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Rio de Janeiro
junho de 2014
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Rio de Janeiro
junho de 2014
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Examinada por:
_________________________________________________
Presidente, Prof. Dr. Sérgio Fuzeira Martagão Gesteira
_________________________________________________
Prof. Dr. Godofredo de Oliveira Neto
_________________________________________________
Profa. Dra. Vera Lins
_________________________________________________
Profa. Dra. Martha Alkimin
_________________________________________________
Profa. Dra. Luciana de Paiva Vilhena Leite - UniRio
Rio de Janeiro
junho de 2014
iii
FICHA CATALOGRÁFICA
RESUMO
Rio de Janeiro
junho de 2014
vi
RESUMEN
simbolistas, que se caracterizan por una fuerte cadencia poética, estilo dúctil,
descripciones pictóricas y cromáticas, ricas en recursos estilísticos, y armados en una
fabulación peculiar y notable.
Rio de Janeiro
junho de 2014
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DEDICATÓRIA
HOMENAGEM
AGRADECIMENTOS
constituíram uma falange mística que me alavancou nas horas mais duras, nas dúvidas,
Aos professores doutores Maria Lucia Guimarães de Faria e Eduardo Coelho, pelo
raros e esgotados.
um mini-netbook, sem sabê-lo, fez com que eu pudesse escrever em qualquer parte.
À professora Claudia Varella Guedes, pelo incentivo contínuo, pelo carinho, pelo
coração.
xi
SUMÁRIO
Introito ................................................................................................... 03
1. Introdução ............................................................................................. 04
3. O apelo à pesquisa..................................................................................... 10
INTROITO
Não há melhor relato possível, na vida, do que a ficção. Talvez a realidade não
fosse capaz de produzir personagens com a complexidade de Ulisses, Capitão Ahab,
Bento Santiago, Raskólnikov, Hamlet, Riobaldo ou Medeia, ou mesmo momentos
descritivos tais quais o desfile de Aquiles com os despojos de Heitor, em A Odisseia; os
círculos infernais percorridos por Dante em A Divina Comédia, a brutal zoomorfização
de Gregor Samsa, em A metamorfose; o desespero de Édipo antes de vazar os próprios
olhos, em Édipo-Rei; os moinhos de vento de D.Quixote, as escalas feitas em paragens
inóspitas por Gulliver ou as impressões de Jerônimo, ao ver Rita Baiana dançar na roda,
em O cortiço. Por tudo, a literatura revela-se mágica, ilimitada, além de exceder,
invariavelmente a seus propósitos, e poder configurar-se e emular a própria história da
civilização, ou as desventuras de qualquer submundo ou mesmo deleitar-se com as
delícias de uma viagem sem os transtornos alfandegários.
Quando focamos nosso objeto de estudo em outro tempo, nos restos de ontem,
procuramos algum sentido na vida – que não é digna de ser vivida, se não houver busca,
disse Sócrates1. Assim, perscrutar esses caminhos, através da ficção – resgatar autores,
reavivar personagens e histórias do passado e justificá-los dentro da trajetória de nossa
literatura recente - é como viajar a um outro país, estranho, e reconduzi-los, repatriá-
los ao tempo em curso, trazê-los à tona, à vida, sem apartá-los, contudo, da dimensão
ficcional, que, paradoxalmente, os torna reais.
1
PLATÃO, Apologia de Sócrates. Trad. De Maria Lacerda de Moura. Introdução de Alceu Amoroso
Lima. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s/d.
4
1. INTRODUÇÃO
Apenas à guisa de ilustração, é usual que encontremos, pelo menos nos seis
principais manuais de Literatura Brasileira adotados no Ensino Médio – William
Cochar Cereja; José de Nicola; Carlos Emílio Faraco; Samira Youssef Campedelli;
Maria Luiza Abaurre e Douglas Tufano – a referência a Sousândrade, com farta
informação, exercícios e reflexões, classificando-o como “romântico da 3ª geração”,
posto ao lado de Castro Alves, apesar da discutível e pouco didática “enturmação”
de o autor de “O Guesa Errante”, a despeito de seu inegável valor. É ainda pouco
defensável a inclusão de Junqueira Freire, para continuarmos no Romantismo, ao
lado de Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu, embora muitíssimo menos
abordado em estudos avançados, e detentor de uma obra de pequeno vulto,
sobretudo se comparado aos colegas. Citamos, ainda, a lamentável pouca frequência
dos aventureiros franceses Jean de Léry e André de Thevet, um pastor calvinista, o
outro frade franciscano, autores, respectivamente, de História de uma viagem feita
na Terra do Brasil e As singularidades da França Antártica, onde narram e
descrevem a vida no Rio de Janeiro durante a ocupação comandada por
Villegaignon, entre 1555 – 1560, relatos, que, como o do holandês Hans Staden -
autor de suas desventuras no livro História Verdadeira e Descrição de uma Terra
de Selvagens, Nus e Cruéis Comedores de Seres Humanos, Situada no Novo Mundo
da América, Desconhecida antes e depois de Jesus Cristo nas Terras de Hessen até
os Dois Últimos Anos, Visto que Hans Staden, de Homberg, em Hessen, a Conheceu
por Experiência Própria e agora a Traz a Público com essa Impressão –
encontram grande ressonância e interesse no jovem estudante, mais receptivo a essas
leituras do que aos autos catequéticos do mesmo Quinhentismo dos viajantes.
6
2
MOISÉS, Massaud. (1966). A Literatura Brasileira - O Simbolismo (1893 -1902). São Paulo: Cultrix.,
pág. 214
8
2. OS PONTOS DE PARTIDA
3. O APELO À PESQUISA
3
. COUTINHO, Afrânio. (1969). A literatura no Brasil (2a ed., Vol. IV). Rio de Janeiro: Editorial Sul
Americana.
11
4
COUTINHO, Afrânio. Idem, ib.
12
Com prática docente há vinte e seis anos no Ensino Médio e Superior, no Rio de
Janeiro, pudemos adotar diversos títulos, como livros-orientadores da condução dos
programas de Literaturas de Língua Portuguesa, verificando, ano a ano, uma vasta
casuística, que amealhamos durante esse período. Há várias inconsistências quanto à
escolha ou à “enturmação” de alguns poetas e romancistas em determinadas escolas
estéticas, bem como, muitas vezes, observa-se uma falta de critério ou uniformidade na
superficialização ou aprofundamento em alguns temas, além da omissão de alguns
nomes ou ocorrências.
Para abordarmos essas questões, usaremos como corpus os livros mais adotados
naquele segmento, que são: Português: Linguagens, de William Roberto Cereja e
Thereza Cochar Magalhães (2005, SP, Atual Editora, vol. único e edição em três
volumes); Literatura Brasileira – das origens aos nossos dias, de José de Nicola ( 2011,
SP, Ed. Scipione); Literaturas Brasileira e Portuguesa – Teoria e Texto, de Samira
Yousseff Campedelli e Jésus Barbosa Souza ( 2003, SP, Editora Saraiva); Literatura
Brasileira – Tempos, Leitores e Leituras, de Maria Luiza M. Abaurre e Marcela Pontara
(2005, SP, Ed Moderna); Literatura Brasileira, de Carlos Emilio Faraco e Francisco
Marto Moura (1998, SP, Ed. Ática); Estudos de Língua e Literatura, de Douglas Tufano
(1991, SP, Ed. Moderna); e a antigo e muito utilizada anteriormente Antologia da
13
Antes de nos debruçarmos sobre esses volumes que fazem parte do cotidiano de
milhões de alunos brasileiros, cumpre lembrarmos que o boom dos livros didáticos
muito bem ilustrados, pedagogicamente estruturados de forma atraente e parte de uma
estratégia agressiva de marketing editorial é, de certa maneira, um fenômeno recente,
datando do inicio dos anos 80 do século passado.
Antes disso, lembramos que pontificou por quase um século o notável Antologia
Nacional ou Colleção de Excerptos dos Principaes Escriptores da Língua Portuguesa,
de Carlos de Laet e Fausto Barreto, cuja 1ª edição é de 1895 e a última, 43ª, de 1969, já
às vésperas das reformas de 1971, quando a disciplina Língua Portuguesa passa a ser
substituída por “Comunicação e Expressão”, com textos de diversos níveis de
linguagem, tornando obsoleta a gramática vernácula de orientação predominantemente
lusitana. Acresça-se a esse fato, na ocasião, o crescente mercado dos cursos pré-
vestibulares que se apoiavam em apostilas próprias, mais funcionais, objetivas e
adequadas à contemporaneidade.
Tal pertinente afirmação nem sempre encontra eco nos demais compêndios para
este segmento da Educação Básica. O usual é encontrarmos o Simbolismo balizado e
contido entre o advento de Missal e Broquéis (1893) e com final na virada do século.
O livro cita como autores mais representativos Cruz e Sousa e Alphonsus de
Guimaraens, além de citar, rara e merecidamente, o baiano Pedro Kilkerry, “Mallarmé
no Brasil”, segundo os autores. Há uma interessante biografia de Cruz e Sousa, com
dados importantes, como a reverência que lhe faz Roger Bastide, e ainda algumas notas
dignas de registro: a classificação de “neo-romântico simbolista”, uma vez que “trata-se,
portanto, de um poeta expressivo e não de um poeta tão construtivista quanto alguns
simbolistas franceses” (1979, pág. 214); e correções a sua biografia, como o fato de que
perdera seus filhos cedo, e que compunha “Acrobata da Dor” após o casamento. Cruz e
Sousa não perdeu seus filhos em vida, ou seja, todos morreram após a sua morte; e o
referido poema foi composto e publicado antes do altíssimo poeta contrair núpcias.
revelar, com profundo senso crítico, as tensões da sociedade brasileira (...) (1979, p.
239)
Durante muitos anos esteve hegemônico, nas salas dos colégios, o manual
Estudos de Língua e Literatura, em três volumes, do professor Douglas Tufano,
abarcando gramática e literaturas de língua portuguesa. No volume 2, capítulo 19, da 4ª
edição, reformulada, de 1991, o autor aborda o Simbolismo, de forma concisa, feição
que permeia, aliás, todos os volumes. Após introduzir e caraterizar o estilo, Tufano
aponta o início do Simbolismo na França, com As flores do mal (1857), de Charles
Baudelaire (sic).
Uma nota curiosa é que Tufano desloca Augusto dos Anjos, propriamente, para
um “lugar nenhum”, dada a dificuldade em enquadrá-lo nas “gavetas das escolas
estéticas”. É digno de registro, pois, nitidamente, não o alinha ao Simbolismo, embora
lhe reconheça índices acentuados, nem o enturma no período sincrético. Lamenta-se,
apenas, o exíguo espaço de duas páginas dedicadas ao singular autor de Eu (1912).
5
In TUFANO, Douglas. Estudos de Língua e Literatura. 4a ed. rev. e ampl. São Paulo: Moderna, 1991,
pág. 205. apud Miguel-Pereira, Lucia, org. Adolfo Caminha, trechos escolhidos. Rio de Janeiro: Agir,
1960. p. 68.
17
questão, lançam luz sobre uma vertente raramente abordada e sequer citada pelos
demais. Assinalam ainda, com grande propriedade, que é classificada “pela crítica”
como prosa poética, abrindo a possibilidade de ser analisada e classificada de outra
forma, a nosso ver.
Apesar das singulares citações de autores e obras que não figuram nos demais
compêndios didáticos, e da raríssima referência à prosa simbolista, nenhum autor foi
citado, ou sequer teve um fragmento transcrito.
Uma nota importante que frisamos – não verificada em nenhum dos outros
manuais aqui elencados – é a referência feita pelos autores às três doutrinas do
Simbolismo, em bases filosóficas:
conceitos de livro didático para o segmento do Ensino Médio, então caracterizado por
edições sóbrias, monocromáticas e pouco atraentes, além de se ater, exclusivamente, aos
conteúdos preconizados pelos programas tradicionais.
Ressalte-se, como na maioria dos demais títulos aqui elencados, que não há
referências à possível ficção simbolista.
As estéticas literárias não são estanques entre si, e, muitas vezes, se tocam, se
influenciam e se fundem.
É impróprio, a nosso ver, no título “ a luta do velho e do novo”, uma vez que se
admite, na sequência do texto e do raciocínio, que não houve necessariamente luta, mas
também superposição, fusão, mescla, caracterizadoras do ecletismo experimentado e
nítido no Sincretismo/Pré-Modernismo. Assinalamos, por outro lado, a relevância de
tratar os períodos como algo não estanque ou além disso, como impermeáveis e
refratários a contaminações estéticas. E, sobretudo, observar que os autores
finisseculares, em sua grande maioria, estavam vivos e ativos; assim, infere-se,
obviamente, que durante as primeiras décadas do século XX houve Realismo,
Parnasianismo, Naturalismo e Simbolismo! Portanto, no que diz respeito ao nosso foco,
26
projeção; assim, julgou que, editando Cruz e Sousa, um autor negro – cinco anos após a
Abolição – obteria grande retorno comercial, o que, infelizmente, não correspondeu às
suas expectativas, já que a recepção da crítica a Missal e Broqueis foi fria e até mesmo,
negativa.
ficção um pouco de lado e passasse a oferecer pontos de contato mais intensos com a
realidade, através da agilidade da linguagem jornalística, ocupando-se em retratar o
“verdadeiro” Brasil para os brasileiros, e retomar o viés do romance regional romântico,
dispensando, naturalmente, a idealização dos cenários e personagens, observada na
prosa pioneira de José de Alencar. Antes de ocupar-se mais detidamente na análise de
fragmentos de Os sertões, as autoras ainda ressalvam o sucesso editorial desse título, o
que atestava o interesse do público por uma mudança de enfoque, em relação aos
folhetins românticos de décadas anteriores.
Outros autores, tais como Hernan Lima e Afrânio Coutinho7 preferem situar a
gênese do nosso conto – como já concebemos – nas narrativas que Álvares de Azevedo
enfeixou em Noite na Taverna (1855), lembrando ainda a importância de Bernardo
Guimarães (Lendas e Romances (contos – 1871); e História e Tradições da Província
de Minas Gerais ( 1872). Contudo, um pouco antes despontaria, em 1869, com Contos
fluminenses, aquele que viria a deixar, indubitavelmente, o maior volume de obras de
primeira grandeza na forma narrativa do conto, tais como “Miss Dollar”, de Contos
fluminenses; “O alienista”, “Teoria do medalhão”, “A chinela turca”, “O espelho”, de
Papeis avulsos; “A igreja do diabo”, “Cantiga de esponsais”, “Noite de Almirante”, de
Histórias sem data; “A cartomante”, “Uns braços”, “Trio em lá menor”, “O
enfermeiro”, “Um apólogo”, “O cônego ou metafísica do estilo”, de Várias Histórias e
“Missa do galo”, de Páginas recolhidas, somente para citarmos alguns, sem contarmos
os volumes de publicação pseudônima, organizados por Raymundo de Magalhães Jr.,
além de esparsos e póstumos, totalizando, assim, mais de duas centenas de contos.
7
COUTINHO, A. A literatura no Brasil. Idem, ib.
33
“O único êxito franco beneficiando obra por certo modo ligada ao ficcionismo
simbolista foi o de Canaã (1901), de Graça Aranha. Talvez porque marcadamente de transição.
Os seus elementos estruturais apresentam-se não somente díspares, como, até, isolados; ilhas de
naturalismo em estado quase puro, apesar de repassado de poesia, como na lenta abertura do
livro, ou do pinturesco direto, como no episódio do inventário, que poderia ser de Aluísio
Azevedo, não fosse a beleza expressional. Esta, de caráter dir-se-ia sinfônico, é de virtuosidade
afim com a de D’Annunzio ou Barrès, e ainda hoje plenamente vivaz nas suas páginas de
passionalidade exaltada, de ideação ardente e por fim alucinatória.” 9
Outro gênero fadado não exatamente ao descarte, mas apenas posto à parte, pela
natureza desse estudo, é o poema em prosa, que viveu, talvez, o seu apogeu durante o
Simbolismo. No entanto, sua própria constituição híbrida ou quase mesmo ilustrando
um oximoro, por fundir vetores opostos, conceitualmente já desgarraria do escopo do
trabalho. É fundamental que o abordemos, justificando sua ausência e, sobretudo, sua
existência e importância.
fundamentalmente para a poesia, onde cunhou suas mais belas páginas; entretanto, a
ocorrência da prosa criara-lhe um nó górdio estético: uma vez que engendra duas
formas, não haveria de ser uma fusão de divisão exata; se se buscasse o ideal simbolista,
ou seja, se o texto se curvasse mais à poesia, ao subjetivismo, corria o sério risco de não
plasmar uma história, um enredo em torno de personagens. Por outro lado, se tendesse
mais à prosa, e se acercasse mais dos elementos romanescos, acabaria por tangenciar o
Realismo ou retroceder até a estética romântica.
Foi o poema em prosa o gênero que o caráter ornamental da estética decadentista mais
atulhou de acessórios medievalistas, litúrgicos, cabalísticos e de joalheria. O ato poético
defrontava-se, como em quase inibitório steeple-chase, com as guirlandas, os paramentos, os
saltérios, a imagética bíblica.10
10
COUTINHO, Afrânio. Op. Cit., pág. 146.
11
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira.São Paulo: Cultrix, 9ª Ed., 1979.
35
E vale-se, ainda, apoiado na forte argumentação de Brito Broca, por ele citado:
Não houve no Brasil, como não houve em parte alguma, poesia a que se possa chamar
de naturalista no mesmo sentido em que se fala de romance, e ainda de teatro, naturalista. É que
não existe poesia sem certa dose de idealismo, incompatível com tal naturalismo. Enganavam-se
redondamente, como ao tempo lhes mostrou Machado de Assis, os imitadores indígenas de
12
BRITO BROCA, “Quando teria começado o Modernismo?”, in Letras e Artes, Supl. Literário de A
Manhã, Rio, 20-7-1952
13
CARVALHO, Ronald de. Pequena história da literatura brasileira. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia,
13ª.ed., 1968.
36
Baudelaire que nas Fleurs du mal buscavam justificação do seu realismo ou naturalismo. E
sua inteligência os condenou à imitação pueril e falha.14
(..) Victor Hugo injetou esse veneno em altas doses nas gerações que se sucederam. Nos
países latinos, desde 1830, através das tendências dos otimistas, de pessimistas, de diletantes,
romanticistas, realistas, impressionistas, naturalistas, etc., etc., tem sido a mesma nota hugoana a
que tem predominado.
E Baudelaire? É Hugo com a máscara de Edgar Poe. (...) E Richepin? Hugo no deboche,
Hugo embriagado e obsceno. (...)
“Pois bem: essa seleção hugoana, um choque com as operações do espírito moderno,
tem degenerado num patois literário que não pode constituir ainda uma língua forte, lógica e
concisa.15 (grifos nossos).
dizer que não houve teatro árcade no Brasil, porque O parnaso obsequioso, de Cláudio
Manoel da Costa ou as peças de Antonio José da Silva, o Judeu, não possuíam força
dramática. Ou, por extensão, e mais além, que O auto de Santiago, de Afonso Álvares –
primeira encenação no Brasil, em 1564 – e as demais peças catequéticas do nosso
Quinhentismo não foram teatro, porque não havia público e possuíam somente cunho
doutrinário. Como conceber o gênio de Gregório de Matos – cultor da lírica amorosa,
encomiástica, filosófica e sacra – satírico, obsceno e amoral sob o véu da Contra-
Reforma, como puro Barroco?
16
COUTINHO, Afranio. Op.cit., pág. 145
38
Brindes (1899); Julio Perneta (1869 – 1921), autor de Bronzes (1897) e Malditos
(1909); o seu irmão, poeta Emiliano Perneta, autor de O Inimigo (1899) e do apólogo
Alegoria (1903); Dario Veloso (1869-1937), hermético e ocultista, com influências da
Cabala e Magia, autor de Esquifes (1896), Psikês e Flauta Rústica (1941); Antônio
Austregésilo (1876 -1960), médico neurologista, autor de Manchas (1898) e Novas
Manchas (1901); Pedro Vaz, pouco citado em compêndios, escreveu Crepúsculos
(1898); e José Vicente (de Azevedo) Sobrinho, autor de Contos e Fantasias (1898), que
embora traga a denominação de “contos”, na verdade enfeixa poemas em prosa,
crônicas e reflexões.
Uma vez que não contemplamos os poemas em prosa e optamos pela prosa curta
de ficção – os contos propriamente ditos - , elegemos para que figurassem nessa
pequena antologia anexada à tese os seguintes autores e obras:
Outro problema no levantamento dos contos e escolha dos autores sob o primado
simbolista reside exatamente no lapso de tempo coberto – de 1893, baliza inicial
unânime em torno da publicação de Missal, de Cruz e Sousa, até um pouco além da
Semana de Arte Moderna (1922), onde o Simbolismo ainda chegava, em contágio
cada vez mais rarefeito, mas ainda significativo.
Essa é uma questão fulcral sob o ponto de vista didático, principalmente. Vários
críticos se debruçaram sobre esse ponto polêmico, e é fundamental para que
situemos os autores elencados na antologia. Alceu Amoroso Lima, o “Tristão de
Ataíde”, talvez tenha sido aquele que mais se aprofundou sobre a questão,
dedicando-lhe mesmo uma obra na íntegra, a Introdução a literatura brasileira,
propondo, através de longas ilações e um ilustrativo retrospecto, a sua periodização,
aqui resumida: Escola Clássica – séculos XVI a XIX; 1º ciclo: de 1550 a 1600; 2º
ciclo: de 1600 a 1750; 3º ciclo: de 1750 a 1830; Escola Romântica – de 1830 a
1870; Escola Naturalista – de 1870 a 1890; Escola Simbolista – de 1890 a 1920; e
17
MORICONI, Ítalo. Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
41
Escola Moderna – de 1920 até hoje*.18 Observemos que, mesmo aqui de forma
muito concisa, Amoroso Lima destaca o Simbolismo da “Escola Naturalista”,
abarcando, a seu ver, o Realismo-Naturalismo-Parnasianismo.
A obra é de 1957.
42
19
VERISSIMO, José. (1981) História da literatura brasileira – de Bento Teixeira (1601) a Machado de
Assis (1908). Brasíla: Ed. UnB 4ª. Ed, (1963); 1ª reimpressão, 1981.
20
CARVALHO, Ronald de.(1968). Pequena História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: F. Briguiet
& Cia, 13ª Ed.
43
21
Ibidem, pág. 49
22
CARVALHO, Ronald de. (1976) Estudos Brasileiros. Rio de Janeiro: Nova Aguilar/MEC.
23
BANDEIRA, Manuel. (1940). Noções de Histórias das Literaturas. Rio de Janeiro: Companhia Editora
Nacional.
24
FREITAS, Bezerra de. (1939) História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Globo.
44
25
AMORA, Antônio Soares. (1958). História da literatura brasileira. São Paulo: Edições Saraiva, 2ª ed.
26
MOISÉS, Massaud. A Literatura Brasileira - O Simbolismo (1893 -1902). São Paulo: Cultrix, 1966.
45
Não podemos deixar de citar, ainda - apesar da extensa lista, mas necessária – quatro
autores, para concluir esta introdução.
Domício Proença Filho, que com sua obra Estilos de Época na Literatura28 chega à
perene 20ª edição, neste ano, ora pela Editora Prumo, estende-se à literatura portuguesa,
anterior ao “Quinhentismo”, que, curiosamente, omite: “Classicismo”; “Idade Média”;
“Renascimento”; “Barroco”; “Neoclassicismo”; “Romantismo”; “Realismo”;
“Simbolismo” (n.b.: também destacado); “Impressionismo”; “Modernismo” e “pós-
modernismo” (grifo nosso).
27
LIMA, Alceu Amoroso. Quadro Sintético da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Agir, 1956.
28
PROENÇA FILHO, Domício.Estilos de Época na Literatura. São Paulo: Ática. 15ª Ed., 2001
46
Não obstante sua percepção e juízo de valor sobre a prosa simbolista venha de
encontro à proposição central de nossa tese, é inestimável a contribuição de Alfredo
Bosi em sua História Concisa da Literatura Brasileira30, de 1979, onde propõe a
seguinte periodização: “A condição colonial”; “Ecos do Barroco”; “Arcádia e
Ilustração”; “Romantismo”; “Realismo”; “Simbolismo”; “Pré-modernismo e
Modernismo”, e “Tendências Contemporâneas”, esta abarcando até o Concretismo dos
anos 50, do século passado.
Por fim, citamos a professora Helena Parente Cunha, com o notável ensaio
Periodização e História Literária31, em que, sinteticamente, assim dispõe a sua divisão:
“Idade Média” (Alta, Média e Baixa); “Humanismo”; “Renascimento”; “Maneirismo”;
“Barroco”; “Classicismo”; “Correntes do século XVIII (subdivididas em Iluminismo,
Neoclassicismo (este em Rococó e Arcadismo) e Pré-romantismo)”; “Romantismo”;
“Realismo, Naturalismo e Parnasianismo”; “Impressionismo”; “Decadentismo”;
“Simbolismo” e “As vanguardas”. Cabe registrar a pertinente partição particular no
interior do século XVIII e as distinções entre as estéticas finisseculares, sobretudo entre
“decadentismo” (ou “decadismo” na preferência de alguns) e “simbolismo”, à maneira
também de Merquior.
29
MERQUIOR, José Guilherme . De Anchieta a Euclides. Breve história da Literatura Brasileira. Rio de
Janeiro: Topbooks, 3ª Ed.
30
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix.,1979.
31
In: SAMUEL, Rogel (org.) Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, 14ª Ed., 2001
47
Portanto, nos parece cabível admitir – ainda que para fins didáticos – a vigência do
Simbolismo (e seus derivados diretos, como o Decadentismo) entre os marcos de 1893
e 1928.
⃰
48
uma espécie de desdém pela hipótese da prosa simbolista, e até mesmo, um tom
pejorativo.
32
JÚNIOR, Araripe. Obra Crítica. Rio de Janeiro: MEC, Casa de Rui Barbosa, Vol. I (1868-1887), Vol. II
(1888 -1894) 1958.
51
Neste fato está o seu maior elogio. Em verdade, publicar um trabalho literário em uma
terra onde a imprensa mal serve para o escoamento do expediente das repartições públicas e da
intriga, já significa alguma coisa, muito mais ainda se esse trabalho tem colorido e recomenda-se
por uma forma até certo ponto nova, cuidadosamente rebuscada.
Os Srs. Várzea e Cruz e Sousa deram, pois, uma prova de vitalidade, não sucumbindo à
ação de um meio tão ingrato como é aquele dentro do qual se acham mergulhados; mostram
talento, pondo-se, através de tantas dificuldades físicas e morais, em contato ou em relações de
simpatia com os espíritos que dominam o nosso século literário.
As páginas, os pequenos contos do livrinho que tenho em cima da pasta, não passam,
portanto, de fragmentos de talentos que ainda não tiveram tempo de comportar-se.(...)33
33
Idem, ib.
52
José Verissimo, por seu turno, sequer aventa a hipótese simbolista em seu
consagrado compêndio História da Literatura Brasileira – de Bento Teixeira (1601) a
Machado de Assis (1908), ainda que considerasse este último como baliza, a estética de
Cruz e Sousa já se espraiava há mais de uma década, e para alguns críticos-
demarcadores, agonizaria cedo, antes disso, em 1902. No referido livro, Verissimo
desanca a escola ainda sem nome, equivocando-se nos referenciais, mas acertando no
tom desdenhoso:
Não houve no Brasil, como não houve em parte alguma, poesia a que se possa
chamar de naturalista no mesmo sentido em que se fala de romance, e ainda de teatro, naturalista.
É que não existe poesia sem certa dose de idealismo, incompatível com tal naturalismo.
Enganavam-se redondamente, como ao tempo lhes mostrou Machado de Assis(139)34, os
imitadores indígenas de Baudelaire que nas Fleurs du mal buscavam justificação do seu realismo
ou naturalismo. E a sua inteligência os condenou à imitação pueril e falha. 35 (grifos nossos)
Convém não esquecer nesta recordação da vida literária provinciana o Paraná. Curitiba
rivaliza com Fortaleza neste aspecto. As revistas e jornalzinhos literários surgem e morrem ali
com a abundância de rosas de todo o ano. Há naquela pequena capital, como na do Ceará, um
grupo relativamente numeroso de poetas, todos ou quase todos “novos”, nefelibatas, satânicos,
que se incensam uns aos outros, com a ingênua convicção e a imodéstia descerimoniosa que
caracteriza a escola. O trabalho cearense, mais sério e de mais valor, é também mais variado.
Não deixa de ser curioso ver rebentar no sertão paranaense um galho peco da árvore do
decadentismo europeu, produto de civilizações refinadas.36
34
A Nova Geração, Revista Brasileira, II, Rio, 1879. Apud VERISSIMO, José. In: “História da Literatura
Brasileira – de Bento Teixeira(1601) a Machado de Assis (1908). Brasilia: MEC-UnB, 4ª ed. 1963; 1ª
reimpressão, 1981. Pág. 245
35
VERISSIMO, José. Idem, ib.
36
VERISSIMO, José. In: O que é literatura – e outros escritos. São Paulo: Landy Editora, 2001. Pág. 129
53
Silvio Romero, último nome desta trindade que pontificou na crítica finissecular,
em sua monumental História da Literatura Brasileira, em 5 volumes, publicada em
1888, é, dos três, quem acolhe com maior receptividade, embora pontue ressalvas sem
eufemismos. No capítulo 14 do volume V, “Reações anti-românticas na poesia –
evolução do lirismo”, Romero sublinha o Simbolismo como “a última expressão do
lirismo”37, cita Cruz e Sousa, muito bem recebido, com excertos de seus poemas,
ultrapassado, talvez, em seu tempo, por Luis Murat, em sua opinião.
É o nosso simbolista puro, o rei da poesia sugestiva; e , cousa singular, nele não se
encontram uma só vez os tais versinhos imitados d’Os Simples, cheios de balão, balão, Belém,
Belém, e outras gafeirices da espécie.
É o último poeta que temos de rapidamente notar; porém dá prazer ao crítico avistar-se
com um homem destes, um íntegro, um nobre espírito de eleição. 38
Sentimos nada poder dizer de muitos jovens poetas mais ou menos filiados à escola de
Cruz e Sousa.
Para findar: o simbolismo, nome por certo mal escolhido para significar a reação
espiritualista que neste final de século se faz na arte contra as grosserias do naturalismo e contra
o dilentantismo epicurista da arte pela arte do parnasianismo, é, nas suas melhores manifestações
líricas, uma volta, consciente ou não, ao romantismo naquilo que ele tinha também de melhor e
mais significativo. No Brasil, porém, para que ele caminhe e progrida, será preciso que, deixando
de lado as ladainhas de Bernardino Lopes e Alphonsus de Guimaraens, deixando, em suma, as
afetações d’Os Simples, prossiga na trilha que foi aberta por Cruz e Sousa, não o Cruz e Sousa da
prosa abstrusa do Missal e das Evocações, porém o Cruz e Sousa dos Faróis e dos Últimos
Sonetos, e essa há de ser uma das mais belas porções da lírica nacional, que irão ainda florescer
nos primeiros anos do século que vai entrar.(2)40 (grifos nossos)
40
(2) Não esquecer que este ensaio foi escrito em 1899 para figurar no Livro do Centenário. Id. Pág.
1688
55
Além do rótulo “prosa abstrusa”, cunhado por Silvio Romero, e que talvez já
predispusesse os pósteros, havia uma natural tendência, na produção do entorno
simbolista, à classificação imprópria do gênero conto, muitas das vezes, confundindo-se
com o que Massaud Moisés chama, com pertinência, de “cromos ou reflexões”41, ou
mesmo cenas, embriões de romances, etc. Aliás, a nosso ver, Moisés esgota
definitivamente a questão, de forma categórica e absoluta, ao abordar o tema, apoiando-
se no seminal estudo sobre o assunto de Suzanne Bernard, Le Poème en Prose – de
Baudelaire jusqu’à nos jours, Paris, Nizet, 1959. Partindo do princípio que a grande
distinção entre o poema em prosa e prosa poemática é o conteúdo e não a forma, o
crítico disserta longamente e com grande acurácia, constituindo, neste aspecto
particular, em nosso Simbolismo, um pequeno tratado desbravador.
Entendemos, sobretudo, que a questão é ampla demais para que nos alonguemos
por aqui; o tema, por si só, justificaria outra tese, discutindo-se esses limites entre um
gênero e outro, até que ponto se tangenciam, se superpõem ou se interseccionam.
41
MOISÉS, Massaud. In: Simbolismo (1893-1902). São Paulo: Cultrix, 1966. Pág. 224.
56
Parece-nos escopo de outro novo fôlego, embora creiamos piamente que a questão
encontra bom termo no abalizado crítico, apoiado este pela especialista francesa. O que
julgamos necessário não acrescentar, mas apenas contribuir, é que não se deve, a priori,
e esse talvez seja um vezo da crítica menos atenta e urgente, no Brasil, discutir o gênero
conto cotejando-o com o romance, e ver naquele a ausência ou o esmaecimento de
elementos estruturadores do outro. E ainda supor uma forma intermediária, como a
novela, que carece, forçosamente, por seu caráter impreciso, de aspectos delineadores,
tornando-a híbrida, vaga ou informe.
menores contos brasileiros do século (org. por Marcelino Freire, São Paulo: Ateliê
Editorial, 2004), em que figuram cem “contos”, de autores notáveis, todos com menos
de 50 palavras, é possível tentar buscar a compreensão da produção em prosa curta
simbolista, ou o que se tentou plasmar como narrativa curta, especialmente contos.
edição e as tiragens, reduzidas; considerando que foram escritas por autores “menores”,
quase todos à sombra de Cruz e Sousa, muito superior a eles; considerando que houve
diversos equívocos por parte de muitos outros autores em classificar como contos
poemas em prosa, de qualidade discutível, o que teria gerado uma prévia rejeição por
parte da crítica; e considerando, por fim, o rótulo de “prosa abstrusa” que se implantou
desde então, queremos dizer que, provavelmente, muitos destes autores sequer tenham
sido lidos devidamente, passando a ser meramente citados, como exemplos natimortos
de experiências inócuas. E, como resultado, passaram ao ostracismo imposto pela
modernidade, com o agravante de terem se tornado praticamente inéditos, jamais
transcritos no todo ou em parte, em nenhuma reunião, compêndio, seleta ou
antologia referente ao Simbolismo e suas adjacências.
Isso posto, passemos à “nova crítica”, que a partir dos anos 40 do século XX,
passa a produzir os manuais que doravante nortearão os estudos acadêmicos, chegando
até nossos dias.
42
FILHO, Rodrigo Octávio. In: Simbolismo e Penumbrismo. Rio: Livraria S. José, 1970. Pág. 21.
59
Muricy, neste brevíssimo parágrafo, aponta para três questões essenciais, que
serão realçadas por uns e rechaçadas por outros: houve, de fato, produção na prosa
simbolista, quer seja no conto ou no romance, embora em menor incidência do que nas
demais estéticas modernas; nota a “indefinição” da fronteira com os territórios da
poesia, o que justifica a inconsistência do julgamento e rotulação por parte de alguns
críticos e a incerteza de alguns autores desse tempo em classificar sua produção; e por
fim, essencialmente, a preponderância da descrição e o esmaecimento da narração direta
como elementos fulcrais da prosa simbolista.
Quanto aos autores, Muricy lembra que “Cruz e Sousa não escreveu ficção”; cita
Nestor Victor, assinalando que em Signos, escrevera a “melhor novela simbolista que
possuímos: ‘Sapo’”, tendo ainda escrito o romance Amigos, cuja apreciação inicial teria
sido feita por Massaud Moisés, fato que confirma a nossa percepção de que o crítico foi
o que melhor investigou e analisou a prosa do Simbolismo, esclarecendo ainda a lábil
tríplice fronteira entre o poema em prosa, a prosa poemática e o conto, embora os dois
últimos se interseccionem. Virgílio Várzea também figura na lista, tendo escrito
“contos idealizadíssimos”; de Lima Campos, autor da obra única Confessor Supremo,
Muricy destaca “Tia Martinha”; apesar da abalizada opinião do insigne crítico, optamos
por analisar “O lilás pisado de suas olheiras...” e “Era alta da linha plástica de uma
státua antiga..”, além de transcrever o conto por ele referido. Lamenta, ainda, de
passagem, a perda de “Sala Vazia”, obra-prima de Gustavo Santiago, hoje
inencontrável; Emiliano Perneta, Julio Perneta e Dario Vellozo; dos primeiros, o crítico
ressalta o acentuado tom regionalista. Mendigos, de Alphonsus de Guimaraens, é
43
MURICY, Andrade. In: Panorama do Movimento Simbolista Brasilero. São Paulo: Perspectiva, 1980 3ª
Ed., pág. 54.
60
lembrado, com a ressalva de não “lhe ter acrescentado à grande glória de poeta”. E
sobre Gonzaga Duque,
“É, no entanto, no livro Horto de Mágoas que Gonzaga Duque imprime caracterização
simbolista indo até o decadentismo, em páginas que são das melhores no seu gênero em todo o
movimento brasileiro da tendência. 44”
44
MURICY, A. id. Ib. pág. 56.
45
CARPEAUX, Otto Maria. In Pequena Bibliografia Critica da Literatura Brasileira. Rio: Ediouro,
1968. 4ª Ed., pág. 216.
46
MIGUEL-PEREIRA, Lucia. In: História da Literatura Brasileira – Prosa de Ficção – de 1870 a 1920.
Rio: José Olympio/MEC, 1973. 3ª Ed. Pág. 227
61
se utiliza por Silvio Romero, citado anteriormente, e que, a nosso ver, rotularia,
peremptoriamente, a prosa de ficção simbolista.
Segue a crítica:
Aqui, feita a redução para a escala indígena, as mesmas proporções foram guardadas. O
movimento que deu Alphonsus de Guimaraens e Cruz e Sousa não suscitou nenhum romancista
de mérito equivalente. Na verdade, foi, na prosa, uma tentativa frustra. 48 (grufos nossos)
47
Idem, ib. pág. 228
48
Idem, ib., págs. 228-9
49
Idem, ib. pág. 229
50
Ide, ib., pág. 231
62
Embora ainda fosse dar este e outros frutos tardios (299) – é simbolista o romance de
Lima Campos, muito citado no momento, Confessor Supremo, Laemmert, Rio.51
Por fim, a crítica dedica um alentado capítulo a Tristão da Cunha, o qual, muito
embora se notem suas indiscutíveis qualidades, somente publicou em prosa em 1936
(Histórias do Bem e do Mal), constituindo-se assim, um “fruto bem mais tardio” do que
o próprio Lima Campos, trinta e dois anos antes.
51
Idem, ib., pág. 232
63
num autêntico poema em prosa,formando uma serie digna de ser incorporada à sua obra em
prosa.”52
52
COUTINHO, Afranio. A Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Sul Americana, 1968. Vol. IV, págs.
147-8
53
MOISÉS, Massaud. O Simbolismo. São Paulo: Cultrix, 1966. Pág. 89
54
Idem, ib. pág. 148.
55
Idem, ib., pág. 149
64
O cimo é ocupado por Lima Campos, Gonzaga Duque e Nestor Victor. Lembra
Moisés a atividade intelectual de Lima Campos, como jornalista militante, fundador de
revistas, sobretudo a longeva Fon-Fon!, juntamente com Mario Pederneiras e Gonzaga
Duque, a que já nos referimos anteriormente. Ressalta, num poder de síntese notável,
que o autor de Confessor Supremo traz no bojo de suas narrativas “um contorno
indeciso e vago como a poesia simbolista, destituída de ossatura episódica e de
personagens”.62 Tal observação, a nosso ver, talvez seja a mais cabível leitura e
classificação do que viria a ser a prosa curta simbolista. Na seqüência, analisa
detidamente alguns contos da obra única de Lima Campos, como “Na Fronteira”;
“Amor”; “Boca”; “Natal”, e “Ave Estranha”, citando ainda aqueles que não são
intitulados.
Sobre o autor de Mocidade Morta, Moisés dedica-lhe nada menos do que oito
páginas de seu alentado compêndio, de que retiramos uma observação lapidar e
caríssima ao nosso trabalho:
59
MOISÉS, Massaud. In: O Simbolismo. São Paulo: Cultrix, 1966. Pág. 224
60
Idem, ib. pág. 225.
61
Idem, idem, pág. 226.
62
Idem, ib., pág. 227.
66
estruturada, coesa, dotada de começo, meio e fim, e a linguagem poética, segundo os mais
extremados processos decadentes e simbolistas”63 (grifos nossos).
63
Idem, ib., pág. 228-9
64
Idem, ib., pág. 234
67
(...) força é afirmar que todas essas características fazem de Signos um livro
importante não apenas para a historia do nosso Simbolismo mas mesmo da nossa prosa de
ficção. Quando menos, ostenta merecidamente o lugar de precursor, mais do que nenhum outro
ficcionista de seu tempo, em matéria de monólogo interior. 65 (grifos nossos).
Alfredo Bosi, a quem devemos o mais profundo respeito acadêmico pelas suas
notáveis contribuições como crítico literário contemporâneo, posiciona-se - como já
assinalamos antes - negativamente em relação à possibilidade da ficção simbolista,
assumindo, de certa forma, um tom pejorativo e até jocoso, o que nos parece uma franca
injustiça.
A ficção simbolista foi escrita em versos – nos longos poemas narrativos e nos
poemas em prosa, popularizados por Baudelaire (Petits poèmes em prose, 1869) pelo modelo
paradigmático de Aloysius Bertrand (Gaspard de la nuit, 1842), embora, bem entendido, a prosa
poética tenha tradições mais antigas. É por conseqüência, claramente errônea a verdade aceita da
crítica, segundo a qual o simbolismo foi particularmente pobre na ficção.70
misticismo/espiritualismo;
pessimismo, melancolia;
forte subjetivismo;
67
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1970.
68
Idem. O pré-modernismo, São Paulo: Cultrix, 1973.
69
POMBO, Rocha. No Hospício. Org. de Cassiana Lacerda Carollo.Curitiba: Prefeitura Municipal de
Curitiba, 1996.
70
Idem, ib., pág. 7
69
notas de erotismo;
morbidez (ultra-romântica); e
As omissões
Antes de listarmos os autores, cumpre ainda que registremos uma lista também de
omissões e suas justificativas. Muitos dos autores abaixo foram consignados em alguns
dos compêndios já citados, e por razões que assinalaremos sucintamente, foram
dispensados do elenco final da antologia, uma vez que se fizeram necesários ajustes
para o recorte do corpus final.
71
MOISÉS, Massaud. Op. Cit., pág. 226.
71
interessantíssima obra, com fortes notas simbolistas, entretanto, como não produziu
contos, não integra esse corpus.
72
MURICY, Andrade. In: Panorama do Conto Paranaense. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 1979.
72
. . . . . . . . . .
De riquíssima bagagem erudita, que o fez singrar também pelos bravios mares
da ensaística, ao abordar em seu tempo, com argúcia e pertinência, Ibsen, Proust,
Maeterlinck – com quem chegou a se corresponder e lhe fez uma introdução – e
Nietzsche – que viria a revolucionar suas idéias -, Nestor Victor teve sua existência
marcada, essencialmente, pela amizade com Cruz e Sousa, de cuja perda jamais se
recompôs, como assinala Andrade Muricy:
Morto este, em 1898, foi terrível o golpe recebido, e que sangrou até o fim da
sua vida. Confessava que nenhuma amizade pudera proporcionar-lhe o alimento substancioso, o
73
In: Cartas à gente nova. Rio de Janeiro : Edição do Annuario do Brasil.,1924. Acervo Brasiliana, USP,
edição para download em pdf.
75
alto inebriamento espiritual que lhe valia o trato com o Poeta Negro. Este confessou idêntico
sentimento, no referente a Nestor Victor, nos sonetos intitulados “Pacto das Almas” (1987, vol.1,
pág. 337).
PACTO DE ALMAS
A Nestor Victor
Por devotamento e admiração.
12 de outubro de 1897.
I
PARA SEMPRE!
74
In: Obras completas de Cruz e Sousa. Org. Lauro Junkes. Jaraguá do Sul: Avenida Editora, 2008 (pág.
567)
76
“A CRUZ E SOUSA †
................................................................. 75
Nestor Victor
Cruels (1883) - tem a estrutura de caso (“causo”), história narrada na sala, entre
amigos, com intenção de conferir verossimilhança; “Olvério”, com ambientação
também exótica, trata de um romance entre um príncipe oriental e sua amada, Fenema,
com final não feliz; “A Victoria”, com notas de erotismo sutil, trata do idílio entre um
jovem casal, em que uma moça, não correspondida, exige o amor ardente do noivo, que
enfim cede aos seus caprichos, amando-a (situação muito próxima a de “Idílio Roxo”,
de Gonzaga Duque); “Humour” é um conto dividido em três partes – o que o torna o
mais longo do livro – e tem também a estrutura de “caso”, um tanto avizinhado com a
introspecção machadiana, com final aberto e inusitado; “Alegria fúnebre” é uma
narrativa notável, estruturada com grande destreza pelo autor, e trata de um inusitado
casal de mendigos – uma indígena paraguaia e um negro ex-combatente da Guerra do
Paraguai – já envelhecidos e com a relação desgastada pelo tempo, o adoecimento do
velho soldado, sua morte e um final absolutamente improvável e surpreendeente (note-
se que o desfecho inusitado também se verifica em Oscar Rosas, Virgílio Várzea, Lima
Campos, Rocha Pombo e Medeiros e Albuquerque; e a temática da mendicância
também é enfocada por Rocha Pombo, em “Sarica”, citado por Afrânio Coutinho, e em
“Mendigos”, do livro homônimo de Alphonsus de Guimaraens); “Sapo”, novela extensa
e minuciosamente analisada por Massaud Moisés76, em que dois amigos, Bruce e
Ernesto, desfazem a amizade quando o segundo se enamora de uma moça leviana,
levando Bruce a um processo de degradação psicológica, que passa a assumir a
identidade e o modus vivendi de um batráquio; e por fim, “Gavita”, bela narrativa que
enfoca a vida de uma jovem alegre, altruísta, e um amor não correspondido, com um
desfecho surpreendente, em engenhosa manobra do narrador. É este o conto que
elegemos para análise e para figurar em nossa antologia.
76
MOISÉS, Massaud. Op. Cit, pág. 238
79
“Seus quinze annos são como os quinze degráos de ouro de um pedestal que ella
levou a subir sorrindo – visão estranha, – adelgaçando-se melhor, definindo-se melhor,
absurdamente, quanto mais subia. Foi como um encanto que, anciando em si mesmo,
forçasse e se fosse corporificando n´um encanto maior. Sorriso que se fizesse luz. Anjo,
cujas vestes curtas, como elle ia subindo, desdobrassem-se em delgada tunica, e cujo
perfil, afilando, affinando, se fizesse um perfil de mulher, para ser o de um anjo mais
seductor e mais meigo.” (ortografia original, grifos nossos, Anexos, pág. 6)
Gavita veste rendas alvas e sua descrição sublinha a diafaneidade de suas formas
angelicais, com adjetivação e símile significativas:
Gavita é uma “creança” que todo pai adoraria ver crescer, em casa. Entretanto,
sua voz é feminina, ainda com uns “restos longínquos de tom infantil”, o que a torna
uma menina-mulher, híbrido que antecipa a possibilidade do desejo a ser instalado.
Passa-lhe o mundo através de finos stores, todo azul, como uma canção que se ouve de
noite, ao longe, advinhando-se que lá fóra, tudo adormece sob os philtros do luar! Idéas... Modos
de seu ser harmonioso e angelico, simplesmente, para que os ouvidos se encantem, como o
perfume é um modo de ser da flor, d´essa essência de delicadeza e frescura, para fazer a delicia
do olphato.
Ella falar, ou ella rir... Musicas, musicas sómente... Apenas, uma se deu ao luxo da
lettra, que, no emtanto, nem se ouve, ficando-nos adormecida a razão, como a de um chim
opiado, a imaginativa batendo azas para um mundo de vaporosos coloridos, em sonho.
(ortografia original, Anexos, pág. 7)
Os passos alados délla são hoje, de tão leves, de tão cautos, sombras apenas de
seus passos, vividos e musicaes ainda hontem.
Ella tem nas faces as rosas pallidas da vigília, como uma doce enfermeira.
Porque passou em vigília, insistente, toda a noute, em verdade. (ortografia original,
Anexos, pág. 8)
Sobre a cabeça da menina de ha tão pouco parece que fulge o resplendor de uma santa.
Na serenidade que lhe inunda o semblante já não se lê a feliz despreoccupação de seus dias
risonhos, lê-se a fé, essa rosa mystica que só viceja nos corações fecundados pela dor. D´esta,
como do casulo sae a borboleta, sahira mais aquella mulher. No anjo, em que a adolescência
ainda não marcara bem firme os seus traços, havia agora reverberos de maternidade. (ortografia
original, Anexos, pág. 8)
Ella fazia hoje pensar nos processos estranhos do poema da vida. Seres aéreos ahi vem
dançando, pouco a pouco visíveis, como quem vem de outros mundos, approximando-se lentos,
ao som de bandolins e cytharas, – figuras vaporosas em paizagens de fundas perspectivas
risonhas. Parece que todo o mundo é uma festa, que a vida é uma simples e deliciosa canção. No
emtanto, muitas vezes estas bayadeiras, tão graciosas nos vortices, são tambem as que sabem ter
mais graça, profundamente emocionantes, o receber de mãos ignotas, com um leve inclinar de
cabeça, d´ahi a momentos, quando de súbito o scenario se transforma, viçosas e pesadas corôas
de martyres. (ortografia original mantida, grifos nossos. Anexos, pág. 9)
82
– Mas não está ahi, n´esse sacrificio por uma creança, a prova tão clara da sua natureza
affectiva? elle interrogava, para dar-se a si mesmo uma esperança qualquer.
N´esse dia em que voltou entregou-lhe tremulo uma carta coberta de queixas.
– Quem sabe? agora que ella é toda emoção, talvez comprehenda a crueldade que tem
tido até hoje, elle pensou. (ortografia original, grifos nossos, Anexos, pág. 10)
O primo envia a Gavita uma nova carta, em que se declara. Ela não
entende bem os sentimentos dele, tampouco as “idéas” que preenchem as missivas.
Considera-o confuso, vago, estranho, pouco claro. Não tem por ele qualquer afeição
maior, talvez uma indiferença singela. Entrementes, o primo desespera-se
progressivamente; ela, entretanto, recupera o seu ânimo “alado”:
“Gavita radiava. Voltara-lhe toda aquella graça de passaro meio selvagem. A casa
inteira acordara com a sua ruidosa alegria, como de madrugada, com o passaredo, a floresta.”
(ortografia original, grifos nossos. Anexos, pág. 12)
83
7.2 LIMA CAMPOS, César Câmara de. (Rio de Janeiro, 1872 – 1929)
77
In: FILHO, Rodrigo Octávio. Simbolismo e Penumbrismo. Rio: Livraria São José, 1970.p. 95
86
O lilaz pisado das suas olheiras, como se fossem bistradas pelo soffrimento; o
doloroso meio rir da sua bocca triste, derramando expressões dormentes, de uma melancolia
impressionadora, no seu semblante de linhas suaves; a simplicidade sympathica do seu aspecto,
dos seus gestos, dos seus dizeres e, sobretudo, os seus olhares pensivos, cheios de uma uncção
piedosa de consolo e conforto, communicativos de scismares romanticos e provocadores de
affectos brandos; a negligencia encantadora das suas maneiras e a sua beleza digna e pallida de
imagem de altar – tudo isso, todo esse delicado e insinuante feitio, toda essa ineffavel graça –
prendia embaladoramente os olhares que a fitassem, perturbava sonhadoramente os espiritos e
empolgava, emfim, as sentimentalidades que se lhe approximavam. (ortografia original, grifos
nossos, Anexos, pág. 20)
78
CAMPOS, Lima. Confessor Supremo. Rio: Laemmert & Cia., 1904. Págs. 45-46
88
Nelle, porém, a affeição cantava no olhar, sonóra e clara, visível e ingênua, o hymno do
bemquerer que Ella ouvia, e traduzia-se-lhe nitida na mudez expressiva da perturbação de
Marcos, sempre que, onde elle estava, ella estivesse presente. (ortografia original, grifos nossos,
Anexos, pág. 20)
A moça enfim cede aos enleios de Marcos d’Alba, e assim, as faces pálidas e as
olheiras bistradas dão lugar aos contrastivos rubores, iluminações, claridades, em uma
coleção de sugestões de imagens que poderiam, com efeito, compor um story-board de
um roteiro cinematográfico, decupadas as imagens e a seqüência de “tomadas” trazidas
pelo narrador. Notem-se, ainda, a bela imagem dos braços como “asas de ânfora”; a
sensualidade no ritual da retirada do estilete dos cabelos; a feminilidade do conjunto da
indumentária de dama – luvas, chapéu e leque; a religiosidade e a liturgia cristã no
“missal de chagrin”, a oração, as antífonas e os santos; e a fragrância das folhas secas de
malva.
toda a narrativa: “(...)gorda, anafada, negligente, mal fallada dos visinhos, com cinco
filhos magriças e uma divida na pharmacia.” (mantida ortografia original).
26/6/1933)
Bibliografia:
Para nosso estudo e foco, elegemos o volume “Contos e Pontos”, de 1911, e para
figurar na antologia, o conto “O gato negro”, pelo forte acento simbolista presente na
tessitura narrativa, muito embora em “A literatura no Brasil”, Afranio Coutinho
apreciasse “A boa nova” e “Sarica”. Analisando-os, achamos ainda mais modelar o
primeiro citado, divergindo, portanto, do grande mestre.
No parágrafo seguinte, o narrador desfila, além da atração pela noite – tema caro
aos simbolistas -, uma galeria de imagens afinadas com a estética: o misticismo, o
insondável, o inefável, as diafaneidades, a vaguidade, o intangível, o indefinido e as
sombras. E ainda, “as palavras augustas”, de sentido dúplice:
“Bemdita a noite que nos faz novo o universo! Bemdita a noite que me fecha de todo a
alma no insondavel escuro, onde erra meu espirito, á busca de signos indecisos e como si
estivesse á espera de palavras augustas que vão ser faladas. A natureza está para mim numa
attitude e numa pompa mystica de cerimonia cultual. Ha pouco em torno de mim havia tumultos
e eu suspirava; havia todas as manifestações ruidosas da vida, e eu inquiria o destino numa
sagrada ancia de viver. E é só agora que meu coração se apercebe de que está no mundo onde se
creou e em cujos paramos silenciosos tem vivido – mundo feito de sombras, de luares
ineffaveis, de horizontes sem limites como as voragens; mundo de seres intangiveis, de
existencias sem fórmas, de vultos sem contorno; mundo do vago extenso, da cor indefinida;
mundo da nevoa, da solidão e do assombro – ideal paragem das almas a vagar anciosas
neste oceano do tempo... “ (ortografia original, grifos nossos, Anexos, pág. 27)
Em meio a seus devaneios e reflexões que a treva lhe propicia, surge, em sua
frente, um gato negro, injusto símbolo de malefícios e associações com feitiçarias. Há a
referência explícita a “O Corvo”, “a ave do poeta” e ao “Nunca Mais!” (“never
more!”) de Poe. Notem-se, ainda, os duplos e triplos adjetivos, complementos
nominais e apostos explicativos, enfáticos na composição da cena:
93
Entendendo o gato negro – que, tal qual uma ave, pende no peitoril da janela,
analogamente ao corvo, que na cena do poema, posta-se em um busto de Palas sobre o
umbral da porta - como um emissário das trevas, o narrador passa a inquiri-lo a respeito
de suas questões existenciais, sobretudo ao que há no Inferno, se lá existem as mesmas
monstruosidades de cá, os mesmos crimes, as mesmas insânias. Há ainda alguns
paralelos importantes, sobretudo com o poema de Poe, a assinalar: o narrador quando
diz ao gato “tu és mais do que as aves, por que (sic) mais do que as aves já amaste e
hoje odias mais do que as aves” (ortografia original), alude a “O Corvo”, bem como ao
citar nominalmente a amada do eu-lírico do poema, em “Não te inquiro sobre as
Leonoras que se foram(...)”, e, obviamente, pela inquirição a um animal-símbolo,
longamente justificada por Poe em sua Filosofia da Composição:
(...)dize-me apenas se o inferno de onde vieste é mais horrivel do que a terra. Dize-me
se lá também ha crimes e si os crimes lá chegam a ser monstruosos como aqui... Si os entes lá
tambem detestam Deus e aborrecem os homens... Si tanto como aqui a perfidia, a soberba e a
impiedade estão no seu imperio... Dize-me si as almas lá vivem tambem de perseguir as almas...
(ortografia original, Anexos, pág. 29)
(...) – Mas ouve-me, gato negro. Nas lendas deste mundo, tu figuras
como o disfarce preferido no inferno e sem duvida, esse conspecto e essa côr escondem
alguma coisa da cidade do pranto e do ranger de dentes... Vem dizer-me si lá nas
entranhas do Orco79 ha tambem Neros e Denys; si ha juizes que condemnam innocentes
79
Orco, divindade infernal da mitologia romana que acabou denominando o seu lugar, assim como
Hades, para os gregos.
94
(...)castigo que põe as almas, sob o silencio das noites, num grande
estatellamento em face do céu, sem saber por que vieram, sem saber como vivem, sem saber por
que suspiram... (idem, idem, Anexos, pág. 30)
Por fim, indaga ao gato – em bela imagem, com a sua silhueta projetada e
ampliada pela luz do gás do poste - se há, em seu mundo, o amor. A resposta é um
onomatopaico miado, acompanhado de sua saída da cena, deixando indefinida a
interrogação.
Além das conexões com “O Corvo”, mais numerosas talvez do que com o
próprio “The black cat” ( que por seu turno, alinha-se a “Tell-tale heart” – “O coração
80
Hugues Nicolas Joseph Lesurques (Douai, 1763,-Paris, 1796) negociante francês, morto na guilhotina
, vítima de um dos mais famosos erros judiciais da história da França, conhecido como o caso do Correio
Lyon.
81
Alfred Dreyfus, (Mulhouse, 1859 - Paris, 1894) militar francês, de ascendência judaica, vítima de um
erro judiciário que originou uma maior crise política do início da Terceira República.
82
Jean-Paul Marat, (Boudry, 1743 - Paris, 1793) médico, jornalista e político francês. Ele era membro
da Convenção na época da Revolução. Seu assassinato por Charlotte Corday permitiu aos Hebertistas (v.
Nota abaixo) torná-lo um mártir da revolução e depositar os seus restos mortais no Panteão.
83
Jacques-René Hébert, (Alençon, 1757 - Paris, 1794), jornalista e político francês, morto na guilhotina.
Fundador e editor do jornal radical Le Père Duchesne durante a Revolução Francesa. Seus seguidores são
geralmente chamados de os Hebertistas; ele próprio é também conhecido como Père Duchesne, (“Pai
Duchesne”) nome de seu jornal.
84
Moloch ou Moloque, também conhecido como Malcã, conforme os textos bíblicos, é o nome do deus
ao qual os amonitas, uma etnia de Canaã (povos presentes na península arábica e na região do Oriente
Médio), sacrificavam seus recém-nascidos, jogando-os em uma fogueira. Também é o nome de um
demônio na tradição cristã e cabalística.
95
Além das obras citadas, publicou Traços azuis (poesia, SC, 1884); Miudezas
(contos, SC, 1886); Rosa Castle ( novela, RJ, 1893); Mares e campos (contos, Rio,
1895); Histórias rústicas (contos, Rio, 1905); Os argonautas (contos, Rio,, 1909); Nas
ondas (contos, Rio, 1910) e Contos de amor ( Rio, 1901) , de onde retiramos
“Nerah”, para esta antologia. Em 2003 , após longo tempo sem reedições, a Academia
Catarinense de Letras, em associação com a Universidade Federal de Santa Catarina,
lançou, em 2003, os Contos completos de Virgílio Várzea, com estudos analíticos e
organizados por Lauro Junkes. “Nerah” é um exemplar típico do estilo de conto
97
A epígrafe de Henri Heine, poeta romântico alemão - muito admirado por seus
contemporâneos, no Brasil, incluindo até mesmo Machado de Assis – “O gracieux
fantôme, enveloppe-moi de tes bras. Plus ferme, plus ferme encore! Presse ta bouche
sur ma bouche; adoucis l'amertume de la dernière heure” ( Ó fantasma gracioso,
envolva-me em seus braços. Mais firme, ainda mais firme! Aperte sua boca sobre a
minha boca; adoce/suavize a amargura da última hora” ), já anuncia o provável desfecho
à feição um tanto ultra-romântica do conto.
O seu pescoço alvo, de uma pureza de alabastro, por onde desciam os longos
cabelos esparsos em ondulações de ouro ardente, como uma esteira de astros, tinha a
contornação pura, a veludez seráfica, a doçura açucenal e celeste do das virgens de
98
Velásquez. Seus olhos azuis, grandes, magníficos, de uma candidez espiritual, imersos
sempre numa umidês de langor e numa ternura inefável, tentavam com atração
irresistível, venciam e algemavam as almas. Notava-se neles como que o desejo
acariciador e sutil de um aconchego ou de um enlace. (grifos nossos, Anexos, pág. 36)
Mas, por vezes, no seu olhar quente e transparente, flutuava uma langorosidade
meridional de morena, que anseia e freme nas palpitações de uma paixão mundanal, e então, em
sua face nevada e límpida de remota origem escandinava, acendia-se a carminação ardente dos
frutos tropicais. (Anexos, pág. 37)
Baiana, também morena e comparada aos frutos tropicais, como justificativa do desejo
“Idílio roxo” e outras aqui abordadas, introduzida pela “saudade estranha do Infinito”,
m maiúscula, a gosto da estética.
“A sua vida era como uma orquestra de violinos e órgãos, cheia, umas vezes, de
surdinas aéreas, muito altas, arrebatadoras como hinos religiosos de catedrais saxônias, que
enterram as flechas no céu; e outras de turbilhões convulsos, fantásticos, como coruscações de
relâmpagos cortando o escuro molhado das noites invernosas.” (Anexos, pág.37, grifos nossos).
(...)E este definhar contínuo, que lhe dava às formas uma diafaneidade sutil, tornando-a
como uma dessas visões nebulosas que flutuavam outrora em legiões alvíssimas na imaginação
evocativa dos místicos, à meia luz esfuminhada das celas e cárceres, fazia com que o seu talhe
delicado adquirisse mais e mais a doçura sofredora e angélica, a contornação leve e vaga, a
divinização inefável que exornavam de graça sagrada as monjas medievais. (Anexos, pág. 38,
grifos nossos)
Ossa Mea
II
NERAH
A Victor Lobato
seria a original, de fato. De qualquer forma, não vimos alterações significativas que
promovessem uma nova leitura e análise divergentes da empreendida.
104
Pelos bons dias de sol, anilados, claros, gloriosos e transparentes, ele deixava
sempre o quarto, confortável aposento que sua mãe enchia de cuidados e de amor, e,
trôpego, esgazeado e verde, lento como um caramujo lesmando a relva de um parque,
encolhido e vergado em bodoque, com olhos cheios de fulgor e de saudade, uma menta
105
azul ao pescoço, queimado a iodo, a barba crescida e um cigarro de palha à boca, ia para
o jardim, acompanhando o criado que lhe levava o livro e a cadeira.
Tudo isso que ele via era a vida e ele sabia que ela estava para acabar, que não mais a
cor, o aroma, a luz e o som o fariam vibrar, sentir, gritar intimamente, como um apunhalado.
(pág.42).
A morfina que lhe administram não impede que, atiçado pela orquestra que
tocava na casa vizinha, dê início a um longo delírio, onde não lhe sobrevém a sua musa,
mas um grupo de mulheres, vestidas sumariamente, a dançar freneticamente:
Foi servidor público durante toda a sua vida, iniciando-se como 2º Oficial da
Diretoria do Patrimônio Municipal, tendo sido promovido a 1º Oficial da Fazenda da
Prefeitura, permanecendo nesta repartição, durante longo período, como secretário da
Direção Geral. Em 1910 foi designado para exercer a direção da Biblioteca Pública
Municipal.
compêndio Arte Brasileira (Rio, 1888); Revoluções Brasileiras (Rio, 1898); Marechal
109
Niemeyer” (Rio, 1900) Graves e Frívolos (Rio, 1910) e Contemporâneos (Rio, 1929),
este, post-mortem.
mencionados, publicou somente o romance Mocidade Morta (Rio, 1899), em que são
dandismo da Belle Époque, e mesmo com algumas notas críticas aos contemporâneos
flâneurs.
“Posse suprema”, título dedicado a Roberto Mendes e que abre a obra, em que se
mesclam desejos proibidos, delírios e uma relação entre imagem real e a desenhada, nos
fazem relacionar imediatamente com O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde – já
evidenciado em “A noiva de Oscar Wilde”, de Gastão Cruls – e com “O retrato oval”,
de Edgar Allan Poe.
também poeta simbolista Dario Vellozo - e “Idílio roxo”, onde o prazer e a dor se
sobrepõem e velam os limites de cada um.
“Ruínas” conta a história de Pero Roiz, que expressa seus sentimentos através de
um velho cravo do tempo de D.João VI, frouxo, corroído e sem conserto possível pela
modernidade que o aposentara. O instrumento – cujas teclas mostram-se com o
cromatismo invertido, com as notas naturais de ébano e os sustenidos de marfim –
chega à deterioração absoluta e seus marteletes não mais fazem soar, sendo ouvido
somente pelo nostálgico Pero, em bela alegoria da persistência da arte em face do novo
que desmantela e nega o passado.
Desses doze contos aqui resumidos, escolhemos “Idílio roxo” para análise e para
integrar a antologia. Conta a história de Sara, típica representante da alta burguesia de
seu tempo, tecida por um narrador-personagem, heterodiegético. Ela sofre de
tuberculose – a exemplo de outras narrativas aqui elencadas como ‘Nerah” e “Tísico” –
que não é nomeada, a princípio. Paronomasticamente, e através de gradações e
eufemismos, o narrador não declara a tuberculose: “tosse irritante”; “resto de vida”;
“acessos de tosse”; “suas pequenas narinas de nervosa resfolegavam”; “havia no seu
respiro o rítmico siflo, do soprar dum fole” e a “alacridade aromática do seu bafo”.
Quando ela aparecia ao sol das dez, na sala de hotel, agitando rendas sobre
rendas, numa feliz ilusão de se fazer menos magra, e mais polipétala que uma rosa branca, a
encher o ambiente com trescalos fidalgos de crab-apple85, não havia pupila que não cintilasse de
desejos acesa, nem percepção que se enganasse com a saúde artificial daquela criatura, esvelta e
solerte, que siflara, angustiosa, nos acessos da tosse, durante o silêncio pesado das noites.
(Anexos, pág. 46, grifos nossos)
85
Tipo de maçã
113
Sara descansou mais sobre o meu braço a leveza do seu busto. Muda, pisando
serena e certa, pupilas absortas e brumosas das sugestões sentimentais deste vagaroso crepúsculo
d´Endoenças, suas pequenas narinas de nervosa resfolegavam; havia no seu respiro o rítmico
siflo, quase imperceptível, do soprar dum fole. Pelo langor do seu corpo percebi que o
recolhimento da paisagem a envolvia, possuindo-a, fazendo-a penetrar o seu mistério, alentando-
a pel´acridade aromática do seu bafo... E silêncio, extensões, hálitos mornos de folhas,
emanações da terra, embriagavam-na, excitavam a sua imaginativa, fazendo-a construir,
mentalmente, com a nostalgia da hora, o romance de tristezas que as tuberculosas soem compor,
tecidos de ilusões e lembranças vagas, como uma música que espira sob a dormência de uma
volúpia ( Anexos, pág. 48, grifos e negrito nossos)
(...)olhos postos na planície violácea, estendida para além, rasa e ampla, ‘té o
aglomero tufoso dos matos, já roxeando no fusco das trevas. E nesta quietitude
espasmódica de natureza adormecida, pressentia-se que de asas espalmas, plasplaceando
ondulantes e esgueiradas, passava teimosa, persistente repassava, a Saudade longa das
deserções eternas. (Anexos, pág. 48, grifos nossos)
Sara, ciente de seu fim iminente, lamenta-se de sua condição, tal como
Nerah, no conto homônimo de Virgílio Várzea. Então, pede ao seu acompanhante um
beijo único e final, uma vez que jamais tivera tal experiência. Irrompe, assim, uma
atmosfera de erotismo, inesperado e irrecusável. O narrador-personagem tenta justificar
sua aquiescência, mas, impulsivamente, rende-se ao desejo ardente de Sara:
Mudamente, obedeci. Era a vontade de uma condenada, e eu, por mais que me
repugnasse a satisfação desse lascivo desejo, que a impudicícia de uma alucinação trazia
à boca de uma criança, não tinha energias para a cruel negativa. Ao curvar-me para ela,
procurando sua fronte, encontrei a febre de seus lábios sôfregos à espera dos meus. E
unimo-los docemente, demoradamente, numa junção noival, premindo as nossas
mucosas na umedecência dos mesmos anseios; eu – perdida razão, animalizado pelo
contacto ofertante da imácula carne febril; ela – dominada pelo seu gozo, radiando nas
faces, esfuziando no olhar, aceso o hálito fremente, que lhe punha no respiro
compassado a delonga sugada dos prazeres primeiros... ( Anexos, pág. 49, grifos
nossos)
(...)de seus lábios escapou-se, de jato, uma golfada de sangue, que estalou,
surda; no chão, e ficou-se coagulhenta, estriada em lágrimas solidificadas, sulferina e
refulgente, na roxidão do dia extinto. (Anexos, grifos nossos, pág. 50)
(...) a natureza aerizava-se nesta melancolia quaresmal de Março, toda ela roxa,
mas, agora, de um roxo turvo, tingindo de saudades tumulares a tristeza imensa da
Terra. ( Anexos, pág. 50, grifos nossos)
Só, infiltrante e dulçoroso, o aroma virgem dos brancos lírios vivia no ar, como
se o óleo perfumado e purificador de uma âmbula houvesse escorrido sobre nós para a
extrema-unção do nosso noivado sem mácula, e – assim, confundindo-se com a
Natureza, lembrava d´algum modo, n´agonia silenciosa da tarde, o hálito de um
resignado sorriso à ilusão inefável de um gozo que nunca mais voltaria... nunca mais!...
nunca mais!...” (Anexos, pág. 50, grifos nossos)
86
In: ZABEL, Norton D. A Literatura dos Estados Unidos. Rio: Agir, 1967.
117
Por fim,
“Ninguém falou melhor de Gonzaga Duque do que Mario Pederneiras, nos versos que
publicou no pórtico do livro Ao Léu do Sonho e à Mercê da Vida, e dedicados a Lima Campos:
87
In: FILHO, Rodrigo Octavio. Simbolismo e Penumbrismo. Rio: Livraria São José, 1970. P. 92
118
(4/9/1867, Recife, PE – 9/6/1934, Rio de Janeiro, RJ). Realizou seus estudos primários
no Colégio Pedro II e na Escola Acadêmica de Lisboa, regressando de Portugal em
1884, ao Rio de Janeiro, onde passou a tomar parte, ativamente, do movimento
abolicionista, e depois, do republicano. Dedicou-se, então, ao jornalismo, magistério,
diplomacia e à política. Em 1889 publicou suas Canções da Decadência, introduzindo
o gosto decadente em nossas letras, e inovando com os poemas em prosa, com feição e
temática baudelairiana.
O início do conto, ao tratar dos diálogos travados entre os colegas, não apresenta
significativas marcas do Simbolismo; entretanto, ao dar início ao “causo” envolvendo
Lucas, a estrutura do texto adquire intenso teor descritivo, e consequentemente,
instaura-se um espaço propício aos índices daquela escola estética.
«... Era alta e magra, de uma magreza aristocrática. Piso de garça real: flexível
e garboso. Meneios de castelã vaporosa, comandando pelos gestos a admiração e o respeito à sua
estranha beleza — beleza, em que, si não bastasse o perfil correto e amadonado, a boca
pequenina e rubra, seria de sobra o olhar. (Anexos, pág. 53, grifos nossos)
Uma vez que se instala a noção de que Virgínia é tísica – bem como algumas das
heroínas que já assinalamos em outras narrativas - ela experimenta uma espécie de
perturbação alucinatória, associada a motes ou estribilhos – note-se a referência musical
e as sinestesias, que ainda reincidirão:
A moça delirava.
Via-se noiva. Ia entrar na igreja. Quando dava os primeiros passos, o órgão imenso, com
um trovão de apocalipse, fazia-a parar aterrorizada. A música assombrosa cantava: «Esta é a que
vai morrer! Esta é a que vai morrer!»
Apesar de tudo, um padre celebrava a missa. Quando ele ergueu a hóstia, — a hostia,
iluminada vivamente, (...) As linhas do missal eram cordões negros de vermes. Cada vez mais
forte, o órgão clamava ensurdecedoramente: «Esta é a que vai morrer» — Então, como uma
surdina, como a visão dos que do inferno enxergam o céu aberto, mas irreparavelmente perdido,
surgiam-lhe reminiscências de festas: valsas languescendo ao compasso da musica em espirais
tortuosas... voo estonteante de perfumes... hinos de ventura, hinos de amor... hosanas de gloria e
mocidade e vida... (...)E as flores pareciam despeitadas da sua beleza!... Bailes, festas, pompas de
teatro, sedas e veludos, rubis, diamantes...
Mas agora, dominando tudo, os tubos do órgão mugiam o estribilho formidável: «Esta é
a que vai morrer! Esta é a que vai morrer!». (Anexos, pág. 58, grifos nossos)
Nossa escolha recaiu naturalmente sobre Coivara, obra de estreia, que depois
reuniu-se às outras três subseqüentes, na edição Contos reunidos (Rio, José Olympio,
1951). E dentre as narrativas que figuram em Coivara - nove, no total – tivemos
alguma dificuldade em escolher apenas uma, que se sobrepusesse às demais,
apresentando os índices da presença do Simbolismo.
“O Noturno nº 13”, que abre o livro, quer pela sugestão musical, quer pela
temática sobrenatural e sobretudo pela escolha vocabular e condução da narrativa, já
nos faria inclinar para a escolha; “G.C.P.A.” também, bem afeito à feição do autor,
assim como “Noites Brancas”, em que um hóspede de um fazendeiro encontra-se às
escuras, diariamente, à noite, e ama uma mulher hanseniana ( tratada, na ocasião, pelo
impróprio termo “morfética”), sem sabê-lo. Entretanto, são mais vívidas as notas
simbolistas em “A noiva de Oscar Wilde”, cujo título já nos apontaria um atalho
natural.
Oscar Wilde. Raul, anfitrião, justifica que a homenagem se deveria a um provável affair
entre o autor de O retrato de Dorian Gray e sua tia solteira, Belinha.
– Dorian e Sybil… Mas por que diabo deste aos teus bichanos o nome das
personagens de Wilde? disse eu, afogando os dedos na pelagem fulva de um dos angorás, e
avivando na memória a imagem do escritor admirável, em cujas páginas, como num jardim
encantado, tanta vez fôramos juntos colher o fruto de ouro das idéias novas e dos paradoxos
perturbadores. Raul, que me ouvia a dois passos, estirado numa cadeira de vime, a machucar
entre os lábios a ponta da sua indefectível piteira, soergueu-se a essa minha pergunta, e
apontando para uma janela próxima, em que ainda havia luz, segredou-me de indicador sobre os
lábios: “Os gatos são dela; mas nunca fales em sua presença no nome de Oscar Wilde”. E como
o meu olhar o interrogasse, na curiosidade daquêle mistério, Raul travou-me do braço e ambos
fomos ter ao fundo da varanda, onde o luar penetrava a furto, escoando-se pela ramagem olente
de umas glicínias em flor. (Anexos pág. 66, grifos nossos)
(...)era uma senhora ainda vistosa, alta e esbelta, de cabeça magnífica e porte
airoso, conservando no seu todo essa qualquer coisa de indefinível que exigem as
individualidades. Trazia-lhe um particular encanto à fisionomia, resplendente de resignação e
doçura, o contraste criado entre uns olhos, não sei se verdes ou castanhos, mas luminosos e
inquietos, e a tonalidade dos cabelos já brancacentos, que lhe desciam pelas têmporas em ondas
mortas. Vestidos de cores sóbrias, quase sempre voltados ao pescoço por altas gorgeiras de
renda, completavam-lhe a grande distinção de maneiras. Por única jóia, e eu sabia-a possuidora
de belas, às vêzes, um camafeu antigo abotoando-lhe o corpete. Não sei por que, mas sempre me
pareceu que a suavidade do seu perfil admiravelmente se enquadraria na penumbra misteriosa de
certas telas de Whistler.
colhidos singelamente à nuca, e que deveriam ser de um negro profundo e quente, não lhe
quebravam então o queimor dos grandes olhos, que rasgados entre cílios longos, conservavam
ainda a mesma indizível e vaga coloração. (...) (Anexos pág. 67)
Citando vários naturalistas como Von Martius, Jacques Huber e Walter Bates a
suportar seus argumentos, Euclides inicia-se demonstrando erudição, e aponta para a
escassez, então, dos estudos sobre a Amazônia, ressentindo-se, também, de não terem
ido muito além da “estreita listra litorânea desatada entre Belém e Teffé”. De alguma
maneira, o autor de “Os sertões” também deseja, agora nos arredores do Equador, que
nos estendamos além da ourela à beira-mar e que penetremos na imensidão da floresta
tropical, com seu vasto mundo de águas fluviais, flora e fauna peculiares e de
incontáveis espécies. Além disso, ressente-se dos estudos “parcelados”, ou seja, não
totalizantes, da região imensa, o que leva a noções também fragmentadas, com prejuízo
da compreensão do conjunto, do todo, agravada pela dificuldade de se cobrir o espaço
130
O Inferno Verde, a começar pelo título, devia ser o que é: surpreendente, original,
extravagante; feito para despertar a estranheza, o desquerer e o antagonismo instintivo da crítica
corrente, da crítica sem rebarbas, sem arestas rijas, lisa e acepilhada de ousadias a traduzir, no
conceito vulgar da arte, os efeitos superiores da cultura humana.
Porque é um livro bárbaro. Bárbaro, conforme o velho sentido clássico: estranho. Por
isto mesmo, todo construído de verdades, figura-se um acervo de fantasias. Vibra-lhe em cada
folha um doloroso realismo, e parece engenhado por uma idealização afogueadíssima. Alberto
Rangel tem a aparência perfeita de um poeta, exuberante demais para a disciplina do metro, ou
da rima, e é um engenheiro adicto aos processos técnicos mais frios e calculados. A realidade
surpreendedora entrou-lhe pelos olhos através da objetiva de um teodolito. Armaram-lhe os
cenários fantásticos nas redes das trianguladas. O sonhador norteou a sua marcha, balizando-a
pelos rumos de uma bússola. Conchavam-se-lhe os mais empolgantes lances e os azimutes
corrigidos. E os seus poemas bravios escreveram-se nas derradeiras páginas das cadernetas dos
levantamentos.
O escritor alarma-nos nas mais simples descrições naturais. O que se diz natureza
morta, agita-se-lhe poderosíssima, sob a pena; e imaginamos que há fluxos galvânicos nas linhas
onde se perde a passividade da matéria e as coisas duramente objetivas se revestem de uma
anômala personalidade.
Ora, entre as magias daqueles cenários vivos, há um ator agonizante, o homem. O livro
é, todo ele, este contraste.
Mas desculpemo-lo aplaudindo-o. Alberto Rangel, agarrou, num belo lance nervoso, o
período crítico e fugitivo de uma situação que nunca mais se reproduzirá na história.
No Amazonas acontece, de feito, hoje, esta cruel antilogia: sobre a terra farta e a crescer
na plenitude risonha da sua vida, agita-se, miseravelmente, uma sociedade que está morrendo...
Não a descreveremos. Temos este livro. Ele enfeixa os sinais comemorativos das
moléstias. E melhor do que o faríamos em maciços conceitos, vibram-lhe os comoventes lances
de uma deplorável agonia coletiva, em onze capítulos, que são onze miniaturas de Rembrandt,
refertas de apavorante simbolismo.
Além disto, Alberto Rangel é um assombrado diante daquelas cenas e cenários; e num
ímpeto ensofregado (sic) de sinceridade, não quis reprimir os seus espantos, ou retificar, com a
mecânica frieza dos escreventes profissionais, a sua vertigem e as rebeldias da sua tristeza
exasperada.
Quem penetrou tão fundo o âmago mais obscuro da nossa gens primitiva e rude, não
pode reaparecer à tona, sem vir coberto da vaza dos abismos...
O que se diz escritor, entre nós, não é um espírito a robustecer-se ante a sugestão
vivificante dos materiais objetivos, que o rodeiam, senão a inteligência, que se desnatura numa
dissimulação sistematizada. Institui-se uma sorte de mimetismo psíquico nessa covardia de nos
forrarmos, pela semelhança externa, aos povos que nos intimidam e nos encantam. De modo que,
versando as nossas coisas, nos salteia o preconceito de sermos o menos brasileiros que nos for
possível. E traduzimo-nos eruditamente, em português, deslembrando-nos que o nosso orgulho
máximo deverá consistir em que ao português lhe custasse a traduzir-nos, lendo-nos na mesma
língua.
Mas nenhum mestre, além de nossas fronteiras, nos alentará a impressão artística, ou
poderá sequer interpretá-la. A frase impecável de Renan, que esculpiu a face convulsiva do
gnóstico, não nos desenharia o caucheiro; a concisão lapidária de Herculano depereceria
inexpressiva, na desordem majestosa do Amazonas.
Para os novos quadros e os novos dramas, que se nos antolham, um novo estilo, embora
o não reputemos impecável nas suas inevitáveis ousadias.
É uma grande voz, pairando, comovida e vingadora, sobre o inferno florido dos
seringais, que as matas opulentas engrinaldam e traiçoeiramente matizam das cores ilusórias da
esperança.
EUCLYDES DA CUNHA.
133
Son coeur, sur qui pèse une stupeur morne, se soulève en proie à des
tortures convulsives. Il semble qu`il vienne d`entrevoir l`enfer dans sa
vie, et qu`il se soit révélé à lui quelque chose de plus que le désespoir.
(Seu coração, que carrega um estupor triste, se eleva preso a torturas
convulsivas. Parece que ele irá entrever o inferno em sua vida e que lhe
será revelado algo mais do que o desespero).
animar a floresta, que também o faz em outras narrativas, Alberto Rangel traz
comentários literários à sua narrativa como se ela mesma não fosse, também, de
natureza ficcional, ao citar dois romances lançados e publicados no mesmo ano (1888):
o contemporâneo e conterrâneo Inglês de Souza e O missionário , romance com
influências de Eça de Queirós e Émile Zola; e A carne, de Julio Ribeiro, romance
naturalista polêmico, de relativo valor literário e notabilizado, sobretudo, pela crueza
das cenas eróticas e pelo determinismo que acentuara o seu curto horizonte narrativo e
também a previsibilidade de seu desenlace, a que critica contundentemente.
Notamos que as fortes tintas regionalistas não arrefecem o tônus simbolista, que
aparece diluído em Inferno Verde. Os delírios do protagonista, a forte introspecção
88
CUNHA, Euclides da. Org. Afrânio Coutinho. Obras Completas. Rio: Aguilar, 1968.
136
O engenheiro não podia dormir. A acuidade dos seus ouvidos parecia ter
aumentado na solidão, O vento, que entrava à vontade pelas brechas da choça, fazia
provavelmente distúrbios na floresta rodeante. Havia sons de quedas e assovios, zumbidos,
tropear de patas e rechinos... Ora se diria que a mata toda crepitava incendiada e que tombavam,
estalando, os troncos portentosos; ora, rolamento de avalanches, pizzicatos89 em bordões de
violoncelos, arcadas em violetas e contrabaixos; ora, machadadas, guinchos, pipilos e cicios.
Nesse concerto distinguia-se o concurso feral das corujas. As gargalhadas, despedia-as a «mãe da
lua» – a irutaí sarcástica. Acompanhavam-na em módulos vários, os murucututús, «rasga-
mortalhas»90 bacuraus91, ducucus92 e acuraus... A floresta sofria, a floresta ria... Dedos convulsos
de um gênio em delírio tangiam as cordas infinitas dessa grande harpa de esmeralda, arrancando-
lhe acordes e síncopes harmoniosos ou incoerentes, na execução confusa da mais aterrorizante
das sinfonias. Acentos schumannianos, a solene gravidade de Berlioz, dissipados em
dissonâncias loucas, em descompassos chocantes... Houve um instante, em que Souto ouviu, a
principio indistintamente no sussurro, um grande ofego de muitos peitos humanos esbofados,
que respirassem demoradamente. Depois se acentuou o corpo dos sons roucos e sfogatos93. E a
esse estertor enorme, mas abafado, os outros sons morreram. No tumulto ficou somente esse
arfar monstruoso, que se pensaria ser de todos os troncos, em ressono, na dormência da vasta
noite: – era o regougo dos guaribas94, de certo à beira de um igapó central.
89
Harpejo de instrumentos de corda sem arco
90
Suindara – ave tida como agourenta
91
Curiango
92
Ave noturna
93
Registro de soprano que cobre duas oitavas
94
macacos
95
Que caminha aos saltos
96
De alto volume
97
Ave, conhecida também por capoeira ou corcovado
98
No séc. XIX, peça orquestral autônoma, de caráter dramático
137
7.9.1.1 Personagens
a) Protagonista: “Souto”
A caracterização do herói:
A floresta inóspita:
«Perdôo-te e compreendo o estigma que me lanças. Fui um paraíso. Para a raça íncola
nenhuma pátria melhor, mais farta e benfazeja. Por mim as tribos erravam, no sublime desabafo
dos instintos de conservação, livres nas marnotas pelas bacias fluviais afora. Ainda hoje, o
caboclo, sobra viril desvalida nos destroços da invasão, vive renunciado e silencioso, adorando-
me e bendizendo: – seu repouso edênico, sua plaga abençoada, seu recanto pacifico, na herança
fetichica99 (sic) e venerativa dos povos autóctones de onde proveio. Diante os insucessos da
avidez do «branco», o nativo murmurará: «Contudo aqui se sofre, mas ainda se agüenta...» Si
não paraíso, ser-lhe-ei um purgatório, no qual ele expia conformado a sua impotência, na dilação
impiedosa da Justiça, que o reabilitará em suma, rememorando a sua historia de heroísmos
obscuros, na luta com as fatalidades sociais que o esmagarão completamente. Inferno é o
Amazonas... Inferno verde do explorador moderno, vândalo inquieto, com a imagem amada das
terras donde veio carinhosamente resguardada na alma ansiada de paixão por dominar a terra
virgem que barbaramente violenta. Eu resisto á violência dos estupradores... Mas enfim, o
inferno verde, si é a gehenna de torturas, é a mansão de uma esperança: sou a terra prometida ás
raças superiores, tonificadoras, vigorosas, dotadas de firmeza, inteligência e providas de
dinheiro; e que, um dia, virão assentar no meu seio a definitiva obra de civilização, que os
primeiros imigrados, humildes e pobres pionnieri do presente, esboçam confusamente entre
blasfêmias e ranger de dentes.(...) (idem, pág. 96)
A febre:
(...)À noite, na Nova Vida, o engenheiro foi sentido o corpo machucado e de juntas
doloridas. Apressou-se a ingerir uma cápsula de quinino. Uns leves calafrios lhe trespassavam
seguidamente os músculos fatigados. Aquela dormida na véspera, na barraca da «Carne» e da
poça lodosa! Um calor lhe subia à cabeça, em estranha queima... a boca seca...
99
Fetichista?
139
(...)Souto prostrado na rede sentia o latejo das fontes, a secura dos lábios crestados do
fogo interior que o abrasava todo. Enquanto o caboclo e o Simeão escortaçavam o porco, e certa
agitação animava a turma diante do «fresco», Souto resistia num combate formidável aos
pensamentos de desânimo, que procuravam invadi-lo na febre. Toda a noite ele viu, no
entretanto, horrores; ora em fogo, ora em gelo, no algor, o seu corpo parecia precipitar-se em
abismos, ou achatar-se por desabamentos formidáveis; o plácido igarapé corria ao fundo da terra,
por uma helicóide, escortinada em fila dupla de monstros, que vomitavam chamas...
Pela manhã os olhos do Souto se emolduravam num bistre forte, no rosto entalhado em
linhas ásperas de magreza lívida. (idem, pág. 88)
Quanto à caracterização:
Físicas:
Não há uma descrição sequer dos traços físicos de nenhuma das personagens,
isto é, pormenores que levem a uma composição pictórica, a um retrato de qualquer uma
delas. De Souto, protagonista, recolhemos apenas alguns índices, quase metonímias de
sua inteira figura, em processo de degradação da doença até a morte:
“(...)Souto prostrado na rede sentia o latejo das fontes, a secura dos lábios crestados do
fogo interior que o abrasava todo(...)” (pág. 88)
“(...)Pela manhã os olhos do Souto se emolduravam num bistre forte, no rosto entalhado
em linhas ásperas de magreza lívida(...) (pág. 88)
“(...)Souto, apoiado em Miguel, pôde galgá-la, tomado de uma penosa debilidade. Foi-
se arrastando pelo aclive forte, como uma rês exangue(...)” (pág. 93)
140
Mãos e face ensanguentadas, dando a idéia de que a luta com adversário invisível e
execrável tinha sido corpo a corpo e a unhadas, o engenheiro, no meio das rosas, na ocasião de
ser erguido, morria num sorriso de alívio, à frenesiada crispação dos seus músculos atrictos.(...)
(Anexos, pág. 95)
Psicológicas:
Esse retorno deixava-o, pois, de face estuporada, que lágrimas lavavam amargamente.
Alguma coisa partia de si ou lhe era deixado, no mistério do abandono e da saudade. ( Anexos,
pág. 79)
(...)Mas aquela imagem do vapor voltando, dera-lhe o golpe na armadura, e foi, como
um dardo, romper-lhe o coração. Lembranças amadas de sua terra e dos seus vieram, em coro
triste, dizer-lhe adeuses, abraçá-lo, desanimando-o. E a cada evocação, o Souto afogava-se num
soluço irreprimível. Só! Considerava o engenheiro, na raiva e no pesar indefiníveis. Na irritação
e abatimento, o choro irresistível e infantil tudo confundia na crise única em que seus nervos se
sacudiam, vibrando (...) (idem, pág.80)
Desde que o Souto conseguira dominar os vagos receios da alma, para chegar
ao alto desse sertão, onde lhe tinha sido dado buscar a fortuna para gozá-la entre os seus, no Sul,
não seria na cumeada que desanimasse. Sentia-se bem melhor... E deu ordem aos camaradas para
aprontarem as montarias. (Anexos, pág. 86)
Sociais :
Duzentos homens se comprimiam, onde não haveria lugar para cem, na disparatada
promiscuidade, com sacos, caixões, bois e garrafões. As redes, em quincôncio, embaraçadas,
sobrepostas umas as outras, até sobre os lombos do gado. Um homem morrera de uma cornada,
na rede em que dormia. Era todo um rebanho colhido em navio fantasma para ser lançado numa
voragem(...)(Anexos, pág. 80)
faltas do parco vocabulário regular aprendido: comida era «trupizup», arranjos de pouco ou
nenhum ganho eram negócios «atibisque»...(Anexos, págs. 82)
Ideológicas:
Tal qual seu amigo Euclides da Cunha, Alberto Rangel também fora
engenheiro militar do Exército brasileiro, formado pela Escola Militar do Rio de Janeiro
em 1899, desligando-se no ano seguinte. Euclides também se desligou da corporação
após alguns incidentes, em que desfeiteou o então Ministro da Guerra, em 1888. Com a
instauração da República, foi readmitido e reconduzido como alferes-aluno e somente
pediu baixa em 1898, dois anos antes de seu amigo Alberto Rangel.
Comandar a guarda, dar o «estado», ou assistir a uma «ordem», nisso criam poder
limitar as funções, nortear os ideais e pompear-se a vida! O país não deveria preocupar-se em
fazer traduzir do alemão e do francês a arma, o fardamento, a viatura e a manobra; mas, preparar
os seus assoldados (sic) para a Defesa e para a Morte, no culto e formação das dedicações
serenas, que nada reclamassem no sacrifício... Assim pensando, irritado, deixou o engenheiro o
aquartelamento dos expedicionários, enquanto pela manhã se ruborizava o céu ao comovente
estridor do toque da alvorada. Esse ritmo lancinava. Parecia dizer a mágoa funda desses forçados
de uniforme que, proscritos da Pátria, tivessem feito uma alta no lodaçal amazônico. A floresta e
o rio beberam empedernidos o melodiar pungente das cornetas. (Anexos, pág. 93)
Morais:
abordagem de seus temas, como o amor livre, o sexo por impulso, sadismo, perversões,
nudez, o divórcio, a discussão sobre o papel da mulher na sociedade - tudo isso sob a
pena cientificista e determinista do naturalismo.
Tal enfoque nitidamente desagrada ao narrador de “Inferno verde”, uma vez que
qualifica o romance de Julio Ribeiro – que já fora duramente recebido pela crítica da
época como “parto monstruoso de um cérebro artisticamente enfermo” (José
Verissimo), além dos notórios embates com o padre Senna Freitas e o jovem crítico, à
época, Alfredo Pujol - de “defeituoso” e “estapafúrdio”, além de assinalar que um
“grande símbolo se glorifica no corpo viçoso de Lenita”, entendidos aqui, pela sentença
anterior, que a “a mão do gênio do mal” interviria, intercederia, fazendo com que os
hóspedes tivessem acesso ao texto e pudessem, assim, ter a última visão da Vida ( frise-
se, aqui, com maiúscula, a gosto dos simbolistas); entende-se, ainda, esse símbolo como
uma representação do mal, por tudo que Lenita encerra, e sobretudo, o “viçoso”, talvez
mais aparentado pelo étimo com “vezo”, “vício”.
c) Personagens secundárias
Quanto à caracterização:
Uma maior afeição de Miguel pelo seu patrão, visível pelos seus cuidados,
denota um maior polimento em seu caráter:
Vendo que o patrão sossegava, Miguel, às pressas, engolindo o chibé, saiu a sondar os
arredores, a buscar alguém para com ele assistir ao doente. E, provavelmente, haveria um
socorro...(...) (Anexos pág. 95)
E por fim, no parágrafo último, Miguel é citado pela primeira vez como
caboclo e faz as vezes de coveiro de seu patrão:
7.9.1.2 Tempo
a) Época
b) Tempo
normalmente, reduzido. Em “Inferno Verde”, embora a passagem dos dias seja contada
sobretudo pela sazonalidade dos ataques de febre sofridos pelo protagonista, até
minarem totalmente suas forças e o levarem à morte, os índices temporais são pouco
citados, e estão dispostos como balizas sobretudo na parte inicial do conto: “E num
Esse relancear pelo cosmorama da viagem derivou a crise hipocondríaca do Souto, até
se distrair em contemplar a tarde. O sol estava feito uma brasa mortiça que nem dava para
147
incendiar o punhado de cotão de nuvens, sob as quais a brasa se apagava...(...) (Anexos pág. 81) /
1º dia
“(...)o engenheiro, que acordou diante do café matinal, ao ameaço do alvor crastino(...)”
(Anexos pág. 83) / 3º dia
“(...)Dois dias mais tarde, vingadas as linhas subtensas, ou os ramos das curvas,
chegaram a Boa-Vista(...)” (Anexos pág.84) / 5º dia
“Àquela hora matutina, o cálice profundo e infecto do lodaçal exalava em névoas ralas.
(...)” (Anexos pág. 85) / 6º dia
“Souto despertara tarde. Ao esmaecer da manhã sentira-se melhor (...)” (Anexos pág.
86) / 7º dia
“O dia, horrível de calor e de «praga», findara à foz do Funil (...)” (Anexos pág. 87) / 7º
dia
“Amplo fumívoro, o céu aparava das labaredas do acaso os fumos da noite, vinda num
repente (...)” (Anexos pág. 87) / 7º dia
“Pela manhã os olhos do Souto se emolduravam num bistre forte, no rosto entalhado em
linhas ásperas de magreza lívida.” (Anexos pág. 88) / 8º dia
“(...)Cada vinte quatro horas de acessos, cada reduzir de energias e de músculos. Oito
dias assim esteve o Souto no Funil, em delírios, inapetências e calmas passageiras(...)” (Anexos
pág. 90) / 16º dia
“Durante toda uma semana a «Tartaruga» foi passando a revista daquela guarda
funambulesca das culturas na vazante. (...)” (Anexos pág. 92) / 23º dia
7.9.1.3 Espaço
Embora não seja de todo impróprio usar o termo “conto de espaço” para
“Inferno Verde”, por analogia à “romance de espaço”, entendido como aquele
que “focaliza a sua atenção no modus vivendi e paisagem (natural e humanizada)
de uma determinada região geográfica”100, é importante que situemos a narrativa
de Alberto Rangel, em seu tempo e arredores.
100
E-dicionário de termos literários , de Carlos Ceia. http://www.edtl.com.pt/
149
Objetos: jamaxi
7.9.1.4 Narração
O narrador, em “Inferno Verde” está fora dos fatos narrados, portanto, descreve
o enredo a partir de um ponto de vista privilegiado; seu foco é onisciente e mantém-se,
assim, onipresente. O segundo parágrafo, praticamente em sua íntegra já demonstra a
classificação do narrador:
151
Mas, as esperanças, que tanto acalentavam o Souto, desertaram do seu coração, vendo
sumir-se na volta do rio o barco que o trouxera com o derradeiro aviamento. Esse retorno
deixava-o, pois, de face estuporada, que lágrimas lavavam amargamente. Alguma coisa partia de
si ou lhe era deixado, no mistério do abandono e da saudade. Ele se abroquelara 101 de ferro, por
dentro, quando se dispôs a arremeter para o interior do Amazonas a sua ativa ambição de moço e
recém-formado. Mas aquela imagem do vapor voltando, dera-lhe o golpe na armadura, e foi,
como um dardo, romper-lhe o coração. Lembranças amadas de sua terra e dos seus vieram, em
coro triste, dizer-lhe adeuses, abraçá-lo, desanimando-o. E a cada evocação, o Souto afogava-se
num soluço irreprimível. Só! Considerava o engenheiro, na raiva e no pesar indefiníveis. Na
irritação e abatimento, o choro irresistível e infantil tudo confundia na crise única em que seus
nervos se sacudiam, vibrando(...) (Anexos pág. 80)
O caucheiro não constrói palácios; nos seus estádios planta yuca e plátano substanciais;
isto sim, a fartar. O que ele quer, é passar; mas, atendendo previdente que nessa corrida há
escalas por estações forçadas de parada. Embora! O machado e a ubá são os dois instrumentos
emblemáticos da sua indústria. Um destrói, outro transporta. O taperi 102 é o digno traço de união
dessas duas operações, que resumem a devastação caucheira. Ele é o único elemento fixo, posto
que com a frágil consistência da teia de uma aranha, ou da casa de uma tatucaba.
O Souto no mal estar físico, que a custo se esforçava por subjugar, perdia-se em cismas
e reflexões.
O dia, horrível de calor e de «praga», findara à foz do Funil, como acabou, na tarde
seguinte, na barraca que era quase um taperi: – meia dúzia de paxiúbas, com outras tantas folhas
de jaci, cobrindo-as. Habitava-a um caboclo de Parintins, excepcionalmente fazendo de
«cearense», no fundo lobrego desse igarapé seringuífero.(...)(Anexos pág. 88)
101
Defendera-se; resguardara-se.
102
O mesmo que tapiri; ITAPIRI; PAPERI; CHOÇA: "Fazem taperi, que são duas folhas de ubim em
cima de quatro paus, nas margens dos igarapés, e ali dormem e comem." (Ferreira de Castro, A selva))
152
Souto despertara tarde. Ao esmaecer da manhã sentira-se melhor, saltara nervosamente da rede.
O Miguel trouxera-lhe macaxeiras cozidas e um guisado de anta; tocara de leve no repasto, mas
saboreara uns goles de café fumegante.(...) (Anexos pág. 84)
É curiosa essa tessitura textual, uma vez que a narrativa é toda em torno
do drama pessoal do protagonista, que se relaciona com algumas pessoas, em curto
espaço de tempo, de quase não se verificar – dadas essas condições e fatores – a
ocorrência natural de verbos dicendi do discurso indireto, mesmo nas elucubrações e
ensimesmamentos de Souto, o que torna “Inferno Verde” uma obra, de fato, peculiar e
singular em nossa literatura.
Discurso direto:
Mas este só o deixou quando um dia, ao monologar alto do Chico Brabo: – «...os rios
são as veias da terra...» (Anexos pág. 90)
«Perdôo-te e compreendo o estigma que me lanças. Fui um paraíso. Para a raça íncola
nenhuma pátria melhor, mais farta e benfazeja. Por mim as tribos erravam, no sublime desabafo
dos instintos de conservação, livres nas marnotas 103 pelas bacias fluviais afora. (...)
Discurso Indireto:
103
Terreno baixo, suscetível de se alagar
104
Cumprir seu fado, seu destino.
154
Vem o pródigo, vem, vadeoso... Torcendo-se na ânsia que o conturba, entre vagares de
fadiga e vertigens de adoudado, faminto e namorado, em trégua à calamidade que o fustiga,
esfolegando amortecido no enlevo do sonho que o absorve... (Anexos pág.90)
155
( Piraí, RJ, ?/?/1844 – idem, 15/3/1906) Deputado por sua província, Galdino Fernandes
Pinheiro formou-se em advocacia pela Faculdade de Direito de São Paulo, na Turma de
1867, como registra o site dos ex-alunos. Editou apenas dois livros: Narrativas
Brazileiras (Rio, 1884), de contos e o romance O Flor (Rio, 1885), ambos esgotados e
raros, assinados por “Galpi”, acrônimo e pseudônimo literário que adotou para si.
Publicou ainda nas páginas da Gazeta de Notícias e em A Semana, periódicos que
aglutinavam os literários na virada do século XIX/XX.
ADVERTENCIA
Amigo leitor.
Este livro não é destinado a uma franca publicidade. Fazendo imprimil-o tive
em vista distribuil-o só entre amigos como fraca prova de sincera affeição.
Não espero, pois, nem louvores, nem censuras de ríticas, que seriam inúteis;
porque não aspiro glorias de litterato.
O conto traz a história de um sacerdote – não nomeado – que nasce, vive e morre
em Senhor Bom Jesus dos Perdões, Minas Gerais. Embora exista uma cidade com o
mesmo topônimo, as referências dadas pelo texto a tornam fictícia, uma vez que a
cidade de Perdões – nome desde 1855 – não se situa no aurífero vale do rio das Mortes,
mas no Oeste de Minas Gerais.
105
Espécie de ferrolho, trinco de janelas ou portas.
106
Espécie de gradil que guarnece janelas.
107
Estrutura para fechar janela, porta ou varanda através de uma espécie de grade de malha fina que
permite iluminação parcial e arejamento.
159
narrativa, já assinalado pelo título - de seu rosto, em tom e atitude afinadas, por
semelhança, a “Buscando a Cristo”, da lírica sacra de Gregório de Matos.
Os veios de ouro dos córregos de Senhor Bom Jesus dos Perdões atraem, assim,
todo o tipo de aventureiros, instalando na cidade, uma atmosfera de ambição e perdição
desmedidas. Tal condição acaba por desequilibrar a moral então vigente, e o dinheiro
fácil corrompe a cidade em níveis nunca vistos antes. A igreja se esvazia, os fiéis batem
em retirada, “dominados pelo demônio da ambição.” As ruas ficam desertas, as pessoas
não mais se cumprimentam e o vilarejo, como “um mudo sepulcro”, assemelha-se a
uma necrópole.
162
desaparecimento. Dito isto, o padre expira e o fado se cumpre: a terra se esgota, as casas
ruem e o vilarejo desaparece.
Uma outra extensão da análise merece ainda uma digressão. Na mitologia grega,
a noção de γένoς ( gr. guénos, gene) permite a transliteração em latim como personae
sanguine coniunctae, ou seja, pessoas conectadas por liames consanguíneos. Desta
forma, qualquer deslize, transgressão, erro, crime, falta, - ou seja, ultrapassagens do
métron - , perpetrados por um guénos contra outro, havia de ser retaliados, à maneira
164
Seus contos mais conhecidos são “Jana e Joel” e “Maria Rosa”, ambos reunidos
em Praieiros (Ed. GRD, São Paulo, 1983), de onde retiramos o singular “A noiva do
golfinho”, mais afinado com as proposições simbolistas e , analogamente aos demais
elencados nesse estudo, quanto à estrutura, apresenta também uma espécie de
embaçamento do conflito, privilegiando a descrição, o que nos parece uma constante do
conto simbolista: trata-se de um quadro, ou painel, quase uma fotografia disposta em
vários planos.
“A noiva do golfinho” inicia-se também como estrutura de “causo”, uma vez que
é uma narrativa metalingüística, ou seja: é uma história sobre outra história”. Assim, a
narração, que possui três partes e diferentemente de grande parte dos demais contos
desse estudo não contém epígrafe ou dedicatória - assume um tom realista, verossímil,
e a outra história, lendária. O parágrafo inaugural é aspeado e encerrado por reticências,
configurando o aspecto lendário.
A descrição da cena que caracteriza as forças da natureza que atuam sobre a ilha
é sobrecarregada, sobretudo, de preciosismo verbal e duplas adjetivações, conferindo
algum tom artificial à composição. Note-se ainda o gosto pelo neologismo, à feição
simbolista, com o verbo “dardejar”.
Quando os temporais conflagram o oceano, a grande ruga de terra parece muito mais
longínqua e inabitável; as suas palmeiras de longos caules vergam e rangem como as cordagens
dos navios em tormenta. E se os ares abonançam, fujam as nuvens, brilhe o sol ou paire sereno o
luar, fica sempre nas costas o eterno alarido das marés, sob os gritos das procelárias que futuram
novas insurreições marinhas, naufrágios, lutas e agonias de marinheiros. (Anexos, pág. 104,
grifos nossos)
O conto então, em sua segunda parte, é retomado com o mesmo início aspeado,
da lenda, e caracteriza Marina à maneira assemelhada ao Naturalismo. Note-se ainda
que os olhos não são azuis, mas “tirando a azul” e esses traços a tornam um ser
incomum em sua comunidade:
Daquela cor de leite coalhado não havia senão ela no lugar. Era delgada como
um palmito e leve como uma pena: leve de corpo e de juízo. Os olhos tinha-os um nada
sombrios, tirando a azul, e os cabelos, tão sutis e assedados como os fios de uma teia de aranha.
(Anexos ,pág. 105, grifos nossos)
A heroína não cede a corte de nenhum de seus pretendentes porque possui, por
sua vez, um noivo também misterioso. Ao citar que o seu amor inexpugnável nega a
ordem natural da sua comunidade, que se casa e procria entre si, o narrador deixa
resvalar uma nota determinista, acrescida de outra passagem do Evangelho:
168
A moça aguardava a vinda de seu noivo pelo mar. E vivia em sintonia com as
águas – sempre que se agitavam as ondas, ela explodia de alegria, cantando músicas
ensinadas pelo mar: “Sua voz acrescentava às cantigas mais sabidas umas toadas, uns
retornelos (sic) de paixão e melancolia estranhas.”
Uma nota de erotismo aparece, pela primeira vez na narrativa, em face da espera
por seu misterioso amado: “Assim vivia a desditosa num ansiar sem repouso, abrasada
por uma sede sem aplacamento. “ (Anexos, pág. 107, grifo nosso)
Desesperada pela vinda adiada, Marina é ouvida por “alguém que se aproximou”
- note-se o recurso do narrador heterodiegético para conferir o tom lendário e manter a
neutralidade de sua narração - e ouviu-lhe uma súplica, quase uma prece, que se
assemelha a uma cantiga de amigo, pela estrutura, apóstrofes e tom desditoso :
– Mar, ó mar dos golfinhos encantados e das sereias feiticeiras, que é do meu amado
marinheiro, aquele que me prometeste e por quem anseio mais que as tuas ondas? Traze o meu
noivo, ó mar querido, que já não tenho suspiros no peito para lhe mandar! (Anexos ,pág. 107,
grifos nossos)
– Sonhei que um navio tinha ferrado na costa da ilha. Era todo branco e brilhava como
um navio de prata. As velas alvejavam como as roupas do coradouro ao luar. Na proa trazia duas
figuras, que eram dois golfinhos de ouro, com as caudas retorcidas voltadas para o céu. Veio de
bordo um moço corado e lindo, que parecia mais um príncipe do que um marinheiro, e subindo a
este morro, chegou-se a mim e disse: – “Bela menina, há muito tempo que te procuro, saltando
de ilha em ilha, de praia em praia, trazido pelas ondas e pelos ventos que me levavam teus
suspiros e queixumes. Sabes quem sou eu? Sou o príncipe dos marinheiros. Aqui estou e venho
buscar-te... prepara-te e segue-me, se é do teu agrado (Anexos , pág. 108, grifos nossos)
Após voltar a suplicar com o mesmo mote às águas pelo seu noivo, Marina
desce as escarpas e volta de lá transfigurada, uma vez que encontra-se com seu noivo.
Reparemos que ela deixa os traços grotescos e os permuta por um talhe tipicamente
ultra-romântico:
Nas faces de leite coalhado fulgia-lhe uma luz de nácar puríssimo, o cabelo esvoaçava,
os olhos dilatados e mais azuis ardiam em febre de alegria. E ela chilrava como uma andorinha a
fazer verão. (Anexos pág. 109, grifos nossos)
Belo, feiticeiro, fresco e palpitante como um peixe n´água, tinha o ar de quem dizia:
“Pensavas que eu não vinha, amor? Pois aqui estou”. Era fielmente aquele que ela trazia
retratado na mente, – marinheiro e jovem, de cabelos ruivos como as barbas da lagosta, o rosto
vermelho da lustrosa cor dos salmonetes, os olhos amorosos, esverdeados, profundos como os
abismos onde flutuavam as querenas de seus navios de sonho. Sua voz (ele falou-lhe) era um
murmúrio doce e branco, só comparável ao rumor dos mimosos búzios que ela gostava de
escutar; seu sorriso (ele sorriu-lhe) deixou-a fascinada como o brilho de escamas dos alvíssimos
dentes... (Anexos , pág. 109, grifos nossos)
170
Embora confirmada a sua existência por Marina, o noivo não vem ao vilarejo,
para se fazer conhecer. Então, cogita-se “a suspeita de algum encantamento ou
bruxaria” (Anexos , pág. 110).
Marina anuncia para breve o casamento e pede a seus pais adotivos um canto da
casa para fazer os seus aposentos. Nota-se que a sua primeira providência é instalar um
leito nupcial, meticulosamente detalhado:
De tábuas de pau-louro mandou construir um leito sobre quatro toros. De macias flores
de macela encheu uma colcha, que estendeu nas tábuas. A mulher que cosia rendas teceu-lhe
fronhas para os travesseiros. Marina carreou a areia mais branca da praia e sessou-a numa
urupema sobre o chão da camarinha, onde passou a queimar folhas aromáticas de alecrim.
(Anexos , pág. 110)
As moças, amigas de folgar, pregavam palmitos e canas aos portais da casa, e com os
cipós floridos das trepadeiras fizeram festonadas, que pendiam das vergas do palhote. O terreiro
alastrou-se de conchas e juncou-se de folhas de pitanga. A casa dos velhos parecia um bosque
sagrado, todo em flor, para as núpcias de uma ninfa.(Anexos ,pág. 110, grifos nossos)
Uma vasta mancha negra fechou num capuz o horizonte do morro, e um vento irado,
esmigalhando vagas e vagas contra as penhas da costa, ganhou o cimo, passou esmagando as
copas das árvores, que se punham a urrar, enquanto os caules das palmeiras gemiam. (…)
Por fim, se faz a luz sobre o mistério, ou seja, deslinda-se a identidade do noivo
de Marina, em anástrofe. Aqui, é a noiva que vai ao encontro do golfinho, que a leva
para as profundezas do mar, invertendo-se, assim, de certo modo, a lenda amazônica do
boto, que seduz e rapta as donzelas ribeirinhas.
O narrador ainda traz o final sob um véu de imprecisão e incerteza, uma vez que
“noivado, se o houve, foi no seio do abismo”. O desfecho inclina-se para um viés
francamente moralizante, parecendo-nos que o golfinho ilude a noiva, através de uma
transfiguração, e ao fugir do casamento, raptando-a para o fundo do mar, acaba por
realizar uma punição a Marina, por ela ambicionar mais do que deveria, em desacordo
com os padrões e costumes de sua comunidade. Uma espécie de métron trágico que a
noiva teria ultrapassado, e, por conseguinte, merecesse a sanção.
Nota-se, por fim, que o título explícito, “A noiva do golfinho”, acaba por
desacelerar o clímax do conto, no último parágrafo, ao revelar, de antemão, uma
identidade que se insinuava gradualmente.
173
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
108
POMBO, Rocha. No Hospício. Org. Cassiana Lacerda Carollo. Intr. Wilson Martins. Curitiba: Prefeitura
Municipal de Curitiba, 1996. pág. 8
174
edição,em 1996, ressalta que “O Simbolismo ficou como uma lacuna na literatura
brasileira canonizada. Pouco se lê desses autores que escreveram entre 1890 e 1920.”109
Alguns desses ficcionistas, como Nestor Victor, Lima Campos, Rocha Pombo e
Alberto Rangel, jamais foram reeditados ou antologizados. Fomos buscar esses textos e
“exumá-los”, trazendo-os a público depois de mais de um século, republicando-os e
analisando suas partes constituintes.
A Tísica! A Tísica! Essa doença simbolicamente dolorosa e triste, que devasta os lares
como os cortantes invernos devastam as searas"! Doença amarga! que soturnamente devorando
os pulmões em redor de quem sofre um magoado impressionismo de saudade e uma névoa
gelada de sepulcro110.
Por fim, cumpre registrarmos que a feição dos contos simbolistas – sem a
ossatura peculiar dos contos tradicionais – deve ser entendida a partir da perspectiva da
estética, preponderantemente poética, o que não invalida o seu caráter inovador, visto
que também assinalam, antecipadamente, afinidades com o Expressionismo e o
109
LINS, Vera. In: DUQUE, Gonzaga. Horto de mágoas. Rio: Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro,
1996.
110
SOUSA, CRUZ e. In: “Tísica”, Missal. Obras Completas, Rio: Aguilar, 1961. Pág. 462
175
Assim, certos de que este trabalho não tinha o objetivo de esgotar o assunto,
esperamos que ele possa suscitar, ao “exumar” alguns autores, questões e ideias, novos
estudos e pesquisas no futuro.
9. BIBLIOGRAFIA
176
ARARIPE JR Obra Crítica. Rio de Janeiro: MEC, Casa de Rui Barbosa, Vol. I
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix. 1979
CALVINO, Italo (org.). Contos Fantásticos do século XIX. São Paulo: Companhia das
Letras. 2004
portuguesa. Teoria e texto. 1ª. Ed, 5ª. tiragem. São Paulo: Saraiva, 2005.
CAMPOS, Maria Consuelo Cunha. Sobre o conto brasileiro. Rio de Janeiro: Gradus,
1977.
CARVALHO, Ronald de. Estudos brasileiros. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. 1976.
CASTRO, Maria da Conceição. Língua & Literatura. 3 vols. São Paulo: Saraiva, 1993.
COELHO NETTO.Contos da vida e da morte. Porto: Lello & Irmão Ltda. 1927
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil (2a ed., Vol. IV). Rio de Janeiro:
CRUZ E SOUSA. Obras Completas. Org. Andrade Muricy. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1961.
Obras Completas. Org. Lauro Junkes. Jaraguá do Sul: Avenida, 2 vols., 2008.
Rogel (org.) Manual de Teoria Literária. 14ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
FARACO, Carlos Emílio. & MOURA, Francisco Marto. Literatura Brasileira. 9ª. Ed.
Globo, 1939.
LEÃO, Múcio (org.). Obras de João Ribeiro - Crítica (Vol. II). Rio de Janeiro:
Mateu, 1971.
MARQUES, Xavier. Praieiros. São Paulo: GRD Edições; Brasília: INL, 4ª. Ed. 1983.
Edições Afrodite,1974.
Ficção (de 1870 a 1920) (3a ed.). Rio de Janeiro: José Olympio Editora,1973.
Melhoramentos,1967.
Brasileira,1959.
NICOLA, José de. Literatura Brasileira- das origens aos nossos dias. 3ª. Ed. São
Edigraf. 1962.
RANGEL, Alberto. Inferno verde. Tours: Typographia Arrault, 4ª. Ed. 1927.
SILVEIRA, Tasso da. Nestor Victor - prosa e poesia. Rio de Janeiro: AGIR, 1963.
TUFANO, Douglas. Estudos de língua e literatura. 3 vols. 4ª. Ed., São Paulo:
Moderna, 1990.
a Machado de Assis (1908). Brasíla: Ed. UnB 4ª. Ed, 1963; 1ª reimpressão,
1981.
10. ANEXOS
2
3
4
5
6
GAVITA
Nestor Victor
Biblioteca FCRB
Gavita!
Extraordinaria creança!
Seus quinze annos são como os quinze degráos de ouro de um pedestal que ella
levou a subir sorrindo – visão estranha, – adelgaçando-se melhor, definindo-se melhor,
absurdamente, quanto mais subia. Foi como um encanto que, anciando em si mesmo,
forçasse e se fosse corporificando n´um encanto maior. Sorriso que se fizesse luz. Anjo,
cujas vestes curtas, como elle ia subindo, desdobrassem-se em delgada tunica, e cujo
perfil, afilando, affinando, se fizesse um perfil de mulher, para ser o de um anjo mais
seductor e mais meigo.
Quinze annos!
Gavita!
Tel-a em casa, ser pai d´essa creança, viver acompanhando-a com orgulho e com
affecto, sorrindo, cheio de cuidados, que felicidade e que encanto!
Nada lhe peçam de fatigante, nada que seja de algum modo grave, que requeira
constancia ou assento.
A casa inteira ella é que a anima, é que a povôa, é que lhe dá alma, é que lhe
imprime um modo de ser. Portas brancas com frisos de ouro, claros salões, tapeçarias
vivas, moveis caros, ornatos, tudo, parece que tudo d´ella é que depende, que é a sua
moldara, que tudo faz conjuncto porque a tem como o seu centro essencial.
A idéas, ah! as idéas que ella emitte, ás vezes com ares meio graves, batendo
levemente o leque fechado no braço de uma causeuse! Que idéas?! Si ella nada viu!
nada viveu!... Passa-lhe o mundo através de finos stores, todo azul, como uma canção
que se ouve de noite, ao longe, advinhando-se que lá fóra, tudo adormece sob os
philtros do luar! Idéas... Modos de seu ser harmonioso e angelico, simplesmente, para
que os ouvidos se encantem, como o perfume é um modo de ser da flor, d´essa essência
de delicadeza e frescura, para fazer a delicia do olphato.
Ella falar, ou ella rir... Musicas, musicas sómente... Apenas, uma se deu ao luxo
da lettra, que, no emtanto, nem se ouve, ficando-nos adormecida a razão, como a de um
chim opiado, a imaginativa batendo azas para um mundo de vaporosos coloridos, em
sonho.
Gavita!
Um baby, muito louro, carnes que parecem rosas, forte e sadio, menino de que
ella é titia, que levou a baptisar, muito séria em seu papel de madrinha, o baby
enfermou.
8
Toda a casa emmudeceu agora. Assim deve ficar o céu, quando os anjos estejam
em rezas mentaes.
Os passos alados délla são hoje, de tão leves, de tão cautos, sombras apenas de
seus passos, vividos e musicaes ainda hontem.
Ella tem nas faces as rosas pallidas da vigília, como uma doce enfermeira.
Porque passou em vigília, insistente, toda a noute, em verdade.
A enfermeira persiste. Todos vêm agora. Não foi um modo de ser da sua
volubilidade costumada aquelle novo aspecto sob que ella se apresentou de improviso.
Gavita!
9
Ella fazia hoje pensar nos processos estranhos do poema da vida. Seres aéreos
ahi vem dançando, pouco a pouco visíveis, como quem vem de outros mundos,
approximando-se lentos, ao som de bandolins e cytharas, – figuras vaporosas em
paizagens de fundas perspectivas risonhas. Parece que todo o mundo é uma festa, que a
vida é uma simples e deliciosa canção. No emtanto, muitas vezes estas bayadeiras, tão
graciosas nos vortices, são tambem as que sabem ter mais graça, profundamente
emocionantes, o receber de mãos ignotas, com um leve inclinar de cabeça, d´ahi a
momentos, quando de súbito o scenario se transforma, viçosas e pesadas corôas de
martyres.
Mas como que o rapaz divergia d´este parecer. Aquella meiga creatura parecia
camsar-lhe odios; dir-se-hia que a santidde, então, d´este devotamento agora, por uma
creança quase moribunda, o enfurecia por extremo.
Não. No pensar d´elle tudo aquillo era dissimulação simplesmente, para poder
tratal-o, como estava tratando, com indifferença ainda maior. Pequenino coração de
bronze é o que ella tinha... Pois si podia sustentar na sua presença o mais completo
desembaraço, rir-se franca, ser tão livre nas suas acções, quando elle quase morria,
fremente, silencioso, si estava a seu lado!...
paixão profunda. Quem ama fortemente, elle raciocinava, não tem aquelle ar aéreo e
descuidoso, não anda como um passaro a gorgeiar todo o dia.
Mas ao menos por esse outro, pensava, não tinha tamanho desdem. Valsavam
juntos duas valsas seguidas, ella não o perdia de vista si elle andava em volteios com
outro par, ás vezes o esperava á sacada, de tarde, eram em tudo muito diferentes as
apparencias.
E porque?
Parente, amado por outras, digno em todos os pontos, moço, de certo que menos
feio do que tantos, do que esse proprio que era o predilecto, porque merecer tanto
desdem?
Máo grado seu, sob esse novo aspecto, no intimo ella o seduzia ainda mais. Era
agora aos seus olhos um typo definido das companheiras com que os homens andam a
sonhar na vida. Embora elle desdenhasse, amargo, d´aquella devotação imprevista,
acreditava n´ella mais do que ninguem, em luta comsigo mesmo, na inconsequencia dos
corações onde a paixão, como uma tempestade, domina.
– Mas não está ahi, n´esse sacrificio por uma creança, a prova tão clara da sua
natureza affectiva? elle interrogava, para dar-se a si mesmo uma esperança qualquer.
N´esse dia em que voltou entregou-lhe tremulo uma carta coberta de queixas.
– Quem sabe? agora que ella é toda emoção, talvez comprehenda a crueldade
que tem tido até hoje, elle pensou.
Aquella carta era a terceira que o desespero lhe dera coragem de arrancar a um
livro feito de innumeras outras, pois elle vivia a escrever, enchendo o tempo inteiro com
aquelle amor. Que palpitações de coração, porem, que negras conjecturas, que tão
11
O baby, afinal, estava livre do maior perigo. Instada pela casa inteira, Gavita
pela primeira vez recolheu-se essa noite ao seu aposento para um repouso normal.
Deitou-se; mas, antes de fechar os olhos, veiu-lhe á memória a carta do primo. Ainda
não tivera occasião de a ler. Sorriu-se, fazendo nas faces duas adoráveis covinhas.
Ella, na sua ingennuidade, achava o primo tão exquisito, tão differente dos
outros rapazes! Elle nunca lhe falara com effusão, não a encarava de frente, andava
sempre pelos cantos, como si fosse um maniaco... As cartas... ella nem as entendia
direito... Eram tão cheias de idéas! Porque será que elle não escreve mais claro?
perguntava. Recebia-as... nem sabia porque... ora!... qualquer dia o primo se resolvia a
esquecel-la, assentava afinal, atirando a cabecinha loura para traz, e com este gracioso
gesto dava um curso differente ás ideas...
Gavita!
Mas, em vez de esquecer, o rapaz foi cahindo n´um desespero maior, tanto que
duas novas cartas já tinham vindo, e agora chegava a terceira, entregue por alguem que
fugira antes da menina ter tempo de devolver o papel.
12
Gavita radiava. Voltara-lhe toda aquella graça de passaro meio selvagem. A casa
inteira acordara com a sua ruidosa alegria, como de madrugada, com o passaredo, a
floresta.
Gavita não parecia dar por tal. Era pouco impressionavel, felizmente. Ao
contrario, talvez não tivesse o coração em completo repouso, porque, n´essas ultimas
linhas, por modos indirectos, – a tinta toda delluida por lagrimas, – elle dizia uma
especie de adeus, falava n´uma desgraça imminente.
Gavita!
13
A VICTORIA
Nestor Victor
Biblioteca FCRB
Ah! elle vinha sufficientemente batido d´essas plagas! Nenhum amor tal qual o
que se desejava, nenhuma mulher absolutamente leal. E n´isso nada havia de extranho.
O que apenas nos cumpria fazer era conservar-mo-nos sempre livres, para do alto da
nossa serenidade as podermos perdoar.
– Não! ella sabia que não. Este movimento instinctivo de repulsa, por mais que
se queira adherencia, quando a alma não nos acompanha na acção, ella instinctivamente
o percebia.
No emtanto, que maldade era aquella? Que outro sacrificio elle pudera pedir
alem d´esses a que ella se entregara, tudo por aquelle amor louco, que decidira para
sempre de sua sorte? Os sacrificios cessaram quando elle os achou sufficientes. Ella
vivia ainda porque elle não lhe pedira a vida, mas si no seu coração não existia amor, si
nunca poderia existir, porque elle não lhe dera a felicidade de exigir-lhe aquella prova
suprema antes que ella reconhecesse o medonho real?!
Comtudo, meu Deus, ella o sabia tão honesto e fidalgo! Pois uma alma como a
d´elle, alevantada e grande, uma alma como ella ainda não vira outra sobre a terra,
14
acharia justo acordar da paz o pobre espirito de uma virgem, e arrastal-a comsigo
friamente, pelo simples capricho de vel-a prostrada a seus pés?!
Mas que loucura era essa? Condemnal-o! Elle não arrastara a ninguem. Fora ella
que o chamara e se interpuzera no seu caminho sereno. E o que mais desejava? Pois não
estava a seu lado, não podia agora ser para sempre sua escrava, feliz em soffrer todas as
humilhações que d´elle viessem, porventura?
E aquelle corpo de virgem tremia no ardor d´aquella loucura que lhe ia pelo
sangue todo!
– Eu te amo tanto!
Sim, como as mais, reflectia. Pois era possivel que elle, elle! cahisse ainda no
abysmo que lhe creasse uma mulher?!
Não tinham sido os seus amargos soffrimentos apenas. Ha que tempos se lhe
haviam esclarecido os olhos. E então que infinita imbecilidade elle achara nos homens!
Quantas vezes não sorrira do ar tranquillo de um venturoso amante, a que elle proprio
fizera a traição! E agora voltaria para essa ridicula fileira dos que crêm, e viria a ser o
brinco, o objecto de lastima ou de irrisão dos poucos sensatos que existem no mundo?!
Verdade era que desde que insensivelmente elle fora entrando por essa vida futil
das conquistas, a qual acabara por amortecer-lhe inteiramente a fé, nunca mais sentira
um legitimo prazer por todo aquelle caminho. Remorso e tédio!
Agora, por exemplo, ali tinha, junto a si, aquella creatura que, na necessidade de
dar curso á paixão que lhe nascia do sangue moço, prendia-se a elle, exigindo por força
um tributo, querendo a todo transe escravisal-o. Relutasse elle pela liberdade e ali estava
aquella mulher amanhã odiando-o mais do que hoje dizia amal-o, sem nunca poder
comprehendel-o. E não era só isso: ahi estava ella perdida para essa sociedade hypocrita
e má. Elle fizera de seductor ignobil.
O quanto, pois, lhe custavam aquelles beijos, que lhe pareciam, não obstante, de
uma frialdade de beijos de morto, porque não accendiam o seu sangue, não lhe traziam a
loucura e a cegueira, que o deixassem adormecer de amor!
15
Ah!... que raiva contra si proprio!... Como era futil ainda aquelle seu espirito?
Não ha duvida que elle era o culpado. Reconhecer o vácuo que havia n´aquillo, querer
ser livre, e, no emtanto, não se poder ainda furtar a esse vicio baixo das estupidas
conquistas, elle, o eunucho psychico, o impotente pelo coração, parecendo-se com esses
velhos libidinosos, de olhar accendido quando a força já está extincta!
Elle não devia conhecer a vida, porque não nascera para as lutas d´este mundo.
Que bom si fosse como todos esses outros!
Não, concedia, não é que houvesse n´elles menos perspicacia. Mas é que não
sentiam tão imperiosa esta necessidade de infinito, de absoluto, – infinito no amor,
infinito na bondade, virtudes infinitas –, que elle sentia comsigo. Esta era a sua
enfermidade.
Enfermidade, sim! Elles é que eram os sadios. Tomavam a vida pelo seu lado
melhor. «Mulheres, sois fracas? Temos pena de vós. Vos cercamos dos nossos
cuidados, vos protegemos, nós os amantes com uma solicitude e uma vigilância
partenaes. Ah! nós sabemos que si não formos nós mesmos a desviar-vos do abysmo,
cahireis, inevitavelmente. Ou já cahistes n´elle por ventura? Mas essa não é razão para
vos abandonarmos com um injurioso desprezo para sempre. A vossa fraqueza orna-se
de tantas virtudes! Entes pequenos, como sois grandes diante de nós! Sem o vosso
amparo, de vós, as amparadas, o que haviamos de ser nós, os vossos protectores?»
Pensavam assim. Não os condemnava, porque elles é que estavam com a razão.
Mas porque essa idéa? Já não era aquelle um signal da victoria della, – de mais
esta! – sobre elle?
– Ama-me! O que te falta? Eu sou tão moça! Tu não sabes? Ah! sabes muito
bem, eu nunca fui de outro. Accordei da infância, fiz-me mulher para te amar. Eu nada
sou, bem sei, diante de ti, mas ao menos tenho um coração muito bom. Desde creança
eu fui tão feroz nas minhas paixões de menina, queria tão seriamente minha pobre mãi,
que é morta, meus irmãos, que eram quase meus filhos, as flores que eu plantava, tudo a
que eu dava um carinho e que me estava em redor, que muitas vezes vi minha mai
16
chorando, a beijar-me, com pena de mim. Pois bem, tudo isso lá se foi, meu coração
cresceu, e agora só a ti pertence. Não sabes? eu sou moça, sou formosa, e estou nos teus
braços! Ama-me! ama-me!
E os seus beijos tão fundos faziam círculos de fogo pelo corpo do amado.
Mas – nunca! nunca! – elle pensava. Beijos taes lhe pareciam de morto, porque,
elle o estava vendo, não accendiam o seu sangue, não lhe traziam loucura nem cegueira
para adormecel-o no amor.
Comtudo, não era bem assim como se esforçava por ver. O orgulhoso estoico
tremia, querendo fazer calma por todo o seu ser. E, como ondas que andam sob outras
ondas, debaixo daquelles pensamentos frios tumultuava um mundo de outros
pensamentos de ordem diversa. O bom, o moço, o humano tambem falava.
E era verdade. Elle não representava o typo sceptico e árido que acreditava ser.
Elle era bom e nobre. Si andara em busca de conquistas fora por necessidade de affecto,
e si arrastava essa moça áquelle amor é que, sem saber, primeiro fora arrastado por elle.
No emtanto, ia pensando:
– Nunca! nunca!
– Ah! eu não me illudi! Acompanhei seus passos desde a infância. O que ella diz
é verdade. Eu vi aquelle coração ir crescendo no seu lar honesto como uma arvore de
saborosos pomos, sob um clima fino e propicio, em terreno limpo e cuidado. E agora
que os fructos pendem n´uma cheirosa sazão, a mim é que se offerecem, implorando-me
para que os colha!
17
– Ama-me! ama-me!
– Pois bem, elle soluçou com a bocca na sua bocca, eu amo-te, amo-te muito!
Foi quando ella reconheceu, n´uma delicia celeste, que elle lhe tinha amor!
Aquelle beijo era differente dos outros. E vinha com um aperto no sabor tão
particular que trouxe á memoria d´ella um facto remoto. Ella recordou-se de outro beijo
com este gosto que uma vez aquelle rapaz a que ella creou tanta raiva lhe havia dado no
caminho, apertando-a n´um abraço de estrangular.
E, cheia de uma delicia celeste, pensando sem querer n´aquelle beijo ruim que
recebera do outro, a quem, ignorava por que, ha tanto tempo não via, ella adormeceu
aos poucos nos braços do seu amor.
SAPO
Nestor Victor
Biblioteca FCRB
– Mas, afinal, parece que eu tenho o direito de dispor de mim mesmo... oppoz o
Ernesto.
Lima Campos
O lilaz pisado das suas olheiras, como se fossem bistradas pelo soffrimento; o
doloroso meio rir da sua bocca triste, derramando expressões dormentes, de uma
melancolia impressionadora, no seu semblante de linhas suaves; a simplicidade
sympathica do seu aspecto, dos seus gestos, dos seus dizeres e, sobretudo, os seus
olhares pensivos, cheios de uma uncção piedosa de consolo e conforto, communicativos
de seismares romanticos e provocadores de affectos brandos; a negligencia encantadora
das suas maneiras e a sua beleza digna e pallida de imagem de altar – tudo isso, todo
esse delicado e insinuante feitio, toda essa ineffavel graça – prendia embaladoramente
os olhares que a fitassem, perturbava sonhadoramente os espiritos e empolgava, emfim,
as sentimentalidades que se lhe approximavam.
.............................................................................................................................................
.............................................................................................................................................
....................
Lima Campos
Era alta, da linha plastica de uma estatua antiga. Lembrava a vertical esguia,
triste, de uma cegonha isolada.
Por sob a queda frouxa das roupas, sentia-se-lhe o desenho esbelto das
columnas, em afilamento extenso e gradual de duas palmeiras invertidas.
Uma tarde, dois dos postigos do pavimento alto dos dormitorios abriram
impulsados com ímpeto e ficou a janella como uma bocca que se descerrasse de
improviso no desmesuramento de um grito, na expressão muda de uma surpresa!...
O resto, pouco importa: entrou na esphera banal dos noticiarios e dos inqueritos.
Foi ao entardecer do outro dia que o seu enterro sahiu. O caixão era extenso,
como ella era alta, e orlado todo de agaloados de oiro.
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Ao voltar a quina distante, as fitas longas de uma grinalda acenaram atraz uma
saudade, um chamado, um ultimo adeus...
E foi só.
Acabou.
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A TIA MARTINHA
Lima Campos
A lampada abria um halo largo de luz; grillavam insectos, fóra, na fenda dos
muros, pela quietude estrellada da noite emquanto, da sala perto, vinha o rumor
abalante, apressado e trépido da machina a costurar linhos brancos – que era a Amanda,
coitada, a tysicar sobre as costuras.
Ai! Doces estampas que eram, onde anoitecia o negror setinoso dos cabellos
fartos de Ruth e andava, pela messe dourada das lavouras, a mancha clara das barbas
longas de Abrahão!...
têta e o botão da bocca apinhado em beijo, toda a vida que ora corria-lhe escaldante nas
veias.
Por um cerrar de noite – havia uivos lugubres de vento nas casuarinas da chacara
– a tia Martinha começára: – Era uma vez... E, de repente, quedou-se – os olhos abertos
e a bocca incerta... Sentados no chão, á sua frente, em semi-circulo, olhavamol-a
surpresos, esperando continuasse – as mãosinhas cahidas ao collo e os nossos olhos
pasmos nos seus olhinhos quietos...
A Dulce, para animal-a, sentindo-a tardar, tatibitou: – Ela u´a vez... Mas, a tia
Martinha... Deus nosso!... D´alli, de onde nos fallava, alli se ficou como uma santa...
No dia seguinte levaram-n´a, no dia seguinte – ai! Que tristeza que foi!... em
uma caixa negra, estreita, com galões dourados... Puzeram-lhe flores por cima e, nós,
beijos, no panno preto dos seus sapatos sem salto.
Por fim... foi-se tambem, a Dulce, um dia, na garra adunca da angina e na seda
branca de um caixão pequeno... uma tarde triste, fria, d´Ave-Maria triste – atraz, quem
sabe? das bonitas historias que a tia Martinha tinha levado... A querer ouvil-as ainda, a
querer ainda, talvez, que lh´as contasse, lá em cima: duza vez, a Dulce, duza vez...
26
O
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GATO NEGRO
Rocha Pombo
Desolado em minha sala, estava eu na hora das obsessões, o espirito muito para
além, pela região dos problemas, bem longe do mundo e bem distante do bulicio
humano. Todo o movimento, todo o rumor cessára e a vida immergira na profundeza do
seu somno. Quanto a coisas da terra, só me apercebo de que me vem lá de fóra a
impressão da alta noite, calma e solitaria. A rua está deserta e numa grande mudez
solemne, a destacar-se no meu espirito como em contraste com a vertigem de poucas
horas passadas.
Ainda assim, são fortes as emoções que me suggere a vasta solidão da noite. E é
por isso que não tenho a coragem de maldizer o silencio de necropole que me chama lá
das alturas em que anda meu espirito e que logo me absorve e me vence. Não posso
imprecar... porque sinto que amo aquella escuridão.
Bemdita a noite que nos faz novo o universo! Bemdita a noite que me fecha de
todo a alma no insondavel escuro, onde erra meu espirito, á busca de signos indecisos e
como si estivesse á espera de palavras augustas que vão ser faladas. A natureza está para
mim numa attitude e numa pompa mystica de cerimonia cultual. Ha pouco em torno de
mim havia tumultos e eu suspirava; havia todas as manifestações ruidosas da vida, e eu
inquiria o destino numa sagrada ancia de viver. E é só agora que meu coração se
apercebe de que está no mundo onde se creou e em cujos paramos silenciosos tem
vivido – mundo feito de sombras, de luares ineffaveis, de horizontes sem limites como
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E imagino então que estou no meio de uma grande noite polar... Em torno de
mim ha uma natureza morta, ruinas desoladas de um mundo que passou, desertos
infinitos eternamente sepultados na escuridão e na erma quietude que ficou de tudo que
foi...
Mas é naquellas mesmas estancias solitarias que a alma readquire o vigor antigo,
e em vez de sentir a morte e o nada, vou procurando na immensidade gelada os
vestigios da vida.
E como seria bella e grandiosa aquella noite sem fim! Que mysterios não
desvendaria eu na mudez daquelle escuro! Que problemas, que dramas, que heroismos
estranhos me segredaria aquelle silencio de noite polar!
– Mas tu, gato negro, tu andas na superstição das pobres creaturas envolto
sempre na idéa dos demonios. Dos animaes que convivem com os homens, és tu aquelle
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Vem, pois, dizer-me o que sabes da vida. Não te inquiro sobre as Leonoras que
se foram; nem desejo saber o que as almas amam no céu: dize-me apenas se o inferno
de onde vieste é mais horrivel do que a terra. Dize-me se lá também ha crimes e si os
crimes lá chegam a ser monstruosos como aqui... Si os entes lá tambem detestam Deus e
aborrecem os homens... Si tanto como aqui a perfidia, a soberba e a impiedade estão no
seu imperio... Dize-me si as almas lá vivem tambem de perseguir as almas...
– Mas ouve-me, gato negro. Nas lendas deste mundo, tu figuras como o disfarce
preferido no inferno e sem duvida, esse conspecto e essa côr escondem alguma coisa da
cidade do pranto e do ranger de dentes... Vem dizer-me si lá nas entranhas do Orco ha
tambem Neros e Denys; si ha juizes que condemnam innocentes e absolvem culpados;
si ha lá consciencias capazes de crear Lesurques e Dreyfus; si ha lá Marats e Herbets e
si a liberdade é horrenda como os feros Molochs daqui. Vem dizer-me, tu que vieste do
inferno, si lá os bons tambem padecem e si o premio da virtude é tambem lá o martyrio
eterno...
Ante a immobilidade do bruto, fico mais aterrado e cada vez mais exhausto. Um
medo supersticioso começa a invadir-me o coração e sem me aperceber me vou
erguendo. O animal, como si houvesse crescido, levanta mais a cabeça e me fita firme e
quase hostil. Num supremo esforço, grito para o vulto, cuja silhueta se destaca enorme e
monstruosa á luz do gaz da rua:
– Mas então, si no teu mundo não é como aqui; si lá não se extingue nas almas a
dôce e triste piedade, dize-me ao menos si lá tambem se ama e se adora...
SARICA
Rocha Pombo
Afinal, parece que era preciso comprehender que a vida é aquillo mesmo...
Viviam, ha tantos annos, naquella tristeza: elle, o pobre Luiz, paralytico e cego,
uma alma simples e fina, atada áquelle castigo de uma existencia dolorosa, na
immobilidade e na escuridão; ella, a misera Josepha, ainda mais delicada e sensivel,
sempre espantada em presença da desgraça; procurando, resignada e sublime de ternura,
talvez inconsciente da sua grandeza tão humilde, provar ao mundo que, ainda no meio
das vicissitudes mais duras e amargas, póde um peito fiel e amoroso levar alguma coisa
que zomba impassivel do tempo e das amarguras.
A primeira vez que lhe passou pelo espirito esta idéa de fazer a filhinha esmolar,
a Josepha chorou tanto que o Luiz, lá da sua noite, chegara a perceber e affligir-se.
Expôr aquella creaturinha tão hedionda aos olhares curiosos de todos... era horrivel!
32
Demais, peor, mil vezes peor, do que este recurso á caridade do seu semelhante,
havia no mundo tanta coisa!
Depois, tudo se foi normalizando; ficou tudo muito natural: a mãe, desafogada,
lidava na casa; a Sarica e o irmãozinho exerciam fóra a sua profissão.
– Ah! Fez-lhe sentir a mãe sem cuidar – tranquilliza-te... Quem haverá, minha
filha, que te queira ver essas perninhas tão seccas e tortas...
33
Horas e horas, abrazada ás vezes por um sol de Janeiro a um canto da praça, ella
passava pedindo. Quando as esmolas lhe cahiam lá de cima, ella sorria e se alvoroçava e
tinha vontade de erguer-se...
Muitos daquelles eram mais felizes do que ella. Chamavam sempre a attenção do
publico, e sempre com fructo copioso. E no emtanto, nenhum delles tinha, como ella, o
direito de pedir. Ella devia ser ali a primeira; mas a piedade dos homens não
comprehendia isso... Os proprios cegos não estão no seu caso. Os cegos têm ao menos o
seu conspecto humano, e não sabem o que é a dôr de ser... monstro. E aquelle publico
passa ás vezes por ella sem vel-a... Era horrivel!
Á tarde, um dia, entrou ella, de volta das ruas, naquelle triste lar. A receita fôra
das boas. A mãe recebeu-a, como de costume, com todos os carinhos; e o cego, lá no
seu escuro, teve um farto beijo aquelle dia.
Ah! a vida era aquillo mesmo... Estavam então amparados todos pela desgraça
daquella creatura...
Coração de mãe, por mais vencido que ande, ás vezes como que se deixa
galvanisar pela propria miseria. É por isso que, ainda familiarizado com a dor, vem de
repente lá do seio materno um protesto que parece espantar o proprio destino. Josepha
dissera aquillo, e teve logo impetos de esmagar de caricias a filhinha: aquellas palavras
como que despertaram naquella alma de mãe a consciencia de tanta desgraça... de que
os paes se aproveitam. O cego, que tem toda a sua vida concentrada na filhinha, e que,
si não vê com os olhos, tem a luz interior que devassa as profundezas do ser, estremeceu
numa convulsão de pranto ouvindo aquellas palavras.
que é santa Cecilia quem me protege. Por mim mesmo, que poderia eu merecer de
Deus! Si elle me fez nascer assim, não seria porventura para avisar-me que não devo
esperar coisa alguma do céu neste mundo? Não, Julio, tem paciencia: hei-de cantar a
minha oração...
– Não fosse eu... e haviamos de vêr... Eu é que te ando a ensinar a fazer cara de
miseria e ares de fome. Tu estás sempre a querer occultar as pernas e os braços... Não
fosse eu...
E concluiu amuado:
– Entretanto, nada mereço... Tu é que fazes tudo. Este mundo é mesmo assim...
Não sei porque tambem não me fez Deus aleijado...
36
NERAH
Virgílio Várzea
O gracieux fantôme,
enveloppemoi de tes bras. Plus
ferme, plus ferme encore! Presse
ta bouche sur ma bouche;
adoucis l´amertume de la
dernière heure.
Henri Heine.
Conhecia-a numa pitoresca cidade do sul. Era alta e alourada, um desses ideais e
esguios onde as linhas triunfam em esplendores de beleza rara, lembrando o perfil níveo
e franzino dessas virgens e balada, que passavam outrora numa fascinação eteral,
através das estrofes plangentes dos lieder, entre sons melancólicos de harpas edênicas,
tangidas por obscuros artistas idealizados, sob o velário nebuloso duma lua de lenda,
debaixo das ameias dos castelos adormecidos à margem de rios e lagos, ou à beira das
estradas silentes, enflorescidas, da média idade.
O seu pescoço alvo, de uma pureza de alabastro, por onde desciam os longos
cabelos esparsos em ondulações de ouro ardente, como uma esteira de astros, tinha a
contornação pura, a veludez seráfica, a doçura açucenal e celeste do das virgens de
Velasquez. Seus olhos azuis, grandes, magníficos, de uma candidez espiritual, imersos
sempre numa umidês de langor e numa ternura inefável, tentavam com atração
irresistível, venciam e algemavam as almas. Notava-se neles como que o desejo
acariciador e sutil de um aconchego ou de um enlace.
Sua existência, embalada pela harmonia e os brilhos de uma vida ideal, em que
as esperanças e sonhos passavam e repassavam em faiscante e dourada parábola, como
um rosário de estrelas, se expandia suntuosa, numa alta paragem de seleção e nobreza
que não permitia quase a escalada das paixões humanas. Parecia viver de abstratas
37
A sua vida era como uma orquestra de violinos e órgãos, cheia, umas vezes, de
surdinas aéreas, muito altas, arrebatadoras como hinos religiosos de catedrais saxônias,
que enterram as flechas no céu; e outras de turbilhões convulsos, fantásticos, como
coruscações de relâmpagos cortando o escuro molhado das noites invernosas.
A primeira vez que a ouvi falar, senti a maviosidade saudosa de uma canção
distante, no azul luminoso e fresco de uma tarde americana: a sua voz dulcíssima, como
cordas tremulantes de cítaras vibrando sob as abóbadas de um claustro, ficou-me a
cantar longamente nas células rútilas de meu espírito e nas paredes vazias da
minha´alma. E quando, horas inteiras, fixava os seus olhos castos, de uma doçura e
brilho de sacrário iluminado, vertendo angelicamente nos meus a sua luz de turquesa
ideal, o meu triste coração de solitário, tão cheio de desilusões e saudades, calmava de
repente o seu pulsar inquieto, para cair docemente na imobilidade de um êxtase ou de
um sonho constelar.
Por fim, uma vez, à bendita claridade nevosa de uma noite enluarada, atirei-me
genuflexamente ante a sua aparição tentadora, numa adoração prosternada; e
longamente, inigualavelmente, por semanas incontáveis, em que todas as delícias
humanas se idealizaram como em um vasto ninho eteral, suspenso do céu no meio de
uma clareira de astros, o meu ser arrebatado incessantemente se expandiu e rolou nas
alucinações de um delírio divino e de um bem incomparável!...
38
E a sua cabeça tão loura, de uma sedução imortal, tombava ansiosamente sobre o
macio espaldar do divã de Smirna, lívida e sublime, cheia de dor e de sonho, como a de
Jesus no Calvário...
Uma tarde, em que maio floria nas planícies e vales e pelas montanhas verdes,
ao cantar cristalino de fios d´água correndo em plíssés de prata sob o meigo gemer das
ramagens, ela, como de costume, pediu-me carinhosamente que a levasse para o grande
salão dos damascos e que lhe abrisse os amplos vitrais do ocidente, porque sentia, nesse
instante, sangrar-lhe intensamente no espírito a nostalgia plangente dos seus queridos
ocasos. Aí, junto aos grandes portais ogivais, longamente amparada em meus braços,
alheada de tudo, inerte e como magnetizada, ficou saudosamente a olhar a
extraordinária iluminação do poente, poente que eu jamais vira, e que me deixou, no seu
esplendor incomparável, esta nevrose singular pelas cores que tanto flameja em minha
alma.
bizarra fileteação de amarelo e sangue, que esmaiava para o ar, em gradações nacarinas
de conchas. Em cima, todo o céu se vestira de uma tenuíssima floração de lilases,
tremendo brandamente às badaladas plangentes do Angelus. Uma paz messiânica, que
encantava a alma numa contemplatividade sem fim, estagnava-se religiosamente por
toda a amplidão. E uma vaga espiritualidade de aventuras e viagens longínquas, sob os
céus de outros países, pairava nostalgicamente, além, na linha fugidia do horizonte...
E, estendida sobre um amplo divã, não fez mais um movimento, no seu belo
roupão de cetim, cujas pregas ondulosas rojavam agora no chão, esquecidas. Os longos
cílios escuros, outrora palpitantes e vivos, ficaram para sempre cerrados, como as
franjas de um sudário tristíssimo. O rosto, opalescente e esguio, cobrira-se de absoluta
serenidade, numa etérea castidade de lírio. E as suas mãos afiladas e brancas, parecendo
cinzeladas em blocos de marfim velho, fundamente evocavam à lembrança essas santas
mãos de promessas, que se vêem alvejar nas procissões, levadas piedosamente por
virgens descalças, em penitenciações fervorosas e místicas.
Rio – 1895.
41
Tísico
Oscar Rosas
Pelos bons dias de sol, anilados, claros, gloriosos e transparentes, ele deixava
sempre o quarto, confortável aposento que sua mãe enchia de cuidados e de amor, e,
trôpego, esgazeado e verde, lento como um caramujo lesmando a relva de um parque,
encolhido e vegado em bodoque, com olhos cheios de fulgor e de saudade, uma menta
azul ao pescoço, queimado a iodo, a barba crescida e um cigarro de palha à boca, ia para
o jardim, acompanhando o criado que lhe levava o livro e a cadeira.
Tudo isso que ele via era a vida e ele sabia que ela estava para acabar, que não
mais a cor, o aroma, a luz e o som o fariam vibrar, sentir, gritar intimamente, como um
apunhalado.
Ele teve então uma grande saudade da natureza; ali mesmo, em derredor, nas
polpas das dálias e das rosas, zumbia voluptuosamente todo um enxame de pássaros e
de insetos a cantar triunfantemente a ária do amor, a canção do ninho, o ouro frio e
fecundo do pólen e a grandeza da célula que guarda o óvulo, a poetizar enfim a
reprodução da espécie.
Parecia-lhe que do azul, como uma fina sonoridade de cristal, raios do sol
através caíam-lhe – harmoniosa chuva de sons de harpas celestes – as melodias do
bailado, que ela, a dançarina, executava outrora no Lirico e reproduzia no ménage para
encantá-lo para recrear o seu lindo amor.
A mãe chamou-o – que o sol ia descendo e que não apanhasse muito vento,
disse-lhe que se recolhesse e que mesmo na hora do remédio. Ele obedeceu, e, lento,
grave, ruas floridas do jardim através, entrou em casa, levando no sangue, que latejava,
uma alta tempestade de febre que lhe carbunculava os olhos.
II
Junto ao leito do tísico, sua velha mãe, afetando uma serenidade heroína de
ânimo, acariciando-lhe a testa, confiando-lhe os cabelos, revoltamente emaranhados.
Ele, inteiriçado no leito, coberto por um lençol, jazia em estado de coma e a sua
magreza esquelética dava-lhe grandes semelhanças com um Cristo arrebatado à cruz.
Davam-lhe, cordiais morfina para acalmar a grande canseira que a tosse lhe
deixava e para que ele repousasse; entretanto, o desgraçado enfermo, com as
descarnadas mãos segurando o peito, gemia, acusando uma dor crônica no tórax e nas
costas, como se tivesse uma espada varando-o mortalmente de lado a lado.
Na vizinhança havia festa numa casa rica e uma orquestra tocava. A cada
clarinada, a cada silvo de pistom, a cada nota de ofcleid ou de trompa, que lhe chegava
através da distância, o doente parecia arrepiar-se alucinadamente, e arregalava os olhos
para fitar alguma coisa, que, num fantástico canário de época lírica, em
deslumbramentos de cenografia, pasmava uma multidão, que só era atingível à sua
ótica. Vestindo gases e filós prateados, dourados de lantejoulas, polvilhado à poeirada
de ouro, que caía de cima, um fulvo bando alegre de aéreas mulheres cor de rosa, mas
nos braços e no colo, nas pernas e nas coxas, ao ritmo estrelejado de compassos de
música harmoniosa e doce, surgia-lhe, descrevendo pela cena, toda iluminada, passos
difíceis de uma tarantela divina. Terníssimos arrastados violinos, de uma orquestra
colossal, alemã, vibravam, enfeixando o ar de sonoridade e harmonia e, à proporção que
os arcos roçavam nas cordas, que as fazia sibilar, rugir, gemer histericamente, as
dançarinas, como bandos festivais de andorinhas, iam e vinham, para a frente e para
trás, cancaneando diabolicamente. Os trombones e os rebecões enchiam a sala de
tempestades melodiosas, e ele, então distinguia bem, no que lhe boiava continuamente
na pupila e que mudava de cor, ou matizava-se em muitas, quando lá de dentro, por
maquinismos de palco, lhe ativaram golpes de luz elétrica, verde, branca, amarela, azul,
roxa e encarnada.
menina, e, de repente, ele também pôs-se a cantar a música que ouvia – canto trôpego
pela gangrena que lhe estrangulava a voz, tristíssima canção do tísico, ave-maria,
ouvida silenciosamente, através de estepes, pelo campônio eslavo e católico – e que
nada tinha de musical, porque era a ronqueira da morte que chegava, atropelando-lhe os
sons na garganta e dando à agonia um uivo sinistro.
Idílio Roxo
Gonzaga Duque
Sara conseguiu um dia feliz. Os cansaços angustiosos, com que a tosse irritante a
mortificara, serenaram um pouco nesta clara manhã d´equinócio.
Não lhe retorqui. De um salto apanhei a casquette, e pronto! Partamos, Sara. Eila
desceu, como sempre, acompanhada, respeitosamente, da velha, da ereta e grave D.
Maria, que nós, nas parlendas da serra, para afetar vilegiatura nobre de touristes da nata,
da upper cream, carismamos por conta propria, inglesando seu nome n´aspereza acre de
Mary. Caracterizávamos, por esta forma, o seu tipo esquelético de loira quinquagenária,
penteada de bandos românticos, e dávamo-nos, pretensiosamente, ares galantes
d´europeísmo n´agrestidade daquelas alturas verdes. Demais, para o forçado coquetismo
de Sara, era isso uma nota chic um traço elegante de viver superior, porque essa pobre
rapariga pálida, de olhos veludosos d´uvas negras – turgindo da volúpia morna de um
morno quebranto – a cabeleira encaracolada, que lhe esculpia a cabeça com uma
cariciosa expressão de criança romantica, possuía o elevado requinte da futilidade numa
irradiação moderna e histérica de formas.
O resto de vida que se lhe esvaziava, noite a noite, nos esburgos da gosma
pulmonar, dir-se-ia concentrar-se nas preocupações elegantes da sua pessoa, cuja
plástica delgada d´estátua alegórica movia-se com a coleante flexibilidade das serpentes
feridas.
Quando ela aparecia ao sol das dez, na sala de hotel, agitando rendas sobre
rendas, numa feliz ilusão de se fazer menos magra, e mais polibétala que uma rosa
branca, a encher o ambiente com trescalos fidalgos de crab-apple, não havia pupila que
não cintilasse de desejos acesa, nem percepção que se enganasse com a saúde artificial
47
daquela criatura, esvelta e solerte, que siflara, angustiosa, nos acessos da tosse, durante
o silêncio pesado das noites.
Íamos descendo...
Sara descansou mais sobre o meu braço a leveza do seu busto. Muda, pisando
serena e certa, pupilas absortas e brumosas das sugestões sentimentais deste vagaroso
crepúsculo d´Endoenças, suas pequenas narinas de nervosa resfolegavam; havia no seu
respiro o rítmico siflo, quase imperceptível, do soprar dum fole. Pelo langor do seu
corpo percebi que o recolhimento da paisagem a envolvia, possuindo-a, fazendo-a
penetrar o seu mistério, alentando-a pel´acridade aromática do seu bafo... E silêncio,
extensões, hálitos mornos de folhas, emanações da terra, embriagavam-na, excitavam a
sua imaginativa, fazendo-a construir, mentalmente, com a nostalgia da hora, o romance
de tristezas que as tuberculosas soem compor, tecidos de ilusões e lembranças vagas,
como uma música que espira sob a dormência de uma volúpia.
Paramos. Sara declarou que sentia fadiga, e queria penetrar-se da solidão que
amodorrava o tom viúvo da tarde tristíssima.
Quando a fixei, ela tinha inclinado a cabeça aflita, seu olhar negro e veludoso
boiava no alvejamento de Desejos angustiosos, e eram tão súplices os seus lábios! era
tão pedinte a sua boca! que eu tive o impulso de lhe dar o consolo desta carícia. Mas, os
bizarrismos do seu espírito d´enferma crestaram bem cedo os rebentos do meu amor;
seria impossível revivescê-los agora só pelo desvario concupiscente de um gozo
efêmero e favorecido. Ela, compreendendo meu pensamento, gemeu ofegante:
– Beija-me... Sim?
Mudamente, obedeci. Era a vontade de uma condenada, e eu, por mais que me
repugnasse a satisfação desse lascivo desejo, que a impudicícia de uma alucinação trazia
à boca de uma criança, não tinha energias para a cruel negativa. Ao curvar-me para ela,
procurando sua fronte, encontrei a febre de seus lábios sôfregos à espera dos meus. E
unimo-los docemente, demoradamente, numa junção noival, premindo as nossas
mucosas na umedecência dos mesmos anseios; eu – perdida razão, animalizado pelo
contacto ofertante da imácula carne febril; ela – dominada pelo seu gozo, radiando nas
faces, esfuziando no olhar, aceso o hálito fremente, que lhe punha no respiro
compassado a delonga sugada dos prazeres primeiros...
Sara, acometida por outro acesso de tosse, levou rapidamente o lenço à boca,
mas, inútil a presteza do gesto! – de seus lábios escapou-se, de* jato, uma golfada de
sangue, que estalou, surda; no chão, e ficou-se coagulhenta, estriada em lágrimas
solidificadas, sulferina e regulgente, na roxidão do dia extinto.
Só, infiltrante e dulçoroso, o aroma virgem dos brancos lírios vivia no ar, como
se o óleo perfumado e purificador de uma âmbula houvesse escorrido sobre nós para a
extrema-unção do nosso noivado sem mácula, e – assim, confundo-se com a Natureza,
lembrava d´algum modo, n´agonia silenciosa da tarde, o hálito de um resignado sorriso
à ilusão inefável de um gozo que nunca mais voltaria... nunca mais!... nunca mais!...
*
HM: de facto,
51
Medeiros e Albuquerque
Ao Dr Bricio Filho
Eram onze horas da noite. Desde as nove alli estavamos. Tinhamos projectado
um passeio de barco pela bahia de Botafogo, em grande troça, mas o luar — um luar
esplendido que nos entrava nos calculos — desfizera-se em enorme aguaceiro.
Assegurava o Andrade que as onze mil virgens deviam estar tomando banho. E o
cavaignac negro — mais do que negro, luctuoso e tragico — corroborava de tal fórma a
asserção que a pilheria soava com um clangor sybillino de dogma. Dir-se-ia que um
appendice d'aquelles tinha alguma cousa de pontificio, de infallivel.
Pura mentira. Era fertil o maroto naquelle genero grivois. Ninguem como elle
para sublinhar qualquer malicia. Ia do conto apimentado á narração lasciva, dando vigor
e colorido ás minimas cousas.
Teve um exito enorme. E, como houvesse pago o seu tributo, estirou-se de papo
para cima, emquanto se discutia a quem tocava fallar.
Houve protestos...
— Havia casos de princezas, que se ficaram a dormir annos sem conta por causa
disso; a Belle au bois dormant adormecêra ouvindo um soneto...
Mas para isto era preciso que tivesse havido luar, pois que a elle se alludia nas
mencionadas quadras. Conformando-se, porém, á fatalidade, já agora queria, por castigo
de «sua culpa, sua culpa, sua maxima culpa» abeirar-se do tribunal da penitencia...
— Exactamente.
A narração começou. O Caldas tinha pretenções a litterato. Isto fazia com que
alambicasse demais as phrases, imprimindo-lhes um estylo de máo gosto, avêsso á
naturalidade. Assegurava, porém, que era aquelle o seu modo de exprimir-se. E foi
contando quem era o Lucas: um romantico, um sonhador de ideaes. Viera estudar
medicina forçado pelo pae, que o não deixou ir para S. Paulo, temendo que o rapaz se
perdesse na vida de bohemia, acervejada e livre. Os cinco primeiros annos na Faculdade
nada offereciam de interessante: estudante regular, comportamento regular...»
— Eu sei, atalhou o Lucio; como o passaporte com que vim de Lisboa e em que
todos os signaes foram preenchidos com esse monotono adjectivo, chegando até a dizer:
côr dos olhos: — regular!
«... Era alta e magra, de uma magreza aristocratica. Piso de garça real: flexivel e
garboso. Meneios de castellã vaporosa, commandando pelos gestos a admiração e o
respeito á sua extranha belleza — belleza, em que, si não bastasse o perfil correcto e
amadonado, a bocca pequenina e rubra, seria de sobra o olhar.
Era tão clara e tão sincera a manifestação do seu exaltado sentimento que sob a
cutis finissima parecia sentir-se a vibração doentia dos nervos excitados pela musica. Os
olhos chispavam e, sem que tivessem uma só lagrima, irradiavam tão extranhamente
54
que cada raio d`élles parecia impellir legiões de soluços e de preces, clamando alto, alto
chorando... A batuta do regente dá orchestra, como um bastão electrico, a cuja passagem
se levantam em revoada pequenas cousas attrahidas, tangia-lhe da alma vôos loucos de
maguas e tristezas, de queixas de uma dôr tão profunda, que se diria porejar lagrimas no
deslumbramento da sala. Nem voz de contralto e tenores, nem harmonias quérulas de
violoncellos tinham a intensidade d'aquelle olhar, mixto talvez — por uma
extravagancia indefinivel — de luz, de som e de perfume. Mas por todo o theatro,
pompeando sedas e brilhantes, maciez de velludos e de collos formosos e nús, sopitando
um momento sob os attractivos da musica e da vaidade as demais paixões humanas, —
por todo o theatro, só houve no seu caminho um coração capaz de entendel-o: o do
Lucas.
E, a pé, ao longo do caes, elle foi seguindo... Uma brisa muito fresca vinha do
mar. A areia alvejava em larga fita. As ondas não tinham força. A besta marinha
resfolegava de manso, como exhausta ao cabo de um deliquio de amor. Chegavam de
longe os sons dolentes de um canto: de tão longe que ninguem saberia si eram ouvidos,
si eram apenas recordados...
A moça lhe havia contado que o seu medico declarára ao pae que ella teria
sómente um ou dous annos de vida. O velho barão não queria acreditar. Talvez com um
tratamento energico, dizia elle, se conseguisse alguma cousa.
— Qual, meu amigo? replicava o medico. A avó morreu com vinte e nove annos,
a mãe com vinte e cinco: ella está fadada a morrer muito moça. Você fez-me jurar que
lhe diria a verdade inteira, sem attenuações nem enganos: esta é a verdade.
— Mas...
passos: «Esta é a que vae morrer!» E que volupia, que appetite excitado por cada dia de
espera, o dos vermes que a tinham de devorar!
Resolveu luctar. Aquillo que lhe parecia tão claramente escripto no seu rosto
jurou que ninguem o veria.
Isto tudo, desde a conversa do medico, fielmente conservada, até os seus mais
intimos pensamentos, ella dissera ao Lucas. E o Lucas — sonhador, em cuja alma o
fermento do mysticismo catholicodormia, não de todo extincto, sentia uma grandeza
extrema nesse amor quasi ethereo, quasi irreal, com um toque religioso.
Ella sorria. Triste, como um dobre de finados, soava-lhe aos ouvidos a phrase
surprehendida : «O micróbio da tuberculose é implacável».
O micróbio! Ninguém sabia que desejo intenso tinha ella de o vêr! Era aquelle o
seu adversario, era aquelle o sapador terrivel do seu organismo — e ella não o
conheceria?!
A decepção augmentou o desejo. Uma tarde, entre a critica de uma festa e uma
anecdota graciosa, expoz ao Lucas a sua vontade. Sorrindo, com o sorriso desolador de
uma ironia de martyr resignada, contou-lhe de outra vez, um pensamento phantastico
que lhe acudira: — Ella parecia uma mina. Por uma das galerias — a dos pulmões —
mineiros activissimos trabalhavam incessantemente. Breve estaria morta. Novas turmas
de operarios, os vermes, se abateriam sobre o seu corpo. Que alegria — como nas minas
de carvão ou gesso — quando as duas turmas de mineiros se encontrassem, uma
seguindo de dentro para fóra, outra de fóra para dentro. Alleluia! Alleluia! A sua
carcassa pôdre vibraria com a festa dos vermes tripudiando sobre as carnes
decompostas!
Ella queria do seu. Queria vêr, não outros, mas os seus próprios inimigos. Lucas
conformou-se. Levou o sangue, preparou a cultura especial, coloriu á violeta e ficou de
trazel-a na quinta-feira. Precisamente era a vespera da collação do seu gráo de medico.
Quando o Lucas entrou, achou-a de cama, Tinha tido uma grande hemoptisis,
mas occultou-lhe.
que abrasava. O olhar tinha uma vivacidade phantastica e allucinada. Fez que
chamassem o velho medico, apezar dos protestos della, sempre risonha.
Isso não impedia que elle mostrasse a preparação, dizia a moça. Foi necessário
ceder. Armou o instrumento, focalisou com cuidado, voltando o espelhinho para a
janella aberta e mandou-lhe olhar. O microscopio estava sobre uma cadeira, á direita da
cama. Mesmo deitada, debruçando-se um pouco, ella collou a vista á ocular.
O quê! era aquillo!? Uns bastõesinhos roxos, alguns mesmo figurando antes uma
successão de pontos do que um todo continuo, — alli mesmo, com um augmento de mil
e quinhentos diametros, quasi imperceptíveis! Era aquillo?! Admirava-se que elle o
affirmasse: «os microbios da tuberculose são assim»
A moça delirava.
distincção de rainha a honra desta valsa?» ... E as flôres pareciam despeitadas da sua
belleza!... Bailes, festas, pompas de theatro, sedas e velludos, rubis diamantes...
De subito uma onda de sangue espumou-lhe aos lábios, como á bocca ferida de
um cavallo, apoz a carreira. O sangue jorrou, purpuro e claro, cantando a symphonia
alegre do vermelho. A febre cedeu um pouco. Ella pareceu descançar.
Passára a noite. Vieram procurar o Lucas para ir tomar o gráo. A mãe e a irmã,
que haviam chegado de Minas expressamente para a cerimonia, appareceram-lhe já
vestidas de sedas caras, tendo á porta a esperal-as uma berlinda puxada a cavallos
brancos. Elle, completamente doido, mandou-as embora com uma brutalidade de
allucinado. E, em um instante, na vertigem de um kaleidoscopio electrico, todos os seus
longos estudos de seis annos, os melhores da mocidade, apparèceram-lhe de uma
esterilidade desoladora. A Sciencia? A Sciencia que se orgulha de marcar o volume de
Jupiter, de determinar a orbita de um cometa que voltará daqui a centenas de annos — a
Sciencia como se lhe representou miserável! A torre dos volumes cresce todos os dias,
mais alta que as pyramides, mais alta que a Babel dos sonhos antigos... São livros
doutos, cheios de observações... Quando um volume novo se accrescenta á columna,
parece dizer: «Aqui o verme não chegará!» Mas, a desafial-o, o Infínitamente Pequeno
trepa-se lá em cima á cantoneira de marroquim, ao dourado das paginas. E o seu rasto
pegajoso e visguento é como a baba de uma bocca que ri muito, que ri ás escancaras...
Ri do esforço humano, ri da Sciencia, ri da Vida... — E pensou que, amanhã talvez,
fosse arrancar á morte um ser, inutil ou perigoso, um bruto qualquer, um selvagem meio
escondido sob a mascara de homem civilisado, emquanto ella, a sua pobre noiva, tão
boa e tão formosa, apodreceria na frieza do sepulchro, dando ao pasto das larvas tacos
da sua carne, hoje rosea, amanhã verde-negra... Gritou de novo á mãe e á irmã que não
ia, que não se doutorava em nada...
O medico receitára injecções de ether. Era a hora marcada. Fez com que as duas
mulheres saissem, fechou a porta violentamente e veiu fazer a injecção com uma
delicadeza infinita. Apenas as mãos tremiam-lhe um pouco.
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Nisto, uma nova onda de sangue ressumou aos lábios da moça. Elle — como a
primeira cousa que encontrou á mão — tomou do copo de cristal posto á cabeceira e
aparou ahi a hemoptisis. Era um liquido puro, de uma côr sonora e triumphal, um
vermelho cantante, de saúde e mocidade. Com o copo em punho, cheio de sangue, teve
de subito uma idéa: — bebeu-o! Morreria da mesma morte que ella, roído dos mesmos
vermes...
1889.
61
Admitindo a velha definição dos dicionários, no livro do Sr. Gastão Cruls, que tem
como título essa palavra de origem tupaica, não há positivamente "coivara", pois nele
não se queimam só gravetos. Queimam-se grossas perobeiras e duros jacarandás. Os
contos que o compõem, não são delgados galhos secos, há alguns que são verdadeiras
toras de cerne.
O Sr. Gastão Cruís é médico, mas, graças a Deus, não escreve no calão pedante dos seus
colegas. Escreve como toda a gente, naturalmente procurando os efeitos artísticos da
arte de escrever, mas escreve sem o Elucidário de Viterbo e o Blutteau, nas mãos, e -
que concubinato! - sem ter diante dos olhos o redundante padre Vieira e o enfático
Herculano.
Vale a pena ler seu livro. É delicioso de naturalidade e precisão. Nota-se nele que o
autor ama muito a vida da roça, a vida de fazenda; mas - coisa singular - esse amor que
ama a vida da roça não ama a natureza. Não há nele um toque distinto que denuncie esse
amor. Não é só à paisagem, mas mesmo aos bichos, aos bois, aos carneiros; o que ele
ama é, por assim dizer, a vida social da roça. As relações do fazendeiro com os colonos,
os seus negócios, as suas cerimônias domésticas. Digo isso de um modo geral, sem
querer de forma alguma diminuir o mérito do autor.
O seu primeiro conto - O Noturno n.o 13 - é estranho e como que o autor quis
manifestar nele que a sua concepção da vida não é rígida nem mecânica. Que o que se
vê, não é tudo que existe; há "atrás" do que se vê muitas e muitas coisas.
62
Por exemplo: no G.C.P.A. é em nome dela - espiritualidade - que ele protesta contra os
brutais processos da nossa atual medicina que só vê no doente, principalmente no seu
cadáver, um caso a estudar, a dissecar, para escrever daí a dias uma chôcha memória
que certamente morrerá na vala comum das revistas especiais, mas que dará a seu autor
mais fama, portanto mais clientes e mais dinheiro. É a indústria clínica que se ceva nos
cadáveres dos pobres desgraçados que morrem nos hospitais.
Despertou-me refletir um pouco, após a leitura desse magistral conto do Sr. Gastão
Cruls, sobre certas ficções do atual ensino médico.
Esse professor Rodrigues que vai seguido de uma récua de estudantes, assistentes e
enfermeiros e faz discursos mirabolantes (é do autor) diante do doente, ensina ele
alguma coisa? É possível transmitir a outrem o que se sabe, por experiência ou estudo,
dessa maneira afetada e oratória - maneira que é exigida "malgré-tout" - pelo auditório
numérico que o cerca; é possível?
Penso bem que não. Quanto mais reduzido for o número de alunos, melhor ele poderia
iniciá-los, quanto menos palavras arrevesadas, melhor eles compreenderiam o lente. As
nossas escolas de grande freqüência devem ser condenadas.
De resto - o que o autor também nota - não é um suplício para um doente grave estar a
ouvir palavras campanudas sobre a sua moléstia durante uma hora? Poderá isso
concorrer para a sua cura? Não. De forma que um pobre-diabo que cai num hospital, em
vez de ir para tratar-se, vai para morrer. Lembro agora um caso que se passou há
tempos.
Uma parturiente, tendo-se recolhido à Santa Casa, um lente de partos quis fazê-la
sujeitar-se ao "toque" por toda uma turma de estudantes. Ela se revoltou e houve
escândalo. Os jornais falaram e não sei como as coisas ficaram. Ela tinha razão sob
todos os pontos de vista. A verdade, porém, é que todo esse nosso ensino médico é
malvado e improdutivo, tanto assim que o Sr. Dr. Clark acaba de afirmar que há pelo
Brasil inteiro quatro mil médicos que não sabem medicina.
63
— "Os caranguejos nunca andam em linha reta". Compreendes agora por que lhe
receitei os crustáceos? Ora, se esse indivíduo tem uma desordem do equilíbrio que o
impele a correr e cair para a frente, nada mais natural do que neutralizar essa força
propulsora por meio dos gânglios nervosos dos siris e caranguejos, que são animais
exclusivamente laterigrados, isto é, só sabem andar para os lados."
Filomeno chama isto opoterapia. Valha-me Deus! Eu me alonguei nestes dois contos em
que se tratam de coisas do ensino médico, entre nós, talvez demais um pouco. Mas era
preciso. É tão importante a medicina na nossa vida que toda a crítica deve ser feita por
todos, àqueles que nos têm de curar, sobretudo àqueles que isso ensinam.
Há, porém, nos contos do Sr. Cruís muita coisa outra que não a pura preocupação das
coisas de sua profissão.
"Noites Brancas", por exemplo, é conto fora dos nossos moldes, terrível, fantástico e
doloroso. Beijos de uma morfética, dentro da noite escura. Oh! que horror!
64
O que estranho no autor de um livro tão digno, como é Coivara, é a admiração que
parece ter por Oscar Wilde e se traduz em frases quentes no seu conto "A Noiva de
Oscar Wilde".
Esse Wilde que se intitulava a si mesmo - "King of Life", "Rei da Vida" - não passou
antes de "Reading" de nada mais do que o "Rei dos Cabotinos".
Com uma singular sagacidade, ele soube conquistar a alta sociedade de sua terra,
expondo-lhe os vícios e, ao mesmo tempo, os justificando com paradoxos, nem sempre
de bom quilate. As suas obras são medíocres e sem valimento. Às vezes até, com uma
originalidade duvidosa, mesmo nos paradoxos. Faltou a Wilde sempre o senso da vida,
sentimento do alto destino do homem, a frescura e a ingenuidade do verdadeiro talento,
a grandeza da concepção e a força de execução.
Ele é um mascarado que enganou e explorou toda uma sociedade, durante muito tempo,
com arremedos, trejeitos e "poses" de artista requintado. Queria distinções sociais e
dinheiro.
Para isso, lançou mão das mais ignominiosas ousadias, entre as quais, a de ostentar o
porco vício que o levou ao cárcere. Aí, ele despe-se do peplo, tira o anel da múnia do
dedo, põe fora o cravo verde, perde toda a basófia e abate-se. Dostoiewsky passou
alguns anos na Sibéria, num atroz presídio, entre os mais inumanos bandidos que se
possa imaginar, e não se abateu...
A sua vaidade, a sua jactância, a sua falta de profundo sentimento moral, o seu egoísmo,
o seu narcisismo imoral obrigaram-no a simular tudo que ferisse e espantasse a massa,
para fazer sucesso, até esse imundo vício que o levou à prisão de "Reading". Ao que
parece, ele em si não era portador de tal tara. Adquiriu-a para chamar a atenção sobre si.
Era elegante... Não é um artista, nem grande, nem pequeno; ele é um egoísta simulador
de talento que uma sociedade viciosa e fútil impeliu até ao "hard labour". Tudo nele é
factício e destinado a causar efeito. Não tenho todo o processo a que foi submetido; mas
possuo grandes extratos que vem na obra do Dr. Laups - Perversion et perversité
sexuelles - prefaciada por Zola. Pelas leituras deles, é que afirmei sobre ele o que acima
fica dito.
Toda a sua jactância, todo o seu cinismo em mostrar-se possuidor de vícios refinados e
repugnantes, toda a sua vaidade - tudo isso que o arrastou à desgraça, - talvez tenha
65
dado um bom resultado. Sabe qual é, meu caro Dr. Cruls? É tê-lo feito escrever o De
Profundis. A vida é coisa séria e o sério na vida está na dor, na desgraça, na miséria e na
humildade.
A.B.C., 23-7-1921.
66
(Gastão Cruls)
JOHNSON,“Life of Addison”.
– Dorian e Sybil… Mas por que diabo deste aos teus bichanos o nome das
personagens de Wilde? disse eu, afogando os dedos na pelagem fulva de um dos
angorás, e avivando na memória a imagem do escritor admirável, em cujas páginas,
como num jardim encantado, tanta vez fôramos juntos colhêr o fruto de ouro das idéias
novas e dos paradoxos perturbadores. Raul, que me ouvia a dois passos, estirado numa
cadeira de vime, a amachucar entre os lábios a ponta da sua indefectível piteira,
soergueu-se a essa minha pergunta, e apontando para uma janela próxima, em que ainda
havia luz, segredou-me de indicador sobre os lábios: “Os gatos são dela; mas nunca
fales em sua presença no nome de Oscar Wilde”. E como o meu olhar o interrogasse, na
curiosidade daquêle mistério, Raul travou-me do braço e ambos fomos ter ao fundo da
varanda, onde o luar penetrava a furto, escoando-se pela ramagem olente de umas
glicínias em flor.
– Eu não sei se já lhes disse, que Raul estava então num sitiozinho nas
proximidades de Petrópolis, buscando melhoras à terrível neurastenia que, poucos dias
67
A conselho dos médicos, unânimes numa cura pelo isolamento, êsse mesmo
isolamento que sem dúvida alguma foi cúmplice do trágico desfecho, o Dr. Andrade, já
que as suas ocupações lhe não permitiam longas ausências do Rio resolvera alugar
aquela fazendola que, ao lado do sossego prescrito, e de um ar sadio e lavado, tinha a
vantagem de deixar o filho sob a sua imediata vigilância e ao alcance de todos os
recursos para qualquer emergência mais séria.
Uma tia paterna, senhora solteira e já cinqüentona, com quem eu algumas vêzes
estivera na casa do Dr. Andrade, acompanhou o meu pobre amigo durante a sua rápida
permanência em Petrópolis, e cercava-o de toda sorte de carinhos e atenções, por
maneira a revigorar-lhe as fôrças e solevar-lhe o espírito, já talvez infernado no mundo
tormentoso dos terrores vãos e obsessões.
Essa tia do Raul, D. Isabel Slled de Andrade e Melo, ou melhor, a tia Belinha,
como lhe chamavam os de casa, era uma senhora ainda vistosa, alta e esbelta, de cabeça
magnífica e porte airoso, conservando no seu todo essa qualquer coisa de indefinível
que exigem as individualidades. Trazia-lhe um particular encanto à fisionomia,
resplendente de resignação e doçura, o contraste criado entre uns olhos, não sei se
verdes ou castanhos, mas luminosos e inquietos, e a tonalidade dos cabelos já
brancacentos, que lhe desciam pelas têmporas em ondas mortas. Vestidos de cores
sóbrias, quase sempre voltados ao pescoço por altas gorgeiras de renda, completavam-
lhe a grande distinção de maneiras. Por única jóia, e eu sabia-a possuidora de belas, às
vêzes, um camafeu antigo abotando-lhe o corpete. Não sei por que, mas sempre me
pareceu que a suavidade do seu perfil admiràvelmente se enquadraria na penumbra
misteriosa de certas telas de Whistler.
Mais tarde, por uma fotografia do passado, tive explicação para os fulgores
daquele crepúsculo, revendo D. Isabel no donaire dos seus vinte e poucos anos. Uma
figura vaporosa e frágil, transbordante de graça e mocidade, irradiando sedução e
frescura. O seu colo, alto e ondeante, emergindo de um tufo de filó branco, ia abrir-se na
curva delicada de um rosto, em que brincava o mais ingênuo e acariciante dos sorrisos.
Os cabelos, colhidos singelamente à nuca, e que deveriam ser de um negro profundo e
68
quente, não lhe quebravam então o queimor dos grandes olhos, que rasgados entre cílios
longos, conservavam ainda a mesma indizível e vaga coloração.
– E que vem a ter tudo isso com a história do casal de gatos que te revelou “o
mais pungente drama de amor” interveio Genésio Pires, o mais novo da roda, que
parecia pouco interessado pela narrativa, pois que os seus olhos iam freqüentemente a
uma mesa próxima, onde, minutos antes, uma francesinha loura e esguia descalçara as
luvas para tomar dois goles de chá.
ignoram e eu só há pouco tempo o conheci, quase pelo mesmo motivo por que também
to vou agora revelar. É que temos constantemente o nome de Wilde à bôca, e amanhã, –
como a mim me sucedeu – mòrmente agora que as tuas palestras mais se estreitam com
minha tia, e não raro descambam para o terreno da literatura, poderias citá-lo na
conversa, despertando-lhe a mais dolorosa das recordações.”
E depois de uma pausa, aproximando-se mais de mim, e a olhar ainda com certo
receio para a janela que se conservava iluminada e agora ficava distante:
– “Minha tia teve em tôda a sua vida uma única e verdadeira paixão – mas
paixão acérrima e vivaz, que lhe queimou a mocidade e ainda hoje perdura no fogo
lento de uma devoção à memória do seu amado – essa paixão foi por Oscar Wilde”.
– “Não duvides. É a verdade. O meu espanto não foi menor do que o teu quando
meu pai me fêz a mesma revelação, e eu tive que acreditar no que agora te transmito.
“Como sabes, meu avô paterno, por caprichos da sorte e uma bolsa fácil que lhe
permitiu, na mocidade, freqüentes passeios à Europa, duma dessas viagens voltou de lá
casado, transplantando para o sol dos trópicos uma linda inglesita arrancada às brumas
de Londres. A essa avozinha, que mal se aclimou entre nós e aqui morreu ao fim de
nove anos, devemos, talvez, os bocados de cabeleira loura que andam espalhados pela
família.
“Meu avô, ou porque, no momento, não lhe fosse fácil ir de novo a Londres em
busca de uma outra inglesa; ou porque a natureza da sua dor não lhe permitisse escolha
dessa espécie em qualquer parte do mundo; o fato é que, apesar de muito moço,
resolveu conservar-se viúvo, e dedicar-se, por inteiro, à educação das duas tenras
saudades, que lhe deixara a sua companheira de poucos anos de felicidade: meu pai e tia
Belinha.
“A despeito das distâncias, e da pouca convivência que êle tivera com a família
de sua mulher, meu avô – e talvez isso ainda fosse um culto à memória da morta –
nunca deixou de com eles cartear-se, mandando-lhes mesmo, à medida que os anos
corriam, fotografias dos netinhos leonina” de um grande girassol, não desaparecera
contudo a nota excêntrica da sua distinção, onde, por vêzes, a espuma de umas rendas
70
brancas substituía a riqueza dos punhos gomados, e um cravo verde à lapela punha uma
réstea de luz sôbre a treva da casaca.
À procura dos seus livros; o êxito das suas conferências; uma colaboração
efetiva e bem remunerada nos principais jornais inglêses e americanos; e, mais do que
tudo, o aplauso incondicional e sistemático a uma série de comédias e dramas que lhe
eternizavam o nome sôbre as várias cenas de Londres, permitiam a Wilde sobejos
recursos com que entreter o aturdimento da sua vida faustosa e asiática, passada no
conchego de móveis estilizados e sêdas moles, e onde a taça de Alcibíades devia ser o
seu copo de todo dia.
Entre a roda dos novos estetas, vinha buscá-lo a sociedade aristocrática, que lhe
requestava o convívio e recolhia as frases. Nada se fazia então em Londres sem o
assentimento de Wilde; e se as senhoras o consultavam a respeito de modas e mil
futilidades, artista algum dispensava o seu elogio, que seria a consagração definitiva.
Falava-se na quinzena de sêda azul-pavão com que ele, para escrever, se sentava
à mesa que fôra de Carlyle; discutia-se a sua coleção de turquesas e ametistas, capaz de
despertar inveja a Diocleciano; comentavam-se os caprichos da sua inspiração, que
tinha exigências de Califa, e só se sentia bem entre tapeçarias persas e dalmáticas
bizantinas, maiólicas de Gubbio e marfins hindus; e elogiava-se o escaravelho de lápis-
lazuli, que lhe adornava o anular, e fôra arrancado ao dedo milenário de uma múmia.
Tal foi o homem maravilhoso, “misto de Baco asiático e de Apolo grego”, figura
ainda de ontem e já legendária pela glória – que eu vi aparecer ante mim, e que tão
profunda impressão deve ter produzido no espírito formoso e sensível de D. Isabel.
Entretanto, Raul prosseguia. Sua tia, não só aquela, mas muitas outras vêzes,
tivera ensejo de se encontrar com Wilde. É que se o mundanismo dêste último o levava
por tôda parte, os avós de D. Isabel, ligados à melhor sociedade londrina, queriam
proporcionar à neta o máximo de diversões.
Sabida a situação de relevo e prestígio alcançada por Wilde, não será de espantar
que o pai de D. Isabel, em comêço, nenhuma importância desse aos entusiasmos com
que a filha se referia à pessoa do poeta. Mero reflexo do meio, êsses entusiasmos de
coração moço e suscetível deveriam fàcilmente dissolver-se no marulho de aplausos e
louvores, com que discípulos e admiradores envolviam a pessoa de Wilde. A mais,
afugentando receios que eu penso nunca teriam acudido á mente do velho Andrade e
Melo, Wilde era casado e Ciril e Vivian, os seus dois encantadores pequenos, lhe
amparavam a felicidade conjugal.
desde que deveria ignorar os motivos daquela condenação e até a leitura dos jornais lhe
havia sido sonegada.
Foi por essa ocasião que o pai de D. Isabel resolveu apressar a volta ao Rio, na
esperança de que, afastando-a daquele meio, a filha rápido olvidasse a figura de Wilde.
E Raul concluiu:
– “Uma paixão, meu amigo! Dessas que já hoje em dia muito raramente se
observam; que não medem sacrifícios, nem antevêem obstáculos; e que quando não
florescem em carinhos e atenções, deixam o coração num punhado de cinzas!
“Embora a sua religião não tenha altar, sente-se que a sombra de Wilde
acompanha minha tia por tôda parte, e lhe povoa as solitudes do coração. Se entrasses,
hoje, no seu quarto, no Rio, havias de ver, numa estante ao abrigo dos olhares
indiscretos, tôdas as obras do escritor dileto e, entre elas, não sei como conseguido, um
dos raríssimos exemplares da Salomé, que foi maravilhosamente ilustrada por
Beardsley. Sei que ela lê e relê meditadamente êsses livros, na esperança, talvez, de que,
ao calor dos seus dedos, algum dia as palavras se animem, e com ressonâncias de um
cristal de Veneza, lhe tragam os ecos da voz inesquecível. Vem ainda do mesmo culto o
nome que ela escolheu para os seus gatos, mal supondo que Dorian e Sybil me dariam a
chave do seu segredo, pois que entre os seus próximos a leitura do O retrato de Dorian
Gray já era familiar a alguém”.
74
É preciso que se não esqueça que o Dr. Andrade é médico, e médico às direitas,
tendo, portanto, o seu senso artístico – se é que êle o possuiu algum dia –
completamente embotado. Estou certo que a sua concepção de beleza anda hoje muito
mais próxima de um “belo” abcesso de fígado ou qualquer outra horrível mazela, do que
da Vênus de Milo ou do “Julgamento final”; e que se lhe derem a escolha de leitura
entre uma encantadora página de Wilde ou qualquer outro autor que êle nunca leu e uma
monografia clínica, o Dr. Andrade não hesitará: irá à maçuda monografia.
Não nos admiremos, portanto, que em todo êsse curioso entrecho de amor, êle
haja apenas visto: de um lado, a pessoa de sua única irmã, com a vida partida pela
fatalidade daquela paixão; e de outro, a figura odienta de Wilde, o causador daquêle
desvario, e que só lhe poderia interessar através da análise de um Krafft Ebing. Raul me
disse mesmo ter notado que o pai, durante tôda a narrativa, evitara o mais que pôde
pronunciar o nome de Wilde, e nas poucas vêzes em que isto não lhe fôra possível,
trouxera-o sempre precedido de um “cabotino”, “degenerado”, ou “nevrosado”.
O meu amigo, entretanto, como era de esperar, pois que pleiteava comigo a sua
admiração por Wilde, é que se não conformou com o que lhe fôra contado, e desde logo
passou a fazer uma série de investigações, a ver se encontrava, quer nos próprios livros
de Wilde, quer no que se tem escrito a seu respeito, qualquer clareira por onde pudesse
respirar a sua curiosidade.
75
Embora Calibã já lhe dormisse aos pés e o diabo o tentasse com a máscara
indecisa de Antinoo, era de presumir que a Wilde, sempre de olhos abertos para a
beleza, não tivesse passado despercebida, logo ao primeiro encontro, a graça estranha de
D. Isabel que, de cabeleira negra e pele dourada, se destacaria dos outros tipos
femininos da sociedade londrina, como uma garça morena perdida em meio a um bando
de cegonhas.
Dos livros de Wilde, o único que poderia trazer qualquer elucidação a êsse
respeito era o De Profundis, sabendo-se que todos os outros são anteriores a 1894. Êsse
livro, além de escrito na própria prisão, tinha o grande interesse de constituir como que
um jornal íntimo dos dias de sombra e sofrimento do grande artista.
Pois foi justamente nas páginas de De Profundis, que Raul encontrou as duas
passagens, que lhe deram quase absoluta certeza de que D. Isabel não foi indiferente ao
poeta. É pena que eu não tenha aqui o volume, para lhes ler, na íntegra, êsses dois
trechos, que me trouxeram a mesma convicção.
Um dêles está numa das cartas que da prisão Wilde endereçou a Roberto Ross, e
foram pelo mesmo transcritas no prefácio do livro. Nessa carta, Wilde pede a Ross que
agradeça a um amigo comum, cujo nome agora me escapa, a remessa dos livros que êle
lhe tem feito; e que, por intermédio desse mesmo amigo, faça chegar “a sua gratidão à
senhora que mora em Winbledon”. Presume-se que esta senhora, que êle não quis
nomear, lhe houvesse também enviado livros ou qualquer outra coisa. Coincidência ou
não, entre as poucas cartas subsistentes do seu avô, Raul encontrou uma cuja sobrecarta
já rasgada, talvez por um impiedoso colecionador de selos, ainda deixava perceber num
bocado de carimbo, certa palavra que deveria começar por: WINB. Raul, ao tempo em
que conversamos, ainda não tinha conseguido saber se Winbledon seria apenas o nome
de qualquer rua ou quarteirão de Londres, ou mesmo de alguma cidade da Inglaterra.
Mais uma vez lamento não ter presente o volume. A prosa de Wilde não pode
ser resumida e eu não trago o trecho de cor. Digo-lhes apenas que o artista evoca a
76
Como vêem vocês, nada de mais elogioso para a pessoa que despertou tais
sentimentos, e que, eu penso, tenha sido D. Isabel. É digno ainda de menção, que logo
após êsse trecho, as idéias de Wilde começam a refletir uma religiosidade até então
ignorada, sôbre as suas páginas descendo amiúde a figura de Cristo, como o paradigma
da nova vida que êle se propunha para mais tarde. Daí não ser também difícil aceitar
que a essa mesma mulher deveu Wilde a devoção que anos depois o faria ir, por várias
vêzes, à bênção do Papa e lhe daria a morte com todos os sacramentos católicos.
Além desses elementos, Raul ainda descobriu uma nova fonte de sugestões, que
referenda de algum modo as suas conjeturas.
Trata-se de um opúsculo em que André Gide, grande amigo de Wilde, nos conta
alguns episódios da sua vida. Por êle sabemos que Wilde, durante a sua permanência em
Berneval, após cumprida a sentença, falava com grande entusiasmo nos seus projetos
literários, e dizia que só reapareceria em Paris, quando de novo se pudesse impor como
“Rei da Vida”, por uma bela obra de arte.
Entre êsses trabalhos, alguns ideados, outros já em execução, êle se referia com
grande amor a um drama bíblico: Achab e Jezabel. Note-se uma nova coincidência.
André Gide assinala que Wilde, ao invés de pronunciar Jezabel sempre dizia Isabel. Não
seria ainda a nossa patrícia que lhe teria despertado a lembrança de tecer um drama em
tôrno da bela e vaidosa Jezabel, do segundo livro dos Reis?
– E por que não vais resolutamente à tua tia? Estou certo de que apenas com
uma palavrinha sua tudo ficaria esclarecido. Depois, dado o teu amor por Wilde, ela não
se vexaria de te abrir o coração.
– “Já quis fazer isso e tenho estado várias vêzes com o De Profundis entre as
mãos, pronto a ir-lhe ao encontro”, – respondeu-me Raul. “Pondero, porém, que uma
mera curiosidade literária não me dá direito a tanto. Seria ressangrar despiedosamente
uma ferida que o tempo vai cicatrizando. A mais, tive proibição formal do velho de lhe
fazer a menor alusão a êsse respeito”.
Parece-me que ainda o ouço, quando, próximo do quarto, lhe dei a conhecer o
meu intento:
– “É muito cedo, meu amigo. Escrito agora o nosso encantador entrecho de amor
não passaria de uma enfadonha monografia histórica, inçada de datas e notas à margem.
É preciso que o tempo aplaque a preamar de ódios e escrúpulos que ainda se agitam
sôbre a figura de Wilde, e de novo esbata em tôrno à sua cabeça aquêle halo luminoso
78
que uma senhora de Paris dizia ver formar-se tôda vez que êle falava. Lembra-te que a
nossa heroína ainda aí está, e que se Wilde já morreu há dezenove anos, só em 1960 o
British Museum nos permitirá conhecer, na íntegra, o original de De Profundis.
Vivamos, portanto, até lá, meu amigo, na esperança de que, já velhinhos, ainda
possamos ver evolar-se das páginas inéditas – como tôda vez que se abria a liteira de
Cleópatra – um novo perfume de que se há de servir o futuro narrador da tua A noiva de
Oscar Wilde.”
INFERNO VERDE
(Alberto Rangel)
111
Turvar; nublar; escurecer, e ainda, tornar esotérico.
112
O autor mescla, aqui, na composição de seu cenário, respectivamente, uma gramínea, uma espécie de
peixe de água doce e uma árvore.
113
Tipo de embarcação característica dos cursos d’água amazônicos.
114
planta euforbiácea da flora amazônica (Biranhea trifoliata, Baill.).
http://aulete.uol.com.br/piranheira#ixzz2remFmp9L
80
115
Defendera-se; resguardara-se.
116
ou quincunce, grupos de cinco.
117
Notar o vocabulário próprio ou jargão da navegação: “montar”, aqui, ir em direção à nascente, “subir”
o rio ( “a montante X a jusante)
118
alvorada
119
Que parece fugir
120
Bela imagem, porque “esfumar”é desenhar a carvão, portanto, enegrecer.
121
Transbordado, fora do seu leito.
81
122
Mosquitos hematófagos, de picada dolorida
123
idem
124
Tipo de palmeira
82
Foi assim, entre o silêncio respeitoso do Miguel e a palrice dos outros homens,
que o Souto chegou a uma barraquinha deserta, abafada entre velhas pacoveiras. O
bananal apertava a barraca; a floresta sufocava o bananal; e, por sua vez, o céu
esmagava a floresta. Foi esse o primeiro pouso do Souto, no remoto confluente do
Solimões.
O engenheiro não podia dormir. A acuidade dos seus ouvidos parecia ter
aumentado na solidão, O vento, que entrava à vontade pelas brechas da choça, fazia
125
Espécie de toldo de palha
126
Interessante notar o verbo “palrar”, para os remeiros cearenses, normalmente utilizados para
caracterizar a “voz” dos papagaios ou das aves que imitam os humanos.
127
Outra espécie de mosquito hematófago
128
loquaz
83
Daí a uma hora, a montaria retomava o seu andar moroso. Ronceira, por mal
construída, um dos camaradas a apelidara, com justeza: – «Tartaruga». O Miguel
129
Harpejo de instrumentos de corda sem arco
130
Suindara – ave tida como agourenta
131
Curiango
132
Ave noturna
133
Registro de soprano que cobre duas oitavas
134
macacos
135
Que caminha aos saltos
136
De alto volume
137
Ave, conhecida também por capoeira ou corcovado
138
No séc. XIX, peça orquestral autônoma, de caráter dramático
84
pilotava com cuidado, evitando a zona correntosa do curso; mas a tardígrada, a custo,
seguia pela corda ou pelo arco das inflexões, em praias e barrancos, que se
interpolavam, na disposição dos coleios de cobra, que de repente estacasse no bote.
Dois dias mais tarde, vingadas as linhas subtensas, ou os ramos das curvas,
chegaram a Boa-Vista, coroada de manivas, mamoeiros e canas, onde se lhe juntaram
mais uma canoa e três homens «de corda».
139
Outro tipo de mosquito hematófago
140
Tipo de lagartixa – “lambedeira”
141
Outro tipo de lagartixa
142
Tipo de planta forrageira
85
143
Verso ou versos, que se repetem no fim ou no início de cada estrofe, ou no corpo da mesma estrofe, de
uma composição, gerando certa base rítmica para o poema; REFRÃO
86
O caucheiro144 não constrói palácios; nos seus estádios planta yuca e plátano
substanciais; isto sim, a fartar. O que ele quer, é passar; mas, atendendo previdente que
nessa corrida há escalas por estações forçadas de parada. Embora! O machado e a ubá
são os dois instrumentos emblemáticos da sua indústria. Um destrói, outro transporta. O
taperi145 é o digno traço de união dessas duas operações, que resumem a devastação
caucheira. Ele é o único elemento fixo, posto que com a frágil consistência da teia de
uma aranha, ou da casa de uma tatucaba146.
O Souto no mal estar físico, que a custo se esforçava por subjugar, perdia-se em
cismas e reflexões.
144
Seringueiro, que extrai caucho, borracha.
145
O mesmo que tapiri; ITAPIRI; PAPERI; CHOÇA: "Fazem taperi, que são duas folhas de ubim em
cima de quatro paus, nas margens dos igarapés, e ali dormem e comem." (Ferreira de Castro, A
selva)): http://aulete.uol.com.br/taperi#ixzz2ribgTR5l
146
Tipo de vespa, ou marimbondo de cor clara
88
Amplo fumívoro, o céu aparava das labaredas do acaso os fumos da noite, vinda
num repente.
Souto prostrado na rede sentia o latejo das fontes, a secura dos lábios crestados
do fogo interior que o abrasava todo. Enquanto o caboclo e o Simeão escortaçavam o
porco, e certa agitação animava a turma diante do «fresco», Souto resistia num combate
formidável aos pensamentos de desânimo, que procuravam invadi-lo na febre. Toda a
noite ele viu no entretanto horrores; ora em fogo, ora em gelo, no algor, o seu corpo
parecia precipitar-se em abismos, ou achatar-se por desabamentos formidáveis; o
plácido igarapé corria ao fundo da terra, por uma helicóide, escortinada em fila dupla de
monstros, que vomitavam chamas...
147
lúgubre
148
A parte mais escura das olheiras.
89
de ser tarde feita. Grandes borboletas azuis passavam lentas, evoluindo, balanceando
entediadas na penumbra.
O pastor de curioso pastorejo havia voltado para sua barraca central, levando às
costas o jamaxi152 sopesado de mercadorias que lhe fornecera o «aviado»; ficara o
Souto, esperando melhoras. Uns dias bem, outros mal. Naqueles, o Souto aproveitava
desenhar o serviço feito, ou observar o sol, em alturas correspondentes, para determinar
a declinação magnética local. Tinha ainda fé, confiava... Aquilo havia de passar. O
quinino triunfaria... Mas o Souto se descarnava. Cada vinte quatro horas de acessos,
149
Desembaraçado, ágil
150
Escondia-se
151
Capinzal beira-rio
152
Espécie de cesto que se leva às costas, preso à testa ou aos ombros por uma alça.
90
cada reduzir de energias e de músculos. Oito dias assim esteve o Souto no Funil, em
delírios, inapetências e calmas passageiras. E a definhar sempre... O «aviado»
aconselhou a volta ao Juruá:
153
Ação ou resultado de sirgar, de puxar embarcação ao longo da margem de rio por meio de cabo ou
corda; SIRGAGEM
154
Grande ave
155
Conhecido no Sudeste por “azulão”
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Tipo de passarinho, ocorrente em todo o Brasil
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Espécie de percevejo
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Durante toda uma semana a «Tartaruga» foi passando a revista daquela guarda
funambulesca das culturas na vazante.
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Planta, tipo de gramínea
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topo
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amarelo vivo, cor de ouro; gualdo
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Marfim-vegetal
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Não houve eco que apanhasse e devolvesse as palavras de fel dos lábios do
Vencido. A terra ambiente com elas ganhava o dístico e o ferrete: – INFERNO VERDE!
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Bebida ou pirão preparado com água, farinha de mandioca e açúcar, às vezes temperado com cachaça;
CHIBÉ; GARAPA; SEBEREBA; TIQUARA
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Terreno baixo, suscetível de se alagar
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Fetichista?
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Termo bíblico - Algumas traduções tomaram a liberdade de traduzir Geena por "Inferno", conduzindo
assim à ideia de um lugar de tormento ardente, inferno, local de punições atrozes.
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Contudo, a terra insonte ficou silenciosa desse silêncio dos mundos incriados; e
o homem imobilizou-se num sono tranqüilo, na paz da Natureza indiferente à Ignomínia
e ao Despeito...
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Cumprir seu fado, seu destino.
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O Sangue do Vigario
Galpi
Scismava.
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Scismava.
O labios murmuraram por fim, parecendo proferir uma prece, que terminou em
prolongado e dolente suspiro.
– Meu Deus! exclamou; aqui na Tua presença, esquecida do Teu poder infinito,
offendi-Te, Senhor, tornando-me indigna do Teu perdão e da graça da Tua Mãi
Immaculada Maria Sanctissima. Pequei, Senhor. Cega pelo demonio, não Te vi, surda
pelo peccado, não Te ouvi, douda pelo amor, não pensei em Ti. Perdoa-me, Senhor.
Sinto que as minhas entranhas se corromperam e que nellas gerou-se o filho do
peccado! Não sou digna de Ti; mas deixa, Deus Misericordioso, germinar o fructo do
meu ventre, que elle Te dará em dobrado amor, o que perdeste com o meu crime e o
meu peccado. Perdoa-me, Senhor. Abençoa-o meu Deus.
Dedicou-se á terra de seu berço, amando-a, com esse amor severo dos juizes
incorruptíveis, cheio de sanctas indignações, cóleras tremendas; que não se abatem nem
contra a ferocidade dos crimes, nem perante as multidões enfurecidas; coleras que só se
acalmão para dar lugar ao perdão, premio dos regenerados! Coleras divinas!
Em seu peito havia um oceano de amor placidamente folgaz ao sopro das brisas
da caridade; impetuoso, rugidor quando batido pelas tempestades infernaes em revolta
contra Deus dos vícios e dos crimes.
Estes tinhão então pasto abundante na ambição dos homens, instigada pelo ouro,
que a terra mineira com exhuberancia offerecia das suas entranhas; na brutesa dos
tempos; na origem adventicia dos indivíduos, que de longe, trazidos pela sede de
riquezas, vinham sacial-a nos corregos auriferos dos Geraes.
Aventureiros d´aquem e d´alem mar, por todo o Valle do Rio das Mortes, pelos
serros alpestres de Ouro Preto, pelos territorios de Ouro Branco, pelas campinas de
Paracatú, por Sabará, por toda parte emfim onde uma pisca de ouro faiscava ou uma
101
As primeiras fecundas bateadas no S. Bom Jesus foi como o toque de rebate, que
poz em alvoroto toda sua população e os mineiros que em outras e longinquas partes
ouviram a fama do novo descoberto.
«Não és digna, terra maldicta de possuires tão formoso nome. Não durarás mais
que este sangue, que teus renegados filhos derramaram. Desapparecerás com elle: cada
uma das suas particulas, que o tempo diluir e apagar corresponderá a uma
desaggregação do teu solo, até o teu inteiro desapparecimento da face terra.»
_____________________
A sentença do padre cumpriu-se. S. Bom Jesus dos Perdões viu as suas casas
cahirem uma a uma. O solo roto, fendido pelas erosões das aguas de anno em anno
modifica-se, rompendo-se em profundos sulcos. A esterilidade mata-o!
A noiva do golfinho
Xavier Marques
– “Havia uma linda tinharense chamada Marina, que era também a mais singular
de todas as criaturas...”
Essa ilha é formada por um alto morro sempre afligido dos ventos fortes que
correm da banda de leste.
Foi ali, mas em tempo já muito antigo, quando a roca de Tinharé não dardejava
ainda a torre nem o lume do farol, que viveu e morreu aquela, cuja história de amor
tanto comovia as raparigas de sua condição.
Talvez ainda a conte alguma velha avó, como as de outrora, sob o puxado das
casas de palha, lá no cimo do morro, à hora em que num horizonte imenso, cavado e tão
profundo que alucina os olhos e a alma, começam a murchar os jardins de violetas e os
rosais do crepúsculo.
Era a essa hora que costumava transitar pelas praias o espetro amoroso da infeliz
que esteve para noivar com o mais esquisito, o mais misterioso de todos os noivos.
II
Havia uma linda tinharense chamada marina, que era também a mais singular de
todas as criaturas da ilha. Sua morada era antes o campo e as praias do que o palhote,
onde participava do sustento de um casal de velhos. Daquela cor de leite coalhado não
havia senão ela no lugar. Era delgada como um palmito e leve como uma pena: leve de
corpo e de juízo. Os olhos tinha-os um nada sombrios, tirando a azul, e os cabelos, tão
sutis e assedados como os fios de uma teia de aranha.
Nisso, como em tudo mais, ela se punha fora do vulgar, semelhante a uma ave
estrangeira vinda pelo céu, num dia de tempestade, para espantar as aves ribeirinhas de
Tinharé, que a desconheceram sempre, sempre até à morte. De comum com as outras
apenas tinha o falar, isto é, as palavras com que dizia as mil extravagâncias que lhe
acudiam à mente.
Que tivesse pai ou mãe ou parente qualquer, nunca ninguém o soube. Nas ilhas
aparecem às vezes desses entes solitários como elas mesmas. A gente, contudo, mal se
satisfazia com esta razão, e por muito tempo não se cogitou de outra coisa.
Oh! não, nunca se vira em gente humilde um desejo tão alto, nem tão pouca
resignação ao seu destino. Se bem a entendiam, ela queria colher à mão os astros, como
se apanham os malmequeres no vargedo. Ambiciosa e cobiçada nenhuma o foi jamais
como a linda criatura. Mas pobres daqueles que se enamoravam de Marina: ela não lhes
dava mais esperança do que os vagalumes dão luz. Se um instante os escutava, dias e
semanas fugia até de vê-los. Procuravam-na, espreitavam-na e lá iam encontrá-la nas
dunas da costa ou na crista de um rochedo, sozinha e pensativa, como que à espera de
embarcação ou de alguém que lhe houvesse prometido entrevista.
Andava cega pelas ondas ou por alguma visão que só a ela aparecia por cima das
águas.
– Quem será?
Assim diziam as outras, não menos escandalizadas pelo contraste da sua vida,
sempre ao revés dos gostos, dos sentimentos, do pensar e das maneiras comuns. Quando
todos riam, ela se mostrava amuada e triste. Se um temporal sobrevinha, atordoando o
morro com o estrépito das vagas, toda a gente se recolhia silenciosa; mas agora é que
era ver Marina aos saltos, cantando, rebentando de alegria. Sua voz acrescentava às
cantigas mais sabidas umas toadas, uns retornelos de paixão e melancolia estranhas.
Assim vivia a desditosa num ansiar sem repouso, abrasada por uma sede sem
aplacamento. Vela que transluzisse no horizonte fazia-a cismar como uma estrela que
corresse no céu. Barco que aproasse à ilha, esperava-o a pé quedo, no porto, com o
coração em frêmitos. Sumia-se a vela; do barco desciam os costumados, os vulgares
tinharenses. Marina voltava, ora triste, morta de tristeza, ora agastada, mais intratável
que um bicho. Criam muitos que ela amava, que curtia uma grande paixão de homem
desconhecido. A dificuldade estava em explicar-se onde vira esse homem, que ninguém
nem por sombra o encontrara naquele monte de terra, cujos habitantes, sem excluir os
próprios animais, andavam pisando os mesmos sítios e caminhos.
– Mar, ó mar dos golfinhos encantados e das sereias feiticeiras, que é do meu
amado marinheiro, aquele que me prometeste e por quem anseio mais que as tuas
ondas? Traze o meu noivo, ó mar querido, que já não tenho suspiros no peito para lhe
mandar!
Desde então, sempre que Marina desaparecia da chã do morro, era certo estar
pousada em algum seixal da costa, a falar com o oceano essa língua que só assentava na
loucura ou nos lábios cabalísticos de alguma bruxa. Quando subia, era mais muda que
as pedras; os olhos semicerrados, fugidos com horror deste mundo, como que os vasara
para não ver os pobres colhedores de piaçaba que andaram a ferir os pulsos nas
palmeiras de espinho e agora desafogavam o peito em cantigas dolentes, capazes de
comover os penhascos.
Passava dias longos dentro do seu sonho, donde só se desprendia aos primeiros
uivos do temporal.
Isso fez compreender aos tinharenses que o marinheiro prometido devia chegar,
como as aves da procela, num grande ruge-ruge de ventania e chuvas. A certeza desse
amor agourento e quase fantástico teve-a a gente do morro uma manhã em que Marina,
acordando de bom humor, contou às vizinhas:
– Sonhei que um navio tinha ferrado na costa da ilha. Era todo branco e brilhava
como um navio de prata. As velas alvejavam como as roupas do coradouro ao luar. Na
proa trazia duas figuras, que eram dois golfinhos de ouro, com as caudas retorcidas
voltadas para o céu. Veio de bordo um moço corado e lindo, que parecia mais um
príncipe do que um marinheiro, e subindo a este morro, chegou-se a mim e disse: –
“Bela menina, há muito tempo que te procuro, saltando de ilha em ilha, de praia em
praia, trazido pelas ondas e pelos ventos que me levavam teus suspiros e queixumes.
Sabes quem sou eu? Sou o príncipe dos marinheiros. Aqui estou e venho buscar-te...
prepara-te e segue-me, se é do teu agrado”.
E Marina, crente e feliz, pôs-se a girar como o fuso nas mãos da fiandeira.
– Ó mar dos golfinhos encantados e das sereias feiticeiras, que é do meu amado
marinheiro, aquele que me prometeste e por quem anseio mais que as tuas ondas?...
III
– Vi o meu amado.
Vira-o de fato. Depois de tanto suspirar, de tanto ansiar, de tanto gemer, o mar
lhe mandara o prometido e desejado amante. Não viera em nave de prata nem esquife de
madeira: ela o encontrara de súbito, encostado a um morrete verdejante, ao pé da
escarpa que se abria em grutas habitadas por aves marinheiras. Belo, feiticeiro, fresco e
palpitante como um peixe n´água, tinha o ar de quem dizia: “Pensavas que eu não vinha,
amor? Pois aqui estou”. Era fielmente aquele que ela trazia retratado na mente, –
marinheiro e jovem, de cabelos ruivos como as barbas da lagosta, o rosto vermelho da
lustrosa cor dos salmonetes, os olhos amorosos, esverdeados, profundos como os
abismos onde flutuavam as querenas de seus navios de sonho. Sua voz (ele falou-lhe)
era um murmúrio doce e branco, só comparável ao rumor dos mimosos búzios que ela
gostava de escutar; seu sorriso (ele sorriu-lhe) deixou-a fascinada como o brilho de
escamas dos alvíssimos dentes...
– Que ele era esquivo, confirmava Marina, mas havia de vir, havia de mostrar-se
e então julgariam do tesouro que as vagas lhe trouxeram.
Supunham-no algum náufrago ou mareante fugido de bordo. Pelos traços que ela
dava, seria estrangeiro, vindo por altos mares, dos países desconhecidos e tão remotos
que parecem lendas.
110
Todos os dias estava o noivo para subir ao casalejo; e cada dia se malograva a
expectativa dos tinharenses.
Nada mais faltava para as núpcias, a não ser quem lhes deitasse a bênção.
Vieram os bons cantores com as violas. Todas as suas mágoas se finaram, por
não haver mais coração que disputar. Dentro de poucas horas iam conhecer o ente
privilegiado que cativara e possuía o coração arisco da tinharense.
Assim que o sol abrandou e no céu do morro, azul da cor do seu mar,
começaram a desdobrar-se as nuvens róseas e douradas da tarde, Marina, com os
cabelos ornados de junquilhos, saiu a correr pelo trilho escarpado, ao encontro do
marinheiro que a esperava ao pé das rochas.
Lá se demorou mais de uma longa hora. Mas com surpresa dos convivas voltou
sozinha.
– Ele aí vem, ele aí vem... Soem as violas, para que haja prazer em volta do meu
amado.
Marina tornou a descer, mais rápida que uma andorinha no ar, com o cabelo
espalhado a derramar os junquilhos de que se havia engrinaldo para as núpcias.
Desceu e sumiu-se...
Uma vasta mancha negra fechou num capuz o horizonte do morro, e um vento
irado, esmigalhando vagas e vagas contra as penhas da costa, ganhou o cimo, passou
esmagando as copas das árvores, que se punham a urrar, enquanto os caules das
palmeiras gemiam.
E ao espírito da gente surgiu, mas só então, no seu feitio verdadeiro, aquele que
sob as formas enganadoras de homem tinha vindo iludir a ambição da triste e
malfadada.
Noivado, se o houve, foi no seio do abismo, no leito frio do mar, donde nunca
mais voltou a noiva do golfinho.