de entretenimento durante as festas juninas. É

dançado em círculo e tem um coro responsorial ao solista, que por sua vez pode cantar

versos improvisados ou decorados. A formação instrumental do coco de roda tanto pode

ser formada pela banda de pífano da aldeia, como pode ser composta de um pandeiro que é

conduzido pelo solista ou puxador.

A cafurna, por sua vez, funciona como um mecanismo de conscientização do

grupo acerca de sua cultura, é também um modo que os Fulni-ô encontraram para

apresentarem uma cultura musical indígena para os não índios. Tem diversas coreografias

de dança e, como o coco, possui um ou vários solistas com acompanhamentos de um coro.

O instrumento musical é o Maracá que normalmente está na mão do solista.

Todavia, nosso foco de observação centra-se nos aspectos musicais presentes

no Tolê Fulni-ô. E será a partir de um calendário de festas e/ou cerimônias religiosas que

poderemos observar a presença destes aspectos entre os Fulni-ô. Para tanto, tomamos a

Festa da Padroeira Nossa Senhora da Conceição, a Abertura do Ouricuri e a apresentação

na escola como pontos de partida para tal observação.


6

Após um maior amadurecimento com o objeto de estudo tornou-se

indispensável à delimitação de um tema que fosse possível trabalhar durante o período de

tempo disponível no mestrado. A etnomusicologia da cosmologia musical Fulni-ô passou a

ser mais bem pensada com esta delimitação, ou seja, a observação do Tolê nos seus

aspectos musicais. Contudo, relacionemos algumas questões que poderão nos ajudar a

compreender onde queremos chegar:

1. Em que aspectos os discursos Fulni-ô sobre a importância do Tolê para a

comunidade, juntos ao conceito de identidade étnica, podem possibilitar uma alta

valorização grupal diante da sociedade nacional?

2. Pode a música e seus materiais no Tolê representar um dos principais

elementos agregadores da identidade étnica Fulni-ô, ao lado da religião e da língua?

3. Quais os mecanismos utilizados para a transmissão da melodia dos cânticos

e dos toques do Buzo e do Maracá dentro dos eventos musicais no Tolê?

4. Os membros do Tolê têm alguma influência, em termos musicais, entre os

outros membros da aldeia?

Pretendemos, também, observar os padrões musicais que compõem as

melodias no Tolê Fulni-ô e relacionar os discursos e as motivações do grupo sobre este

musical com os conceitos teóricos de identidade étnica, para uma compreensão dos

aspectos simbólicos que compõem o Tolê dentro de suas relações intraétnicas.

Na tentativa de responder aos problemas já citados nesse trabalho utilizamos

cinco elementos fundamentais: pesquisa de campo, revisão teórica e bibliográfica,

transcrição, análise musical e análise do material de campo.

A pesquisa de campo foi realizada através da observação participante, que

consiste da “participação [do pesquisador] na vida cotidiana do grupo ou organização que

estuda” (Becker 1994, 47). Utilizamos, para tanto, entrevistas diretivas, fotografias,
7

gravações em áudio e vídeo e diário de campo. As entrevistas foram compostas de

perguntas abertas em torno do objeto a ser estudado. As mesmas ficaram direcionadas ao

Cacique e Pajé Fulni-ô, aos dirigentes e alunos (um representante de cada faixa etária) da
14
Escola Bilingüe, a alguns componentes do Tolê, bem como a outros membros da

comunidade que tiveram algum envolvimento com o pesquisador. Para um maior

enriquecimento de nossa reflexão sobre o nosso objeto de estudo entrevistamos algumas

pessoas da cidade de Águas Belas.

Com relação à revisão teórica e bibliográfica fizemos leituras direcionadas para

o problema da identidade étnica, da posição da etnomusicologia frente aos aspectos

musicais presentes em diversos segmentos sociais e dos textos encontrados em bibliotecas

e arquivos públicos sobre os índios Fulni-ô. A discussão com pessoas inteiradas com o

problema da identidade étnica dos índios no Nordeste serviu como uma forma de

enriquecimento deste material teórico. Todavia, vale salientar que a

Identidade , identidade étnica são alguns nomes com que temos


tentando fazê-lo agora. Quando a realidade dos fatos da diferença a
que eles se aplicam demonstram que o seu valor de tradução está
gasto, ou não se aplica mais, outras palavras e outras teias teóricas
que lhes dêem sentido surgirão. E, como sempre se repete, o que
estará em questão, então, não será a realidade vivida onde tudo
acontece, mas a própria capacidade que temos, através das palavras
que criamos, de explicar de fato, e sempre de modo provisório, o
que está acontecendo (Brandão 1986, 164).

Outra etapa importante é a transcrição e a análise musical. Para a transcrição

utilizamos o sistema ocidental de escrita musical, acrescentando ou tirando sinais

necessários a uma melhor compreensão do texto musical. Para a análise musical seguimos

alguns pressupostos presentes dentro da música ocidental, onde observamos os intervalos,

14
Embora o nosso principal foco de observação seja o Tolê no qual fazem parte as pessoas
escolhidas a partir de uma linhagem familiar grupal, de que trataremos mais adiante, tais entrevistas foram
também direcionadas a outros grupos de Tolê, onde quem participa são pessoas não pertencentes a essa
categoria de escolha familiar.
8

melodias, execução, tessitura instrumental e vocal, andamento, escala, pulsação, acento.

Porém, para tal análise levamos em consideração a concepção de Blacking (1976, 26) de que a

música serve “em primeiro passo para compreender os processos da cognição musical e,

portanto, da musicalidade do ser humano”. A análise dos sons aqui não terá função em si

mesma, válida quando precedida do contexto sociocultural na qual foi gerada, tendo como

função maior identificar o grupo em estudo, algo próximo do que afirmou Sampaio (1986, 78)

O que no fundo pretendíamos, - e certamente sem chegar a


respostas muito palpáveis o que, de todo modo, não invalida a
busca -, era procurar algumas medidas de relativização entre as
perspectivas que definem o etnólogo como “decodificador” e
“tradutor” da cultura nativa, num alto grau de onipotência
científica, e aquelas que tendem a encará-lo como mero
“interlocutor”, ou “testemunha” dessas culturas, ocupado em pouco
mais que apenas “fragmentar” pela sua “escritura”, a “prática” viva
das mesmas.

A falta do nome “real” do musical presente no Tolê, visto fazer parte

exclusivamente do segredo deste grupo, fez com que preferíssemos chamá-lo de faceta

musical do Tolê. Ou seja, o Tolê é um ritual religioso dos índios Fulni-ô, do qual

observaremos os seus aspectos musicais, com os reflexos sociais, existentes no mesmo, já

que sua constituição ritualística é apenas do conhecimento do grupo. E ainda mais: faceta

musical diz respeito a uma pequena parte, musical, do Tolê, que serve como um modo de

identificar a música dentro deste ritual. De outra forma, se para referirmo-nos ao musical

presente no Tolê, utilizássemos o termo Música do Tolê poderíamos dar a entender que o

Tolê é apenas uma manifestação musical Fulni-ô. E o que na verdade ocorre é uma face

musical dentro de todo um complexo ritualístico, o qual não é de conhecimento dos não

Fulni-ô, com exceção dos Cariri Xokó, do município de Porto Real do Colégio em

Alagoas, que podem participar dos ritos secretos Fulni-ô. Desta forma, ao nomearmos esta

parte musical do Tolê como faceta musical estaremos enfatizando que há música dentro do

Tolê, ou seja, que o Tolê contém música e que não é música.


9

Desta feita, alguns trabalhos sobre identidade étnica da antropologia cultural e

a problemática levantada na etnomusicologia sobre o estudo da música em minorias

étnicas, possibilitaram uma observação mais elaborada deste aspecto musical da cultura

Fulni-ô.

Entretanto, as imagens registradas, a linha melódica dos cânticos acompanhada

dos ritmos dos Maracás e do som dos Buzos e os depoimentos dos membros do grupo

interligados às reflexões teóricas da antropologia e etnomusicologia sobre identidade étnica

e o fazer musical de alguns grupos étnicos, respectivamente, demonstraram que a música

existente neste ritual é um dos fenômenos essenciais para a formação do mesmo, além do

que se encontra relacionada aos aspectos simbólicos da cosmovisão Fulni-ô.


PARTE I - ASPECTOS ANTROPOLÓGICOS
ETNOMUSICOLÓGICOS
2. Referencial Teórico

Ao trabalharmos com um pequeno aspecto de um dos principais elementos que

constituem a identidade étnica Fulni-ô, o Tolê em seu aspecto sonoro, procuraremos

entender como se realiza a construção conceitual de um grupo étnico bem como o conceito

de identidade étnica trabalhados na antropologia. Com estes conceitos em mãos, traremos

os trabalhos de alguns antropólogos entre os índios no Nordeste, para entendermos onde

queríamos chegar ao utilizar a antropologia como base para nossa percepção do que vêm a

ser as facetas musicais como elemento adscritivo dos Fulni-ô. Ainda, neste capítulo,

traremos algumas tendências teóricas da etnomusicologia que possam, também, nos ajudar

frente aos problemas existentes na observação das manifestações sonoras musicais Fulni-ô.

2.1. Contribuições Antropológica

De acordo com Brandão (1986, 145) um grupo étnico consiste de

Uma categoria de articulação de tipos de pessoas que, por estarem


historicamente unidas por laços próprios de relações realizadas
como famílias, redes de parentes, clãs, metades, aldeias e tribos, e
por viverem e se reconhecerem vivendo em comum um mesmo
modo peculiar de vida e representação de vida social, estabelecem
para eles próprios e para os outros as suas fronteiras étnicas, os
seus limites de etnia. Mergulhados em um sistema de relações
regidas pela desigualdade aprendem a pensar a diferença; aprendem
a se pensar como diferentes.

Ao estudarmos um grupo étnico, nada mais oportuno trazer para pauta as

características que dão caminhos à compreensão do mesmo, se não geradoras ou

substanciais para a determinação de um grupo étnico, mas orientadoras para a

compreensão dele a partir de uma observação etnológica. Ao citar uma determinada


12

corrente antropológica, Barth (1969, 10-1) afirma que grupo étnico designa uma população

que:

1) Se perpetua principalmente por meios biológicos; 2) partilha


de valores culturais fundamentais, postos em prática a partir de
formas culturais; 3) compõe um campo de comunicação e
interação; 4) tem um grupo de membros que se identifica e é
identificado por outros, como constituinte de uma categoria
distinguível de outras categorias da mesma ordem.

Apesar de Barth (1969, 13-4) trazer estas características como um meio de

entendimento do que vem a ser um grupo étnico em correntes antropológicas, ele

posiciona-o como sendo um “tipo organizacional”, em que seus agentes formam critérios

que delimitam suas fronteiras e estabelecem relação com outros grupos, para que os

mesmos possam ser reconhecidos como pertencentes a tais grupos. Este mesmo autor

considera que o partilhar uma cultura não tem fundamental importância para o

entendimento do que é um grupo étnico, podendo ser apenas uma implicação ou resultado

da dinâmica social (1969, 15).

Neste caso, as proposições culturalistas, que tiveram grande força na teoria

antropológica nos anos 50, passam a ser pensadas em segundo plano, quando tratam de

definir uma determinada etnia. Como exemplo de teóricos culturalistas no Brasil temos

Galvão com o trabalho Índios do Brasil: áreas culturais e áreas de subsistência (1973),

que correlaciona as diversas etnias indígenas existentes no Brasil a partir dos seus artefatos

culturais. Esta divisão dos grupos indígenas por área cultural caiu num grande equívoco: o

de não levar em consideração às diversas experiências de contatos que cada grupo indígena

teve no decorrer de suas histórias junto à sociedade nacional, passando assim a pensar o

índio como constituinte de um certo modelo cultural, o que seria fatal para a maior parte

dos grupos que têm um grande contato com a sociedade nacional, já que
o padrão narrativo das três fases esplendor (antes do contato),
aculturação (contato) e decadência (dias atuais) imposto pelas
13

teorias da aculturação e implícito no paradigma indigenista, não


pode igualmente gerar respostas para os problemas aqui suscitados
(Oliveira 1994, viii).

Portanto, tomamos em consideração para a classificação dos grupos indígenas

no Nordeste15 o modelo antropológico que consiste da vivência histórica de cada grupo

entre si, sejam estas vivências com os seus diferentes ou iguais.

Nesta convivência encontraremos alguns tipos de identidades sociais que

serviram para atribuir e formar dentro do grupo étnico sua forma de interação no convívio

entre os diferentes agentes sociais. Para tanto, Oliveira (1976) atribui, a estes segmentos

étnicos, a presença de uma identidade pessoal, social, contrastiva, histórica e,

principalmente, étnica. Para tanto, Cunha enfatiza que um “mesmo grupo pode usar

identidades diferentes, dependendo do interesse específico que quer explorar” (1986, 94).

Portanto, será na identidade contrastiva que as diferentes étnicas marcarão suas presenças

no contexto de relação social, pois este tipo de identidade é a

essência da identidade étnica, i.e, à base da qual esta se define.


Implica na afirmação do nós diante dos outros [. . .] é uma
identidade que surge por oposição [. . .] identidade étnica [. . .] se
afirma “negando” a outra identidade, “etnocentricamente” por ela
visualizada (Oliveira 1976, 5-9).

Diante deste quadro de construções de identidades percebemos que a fricção

interétnica, isto é, a “relação em termos de dominação e sujeição” (Oliveira 1976, 9) entre

a sociedade nacional e as sociedades indígenas, posicionará e direcionará os diversos

mecanismos de relacionamento entre ambas. Pois,


A base do sistema interétnico está na conjunção de interesses
econômicos contraditórios: o índio procurando obter bens
manufaturados (armas, instrumentos agrícolas, cachaça, etc) e o
branco procurando se apossar do território e/ou da mão-de-obra
indígena (Oliveira 1976, 59).

15
Diga-se de passagem que estamos nos referindo aos índios no Nordeste etnográfico e não ao
geográfico. Fazem parte deste primeiro aqueles grupos presentes nos estados da Bahia (menos os do sul),
Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Ceará. Todos estes grupos têm uma vivência histórica semelhante
junta a sociedade nacional (Sampaio, 1986).
14

Nos termos etnológicos a definição de índio como agente representante de uma

determinada categoria étnica, principalmente quando este está inserido dentro da sociedade

nacional, pode ser respondido na afirmação de Oliveira em que

Nas situações de fricção interétnica os índios inseridos, a despeito


de poderem ser igualmente “índios-camponeses”, “índios-
proletários” ou “índios-citadinos”, são antes de tudo índios, i.e.,
portadores de uma etnia diversa que os contrasta com os
camponeses, proletários e citadinos não-índios (Oliveira 1976, 60).

Podemos perceber que a condição social do índio no Nordeste brasileiro está

intimamente interligada com as situações econômicas e sociais dos seus vizinhos não

índios, pois suas casas, seus objetos de trabalho, suas vestimentas, suas relações com a

religião católica e muitos outros mecanismos existentes na dinâmica da sociedade nacional,

fazem parte do seu convívio diário. Ao referir-se aos Terena e Tukuna, Brandão (1986,

104) apresenta um fator social semelhante ao que nós percebemos entre os índios no

Nordeste, onde

o costume regional de batizar os filhos na Igreja e possuir


padrinhos não indica a passagem do Terena a sertanejo, nem
transforma os Tukuna em Caboclo [. . .] a saída de pessoas ou
famílias da tribo para fazendas ou cidades da região não destrói
necessariamente o princípio de que ainda existe uma tribo e que ela
ainda tem expressões de vida e de ser diferente de todos os outros.

Contudo, tem ocorrido entre os diversos segmentos indígena perda cultural,

econômica e, acima de tudo, humanas, irreparáveis no decorrer de toda a história do Brasil,

onde

não são conhecidos casos reais de tribos que, uma vez em contato
permanente com o colonizador ocidental, tenham conseguido
emigrar dele ou inserir-se, sem prejuízos, pouco a pouco, no
sistema de relação que ele fatalmente impõe (Brandão 1986, 145).

Diante destas perdas os membros de cada grupo têm apreendido diversas

maneiras de agir, de pensar, de sentir, de se relacionar, diante dos antigos invasores e


15

atuais vizinhos não índios. A identidade étnica, para tanto, será “útil para estabelecer a

priori como os sujeitos que se pensam, também, através dela, devem ser e se conduzir”

(Brandão 1986, 152).

Para os grupos étnicos que vivem na diáspora ou num intenso contato com uma

sociedade dominante, numa relação de fricção interétnica, é posta em suas fronteiras uma

nova forma de convivência social. Desta forma, podemos concluir que a cultura16 original

“não se perde ou se funda simplesmente, mas adquire uma nova função, essencial e que se

acresce às outras, enquanto se torna cultura de contraste” (Cunha 1986, 99). E ainda mais:

a escolha dos tipos de traços culturais que irão garantir a distinção


do grupo enquanto tal depende dos outros grupos em presença e da
sociedade em que se acham inseridos já que os sinais
DIACRÍTICOS devem poder se opor, por definição, a outros do
mesmo tipo (Cunha 1986, 100).

Ao observarmos a questão indígena no Nordeste brasileiro, vamos encontrar,

de forma geral, a terra como o principal sinal diacrítico - se é que podemos tratá-la como

tal - entre os índios no Nordeste, ou seja, o de serem os habitantes tradicionais daqueles

territórios e portanto marcados, como que tatuados, pela mesma.

Carvalho (1984) trata da questão da identidade dos índios no Nordeste através

do maior problema que existe entre os grupos pertencentes a esta região, isto é, a terra.

Porém, para entender como se passa todo o processo de aglutinação em espaços territoriais,

ela procura diversos elementos que possibilitam a formação ou mesmo a lembrança de uma

identidade étnica entre todos estes povos.

Vale salientar que o “território indígena” cobre um espaço territorial que está

sob o domínio do Estado brasileiro, ou melhor, é este quem possui juridicamente a

16
Cunha (1986, 101) percebe a cultura como sendo algo não apenas “dado, posto, algo
dilapidável também, mas algo constantemente reinventado, recomposto, investido de novos significados”.
16

propriedade dita do índio. O Estado funciona como uma entidade que “assegura” ao índio

que sua “propriedade” não será danificada por outrem, nem tão pouco sua cultura.

Mas, parece que tal proteção não tem ocorrido na prática, pois os povos

presentes em todo o contexto de Nordeste, ao longo do processo histórico brasileiro, vêm

sendo inseridos dentro de uma sociedade que lhes tem tentado tirar a categoria de grupo

étnico, de início tratados como selvagens e agora como “caboclo”. Vale salientar, portanto,

que a “história do contato não se distingue muito de outras envolvendo outros povos

indígenas do Brasil no que diz respeito aos constrangimentos físicos e culturais entendidos

enquanto mecanismos inerentes ao ato de conquista” (Carvalho 1984, 171). Apenas que,

em se tratando dos índios no Nordeste, as perdas culturais já estão bem mais acentuadas do

que no restante do país.

Estes índios têm incansavelmente buscado o reconhecimento de pessoa17

enquanto pertencente a um agrupamento distinto da sociedade nacional, já que a “categoria

índio, genérica, reveste-se de especificidade e concretude histórica, o etnômio sendo

apropriado como num movimento de incorporação à história, do qual passa constituir um

signo distintivo” (Carvalho 1984, 174).

De acordo com Carvalho (1984, 169-88) os elementos que darão força para que

seja possível o reconhecimento destes remanescentes étnicos pela sociedade nacional são

os seguintes: a história presente na memória do grupo, os artefatos arqueológicos, a língua

(podendo ser também por empréstimo ou ritual) e a realização do Toré. Tratando-se da

lembrança histórica de pertencimento a um determinado grupo, Carvalho corrobora:

Do mesmo modo que a ocupação original pressupõe direitos e permite a


reafirmação de sua identidade na história, daí suporte a manipulação
ideológica dos eventos históricos, cuja realização é auto-imputada, ou
referida com vistas à valoração positiva (1984, 176).

17
Para um maior aprofundamento do que é ser pessoa na relação entre índio e não índio ver
Carlos Rodrigues Brandão, “Papeis, personagens e pessoas”, in Identidade e Etnia: construção da pessoa e
resistência cultural (São Paulo: Brasiliense, 1986), pp. 13-34.
17

Compreendemos que não são apenas os eventos históricos presentes na

memória dos grupos que dão forma a uma lembrança de pertencer a um determinado

grupo, mas também o fato destes agrupamentos ocuparem estes territórios em uma data

imemorial. E para que isto possa ser percebido de forma mais concreta tomamos como um

dos pontos de observação as “casas de pedra em ruínas, machados de pedra [. . .] e os

locais onde estão enterrados os antigos” (Carvalho 1984, 181).

Outro instrumento comumente utilizado entre os índios no Nordeste, para

afirmarem-se é o emprego ou reapropriação da língua original, que Carvalho (1984, 183)

percebe da seguinte forma: “É importante tomar em conta que ‘idioma’ não diz respeito

apenas à língua utilizada na comunicação cotidiana, mas, sobretudo, para que eles que não

mais a têm, a língua ritual”.

Por último, Carvalho toma o Toré18 como um elemento de que os índios no

Nordeste têm se valido para mostrar as diferenças diante da sociedade nacional. Os rituais

presentes no Toré são “práticas rituais que se nos apresentam como retorno dos guardiões

ao seu local de origem à nação” (Carvalho 1984, 182).

Reesink, por sua vez, trata da atual situação dos índios no Nordeste brasileiro

frente a uma ideologia (de identidade) étnica presente na sociedade majoritária

(tecnologicamente). Para tanto, ele define a ideologia étnica como sendo a visão

etnocêntrica que cada sociedade tem da (s) outra (s), ou seja, “as idéias implícitas e

explícitas de um povo sobre um outro com o qual se mantém relações de diversos tipos”

(Reesink 1982, 121). Contudo, é a situação assimétrica vivida entre a sociedade nacional

com os diversos grupos indígenas brasileiros que tem maior ênfase no seu trabalho.

A ideologia étnica constituída e criada na sociedade dominante é repassada

para os grupos indígenas, formando uma “categoria genérica de ‘índio’” (Oliveira 1993,
18

vii) dentro de ambas as sociedades. E para oficializar este pensar o “outro”, de forma

unilateral, ser “índio”, conforme o Estatuto do Índio, seguindo as considerações formadas

na antropologia que por sua vez é inspirada na ideologia étnica da sociedade dominante –

acima citadas –, contém qualificações tais como: “(1) ascendência racial, ‘raça’, embora

sem mencionar essa palavra às vezes carregada de conteúdo negativo; (2) auto-

identificação; (3) identificação por outros; (4) traços culturais próprios” (Reesink 1982, 122).

Esta definição de índio remete a uma compreensão do índio com “I” (ou “índio

brasileiro puro”) em que é tomado como exemplo os índios do Parque Indígena do Xingu,

Ianomâmi etc., pois carregam entre si critérios que compartilham com os anteriormente

citados, pelo fato de possuírem pouco contato com a sociedade nacional. Porém, estas

imagens do índio com “I”, percebida por grande parte da sociedade majoritária,

possibilitam dois pontos negativos: o primeiro é a perpetuação da visão do índio

preguiçoso, que vive na selva sem fazer coisa alguma; e segundo é a falta de conhecimento do

que vem a ser os demais povos indígenas existentes no território nacional (Reesink 1982, 123).

O termo índio foi incorporado desde o inicio da colonização, com a formação

do estado-nação Brasil. Com isto, os novos invasores utilizaram tal termo para referirem-se

a todos os povos aqui existentes, sem levar em conta as diferenças étnicas de cada um.

Passaram então a existir duas dimensões mutuamente influenciáveis “a incorporação dos

povos vencidos e a ideologia étnica da sociedade dominante” (Reesink 1982, 124).

Todavia, as diferenças, baseadas na negação de um grupo a partir do outro, não têm fim em

si mesmas para os novos colonizadores, pois

o ocidente leva essa idéia etnocêntrica a mais um passo: negou todo


valor às outras culturas e interferiu para “civilizá-las”. Desse ponto
de vista realmente todas essas culturas são iguais porque todas são
erradas e precisam ser transformadas em cópias da "civilização

18
No capítulo 6 faremos algumas observações do que vem a ser Toré num contexto genérico
dos índios no Nordeste.
19

ocidental" [. . .]. Aqui existe uma dialética entre o etnocentrismo


legitimando e causando a exploração econômica, e a expansão
econômica gerando as concepções etnocêntricas de que se vale a
legitimação (Reesink 1982, 124-125).

Todavia, encontramos uma “brecha na cultura oficial” (Reesink 1982, 216) a

partir do momento que a mesma passa a ver o índio não apenas como um “bicho”, ou seja,

como algo a ser domado, e sim como um ser passível de ser integrado dentro da sociedade

nacional. Neste momento as grandes empresas que fazem o processo de expansão

econômica, e com isto determinam os centros de decisões das leis do país, passam a ceder

aos conceitos “morais” existentes dentro da sociedade. Porém, é bom salientar sempre que

as conquistas de todos os direitos até então alcançados se devem as lutas e vitórias

atingidas pelos diversos grupos indígenas, em conjunto com alguns segmentos da

sociedade não indígena, que vêm resistindo durante este grande período de expansão

político-econômica.

Para que os conceitos “morais” da sociedade possam ser postos em prática, de

modo oficial, temos a FUNAI (antigo SPI, fundado pelo Marechal Rondon), órgão que

representa o índio, já que o mesmo não “pode” auto-representar-se diante da sociedade

nacional, pois é tido pela mesma como “inocente”. A FUNAI, acompanhada de outros

agentes sociais como missionários, fazendeiros, funcionários públicos etc., tem como sua função

transformar o grupo diferente num tipo social “ideal” ou “branco civilizado” (Reesink 1982, 127).

No caso do índio no Nordeste, onde os primeiros contatos com a

sociedade européia se deram desde o início da colonização, a primeira proteção,

apesar de tudo, veio da parte dos missionários, os quais no início do século XVIII

contribuíram para que a coroa portuguesa doasse um quadro de léguas para vários

agrupamentos indígenas com seus respectivos missionários. Apesar de tais doações,

os grupos indígenas ao mesmo tempo em que receberam as terras, tiveram-nas


20

invadidas pelos grupos econômicos (fazendeiros, usineiros, donos de engenhos,

industriais, o próprio estado etc) , tendo portanto grandes perdas culturais. Vale

salientar portanto que

após a chamada Lei da Terras (Lei nº 601, de 18.9.1875), várias


aldeias indígenas de Goiás, Ceará, Sergipe, Pernambuco, Rio de
Janeiro e São Paulo são declarados extintas, sob a alegação de ser
sua população apenas mestiça (Cunha 1986, 114).

Atualmente os grupos que estão inseridos na região Nordeste passaram a se

utilizar diversos meios, além da lembrança histórica, para serem reconhecidos como

pertencentes a um grupo étnico, como por exemplo a reincorporação do ritual do Toré

(Reesink 1982, 128). Existem casos em que, aparentemente, não há mais diferenças

culturais entre determinados grupos indígenas e a população regional, como por exemplo

os Potiguara dos Municípios da Bahia da Traição, Rio Tinto e Mamanguape/PB, onde

neste caso a etnicidade pode ser percebida na memória do grupo, pelo fato de estar ali em uma

data pré-cabraliana ou mesmo pela reapropriação de símbolos culturais presentes na visão

estereotipada de índio. Contudo, entre outros grupos indígenas foram mantidos “alguns

traços culturais, o último reduto de resistência e de aculturação completa situando-se no

campo das concepções religiosas e visão do mundo” (Reesink 1982, 129) (grifos nossos).

Diante de tal pressão por parte da sociedade dominante, pelo fato de estarem

integrados, “por razões econômicas”, e “aculturados por razões etnocêntricas” (Reesink 1982,

130), os índios no Nordeste passaram a conviver com o preconceito de serem tratados

como “caboclos” ao invés de “índio”. Com isto podemos perceber que

O próprio fato de ser a aculturação imposta, implica a perda da


“pureza” e do direito à categoria “índio”, e consequentemente passa
a ser usado como argumento contra o “caboclo”. Dessa maneira,
deparamo-nos com uma situação paradoxal na qual o “caboclo”
nordestino sofre um dupla discriminação. (Reesink 1982, 131)
(grifo nosso).
21

Mesmo que o termo “raça” não seja mais utilizado pela ideologia oficial, nem

tão pouco pela ciência, continua a existir indiretamente sob o conceito de “pureza” que a

própria ideologia étnica, presente na sociedade dominante, como também na própria

ciência do homem, construiu do índio. E mais,

os índios no Nordeste lutam para se livrar dessa ideologia imposta


até à sua própria consciência, que legitima a exploração, para que
possam se afirmar com sua verdadeira identidade de membro de
um grupo étnico diferenciado. (Reesink 1982, 134).

2.2. Contribuições etnomusicológicas

A construção conceitual do que vem a ser grupos étnicos – e não mais grupo

étnico, no singular, cujo sentido remete para a generalização, etnocêntrica, dos grupos

pertencentes a esta categoria social, sem levar em consideração as especificidades do ethos

grupal – tem, desta forma, uma implicação diferente das citadas anteriormente (ver Barth,

1969), ou melhor, reafirmamos a posição de Reesink ao entendermos grupos étnicos como

sendo “coletivos sociais que procuram organizar-se politicamente” (Nascimento 1994, 287).

E é dentro desta organização coletiva que encontramos no Tolê Fulni-ô uma

das bases de orientação social de que os membros deste grupo têm se valido para

afirmarem constantemente sua identidade diante de si próprios, para assim reafirmarem

suas diferenças étnicas diante da sociedade dominante. Todavia, esta reafirmação da

diferença, a qual nos propomos observar, acontece através do aspecto sonoro musical

existente dentro do Tolê.

Até aqui tentamos situar o nosso principal objeto de estudo, a faceta musical

presente no Tolê, dentro de aspectos conceituais e teóricos que envolvem a ciência

antropológica, principalmente aquela direcionada a observar os índios no Nordeste


22

brasileiro nas questões sobre identidade étnica. Desta forma, ao mesmo tempo em que

posicionamos uma pequena face da cultura Fulni-ô dentro deste arcabouço teórico

antropológico, passamos a repensá-lo dentro da etnomusicologia, pelo fato do objeto

observado constituir-se de uma gramática musical não presente na antropologia.

Com isto, pensamos que o musical, constituinte no Tolê Fulni-ô, está

intrinsecamente relacionado ao contexto étnico da cultura do grupo. E embora tendamos,

mais adiante, a separá-lo do todo social Fulni-ô, o fazemos pelo simples fato de facilitar a

nossa leitura do fato musical em si, para com isto melhor compreendermos uma partícula

do ethos Fulni-ô. Vale salientar que esta tarefa de interligar o contexto social

(comportamento) com o musical (o som e sua gramática) tem sido ao longo destes cem anos

algo de suma importância para etnomusicologia (Bastos 1995, 12).

A etnomusicologia ou musicologia comparada, como foi chamada no início de

sua existência, a partir dos anos 80 do século XIX até o final dos anos 40 deste século,

deparou-se inicialmente com a tarefa de estudar as manifestações musicais dos povos

diferentes, ditos exóticos. Contudo, duas invenções deram impulso a esta nova ciência: o

fonógrafo e o trabalho de J. Ellis em que divide o semitom em cem partes iguais o qual

chamou de cents. O fonógrafo permitiu a fixação do som, enquanto que o cents possibilitou

a comparação precisa de diversos sistemas musicais do mundo (Krader 1980, 6: 276). As

coletas sonoras eram feitas inicialmente por pessoas que, na maioria das vezes, não tenham

a ver com a pesquisa musical. Contudo, é a partir do interesse em estudar a música do

“primitivo” que, no final do século passado, inicia-se uma cadeia de arquivos fonográficos,

os quais passam a registrar grande parte da música no mundo.

Consistentemente com esta moldura, o projeto do Arquivo era estudar


transculturalmente os processos mentais envolvidos na música,
especificamente se interessando pela análise melódica e organológica.
Por sua vez, esta análise melódica aí se centrava nas alturas
(freqüências) sonoras, sinais de afinação e escalas (Bastos 1995, 21).
23

Bastos (1995, 12) percebe a musicologia comparada de Guido Adler de forma

bifácie, em que “de um lado, ela seria uma Antropologia; de outro, uma Musicologia. Seu

objeto: os discursos voco-sonoros humanos”.

Porém, saltando todo um período de desenvolvimento da disciplina, já

comentado em artigos, enciclopédias, dicionário e muitos outros manuais de

etnomusicologia,19 será com Jaap Kunst, início da década de cinqüenta, que a disciplina

receberá o nome de etno-musicologia, sob o pressuposto de que comparar é papel de

qualquer ciência. E com este novo nome a sedimentação das novas propostas de

visualização da música do “outro”, que já vinham em processo desde o início do século.

Na etno-musicologia serão adicionados como objetos de observação às manifestações

musicais e os instrumentos de todos os povos não europeus. Durante o 1º Encontro da

Society for Ethnomusicology, em 1955, o hífen é retirado, ficando desta forma

etnomusicologia.

Mesmo com tal amadurecimento e não mais estudando apenas as músicas

folclóricas ou “exóticas”, a etnomusicologia passa a seguir dois caminhos de observação:

Um que tem o seu principal representante Mantle Hood (1977), em que observa a música

do “outro” com um enfoque estritamente musical, onde é dado ênfase a toda à parte de

construção da música por ela mesma, não entrando em detalhes nos seus aspectos sociais.

E um outro que tem como seu principal representante Alan P. Merriam, que inicialmente

trata a etnomusicologia como o “estudo da música na cultura” (1964) e por fim o estuda a

“música como cultura” (apud, Bastos 1995, 37).

19
Podemos citar alguns autores e editores que estiveram envolvidos com o termo
etnomusicologia tais como: Merriam (1964), Soriano (1967), Nettl (1978, 1983), Hood (1970), Herndon
e Mcleod (1981), Lühning (1991 a, 1991 b), Myers (1992), Sadie (1994, 305), Krader (1980), Bastos
(1995),
24

Conforme Bastos, chegando os anos 80, esse modelo etnomusicológico se

diluira, pois o contigente formador de tal organização, ou mesmo ciência, chega a atingir

nesta época mais de duas mil pessoas, evidenciando uma série de linhas e perspectivas de

estudo.

Note-se que o período em referência caracterizou-se por um


espantoso boom da indústria cultural norteamericana,
especialmente significativo no âmbito das músicas “exóticas” e
folclóricas. Estas músicas agora são o objeto de um cada vez mais
importante setor da indústria fonográfica, radiofônica, televisiva e
do show business em geral. (Bastos, 1995:38).

Diante deste quadro de efervescência na etnomusicologia nestes últimos anos,

posicionamos o nosso trabalho a partir da própria necessidade em que os Fulni-ô, como as

demais centenas de etnias e segmentos sociais cercadas de estados-nações, têm de mostrar,

através de sua manifestação musical, a sua diferença, para o reconhecimento, tanto de si

próprios como de outras sociedades, para a afirmação de uma identidade étnica. Ao referir-se

ao processo em que os diversos segmentos sociais estadunidenses passam, Bastos (1995, 38)

ascende nossa posição ao dizer que paralelamente

a tudo isto, vive-se nos Estados Unidos uma época de explosão da


questão da etnicidade, com a constituição de movimentos sociais
que, reivindicando direitos civis, encontram na música o elemento
cultural-expressivo por excelência diacrítico de construção das
raízes, signo crucial da procurada alteridade.

Contudo, é neste contexto de auto-afirmação em que os Fulni-ô têm encontrado

em suas manifestações musicais, mais precisamento no musical existente dentro do ritual

do Tolê, mecanismos de diferenciação com outras sociedades.

Entendemos que o musical no Tolê está atrelado a diversos mecanismos sociais

da vida prática do grupo e não tão somente a um gozo estético autônomo, racional,

próprios do pensar a música em parte da sociedade ocidental (Weber, 1995). Apesar de


25

estarmos trabalhando junto a um grupo que possui semelhantes formas de comunicação

com a sociedade nacional, ou seja, dominam os códigos comunicacionais desta sociedade,

vemos que os Fulni-ô possuem uma linguagem própria e desta mesma linguagem

constróem entre si aspectos musicais que não fazem parte da nossa sociedade. Com isto, o

nosso fazer etnomusicológico procurou evitar os erros já tão repetidos pela nossa disciplina

e assim concordamos com o pensamento de Seeger (1980, 104) ao trabalhar com os índios

Suyá, em que a

suposição de que a música é uma “arte”, uma atividade antes de


tudo estética e além disso incidental, fez com que não
entendêssemos a música das terras baixas da América do Sul. Para
essas sociedades, a música é parte fundamental da vida social, não
somente uma de suas opções.

Talvez pudéssemos ir um pouco mais longe na observação da música, se é que

podemos chamar de música as diversas práticas sonoras existentes nas muitas sociedades do

mundo, já que em muitos casos não existe, entre estes, um significado semântico de música. Não

seriam tais práticas sonoras partes inseparáveis de cada ethos grupal? E reduzi-las ao termo

música não seria cair mais uma vez no etnocentrismo ao qual estamos mergulhados enquanto

teóricos de uma disciplina criada em um contexto etnocêntrico?20 Tais questionamentos sobre

nós mesmos diante do “outro”, fundamenta-se na observação de Nettl (1983, 25) em que ao

mesmo tempo em que a etnomusicologia foi construída dentro de uma cultura ocidental ela

passou a ser um fenômeno essencialmente ocidental.

Contudo, não cabe a nós, no momento, responder às indagações acima

mencionadas, apenas, com elas, confirmar a nossa posição em observar um pequeno aspecto do

20
Nettl (1983, 15-25) traz algumas implicações do que vem a ser música para a sociedade
ocidental, bem como alguns meios pelos quais os etnomusicólogos podem usar para abstrair o conceito de
música de cada sociedade estudada, já que nem todos têm este conceito.
26

fazer musical Fulni-ô, de forma a considerarmos tanto as posições do insider como a visão do

pesquisador - ou pesquisadores. E com isto tentarmos nos afastar do viés etnocêntrico.


3. Histórico do Grupo: sobre nomes e terras

O agrupamento Fulni-ô está localizado no sertão do estado de Pernambuco no

município de Águas Belas (Ilust. 01).21 Tem seu território cortado pelas Rodovias BR-423, PE-300 e

PE-244, e pelo Rio Ipanema, o qual situa um dos limites do território Fulni-ô (Ilust. 02). Os Fulni-ô

estão aldeados, na maior parte do ano, na Aldeia Sede, a qual faz limite com a cidade de Águas Belas

(Ilust. 03) e na aldeia do Cipriano ou Xixia-khla. Esta última aldeia foi fundada há cerca de cinqüenta

anos, quando uma índia Fulni-ô (Ilust. 04) casou-se com um não Fulni-ô. Um outro aldeamento é a

aldeia do Ouricuri em que os índios reúnem-se durante pouco mais de três meses para partilharem

uma vida em comum e, sobre tudo, fazerem seus rituais secretos.

Os Fulni-ô, que tem o yaathê como língua de origem, eram denominados pelos

portugueses, da primeira metade do século XVII até o início deste século, de Carnijó ou Carijó

palavra de origem Tupi kari'yo, que tem diversos significados: "que procede do branco" (Lavisolo

1982, 188); a mistura de índias com negros (Costa 1983, 7: 198); “província do Estado de

Pernambuco, no têrmo de Jaboatão”, e é também um rio do Estado de Pernambuco, ou então

significa índios “amansados” (Boudin 1949, 48-9). Vale salientar, que encontramos alguns dados que

supomos serem relevantes para a denominação dos Fulni-ô, pois se trata da denominação dada ao

grupo antes de serem denominados de Carnijós ou Carijós pelos portugueses. É uma referência aos

Tapuias de Pernambuco feita por Barlaeus em 1647 (1980, 264), onde este viajante faz menção a um

nome presente no vocabulário yaathê:

No meio da barraca real, está suspensa uma cabaça ou caixa sagrada, da


qual não é permitido ninguém se aproximar sem licença do rei. Todo

21
Esta ilustração foi elaborada a partir das figuras contidos nos trabalhos de Leite (1993) e
Ricardo (1996).
Ilustração 02 – Rio Ipanema – limite do território Fulni-ô
A esquerda território indígena e a direita terras dos regionais
(julho/97)
Ilustração 03 – Panorama geral da região.
Localização da aldeia Fulni-ô e a cidade de Águas Belas
(fevereiro de 1995)
Ilustração 04 – Índia Valentina em sua casa.
Fundadora da Aldeia Xixia-khla.
32

aquele que o consegue a perfuma com fumaça de tabaco, à


semelhança de incenso. Nela estão contidas pedras que não se
vêem senão com reverência, chamadas Cehuterah e frutos
denominados Titscheyouh,22 que se estimam mais do que ouro
(grifos nosso).
O nome sublinhado é o que pertence à língua yaathê. Podemos, assim , supor

que antes de serem denominados Carnijós ou Carijós os Fulni-ô foram chamados ou

reconhecidos como Tapuias de Pernambuco. Apesar de Tapuia ser uma denominação

genérica dada aos não Tupi, podendo ser aplicado até mesmo aos brancos. E embora o

termo Tapuia não dê uma designação própria ao grupo, pelo menos confirma não terem

nada a ver com os Tupi predominantes da costa do Brasil.

Ainda sobre os Carnijó, Costa menciona que esses índios acompanharam

Bartolomeu Bueno da Silva, em uma expedição em direção às minas de Goiás, em 1722.

Porém, desertaram da expedição e direcionaram-se para as altas montanhas que ficam entre

o Maranhão e a margem esquerda do rio Tocantins. Após terem aumentado grandemente sua

população estes índios dispersaram-se, vindo assim a formarem, novamente, em meados do

século XVIII, três aldeamentos distintos em Pernambuco (1983, 5: 370-71).

Atualmente o grupo é conhecido apenas por Fulni-ô, ou seja, uma

denominação que tem dois significados etimológicos. O primeiro atribuído por Boudin (1949,

32), segundo o qual seriam aqueles que “têm um topete de cabelos sôbre a cabeça (Fu = vertex,

li = cabelo, ni ka (nê ka) = ter, donde o adjetivo clássico, Fu-li-ni-ho – que deu: Fulni-ô”).

Um segundo significado hoje em dia amplamente aceito, inclusive confirmado

pela auto definição dos próprios Fulni-ô, é apresentado por Lapenda. Diz ele que

É pela importância do rio em sua vida que dou a etimologia do seu


nome como sendo de: füli = rio; ni, sufixo = ter; ho, sufixo de
agente verbal. Donde fúlniho ou fúlnio significa “aquele que tem
rio” (= a gente que mora junto ao rio e vive do rio). De füli temos o
verbo fü’lniká (=Ter rio; ser do rio), do mesmo modo que da raiz
22
Os Fulni-ô reconheceram Titschyouh como uma palavra presente entre o grupo, porém não
disseram o seu significado.
33

kili (= subir) se forma o verbo ki’lniká (= levantar) e o nome verbal


kílniho ou kílnio (= o que levanta; o levantador) (1968, 19-20).

Este mesmo autor (1968, 20) oferece um outro argumento para explicar a

existência e significado do nome Fulni-ô:

Segundo fui informado pelos antigos, esta era a denominação que


lhes conferiam os demais índios da mesma raça e língua, como os
Fo-kh’lá-sás (= os do pedregal), os Fölas (=picapaus) e talvez os
Brogradás (nome de etimologia incerta e aspecto não iatê). Todos
êstes habitavam respectivamente no sopé da Serra-dos-Cavalos, da
Serra-Preta, e da Serra-do-Comunati, ao passo que os Fulniôs
moravam junto do rio Ipanema, que êles chamam de Fü’likhá (=rio
largo, rio grande). A si próprios eles davam o nome de yaktoá, isto
é, “nós outros, nosso grupo”.23

Conforme Boudin (1949, 48), os Fulni-ô eram conhecidos nos meios

acadêmicos como sendo os últimos representantes dos índios Cariri, já que nos tempos

iniciais da expansão colonial, os Cariri já habitavam quase todo o interior nordestino.

Podemos citar Costa (1983, 5: 163) e entendermos a vastidão de área que era habitada pelos

Cariri:

As montanhas e as chapadas da zona sertaneja, como escreve


Teodoro Sampaio, se designavam em grande extensão pelo nome
de Cariri, do povo mais numeroso que outrora as possuiu.
Ocupavam assim originàriamente, uma grande extensão territorial
da Bahia para o norte, e concentrando-se mais tarde nos sertões de
Pernambuco, estenderam-se depois pelos da Paraíba, Rio Grande
do Norte e Ceará. Cariri, segundo aquéle escritor, vem de Kiriri,
taciturno, silencioso, calado.

Vale salientar que esta relação de origem entre um grupo e outro não tem muita

relevância, pois ambos fazem parte de uma família lingüística distinta. Percebemos que

esta confusão entre um grupo e outro se deve ao fato dos Cariri terem habitado uma grande

faixa de terra do interior nordestino.

23
Apesar de Lapenda mencionar o termo Fulniô sem hífen, mais adiante, conforme a lingüísta
Januacele que atualmente desenvolve pesquisas entre os Fulni-ô e leciona no Departamento de Letras da
Universidade Federal de Alagoas, ele irá adicionar este sinal a palavra, como reconhecimento do
prolongamento sonoro da vogal i.
34

A partir das informações contidas em Leite (1993, 8-10), podemos situar, em linhas gerais,

porém de forma cronológica e concisa, o processo histórico pelo qual os Fulni-ô passaram, para então

habitarem na sua atual reserva.

Podemos constatar a presença dos Fulni-ô no atual território há muito tempo. De acordo

com alguns documentos públicos, o seu primeiro aldeamento neste espaço geográfico era localizado

onde hoje é a cidade de Águas Belas, mas precisamente, conforme vários relatos orais dos Fulni-ô mais

velhos, onde hoje fica a feira-livre de Águas Belas (Ilust. 05).

As terras foram doadas para os Fulni-ô pelo Governo Imperial através de Carta Régia nº

33 em 05 de junho de 1705, com uma área de duas léguas quadradas. Porém, em 1832 os Fulni-ô

cederam parte deste território para a Igreja Católica em homenagem à Padroeira da aldeia, Nossa

Senhora da Conceição.24 Vale salientar, que esta doação permanece ativa na memória do grupo,

principalmente dos mais velhos.

Em 4 de novembro de 1861, o Governo Imperial decretou extinto o aldeamento Fulni-ô, o

que na realidade não veio a cumprir-se, pois um ano depois surgiria uma nova medida do Governo

estabelecendo que fossem distribuídos lotes de terras para os índios, o que ocorreria, de fato, quinze

anos depois.

Portanto, em 1877 a reserva indígena foi demarcada, ficando para cada família da aldeia

um certa quantidade de lotes. A divisão deu-se da seguinte forma:

Em princípio do mez de janeiro de 1877 forão começados os trabalhos da


aviventação dos perímetros do mesmo aldeamento.
Calculando a sua superfície se achou que era de (115734164,2) metros
quadrados ou (23912100,2) braças quadradas.
Em seguida forão medidas, e demarcadas 427 lotes, sendo 320 de
(302500,2)m ou (62500,2)br e 107 de superfícies diversas.
Sendo 140 lotes distribuídos aos índios e suas famílhas, prefazendo
totalmente um número de 329 indivíduos.
Quase no centro do dito aldeamento existe o patrimonio de Nossa Senhora
de Águas Bellas com a superfície de (795664,2) metros quadrados ou
(164193,2) braças quadradas (Pernambuco 1877, 17: 391-392).
24
Para maiores informações sobre a formação da cidade de Águas Belas ver F. A. Pereira da
Costa, Anais Pernambucanos, Vol. 6 (Recife: Governo de Pernambuco e FUNDARPE, 1983), pp.274-279.
Ilustração 05 – Antiga Aldeia Fulni-ô.
Atual Feira Livre de Águas Belas/PE
(setembro de 1994)
36

Apesar desta divisão em lotes, as desavenças entre os dois segmentos sociais, Fulni-ô e

águas-belenses, continuaram e de nada adiantou a demarcação da terra. Apenas em 1928 é assinado

outro decreto (nº 637 de 20 de julho) pelo

governador do estado de Pernambuco, o qual se apresenta como “árbitro”


frente às considerações do representante do Ministério da Agricultura,
Indústria e Comércio (o inspetor do SPI, Antonio Estigarribia) e o
representante do Governo do Estado, sobre a pendência entre os ocupantes
das terras do antigo aldeamento e os “descendentes dos índios Carnijós”,
reconhecendo que o direito destes apoia-se em “título certo e líquido”, mas que
há interesses legítimos a resguardar (Leite 1993, 08).

Este novo decreto torna novamente válidos a definição dos lotes feita em 1877. Paralelo a

esta história oficial, portanto escrita, temos o depoimento do Sr. Manoelzinho (Ilust. 06), que relata as

perseguições e conquistas que os Fulni-ô tiveram no início do século:

Em 1906 meu pai foi mais um primo, pra falar com o Governador. Nessa
época a capital funcionava em Olinda, não era em Recife. O Governador
chamava-se Cigismindo Gonçalves. Então meu pai foi e pediu. Que várias
vezes os brancos atiravam fogo nas casinhas, nos casebres, e eles se retiravam
daqui. E eles [os brancos] tomavam conta, ficavam arrendando terra no preço
que queriam. O estranho, eles assufeitava pra ficar ali, como escravo, né? E os
índios que era legítimo dono, fora! E pra não continuar assim o Doutor disse:
“E é de vocês, é?” Aí o Doutor, o Governador, mandou uma comissão praqui
fazer uma investigação, colheu tudo direitinho e aí levou ao Governador, e ele
disse: “É verdade, não se contava às vezes que foi atirado fogo para eles se
retirarem de lá, porque a terra é deles”. Aí o Doutor mandou, em resposta, um
ofício para o maior político daqui, dizendo que entregasse a terra a seus
legítimos donos. Isso foi feito, e estamos aqui!

Atualmente a Reserva Indígena Fulni-ô possui uma área de aproximadamente 11.500 ha,

com 427 lotes, a maioria destes 30 ha. Esta divisão da terra em lotes desvirtua toda uma visão coletiva do

uso da terra, pois cada lote é possuído por uma determinada família, o que torna difícil à visão comunitária

da terra. Mas, por outro lado, a terra dividida tem um outro efeito benéfico para os índios, pois ao ter sido

distribuída para os seus usuários índios, impediu ou pelo menos diminuiu a possibilidade de invasões.

Há, porém, a gleba da terra sagrada, do acampamento Ouricuri, esta é coletiva e não pode ser arrendada

(dados fornecidos pelo Cacique João Pontes, Ilust. 07).Conforme Leite (1993, 8), apesar da
Ilustração 06 – Sr. Manoel Francisco Ribeiro (Sr. Manoelzinho)
Um dos principais informantes desta pesquisa.
(abril/1994)
Ilustração 07 – O índio Joventino apresentando a entrada da Aldeia do Ouricuri
e o letreiro que indica a proibição de entrada de pessoas estranhas.
(abril/1994).
39

população Fulni-ô ter sido estimada (pela FUNAI, 1991) em 2.790 indivíduos, este

mesmo autor traz em nota (1993, 10) que este

dado é apresentado no trabalho “Pernambuco, seus índios suas


terras”, elaborado pelo SID/DFU/3ª SUER/FUNAI, em 1991. No
entanto não se sabe como foi realizado tal levantamento e quais os
critérios usados, já que há muitos casamentos mistos e índios
vivendo na cidade de Águas Belas [ou em outras localidades]. O
número pode, assim, estar muito subestimado, mesmo para os
índios habitando apenas nos limites da terra Fulni-ô, distantes do
perímetro urbano. A Aldeia Sede é praticamente colada à cidade, o
que dificulta ainda mais o computo. O Diário de Pernambuco refere-
se a 4300 Fulni-ô em Águas Belas (20.04.93).
4. Uma Vivência Intra e Interétnica

O processo de vivência interétnica pelo qual os índios brasileiros vêm

passando, assim como a maneira como esses têm encarado a propagação dos valores de

uma sociedade dominante de consumo, criou, nestes indivíduos, a necessidade de

envolverem-se com os meios econômicos e tecnológicos da sociedade dominante. De

modo que

se alguns grupos étnicos não resistem às expropriações por que


passam e desaparecem, outros conseguem sobreviver e de muitos
modos lutam por não perder, seja o território de que vivem, seja o
mapa de nomes e outros símbolos com que se reconhecem
(Brandão 1986, 144).

Os Fulni-ô têm trabalhado os seus valores simbólicos e materiais nas relações que

envolvem o viver intra e interétnico, pois “as identidades sociais, por sua vez, demarcando as

fronteiras do grupo (seus limites) e estabelecendo tanto a coesão do nós quanto à diferenciação

em relação aos outros indicam com quem e como interagir” (Penna 1992, 60).

Vivenciar uma religião secreta, viver coletivamente, possuir um território, falar

a língua de origem e residir na reserva, faz com que este grupo tenha em seu meio um

sentimento de orgulho. O orgulho Fulni-ô é um sentimento composto a partir de sua

história de massacres pelos não índios; de uma vivência interétnica acompanhada de

discriminação e indiferença para a cultura destes índios; e da questão territorial/econômica

que compõe a cultura e modo de ser Fulni-ô.

Vale salientar que o viver coletivo existe a partir do momento em que os Fulni-

ô mudam-se para a Aldeia do Ouricuri, na qual passam três meses reunidos sem a

interferência de estranhos. Temos como exemplo desta convivência a distribuição de carne,

feita no primeiro dia da abertura em que, neste caso, é permitida a presença de estranhos
41

até às treze horas. A partir de doações de índios ou não índios, todos os Fulni-ô presentes

ali recebem uma determinada quantidade de carne, de acordo com o número de pessoas

existentes em cada família. Conforme Marilena Araújo de Sá esta distribuição simboliza a

igualdade entre os diversos segmentos sociais do grupo, ao receberem a mesma proporção

de carne (Ilust. 08).

A situação atual entre Fulni-ô e águas-belenses ainda apresenta, nas suas

relações, fortes tensões no convívio cotidiano. Mas, antes de fazermos qualquer alusão às

questões que dizem respeito ao presente momento de vivência interétnica, queremos tratar

das perdas que, ao longo do processo de colonização, estes índios vêm sofrendo: e não uma

história cronologicamente distante, pelo menos a história registrada na memória da aldeia.

A hostilidade dos não índios com os Fulni-ô evidenciou-se através de uma

sofrida seqüência de perseguições. Os inconvenientes que a sociedade envolvente lhes

causaram fizeram com que estes índios guardassem grandes mágoas ao longo do processo

de colonização. A índia Iudete (Ilust. 09) 25 nos relata uma história bastante comovente do

início deste século, transmitida pela índia Malisi que fala sobre as perseguições sofridas

pelos Fulni-ô e ainda é bem lembrada entre o grupo. A história trata da mãe de Malisi

que ao dar a luz a uma criança teve que abandonar a aldeia dois dias depois do parte,

juntamente com outros índios, pelo fato de alguns moradores de Águas Belas invadirem

e tocarem fogo em suas choupanas, prática comum destes invasores. Eis nas palavras de

Iudete o relato que ainda corre no grupo:

aí a parteira veio, [. . .] e disse “minha filha você vai ter já já” [. . .].
Com pouco tempo que ela foi ter a criança em cima do cepo, né? [.
. .]. Aí foram procurar o cepo, o cepo disse que a outra mulher já a
tinha levado para ganhar neném, sabe? Aí disse que o papai dela
cozinha chapéu em forma, forma de chapéu. Aí disse que “traga
uma fôrma uma fôrma depressa”. Aí disse que ela aperreada, [. . .]

25
As ilustrações em que estão descritas mais de uma pessoa deverão ser observadas da
esquerda para a direita.
ilustração 08 – Distribuição de carne na Aldeia do Ouricuri.
(setembro de 1994)
Ilustração 09 – Iudete Correia de Amorim e sua irmã Ivanilda. A primeira fala
sobres aspectos históricos do grupo e a outra trabalha com
artesanato Fulni-ô.
(fevereiro/ 1997)
44

ela sentou em cima aí ganhou. Disse que ‘um menino, é um


menino, Utz,’ disse que todo mundo ficou assim alegre por ser um
menino, aí o pai ficou muito contente, pegou o menino e saiu pra
fora, que o menino tinha nascido naquele instante [. . .]. Pronto foi
com dois dias, mulher, disse

que chega a invasão do povo branco [. . .], disse que ela com dois
dias de resguardo correram, sabe?, os índios, não só ela , os índio
todo. Disse que correram com umas trouxinhas na cabeça, outros
de barriga [. . .], outras de menino novo e ela com dois dias de
resguardo, disse que elas saíram desembestadas, disse que tocaram
fogo nas casas [os águas-belenses].26 Quem já não tinha roupa,
quem já não tinha nada, queimar o resto que tem, já imaginou? Aí
disse que a mãe dela pegou, saiu o caminho do Cipriano [. . .]. Aí
disse que correu com dois dias de resguardo [. . .]. Disse que no
lado atrás dessa casa foram se amoitar lá, o menino morreu lá
mesmo . . . e ela ficou “doida”.

Os Fulni-ô ainda se encontram na reserva, mas antes da invasão, o aldeamento

era localizado onde fica hoje a cidade de Águas Belas. Na medida em que foram chegando

os estranhos na região, os Fulni-ô foram gradativamente cedendo esta parte do território. O

ato de ceder parte do território não teve o sentido de uma simples transferência de direitos,

mas sim o fato dos Fulni-ô terem de se afastar por não resistirem às constantes investidas

de dominação dos novos habitantes.

O que mais ajudou os Fulni-ô a resistirem, ou seja, não fugirem totalmente dos

invasores foi, com efeito, a preocupação de sempre terem de se reunir para fazerem seus

rituais sagrados. É como nos conta a índia Marilena Araújo de Sá:

Porque nessa época, quando eles fugiam, eles iam pra o Poço das
Trincheiras, eles iam pra Santana do Ipanema, eles iam pra outros
municípios, corriam. Só à noite, sabe? Eles voltavam. A
preocupação deles era de se juntar pra que eles pudessem fazer os
rituais deles. E esses rituais eram feitos, sabe? Às escondidas: três
horas da manhã.

26
A família que fazia estas coisas era do Coronel Salustiano, ainda resta membros na cidade de
Águas Belas.
45

A prática desses rituais passa a ter, desta forma, um valor essencial para o

grupo. Isto porque, se antes os rituais eram praticados corriqueiramente na hora que

desejassem, com a chegada dos invasores em seu território, os rituais teriam que ser feitos

em outros locais. Estes locais não poderiam estar visíveis aos estranhos, em parte pelos

preconceitos, em parte para se protegerem.

É importante ressaltar que este segredo não tinha a mesma intensidade de hoje.

Ao referir-se à primeira visita feita pelo pesquisador Boudin, Foti (1991, 10) diz:

Na época, da primeira visita que o autor fez a aldeia, em 1935, o


segredo era mais vulnerável, pois as instituições e crenças, que hoje
têm a aldeia do Ouricuri como seu reduto, ainda ecoavam ou eram
mesmos vividas na aldeia de cá, protegidas unicamente pela
barreira lingüistica.27

E, ainda, voltando a um momento anterior ao da chegada dos pesquisadores,

retornamos à dissertação de Foti (1991, 3), quanto nos fala de alguns dos vários problemas

que esta comunidade enfrentou:

Alguns documentos que se referem ao período posterior ao advento


dos brancos, dão conta de uma época de horrores. Dois relatórios
da Diretoria dos Índios do Império, por exemplo, mostram que a
população diminuiu quase pela metade (de 738 para 382 pessoas)
por causa da cólera, que grassou no ano de 1856. Após a desastrosa
Extinção dos Aldeamentos de Pernambuco, por ato do governo
imperial, de 1875, veio o loteamento, seguido do aforamento aos
brancos das melhores terras dos índios (as irrigadas).

Mesmo com as sofridas perdas culturais, morais e espirituais, os Fulni-ô não se

deixaram dominar. E, como vimos atrás, o principal motivo desta resistência foram os

rituais do Ouricuri. Pois, através do Ouricuri, as relações de cada membro do grupo se

fortificaram, e com isto a possibilidade de domínio por parte do não índio ficou cada vez

mais difícil. Com o segredo, o grupo pode delimitar os espaços com a sociedade nacional.

27
Contudo, podemos perceber que tais práticas religiosas ainda são vividas na “aldeia de cá”
(Aldeia Sede). Salientamos, porém, que os estranhos não têm direito de presenciar estes eventos.
46

Mas, não foi apenas o Ouricuri que deu forças para os Fulni-ô resistirem.

Critérios como a língua, posse da terra, manifestações musicais ou sonoras, a própria

economia interna (artesanato, roça, etc.), deram, de uma certa forma, condições para

recusarem muitos dos valores impostos pela sociedade dominante.

Não queremos, no momento, ater-nos a estes critérios, só lembrar que, ao longo da

vivência interétnica, os Fulni-ô ao invés de cederem aos infortúnios causados pela sociedade

regional, fizeram com que todos os elementos culturais de que dispunham fossem reconhecidos

não apenas por si mesmos, mas, também, por toda sociedade não índia envolvente e dominante.

A noção que se depreende é que a tradição cultural serve, por assim


dizer, de porão, de reservatório onde se irão buscar, à medida das
necessidades no novo meio [ou contexto], traços culturais isolados do
todo, que servirão essencialmente como sinais diacríticos para uma
identificação étnica (Cunha 1986, 90).

Os Fulni-ô sempre foram vítimas de uma história de massacres. Este fato provocou

no grupo a necessidade de se reorganizarem. Ao fazerem isto, os limites com os águas-belenses

foram se reconstruindo e se estabelecendo ao longo da história: a diferenciação entre o que é

Fulni-ô e o que não é; quem fala yaathê; quem tem a maior posse de terra local; quem chegou

primeiro, ou seja, quem realmente é o dono da terra. Uma série de elementos identitários foram,

com a necessidade, sendo relembrados entre os membros do grupo, para que assim pudessem ser

invocados como limites com os seus vizinhos. Construídos os limites, os Fulni-ô se percebem

como possuidores de um maior número de valores simbólicos: se os Fulni-ô podem ser bilingües

(falar yaathê e português), os águas-belenses não podem; se os Fulni-ô podem incorporar à sua

cultura danças, crenças, cantos da sociedade dominante, no momento que bem entenderem, esta

mesma sociedade não pode fazer o mesmo com a cultura Fulni-ô, devido à construção histórica

dos seus segredos religiosos (Ilust. 10).


Ilustração 10 – Procissão de Nossa Senhora da Conceição acompanhada do Tolê.
Um índio levando o estandarte da Padroeira e ao lado outro índio
que participa do Tolê segurando um Buzo.
(fevereiro de 1995).
48

Com os limites formados, o que é meu e o que é seu tornam-se visivelmente

conhecidos entre estes dois grupos. Só que, ao estabelecerem as fronteiras, os Fulni-ô se vêem

possuindo um maior espaço simbólico, ou seja, os seus espaços morais, espirituais são bem

maiores do que o da população nacional envolvente. É na comparação de seus patrimônios

com os dos brancos que a comunidade Fulni-ô evidencia um sentimento de orgulho da

própria idianidade. O termo orgulho é indicado por nós, pesquisadores destes fenômenos.

Foti (1991) fala do segredo Fulni-ô, que conota uma série de atitudes de distanciamento e

propicia um processo de resistência na manutenção da indianidade Fulni-ô. Mas o orgulho

é mais do que o segredo. O orgulho é composto por uma série de expressões presentes

constantemente no olhar, no falar e agir de cada membro do grupo, cujos motivos de tal

sentimento serão buscados a seguir.

O orgulho de ser Fulni-ô é um sentimento partilhado por todos estes índios e

tem a função de enaltecer a cultura deste grupo. Não se apresenta somente como sendo um

conceito elevado e exagerado de si próprios, mas como uma maneira dos Fulni-ô se

defenderem das hostilidades causadas pela sociedade nacional.

As tensas relações vividas historicamente entre Fulni-ô e águas-belenses

possibilitaram que ambos construíssem seu modo particular de ser e agir. A aceitação

mútua dos modus vivendi distintos é a única forma que estes dois grupos encontraram para

serem vizinhos, ou melhor, se suportarem como vizinhos.

Mas, quando referimo-nos às questões que dizem respeito às representações

materiais, por sua vez os águas-belenses possuem o poder público municipal e dominam

toda a parte comercial da cidade de Águas Belas. A cidade tem um comércio bastante

diversificado, com uma feira-livre bem abastecida de cereais, frutas, hortaliças e carnes.

Possui ainda pequenos mercados com vários artigos industrializados, livrarias, pousadas,

bancos e hospital. Portanto, tem um forte domínio comercial-financeiro na região.


49

Os Fulni-ô, por outro lado, possuem a maior parte do território onde a cidade

de Águas Belas se encontra; na verdade, é cercada (ilhada) por terras indígenas. Com esta

posse da terra, são os índios que dizem o que deve ou não ser construído e acrescentado ao

seu território para uso comum de índios e não índios. Além de possuírem a maior parte

territorial do município, eles têm uma diferença cultural bem marcante. A posse da terra e

os fortes elementos de identificação cultural (língua, religião, parentesco, gêneros musicais

etc.) fazem com que os Fulni-ô sempre estejam lembrando – implícita ou explicitamente-

que, se não têm um poder econômico igual ao da sociedade envolvente, possuem um forte

domínio cultural e territorial em comparação aos águas-belenses.

Como os águas-belenses não podem mais lançar mão dos mesmos meios

agressivos, que seus antepassados utilizaram para expulsar os Fulni-ô de suas terras, usam

a indiferença referente aos valores culturais deste grupo, como forma de hostilidade,.

Com um intenso descaso pela cultura Fulni-ô, parte da população aguasbelense

apresenta sempre uma visão distorcida do que os Fulni-ô sejam. Ao falar com alguns

moradores desta cidade, percebe-se que a figura do índio (Fulni-ô) não é muito diferente

daquela que a sociedade dominante passou anos reproduzindo: o índio preguiçoso, pedinte,

sujo, sem modos, faz parte do imaginário desses moradores, embora também considerem

os Fulni-ô como índios já civilizados, “mansos”, “bonzinhos”. Dois pequenos episódios

podem ilustrar essa situação: o primeiro é o relato de uma manicure que trabalha tanto na

cidade de Águas Belas quanto na aldeia (e que não é natural nem de uma, nem de outra).

Relatou que ao atender uma freguesa aguasbelense, a mesma exigiu que a bacia, usada

momentos antes por uma índia Fulni-ô, fosse desinfetada antes que pudesse ser usada para

o seu próprio tratamento de limpeza. De acordo com a manicure, esta freguesa não fazia a

mesma exigência quando o tratamento anterior tinha sido feito em uma aguasbelense.
50

Momentos como este deixam aflorar tensões e preconceitos mais profundos entre os Fulni-

ô e os seus vizinhos não índios.

Um outro episódio mostra o lado “gentil” dos águas-belenses: ao nos

aproximarmos de alguns vendedores de refeições, da feira livre de Águas Belas, passamos

a indagar sobre a visão deles dos Fulni-ô. Como éramos tidos como turistas e não como

pesquisadores, já que não tínhamos nos apresentado como tal, as pessoas que serviam a

refeição não fizeram a menor restrição em apresentar os seus vizinhos índios. Quando

procuramos saber como os índios se comportavam no convívio diário com a cidade,

obtivemos as seguintes respostas: “Eles são índios bons, civilizados, que não fazem mal a

ninguém; o único problema é que eles pedem muito”.

Essas afirmações mostram uma desqualificação velada a indianidade, pois

tratam os Fulni-ô como um grupo indígena já incorporado à sociedade nacional, embora

não estejam afirmados economicamente. Em nenhum destes casos os Fulni-ô são

apresentados como sendo possuidores de uma cultura própria, distinta da cultura da

sociedade nacional. São simplesmente comparados, ora como brancos quase civilizados e

ora como brancos maltrapilhos.

Para defenderem-se da representação negativa que a sociedade não índia,

principalmente a aguasbelense, produziu ao longo do processo de contato, os Fulni-ô vêm

organizando todos os elementos culturais (sejam originais ou por aquisição) que fazem

possível a afirmação deles enquanto índios. E é nesta auto-afirmação, a partir do viver em

comunidade, do casar-se com cônjuges Fulni-ô, de ter traços físicos característicos, residir

na reserva e viver da própria idianidade (da terra), a partir do resgate da língua e de uma

vivência religiosa secreta, que este grupo formará, em seu meio, o que chamamos de

“orgulho de ser Fulni-ô”.


51

Todavia, é bom salientar as exceções nesta relação interétnica. Os dados sobre

a visão do aguasbelense que propomos inserir nesta parte do trabalho fazem parte da regra

geral que a sociedade nacional tem do índio. As exceções, que fogem a regra, serão citadas

quando tratarmos dos elementos da identidade étnica Fulni-ô nos seus próprios aspectos

estruturais.

Porém, o orgulho representa a dignificação que os Fulni-ô dão a todos aqueles

elementos que fazem ser possível a cultura do grupo existir, como também ser reconhecida

como existente, por toda uma sociedade dominante.

Faz-se necessário, aqui, expor alguns elementos da idianidade Fulni-ô, se não

todos, ao menos aqueles que foram mencionados linhas atrás e que têm uma importância

bastante acentuada para a formação do orgulho de ser Fulni-ô.

Apesar dos Fulni-ô terem seu território dividido em lotes, eles têm conseguido

viver em coletividade. Este viver é notado, em um primeiro momento, na reunião anual do

Ouricuri, que o grupo faz durante três meses (final de agosto ou início de setembro até o

começo de dezembro). E, em um outro momento, podemos perceber que a coletividade

Fulni-ô é marcante quando os mesmos são, de alguma forma, hostilizados pelos não índios.

Como exemplo podemos citar o caso em que os índios interditaram a BR-423, que liga

Recife a Paulo Afonso. Isto ocorreu porque quando dois índios Fulni-ô estavam

consertando suas bicicletas no acostamento desta BR, um motorista não índio atropelou-os,

causando a morte de ambos. Por causa deste acidente, vários índios se reuniram e

interditaram a BR. Exigiram que fosse construído um túnel por baixo da pista, para que os

índios pudessem trafegar livremente. Vale lembra que a reserva é cortada por esta BR. Em

1980 esse túnel foi construído.

A vida em comunidade também pode ser percebida nos rituais religiosos, nos

cantos, nas danças, nas festividades, tradicionais ou não, e no plantio e colheita do feijão.
52

Muitos índios se reúnem para plantar e bater feijão, usando como elemento motivador do

trabalho o Rojão, canto de trabalho utilizado no mutirão. Por fim, o viver em coletividade

entre os Fulni-ô é bem percebido quando eles defendem problemas causados pela vivência

interétnica.

O casamento entre cônjuges Fulni-ô é uma característica que enfatiza o

discurso do orgulho de ser Fulni-ô. Dizem eles que, ao casar-se com pessoas do grupo, o

índio evitará muitos problemas que teriam de enfrentar se não o tivesse feito. Problemas

como: o “enfraquecimento do sangue”; a divergência de valores espirituais entre os

cônjuges; a introdução da participação nos rituais pelos cônjuges não índios; problemas

com a terra, pois quando o índio se casa com um não índio, este último passa a ter direito à

terra (ao lote), como também o direito de comprar mais chão. Diante de todos estes

problemas, os Fulni-ô têm evitado, ao máximo, o casamento interétnico e estimulado o

casamento entre seus membros.

Há no grupo uma forte discriminação do índio mestiço, embora isto seja

dificilmente reconhecido entre os aldeados. É uma distinção entre os indivíduos que

apresentam todos os características físicas do nativo e de outros que fogem a estas

características. Podemos observar bem isto com a afirmação de uma índia Fulni-ô, ao

referir-se aos mestiços: “Sem a gente querer, a gente discrimina o índio descaraterizado”.

O índio que não tem cabelos pretos, pele marrom, olhos melanesianos, poucos pêlos, tenta

se sobrepor a esta discriminação trazendo para sua vida todos os valores e práticas

simbólicas que envolvem a vida dos Fulni-ô. Os que pertencem a esta categoria e nem isto

fazem são inevitavelmente colocados à margem do grupo. O exemplo do índio Fulni-ô

chamado Zé Xavante mostra bem como o mestiço é discriminado. Zé Xavante é um índio

filho de mãe negra com pai mestiço. Além de não ter características físicas indígenas, ele
53

não fala o yaathê. Para muitos Fulni-ô é uma vergonha quando ele afirma para qualquer

estranho que é índio.

O residir na reserva e viver economicamente da própria terra evidencia o Fulni-

ô forte. Quando o índio sai da aldeia para tentar vencer a vida no mundo dos brancos, é

tido, pela comunidade, como sendo um índio que se enfraquecerá na medida em que mais

tempo permanecer fora. Sobre assunto, o índio Joventino disse que “a pessoa que pensa no

seu futuro, ele tem capacidade de se deslocar no seu futuro. E quem pensa mais como da

comunidade não tem vontade de sair”. Futuro aqui é visto como busca de emprego bom,

sucesso financeiro etc.

Para muitos Fulni-ô, no momento em que o índio assume o seu papel dentro do

grupo e rejeita muitas propostas que a sociedade dominante lhe oferece, este indivíduo

passa a ter um forte valor na vida comunitária. As atividades que necessitam de um

afastamento da aldeia não são bem aceitas pelos Fulni-ô. Daí o depoimento do Sr.

Francisco: “Eu quero ser pobre, mas com o meu costume, com minha família, com o meu

povo”.

No entanto, os Fulni-ô expressam aspirações de ter melhor qualidade de vida,

sem precisarem sair da aldeia. Ou seja, os que trabalham na agricultura clamam por mais

apoio da FUNAI para a aquisição de sementes, insumos, financiamentos etc. Os que

trabalham com artesanato sentem falta de recursos para investir e comercializar essa

produção. Neste sentido, os Fulni-ô querem ter acesso a trabalho e renda como os não

índios, com isto, fazendo parte, também de uma sociedade de consumo.

A língua yaathê tem uma forte influência no fortalecimento grupal e individual

dos Fulni-ô. Através dela, os Fulni-ô se fortificam espiritualmente e controlam as suas

relação com os não índios. Nas relações intraétnicas, o idioma funciona como uma forma
54

de tornar o grupo mais coeso. Proporciona uma interação maior com os rituais religiosos,

de modo que passa a ser um referencial para o indivíduo que o domina.

Nas relações interétnicas, o yaathê exerce um papel muito importante. Com a

língua, eles determinam - simbolicamente - o nós e os outros, principalmente na relação

com os seus vizinhos águas-belenses. Podem manobrar, com o idioma, as discussões sobre

qualquer assunto que lhes digam respeito. Nas entrevistas, por exemplo, alguns

informantes entravam logo com a comunicação em sua língua no momento em que se

sentiam inseguros sobre o que deveriam responder. Nota-se que o mesmo ocorre nas

negociações que envolvem problemas interétnicos.

Saber falar yaathê fora das imediações da aldeia é essencial. Foi-nos dado um

caso de um índio que, quando vivia dentro da aldeia, falava pouco a língua, isto porque

sentia vergonha de se expressar diante dos outros índios que falavam melhor o yaathê. Ao

sair da aldeia, para morar fora, este índio sentiu falta do ambiente que antes o cercava e

logo procurou um dos seus parceiros Fulni-ô que estava no mesmo local para exercitar o

idioma.

O yaathê tem sido alvo de orgulho da comunidade, mas boa parte de seus

moradores, principalmente os mais jovens não o dominam bem. É através da

conscientização das pessoas mais informadas do grupo, da necessidade que o indivíduo

tem de se aprofundar nos seus valores religiosos e da maneira como eles são vistos pela

sociedade dominante, que os Fulni-ô têm tentado se apropriar cada vez mais da sua língua.

O idioma é o veículo da indianidade Fulni-ô. Cunha (1986, 99) enfatiza o papel da língua

entre qualquer grupo ao dizer que “a língua de um povo é um sistema simbólico que

organiza sua percepção do mundo, e é um diferenciador por excelência”.

O elemento que caracteriza o sentimento de orgulho entre os Fulni-ô, que reúne

e dá sentido aos demais elementos da cultura, é o Ouricuri. Sem o Ouricuri, seria


55

impossível fazer menção a qualquer um dos pontos antes expostos. Foi na preocupação em

celebrar seus rituais, no passado, que os Fulni-ô continuaram a se reunir, possibilitando,

assim a manutenção da coesão grupal e a ocupação territorial.

Hoje, o Ouricuri, ou a outra aldeia em que os Fulni-ô se reúnem durante três

meses ao ano, tem o papel de ligar cada componente do grupo aos valores originais da

indianidade. Durante estes três meses, eles celebram seus rituais, garantem um maior e

intenso convívio grupal. Dizem eles que as relações – nesta aldeia – entre seus membros

não têm nada a ver com as outra aldeia. É nela que eles darão sentido a todo um viver

coletivo. O viver grupal, a língua, a solidariedade e a própria religião, na qual o Tolê está

fortemente inserido, são referenciais intensos entre cada componente do grupo. Basta

lembrar que a retirada dos Fulni-ô para o Ouricuri é feita de forma individual, ou seja, as

famílias saem de uma em uma, enquanto que a vinda do Ouricuri para a Aldeia Sede é feita

de maneira coletiva, confirmando assim a afirmação de que a vida dentro do Ouricuri é

coletiva, enquanto que na aldeia de cá, onde os Fulni-ô passam a maior parte do ano, o

viver social exprime uma idéia maior de individualidade.

Embora a maior parte dos Fulni-ô não encontrem sua respeitabilidade através

de empregos bem remunerados, nem de outras forma legitimadas pela sociedade dos

brancos, vão encontrá-la através da participação no Ouricuri. A religião é a essência da

indianidade Fulni-ô. E nesta mesma religião é que encontramos o principal ponto de

observação deste trabalho, o Tolê, nos seus aspectos de representação do grupo para com

os estranhos no que diz respeito aos seus aspectos sonoros musicais.

Apesar de não entrarmos em detalhes, com relação aos segredos religiosos,

podemos ressaltar que este segredo funciona como uma barreira que estes índios

estabeleceram frente à sociedade dominante, devido a todas as perdas sofridas a partir dos

primeiros contatos até hoje.


56

Percebemos que o orgulho do ser Fulni-ô sintetiza todo este conjunto de forças

aglutinadoras da identidade étnica desse agrupamento indígena. E, ao mesmo tempo, o

orgulho é alimentado por uma história construída nos processos discriminatórios que

marcam suas relações com os não índios.

Ao não ter uma independência econômica, e estando muitos de seus membros

em situação de pedintes, esta comunidade encontra, com a sua cultura, uma forma de

autovalorização diante da sociedade envolvente. A cultura funciona como um outro lado da

balança nesta relação interétnica. Contudo, evocamos a observação de Cunha (1986, 162),

ao dizer que

Um direito essencial de um povo é poder ser ele próprio. Querer a


integração não é, pois, querer assimilar-se: é querer ser ouvido, ter
canais reconhecidos de participação no processo político do país,
fazendo valer seus direitos específicos.

Por isso os Fulni-ô querem possuir todos meios para conseguirem mais respeito

diante de si mesmos e da sociedade envolvente. Eles querem

ocupar qualquer espaço dentro da sociedade branca sem perder a


sua cultura, sem perder os seus valores, sem perder a sua
identidade. Eles querem se civilizar para continuar a ser índios
(Marilena Araújo de Sá, índia Fulni-ô).
PARTE II - A MÚSICA NO TOLÊ
5. Festas na Aldeia

As festas têm a função de ligar agentes sociais, ou seja, dar melhores condições para que

indivíduos partilhem seus códigos culturais de forma lúdica. Ou ainda, a festa "destrói toda

regulamentação, sem transgredi-la, simplesmente porque a transgressão descarta o 'desvario' e o

'deboche' a que, geralmente, as conjecturas reduzem a festa" (Duvignaud 1983, 67). Diante disto,

podemos relacionar dois aspectos da vida sócio-cultural Fulni-ô, intimamente interligados ao Tolê ou

vice-versa, que possibilitarão compreendermos os limites e as ligações da relação interétnica que este

grupo vivência com a sociedade regional. O primeiro aspecto é a Festa da Padroeira Fulni-ô, Nossa

Senhora da Conceição (Ilust. 11), mas precisamente no momento em que ocorre a procissão, onde o

Tolê torna-se uma peça fundamental nas relações de representação da identidade étnica Fulni-ô para

os não índios. E o segundo é a abertura do Ouricuri (Ilust. 12), neste caso faremos considerações

referentes à realização do Tolê no tocante aos seus aspectos sociais que precedem a realização

intensiva do mesmo, isto é, daremos ênfase aos preparativos para a grande reunião grupal dentro do

Ouricuri.

5.1. Festa da Padroeira

A Festa da Padroeira da Nossa Senhora da Conceição inicia-se entre os dias 15 e 20 de

fevereiro, durando cerca de cinco dias. De acordo com alguns relatos Fulni-ô esta Festa teve seu

início em meados da década de vinte deste século. O seu principal influenciador foi o Padre Alfredo

Dâmaso (Ilust. 13), que é tido, pelos índios Fulni-ô, como um grande guerreiro da causa do grupo.

Conforme o Sr. Nézio, índio Fulni-ô, a festa da Padroeira teve início em 21 de agosto de

1921, organizada pelo Padre Alfredo Dâmaso, tendo como visitante o Bispo D. João Tavares de

Souza.
Ilustração 11 – Procissão de Nossa Senhora da Conceição.
(fevereiro de 1995)
Ilustração 12 – Rua da Aldeia do Ouricuri.
Rua estreita com casas conjugadas.
(setembro de 1994)
Ilustração 13 – Busto do Padre Alfredo Dâmaso em frente a Capela da Aldeia.
(fevereiro de 1995
62

A história do Padre Alfredo Dâmaso entre os Fulni-ô é tida como um mistério,

pois retrata a vida de um religioso totalmente alheio as causas indígenas, antes do contato

com este grupo. O motivo principal de sua vivência entre o grupo deveu-se a uma escolha

feita por um Cacique Fulni-ô nas primeiras décadas deste século. Como no início do século

os Fulni-ô estavam vivendo muitos conflitos com a sociedade regional (local), o Bispo

acima citado levou para a aldeia, a pedido dos próprios índios, seis Padres para que fosse

escolhido entre estes um que tivesse o papel de acolher e resolver os problemas sociais dos

Fulni-ô.

Com esta possibilidade de escolha o Cacique designou o Padre Alfredo

Dâmaso ou simplesmente Padre Alfredo, como os índios Fulni-ô costumam chamar.

Apesar de não gostar de índio, no início de sua relação com os Fulni-ô, o Padre atendeu ao

cumprimento do dever e passou a trabalhar junto aos Fulni-ô, em defesa dos interesses

indígenas.

O Padre Dâmaso fundou a Capela na aldeia, ao mesmo tempo em que deu

origem à Festa. A Festa no seu início tinha sua iluminação feita por uma vela inserida

dentro de uma taboca. Quem ensinava aos índios a rezarem era a velha índia Lulu. Esta

índia aprendeu a rezar com os brancos, pois nos tempos das perseguições fugia para outros

municípios e ia morar com os brancos. Neste mesmo tempo o Padre Alfredo já se

encontrava entre os índios Fulni-ô.

De acordo com o Sr. Nézio o aparecimento da Estátua da Santa Nossa

Senhora da Conceição (Ilust. 14) entre os Fulni-ô não foi um mistério 28 e sim

uma forma que os brancos utilizaram para conseguir que os índios doassem suas

terras para a Igreja. Esta Santa foi encontrada dentro de uma lagoa próxima da

Igreja Matriz de Águas Belas.

28
Esta prática era comum dentro do processo de expansão colonial. As estátuas eram
colocadas, pelo colonizador, em um local que os índios a achassem. Estes encontros com a Santa dava
impressão de algo Divino, mas na realidade era uma forma dos novos habitantes conseguirem expandir seu
domínio, fosse este domínio qual fosse: religioso, territorial, econômico, político etc.
Ilustração 14 – Nossa Senhora da Conceição – Padroeira da Aldeia.
Carregada em Procissão pelos índios Fulni-ô.
(fevereiro de 1995).
64

Com as diversas desavenças entre os Fulni-ô e seus vizinhos não índios, a

Santa que foi encontrada pelos Fulni-ô ficou nas mãos dos águas-belenses, retornando para

a aldeia com o Padre Alfredo, que a trouxe quando exercia a função de Padre entre os

índios. A Santa da cidade de Águas Belas e a Santa da aldeia Fulni-ô recebem o mesmo

nome. Porém, o que vai diferenciá-las é que a primeira tem no seu manto desenhos de

estrelas e a segunda de meia lua

Este mesmo Padre também trouxe o batismo, o casamento e outras doutrinas da

Igreja Católica para os Fulni-ô. A Festa da Padroeira é para os Fulni-ô a preservação da

cultura que o Padre Alfredo trouxe para a aldeia. De acordo com a crença Fulni-ô, a

presença deste Padre entre os Fulni-ô já era prevista pelo grupo, através das profecias.

Entretanto, nas diversas declarações sobre qual era a religião dos

indivíduos Fulni-ô podemos entender que apesar de grande parte destes índios

dizerem-se católicos, esta afirmação apenas confirma o distanciamento existente

entre sua sociedade e a nossa. Pois, ao afirmarem que são católicos, os Fulni-ô

esquivam-se de ter que dar declarações sobre as suas crenças. Valendo salientar que ser

católico atribui um certo status social a esses índios dentro de nossa sociedade. Porém, há

diversos indivíduos Fulni-ô que se dizem não católicos, afirmando que têm sua religião

própria. Com relação ao status de católico o Padre José Luís faz seguinte declaração:

Existe uma variedade muito grande, existem existe Fulni-ô, num é?


Inclusive o Vicente29 [. . .] no Seminário dizem: "mas como é que
você que tem a religião e vai ser padre? [. . .] Católico? E [. . .] não
basta [. . .] a sua religião, num é? Como é que você vai ser
padre?" [. . .]. E alguns [Fulni-ô] dizem "eu tenho a minha religião
eu não preciso [da religião católica]". [. . .] Por outro lado pedem o
batismo para os seus filhos, né? E ai de mim se disser "eu não
batizo" [. . .]. A gente aqui na [. . .] cidade faz inclusive questão de
oferecer aos pais e padrinhos [. . .] curso de preparação pra tomar
valor do sacramento. Quando chega na aldeia, então é, isso não

29
Vicente é um índio Fulni-ô, que atualmente está cursando seminário na cidade de Garanhuns
para ser padre.
65

funciona, fazer preparação um dá o nome, outro participa, outro vem


batizar ah ah ah ah ah ah [. . .], eles burlam mesmo, enganam mesmo o
padre [. . .]. Então, o índio procura batizo pra ser reconhecido como
gente, mas não por uma adesão à doutrina católica, a pessoa de
Jesus Cristo [. . .], num por isso.

Paralelo a estes três casos acima mencionados, dos índios que se dizem

católicos para não serem questionados pelos não índios, dos índios que se assumem

enquanto não católicos e dos índios que se dizem católicos para obter um status dentro da

sociedade nacional, há também o Fulni-ô profundamente católico. Como exemplos deste

temos a índia Iolina que queria de todo jeito que o Padre José Luís concordasse com a

edificação de uma igreja do Padre Cícero na frente de sua casa; o Padre não concordou, o

motivo que ele alegou é que já havia uma igreja na aldeia. O outro exemplo é o mês de

maio em que os Fulni-ô rezam terço para a Nossa Senhora da Conceição todos os dias,

com apresentação da Banda de Pífano Fulni-ô (Ilust. 15), ao mesmo tempo em que a

cidade de Águas Belas pouco dá ênfase ao ocorrido.

Para Marilena Araújo de Sá os índios conscientes não veneram a imagem da

Santa, mas o que está por trás dela. É apenas mais uma maneira que os Fulni-ô utilizam

para esquivarem-se das imposições sociais feitas pela sociedade majoritária. E ainda: ela

relatou-nos que o Padre Alfredo ao invés de evangelizar o índio terminou sendo

evangelizado por ele, pois “ele sabia de muitas coisas [segredo] dos índios Fulni-ô, mas

não participava”.

Apesar de tanta manipulação nas relações interétnicas, podemos perceber o

quanto os Fulni-ô têm sua cultura invadida pelos não índios, sendo a homenagem a Nossa

Senhora da Conceição um bom exemplo desta invasão cultural.

A Festa da Padroeira Nossa Senhora da Conceição ocorre com o aglutinamento

de muitas pessoas que fazem parte dos municípios próximo ao aldeamento Fulni-ô,
Ilustração 15 – Apresentação de Banda de Pífano Fulni-ô durante festejos juninos.
(julho de 1995)
67

contando também com a participação de vários índios Fulni-ô. A organização é feita pelos

próprios índios (Ilust. 16).

Como em todas as cidades do interior nordestino esta Festa tanto é

acompanhada de ritos religiosos como também de ocasiões festivas. Com relação a esta

última os Fulni-ô organizam bailes no clube da aldeia, enfeitam a aldeia com bandeirolas,

faixas, recebem parques de diversões, os quais ficam instalados no centro da aldeia, em

frente da capela.

A Procissão, momento principal, acontece no último dia da Festa. É dividida em três

partes: inicia-se com os cânticos católicos, que são dirigidos pelos próprios índios; depois há

apresentação do Tolê (Ilust. 17), o grupo principal da aldeia; e, por último, há apresentação da Banda de

Pífano Fulni-ô. Estas partes ocorrem durante toda a procissão de forma repetitiva, ou seja, sempre que

termina uma inicia a outra.

No decorrer da caminhada, em que há o estandarte e a Santa são carregados por índios, há

uma grande quantidade de pessoas, entre elas estão presentes o Padre, com seus ajudantes; alguns

líderes Fulni-ô; a banda de Pífano Fulni-ô; e o grupo de apresentação musical do Tolê. É importante

ressaltar que a apresentação durante a procissão não é a mais típica, porque ocorre a ausência da

coreografia tradicionalmente executada pelo grupo. Além do que os cantos são reduzidos a pequenos

ciclos, sem que haja um grande número de repetições.

Porém, o grupo do Tolê canta em diversas ocasiões da caminhada. São paradas bruscas

dos cânticos católicos, onde todos que estão ali respeitam e escutam como uma forma de respeito a

algo. Aos Fulni-ô cabe a veneração de algo que não sabemos o que é; e aos não índios resta apenas a

audição, sem maiores comentários, apenas sabendo que aqueles cantos não fazem parte dos dogmas

católicos, mas que devem ser respeitados.

Quando a caminhada termina, o grupo de Tolê dos Velhos volta a apresentar-se de forma

mais concisa e prolongada (Ilust.18). Esta apresentação ocorre em frente à capela.30 e

30
O Padre, o Cacique e o Pajé que estiveram presentes nesta procissão, no decorrer de nossa
pesquisa, foram: O Padre José Luís, o Cacique João Pontes e o Pajé Cláudio.
Ilustração 16 – As índias Libertina, Eva e Leozira conduzindo os cânticos na Festa da
Padroeira.
(fevereiro de 1995)
Ilustração 17 – Apresentação do Tolê durante a Festa da Padroeira da Aldeia.
(fevereiro de 1995)
Ilustração 18 – Apresentação do Tolê
Índios tocando os Buzus durante a Festa da Padroeira da Aldeia.
(fevereiro de 1995)
71

depois é que o grupo de Tolê se apresentará. O Padre tem a função de

intermediar os discursos, como também todo o rito católico e Fulni-ô (Ilust. 19 e 20). Neste

último caso referimo-nos ao Tolê.


Para que seja possível uma melhor comunicação dos interlocutores deste evento

junto aos fiéis é posto um carro de som em frente da capela da aldeia. Neste mesmo carro são

interligados tanto as vozes como os instrumentos musicais (violão, teclado etc). A utilização

destes equipamentos deve-se ao grande número do público e ao local do evento, que

acontece ao ar livre.

De acordo com o Padre José Luís as funções dos dois líderes Fulni-ô são as

seguintes:

O Cacique fala [e] dá as boas vindas, faz o acolhimento, porque vem


muita gente não índio [. . .] participar daquele [. . .] momento, então ele
dá as boas vindas e [. . .] faz o acolhimento, depois se inicia o rito
católico da Missa. No momento da homilia [. . .] no momento da
reflexão eu faço a minha parte, transmito a mensagem a partir do
evangelho e dou a palavra ao Pajé [. . .] Que fala no geralmente em sua
própria língua [. . .]. Então eu creio que é uma oportunidade excelente
pra ele, naquele momento transmitir uma mensagem [. . .]. Uma
mensagem religiosa para o seu povo, [. . .] ele se empolga toda vez que
vai falar, num é? Fala forte [. . .] e ele fala para os índios [. . .], não fala
para os brancos. Depois ele dá uma palavrinha para os brancos, mas
nunca é a tradução daquilo que ele falou, num é?

Ao terminar a participação dos Fulni-ô na procissão começa a Missa para a

Padroeira da aldeia. Nesta ocasião o Padre dá oportunidade aos índios que têm algum papel de

liderança na aldeia para transmitir alguma palavra para o seu povo; e os grupos de apresentação

de música cantam hinos católicos em português ou traduzidos para o yaathê.

Quando se inicia a “apresentação” do Tolê, os próprios índios fazem um cordão

humano, sem que estejam atados pelas mãos, tornando praticamente impossível o acesso de um

não Fulni-ô, só ocorrendo quando um Fulni-ô o acompanha. Um fator também importante no

momento de “apresentação” do grupo é que grande parte da população não índia começa a
Ilustração 19 – Padre José Luiz, Cacique João Francisco dos Santos Filho (João Pontes) e
Bispo Dom Tiago celebrando a Missa durante a Festa da Padroeira.
(fevereiro de 1995)
Ilustração 20 – Cacique João Francisco dos Santos Filho (João Pontes), Padre José Luiz e Pajé
Cláudio celebrando a Missa durante a Festa da Padroeira.
(fevereiro de 1995)
74

voltar para suas casas, não dando muita “atenção” ao evento. Talvez isto ocorra pelo fato

deles já estarem acostumados com a apresentação do Tolê ao mesmo tempo em que não

compreendem o que ocorre.

Percebemos, contudo, que os limites são construídos e mesmo neste evento, de

origem católica, os Fulni-ô demonstram um arcabouço cultural em que os não índios são

excluídos, embora o contrário não seja o caso. O ponto de exclusão é a apresentação do

Tolê, em seu aspecto sonoro musical, pois a participação e o conhecimento dos

significados é de exclusividade Fulni-ô.

Esta apresentação do Tolê outorga aos Fulni-ô o poder de manipulação cultural

nas relações com os não índios. Ao mesmo tempo em que “cultuam” uma divindade, a

Nossa Senhora da Conceição com cânticos e discursos de origem católica, conseguem

cultuar e venerar as Divindades de sua cultura, com os cânticos, toques e danças presente

no Tolê.

Entretanto, apesar de estarmos tratando de um rito “católico”, a Festa da

Padroeira Nossa Senhora da Conceição, em que a participação de féis não índios é

massiva, apontamos para a presença do Tolê dentro da procissão, isto é, sua função

enquanto elemento subjetivo de representação étnica dos índios Fulni-ô para com a

sociedade não índia da região.

5.2. Ouricuri, um enfoque extra-ritual

Como nos comentários no capítulo anterior, desde o final do século passado há

registros históricos de conflitos dos não índios com os Fulni-ô, principalmente em disputa

pela terra. Os estranhos já fizeram diversos massacres na aldeia, queimaram suas

choupanas, mataram crianças, enfim, tomaram inúmeras atitudes agressivas para expulsá-
75

los do seu território. Como vimos também, os últimos ocorridos deram-se na primeira

década deste século e, os índios que testemunharam ou ouviram falar sobre estas agressões nos

contaram que, à noite os Fulni-ô voltavam para fazerem seus rituais. Estas celebrações tem então, hoje,

o significado de dar força e resistência a este grupo, na defesa de seu território e de sua gente. A índia

Lea Araújo, afirma que o Ouricuri é como uma forma de purificar o índio que vive a maior parte do

tempo envolvido por uma sociedade que lhe trouxe problemas econômicos, morais e espirituais.

Nascimento (1994, 288), por sua vez trata o segredo entre os índios no Nordeste da seguinte forma:

Daí a forte defesa do segredo entre todos os índios nordestinos. Neste


segredo – mais que um elemento de simples auto-adscrição, em si mesmo
fundamental -, está a presumida especificidade cultural desses índios,
encontra-se a articulação simbólica entre a experiência religiosa, por
definição absoluta, uma vez que se reporta ao sagrado, e a experiência de ser
índio, também pretendida como contendo uma natureza essencial, mas
negada, via de regra, nos demais espaços de interação social com a
população regional.

Todos os anos os Fulni-ô deixam suas residências nas aldeias (Sede e Xixia-khla) (Ilust.

21 e 22) ou nas cidades onde moram, para viverem coletivamente durante um pouco mais de três meses

no território sagrado do Ouricuri (Ilust.23).31 Cada família tem uma casa neste local para residir durante

este período. Todos os Fulni-ô devem participar do Ouricuri, exceto os cônjuges não índios e os filhos

mestiços que não foram iniciados no ritual até uma certa faixa de idade infantil, cuja idade não quiseram

nos precisar.

Neste novo convívio social, todos vivem outro tipo de relações, por exemplo: não podem

brigar entre si; ajudam-se mutuamente; e, quando é o caso, resolvem-se às inimizades ocorridas durante

o resto do ano. Os Fulni-ô, em seu território sagrado devem viver dentro dos princípios e regras dos

antepassados. Os casais não devem ter relações sexuais neste território e os homens têm uma parte do

espaço desta aldeia em que as mulheres não podem pisar.

31
Há uma gleba de 360 a 380 ha (não há precisão na demarcação) destinada para o Ouricuri, que é de uso
coletivo e para os rituais. Seu uso é administrado pelo Pajé e pelo o Cacique.
Ilustração 21 – Índia Fátima Maria Mattos e família saem da Aldeia Sede para a Aldeia
do Ouricuri.
(agosto de 1994)
Ilustração 22 – Aspectos físicos da Aldeia Xixia-khla.
(julho de 1997)
Ilustração 23 – Índias Antônia Rodrigues e Marilena Araújo de Sá com seu filho Siato,
No interior da “Casa das Mulheres” no Ouricuri.
(outubro de 1997).
79

É nesta época e local que os Fulni-ô resgatam e reproduzem os valores originais da sua

indianidade. É um espaço excludente dos brancos, onde são conservados os rituais em

segredo. Os estranhos não só ficam sem assisti-los, como eles também não podem saber o

que se passa nessas cerimônias. O único dia em que se permite a presença dos estranhos é

o dia da “Abertura do Ouricuri”. Para a aldeia do Ouricuri vão multidões de não índios,

tanto de Águas Belas, como dos municípios vizinhos ou mais longínquos. Isto porque são

atribuídos muitos poderes mágicos ao Juazeiro Sagrado (Ilust. 24), presente na parte da

casa dos homens, que atrai não índios para fazerem pedidos, cumprir promessas ou

agradecer as graças alcançadas pelo Juazeiro. Como os romeiros não podem chegar

próximo ao Juazeiro, visto esta árvore está localizada na casa dos homens, eles pedem aos

índios que levem suas fitinhas e pendurem-nas nesta árvore como forma de agradecimento

aos pedidos já alcançados ou para fazerem novas petições.

A preparação para o Ouricuri ocorre logo no final de julho e durante todo o

mês de agosto. Porém, a abertura do Ouricuri acontece no final de agosto ou início de

setembro, ficando ao critério do Cacique ou Pajé.

A separação da “Aldeia Urbana”, “Aldeia Sede” ou “aldeia de cá” para o

Ouricuri é feita num clima de euforia de preparo de bagagens, arrumação de móveis como

fogões, mesas, colchões, caixas de panelas, utensílios de cozinha e outros objetos que são

inicialmente colocados nas frentes de cada casa da aldeia de Águas Belas. Os índios

transitam pelas ruas num corre-corre cheio de empolgação e alegria. Nas vésperas da

abertura do Ouricuri começa a circulação de carroças de burro, carros e caminhões cheios

de bagagens e índios em direção ao Ouricuri. Conforme os vários depoimentos que

obtivemos, todos os Fulni-ô devem estar de roupas novas para este dia.
Ilustração 24 – Na Aldeia do Ouricuri o Juazeiro Sagrado e logo atrás a “Casa dos Homens”.
(setembro de 1994)
81

Na noite da véspera de abertura o clima nos bares da cidade de Águas Belas

fica muito festivo. Esta motivação das vésperas caracteriza bem a primeira fase deste

ritual: a separação coletiva do espaço profano da aldeia para o local sagrado do Ouricuri

Neste último não haverá mais bebidas alcóolicas e com isto divertimentos provenientes das

mesmas. O dia da abertura, no domingo, começa muito cedo com os últimos índios saindo

da aldeia urbana de bicicletas, carroças ou carros, para o Ouricuri. É impressionante a

enorme fileira de caminhões, pedestres e carros apinhados de não índios a disputarem a

estreita estrada de chão para o Ouricuri. É impossível avaliar quantitativamente a multidão

que se dirigi para o Ouricuri, mas com certeza são mais de cinco mil pessoas. É uma

enorme quantidade de pessoas, dentro daquela “mini aldeia” (as casas são pequenas, de no

máximo três cômodos cada uma).

No ar um grande alarido festivo, não índios andando como que a esmo, de um

lado para o outro e a maioria dos índios acocorados na frente de suas casinhas ou

conversando com os parentes recém chegados. Alguns índios falando tranqüilamente,

deitados em suas redes no lado masculino do Ouricuri, ficam observando o movimento dos

estranhos.

Instalam-se ali algumas bancas de comércio de frutas, picolé, sorvete, água,

bolos etc. Ao que parece não é permitida a ingestão de bebidas alcoólicas, pois não

percebemos pessoas vendendo-as ou bebendo as mesmas.

No meio da multidão de não índios ficam alguns índios que depois viemos

saber que são os líderes informais de prestígio do grupo. Esses ficam fazendo o papel de

“relações públicas”, destacando o seu papel de “donos da casa” cumprimentando os

conhecidos, inclusive pessoas não índias de prestígio na região.

O ponto alto da abertura do Ouricuri é a missa, para onde se direcionam a

maioria dos não índios que estão presentes (Ilust. 25). Do lado não indígena, o celebrante é
Ilustração 25 – Missa de abertura do primeiro dia de reunião grupal no Ouricuri.
(agosto de 1994).
83

sempre uma autoridade eclesiástica de fora, escolhida cuidadosamente por suas posições

favoráveis à causa indígena. Da parte dos Fulni-ô o celebrante é um índio que discursa em

yaathê. Esta missa é rezada e cantada parte em yaathê e parte em português. Quando em

português o sermão é direcionado para os problemas indígenas: invasões de terra,

demarcação e a falta de apoio aos índios por parte do governo. Intercalado a este discurso,

o sermão também enfatiza uma certa louvação aos índios, através de pedidos para os não

índios tratarem bem os “seus irmãos índios”.

Outro aspecto que chama a atenção é a presença de candidatos a cargos

políticos locais que estavam ali cumprimentando os índios efusivamente, distribuindo

“santinhos” e ouvindo pedidos diversos de ajudas dos índios. Todos prometiam concessões

(dinheiro, passagens etc.) em troca de intenções de votos. A índia Marilena Araújo de Sá

afirmou que essa negociação de favores era freqüente. Segundo ela, e outros índios, os não

índios devem uma indenização aos índios por terem roubado suas terras e devastado a

cultura indígena. Por isso, declararam-se com direito a fazerem esses pedidos e

negociações, já que, como dizem, a FUNAI é um órgão ausente e falho em ajudar os

índios. Por volta das 13:00 horas, horário limite da presença dos não índios nesta aldeia,

todos os estranhos começam a retirar-se do Ouricuri.

A imagem do alarido da multidão na abertura do Ouricuri poderia parecer uma

fotografia disforme deste ritual. O segredo sobre os elementos místicos dos Fulni-ô

atrapalha ainda mais a um espectador desavisado. Mas ao nosso ver, consideramos que a

celebração ritual desta abertura tem o significado central de um trégua entre os Fulni-ô e

os estranhos. Ou seja, uma “paz armada e provisória” entre os conflitos e discriminações

cotidianas a que os índios são submetidos pelos não índios.

Na abertura do Ouricuri o índio é o “dono da casa”, que recebe o branco

fervorosamente, mas sempre mostrando que é ele que faz as regras, determina dia, hora e
84

forma de permanecer no espaço do Índio. E, esse I maiúsculo é o sinal gráfico do justo

orgulho de sua posição que os Fulni-ô ostentam nesse ritual. Orgulho reforçado pelos seus

poderes místicos dos quais os não índios beneficiam-se indiretamente. Orgulho de uma

supremacia pacífica aspirada pelos Fulni-ô, depois da sua sofrida experiência com a

supremacia destrutiva dos não índios, no decorrer da história de suas relações interétnicas.

Orgulho que é alçado nas negociações de favores com os poderosos brancos, pelos direitos

dos índios a indenizações por todas as perdas que os brancos lhes proporcionaram.

Será neste período de vivência coletiva que os Fulni-ô vivenciarão o Tolê em

toda a sua plenitude, como afirma o Pajé Cláudio:

O Toré é [. . .] muito importante porque nós já encontramos é o


nosso é a nossa festa, né? Diretamente três mês de [. . .] ritual é
com o nosso Toré, né? Aí é muito importante já encontramos do
nossos antepassado, né? [. . .] é de grande interesse para os índios.

Daí a importância de relatarmos e compreendermos como se dá o único

momento de aceitação do não índio nesta aldeia, pois se trata do instante inicial onde será

realizado todo um complexo ritualístico, onde o Tolê, inclusive nos seus aspectos musicais,

será realizado em toda sua plenitude.

5.3. Sobre a Padroeira e o Ouricuri

Os Fulni-ô e brancos de Águas Belas, nos dias de hoje, só podem ser pensados

num contexto de dependência interétnica. Por detrás deste chavão antropológico encontra-

se um processo de demarcação identitária que, no dizer de Oliveira(1993, viii), “propicia

uma mobilização coletiva por um território comum” e a “reelaboração de tradições

específicas”. Concordamos com o autor quando afirma que a questão indígena no Nordeste

brasileiro não pode ser reduzida a uma dimensão territorial, pois as causas e rituais comuns
85

dão às identidades “um sentimento de unidade e destino comum como povo e

nacionalidade” (Oliveira 1993, vii). O mesmo autor arremata:

Não importa o quanto os símbolos e valores venham efetivamente


de fora, o que conta é que são vividos e pensados como se
estivessem a ferro e fogo nos corpos e sentimentos dos indivíduos;
e que daí lhes determina – como uma força interior – o seu futuro
como um reencontro com o seu verdadeiro destino (Oliveira 1993,
viii).

Com isto remontamo-nos para Nascimento (1994, 294) quando diz que as

“lideranças indígenas nordestinas, em geral, perceberam com muita clareza que apresentar

um ‘ritual’ é simplesmente o código requerido pela sociedade envolvente para reconhecê-

los como ‘índios’”.

Tanto a Festa da Padroeira, Nossa Senhora da Conceição, como a abertura do

Ouricuri, poderiam ser vistas como uma festa religiosa qualquer, do interior nordestino,

porém são partes de um processo histórico de construção identitária. E para a compreensão

destas construções, remetemo-nos a Brandão(1986, 42), que inspirado no conceito de

fricção interétnica de Roberto Cardoso de Oliveira, afirma que


Identidades são representações inevitavelmente marcadas pelo
confronto com o outro [. . .] mais que isto, são apenas o produto
inevitável da oposição por contraste, mas o próprio reconhecimento
social da diferença. A construção das imagens com que sujeitos e
povos se percebem passa pelo emaranhado de suas culturas, nos
pontos de intersecção com as vidas individuais. Ela tem a ver, ali,
com processos ativos de conflito, luta, manipulação. Um povo ao
mesmo tempo se nega a si mesmo e se afirma como uma identidade
de dominado ou perseguido, integradora de valores negativos e
positivos de diferenciação. Por que ele não pode deixar de ver-se
como dominado, tal como o negro escravo acaba ‘se vendo’através
dos olhos do senhor branco. Mas, porque também a sua própria
condição engendra a necessidade de lutar pela sua sobrevivência e
nesta luta incluem-se os símbolos que preservam uma identidade de
minoria, de dominado, mas, de qualquer modo, uma identidade
própria [. . .] construída não apenas por oposição à outro - a maioria
dominante – mas para opor-se a ela. Para estabelecer a diferença.

São estes pontos distintos, do ser Fulni-ô, que nos fazem refletir acerca da

construção de uma identidade étnica multiforme, já que tal identidade dependerá da

ocasião em que seus agentes sociais estarão inseridos. Todavia, não pretendemos, neste
86

trabalho, caminhar para tal discussão, apenas evidenciar que a dinâmica sócio-cultural

apresenta-se de uma forma evidente e complexa entre este grupo. E que o Tolê,

principalmente em seus aspectos sonoros musicais, apresenta-se como um dos principais

fatores para dar limites a essas relações sociais.


6. O Tolê

Na concepção de alguns Fulni-ô a palavra Tolê pode ter surgido por

empréstimo de vocabulário, adaptado à fonética do yaathê, incorporado de outros grupos


32
indígenas a partir do termo Toré, já que no yaathê, língua Fulni-ô, não existe o “r”

brando, ou mesmo pelo fato de não haver significados etimológicos na língua yaathê para a

palavra Tolê. Contudo, pelo fato dos Fulni-ô serem bilingües eles utilizam ambos os

termos. Vale salientar que esta prática de adaptar certos vocabulários ao yaathê é comum

entre o grupo o que não implica na perda do mesmo nome na materna. Lapenda (1968,

205) traz outros exemplos de empréstimo de vocabulário:

- Xisêfa = Josefa

- Xulxi = Jorge

- Sô = Sol

- Umi = Homem

O termo Tolê também pode ter surgido do toque dos Buzos, a partir dos dois

tons existentes nos mesmos, onde os Fulni-ô teriam formado duas sílabas onomatopaicas,

TO e LÊ. Esta última hipótese foi-nos dada por um Fulni-ô que é músico-intérprete de

gêneros musicais da sociedade nacional e que não faz parte do grupo do Tolê.

32
Veiga (1980, 91-4) discorre sobre as implicações semânticas e etimológica do termo Toré a partir de
várias pessoas que observaram alguns grupos indígenas. Portanto, de forma geral, o termo Toré pode ser atribuído
pelos seguintes fatores:
- toré ou turé, que pode designar diferentes tipos de tambores, onde a origem do “tu” pode está
relacionada as batimentos ou ao bater dos tambores;
- toré pode ser boré ou mboré, isto é, um tipo de aerofone;
- toré, pode está relacionado com “tiburée”, que significa “um assobio”;
- toré ou boré, um trompete feito com bambo ou taquara;
- toré, dança dos Carnijó [Fulni-ô] da Serra do Umã e dos índios dos Cimbres.
Cascudo (1988, 757) faz diversas referências ao termo toré como sendo uma dança indígena.
88

Porém, antes de tratarmos do Tolê Fulni-ô observemos algumas considerações feitas

por Nascimento (1994) sobre o ritual do Toré, praticado por diversos grupos indígenas no

Nordeste. Apesar de estarmos conscientes da diferença simbólica que as diversas práticas do

Toré apresentam entre si, é de grande importância sabermos quais as relações de semelhança e

diferença que os grupos indígenas, neste contexto etnográfico, apresentam diante da ideologia

étnica presente na sociedade nacional. Lembramos, entretanto, que o Tolê é uma prática contida

dentro da religião Fulni-ô e não a religião como um todo.

Nascimento (1994) trata o Toré como sendo um ritual religioso, ou seja, um

conjunto de práticas e papéis sociais presentes no universo religioso dos índios no Nordeste, os

quais utilizam esta prática como um elemento adscritivo de identificação étnica perante a

sociedade nacional. Ou ainda, referindo-se aos índios Kiriri, este autor (1994, 288) diz que o

“Toré evidencia um processo de reelaboração – como tal, condicionado culturalmente – da

linguagem em termos da qual passam a operacionalizar a comunicação, para o público em

geral.”

Nascimento (1994, 139) afirma que nestes grupos há uma “onipresença de algum

tipo de Toré”. Para tanto, classifica estes rituais em três grandes conjuntos:

Um, que reúne os grupos que praticam o chamado Ouricuri, tendo nos
Fulni-ô de Águas Belas – PE seu principal realizador; outro, menos
comum, praticante do chamado Praiá, tendo nos Pankararu de Tacaratu
– PE seu principal realizador; e, por fim, aqueles que realizam tão
somente o Toré, que é o caso mais comum (Nascimento 1994, 139-
40).33

Quando ocorrem apresentações do Toré para os estranhos – diga-se de passagem

que estes estranhos são os observadores que não fazem parte do contexto sócio-cultural do grupo

– há uma certa simplificação do verdadeiro papel que representa este evento, vindo assim a ser

33
Dentro desta classificação Nascimento cita os grupos no Nordeste que pertencem a cada uma
desta categoria, inclusive os que não apresentam qualquer tipo de “Toré” (1994, 140-41).
89

percebido como uma “dança de índio”. Os motivos religiosos pelos quais torna-se possível

a existência do Toré passam a ser omitidos pelos grupos e o Toré passa a demarcar as

fronteiras étnicas de cada grupo em frente ao diferente (Nascimento 1994, 145).

O Toré é o nome genérico de um ritual praticado por vários grupos indígenas

no Nordeste. É também um termo utilizado pelos Fulni-ô quando estão em comunicação

com os estranhos e não querem lhes transmitir quaisquer informações a mais do que uma

simples referência ao evento. Por outro lado o termo Tolê é utilizado quando os diversos

membros do grupo comunicam-se entre si ou em alguns casos especiais querem enfatizar

para algum estranho que aquele evento faz parte da construção simbólica Fulni-ô. Portanto,

podemos observar que o nome Tolê34 serve como um possível referencial para os não

Fulni-ô entenderem que existe neste grupo algo socialmente construído que não faz parte

do universo simbólico de qualquer outra sociedade. Todavia, o nome real de todo o

complexo simbólico que o compõe faz parte do segredo do grupo. Interligados a esse

segredo estão os significados culturais de cada fazer musical no Tolê, que, na sua maioria,

são evitados ao conhecimento dos estranhos. A índia Marilena Araújo de Sá demonstra a

preocupação dos Fulni-ô em evitar falar sobre o assunto que diz respeito à musicalidade

Fulni-ô dentro do Tolê.

Com relação a sua origem e significado, podemos perceber que faz parte

exclusiva do segredo Fulni-ô. Sempre que tentamos investigar este assunto ou nos foi

negada a resposta ou tivemos declarações como estas:

Bom aí essa parte que você tá falando, que se já existiu gente que
começou o Toré, cabei de de confirmar que ele é da outra geração,
né? Aí a gente não sabe da onde é que ele vem. E hoje através dos
nossos antepassados a gente vai encontrando e ele ensinando como
é que a gente pode fazer ele, mas só que ele do outro tempo, não é
do nosso alcance (Sr. Matinho).

34
Lapenda (1968) e Andrade (1989, 522) citam o termo Tolê como uma espécie de ritual que é
dançado pelos Fulni-ô ao som de trombeta (Buzo).
90

E quando se estuda a música Fulni-ô, quando se entra no campo da


música, a gente se complica, mas porque se alguém, por exemplo,
ouve um depoimento numa televisão, num vídeo ou até numa
gravação de fita cassete, por exemplo, que a gente começa a
desvendar, começa a contar a história, a origem de cada música, à
gente está desvendando os mistérios, sabe? [. . .] Mesmo que eu
tivesse autorização e sem mistério nenhum pra passar pra você, pra
contar tudo pra você, ainda você ia sentir dificuldade de entender
porque você não sabe falar a língua, você não conhece a existência
dos troncos e de meio mundo de coisa, aí também se tornar difícil
(Marilena Araújo de Sá).

Apesar de tanto segredo para com os observadores externos, foram apontadas

algumas ocorrências dentro do Tolê que fazem da nossa observação algo mais concreto,

como os sons musicais, as vestes, algumas datas de ocorrência, os bailados e a veneração e

inspiração como os membros do grupo têm a diversos elementos da natureza como por

exemplo os animais, as estrelas, as plantas, os rios:

Nós vamos dançar tineaklusa, nós vamos dançar em forma do


Cruzeiro do Sul [. . .] o que informa o Cruzeiro do Sul é as estrelas [. .
.] Aí vamos [. . .] dançar o Canto da Sabiá a dança da Sabiá, vamos
dançar a dança do Peixe, vamos dançar a dança disso (Marilena
Araújo de Sá).

Ao ser interrogada sobre os nomes das danças que poderiam ser reveladas à

sociedade não Fulni-ô, Marilena Araújo de Sá afirmou que só poderia revelar os nomes das

danças que eram permitidos conhecer. Estas danças anteriormente apresentadas eram

permitidas torná-las públicas. Esta revelação deve-se ao fato dos princípios religiosos não

estarem contidos nestas músicas ou danças.

Diante dos segredos religiosos presentes no Toré na maioria dos grupos

indígenas no Nordeste, Nascimento (1994, 146) dá ênfase a algumas hipóteses que

motivam a intensidade do segredo dentro destas comunidades:

Parece-nos que a maior ou menor abertura do grupo, com relação à


permissão para a participação de estranhos no Toré, é função do
“grau” de reconhecimento da “indianidade” que o mesmo consegue
obter da sociedade envolvente. Assim, quanto maior e mais
estabelecido esse reconhecimento, como no caso dos Fulni-ô por
91

exemplo, isto é, quanto menos se põe em dúvida a “indianidade” do


grupo, menos se mostra do Toré; e quanto menor o reconhecimento
obtido, mais se mostra. Uma coisa é certa, porém: sempre
permanece um núcleo de segredo ao qual só os índios,
especificamente os iniciados, têm acesso, e isso porque obviamente
o Toré não apenas preenche funções diacríticas, mas também
religiosas, posto que uma não excluam as outras. De modo que
podemos pensar no segredo, em si mesmo e independentemente de
seu conteúdo, como o mais importante elemento diacrítico
envolvido no ritual.

Podemos perceber que o Tolê, nos seus aspectos musicais, é realizado durante

vários períodos do ano, tanto periodicamente quanto aperiodicamente. Com relação ao

calendário fixo percebemos a presença deste ritual na Festa da Padroeira da Aldeia. No dia

do Índio e nas Festas Juninas. No que diz respeito a um calendário móvel ele pode ser

apresentado em ocasiões de convite. Durante a vivência no Ouricuri este ritual é praticado

com freqüência, porém não sabemos a sua periodicidade.

Apesar de haver alguns grupos dentro do aldeamento Fulni-ô que apresentam o

Tolê, optamos por aquele que representa o grupo em seus aspectos simbólicos e é

considerado pelos Fulni-ô como o verdadeiro grupo de Tolê. Com isto todas as nossas

descrições partiram das apresentações do “Tolê Tradicional”, “Tolê dos Velhos” ou

“TolêLha Fulni-ô”, denominações atribuídas pelos próprios índios. Esta última

denominação é a mais comumente usada dentro do grupo, pois traz interligada a partícula

Lha que tem um sentido de reverência às crenças Fulni-ô, caracterizando o Tolê como

ritual exclusivo do grupo (Boudin 1949, 75).

O Tolê é um dos símbolos mais fortes da cultura Fulni-ô. Tem o papel de

agregar o grupo, de trazer paz ao indivíduo, de trazer consciência política, de ligar a pessoa

com o sobrenatural. Cada faceta musical representa algo na cultura e sempre é dirigida

para uma determinada situação, para uma determinada pessoa. De acordo Awassury, um

Fulni-ô de apenas doze anos de idade e que tem, juntamente com sua mãe Marilena Araújo
92

de Sá e a professora Yvonildes, trabalhado como monitor da escola de língua yaathê, o Tolê não é tido

como uma diversão e sim como uma forma de comunicação com a natureza.

De acordo com Marilena Araújo de Sá os demais grupos de índios do Nordeste não utilizam

o mesmo Tolê que os Fulni-ô, embora possa apresentar, em alguns momentos, o mesmo significado.

Disse também que ao observar os Torés de outros grupos os mesmos têm muita influência negra. Para ela

a forma como os Fulni-ô encaram o Tolê é muito diferente como os outros grupos o fazem, pois estes

últimos muitas vezes dançam após terem tomado bebidas alcoólicas, o que, para os Fulni-ô, é totalmente

proibido.

Outro fator de grande importância no evento do Tolê é a possibilidade de aproximação

interétnica com a socieLdade nacional. Para afirmar nossa posição trazemos o discurso do Pajé Cláudio, o

qual diz que é este evento que

Faz o branco aproximar ao índio, é porque eles estão, essa [. . .] dança de nós
índio é esse Torezim, né? [. . .] Através desse Toré eu tô vendo o branco daqui
de Águas Belas, branco do Recife, branco de [. . .] todas cidades vizinhas vem
atrás, aí eu fico contente com isso e é a tradição da gente.

Ao que tudo indica o termo “Torezim” é atribuído àqueles grupos que são executados pelos

diversos conjuntos de apresentação musical existentes entre os Fulni-ô. A diferença principal entre estes

grupos e o TolêLha Fulni-ô é que os membros deste primeiro não fazem parte de um contexto religioso-

familiar de escolha para a participação de tal evento. Além da escolha acima citada, podemos observar

outros pontos de diferenciação do grupo principal (Ilust. 26) com relação aos outros grupos de

apresentação do “mesmo” Tolê, tais como:

Grupo principal (TolêLha Fulni-ô)

1. A idade dos participantes é superior aos trinta anos de idade;

2. As vestes são semelhantes as dos seus vizinhos não índios;

3. As manifestações musicais apresentadas dizem respeito apenas ao ritual do Tolê;

4. É exclusividade nas apresentações dos eventos religiosos não Fulni-ô, como por exemplo

na procissão da Festa da Padroeira.


Ilustração 26 – Apresentação do Grupo de Tolê na Escola de Línguas José Antônio
Moreira.
Do lado esquerdo a índia Marilena Araújo de Sá, organizadora do
evento.
(julho de 1997)
94

5. Outros grupos
1. A faixa etária dos participantes variam de criança até adultos;

2. As vestes são apropriadas para aquele evento, as quais apresenta uma

característica de “roupa de índio”, isto é, tangas, sutiã, pinturas corporais, cocais, colares,

pulseiras;

3. As manifestações musicais apresentadas dizem respeito aos diversos

gêneros musicais que compõe a cultura Fulni-ô;

4. Fazem apresentação nas escolas, praças, teatros, órgãos públicos.

Podemos ainda enfatizar que os timbres, as amplitudes vocais, as pontuações e

ligações rítmicas, os bailados, as dinâmicas, a força e a seriedade corporal de cada membro

do TolêLha Fulni-ô, ou seja, do grupo principal, dão a estes toda uma qualificação sui

generis de participação dentro do grupo.

Para o Padre José Luís, atual líder católico da paróquia de Águas Belas e outras

cidades vizinhas, o Tolê expressa um sentimento muito forte dos Fulni-ô. É uma forma que

eles encontraram para mostrarem “sua fé, a sua religiosidade”. Embora, o Padre José Luís

não compreenda os significados que compõem o Ritual do Tolê, sua afirmação é que este

Ritual consegue transmitir “algo sagrado, algo profundo, algo que comunica a Divindade”.
7. Aspectos Organológicos no Tolê Fulni-ô

A estrutura organológica no Tolê é composta pelo Buzo e Maracá. Citações ou

paráfrases da entrevista com o Sr. Matinho (executante de Buzo), o Sr. Fipa (executante de

Maracá) e o Sr. Alexandre (um ouvinte-participante de nossa conversa), serão usadas,

assim como a própria entrevista, está anexada a este trabalho (Anexo 1).

Há uma forte ênfase sobre o material com o qual os instrumentos são

construídos. Onde estes são do "mato [. . .] é da obra da natureza" e estão presente no

grupo desde tempos imemoriais.

Todavia, Izikowitz considera os "Toré Clarinets", observados por ele entre as

diversas tribos da Guiana e também ao longo do Amazonas e seus tributários, como sendo

idioglóticas (1935:251), isto é,

clarinetas feitas de uma taquara (bambu) na qual um septo foi


deixado no lugar e perfurado. Na perfuração o bocal de clarinete é
fixado. A parte superior assim constitui uma espécie de câmara de
ar, enquanto a parte inferior forma um ressonador. Quanto mais
longe esta parte, mais grave é o som.

Assim como as clarinetas observadas por Izikowitz os Buzos também são

clarinetas idioglóticas. São cobertos por um pano pintado de vermelho, com crauá. A parte

exterior do Buzo que serve como uma caixa de ressonância é feita do facheiro ou "canela

de veado". Uma parte do pedaço escolhido é cavada com um pau qualquer para poder

inserir um pequeno instrumento de sopro de palheta simples feito de taquarí (madeira ôca),

que também recebe este mesmo nome. O taquarí é calçado e colado (com cera de abelha) a

um sabugo de milho ou qualquer madeira semelhante (mole o bastante para o taquari

penetrar nela) que também estão dentro do facheiro.


96

Os dois Buzos, apesar de poderem ser do mesmo tamanho, são afinados de

forma diferente, esta afinação sendo modificada pelo acréscimo ou diminuição da cera

posta na base da palheta. Desta forma, um apresentando o "som de meio" (mais grave) e

outro o "som alto" (mais agudo).

Com relação ao Maracá ele pode ser feito de coco, de cuité ou de cabaça –

pintados com tauá –, que são presos a um pau roliço. Contudo, o material mais utilizado é a

cabaça. Dentro do Maracá pode ser colocado "semente de meiru, pedra ou até mesmo

chumbo".35

A partir de nossa observação in loco percebemos que a afinação dos Buzos

coincidem com o que eles afirmaram anteriormente, ou seja, o Buzo maior como sendo o

sonoramente mais grave e o Buzo menor como sendo o mais agudo.

Estes instrumentos sonoros servem como um forte elo dos índios com o Tolê,

pois como disse o Sr. Matinho

ele faz parte da obra da natureza e a gente respeita, porque todo


índio sabe que o Toré faz parte da natureza, primeiro o preparo dele
é tudo feito da obra da natureza, que é a madeira, né? Tudo dele é
feito da obra da natureza, aí é por isso que a gente dá o respeito
dele e considera ele bastante porque ele é feito da obra da natureza
é feito por, desde da outra geração que ele é feito.

Todavia, é bom salientar que, quase sempre, os instrumentos musicais que

compõem o ritual recebem o nome genérico de Tolê ou Toré. Ao que parece o uso deste

nome ocorre quando os Fulni-ô estão em comunicação com pessoas não pertencentes ao

seu grupo. Apesar dos Fulni-ô terem em segredo o nome de seus instrumentos sagrados, o

Pajé Cláudio informou que o Buzo em yaathê tem o nome de Tsaka Tolelidowa e o Maracá

o nome de Tsaka. Cremos que esta informação não revela por inteiro o verdadeiro nome

35
Este último material o Sr. Matinho não recomendou pelo fato de tornar o Maracá mais
pesado.
97

destes instrumentos, pois em diversos momentos de nossas entrevistas com os informantes

Fulni-ô não nos foram revelados, de forma intencional, os nomes destes instrumentos no

yaathê.

Porém, Pinto (1956, 136-37) faz menção ao nome do Buzo e do Maracá na

língua yaathê, descrevendo com detalhes as partes dos mesmos:

O instrumento principal é a trombeta (khítxá), canudo de facheiro,


dentro do qual se introduz o pífano feito de dois pedaços de taquarí
(tyityínewa), ligados por cera de abelha. Um sabugo de milho
(maltyi-têkodo) sustenta o taquarí no óco da trombeta. Cobre-se o
instrumento com uma capa de flanela, quase sempre vermelha,
prêsa por laços de fitas; a flanela é molhada, de tempos em tempos,
para evitar rachaduras na taboca. O outro instrumento, que serve
para acompanhar o canto, é o maracá (tsaká) de coité, com caroços
de periquiti ou mulungu; segundo me contaram, os maracás dos
torés públicos não são os mesmos usados nos ritos ouricurianos.

Comparando esta descrição com as nossas observações in loco, em parte já citada

na entrevista anteriormente demostrada, podemos constatar algumas diferenças em ambas

observações. Primeiro, o termo trombeta, dado ao Buzo, cuja embocadura tem o lábio como

seu elemento vibrador do ar e consecutivamente produzindo o som, não coincide com a

formação deste, já que a embocadura do Buzo é constituída de palheta simples como elemento

gerador do som, isto é, podendo ser mais comparado ou nomeado com os aerofones que fazem

parte desta categoria organológica, como por exemplo à clarineta com o corpo cilíndrico –

With cylindrical bore – presente no trabalho de classificação de Hornbostel e Sachs (1961, 27)

ou aos instrumentos de palheta – Reed – com um extra-resonador tubular – extratubular

resonador – presente no trabalho de classificação de Dournon, onde esta autora toma como

exemplo os índios Wayãpi da Guiana, que têm um instrumento musical semelhante ao

instrumento por nós observado (1992, 284).


98

Segundo, a palavra khitxá diz respeito a qualquer instrumento sonoro que é

soprado e não a um instrumento em específico, além do que a maneira real de grafar é

khiithxa.

Terceiro, o Maracá (Tsaka) que é utilizado pelo grupo pode ser feito do cuité,

cabaça ou coco.

Portanto, com o desenho abaixo (Ilust. 27) podemos observar que o Buzo

possui um grande corpo resonador, com pouco mais de 1 m, feito de canela de veado ou

facheiro o qual é coberto por um pano atado, neste corpo, por fitas. O facheiro, de

superfície plana, tem ¼ do seu corpo cavado para a inserção do sabugo de milho – colado

no seu interior com cera de abelha – e do taquarí que tem como base o sabugo de milho.

Contudo, é no taquarí que encontraremos a formação do som do Buzo. O

taquarí, que tem um corpo oco e bastante leve, possui em sua parte superior uma lingüeta

feita de casca de bambu ou de milho, a qual é interligada por cordão vegetal e cera de

abelha ao corpo do instrumento. O ar, ao entrar no início do tubo, faz esta lingüeta vibrar

junto ao corpo do instrumento e sai por um orifício localizado no corpo do taquarí no fim

da lingüeta e, desta forma, produz o som. Semelhante aos caminhos que nós temos tentado

classificar o Buso, Camêu (1976, 243) menciona os trabalhos de Spix e Martius e Koch

Grünberg, onde estes pesquisadores retratam um instrumento de sopro semelhantes ao

Buzo:

Spix e Martius citaram o Toré dos Botocudos feito de colmo de


taquara “em cujo nó furado (prendiam) um pedacinho de bambu, a
modo de lingueta, de sorte que o todo representa (va) a mais tosca
imitação de uma garganta”. Koch Grünberg aponta, em Von
Roraíma zum Orenoco, a clarineta (como classificou) já possuindo
bocal e palheta na parte inferior, a Tké-yá.

O Maracá é constituído de um punho de madeira maciça – sem denominação

específica –, de cera de abelha, do fruto de cuité, da cabaça ou do coco e de sementes,


Ilustração 27 – Descrição gráfica do Buzo e do Maracá.
100

pedras ou chumbos. Organologicamente podemos classificar este instrumento como sendo

um chocalho (shaking) globular, ou seja, um idiofone de corpo fechado cujo material

sólido tem sua produção sonora a partir do entrechoque das sementes presentes dentro do

seu próprio corpo. Vale salientar que no corpo deste instrumento podemos verificar a

presença de alguns

furos, os quais, conforme seus executantes, têm o papel de expandir o som. Com relação a

estes, furos Camêu (1977, 207) supõe ser imprecisa a sua real validade dentro dos diversos

grupos indígenas que os utilizam. De acordo com os depoimentos dos músicos a função do

Buzo (Ilust. 28) é dar base à melodia cantada pelos membros do Tolê e a do Maracá (Ilust.

29) dar base ao ritmo. Estas conclusões êmicas coincidem com as nossas observações, pois

as quatro transcrições estão basicamente em torno de um mesmo registro sonoro e a

marcação do maracá serve como um eixo rítmico.


Ilustração 28 – Índio Manoel Mattos (Matinho) segurando dois Buzos.
(julho de 1997)
102

Ilustração 29 – Índio Aristides Leite (Fipa) segurando um Maracá.


(julho de 1997)
8. Rumo a uma análise da música no Tolê Fulni-ô

8.1. Um cântico sem letra

Os Fulni-ô percebem o cântico sem letra como sendo algo relacionado com o

início da humanidade. Dizem que grande parte da humanidade perdeu a consciência do que

significava estas melodias, ficando assim presentes apenas na consciência indígena. Para

tal afirmação remetemo-nos a Marilena Araújo de Sá, a qual diz que

Nem uma língua ou nem uma música ela tinham letra, todas elas
eram melodiosas [. . .] e hoje só os índios é quem sabem identificar,
sabe? O símbolo da música pela a melodia, mas aqueles índios que
têm um ritual e que sabe relacionar. O Toré, por exemplo, que são
só melodiosas, num é? Essas melodias, que até hoje que não muda,
há momentos muito interessante que aparecem palavras, no Toré,
mas que só nós entendemos.

O texto que serve de base para a melodia vocal tem sua formação constituída

de sílabas “onomatopaicas” como o he, ‘a, ke e e,36 que não apresentam um sentido

semântico. Esses fonemas são entoados de forma nasalizada, revelando uma ressonância

eminentemente superior, localizada nas regiões da face à altura das narinas.

O Tolê tem o seu significado atrelado à língua yaathê, pois só os índios que

conhecem “a língua [. . .] sabem o significado do Toré, o que é que ele representa, o que

ele pode, o que ele deve, o que ele faz” (Marilena Araújo de Sá).

De acordo com Marilena Araújo de Sá, o que entendemos por facetas musicais

36
Para a transcrição gráfica dos cânticos onomatopáicos utilizamos o Alfabeto Fonético
Internacional. Salientamos que o 'a é um substituto do . Esta substituição deve-se ao fato de facilitar a
escrita. Para maiores explicações sobre tais signos ver: Dubois (1973, 34-40) e Cagliari (1992, 53-6).
104

no Tolê, já existia antes da origem dos Fulni-ô. Elas se encontram no espaço37 e durante a

realização do Tolê entram na mente das pessoas presentes no evento. Marilena Araújo de

Sá exemplifica este fato da seguinte forma: se por acaso alguém puxar uma determinada

cantiga que os outros ali nunca ouviram ou cantaram anteriormente, todos o acompanharão

naturalmente como se já a conhecessem.38

Os Fulni-ô desconhecem o conceito de composição e entendem o aparecimento

de uma "nova" melodia como algo coletivo e espiritual que faz parte de um conhecimento

comum já existente, embora de fato possa ser uma melodia nova. Este fato é

enfatizado por Béhague (1992, 8) ao dizer que

pode não ser sustentável qualificar de composição a aquisição de


novos cantos por visões mágicas ou sonhos entre muitos povos
indígenas. Os que criam esses cantos podem não conceber estar
compondo, no sentido mais geral que damos a essa atividade.

Desta forma, a observação do fazer musical Fulni-ô no Tolê remete-nos para a

compreensão deste evento como estando atrelado às diversas formas de decodificações

coletivas de símbolos sonoros. Decodificações estas que dizem respeito aos aspectos da

cosmovisão do grupo. A estética sonora submete-se aos signos culturais, onde estes

últimos são quem direcionam os indivíduos para uma determinada produção sonora, pois,

conforme Marilena Araújo de Sá, os improvisos musicais são uma constante dentro do

Tolê, não obedecendo a uma regra determinada pelos ensaios, quando estes ocorrem. O

indivíduo retorna ao coletivo a partir das regras pré-estabelecidas pela tradição grupal, pois

a “ idéia de uma pessoa ser reconhecida como compositor e nada mais na sociedade em

que opera parece ser tipicamente ocidental” (Béhague 1992, 9).

37
Confirmando a afirmação Marilena Araújo de Sá, Alfred Metraux (1978, 137), ao assistir
uma apresentação de Tolê em 6 de dezembro de 1951, mencionou um índio Fulni-ô, afirmando que aquelas
músicas existiam em todo o ar.
38
De acordo com os Fulni-ô não há um número limitado de melodias no Tolê. Entretanto,
quando tais melodias surgem têm seus significados reconhecidos pelo grupo.
105

8.2. Uma ponte para a relação interétnica

Nos diversos momentos do nosso convívio com os Fulni-ô, procuramos registrar

sonoramente o ritual do Tolê, porém apenas na última ida ao campo é que conseguimos fazer

uma gravação que possibilitasse uma boa compreensão da maior parte do material musical

existente no Tolê.

A maior parte dos dados musicais no Tolê demonstrados neste capítulo são partes de

uma apresentação do grupo do Tolê em uma sala da Escola de Língua Antônio José Moreira.39 A

Fulni-ô Marilena Araújo de Sá, que é professora pela FUNAI, exerce o cargo de conselheira de

cultura do estado de Pernambuco, no conselho de música, e tem um forte papel de líder informal

entre os Fulni-ô, coordenou a apresentação. O motivo da apresentação deu-se, até onde sabemos,

unicamente pelo fato de pedirmos que fosse feita esta demonstração do Tolê Fulni-ô para fins de

registro em fotografia, filmagem e audio.

A sala onde o grupo apresentou-se estava repleta de “ouvintes”, principalmente

crianças. Antes de iniciar o Tolê as conversas cresciam à medida que aumentava o número de

“espectadores”. Porém, quando o puxador do Tolê iniciou o canto, com o chacoalhar do Maracá,

iniciou-se o canto e todos ficaram em silêncio total.

O Tolê é apresentado, em média, por quatorze componentes, sendo dez mulheres e

quatro homens. As mulheres têm “funções” de dançarinas e de cantoras. Os homens, por sua vez,

são divididos em dois grupos nos quais dois cantam ao mesmo tempo em que tocam Maracá (um

instrumento para cada homem) e os outros dois tocam o Buzo. No caso desta apresentação

apenas um homem cantou e tocou o Maracá.

39
Esta escola, reconhecida pela Secretaria de Educação, foi fundada em 1989 dentro da própria
aldeia Fulni-ô, com o auxílio da FUNAI, porém as iniciativas para o funcionamento da mesma partiram da
Índia Marilena Araújo de Sá, professora deste mesmo órgão governamental, que elaborou uma cartilha de
língua yaathê. Como o seu principal objetivo é alfabetizar os Fulni-ô na sua língua materna, participam todas
as pessoas das diferentes faixas etárias do grupo, porém são as crianças quem mais freqüentam a sala de aula.
Os professores que compõem o quadro de ensino são Fulni-ô, utilizam como programa de ensino os próprios
elementos da cultura.
106

Vale salientar, que quaisquer apresentações do Tolê ocorrem a partir do

consentimento do Cacique e do Pajé, que são, ao que nos parece, as parecem principais

lideranças do grupo. Porém, há outros líderes presentes dentro do próprio grupo do Tolê, os quais

desempenham função de coordenar os componentes do grupo no momento do evento. Por

exemplo, quem está com o Buzo fazendo a chamada para as mulheres tem um tipo de liderança e

quem está puxando o canto tem outro tipo de liderança. Maiores conclusões sobre o que são estas

lideranças, como podem ser denominadas na língua, quais as suas funções religiosas, como

podem ser eleitas, não foi possível conhecer por serem parte do segredo do grupo.

8.3. Quem Participa?

Mesmo os Fulni-ô tendo uma organização social formada a partir de metades

clânicas,40 de subgrupos dentro do próprio grupo, a índia Marilena Araújo de Sá afirmou não ser

proibido a execução do Tolê por qualquer membro Fulni-ô, mas “vai ser com índios de

determinado tronco [clã] que se irá encontrar o Tolê com os verdadeiros tons e ritmos”.

Quando uma criança dança o Tolê geralmente ela geralmente irá dançar

quando adulta. Segundo opinião de alguns informantes a partir desta colocação observar

que a questão da herança familiar é um ponto bem marcante para definir quem pode

participar do Tolê, pois, quase sempre, quando são feitos testes com crianças para

participarem deste evento, as que mais se destacam são justamente as mesmas que tiveram

seus antepassados envolvidos com o Tolê. Da mesma forma o índio Valério herdou a

função de tocar o Buzo no TolêLha, que tem a função de tocar o Buzo no TolêLha de seu

pai. Conforme ele o aprendizado do toque do Buzo começa a partir da imitação de um

tocador experiente por

40
Tanto Pinto (1956) como Boudin (1949) trazem diversos considerações sobre este tipo
de organização Fulni-ô. Entendemos ser desnecessário a citação destes trabalhos por dois motivos: o
primeiro pelo fato do grupo não considerar tais informações como sendo verídicas e o segundo é que tais
pesquisadores tentaram, de uma certa forma, delatar a cultura do grupo para os não índios, não levando em
consideração os aspectos secretos existentes nesta sociedade.
107

outro que está aprendendo, da seguinte forma:

É quando a gente toca para ele escutar pelo ritmo que a gente tá
levando. Pelo ritmo ou ele, se a gente leva um ritmo estirado aquele
leva um ritmo cortando [. . . ]. Pra cortando o ritmo da gente.
Quando eu levo um ritmo cortado [com contratempos, destacados]
ele já pode levar um ritmo arrastado, aí entrosa os cantos [. . .]. Aí é
quando encaixa [. . . ] Todo toque é nas mãos e nos pés. As mãos é
quem dá todo sinal, em toda a dança [. . .]. É a mão que dá todo
ritmo dos pés.

Entre as muitas manifestações musicais presentes no Tolê Fulni-ô, só tivemos

acesso a quatro, mais os toques dos Buzos acompanhados do Maracá (Anexo 2). Esses

dois últimos foram feitos à parte do evento realizado na Escola Antônio José Moreira. Expomos

graficamente alguns parâmetros musicais, como altura e duração, para desta forma

traçarmos um caminho lógico deste fazer musical Fulni-ô. Ou seja, apresentamos uma grafia

musical interligada apenas ao descritivo (Nettl 1983, 11) e não a execução musical como

um todo. Desta forma concordamos com Camêu (1977, 107) ao dizer que

o canto indígena, como qualquer outro, pode ser transportado para


a pauta, até com abundância de minúcias. O que é impossível é
apontar graficamente todas as inflexões derivadas da palavra e
transmitidas pela emotividade do intérprete. Ainda uma vez deve-
se frisar: isso não se dá apenas com a música do índio, porquanto
todas as notações até agora aparecidas somente podem indicar a
parte técnica e nunca transmitir a emoção experimentada pelo autor
ou pelo intérprete.

Vimos que no decorrer de sua execução cada faceta musical obedece a um

círculo de “repetição” musical. Diante destas “repetições” transcrevemos todas em sua

totalidade.

8.4. Sobre as Performances

Conforme Marilena Araújo de Sá as coreografias do Tolê são diversas, estão

sempre subordinadas ao contexto simbólico do grupo. Em relação às três primeiras facetas

musicais, percebemos que a apresentação do grupo obedeceu a seguinte ordem: O cântico


108

foi iniciado pelo homem que estava com um Maracá – nesse caso apenas um homem

estava tocando o Maracá, enquanto dois homens geralmente tocam os Maracás. Os outros

dois homens que dançaram e tocaram o Buzo, de mãos dadas, bailaram com passos largos

para frente, para trás e para os lados, vindo logo buscar a primeira dançarina da fila. Esta,

por sua vez, ficou circulando os tocadores do Buzo com passos curtos até que estes a

devolvesse à fila. Vale salientar que o cântico pode ser iniciado por uma das mulheres

presentes na fila feminina e, geralmente, o número das mulheres fica em torno de oito a

dez, neste caso este número foi aumentado no decorrer da apresentação das últimas facetas

musicais, pois chegaram atrasadas para o evento.

Entretanto, quando o grupo apresentou a quarta faceta musical todas as

condutas em relação à dança se modificaram. Todos os componentes formaram uma única

fila indiana em círculo ante horário, na qual ficaram circulando a sala de forma risonha.

Nos informaram que esta apresentação era para “branco ver”.

Apesar de não observarmos na quarta faceta musical algo profundamente sério,

a execução do Tolê pressupõe, mesmo para aqueles que não fazem parte da cultura Fulni-ô,

algo de extrema seriedade. É como declara a águas-belenses Januacele ao afirmar que o

que é mais bonito no Tolê é porque ele

Não é uma dança alegre, é uma dança fúnebre, um ritual como se


fizesse alguma coisa de compenetração. Você vê que aqueles
tocadores de flauta, eles ficam lá de cabeça baixa o tempo todo e as
mulheres [. . .], elas ficam aguardando só a hora delas entrarem na
dança, mas num [. . .] tem alegria [. . .], deve ter um prazer, eu acho
que se tiver um prazer é um prazer interior, que não transparece.

Cada faceta musical foi repetida até que a última mulher da fila entrasse para

dançar e voltasse para a fila. Neste momento é dado início a uma outra faceta musical e

com ela a “mesma” dança citada anteriormente. Existem casos em que duas mulheres

chegam a entrar na roda, mas isto não é comum. Esta ocorrência é citada por Estevão Pinto
109

(1956) como se fosse uma constante no bailado Fulni-ô. Só vimos esta forma de dança

ocorrer apenas uma vez.

É bom salientar que a disposição das mulheres na fila obedece a uma regra

social, a qual não foi revelada. Ou seja a primeira mulher, a segunda, a terceira e assim por

diante, que estão na fila cantando e participando do bailado, sempre ocupam o mesmo

lugar quando ocorre apresentação do Tolê.

8.5. Observando cada exemplo musical

Antes de tratarmos dos detalhes musicais presentes em cada faceta musical,

aqui transcrita, devemos chamar a atenção para o fato de que a cultura ocidental criou uma

música baseada em uma escala de doze semitons e que estas acomodações intervalares

correspondem apenas aos instrumentos temperados. O que não ocorre quando tratarmos

dos instrumentos não temperados, os quais possuem um sistema de afinação capaz de

atingir intervalos bem menores do que o semitom do sistema temperado.

Mesmo com o uso da partitura, não é possível chegar a uma execução que

atinja, nos mínimos detalhes, uma uniformidade sonora em todo um conjunto musical.

Portanto, apesar de tentarmos mostrar através da transcrição como se realiza a execução

desta prática musical presente no Tolê Fulni-ô, estamos cientes de que os pequenos

nuances de duração e altura ficaram fora da grafia musical a que nos propomos fazer, pois

tal grafia não contém os

sinais necessários para uma descrição perfeita do evento, se é que isto possa ser atingido.

Outro fator de grande importância que deixamos de enfatizar dentro da grafia

musical foram os passos com que os dançarinos marcavam de forma intensiva a execução

de cada faceta musical. Esta omissão nas partituras deve-se ao fato da pouca capacidade de

recepção do microfone utilizado durante a gravação. Apesar de tudo, deixamos, no final


110

deste capítulo, nossa contribuição com relação aos passos dos dançarinos no Tolê Fulni-ô.

Por enquanto recorremos a Camêu (1977, 173), para as possíveis interpretações dos

sentidos simbólicos presentes no bailado no Tolê, a qual diz que

Os passos se diferenciam pela marcação dos impulsos, pelas


batidas fortes e fracas exigidas pela regularidade rítmica do
conjunto [. . .] poderão estar ligados ao sentido do trecho ou à razão
do todo. Há danças nas quais é claro a imitação do caminhar ou do
rastejar de animais e certas formações apresentam configuração
especial atendendo a propósitos deliberados.

Todavia, expomos, com as transcrições em anexo (Anexo 2), algumas teias que

formam esta rede musical, na qual podemos observar sua forma, as constâncias musicais,

enfim, uma sistematização de movimentos sonoros presentes neste partícula da cultura

Fulni-ô.

Dividimos cada transcrição em ciclos musicais, períodos e frases.

Entendendo o primeiro como sendo a repetição modificada ou não dos períodos e

frases; o segundo como sendo “um enunciado musical concluído por uma cadência ou

constituídos de frases complementares” (Sadie 1994, 713). Com relação à frase

concordamos com Schoenberg (1993, 29) para quem a frase é “uma unidade aproximada

àquilo que se pode cantar em um só fôlego. Seu final sugere uma forma de pontuação, tal

como uma vírgula”. Em relação aos finais de uma frase, Schoenberg (1993, 30) afirma que

podem ser assinalados como sendo a reunião de diversas


características, tais como a redução rítmica, o relaxamento
melódico determinado por uma queda de freqüência, o uso de
intervalos menores e de um menor número de notas, ou por
qualquer outra forma adequada de diferenciação.

Para a transcrição em partitura escolhemos uma pauta de cinco linhas para

indicar o desenho musical das vozes masculinas e femininas e dos dois Buzos e de uma

linha, como indicador da marcação rítmica do Maracá. Escolhemos a clave de sol por dá
111

mais comodidade às vozes na pauta. Os sinais de alteração de freqüência das notas foram

colocados ao lado das mesmas em substituto das armaduras de clave por não dar uma idéia

de escalas construídas a partir de um ou outro modo musical específico, já que, quando em

execução, as facetas musicais não dão uma idéia de um modo ocidental preexistente, e sim

de um desenho musical existente a partir da cultura em questão. As barras de compassos,

bem como os números que as identificam, foram eliminadas pelo fato de percebermos um

caráter mais livre no texto musical.

A primeira transcrição apresenta dez ciclos musicais, onde todos têm três

períodos musicais e em diversos momentos há uma relação de terça em algumas vozes. A

segunda apresenta quinze ciclos musicais, todos constituídos por dois períodos e em

diversos momentos há uma relação de quinta entre as vozes. A terceira apresenta onze

ciclos musicais, onde os dez primeiros apresentam três períodos e o último apresenta dois

períodos e em diversos momentos as vozes saltam em intervalos ascendentes de oitava

como auxílio para uma boa execução do canto. A quarta apresenta vinte e sete ciclos

musicais e em diversos momentos há uma relação de terça entre as vozes. A quinta e a

sexta transcrições fazem parte da mesma gravação, entretanto percebemos duas formas de

divisão rítmica, onde a primeira apresenta uma divisão binária e a segunda uma divisão

ternária.

Embora cada círculo, de cada faceta musical, assemelhe-se um ao outro em

seus aspectos melódicos e rítmicos, ou seja, no que se refere às cadências, às notas

atrativas, à unidade rítmica, ao desenho melódico, à homofonia, ao timbre, a forma etc.,

encontraremos a diferença musical entre eles quando observarmos os pontos de apoios –

conclusivos ou meio-conclusivos (Camêu 1977, 118), os fonemas, as respirações, a

polifonia vocal, que compõem os mesmos.


112

A Transcrição Musical 1 é composta por um andamento de aproximadamente

oitenta pulsações de semínimas (pontuadas ou não) por minuto. A melodia, de frases

descendentes, é construída dentro de um âmbito total de uma oitava mais um semitom,

onde o sol41 funciona como a nota atrativa para quem as demais estarão sempre se

conduzindo. Ou seja, percebemos, sem nenhuma exceção, que o sol fará parte de todos os

finais de períodos. Em geral a forma rítmica que estará presente em todo o texto

musical será basicamente a junção dos períodos A (9 marcações) + B (7 marcações) +

C (12 marcações) = 28 marcações ternária de Maracá por círculo musical. O círculo

musical é composto por três períodos. Podemos perceber algumas variações no primeiro

período do primeiro círculo o qual indicia a parte do solista, que é composta por apenas

quatro marcações. É o solista também que indica qual a faceta musical que deverá ser

cantada. No primeiro período do segundo círculo, ocorrem oito marcações, apesar desta

variação rítmica do Maracá, podemos perceber que a partir deste círculo todos estes

períodos serviram como uma ponte para iniciar o período B e com isto finalizar no período

C. Outra mudança na forma nesta faceta musical está no terceiro círculo musical em que no

período B ocorrem oito marcações do Maracá.

O primeiro período do primeiro círculo, iniciado com o solista, tem duas frases

inseridas em um âmbito melódico de uma oitava mais um semitom. Dois tipos de acentos

podem ser percebidos neste período: um que diz respeito à linha melódica vocal e outro

que diz respeito à marcação do Maracá.

A primeira frase apresenta-se com uma subdivisão e acentuação binária. A

partir da segunda frase toda a linha vocal será construída com uma acentuação e subdivisão

ternária. Talvez a diferença da primeira frase com as restantes deva-se ao fato da primeira

não estar acompanhada do Maracá.

41
A nota aproximadamente real, a partir do lá 440, desta faceta musical é o mib. Escolhemos o
113

Na segunda frase, já acompanhada do Maracá, a melodia passa a construir uma

marcação ternária. É importante frisar que a primeira frase é concluída com o fonema he e

'a segunda com fonema ´a, fator não muito comum no final de frases presente nas demais

facetas, pois sempre terminam com o fonema 'a.

O segundo período do primeiro círculo, em que ocorre a junção da voz

masculina com as vozes femininas, é composto de três frases inseridas em um âmbito

melódico de uma oitava mais um semitom. Dois tipos de acentos podem ser percebidos

neste período: Um que diz respeito à linha melódica vocal e outro que diz respeito à

marcação do Maracá, onde a melodia é acentuada em um espaço de 9+9+9 colcheias e o

Maracá em um espaço de 3 em 3 colcheias.42

O terceiro período do primeiro círculo inicia-se com um contratempo, pois a

melodia apresenta-se com uma pausa de colcheia na primeira marcação do Maracá. A parte

melódica é dividida em quatro frases as quais estão inseridas em um âmbito melódico de

uma quinta justa. Três tipos de acentos podem ser percebidos neste período: Dois que

dizem respeito à linha melódica vocal e um que diz respeito à marcação do Maracá, onde a

melodia é acentuada em um espaço de 9+9+9+9+2 colcheias e o Maracá em um espaço de

3 em 3 colcheias.43

O primeiro período do segundo círculo inicia com um contratempo, pois a

melodia apresenta-se com uma pausa de colcheia na primeira marcação do Maracá. A parte

melódica é dividida em duas frases as quais estão inseridas em um âmbito melódico de

uma

sol, como nota atrativa, por ser mais cômodo em termos de visualização das vozes no pentagrama.
42
É bom ressaltar que na passagem do primeiro período (A) para o
segundo período (A’) a acentuação na parte vocal ocorre num espaço de 3 colcheias. Da mesma forma
ocorrem nos terceiros períodos (C) para os primeiros períodos (A’) dos ciclos musicais seguintes.
43
É bom ressaltar que na passagem do segundo período (B) para o terceiro período (C) a acentuação
na parte vocal ocorre num espaço de 12 colcheias. Esta forma, de B para C, será seguida nos demais ciclos musicais.
114

sexta maior. Três tipos de acentos podem ser percebidos neste período: Dois que dizem

respeito à linha melódica vocal e um que diz respeito à marcação do Maracá, onde a

melodia é acentuada em um espaço de 9+12 colcheias e o Maracá em um espaço de 3 em 3

colcheias.44

Os demais períodos, com exceção do primeiro período do primeiro círculo

musical, e outros ciclos musicais apresentam semelhanças com os que já foram expostos,

mostrando diferença nas disposições das vozes masculinas e femininas, que em muitos

casos

trabalham em terça paralela (ver retângulos em volta em tais notas) ou mesmo em alguns

silêncios que ocorrem nas vozes masculina e femininas. O último círculo é composto do

período A, B e C, finalizando neste último.

A Transcrição Musical 2 é composta por um andamento de aproximadamente

oitenta pulsações de semínimas por minuto. A melodia, de escala descendente, é construída

dentro de um âmbito total de uma oitava mais um tom, onde o fá45 funciona como a nota

atrativa em que as demais estarão sempre se conduzindo. Ou seja, percebemos, sem

nenhuma exceção, que o fá fará parte de todos os finais de períodos. A forma rítmica que

estará presente em todo o texto musical será de A (8 marcações) + B (8 marcações) = 16

marcações binária de Maracá por círculo musical. Com isto podemos perceber que cada

círculo musical possui dois períodos.

O primeiro período do primeiro círculo musical, iniciado pelo solista, é

composto por duas frases, inseridas em âmbito melódico de uma oitava. A primeira e

segunda frases apresentam-se com uma subdivisão e acentuação binária.

44
É bom ressaltar que na passagem do terceiro período (C) para o primeiro período seguinte (A) a
acentuação na parte vocal ocorre num espaço de 6 colcheias. Esta forma, de C para A, será seguida nos demais ciclos
musicais.
45
A nota atrativa aproximadamente real, a partir do lá 440, desta faceta musical é ré.
Escolhemos o sol por ser mais cômodo em termos de visualização das vozes no pentagrama.
115

O segundo período, em que ocorre a junção das vozes femininas e masculina, é

composto de duas frases, inseridas em âmbito melódico de uma oitava. O último círculo é

composto do período A e B, finalizando neste último.

A Transcrição Musical 3 é composta por um andamento de aproximadamente

oitenta pulsações de semínimas pontuadas por minuto. A melodia, de escala descendente, é

composta dentro de um âmbito total de uma oitava mais uma quinta justa. Onde o fá e o

sol46 funcionam como as notas atrativas em que as demais estarão sempre se conduzindo

em determinados períodos. Ou seja, percebemos, sem nenhuma exceção, que o fá fará

parte dos dois primeiros períodos de cada círculo musical e o sol do terceiro período de

cada círculo musical, com exceção do último que terminará no final do segundo período.

Com exceção do último círculo musical que é composto pela forma A (10 marcações) + B

(16 macações) marcações do Maracá, a forma rítmica que estará presente no decorrer do

texto musical será de A (10 marcações) + B (16 marcações) + C (16 marcações) = 42

marcações do Maracá por círculo musical.

O primeiro período, iniciado com o solista, tem três frases inseridas em um

âmbito melódico de uma oitava mais uma quarta justa. A acentuação da melodia

corresponde a acentuação do Maracá, ou seja, três colcheias por acento.

O segundo período, onde as vozes femininas entrarão gradativamente com a do

solista, possui três frases, inseridas num âmbito melódico de uma oitava mais uma terça

maior. A acentuação corresponde a mesma do período anterior.

O terceiro período possui duas frases inseridas num âmbito melódico de uma

oitava mais uma quarta justa. A acentuação corresponde àquela do período anterior.

A Transcrição Musical 4 é composta por um andamento de aproximadamente

46
A nota atrativa aproximadamente real, a partir do lá 440, desta faceta musical é o mi e o fá#
consecutivamente. Escolhemos o fá e o sol por ser mais cômodo em termos de visualização das vozes no
pentagrama.
116

oitenta pulsações de semínimas por minuto. A melodia é construída dentro de um âmbito

total de uma sétima menor, onde o fá47 funciona como a nota atrativa de todo o conjunto. A

forma rítmica que estará presente em todo o texto musical será de 6 marcações de Maracá

por círculo musical. O período que forma cada círculo musical desta faceta musical tem

apenas uma frase. A acentuação da melodia corresponde a do Maracá.

A Transcrição Musical 4 difere das outras três tanto no texto musical onde o

número de notas é reduzida a uma escala hexatônica, cada círculo musical apresenta

apenas um período e uma frase, há pouca variação polifônica, como também no

envolvimento emocional dos participantes para aquele evento, onde, neste caso, todos

cantam e dançam ao som de altas gargalhadas. Vale salientar, que Marilena Araújo de Sá

disse que aquela faceta musical era para "branco ver".

Por outro lado podemos resumir que nas três primeiras facetas musicais existe

um

andamento rápido. Além de um ritmo binário ou ternário, construído com figuras curtas e

alternadas, algumas vezes, por síncopes e contratempos observamos também um desenho

rítmico-vocal linear, sem muitas variações, apenas ressaltado pelos passos dos dançarinos

que contraponteiam sonoramente com as vozes e com o ostinato produzidos pelos Buzos,

acompanhados da marcação regular do Maracá, o qual faz com que ocorra uma

regularidade rítmica no conjunto. Os participante permaneceram sérios, sorriso algum saiu

47
A nota atrativa aproximadamente real, a partir do lá 440, desta faceta musical é o si.
Escolhemos o fá por ser mais cômodo em termos de visualização das vozes no pentagrama.
117

dos seus rostos. Apenas leves expressões em suas faces ou no bailado do corpo exprimiam

o prazer de estar ali.

As Transcrições 5 e 6, sendo observadas a partir de uma mesma gravação,

descrevem os toques dos Buzos acompanhados do Maracá. Onde a 5ª é descrita a partir de

uma marcação binária do Maracá e a 6 a partir de uma marcação ternária do Maracá.

De acordo com o Sr. Matinho os toques apresentados nestas transcrições são os

mesmos que sempre irão acompanhar o conjunto do Tolê. Talvez a nossa percepção de um

ritmo binário e ternário deva-se ao fato destes instrumentos formarem um único desenho

rítmico que possa ser utilizado tanto em uma faceta de ritmo binário (ver transcrição 2 e 4)

como também em ritmo ternário (ver transcrições 1 e 3).

É importante ressaltar, também, que a execução dos dois Buzos se realiza de

uma forma em que ambos preenchem o espaço de silêncio formado pelo outro. É como se

houvesse um diálogo entre ambos, onde o Buzo 2 tem a função de pedal, em mi, e o Buzo

1 fica dando saltos de quarta aumentada formando um trítono de fá para si. Ao mesmo

tempo em que o Buzo 2 forma um trítono forma também uma quinta justa com o Buzo 1,

mi - si.

8.6. Aonde queremos chegar?

Talvez a descrição de alguns detalhes musicais de cada transcrição musical

possa apresentar de forma bastante reduzida o que realmente são tais facetas musicais. Ou

seja, tais características musicais, como apresentamos, podem estar presentes em diversos

fazeres musicais na região Nordeste brasileira bem como em qualquer parte do mundo.

Contudo, a forma de percebe-las, de conduzi-las, não estão presentes em qualquer parte do

mundo. Ao dominarem um código de comunicação interna ao grupo, como língua, religião,

papéis sociais, os Fulni-ô demonstram manter o conhecimento tradicional sobre o seu fazer
118

musical dentro do Tolê. Com isto, concordamos com Seeger (1997, 479) ao dizer que

quando "o prestígio de conhecimento musical permanece intacto, novos elementos

musicais podem ser adicionados sem necessariamente influenciar a estrutura da sociedade

em si."

De acordo com a Professora Ivonildes, que dá aula na Escola Língua Yaathê

Antônio José Moreira, podemos entender o Tolê como sendo o “mastro da religião” Fulni-

ô. Ou seja, aquilo que pode ser visto como identificador da religião, mas que não revela o

que existe dentro desta mesma religião. É como ver um barco e o seu mastro como

elemento identificador. O barco seria o todo que forma a etnia Fulni-ô e o mastro o Tolê

um dos elementos que identificam esta etnia. Portanto, não nos é revelado a parte interna

do barco, apenas as que são necessárias para o reconhecimento do mesmo.

Com isto, podemos perceber que principalmente as três primeiras facetas

musicais funcionam como a bandeira, ou seja, como um dos sinais diacríticos desta sociedade

que servem para comunicar algo etnicamente diferente em comparação com as outras

sociedades. Por sua vez, a quarta transcrição distancia-se daquilo que poderia ser chamado um

ethos Fulni-ô, visto tanto sua estrutura musical como a conduta dos membros apresentarem tal

faceta musical como uma brincadeira, algo lúdico que não está relacionado com o secreto, com

o sagrado.
9. Conclusão

O forte contato com uma sociedade economicamente, politicamente e

demograficamente dominante, com outros grupos indígenas e com as populações afro-

brasileiras tem levado os Fulni-ô a dar novos rumos à sua cultura, principalmente no que se

refere à música. Ou seja, há entre o grupo um misto cultural que envolve tradições tanto

internas quanto as de outros grupos. Apesar desta amálgama de diversos elementos

culturais estranhos aos seus, podemos perceber que este grupo tem mantido sua língua

tradicional, grande parte de suas regras sociais, seu território e, sobretudo, sua religião.

Esta última representa a essência do ser Fulni-ô. E é entre estes mecanismos culturais

peculiares ao Fulni-ô que está presente o Tolê e neste mesmo evento o seu aspecto musical,

o qual tem sido o objeto maior de nossas observações.

Todavia, queremos deixar claro que o nosso direcionamento para esta parte da

cultura Fulni-ô explica-se, principalmente, por dois motivos: O primeiro está intimamente

relacionado com a busca de um evento musical que apresentasse o ethos Fulni-ô; e o

segundo, diz respeito ao espaço de tempo disponível no Mestrado, que, por ser de curto

prazo, torna praticamente inviável fazer uma etnomusicologia Fulni-ô.

Mesmo distantes de um estudo que observe todo o fazer musical Fulni-ô,

mencionamos a existência no primeiro capítulo de alguns gêneros musicais, frutos das

relações sociais externas ao grupo, em que a cafurna, coco de roda, o forró, o rock, os

cânticos católicos e outros gêneros musicais presentes dentro de diversos contextos

culturais no Brasil, são absorvidos ou utilizados como forma de comunicação ou

entretenimento dos Fulni-ô entre si ou numa relação com quaisquer outros segmentos

sociais.
120

Entretanto, ao observarmos o Tolê nos seus aspectos musicais, podemos

perceber que:

1. Através dos diversos discursos de indivíduos do grupo, o Tolê possibilita

uma autovalorização a partir da diferença musical em contraposição com

outros grupos.

2. A partir da singularidade religiosa, onde, com exceção dos Cariri Xokó do

município de Porto Real do Colégio, apenas os membros do grupo

conhecem os significados de cada faceta musical, percebemos que a

importância deste aspecto musical presente no Tolê é tão válida para o

grupo quanto a língua ou mesmo a própria religião.

3. É transmitido oralmente para os mais jovens a partir do conhecimento dos

mais velhos e conhecedores do evento, fazendo com que seja mantida a

relação da tradição oral.

4. Exerce grande influência musical (altura e duração) sobre a comunidade

através dos membros que o executam e que são escolhidos em uma

linhagem familiar. Neste caso, os próprios Fulni-ô afirmam que a prática do

Tolê ajuda e prepara para uma execução musical perfeita do repertório

católico nas missas que freqüentam, chegando a uma grande

homogeneidade sonora.

Na tentativa de relacionar os discursos e as motivações do grupo sobre este

traço musical presente em sua cultura e relacioná-los com os conceitos de identidade étnica

presente sob a luz de alguns antropólogos e algumas correntes etnomusicológicas, que

possibilitassem uma melhor visualização da música em outros contextos étnicos,

percebemos ao mesmo tempo em que cada faceta musical presente no Tolê funciona como

elemento de alteridade do grupo e estas mesmas facetas têm a função de comunicar esta
121

diferença para todos aqueles que não fazem parte da cultura Fulni-ô. Neste último caso a

faceta musical tem o papel de fazer uma ponte de ligação, onde, "aparentemente", apenas

elementos musicais Fulni-ô são expostos para as outras sociedades.

Mas, se estamos tratando de um grupo que tem língua, religião e muitos outros

fatores culturais originais, por que utilizamos o termo "aparentemente" quando nos

referimos aos aspectos musicais presentes no Tolê Fulni-ô? Seria porque a partir das

transcrições, em anexo, podemos perceber entre as três primeiras facetas uma linha

melódica que muito se assemelha aos chamados "modos nordestinos"? Pois, após Cabral os

Fulni-ô acrescentaram à sua língua palavras antes não existentes; acrescentaram às suas

crenças personagens da Igreja Católica, mesmo que seja como uma forma de

mascaramento étnico; mudaram seus hábitos alimentares; passaram a ouvir e a interpretar

de forma intensiva diversos gêneros da música presentes no contexto nacional.

Contudo, através deste mesmo fio que nos conduziu no parágrafo anterior,

poderíamos supor que as facetas musicais do Tolê Fulni-ô teriam influenciado

musicalmente toda uma sociedade regional envolvente. Pois, herdamos da cultura indígena

seus hábitos alimentares; suas crenças religiosas; o seu biótipo e muitas outras

características diariamente presentes na sociedade regional. Um exemplo bem evidente de

tal influencia musical indígena sobre a sociedade regional é a maneira nasalizada,

impostação bem marcante entre muitos grupos indígenas inclusive nos Fulni-ô, em que são

cantados os versos de aboio.

Todavia, tentamos mostrar a essência, ou seja, aquilo que faz com que a música

presente no TolêLha Fulni-ô seja diferente de todas as outras existentes no mundo. E, para

chegarmos a esta etapa do trabalho, assumimos, antes de tudo, algo musical dentro do Tolê

Fulni-ô. Pensamos na musica no Tolê como uma figura de retórica, da mesma forma que

poderíamos conceber, na poética, "a poesia nas estrelas".


122

E desta mesma percepção vemos algo extremamente lógico no fazer musical

do grupo, pois as execuções de cada faceta musical são feitas dentro de um arcabouço

cultural extremamente lógico. Ou seja, as repetições da cada círculo musical obedecem, de

forma geral, a regras formadas dentro do próprio grupo.

Apesar de percebermos que as três primeiras facetas musicais, principalmente a

primeira, são formadas por uma escala, semelhante aos chamados "modos nordestinos",

seria presunção, com tão poucos exemplos, levantarmos maiores probabilidades de

influência dos aspectos musicais existentes dentro do Tolê Fulni-ô com relação as escalas

normalmente seguidas em alguns gêneros musicais desta região. Ou até mesmo apontar a

influência de um sobre o outro, isto é, quem influenciou quem.

É importante ressaltar que ao transcrevermos estas facetas musicais para uma

escrita musical ocidental, passamos a dar uma nova roupagem a elas, pois passam

despercebidos o cântico nasalizado, as respirações, as entradas e saídas das vozes

femininas que fazem com que o grupo vocal esteja sempre "desfalcado" por uma voz, pois

sempre uma das mulheres presentes na fila está dançando em volta dos homens.

Estamos cientes da nossa limitação em termos de traduzir para o papel cada

som musical entoado pelos componentes do Tolê. Basta dizer que se déssemos tais

transcrições para um regente executar estas facetas musicais ficariam longe da sua

verdadeira realidade sonora. A partir do momento que tentamos colocar para pauta esta

realidade sonora fazemos um arredondamento dos intervalos melódicos e durações que

estamos acostumados a escutar.

Contudo, mesmo com a nossa limitação lingüística e o pouco tempo de contato

com os Fulni-ô, que ainda está em fase de amadurecimento, atingimos o nosso objetivo

principal, que é o de compreender a música presente no Tolê como um dos principais


123

elementos da identidade étnica do grupo e, portanto, um forte mecanismo de diferenciação

com qualquer outra sociedade.

Pouco se tem mostrado da cultura dos índios no Nordeste e muito se tem

enfatizado as culturas indígenas ditas exóticas. Basta dizer que a própria população do

Nordeste conhece pouco os grupos indígenas que aqui ainda sobrevivem. Mas talvez fosse

exigir muito desta população regional, uma vez que grande parte dos estudos acadêmicos e

das programações realizadas pelos vários tipos de mídia são dedicadas às populações que

ainda preservam grande parte de sua cultura e que não têm um forte contato com a

sociedade moderna.

É preciso dar melhores rumos para as etnias ainda existentes, sejam elas quais

forem. Lembrar, portanto, aos grupos que ainda permanecem unidos que se não

continuarem resistindo, a tendência de seus indivíduos é terminar seus dias na

marginalidade junto à sociedade nacional, pois os exemplos de índios favelados e

excluídos de seus grupos, não são poucos. Santos ratifica a nossa postura ao dizer que

A presença desses segmentos marginais na reserva indígena e na


sua periferia, é importante para entendermos qual a perspectiva
que é oferecida ao índio junto à sociedade regional.
Verdadeiramente, os integrantes desses contigentes marginais,
na sua penúria diária, lembram ao índio que a sua situação será
semelhante se pretender abandonar sua vinculação étnica e sua
tradição cultural. Isto porque a sociedade regional não oferece
abertura suficiente para permitir que o índio participe com
sucesso do processo competitivo ······· [1963], (291).

A influência e os contatos de indivíduos conscientes da importância da

preservação étnica destes grupos são por demais necessários, pois além dos estudos nestas

comunidades trazerem um legado para as gerações futuras (índias ou não) e um presente

reconhecimento da sociedade nacional para com existência destes povos, poderão,

também, oferecer-lhes melhores condições de vidas no presente contexto social.


Anexo I - Entrevista e Comentários

Apresentamos, neste anexo, extratos de uma entrevista, dividida em duas

partes, feita com o Sr. Matinho, executante de Buzo, o Sr. Fipa, executante de Maracá, e o

Sr. Alexandre, um ouvinte-participante de nossa conversa.48 No final da 1ª parte da

entrevista damos uma pausa para fazer alguns comentários e logo depois iniciamos com a

segunda parte desta mesma entrevista.

1ª Parte

P. Fale sobre a fabricação dos instrumentos do Tolê.

M. O material é como eu acabei de dizer, é do mato, é por isso que ele é da

obra da natureza, é de outros tempos, tudo dele é feito com madeira.

P. Que madeira?

M. A madeira, tem uma madeira por nome de de de aquele aquele, como é o

nome? aquele [canela de veado, disse um dos índios] canela de veado, essas coisas. É isso

que a gente faz e e o pau a gente tira o pau quarquer um pau e vai furando ele pra poder

fazer os, ele dá o som dele . . . abrindo o pau, né? pra poder colocar a canela do do veado

dentro e outras, qualquer outro paus a gente que dê pra furar, né?

P. Existe afinação pra o Buzo?

M. Existe, o que existe aí é através do corte do pauzinho, do fininho, né?

através do corte.

P. Esse pau serve como uma paleta?

48
Utilizaremos as seguintes convenções para facilitar a compreensão: P=Pesquisador,
M=Matinho, F=Fipa e A=Alexandre.
125

M. É tipo uma paleta, assim como nem é o a música, tem a paletinha dele pra

poder ele dançar.

P. Como pode ser definido os dois Buzos?

M. É todos dois quase de um tamanho só [é a mesma madeira], é a mesma

madeira, só que a gente coloca uma cera, uma coisa pra poder ele modificar dá o som de

meio e o som alto.

P. O som de um é diferente do outro? um é mais grave e o outro é mais agudo?

* Um índio enfatizou dizendo que era um alto e um meio ou seja, o alto seria

o agudo e o meio o grave.

P. Com relação ao Maracá?

M. O Maracá isso aí já faz parte também do [. . .] indígena, ele é feito de [. . .]

de cabaça.

P. Ele pode ser feito também de cuité?

* Seu Alexandre enfatizou dizendo que podia ser feito também de cuité como

também de côco, Matinho concordou.

M. Toda obra da natureza, né? num pega nada de de de feito por . . . [seu

Alexandre enfatizou que um Toré mesmo não poderia ser feito de côco, só de cabaça] cuité

ou cabaça, o principal mesmo é a cabaça.

P. Como é que chama a madeira que segura a cabaça?

M. É uma uma madeira um é um madeira dum dum pau, a gente prepare ele aí

coloca dentro.

P. Você poderia mostrar a afinação do Toré (do Buzo)?

A. Pode.
126

A partir de nossa análise percebemos que a afinação dos Buzos coincidiu com

o que eles afirmaram anteriormente, ou seja, o Buzo maior como sendo o sonoramente

mais grave e o Buzo menor como sendo o mais agudo.

Em seguida a esta etapa, os índios presentes tocaram os três instrumentos

juntos. Participaram da apresentação o filho do Sr. Alexandre (Buzo Agudo), o Sr. Fipa

(Maráca) e o Sr. Matinho (Buzo Grave). Antes de começar esta apresentação o Sr.

Alexandre apresentou a parte principal do Buzo que é um pequeno instrumento que tem

uma palheta de sabugo de milho amarrada por uns fios de palha e colada com cera de

abelha num bocal também com a base de cera de abelha. O Sr. Alexandre, num tom de

gargalhada, disse que o instrumento tinha “muitos privilégios”,. Talvez estes “privilégios”,

a que se referiu o Sr. Alexandre, deva-se ao atributo sagrado que o instrumento tem dentro

do grupo, já que pertence único e exclusivamente aos rituais exercidos pelo grupo.

Logo depois desta conversa começaram a tocar. Tocaram dois desenhos

rítmicos diferentes entre os dois Buzos. Relataram que aqueles ritmos são o que

acompanham a faceta musical. Vale salientar que, quando em apresentação, o primeiro

instrumento a tocar é o Maracá, depois o Buzo mais grave e, por fim, o mais agudo.

2ª Parte

P. E sobre a parte do corpo do instrumento que produz a vibração sonora?

M. Dá o nome de taquarí, só que a madeira é . . . maneirinha.

P. Ela é oca, né?

M. É oca.

P. Essa parte aqui do meio é mel?

M. É é me me [o Sr. Fipa retificou dizendo que era cera] [cera de abelha?] [o

Sr. Alexandre respondeu que era cera de abelha].


127

P. Isso aqui é que que funciona como uma palheta? (apontando para uma parte

do instrumento que o chamam de taquarí).

M. Ele é que dá o som e vibra no corpo do instrumento todo e dá aquela coisa

grave e é por isso que enche.

P. E o sabugo que fica dentro do instrumento?

M. O sabugo ele não pode sair que já entra já justo, é justo ele não pode sair

não, sabe? por dentro. Ele tá justo, tá colado.

P. Colado com alguma coisa?

M. Colado com nada.

P. E a parte vermelha do instrumento?

M. Aí já faz parte aí já faz parte de de pano, que a gente pode cobrir com pano,

cobre também com crauá.

P. O que é crauá?

M. É uma madeira também.

P. É do mato, né?

M. A cabaça da maracá é pintada com tauá, presa a um pau que os índios

preparam (raspam) e colam na cabaça com cera de abelha, é colocado dentro da maracá

semente de meiru, pedra ou até mesmo chumbo.49

49
Este último material o Sr. Matinho não recomendou pelo fato de tornar o Maracá mais
pesado.
Anexo II: As Transcrições

Adicionamos às transcrição50 alguns sinais musicais para facilitar a nossa

compreensão do texto transcrito. Tais como:

V.F.1 Voz Feminina 1

V.F.2 Voz Feminina 2

V.M. Voz Masculina

50
O programa utilizado para edição de partitura foi o Finale 3.7 .
130

II
131

III
132

IV
133

V
134

VI
135

VII
136

VIII
137

IX
138

X
Transcrição Musical II
140

II
141

III
142

IV
143

V
144

VI
145

VII
146

VIII
147

IX
148

X
149

XI
150

XII
151

XIII
152

XIV
154

II
155

III
156

IV
157

V
158

VI
159

VII
160

VIII
161

IX
162

X
163

XI
165
166

V
167

VII
168

IX
169

XI
170

VIII
171

XV
172

XVII
173

XIX
174

XXI
175
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