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FABRÍCIO CÉSAR DE OLIVEIRA

DA SAÚDE À QUALIDADE DE VIDA -


POR UM HUMANISMO BAKHTINIANO
FABRÍCIO CÉSAR DE OLIVEIRA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS 1-II

CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS - CECH


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA - PPGL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA


DA SAÚDE À QUALIDADE DE VIDA -
POR UM HUMANISMO BAKHTINIANO

FABRÍCIO CÉSAR DE OLIVEIRA

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Linguística da Universidade
Federal de São Carlos, como parte dos
requisitos para a obtenção do Título de Doutor
em Linguística.

Orientador: Prof. Dr. Valdemir Miotello

São Carlos - São Paulo -


Brasil
2015
Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitária UFSCar
Processamento Técnico
com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

Oliveira, Fabrício César de


O48s Da saúde à qualidade de vida - por um humanismo
bakhtiniano / Fabrício César de Oliveira. -- São
Carlos : UFSCar, 2015.
244 p.

Tese (Doutorado) -- Universidade Federal de São


Carlos, 2015.

1. Signo ideológico. 2. Humanismo da alteridade.


3. Discurso de humanização. 4. Programa Mais Médicos.
I. Título.
II

Para João Pedro e Liz Maria,

por quem minhas mãos e meu olhar


sempre escrevem, como forma de
enfrentar a prosa trivial da vida,

e dizer que nada de revolucionário

advém do que não é verdadeiro.


III

Esta tese faz questão de não respeitar


Todas as normas da ABNT.
IV

“Quando pronuncio a palavra Futuro,


a primeira sílaba já pertence ao passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,


destruo-o.

Quando pronuncio a palavra Nada,


crio algo que não cabe no que ainda não existe.”

[Wislawa Szymborska]
V

AGRADECIMENTOS

“Não quero a faca, nem o queijo.


Eu quero a fome.”
[Adélia Prado]

Traduzimos nossa existência pelo que olhamos; traduzimo-nos pelo olhar – e isto
está declarado na forma existencialista como Drummond escreveu o verso do Canção
Amiga: "Preparo uma canção que fale como dois olhos". Na ponta da palavra, há o
porquê falamos. No modo como olhamos para os outros, traduz-se o porquê observamos.
Na ponta de um largo riso, há o porquê do tanto que sonhamos. No efeito que o mundo
lê, há toda causa do porquê somos: para redescobrirmo-nos como um olhar que fala, pelo
que vive.
Há pessoas indispensáveis no processo de vida, de interlocução de cada ser humano,
e comigo não fora diferente e nunca seria, pois essas pessoas mudaram meu olhar para a
vida. Por isso, minha gratidão às pessoas que estão nessa espécie de ponta do porquê, que
é o lugar da inspiração, de onde se tira os motivos que alimentam o espírito, que dão fome
a cada palavra escrita. Minha gratidão e meus agradecimentos não são apenas pela “faca”,
a técnica, ou instrumento que me passaram para uso, nem pelo “queijo” que me deram
para desjejuar, mas pela “fome” humana com que me nutriram todos esses anos.

Agradeço ao mais largo, intenso e amigo humanista bakhtiniano que conheço, Prof.
Dr. Valdemir Miotello, pelo privilégio do trabalho e da orientação e à Profa. Dra. Maria
Isabel de Moura, pela elegância de pensamento e de ser, por ter sido na graduação a
professora que despertou meu interesse por ler artigos de jornais, o que se tornou
imprescindível para esta tese.

Agradeço aos mestres Prof. Dr. João Wanderley Geraldi e Prof. Dr. Augusto Ponzio
por serem inspirações para vida acadêmica e à profissão de professor, de estudante e de
pensador.

Agradeço ao Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGE/UFSCar – pela


resistência de pensamento humano, de encontros revolucionários, de atitudes éticas, pelas
VI

publicações propositivas, pelos embates memoráveis, pelos diálogos ininterruptos que


sempre me instigam.

Agradeço à Aline Maria Pacífico Manfrim, Lays Pereira e Katia Vanessa Tarantini
Silvestri, pelo compadrio, pela crença nos diálogos, pelo ato sensível com a arte e a
filosofia, pelas leituras compartilhadas, pelas revisões e, sobretudo, pela amizade que
suporta tantas horas, anos, meses e utopias, pois nada de grande se faz sem paixão.

Aos meus irmãos, Altair, Gerusa, Débora, Silvana e Andréia, que não me podaram
o sonho, nem a molecagem, muito menos a poesia da vida. São exemplos de dignidade,
hombridade e liberdade. Carrego vocês em cada linha da minha tese de vida.

Agradeço à Renata Oliveira, João Pedro, Liz Maria, Teresa, João Bosco, Gabriel
Marquesini, Artur Bertoldi e André Filardi, por serem minha inspiração, a partir de cada
um de vocês, busco caminhos para melhorar, ler mais livros e acreditar na educação.

Agradeço a cada um dos professores do Departamento de Letras da Universidade


Federal de São Carlos, que me ajudaram a formar cultural e teoricamente para cada linha
que escrevo, desde a graduação em Letras, passando pela primeira turma de mestrado e
primeira turma de doutorado. Agradeço à confiança no desafio de abrir caminhos.

Agradeço à Universidade Federal de São Carlos que me deu alojamento, comida,


livros, política, cultura, amigos e educação da mais alta qualidade.

Agradeço a cada um, dos leitores, amigos, alunos, colegas de trabalho (que não
couberam aqui) por serem a ponta do porquê de toda esta tese e de toda minha existência.
VII

“Não existe a primeira nem a última palavra, e


não há limites para o contexto dialógico (este se
estende ao passado sem limites e ao futuro sem
limites). Nem os sentidos do passado, isto é,
nascidos no diálogo dos séculos passados,
podem jamais ser estáveis (concluídos,
acabados de uma vez por todas): eles sempre
irão mudar (renovando-se) no processo de
desenvolvimento subsequente, futuro do
diálogo. Em qualquer momento do
desenvolvimento do diálogo, em seu curso, tais
sentidos serão relembrados e reviverão em
forma renovada (em novo contexto). Não existe
nada absolutamente morto: cada sentido terá
sua festa de renovação. Questão do grande
tempo.”

[Bakhtin]
VIII

RESUMO

A palavra “Saúde” mudou seus sentidos ao longo, principalmente, do século XX, e seus
contornos estão, hoje, ligados ao conceito de “Qualidade de Vida”. Uma das causas foi as Ciências
Humanas se aproximar das Ciências Médicas e há com isso uma espécie de poder biopolítico
travando diálogo entre as áreas, que indica um espectro que tende a ser humanizador para os
distintos campos do conhecimento. A saúde não é apenas biológica, mas biopsicossocial-
ideológica-discursiva. Acreditando que há nisto, na origem do termo, um início do desvendar e
pistas da fantasmagoria humanista, que passariam por uma análise da chamada crise da
racionalidade, do último século, por seus veios mais íntimos: pelos textos e pela ordem dos
discursos. Aqui vale, nesta tese, pensar como BAKHTIN (1895 -1975) pode contribuir para as
ciências da médicas, mesmo não tendo sequer escrito sobre elas. Uma análise dos discursos de
humanização e textos que circularam pela grande mídia – em especial na Folha de S. Paulo, de
Março de 2013 a Novembro de 2014 - sobre o programa Mais Médicos e o discurso - em Outubro
de 2013 - da presidente da república, Dilma Rousseff sancionando a lei que promulgou o
programa de saúde debatido, será, aqui, ponto de partida para se entender os acontecimentos e
indícios de mudanças ocorridas e ocorrentes na linguagem, nas ideologias, nos sujeitos e
sociedade. Propõe-se, portanto, discutir como os discursos heterogêneos, divergentes e
convergentes da Humanização se interpenetram e são constitutivos um do outro no jogo social na
construção de uma ciência mais humana, do que poderia ser uma humanística bakhtiniana
(tentativa de transformar o instável em estável lógico e matemático); porém o humanismo
bakhtiniano (jogo dialógico e vivo entre a sensibilidade ética e lógica moral) é mais abrangente
que uma ciência, ou mesmo uma tese, portanto defende-se antes de tudo o Humanismo nesta tese.
Para isso, dividiu-se a pesquisa de doutoramento em uma interpretação de três concepções agindo
sobre a força motora do Devir: a do Homem; a do Cronotopo (tempo/espaço); e a da Cultura.
Procurando em dois momentos estabelecer uma análise crítica: em um primeiro, entender os jogos
dialógicos e as tensões que se dão no interior da mudança na palavra “Saúde”. Conquanto haja
um mergulho na importância do pensamento bakhtiniano, principalmente pelo uso da palavra
como signo ideológico. Em um segundo momento, valeu-se dos pressupostos teórico-
metodológicos de cotejamento em GERALDI (2010 e 2012) em quatro estágios: 1) Para perceber
as dimensões materiais do signo – da palavra enquanto signo ideológico; 2) Para verificar seu
reconhecimento social; 3) Para entender sua compreensão em um contexto; e 4) Para interpretar
a compreensão ativa-dialógica dos textos sobre o programa “Mais Médicos”, procurando assim
ler o discurso oficial e os contradiscursos cotidianos que tensionam a mudança do paradigma da
palavra “Saúde” neste início de século XXI. Em suma, em um mundo em que há uma tensão entre
o mecanicismo e o humanismo, esta tese defende a Medicina Humanizada frente à Medicina
puramente tecnicista objetivista e abstrata, isto é, defende a Medicina como reflexão necessária
das Ciências Humanas.

Palavras-chave: Signo Ideológico, Humanismo da Alteridade, Discurso de Humanização,


Programa Mais Médicos.
IX

ABSTRACT

The word "Health" changed your senses throughout the XX century and their sense of contours
are linked to the concept of "Quality of Life". One of the causes was the humanities approach
of Medical Sciences and there is thus a kind of biopolitical power locking dialogue between
areas, indicating a spectrum tends to be humanizing to distinct areas of knowledge. Health is not
only biological, but biopsychosocial-ideological-discursive. Believing that there is in the origin
of the term, an early unravel the clues and the humanist phantasmagoria, that would call for an
analysis of the rationality of the crisis, by his closest shafts: texts and speeches. Here it is worth,
in this thesis, think how Bakhtin (1895 -1975) could contribute to the Medical Sciences, even if
it was even written about them. A careful analysis of the discourses of humanization and texts
circulated by the official media - especially in the Folha de S. Paulo, March 2013 to November
2014 - on the program "More Doctors" (in portuguese: “Mais Médicos”) and the speech – in
October 2013 - the President of the Republic, Dilma Rousseff sanctioning the law that enacted
the debated health program, and are starting point for understanding the events and indications
occurred and occurring changes in language, ideologies, in subjects and society. It is proposed,
therefore, to discuss how heterogeneous, divergent and convergent discourses of Humanization
intertwined and are constitutive of each other in the social game in building a more human science,
humanistic Bakhtin called. The doctoral research was divided into an interpretation of three
designs and two times: the man; the chronotope (time / space); and the Culture; looking for, at
first, to understand the dialogic games and tensions that occur within the change within the word
"Health". Primarily through the use of the word as ideological sign. In a second stage, took
advantage of the theoretical and methodological principles of mutual comparison in GERALDI
(2010 and 2012) in four stages: 1) To understand the material dimensions of the sign - the word
as an ideological sign; 2) To check your social recognition; 3) To understand their context; and,
4) To interpret the active-dialogical understanding the texts on the program "More Doctors",
attempting to analyze the official discourse and everyday counter-discourses tensioning changing
the paradigm word "Health", at the beginning of XXI century. In short, in a world that has a
tension between the mechanism and humanism, this thesis advocates the humane medicine front
of purely objective and abstract technicist medicine, that is, advocates medicine as necessary
reflection of the humanities.

Keywords: Sign Ideological, Humanism of Otherness, Humanization of Speech, Programme


"More Doctors."
X

RESUMEN

La palabra "Salud" cambió sus direcciones a lo largo de todo el siglo XX, y su sentido, hoy,
están relacionados con el concepto de "calidad de vida". Una de las causas fue el enfoque de
humanidades en las Ciencias Médicas, lo que indica un espectro que tiende a humanizar a los
diferentes campos del saber. La salud no es sólo biológico, sino biopsicosocial-ideológico-
discursiva. Creer que hay que hacer, en el origen del término, un temprano desentrañar las pistas
y la fantasmagoría humanista, lo que exigiría un análisis de la crisis de la racionalidad, del siglo
pasado, por sus ejes más cercanos: textos y discursos. Aquí vale la pena, en esta tesis, piensar
cómo Bakhtin (1895 -1975) podría contribuir a las Ciencias Médicas, sin haber siquiera escrito
sobre ellos. Un análisis cuidadoso de la humanización de discursos y textos difundidos por los
medios oficiales - especialmente en Folha de S. Paulo, marzo 2013 hasta noviembre 2014 - en el
programa “Más Médicos” y discurso - en octubre de 2013 - el Presidente de la República, Dilma
Rousseff sancionar la ley que promulgó el programa de salud debatido, estará aquí el punto de
partida para comprender la ocurrencia de los hechos y de las indicaciones y que se producen los
cambios en el lenguaje, las ideologías, en los sujetos y la sociedad. Se propone, por lo tanto, para
discutir la forma heterogénea, divergente y convergente de los discursos de Humanización
entrelazados y que son constitutivas en el juego social en la construcción de una ciencia más
humana, Humanística, llamada por Bajtín. En un primer momento, para entender los juegos
dialógicos y las tensiones que se producen en el cambio dentro de la palabra "Salud". En un según
momento, se aprovechó de los principios teóricos y metodológicos de comparación mutua en
GERALDI (2010 y 2012) en cuatro etapas: 1) Para entender las dimensiones materiales de la
senãl - la palabra como un signo ideológico; 2) Para comprobar su reconocimiento social; 3) Para
entender su comprensión en un contexto; y 4) Interpretar el entendimiento activo dialógica de
textos sobre el programa “Más Médicos”. En resumen, en un mundo que tiene una tensión entre
el mecanismo y el humanismo, esta tesis defiende el frente medicina humana de la medicina
puramente objetivo y abstracto tecnicicista, es decir, aboga por la medicina como necesaria a la
reflexión de las humanidades.

Palabras claves: Signo ideológico, Humanismo de la Alteridad, Discurso de Humanización


del Salud, Programa “Más Médicos”.
XI

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO....................................................................................................XIII
INTRODUÇÃO............................................................................................................30

1. CAPÍTULO PRIMEIRO - O HOMEM.................................................................54

1.1 Bakhtin e uma Concepção de Humanismo...............................................................55


1.1.1 Os signos ideológicos: “Saúde” e “Qualidade de Vida”.................................74
1.2. A Humanística Bakhtiniana – O Olhar de Mikhail Bakhtin e o Olhar que humaniza
o homem.........................................................................................................................90
1.3 O Homem e a Clínica – Tecnologia do Poder em Foucault e o Homem como poder
reivindicado e exercido na História da Humanização da Área da Saúde......................102

2. CAPÍTULO SEGUNDO - O CRONOTOPO.........................................................115

2.1 O conceito de Cronotopia, a Crise da Racionalidade e o conceito de Integralidade do


SUS trabalhando a Qualidade de Vida............................................................................116
2.1.1 O cenário para a implantação do SUS – Sistema único de Saúde – e o “Mais
Médicos.”.......................................................................................................................130
2.2 A Escolha pela Filosofia de Bakhtin sobre a Crise em Saussure – A Escolha pelo
Humano do Homem.......................................................................................................142
2.3 Da Saúde, como conceito biofísico, à Qualidade de Vida, como conceito
biopsicossocialdiscursivo..............................................................................................156

3. CAPÍTULO TERCEIRO - A CULTURA.............................................................167

3.1 Saúde migrando para Qualidade de Vida: a forma ampliadora do olhar científico
bakhtiniano....................................................................................................................169
3.2 As novas profissções na Saúde na construção do conceito biopsicossocialdiscursivo
de Qualidade de Vida.....................................................................................................180
3.3 Análise do dado (o texto) e a instauração do criado (o biopsicossocialdiscursivo): o
Humanismo bakhtiniano e o Programa “Mais Médicos"...............................................191

4. CAPÍTULO ÚLTIMO - O DEVIR........................................................................216


CONCLUSÃO..............................................................................................................217

REFERÊNCIAS...........................................................................................................233
ANEXO A.....................................................................................................................241
XII
XIII

APRESENTAÇÃO

“Não tenhas nada nas mãos


Nem uma memória na alma,
Que quando te puserem
Nas mãos o óbolo último,
Ao abrirem-te as mãos
Nada te cairá.

Que trono te querem dar


Que Átropos to não tire?
Que louros que não fanem
Nos arbítrios de Minos?

Que horas que te não tornem


Da estatura da sombra
Que serás quando fores
Na noite e ao fim da estrada.

Colhe as flores mas larga-as,


Das mãos mal as olhaste.
Senta-te ao sol. Abdica
E sê rei de ti próprio.”

[Ricardo Reis]

Escrever é abdicar, e, paradoxalmente, ser rei de si próprio; por isso, é conquistar a

liberdade, a máxima lei, pela renúncia dos discursos e também pela escolha de outros

discursos que priorizem a escuta e a alteridade. Ricardo Reis é o heterônimo mais exato

de Fernando Pessoa, é o médico de profissão, um classicista, um helenista, um estudioso

e amante da cultura e mitos gregos (tão estudados por Nietzsche, admirador dos estoicos,

e Foucault, admirador da genealogia do filósofo trágico, que vão acabar sendo


XIV

imprescindíveis na montagem das questões sobre vontade de saber desta tese)1. Nesse

poema Ricardo Reis revela seu estoicismo em todo o seu esplendor: porque tudo se perde

na vida com a morte. Por isso, segundo o poema, devemos aprender a renunciar e ver

nisso um ato nobre de nossa parte. Se renunciarmos, nada vamos perder (nem o “óbolo

último”, as moedas que são usadas para cobrir os olhos dos mortos para pagar a passagem

por Hades, deus dos subterrâneos) quando morrermos e se tudo acabamos por perder,

melhor é renunciarmos já. Ou seja, segundo os estoicos, apenas podemos possuir a nós

próprios, possuir a nobreza simples de nos conhecermos - ao lema grego altivo nosce te

ipsum, “conhece-te a ti mesmo”, poderia ser acrescentado, lendo o poema de Reis, o

seguinte: “não queiras conhecer nem possuir nada além de ti, pois existe um Outro EU,

além de ti". Torna-se nítido que a renúncia que Ricardo Reis propõe coloca em xeque o

grau de envolvimento do homem contemporâneo com o capitalismo antidemocrático, que

põe o Eu como centro autoritário. Pois o homem contemporâneo, por meio do poema,

põe-se a refletir sobre o viver de morte e morrer de vida2.

1
Tanto Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844 – 1900) quanto Paul-Michel Foucault (1926 -1984),
coincidentemente, nascidos em 15 de outubro, são dois pilares das ciências para todo século XX e início
do século XXI, pelas genealogias científicas que propuseram. Nota-se em conceitos como a vontade de
saber, ou vontade de verdade, a forte influência de Nietzsche na formulação do pensar de Foucault, além
de nos cursos no Collège de France sempre fazer referência aos trabalhos do filósofo alemão, os cursos
ocorreram entre os anos de 1977 e 1984, cujo nome de sua cátedra era: História dos sistemas de
pensamento. A importância de ambos pensadores é fundamental, mas, para esta tese, apenas abrimos um
diálogo, pois caberia para estudos avançados em filosofia uma ampliação ainda maior que não coube na
escolha do tema colocado aqui, mas poderá servir muito para estudos a partir dos iniciados e adiantados
pela própria tese. Vale observar que Nietzsche é o responsável pela ruptura necessária com o pensamento
racionalista, mecânico, positivista que vinha tomando conta do século XIX. Foucault vê nele a fecundidade
do que é dito, proposto e o leva adiante fazendo um modo genealógico do saber, em que não se tem verdades
absolutas dentro da História, mas séries de histórias dentro da História. Tudo isto é fulcral para o
pensamento bakhtiniano que iremos mergulhar durante a tese.
2
Sentença de Heráclito de Éfeso (533 a. C - 475 a. C), pré-socrático, cuja teoria do panta rei é uma
consequência de polemos (guerra, conflito), que reina sobre tudo. E por isso Heráclito de Éfeso não é o
filósofo do "tudo flui" mas do "tudo flui enquanto resultado da tensão contínua dos opostos em luta". É
XV

A renúncia estoica parece extrema aos discursos e textos contemporâneos do

neoliberalismo político e econômico, justamente por se fazer como contraponto quase

que inaudível ao que quer e cobra o mundo autoritário. Apesar da metáfora de Ricardo

Reis, por ser um poema de morte, ele dialoga com os vivos, com a vida, para abrir os

olhos da cultura que estamos absorvendo, sendo assim, pelo discurso da renúncia extrema

há a indicação de uma redescoberta de um humanismo latente, que vicejava já no final do

século de XIX e início do XX, que aqui apontamos como época da crise da racionalidade

(NIETZSCHE, 2004; RANCIÈRE, 1999), que viera a perdurar e modificar os padrões de

ação do homem com o seu semelhante, o que chamaremos ora como uma possível

Humanística Bakhtiniana (BAKHTIN, 2011), ora como um Humanismo Bakhtiniano,

como lugar da Ética e não simplesmente da Ciência, ora por um Humanismo da

Alteridade (PONZIO, 2008)3, pois são contradiscursos ao capitalismo reificador,

Heráclito, o pensador pré-socrático, ao qual Nietzsche mais de sente “aquecido” e em “bem-estar”


filosófico. Isto é fundamental para pensarmos a importância dos estoicos, dos pré-socráticos, tanto na
influência de Ricardo Reis quanto Nietzsche, que são pilares de um pensamento humanístico sobre a fissura
do paradigma no início do século XX.
3
No prefácio da edição espanhola do livro "Revolução Bakhtiniana" (1998) -Traduzido pelo GEGe - Grupo
de Estudos dos Gêneros do Discurso - Ed. Contexto. São Paulo. 2008 - Augusto Ponzio e Bakhtin: O
Humanismo da Alteridade, Mercedes Arriaga aponta que Augusto Ponzio aparece como um dos leitores
mais atentos e apaixonados de Mikhail Bakhtin.“Apenas não foi um dos primeiros filósofos que
introduziram e difundiram na Europa o pensamento bakhtiniano, como também é um dos seus discípulos
mais fiéis, que souberam utilizar as chaves do pensamento bakhtiniano para dar uma resposta aos
problemas que fundamentam a dita pós-modernidade. As reflexões bakhtinianas constituem a base de todo
o pensamento filosófico de Augusto Ponzio, que se caracteriza precisamente por substituir as categorias
de identidade e de produtividade pelas de alteridade e infuncionalidade (sem esquecer que um de seus
livros leva por título: Elogio dell” infunzionalità, ainda não traduzido em português). Tanto em seus
estudos sobre filosofia da linguagem como em seus estudos semióticos, Augusto Ponzio adota um ponto de
vista e um método de trabalho tipicamente bakhtiniano. O ponto de vista é o da literatura, que se converte
em observatório teórico, mergulhado na realidade social; o método de trabalho é interdisciplinar, ou seja,
move-se nas fronteiras de distintas ciências (linguística, filosofia, filologia, sociologia, psicologia,
semiótica entre outras) e tende a ampliar perspectivas e abrir horizontes em vez de propor um eixo
epistemológico. A revolução bakhtiniana, que aparece no título, faz referência à proposta de uma filosofia
ética, e ao mesmo tempo estética, que se baseia na categoria do “Outro”, e não somente na categoria do
XVI

antidemocrático, mecanicista, objetivista abstrato e contemporâneo a que propomos

também discutir. Já que são paradoxos que o homem deve enfrentar.

No atual mundo capitalista, em que vivemos, muitos são os paradoxos, contudo há

um anterior a qualquer sistema econômico: o de fazer a manutenção da vida mesmo que,

pela condição fatal, estejamos todos morrendo. Neste mundo, vi homens abdicarem da

vida, inclusive meu pai (falecido aos 53 anos, com falência múltipla dos órgãos, segundo

o obituário; cuja forma da morte conversa mais adiante com toda esta tese, pois a

configuração de sua morte mais se aproxima de fatores ideológicos-discursivos, antes dos

fatores biológicos); vi outros homens e mulheres, abdicarem dos sonhos, das utopias, das

revoluções, de discursos, em nome de um padrão social ou uma ordem hegemônica

patriarcal, elitista, discriminatória, misógina ou estética de uma determinada cultura de

época. E nossa época é predatória ao extremo, por ser consumista e promotora de

consumismos - segundo dados da WWF/20124, o conceito de pegada ecológica mede o

“eu”. Augusto Ponzio propõe a alteridade bakhtiniana como única via de saída para conjurar os perigos
de uma realidade igualada e homogeneizada pela televisão e pelos meios de comunicação, através dos
quais os interesses do capitalismo conjuram para que todos nos vistamos igual, consumamos os mesmos
produtos, nos emocionemos com as mesmas telenovelas, nos identifiquemos com os mesmos mitos. Ponzio
propõe uma semiótica literária que está extremamente ligada à filosofia da linguagem, tal e como a
concebe Bakhtin, e à crítica literária, não porque se aplique à literatura, mas porque a literatura constitui
seu enfoque. Se Bakhtin aprecia no caleidoscópio da literatura o que a linguística do intercâmbio da
mesmice e da comunicação não podem apreciar, ou melhor, as outras vozes que ressoam na palavra de
um mesmo sujeito, Augusto Ponzio utiliza as categorias literárias (dialogia, alteridade, polifonia,
responsabilidade) como categorias filosóficas sobre as quais constrói um novo humanismo: o humanismo
da alteridade”. (Mercedes Arriaga Flórez, 1998, p. 9 -14).
4
“A pesquisa lançada no dia 13 de junho, durante a Rio+20, revelou que a Pegada Ecológica média do
estado de São Paulo é de 3,52 hectares globais por pessoa e de sua capital, a cidade de São Paulo, é de
4,38. Isso significa que, se todas as pessoas do planeta consumissem de forma semelhante aos paulistas,
seriam necessários quase dois planetas para sustentar esse estilo de vida. Se vivessem como os paulistanos,
seriam necessários quase 2,5 planetas. Pegada Ecológica - A Pegada Ecológica é uma metodologia de
contabilidade ambiental que avalia a pressão do consumo das populações humanas sobre os recursos
naturais. Expressa em hectares globais (gha), permite comparar diferentes padrões de consumo e verificar
se estão dentro da capacidade ecológica do planeta.”-
XVII

potencial de consumo do homem frente ao que a terra produz. A natureza dá ao homem

1,8 hectares/ano, enquanto um paulista consume 3,5 (ha/ano), um paulistano 4,3 (ha/ano)

e toda a população estadunidense, que representa o modo consumista no mundo, consome

32% de tudo o que é produzido na terra, ou seja 1/3 do planeta é devorado pelo modo de

vida capitalista estadunidense.

É preciso entender e aceitar que a condição humana é também as condições que a

vida pode assumir; entretanto é também escolher o que viver, o que olhar, o que escutar,

o que comer, o que ler, o que teorizar, mesmo que os caminhos sejam, aparentemente,

sem escolhas. Mesmo morando na rua de forma indigente por depressão ou desemprego5,

por hipótese e exemplo de uma vida sem escolhas. Assim como a vida é feita de relações,

a conceituação de qualidade de vida também é relacional.

É importante suspender a si mesmo, esquecer de si mesmo, abdicar de um reino

próprio (é preciso descentralizar o EU, como em uma revolução bakhtiniana proposta por

Augusto Ponzio, 2008, em que tanto o EU quanto o Outro sejam categorias de valor não

http://www.wwf.org.br/informacoes/bliblioteca/?31603/a-pegada-ecolgica-de-so-paulo--estado-e-capital.
Acessado em 21 de janeiro de 2015.
5
Vale ressaltar que teóricos e teorias como Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, veem as cidades
contemporâneas como grandes centros da mais alta violência simbólica já vista na história da humanidade.
A cidade de São Paulo, por exemplo, a quarta cidade mais populosa do mundo, aparece entre as que mais
produzem violências simbólicas, psíquicas e físicas. Onde o número de indigentes é superior a 30 mil
pessoas que não se enquadram em um padrão, fazendo com que “A vida na sociedade líquido-moderna
seja uma versão perniciosa da dança das cadeiras, jogada para valer. O verdadeiro prêmio nessa
competição é a garantia (temporária) de ser excluído das fileiras dos destruídos e evitar ser jogado no
lixo.” (BAUMAN, Z. Vida líquida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2007, p. 10).
Por isso tudo, falar de violência produzida na cidade de São Paulo é falar também de Saúde, pois a sensação
de impotência em uma megalópole pode ser visível em estudos e análises, pois o cidadão paulistano vive
andando em um fio de navalha entre a indiferença e o anonimato, que ora pode ser positivo, ora pode ser
negativo, porém a manutenção deste jogo faz crescer nele um dos maiores índices de transtormos mentais
da história. A cidade de São Paulo é, hoje, a que apresenta maior número de doentes mentais do mundo
(OMS/2013/2014).
XVIII

indiferentes entre si) para fazer uma análise do nosso momento histórico e do progresso

cronológico da própria História; é preciso olhar para o vertical de si em relação ao Outro,

no mesmo patamar que outros homens em outras culturas, em outros tempos, sob outros

signos ideológicos. Tudo no mundo é material da consciência, segundo o viés de Bakhtin,

pois já foi lido, dito, ou voltará a ser em outro momento e de outra forma; por isso palavra

é cultura. E cultura são escolhas.

É preciso não confundir o relativismo absoluto (uma escolha sem contexto) com o

materialismo concreto e histórico de uma escolha relacionada à vida, à própria vida, em

defesa dela, como todo homem, consciente, vive. Escrever, portanto, é defender com

palavras à vida, é defender um ponto de vista; ponto, este, que está presente na

singularidade ímpar do sujeito, como carga de autoria e de originalidade, que quando o

sujeito morre, morre com ele um certo modo de ver único e ‘irrepetível’. Como

existencialista e bakhtiniano escrevo, esta tese, sabendo que as vidas mais interessantes

o são pelo modo como olham o mundo. Logo, escrever é a liberdade subjetiva passeando

e indignando-se no tempo, sobre as eras e ideologias, sobre os regimes antidemocráticos.

Portanto, afirmo, escrever é olhar, e o olhar é um modo de escuta, que é um modo de

diálogo (e esta é a condição de uma espécie de linguística da escuta, proposta por Ponzio,

2010).

Busco escrever com um olhar que escute e que vislumbre o tempo todo a liberdade

democrática e do Outro (de uma liberdade baseada na alteridade), quando se escreve. E

esta é a razão da escrita e da existência do escritor. Sartre (1946, p. 76) diz: “A maior

liberdade que existe é a liberdade de escolher para si a própria lei.” Foucault (1981, p. 83)

complementa dizendo: “de uma liberdade que é tida como condição ontológica da ética.

De uma ética como forma refletida e assumida pela liberdade”.


XIX

Escrita, liberdade e ética caminham juntas quando se pensa na vida, na democracia,

na alteridade, nos seres humanos, na História – no chamado tempo grande e na pequena

temporalidade, de Bakhtin. Escrever, portanto, seria pensar a vida como ética no e através

do tempo, na e por meio da Cultura; seria viver a liberdade, mesmo que ao abdicar de seu

tempo capitalista e de sua cultura (reificadora e consumista), para que a lei da vida e do

respeito às liberdades prevaleça, como diálogo, este primado de toda alteridade que vive.

Escrever é ser, plenamente, humano em sua, excelente e mínima, porção singular e alter

(de Outro Eu não indiferente e insubstituível).

Escrevo esta tese como forma de diálogo, como forma de escuta, com as condições

da vida que olho. Com as condições que o Capitalismo dá ao Homem6. Com as condições

que a Natureza tem para dialogar com o Homem. Escrevo uma tese que abdica, em alguns

momentos, de seu tempo (Neoliberal) e Cultura (fetichização das mercadorias), mas

também os assume, como em um jogo de paradoxos, de espelhos, em dialogia. É

importante um distanciamento de si, para lançar um olhar objetivo sobre a História que

está sendo, está se construindo. Escrevo uma tese que fale como dois olhos (ANDRADE,

6
No berço do Capitalismo, que é a Europa, há um debate muito intenso nesse início de século XXI que nos
interessa imensamente, justamente, por colocar o Homem frente a frente com a criatura sistêmica e
mecânica, que se move acima da natureza, como um Deus (“um Deus Capitalismo”), como diz Giorgio
Agamben: “Deus não morreu, ele se tornou dinheiro”. Nos coloca em debate sobre as últimas eleições na
Grécia, janeiro de 2015, em que o partido de esquerda radical, Syriza, tomou o poder por voto livre, após a
Grécia passar anos de apuros com a União Europeia (EU), desde 2008, a resposta das ruas e das urnas
parece ser: não aceitamos o “Deus Capitalismo”. E cogita-se (no momento de escrita desta tese) um grande
calote na dívida com a UE e os bancos mundiais. O que seria uma grande resposta, pois o sistema não vive
sem seus consumidores. Há que notar que se exaure o sistema, quando o contradiscurso se torna mais forte
que a opressão puramente mecânica de um Estado-Máquina.
XX

2012)7, que fale de um ponto de vista parcial, físico, político, poético (NERUDA, 1969)8;

do ponto de vista único, limitado e humano que cabe a minha existência e as parcas

experiências.

Escrevo uma tese que é mais uma tentativa de ser chave de acesso à mão da

consciência de muitos outros olhos, do que dizer a absoluta verdade; que, os leitores, a

vejam como porta, não como lei; mas como porta ao aberto e à liberdade ética. Para que,

o leitor, compreenda que abdicar e ser rei de si próprio, não é um mero paradoxo, mas

uma condição de quem escreve e vive. Concomitantemente. Preparo uma tese que se

responsabiliza/respondibiliza, totalmente, pelo modo como olha o mundo e as ciências:

desejando uma Medicina cada vez mais humanizada.

A Medicina humanizada está em pauta em nossa sociedade, por exemplo, na

semana do dia 13 de novembro de 2014, um estudante de medicina da FMUSP (Faculdade

de Medicina da Universidade de São Paulo) teve o artigo mais comentado e opinado. Nele

o estudante Felipe Scalisa de Oliveira menciona que há na formação médica da faculdade

uma “Face oculta da medicina” (título do artigo), em que o status vem sendo levado mais

em consideração e acima da vocação profissional, quando a instituição procura ocultar

7
“Eu preparo uma canção/em que minha mãe se reconheça, /todas as mães se reconheçam, /e que fale como
dois olhos. //Caminho por uma rua/que passa em muitos países. /Se não me veem, eu vejo/e saúdo velhos
amigos. //Eu distribuo um segredo/como quem ama ou sorri. /No jeito mais natural/dois carinhos se
procuram. //Minha vida, nossas vidas/formam um só diamante. /Aprendi novas palavras/e tornei outras
mais belas. //Eu preparo uma canção que faça acordar os homens/e adormecer as crianças.” (ANDRADE,
Carlos Drummond de. Poesia 1930-62. Edição crítica. GUIMARÃES, Júlio Castañon (org.). São Paulo:
Cosac Naify, 2012.)
8
Em uma antológica entrevista da escritora Clarice Lispector, em 1969, com o Nobel de literatura chileno,
o poeta Pablo Neruda, ela teria perguntado para ele: “Como é que você descreve um ser humano o mais
completo possível?”. E ele teria respondido de forma delicada, reflexiva e extremamente existencialista:
“Político, poético. Físico.” - http://www.revistabula.com/955-clarice-lispector-entrevista-pablo-neruda/
(acessado em 21 de janeiro de 2015).
XXI

atos ilícitos, degradantes, desumanizadores, como estupros e violência homossexual

relatados por anos dentro dos portões da faculdade pública – temos aqui um grande

exemplo, um grande acontecimento discursivo, que coloca em debate dois pilares:

primeiro, o sistema formador de seres humanos; segundo, os seres humanos formadores

dos sistemas ideológicos. O artigo é muito bem escrito (chegando a nos surpreender como

sempre fazem os grandes textos toda vez que os lemos); é muito claro e bem propositivo

para início de análise nesta tese, pois: quer uma resposta de uma formação médica

humanizadora e não meramente tecnicista mecânica, antidemocrática (objetivista

abstrata), como parece confrontar os pedidos da sociedade a que vivemos.

Sabemos que a sociedade pode até estar satisfeita com a formação técnica
dos médicos, mas é notório como está insatisfeita com a falta de humanização
desses profissionais, cuja prerrogativa é promover saúde, não a mera ausência
de doenças. Tentam preencher essa deficiência pelo currículo formal, mas se
esquecem do currículo oculto –práticas e culturas–, que molda sujeitos do
início ao fim da faculdade. (SCALISA, 2014, s.n.)

Toda trajetória desta tese de doutoramento culmina na ênfase dada à expressão “é

notório” (na segunda linha do trecho acima, do artigo de Felipe Scalisa) com a conotação

de que algo está nítido, claro para todos, evidente para todos. Mas que “algo” é esse que

é tão notório assim, como se fizesse parte de um “Processo de Humanização”? Teremos

que investigar as camadas desse dizer opaco, e teremos que fazer o cotejamento com

outros textos, colocar comentários de textos e os próprios textos, para descobrir a

evidência que se divulga. A expressão “é notório” conversa com pontos fundamentais de

todo o trabalho de construção do texto final de doutoramento e do olhar da pesquisa,

como laço definitivo/provisório também de minha memória pessoal, familiar e trajetória

profissional. Vale ressaltar que o ponto nevrálgico de todo o trabalho é o olhar de

contraste e a tensão entre discursos, entre culturas, entre ideologias presentes no mesmo
XXII

tempo, ou no período dos últimos 5 anos do doutoramento, ou toda a minha trajetória de

vida até aqui, aos 36 anos.

Embora, hoje, more em São Paulo (importante dado de enfrentamento) e tenha

nascido em Três Pontas/MG, fui criado no interior do Estado, entre as cidades de

Araraquara (conhecida pelos altos índices de qualidade de vida)9 e São Carlos (capital da

tecnologia, por ter duas grandes universidades públicas). Nascido em família mineira, que

migrou quando tinha 5 anos para Araraquara, por início de separação dos meus pais, logo

notei que os contrastes de cultura entre Minas Gerais e o interior paulista seriam grandes

lições e aprendizados para a vida, pois notei cedo que o homem é um ser de cultura (um

vivente cultural), se alimenta do que está em volta e se adapta segundo sua óptica. Meu

olho fixou-se em traduzir contrastes culturais a cada cidade que migrava, a cada espaço

que conhecia, a cada cotidiano que escutava. Como disse, esta tese é particularmente um

olhar de contraste, assim como fazia Bakhtin em sua obra, pois conseguia avaliar os

valores orgânicos ou artificiais de uma sociedade por meio da análise dos modos de vida.

Bakhtin era um pensador de cultura, pois sabia ter o olhar de contraste, enviesado,

oblíquo (GEGe, 2011).

9
Terceira cidade do país em melhor qualidade de vida, Araraquara chegou a um patamar de
desenvolvimento que só será atingido por boa parte dos municípios brasileiros em 2037. Esta é a conclusão
do Índice Firjan de Municípios divulgado pela Fundação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan). O estudo
mensura o grau de evolução de três indicadores básicos: emprego e renda, saúde e educação. Com o
resultado obtido na edição 2010 do estudo, a cidade caiu da primeira para terceira posição no ranking
nacional, mas manteve-se no grupo das dez cidades consideradas ‘top’ do País. A redução foi causada por
variações negativas na geração de emprego em 2008, quando a economia local sentia o reflexo da crise nos
Estados Unidos. A diferença da Araraquara de 2007 e 2009 está justamente em seus indicadores. No
período, a cidade quase dobrou o atendimento na rede básica de saúde com a ampliação de programas como
a Saúde da Família — hoje, cerca de 50 mil pessoas são atendidas. -
http://culturalgame.com.br/site/?p=2128 (acessado em 21 de Janeiro de 2015).
XXIII

Foi procurando aguçar o olhar que chego à São Paulo em 2005. E este ano tem alto

valor humanizador no processo de escolha desta tese, já que a mulher (Renata Oliveira)

que se tornaria mãe de meus dois filhos é uma das pessoas que mais movimenta a vida

em prol da saúde humanizadora, em meu lastro de conhecidos. Um pouco por ser ela

Terapeuta Ocupacional de formação pela UFSCar e hoje, desde 2008, ser a coordenadora

responsável pela Saúde Mental da zona leste da capital paulistana (são dois fatores

materiais e históricos importantes a serem explorados ao longo de uma reflexão sobre a

tese). Chegar em São Paulo, cidade com maior número de pessoas com transtornos

mentais do mundo (segundo a OMS e em artigo publicado na revista PLoS One, em 2012,

apresenta os resultados da pesquisa São Paulo Megacity Mental Health Survey que coloca

em torno de 30% os índices de pessoas com transtorno metal na Grande São Paulo), fez

com que o meu mesmo mecanismo intuitivo que me fez adaptar à cultura do interior,

fizesse com que também entrasse em conflito com a vasta e dinâmica diversidade cultural

da maior cidade do país, a Sampa de Caetano, onde:

Alguma coisa acontece no meu coração


Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João
É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
Da dura poesia concreta de tuas esquinas
Da deselegância discreta de tuas meninas (...)

E foste um difícil começo


Afasta o que não conheço
E quem vem de outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso (...)

Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas


Da força da grana que ergue e destrói coisas belas.

(CAETANO, 1978, Sampa.)

Ou a SP de Criolo, em que vocifera:


XXIV

Não existe amor em SP


Um labirinto místico
Onde os grafites gritam (...)
São Paulo é um buquê
Buquês são flores mortas
Num lindo arranjo
Arranjo lindo feito pra você

Não existe amor em SP


Os bares estão cheios de almas tão vazias
A ganância vibra, a vaidade excita.

(CRIOLO, 2011, Não Existe Amor em SP)10

São Paulo excita o pensamento sobre o homem e sobre sua materialidade histórica;

envaidece-se quando a chamamos de realidade. Uma cidade concretista e cinza, onde os

grafites gritam em sua capital mundial. São Paulo é uma cidade de atitudes, de decisões,

de singularizações, de anonimatos e, portanto, de muitas renúncias e resistências. As

decisões que se seguiram na minha vida foram todas no bojo de escolher a formação

humana, o diálogo e os estudos bakhtinianos como fonte de explicação da vida. Chego

em São Paulo em 2005, três anos depois de iniciar as pesquisas e leituras de Mikhail

Bakhtin, da chegada de Valdemir Miotello como professor do departamento de Letras da

UFSCar – Universidade Federal de São Carlos - e de principiar o Grupo de Estudos dos

Gêneros do Discurso (GEGE) na mesma universidade. No ano seguinte, nasceria o

primeiro filho (João Pedro) enquanto escrevia a dissertação de mestrado em Linguística

pela UFSCar, intitulada “O Signo América Latina – Da Filosofia Política à Linguística”

10
Como o tom desta apresentação tem um ar bem memorialista, vale ressaltar as datas de ambas canções,
uma de 1978, ano em que nasci, e outra de 2011, ano em que mais me envolvi com o tema desta tese e com
questionamentos sobre medicina e qualidade de vida na cidade de São Paulo. Não apenas por coincidências,
mas pelo olhar de constraste de uma canção com a outra, de um período cultural demarcado com outros,
pelo que diz o tempo entre ambas as canções e o que nelas não coube e nem caberá, pois o tempo é vivo e
de vidas. Mas temos, prioritariamente, que ficar atentos para o que dizem: uma, pelo estranhamento com a
nova e diferente vida/cidade; outra, pelo estranhamento com a própria vida/cidade.
XXV

-, cujo o tema também fazia um contraste entre culturas a partir da língua e dos seus signos

ideológicos, contudo fazia uma crítica veemente ao eurocentrismo sobre o signo latino

pelos próprios latinos, principalmente, os brasileiros.

Mantendo o sentido de crítica à ditadura do pensamento único, totalizante,

eurocêntrico, pautado em uma espécie de “Humanismo da Identidade” ou a um

capitalismo reificador, a escolha do tema da tese passou pelo olhar humanizador e da

escassez de textos, na primeira década do século XXI, que revelassem os trabalhos de

profissionais da Área da Saúde, como da Terapia Ocupacional, do Psicólogo, do

Psiquiatra por uma óptica das Ciências do Pensamento e da Linguagem, a Linguística,

aqui no caso, como algo modificador aos padrões da vida da sociedade contemporânea.

Podendo ser, um dos exemplos, a Terapia Ocupacional, uma profissão muito recente na

história, só surgida após as Guerras Mundiais, como forma de auxílio e recuperação dos

pacientes de guerra, nota-se que há no surgimento de uma técnica (terapêutica) ou

profissão e valores que demandam de uma sociedade em transformação, deixando de lado

o positivismo e o determinismo para uma sociedade que cuida do humano dos homens e

da sua qualidade de vida. Este é ponto que fará da discussão sobre a Medicina, um amplo

campo de debates, pois parecem estar em conflito o Humanismo e o puro tecnicismo

antidemocrático (objetivista abstrato). E isto é uma discussão nebulosa e complexa no

Brasil atual.

Já em 2008 o tema, desta tese, estava definido, embora somente em 2010 abriria o

Programa de Doutorado na Universidade Federal de São Carlos (PPGL/UFSCar). Esperei

dois anos inteiros. Intensamente. Mergulhei no trabalho paulistano para viver as

cobranças que a sociedade capitalista e desumanizadora faz a um homem jovem, pai de

família, e que naquela época vivia na periferia da zona leste, bairro de Itaquera, e pegava

duas (2) horas de transporte público por dia para dar aulas em um colégio de classe média
XXVI

(Curso e Colégio ETAPA) e altos índices de aprovação em vestibulares do país (altos

índices não é sinônimo de melhor ensino, nesse caso). Fiz de minha vida um ato de

experimentação. Farejei as ideologias, os gestos, os odores, os modos, os “galhos

quebrados”, os padrões estéticos e éticos, como um caçador conjectura uma narrativa para

explicar a realidade que o cerca (GINZBURG, 1983). E a realidade se mostrou cada dia

mais indiferente, transformadora do homem em objeto, reificadora. Foram os dois anos

mais longos e cheios de trabalho assalariado da minha vida, em que os dias duravam 20

horas e o filho ainda pequeno me esperava chegar em casa para dormir, só depois das 23

horas, e que acordava sem ver o pai em casa. A escolha pelo tema “Qualidade de Vida”

faz total justificativa também neste momento de minha vida, pois as questões mais

recorrentes seriam: 1) para que o homem contemporâneo precisa lotar os meios de

transporte (são 4 milhões e 700 mil usuários do metrô/dia) e pagar para viver, sem ter

direito à cidade, em um mundo em que a qualidade de vida está em voga? 2) Não seria o

Homem um ser de cultura (um vivente cultural), por isso um ser político, por isso um ser

de linguagem, um ser de escolhas, um ser de liberdade acima de tudo? Afinal o discurso

de qualidade de vida não é um discurso de opressão para os que não se encaixam em

padrões, como os que são obesos demais, os velhos demais, os altos demais, os negros,

as mulheres ou mesmo os pobres?

A decisão do doutoramento passa por estas questões e inquietações, ainda mais por

notar que uma pesquisa se faz de olhar (de política), de escuta (de poética) e também de

mais parcerias e interlocuções de qualidade (de física). A pesquisa teria que ser em São

Carlos, teria de ser com orientação de Valdemir Miotello, e seu viés humanista orgânico,

teria de ser com a base teórica de Mikhail Bakhtin; pois só sob essas ópticas e

interlocuções um texto interdisciplinar poderia pesquisar e dizer com força, fé e tentativa


XXVII

de acuidade científica o que vem sofrendo e se modificando o Homem na sociedade

contemporânea em prol da Saúde como signo de Qualidade de Vida.

Embora, seja Nietzsche o pensador que mais me aquece o espírito, é em Bakhtin

que o espírito encontrou uma teoria que valesse a pena para passar os anos, pois a tensão

de um mundo apolíneo em guerra com o mundo dionisíaco, do pensador alemão, são os

mesmos pilares da filosofia da cultura do pensador russo, entre o objetivismo e o

subjetivismo, entre o oficial e o cotidiano, entre o estável e o instável, entre o

antidemocrático e a liberdade.

Depois do nascimento de minha filha (Liz Maria), em 2009, a vida tomou caminhos

por renúncias e liberdades importantes nos âmbitos profissional e pessoal, que requereria

um doutoramento crítico e ao mesmo tempo cheio de poesia, para não me perder11. Um

caçador fica sempre à espreita da caça, assim é um pesquisador. Pedir demissão mesmo

sendo querido pela escola e os alunos, foi uma dessas renúncias, mesmo tendo dois filhos

pequenos. Era hora de caçar as presas. Precisava colocar à prova alguns valores do mundo

contemporâneo, principalmente o do discurso hegemônico e torpe que credita ao trabalho

manual e assalariado a única saída para a dignidade do homem. Na mira da arma do

11
A cidade de São Paulo intriga a mente, polui os póros do corpo, instiga o pensamento coletivo e insiste
em transformar o ser social, que é o ser humano, em um ser individualista. Contudo, a forte desumanização
das relações que uma grande cidade capitalista insiste em alimentar de signos a mente, dos que vivem nela,
produziu um efeito contrário em mim: precisava para manter-me minimamente lúcido, buscar na arte o
respiro. A poesia foi o mais puro ar e habitável mundo. Durante os anos de Tese, para me humanizar,
intensamente passei todos os dias escrevendo poesia, buscando poesia em cada olhar. Foram quatro projetos
de livros organizados e finalizados (“No Passo Dela” - 2012, “5 de Outubro” - 2013, “Revolução” - 2014,
apenas um publicado (“O Gosto do Quando” - 2011). Talvez neste mesmo período tenha notado que a
ciência é apenas um veículo da ética e daquilo que não cabem nos livros, pois a vida que não cabe nos
livros. Aquela que é difícil de dar conta em palavras e que é da mais verdadeira poesia e digna das Ciências,
das pesquisas, dos debates. Hoje, ao exercitar uma Tese de doutoramento, noto que tanto a Poesia, quanto
uma Tese, podem não dar conta, definitivamente, do que silencia um olhar humano, independente da classe
social que olha: ao lutar pela vida e pela manutenção da saúde.
XXVIII

caçador, o discurso exagerado do capitalismo paulistano. Como ato de resistência, ali

teria que escolher uma proposta bem existencialista: o homem é o que vê, lê e sonha para

si mesmo; o homem é possibilidades e não apenas determinismos.

Volto, em 2011, por quatro (4) meses a morar em São Carlos, para recuperar o ritmo

dos escritos e leituras, mas logo recebo uma proposta desafiadora para coordenar a

Redação da sexta (6ª) escola (Colégio e Curso Poliedro) com maior aprovação em

Medicina no país. Era a chance de voltar à São Paulo e seguir com o projeto de

Humanização que enxergo ser possível fazer pela leitura, correção e diálogo com os textos

dos alunos de diferentes classes sociais, que quer em sua maioria as escolas públicas de

medicina. Era a chance de encarar o paradoxo: ser um humanista radical em um mundo

capitalista de resultados, ao extremo.

Durante toda a escrita da tese, o trabalho de coordenação e aulas foi se ampliando,

os resultados com a nova correção de redação levaram a escola, em 2013, ao patamar da

que mais aprova em medicina no país. E a técnica foi bem bakhtiniana, bem miotelliana,

bem humanizadora12: chamamos os alunos pelo nome (como em uma filosofia do ato

12
Machado de Assis tem versos contundentes e humanistas, em que diz: "Palavra puxa palavra, uma ideia
traz outra,/ e assim se faz um livro, um governo,/ ou uma revolução,/ alguns dizem que assim é que a
natureza/ compôs as suas espécies". É da natureza do convívio ter atrás de um texto outro ser humano. Pois
o texto pulsa, o texto fala, o texto cala, o texto reflete como cada ser humano ao se erguer por aquilo que
diz. Ao ler um texto vejo quão há de vibração e energia naquilo que diz e move. Nenhuma palavra é neutra.
Nenhuma palavra é puxada do nada e do sem sentido. Toda palavra emerge da consciência (afinal, o
alimento da consciência é a ideologia, e esta só entra no humano da gente pela linguagem). Nenhuma
escolha é sem álibi, pois toda palavra traz consigo uma revolução em si, é a palavra o lugar da revolução
permanente, o campo concreto do DEVIR intrínseco e humano que nos alimenta e move, nos mobiliza e
instabiliza, nos comove e nos satisfaz. E o DEVIR em carne e vida está no que escrevemos, no que falamos
e no que calamos. Se negamos a natureza de encontrar o humano do texto, negamos o humano a nós
mesmos, pois diminui-se assim o nosso DEVIR. Não melhoramos se não vemos o OUTRO. Pioramos
quando só vemos um objeto a ser lido e compreendido. Ler um texto é conversar com um amigo. É saber
ouvi-lo, como quem brinca e é companheiro nas brincadeiras. Ler texto é buscar a raridade do OUTRO
naquilo que escreveu. E ver que o que mais nos alimenta é a “revolução” que nos livros se manifesta, pois
XXIX

responsável), escrevemos para os alunos em todas as redações, assumimos nossa

responsabilidade em assinar nossos nomes (dos professores que corrigem os textos) nas

folhas e convidamos os alunos para atendimentos pessoais, ou seja, iniciamos um enorme

projeto de humanização na correção em redação dentro de uma das escolas de ensino mais

militar e tradicional da grande São Paulo. O desafio é grande e megalomaníaco13. Mas a

convicção na teoria de Bakhtin foi o alimento da humanização. Um dos percalços ainda

é a formação tecnicista dos estudantes no Brasil, em geral, falta-nos leitores de qualidade,

escritores de qualidade, pois falta escuta e liberdade para enfrentar o regime

antidemocrático das escolas; mas nada que o trabalho de base bakhtiniana não dê conta e

solução, que incentive o pensamento e manifestação das singularidades. Fica nítido como

falta uma formação humanizadora aos nossos estudantes, pelo modo mecanicista em que

um texto é escrito nas grandes escolas. Falta-nos capital humano, bons leitores, escritores

e comentadores sensíveis ao estilo individual das pessoas, parece que estamos perdendo

esta capacidade em larga escala nas grandes cidades e pior nos grandes centros

veio de diálogos humanos intensos, em seus respectivos espaços e tempos. Ao ler um texto, entendo que o
que o texto quer é diálogo. Ao escrever um texto, sei que o que o texto pode: pode revolucionar o mundo.
Por isso quando leio um texto, busco nele a Revolução que o alimenta, e sempre a encontro, como se fosse
mais forte que eu e maior que minha vida. E aquela é bem maior, melhor e mais forte. Ou seja, texto, para
mim, é diálogo e Revolução permanentes. O modo bakhtiniano de corrigir redações de vestibular se
alimenta de tudo isso.
13
A cidade de São Paulo chama atenção por muitos fatores, talvez o que sempre chama mais atenção, entre
todos, é o modo como se enuncia São Paulo com um adjetivo ou superlativo grudado em seu conceito. Há
sempre um adjetivo de “maior”, “melhor”, “milhões”, “milhares”, “mais”. Desses estão os inúmeros fatores
que fazem da cidade um monstro em números, onde todas as contas ganham status megalomaníacos, pois
se falarmos em população teremos que contar os milhões; se falarmos em homicídios, falamos em milhares;
se falarmos em distribuição de renda, falamos de barbárie histórica; se falarmos de carros, congestionamos
o pensamento com milhões nas ruas; se falarmos de comida e oportunidades, falamos em outros milhões
famintos e desempregados. Para viver em São Paulo é preciso conviver com a megalomania de saber que
na cidade habitam dos mais de 18 milhões de seres humanos. Isto causa estranhamento diário e dá o tom
em muito do contraste cultural que se tem com outras cidades e espaços. Estranhamento que esta tese não
foge de travar diálogos. Este estranhamento é alimento desta tese.
XXX

educacionais. Precisávamos dar uma resposta humanizadora. E a resposta veio em

evidências: bastou complementar o ensino técnico, que os alunos recebem da escola

extóide, com acompanhamento humano, e que favorecesse o diálogo como escuta, que

logo os resultados foram mais eficientes e continuam a aparecer, e hoje é a escola que

mais aprova em Medicina no país todo (os índices de aprovação da escola, hoje, superam

os 80% nas escolas privadas e públicas de medicina do país)14.

Felipe Scalisa é um dos exemplos sintomáticos de todo trabalho por uma medicina

humanizada, desde a escrita da redação para vestibular. Em 2011, Scalisa foi

acompanhado e lido semanalmente, por mim, em um trabalho que envolveu parceria,

amizade e propostas desafiadoras: como a de ter a clareza entre a escolha da Medicina

por vocação e não mero status de classe, ou manutenção do elitismo de classe. Os

rendimentos foram espetaculares, notas máximas nas redações do ENEM (Exame

Nacional do Ensino Médio), na UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo), na

UNESP (Universidade do Estadual de São Paulo) e UNICAMP (Universidade Estadual

de Campinas). Vale ressaltar o talento nato do aluno, a acuidade linguística própria, a

formação escolar e muito do acompanhamento familiar de seus pais, que demonstraram

ser evidentes ao longo do processo. Felipe Scalisa é apenas um exemplo dentre os dois

mil (2mil) aprovados dos últimos 4 anos

14
O Curso Poliedro aprova cerca de 60% nas principais escolas públicas de medicina do país, por exemplo
eram apenas 10 aprovações na FMUSP em 2010, em 2014/2015 chegou-se a cerca de 55 aprovações. Mas
isto, muito graças a um projeto humanístico vigoroso em Redação. Chegou-se a 40% da turma de medicina
na UNIFESP e uma média de 1/3,6 alunos da FMUSP saem do Curso Poliedro, depois dessa escalada
humanista. Há um paradoxo nisso, pois a máquina de aprovações e resultados lógicos, agora, alimenta-se
de humanismos em seu modo de ensinar.
XXXI

Quando surge em novembro de 2014, um artigo no jornal Folha de São Paulo, do

mesmo ex-aluno como autor do artigo “A face oculta da medicina”, logo nota-se, no

conjunto desta tese, que o processo está em curso dentro de uma sociedade em

transformação. Associado a isso, os surgimentos da Terapia Ocupacional, do Psicólogo,

ou da Saúde Mental, ou de Programas como Saúde da Família, ou Saúde Coletiva, ou

Saúde e Sociedade, dentro das universidades diante os métodos e práticas sociais para a

formação médica, logo mostram que as demandas da contemporaneidade capitalista

cobram uma humanização dos discursos, da linguagem e das práticas, e que são cada dia

mais urgentes. Fala-se em pós-capitalismo na Europa15, ouve-se capitalismo humanizado

em outros lugares dos sonhos do mundo. São apenas pistas, rastros e estalitos de galhos

no caminho da história?

Parece ser a hora do homem tomar algumas decisões, tomar algumas renúncias para

si. Abdicar de um trono, meramente, capitalista em que coloca o Eu como absoluto em

um reino predatório e devastador, para uma postura mais humanista, ou humanística do

ato responsável como método de uma ética, proposto por Bakhtin. É preciso médicos que

olhem nos olhos do doente, pois o instrumento de medição da pressão em alguns casos

15
“Um dos mais influentes pensadores marxistas da atualidade, o geógrafo britânico David Harvey
esteve no Brasil em novembro para divulgar o lançamento de seu livro Os limites do capital. Escrita há
mais de trinta anos, a obra ganhou sua primeira versão em português, mas, segundo Harvey, isso
não significa que tenha ficado ultrapassada – pelo contrário. Pioneiro em sua análise geográfica da
dinâmica de acumulação capitalista descrita por Marx, o livro, assim como grande parte da obra
de Harvey, tornou-se mais relevante para entender os efeitos da exploração econômica dos espaços
urbanos e suas consequências para os trabalhadores, ainda mais numa conjuntura marcada pela
eclosão de protestos contra as condições de vida nas cidades, não só no Brasil, mas também na Europa,
América do Norte e África. Nesta entrevista, Harvey faz uma análise dos levantes urbanos que ocorrem em
todo mundo, aponta que não será possível atender às reivindicações por meio de uma reforma do
capitalismo, e defende: é preciso começar a pensar em uma sociedade pós-capitalista” -
http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/das-democracias-totalitarias-ao-possivel-
pos-capitalismo/ (acessado em 21 de Janeiro de 2015).
XXXI

pode ser substituído pelo trato humano, em muitos casos da Atenção Primária da Saúde.

Ou seja, Saúde deixou de ser apenas a cura das doenças. Hoje, Saúde é Qualidade de vida,

portanto só realmente existe se compartilhada, ou quando se vive para cuidar do OUTRO

– como prega o Humanismo da Alteridade (PONZIO, 2008) ou do Novo Humanismo dito

por SILVESTRI -, quando se cuida da potencialidade de si próprio16.

Para quem sabe, ao “sol” desta tese, sentaremos e abdicaremos, para sermos reis de

nós próprios, com Saúde e Qualidade de vida.

16
“O Humanismo: a necessidade absoluta de outrem forja um novo humanismo. Primeiramente é a
constatação que não se é eu sem outrem. Em decorrência, ser significa tomar posição, agir, responder.
Não se pode negar o chamamento sem perder a singularidade. Privilegiar a alteridade em relação a
identidade é a reviravolta bakhtiniana. Identidade não significa o eu senhor de si. O que sabemos sobre
nós mesmos são palavras que bebemos dos outros. “No fluxo de nossa consciência, a palavra persuasiva
interior é comumente metade nossa, metade de outrem”(BAKHTIN, 2010, p. 145-146). Quanto mais a
alteridade for celebrada como outrem diferente sem para isso criarmos desigualdades, menos a identidade
fixa, imóvel e imutável fará algum sentido. Mais e mais cada sujeito se saberá único, não mais ou menos
humano, mas responsável e único entre únicos. Uma consciência ética fundada numa vivência estética.
Um novo homem é criado e se cria.”(SILVESTRI, 2014, p.49)
30

INTRODUÇÃO

“A realidade é opaca, mas há certos


pontos – indícios, pistas, sintomas –
que nos permitem decifrá-la.”
[GINZBURG]

O conceito de “Saúde” no homem vem migrando para “Qualidade de vida”17. E um

dos pontos fulcrais da teoria bakhtiniana pode dar pistas disso: a palavra vista como signo

ideológico por excelência, pois é um ótimo lugar de indício de novos paradigmas; já que

leva a teoria do signo para além do viés apenas gramatical, estruturalista, já que diz que

a palavra é o indicador mais sensível das transformações sociais (infra e supra estruturais);

portanto, quando um conceito migra, move-se, ou é movido, ou é enunciado, em seu

entorno criou-se socialmente um território preciso que alimenta as consciências que ali

interagem. Forças infraestruturas e supra-estruturais movem o signo ideológico. Saúde,

nos tempos atuais, início do século XXI, tem contornos sociológicos; e qualidade de vida

17
Há uma tensão peligritante nessa mudança de paradigma (entre as palavras), que diz que os modos de
vida do Homem mudaram. E é preciso ficar atento. O conceito de Qualidade de vida vem acompanhado de
opressão também, pois no mundo atual novas doenças e doentes aparecem, como é o caso da depressão,
surgida XX, da vasta gama de transtornos mentais ou mesmo da obesidade aparecendo como doença
nutricional, colocada como a terceira maior doença por desregulação alimentar mais perigosa do Brasil, ao
lado da anemia e desnutrição. Segundo estudos, os fatores causadores da obesidade são: consumismo,
sedentarismos, má alimentação e fatores midiáticos, além da modernização. Esta última seria a passagem
de uma sociedade tradicional, em que predominam relações familiares, particularistas, difusas com grupos
locais estáveis, limitada mobilidade social e pouca diferenciação ocupacional, a uma sociedade moderna,
caracterizada por normas universalistas, pela valorização do desempenho, pela alta mobilidade social, pelo
desenvolvimento do sistema ocupacional, pelo sistema de classes menos rígido, entre outros laços. Há uma
correlação positiva e tensa entre vários aspectos envolvidos na ideia de modernização – econômicos,
sociais, demográficos, culturais e políticos. Torna-se fundamental, portanto, olhar a obesidade e a
depressão, como novidades patológicas, e também pelo viés do quão opressor é ser tratado como doente
em um mundo que cobra Qualidade de Vida. (MONTEIRO C. A, MONDINI L, De Souza AL, POPKIN
B. M. The nutrition transition in Brazil. Euro J Clin Nutr 1995; 49:105-113.)
31

tem diálogos íntimos com a Filosofia da Linguagem. As ideias sobre Humano e Saúde

abriram conversas com uma perspectiva biopsicossocial, (FAGUNDES NETO;

FERRANO, 2003), que não os analisa apenas biofisiologicamente. Saúde não mais é

somente o estudo da cura de doenças, ou apenas o modelo médico de uma ciência que

meramente investiga o processo de cura; mas, hoje, abre conversas com a Sociologia

(principalmente como age o conceito de ideologia) e até pode e deve ser investigada pelos

estudos linguísticos pelo mesmo viés de materialismos histórico que tomou a sociologia

- nesta tese, com os de Bakhtin-, o que amplia a margem para pesquisas que buscam

explicar porque o câncer pode estar associado à fatores ideológicos e discursivos (como

desemprego, stress no trabalho, depressão, padrão de vida, consumismo, neoliberalismo,

etc.), além dos fatores biológicos.

Esta tese defende, portanto, um novo paradigma para o signo Saúde: como sendo

ele um signo biopsicossocialdiscursivo, ou seja, um discurso, a compressão discursiva e

ideológica de uma palavra pode matar; assim como o machismo (visão ideológica que

oprime a igualde de gênero) mata todo dia, uma concepção de saúde e alimentação pode

matar milhares, ou salvar milhões, por dia. Pois hoje, século XXI, o sujeito é visto, por

concepções contemporâneas da sociedade do conhecimento, por meio de sua

saúde/doença social, em suas interações com o meio, e com seus interlocutores; sendo

que seus processos de saúde e adoecimento passam a ser considerados pela sua

integralidade (preceito do Sistema Único de Saúde brasileiro), à sua completude

corpóreo-discursiva (FOUCAULT, 1981), à sua falibilidade física e ideológica.

Tornando, a Saúde um signo ideológico. Portanto, detectável e investigável pelas

Ciências Humanas. Em suma, as Ciências da Saúde/Médicas são Ciências Humanas, se

vista a Saúde como um signo bakhtiniano por excelência. O homem, quando parceiro do

tempo histórico e quando não faz uma análise puramente anacrônica, consegue adaptar-
32

se técnico-cientificamente aos novos discursos, por isso o trato clínico-assistencial

compartilhado, no último século, e o trabalho, por exemplo, terapêutico ocupacional,

psicológico, psiquiátrico ou o programa governamental “Mais Médicos” destacam-se na

promoção de novas maneiras de lermos o humano. Analisar, por comentários, os

discursos na grande mídia (em sua maioria do Jornal a Folha de São Paulo, entre os meses

de abril de 2013 e dezembro de 2014) sobre o tema do Programa Mais Médicos, em

contraste com os discursos políticos e econômicos de todos outros setores da sociedade à

luz da filosofia da linguagem é um primeiro passo desta tese, para aprofundarmos a

compreensão da crise da racionalidade (RANCIÈRE, 1996 e 1999) e a vigorosa presença

de uma espécie nova de agir humano, na Área da Saúde e nas Ciências Humanas, que

aqui chamo de Humanística bakhtiniana (apenas mencionada por BAKHTIN, 2011.

Talvez ele mesmo não quisesse erguer uma ciência ou um método científico, por isso só

menciona e não define). Em outras palavras, Bakhtin não tem uma contribuição direta

com a Área da Saúde, mas tem como pensador das Ciências Humanas e por valorizar as

singularidades, o corpo singular, podemos dizer que tem grande contribuição filosófica e

dá abertura a um diálogo de textos, de autores, de concepções:

O acontecimento da vida do texto, isto é, a sua verdadeira essência, sempre


se desenvolve na fronteira de duas consciências, de dois sujeitos.
Um estenograma do pensamento humanístico é sempre um estenograma do
diálogo de tipo especial: a complexa inter-relação do texto (objeto de estudo e
reflexão) e do contexto emoldurador a ser criado (que interroga, faz objeções,
etc.), no qual se realiza o pensamento cognoscente e valorativo do cientista. É
um encontro de dois textos – do texto pronto e do texto a ser criado, que reage;
consequentemente, é o encontro de dois sujeitos, de dois autores. (BAKHTIN,
2011, p. 311)

O método bakhtiniano é muito mais uma metodologia do que um método

propriamente dito, pois não se fecha como ciência exata (não se fecha até mesmo como

humanística, mas se abre mais ampla, como uma ética humanista, é uma humanística do
33

ato responsável, portanto um humanismo ético), já que está aberto ao diálogo, ao criado,

ao movimento, e parece ser este o estenograma do pensamento humanístico: analisar a

linguagem por seu materialismo histórico, portanto, ideológico (discursivo).

Com isso surgem perguntas norteadoras do trabalho: 1) Quais as compreensões de

Saúde/Qualidade de Vida que esta tese almeja defender frente ao materialismo histórico

do mundo capitalista neoliberal, frente à modernização objetificadora dos seres humanos?

2) Almeja defender a crise da racionalidade, como um novo agir (Humanística) ou o novo

agir como promotor de mais uma crise na racionalidade científica? 3) As ciências da

saúde/médicas podem ser consideradas ciências humanas apenas por tratar a saúde como

um signo ideológico próximo ao conceito de qualidade de vida? 4) Apenas os discursos

promovidos no entorno do “Programa Mais Médicos”, de março de 2013 a Novembro de

2014, dão conta dos sintomas indiciários de um novo paradigma humanístico ou da crise

da racionalidade?

Para responder tais perguntas, mergulho toda a tese, em cada capítulo, em textos

da Folha de S. Paulo (dentre os 783 que tratavam do tema no período, escolhemos os 10

que mais faziam um contraste de olhares sobre o tema), para cotejar o tema e as questões.

Parece ser o jornal, material periódico publicado, o mais propício material discursivo e

ideológico para uma análise pontual (próxima a um jeito de fazer comentários, apenas

como forma de pintar o cenário, para que o leitor desta tese tenha noção da magnitude da

reflexão necessária, que talvez a tese não dê conta), pois é um texto de arcabouços diários

de relações sígnicas, assim é um editorial ou um artigo de opinião. Dentro deles há um

produto ideológico na mensagem, na temática, no tipo de abordagem, na escolha do título

que refletem o que querem e refratam o que também não fora desejado. A diferença de

um corpo físico que vale por si só como um jornal (que é físico e material palpável) são

gritantes em relação a outros, pois o corpo físico reflete e refrata leituras; mas quando
34

esvaziado de ideologia apenas é corpo material não podendo ser interpretado em si

mesmo, contudo, quando em um contexto, em um território histórico preciso, qualquer

peça de um jornal é centelha de interpretações variadas. Porém, as leituras de um jornal

não podem ser abertas ao infinito abstrato, pois um produto ideológico significa diante

seu contexto, sua trajetória, sua memória, sua ação como produto de consumo e bem

material interpretado. Não há como lançar qualquer juízo de valor solto sobre um jornal.

As palavras são escolhidas, selecionadas para aquele tipo de reportagem, aquele tipo de

dizer e aquele tipo de escolha discursiva. Levando em conta, por exemplo, que um

editorial é feito por um grupo de jornalistas já conhecidos, experientes, politizados e

fortemente armados de argumentos ideológicos, o que faz do editorial de um jornal como

o do periódico Folha de S. Paulo, um potente compêndio de amarrações sígnicas, que

levam a uma complexidade ideológica, política, econômica, jurídica e ética das mais

sofisticadas e tendenciosas, como ponto de análise da realidade brasileira na pequena

temporalidade e no tempo grande. Das várias lutas do interior de um periódico estão à

luta pela venda de produtos, pela informação mais democrática (embora não seja o jornal

da Folha o ambiente mais democrático, já que defende interesses bem conservadores,

liberais e capitalistas), da escolha por uma perspectiva do debate, etc, contudo a que vale

aqui: é a luta ideológica que movimenta o debate da saúde como bem ideológico e

político. E na Folha de S. Paulo há marcas importantes e inoportunas para o pensar da

ciência, seja em um editorial ou artigo de um leitor no interior do periódico, como uma

Carta aos médicos cubanos, publicada por um médico leitor no jornal. Portanto, vamos

ler a imagem, a mensagem de cada texto, a cada final de capítulo desta tese, como forma

de cotejamento da realidade.

Tudo isso se revela unicamente no nível do grande tempo. Cada imagem


precisa ser entendida e avaliada no nível do grande tempo. A análise costuma
desenvolver-se no espaço estreito do pequeno tempo, isto é, da atualidade do
35

passado imediato e do futuro representável – desejado ou assustador.


(BAKHTIN, 2011, p. 407)

Para tanto é preciso definir uma metodologia, muito mais que um método. Uma

metodologia que seja pautada em textos e que se revelem pela história no grande tempo

e analisem à pequena temporalidade; que seja uma metodologia que faça conversar as

tensões ideológicas. Mas como fazer isto de forma precisa e qualitativa, sem ser muito

pedante e quantitativo? A resposta, nesta tese, virá com o cotejamento de textos, de

discursos, de reportagens em um período de 20 meses (março de 2013 a novembro de

2014), buscando indícios, pistas, rastros e palavras de uma forte tendência que se

conjecturando ou se faça clara com o conjunto de fatos, dados, índices e signos

ideológicos. Vamos encontrar com a teoria do historiador italiano Carlo Ginzburg (1983)

um modo de fazer e analisar técnico-metodologicamente as pistas por meio de um

paradigma indiciário, ou paradigma semiótico, que pode nos esclarecer a História e os

Discursos.

Vale dizer, portanto, que a História se faz com vozes que delinearam, claramente, aos

nascidos no século XX, uma distinção entre o oficial (jornais, revistas, livros, grandes

mídias e principalmente discursos do Governo) e o cotidiano (discursos, fatos

discursivos, arte e manifestações nas ruas), entre o dito e o não-dito, entre a

substituibilidade, característica da obsolescência do sistema neoliberal capitalista, e a

insusbstituibilidade, característica da unicidade evêntica do ser sem álibi da filosofia

bakhtiniana (BAKHTIN, 2010).

O século XX trouxe à tona a questão existencial entre liberdade e responsabilidade,

entretanto trouxe também novas concepções sobre a saúde, trazendo para as ciências o

conceito de qualidade de vida, e questionamentos e práticas que consideram o social, o

ambiente, os ciclos de vida, as interlocuções, como primordiais para uma prática clínica
36

que englobe a saúde do homem18. Aqui, há uma espécie de território virgem, intocado,

das ciências da saúde em diálogo com a filosofia de Bakhtin que parece ter encontros: o

homem (a humanística); o social (a cronotopia); e o discursivo (o enunciado concreto das

atividades humanas e interação verbal). Propomos, aqui, forçarmos este encontro, este

desafio, abrindo um diálogo, colocando as ciências médicas como uma reflexão das

ciências humanas.

A Humanística (como ciência) e o Humanismo (como ética), como são pensados

nesta tese, levantariam a Saúde como um processo biopsicossocial-ideológico-discursivo

(englobando a teoria de Bakhtin que vê a palavra como arena mínima da luta de classe e

de disputas ideológicas, logo entendemos que o termo “discursivo” em consonância com

a linha de Análise do Discurso dentro da Linguística daria conta, nesta tese, também dos

aspectos ideológicos, por isso fica mais pertinente trabalhar em torno de um neologismo

mais abrangente e sucinto como biopsicossocial-discursivo. Não descartamos com isso

todos os aspectos ideológicos do signo estudado); que entende o homem de forma integral

e humana (SUS), um ser bioético19; que conceba a noção de corpo como finito, porém

18
Os debates entre a saúde do Homem e o Mercado são muito intensos e quase todos eles estão relacionados
a dicotomia entre objetivismo e humanismo, por exemplo, a disputa sobre partos humanizados e as cesáreas
no Brasil está ganhando dimensões outrora irreais, já que o parto por cesárea é mais rápido e mais rentável,
porém muito mais opressor, na grande maioria dos casos. Fica a natureza refém da cultura: “A indústria da
cesárea brasileira com 52% dos partos feitos por cesarianas - enquanto o índice recomendado pela OMS
é de 15% -, o Brasil é o país recordista desse tipo de parto no mundo. Na rede privada, o índice sobe para
83%, chegando a mais de 90% em algumas maternidades. A intervenção deixou de ser um recurso para
salvar vidas e passou, na prática, a ser regra. Uma pesquisa feita pela Fiocruz ("Trajetória das mulheres
na definição pelo parto cesáreo") acompanhou 437 mães que deram à luz no Rio, na saúde suplementar.
No início do pré-natal, 70% delas não tinham a cesárea como preferência. Mas 90% acabaram tendo seus
filhos e filhas assim — em 92% dos casos, a cirurgia foi realizada antes de a mulher entrar em trabalho
de parto.” - http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/04/140411_cesareas_principal_mdb_rb
(Acessado em 02 de Fevereiro de 2015)

19
A bioética parece fazer a ponte entre o saber científico e o saber humanista, pois revela o conflito entre
a Natureza e a Cultura. Por ser uma ciência nova que se aprofundou após a Segunda Guerra Mundial, por
37

podendo ser cuidado por uma saúde preventiva; que não descarte os estudos psicanalíticos

sobre a saúde mental do cidadão20; que revigore o entendimento do homem pelo próprio

homem, pela necessidade das relações sociais e pela qualidade a que elas são pautadas; e

principalmente que compreenda que os discursos são de natureza ideológica, portanto são

artificiais na História e são orgânicos na Cultura, e que o Homem é objeto real de análise

linguística, por meio de seus discursos e interações com o meio, o tempo, a cultura, o

Outro e com o Devir21, ou seja, que compreenda o homem por sua natureza dialógica

também na concepção daquilo que se convencionou chamar de Saúde.

mostrar que houve uma mudança nos valores sociais a partir de então, além de uma negação dos avanços
desordenados da ciência, ainda mais repensar a insuficiência da ética, procurando garantir a liberdade e os
direitos humanos e ainda conter a ação desordenada do homem sobre o meio ambiente. Nasce mais
recentemente da bioética, ramos do biodireito. Mostrando que a tensão no mundo contemporâneo hoje é
intensa entre o mecanicismo e humanismo, mais uma vez.
20
“A evidência científica trazida do campo da medicina do comportamento demonstrou a existência de
uma relação fundamental entre saúde mental e física – por exemplo, que a depressão pressagia a
ocorrência de perturbação cardíaca. As pesquisas mostram que existem duas vias principais pelas quais a
saúde física e a mental influenciam-se mutuamente. Uma dessas vias são os sistemas fisiológicos, como o
funcionamento neuroendócrino e imunitário. Os estados afetivos angustiados e deprimidos, por exemplo,
desencadeiam uma cascata de mudanças adversas no funcionamento endócrino e imunitário e criam uma
maior susceptibilidade a toda uma série de doenças físicas. Outra via é o comportamento saudável, que
diz respeito a, por exemplo, regime alimentar, exercício, práticas sexuais, uso de tabaco e observância de
tratamentos médicos. O comportamento de uma pessoa em matéria de saúde depende muito da sua saúde
mental. Por exemplo, indícios recentes vieram mostrar que os jovens com problemas psiquiátricos, como
a depressão e o abuso de substâncias, têm mais probabilidades de se tornarem fumadores e ter um
comportamento sexual de alto risco.” (The World Health Report 2001. Mental Health: New Understanding,
New Hope. Direção-geral da Saúde, Lisboa, 2002)
21
Considerar o ser humano em suas interações com o meio, atualmente, é levar em conta a relação quase
simbiótica que se atingiu com a tecnologia, promovendo possibilidades diferentes para o devir. A geração
Y, denominação dada aos nascidos em uma época que os smartphones, pagers, laptops e tablets são
instrumentos corriqueiros, acaba por influenciar as práticas médicas, já que se cria a dependência de
tecnologia para se fazer um diagnóstico simples. Estamos em um momento histórico que não podemos
negar o papel da tecnologia informacional criando uma nova cultura, muitas vezes doentia como é o caso
na nomofobia (novo transtorno mental por dependência de celular, problema que pode estar ligado a outros
transtornos, como ansiedade e depressão). Embora a nomofobia seja um exemplo de dependência entre
tecnologia no ambiente de grande modernização que vivemos, ainda assim é preciso analisar outros
aspectos sociais do transtorno como diz o trecho da reportagem no portal do portal Psique, Ciência e Vida:
“há pessoas que não conseguem ficar sem o celular nem por um instante. Essas pessoas entram num estado
de profunda ansiedade e angústia quando se veem sem o aparelho, quando ficam sem créditos ou com a
38

Sobre a metodologia

Ginzburg (1983) diz que se mergulharmos na história das civilizações da Grécia

Antiga vamos descobrir que o corpo, a história e a fala foram legadas como objetos de

uma investigação desapaixonada, que, por princípio, exclui a possibilidade de intervenção

divina. Cuja descoberta de valores representa um decisivo legado a que somos herdeiros.

De fato, para os gregos, diversas esferas de atividade estavam neles apoiadas. Médicos,

historiadores, políticos, oleiros, caçadores, marinheiros, pescadores e mulheres em geral

eram considerados, entre outros, como inscritos nessa vasta área do conhecimento

“conjectural” (a raiz da palavra latina dá origem também ao termo adivinhação). Criando,

assim, uma espécie de paradigma semiótico típico a essas ciências ou atividades. Um

nome importante para a medicina, aos gregos, foi Hipócrates, no século V a. C., que

argumentava que somente pela observação e registro cuidadosos de cada sintoma seria

possível estabelecer as “histórias” precisas de cada doença, mesmo quando a doença,

enquanto uma entidade, permanecesse inatingível (vale ressaltar que mais adiante vamos

descobrir que a medicina se localiza no esteio das ciências “inexatas” e conjecturais).

Coloca-se aí a falibilidade do médico sob ataque desde aquela época, a qual Ginzburg

bateria no fim. A necessidade de estar conectado ultrapassa todos os limites. Uma pesquisa feita no The
Royal Post, na Inglaterra, mostrou que 58% dos britânicos e 48% das britânicas sofrem de nomofobia. O
nome vem do inglês no + mobile + fobia, ou seja, "fobia de permanecer sem conexão móvel", que inclui
internet e celular. Essas pessoas não saem de casa sem o celular, mantêm o telefone ligado 24 horas por
dia e sentem ansiedade quando o esquecem em casa. Antes de dormir, programam o telefone com o número
do médico, do psicólogo e dos hospitais registrados em ordem por uma numeração específica, para o caso
de ser necessário. Elas apenas precisariam apertar a tecla correspondente ao atendimento e logo
encontrariam a providência desejada. Elas ainda se sentem rejeitadas quando ninguém lhes telefona ou
quando percebem que os amigos recebem mais ligações do que elas. Quando ficam sem bateria ou fora da
área de cobertura, se sentem ansiosas, angustiadas e inseguras.” -
http://psiquecienciaevida.uol.com.br/ESPS/Edicoes/63/artigo212065-1.asp. (acessado em 21 de Janeiro de
2015)
39

(1983) trata em um belo paralelo histórico e cultural que elucida um paradigma

metodológico semelhante entre o historiador (no nosso caso, do linguista) com o médico:

O fato de que esse embate ainda persistia deve-se, talvez, a que as relações
entre doutor e paciente (especialmente a incapacidade deste último de checar
ou controlar as habilidades do primeiro) não sofreram, em certos aspectos,
nenhuma alteração desde os tempos de Hipócrates. O que, sim, mudou nestes
últimos dois mil e quinhentos anos foi o modo como esse debate passou a ser
conduzido, concomitantemente com mudanças em conceitos como “rigor” e
“ciência”. Aqui, obviamente, a virada se deve à emergência de um novo
paradigma científico, baseado (e a ela sobrevivendo) na física galeliana.
Mesmo que a física moderna relute em se auto definir como galeliana (ainda
que não rejeitando Galileu), é inegável que a importância de Galileu para a
ciência em geral, tanto do ponto de vista epistemológico quanto simbólico,
permanece inatacável (Feyerabend apud GINZBURG, 1983). Agora torna-se
claro que nenhuma dessas disciplinas – nem mesmo a medicina – as quais
descrevemos como conjecturais poderia adequar-se aos critérios de inferência
científica essenciais à abordagem de Galileu. Elas estavam, acima de tudo,
relacionadas ao qualitativo, com a singularidade, com o caso ou a situação ou
o documento enquanto individualidade, o que significa que sempre haveria um
elemento de acaso em seus resultados: necessitamos apenas pensar a
importância da conjectura (termo cuja origem latina repousa em adivinhação)
para a medicina ou para a filologia, sem falar das práticas advinhatórias. A
ciência galileana era completamente diferente; poderia ter adotado o dito
escolástico individuum est ineffabile (nada podemos dizer acerca do
indivíduo). O fato de utilizar a matemática e o método experimental implicou
a necessidade de mensurar e repetir os fenômenos, enquanto que uma
abordagem individualizada teria inviabilizado estes últimos procedimentos e
permitido o primeiro apenas em parte. Isso tudo explica porque os
historiadores nunca conseguiram desenvolver um método galileano. (...) a
história é como a medicina, que usa as classificações de doenças para analisar
a enfermidade específica de um determinado paciente. E como o médico, o
conhecimento do historiador (linguista) é indireto, baseado em signos e
fragmentos de evidências, conjectural. (GINZBURG, 1983, p. 104 -105).

Não há método matemático totalmente preciso para um linguista, um historiador,

um médico como declara Ginzburg (1983), contudo há uma metodologia que parece ter

sido esquecida pelo desapaixonamento a que o paradigma de pensamento galileano afetou

nossas ciências: essa metodologia conversa com o cotejamento de textos (GERALDI,

2012) e com paradigma indiciário de Carlo Ginzburg, além de usar conceitos bakhtiniano

(2011) que observam o signo verbal, como material histórico e ideológico por excelência.
40

Segundo GINZBURG (1983) há uma abordagem “semiótica” paradigmática ou modelo

baseado na interpretação de pistas, que conquistou crescente influência no campo das

ciências humanas somente no final do século retrasado. E aponta que suas raízes eram

muito mais antigas (em Hipócrates, século V a.C., por exemplo). Esta abordagem só

alcançou virtude no final do século XIX – mais precisamente na década de 1870/1980,

segundo o historiador italiano.

Ginzburg, em um artigo intitulado “Chaves do Mistério: Morelli, Freud e Sherlock

Holmes” (1983), logo em sua epígrafe já indica que as ciências humanas se fazem de

rastros quase imperceptíveis a um bom leitor ou caçador de ideologias, quando escolhe

G. Flaubert e A. Warburg com a sintomática epígrafe: “Deus se esconde nos detalhes”22.

O que o italiano quis dizer com esta sentença torna-se claro nos parágrafos seguintes, pois

diz que “um modelo epistemológico (ou, se preferirem, um paradigma) surge

discretamente na esfera das ciências sociais” logo ao final do século XIX. Surge como

uma espécie de exame, muito mais que uma teoria, pois parece indicar caminhos além

“do estéril racionalismo e irracionalismo”, que tomou conta das ciências e pesquisas,

segundo Ginzburg, depois do positivismo de Comte (1798 – 1857), do mecanicismo de

22
Quando inicio esta tese dizendo que ela não pretende respeitar as regras da ABNT, não estou afirmando
que as regras de citação, datas e formatação não serão respeitados, mas estou dizendo do modo como a tese
se erguerá, por implícitos será maior que os explícitos em algumas passagens, propositalmente. Quero uma
tese bakhtiniana, que dê pistas do Humanismo Ético de Bakhtin e não um método lógico e matemático, ou
um axioma. Penso que um livro bom é aquele que é capaz de transportar o leitor para além do livro, capaz
de fazê-lo pensar e viver a própria vida. Quando Ginzburg diz pela epígrafe que “Deus se esconde nos
detalhes” logo sabemos que é uma grande metáfora, que diz que por mais que juntemos coisas materiais,
palavras, signos ideológicos para explicar a realidade, sempre nos faltará o “real do real”, que se oculta nos
detalhes. Escrever uma tese para mim é mais que erguer uma teoria ou defende-la, é procurar aceitar a
impotência que tem o poder da escrita, esta ferramenta imperfeita. Não gostaria de escrever uma tese que
dissesse a verdade, mas que apenas desse a chance para revelar-se os segredos do mundo material e histórico
capaz de ser captado pela Linguística. Neste sentido, esta tese não respeita as regras da ABNT (como
símbolo de burocracia academicista). Esta tese é só um passo, o caminho é maior.
41

Galileu (1564 – 1642) e Descartes (1596 -1650). Para Ginzburg foi importante analisar o

“Método de Morelli” - um médico especializado em descobrir pinturas falsas por meio de

pormenores, como lóbulos de orelhas ou detalhes dos dedos e unhas e formato das mãos,

que eram sistêmicos em cada pintor -, o “Método de Freud”, médico psicanalista, por ter

lido os métodos de Morelli antes de publicar sua principal obra, “A Interpretação dos

Sonhos” (1905), teria dito o seguinte sobre Morelli: “A meu ver, esse seu método de

averiguação encontra-se estreitamente relacionado à técnica da psicanálise. Esta também

está acostumada a conjecturar coisas secretas ou encobertas a partir de traços

menosprezados ou inadvertidos de nossas observações” -, e o “Método de Sherlock

Holmes” - personagem criado pelo escritor graduado em medicina Sir Arthur Conan

Doyle, que usava formas investigativas fora do padrão, com alta perspicácia e análise de

detalhes, semelhantes às de Morelli. É neste esteio de métodos que GINZBURG (1983)

faz uma ressalva grandiloquente que defende a aproximação entre as ciências humanas e

as ciências médicas, chegando a dizer que a “inexatidão” da medicina promoveu o

problema epistemológico das ciências humanas:

Medicina, contudo, era a ciência a seu próprio modo. Parece haver duas
razões básicas para a ausência de exatidão na medicina. Em primeiro lugar, as
descrições de enfermidades específicas, adequadas e sua classificação teórica,
não se mostravam necessariamente adequadas na prática, uma vez que a
doença poderia se manifestar diferentemente em cada paciente. Em segundo
lugar, o conhecimento de uma doença sempre permaneceu indireto ou
conjectural. Os segredos do corpo vivo sempre estiveram, por definição, fora
do alcance. Uma vez morto, obviamente, poderia ser dissecado, mas como
fazer a transição do cadáver, irreversivelmente transformado pela morte, para
as características do indivíduo vivo (FOUCAULT 1973 e 1977b, p. 192 -193
apud GINZBURG). A incapacidade de quantificar resulta da impossibilidade
de eliminar o qualitativo, o individual, e a impossibilidade de eliminação do
individual, por sua vez, resulta do fato de o olho humano ser muito mais
sensível às diferenças, mesmo as mais sutis, entre seres humanos do que entre
pedras ou folhas. As discussões sobre a “inexatidão” da medicina promoveram
as primitivas formulações daquilo que viria a ser o problema epistemológico
central nas ciências humanas. (GINZBURG, 1983, p. 115-116).
42

O que se faz muito interessante, pois Ginzburg aproxima a Medicina das Ciências

Humanas pelo caráter da imprecisão e inexatidão do tratamento individual, sendo cada

caso um caso, cada sujeito uma identidade, e cada identidade uma alteridade científica,

embora haja mecanismos de cuidados coletivos como já sabemos e vamos citar e

tensionar ao longo da tese. A metodologia que une as Ciências Médicas e Humanas é da

mesma natureza das que formulam o conhecimento “conjectural”, a metodologia dos

indícios, das pistas, dos rastros que tanto perseguem os caçadores desde tempos remotos.

Por um detalhe ou “pegada ainda úmida no solo”, um caçador é capaz de montar uma

narrativa sofisticada em sua cabeça e de transformá-la em tradição cultural, ou seja, é

capaz de conjecturar o perigo que corre a partir de rastros passados e conhecimentos

adquiridos pela experiência e pela tradição oral. Mas tudo isso só é possível pela

sagacidade do caçador. E sagazmente Ginzburg traz duas questões e nos presenteia com

duas respostas bem indicativas e claras, daquilo que dá importância ao trabalho do

linguista e seu método ou rigor:

Será o rigor compatível com o paradigma conjectural? A direção


quantitativa e anti-antropocêntrica tomada pelas ciências naturais desde
Galileu impôs um embaraçoso dilema às ciências humanas. Deveriam estas
alcançar resultados significativos a partir de uma posição cientificamente frágil
ou colocar-se em uma posição científica forte, embora obtendo escassos
resultados? Apenas a linguística conseguiu (ao longo deste século) escapar
deste dilema, e assim, se oferecer como modelo de outras disciplinas, que, em
menor ou maior grau, acabam por segui-la. (GINZBURG, 1983, p. 128)

Mas por que apenas o linguista conseguiu escapar do dilema do quantitativo e

alcançar resultados significativos, mesmo em uma posição científica frágil, como a das

ciências humanas? Porque trabalha com a palavra como signo vivo, sensível, espelho

opaco da realidade e do pensamento, refratando e refletindo ideologias no imediato e no

tempo grande; porque encara a palavra como indício, como centelha de conjecturas,
43

como reflexo material de estudos da psicanálise, papel do esquecimento ou da origem da

própria palavra, como arena mínima da luta material e imaterial de classes; porque analisa

textos, como realidade verbal e extraverbal e registro histórico do humano do homem;

porque trabalha no limite da heterocientificidade e não reduz seu objeto a “coisa morta”;

ou porque, como diz (DIAS, 2014):

Toda palavra enquanto signo ideológico é composta tanto por uma parte
verbal quanto por um horizonte extraverbal. Assim, a situação extra verbal não
é uma realidade que atua mecanicamente, enquanto uma força externa e alheia,
sobre a palavra. Porque a palavra é também constituída de situações
extraverbais, o pesquisador precisa compreender elementos do meio social
mais amplo e imediato que parecem constituir a enunciação. Ao contar com
situações extraverbais para compreender o texto, o pesquisador traz,
consequentemente, vários outros textos que compõem esses horizontes sociais
para contrapor ao enunciado.
A compreensão dos enunciados será maior na medida em que o pesquisador
conseguir “ampliar os contextos”, ou seja, fazer emergir “mais vozes do que
aquelas que são evidentes na superfície discursiva” não para encontrar a “fonte
do dizer”, mas para fazer dialogarem textos, “diferentes vozes”, afirma
(Geraldi, 2012, p. 29-33 apud DIAS, 2014). Esse estudioso da linguagem
entende esse passo como o ato do pesquisador em “cotejar textos com outros
textos”. Dar contextos a um texto é, segundo pensador, “cotejá-lo com outros
textos”. Quanto mais “cotejamentos” maior a profundidade de compreensão.
Com isso, o pesquisador retoma alguns nós interpretativos que compõem a
cadeia infinita da comunicação entre enunciados, encontrando “enunciados a
que o texto responde, a que se contrapõe, com que concorda, com quem
polemiza, que vozes estão aí sem que se explicitem porque houve
esquecimento da origem” (GERALDI, 2012, p.33 apud DIAS, 2014, p. 46).

Aí está a noção de metodologia e não, simplesmente, de método que o linguista deve

empregar: pelo cotejamento de textos para ter maior profundidade de compreensão dos

discursos e da realidade (GERALDI, 2012). Por isso nos vale o trabalho do Círculo de

Bakhtin, como indica Geraldi, usado como norte metodológico, pois estudava-se a

linguagem e não apenas a língua (já no início do século XX), o que acaba sendo uma

implicação para os objetivos dos estudos linguísticos:

Que estes estudos tenham um cunho mais filosófico ou sociológico do que


“linguístico” (no sentido deste adjetivo, tomando o substantivo “linguística”
44

como referência) não me parece problemático. Que a estes estudos se


acrescente o adjetivo “linguísticos” porque tem como ponto de partida a
atividade verbal, também é adequado, pois linguístico não é somente aquilo de
que trata a Linguística (se fosse, implicaria dizer que a fala não é linguística,
porque não está na ordem da língua no sentido que lhe dá a Linguística, ao
menos aquela derivada de Saussure). (...) porque reivindicamos que o adjetivo
linguístico não se aplica somente ao que é da ordem da língua, mas também ao
que é da ordem do discurso (...). (GERALDI, 2012, p. 23)

A diferença de método e metodologia se faz nítida na concepção da teoria

dialógica, já que um texto é uma cadeia provisória de um processo ininterrupto na corrente

de comunicação verbal, que necessariamente deve reconhecer a “infinitude” do processo

dialógico e suas interações sociais, “em que todo dizer e todo dito dialogam com o

passado e o futuro, e paradoxalmente deve reconhecer a unicidade e a irrepetibilidade dos

enunciados produzidos em cada diálogo” (GERALDI, 2012, p. 20). Para um pesquisador

assumir esta posição e postura frente à ciência, é preciso correr o risco por um bom

motivo, pois é preciso assumir a posição dialógica que ventila os poros da perspicácia; e

que inclui não definir de antemão os pontos de chegada de uma pesquisa e seus resultados;

que inclui não definir de antemão os limites do objeto; o que inclui não descartar os

“resíduos” e as “sobras”, que desviam do caminho da hipótese original da pesquisa.

Tomar a posição dialógica é abrir-se à realidade com coragem para encarar o

desconhecido (NIETZSCHE, 2014)23, o não-dito, o inimaginável, justamente para

desmascarar o idealismo hipotético do método.

E tratando de linguagem, é possível construir uma metodologia (não um


método) capaz de orientar o pesquisador no emaranhado de complexidades que
a linguagem comporta, evitando descaminhos que podem conduzir ao

23
O “desconhecido” para Nietszche, que se auto-denomina um filósofo trágico, está justamente na condição
da própria filosofia, em estudar o aberto, não o aberto abstrato, mas o inimaginável do grande tempo, o
aberto do tempo da renovação e da utopia. Esta ideia fixa no Devir não é só no filosófo trágico que aparece,
mas em toda a construção do pensamento bakhtiniano. Portanto, “o desconhecido” parece como grande
força motora nos humanistas.
45

tratamento de questões que não lhe dizem respeito (ainda que nada no mundo
humano esteja isolado), assumindo como próprio o que é próprio de outros
campos (por exemplo, usar categorias sociológicas na análise da linguagem
não é fazer sociologia, mas se aproximar da linguagem com ferramentas
fornecidas por outras áreas do conhecimento, o que permite iluminar pontos
escuros, focar algo ainda não visto, etc.). (...) Um método é um conjunto de
princípios de descobertas que, seguidos com rigor, levam a descobertas
surpreendentes. Descartes, seguindo seu método, descobriu coisas
interessantes, mas se outro pesquisador seguir as mesmas regras somente
descobrirá o que Descartes já descobrira: será preciso, para fazer descobertas
surpreendentes, desobedecer ao método metodicamente diante outros objetos
sobre os quais se debruça o pesquisador. Fazer isso é dispor de uma
metodologia: um modo particular, às vezes somente explicável a posteriori na
dialética da exposição, quando se ordenam o que pode ter sido descoberto
desordenadamente. Dispor de uma metodologia é dispor de princípios, que
precisam ser aliados à intrepidez, à astúcia, à argúcia e à perspicácia. Dispor
de um método é ter corrimãos definidos a caminhada para se descobrir o que
previamente se conhecia, sem expor-se ao desconhecido. (GERALDI, 2012, p.
24)

Cabe aqui uma metáfora de Ginzburg (1983) frente ao “desconhecido”, ao novo, ao

irrepetível, em que a origem da argúcia e perspicácia do pesquisador viria dos caçadores

antigos e dos que não perderam o “faro” para analisar a realidade. Os caçadores antigos

tinham uma posição dialógica sobre o pesquisado, pois não sabiam o que viria e nem que

animal estava à espreita de suas cabanas, cavernas, casas. Por isso era preciso astúcia,

intrepidez, coragem e experiências adquiridas com o convívio e as tradições orais. O

pesquisador deve assumir a mesma postura dialógica para com a caça, para o que busca,

para o que imagina e o que nem foi capaz de imaginar ainda, pois o novo e desconhecido

podem modificar os modos futuros de ação. Caçadores buscam rastros, pesquisadores

buscam marcas discursivas; caçadores buscam “pegadas na terra úmida, estalitos de

galhos, estercos, penas e tufos de pelos, odores, marcas na lama, filetes de saliva” (os

grifos são meus), pesquisadores buscam neologismos, paralelismo linguísticos, figuras de

linguagem, indícios de materialismo histórico na carga semântica das palavras, fagulhas

de uma iminente luta de classes, ideologias em disputa e as mais sutis e ínfimas metáforas
46

das transformações sociais que ainda não tiveram tempo de se revelar. Ambos, caçador e

pesquisador devem ter “faro”.

Por milhares de anos, a humanidade viveu de caça. No curso de infindáveis


perseguições, os caçadores aprenderam a reconstruir a aparência e os
movimentos de seus alvos esquivos a partir de seus rastros. (...) Aprenderam a
cheirar, a observar, a dar sentido e contexto ao traço mais sutil. Aprenderam a
realizar maquinações complexas em átimos de segundo, em florestas cerradas
ou perigosas clareiras.
Sucessivas gerações de caçadores ampliaram e passaram adiante essa
herança de conhecimentos. Não temos nela nenhuma evidência verbal que
possa ser acreditada ao artefatos e pinturas encontradas nas cavernas, mas
podemos talvez nos apoiar nas lendas populares que, de certo modo,
repercutem o eco – fantasiado ou distorcido – daquilo que aqueles remotos
caçadores já sabiam. (...) Seus traços característicos são o de permitir saltar de
fatos aparentemente insignificantes, que podem ser observados, para uma
realidade complexa, a qual, pelo menos diretamente, não é dada à observação.
E esses fatos podem ser ordenados pelo observador de modo a proporcionar
uma sequência narrativa. (...) O caçador pode ter sido o primeiro a “contar uma
história” porque apenas caçadores sabiam como interpretar uma sequência
coerente de eventos a partir de obscuros (e quase imperceptíveis) sinais
deixados pela presa. Essa “decifração” e “leitura” dos traços animais é
metafórica. (GINZBURG, 1983, p. 99 -100)

O polo metonímico – da parte pelo todo – não pode excluir o polo metafórico – do

conceber o todo por traços abstratos de rastros e indícios. A posição dialógica de um

pesquisador pede a inclusão da metonímia, para analisar a parte, e pede o diálogo com a

metáfora, para conjecturar sobre o todo. Pois quem estuda a linguagem não está

interessado, somente, em “recortes” dos discursos, mas no emaranhado que é um

enunciado completo, total, para cotejá-lo com outros enunciados fazendo emergirem

mais vozes para uma penetração mais profunda no discurso, sem silenciar a voz que fala

em benefício de um já dito que se repete constantemente. O aprofundamento do

empreendimento interpretativo resulta da ampliação do contexto, fazendo emergirem

mais vozes do que aquelas que são evidentes na superfície discursiva, por isso o papel

central tanto da metonímia quanto da metáfora. Pois como diria Geraldi (2012): “o

múltiplo como necessário à compreensão do enunciado, em si único e irrepetível. A


47

unicidade se deixa penetrar pela multiplicidade. Cotejar textos é a única forma de

desvendar os sentidos”.

Vamos a Bakhtin:

Desmembramento da compreensão em atos particulares. Na compreensão


efetiva, real e concreta, eles se fundem indissoluvelmente em um processo
único de compreensão, porém cada ato particular tem uma autonomia
semântica (de conteúdo) ideal e pode ser destacado do ato empírico concreto.
1) A percepção psicofisiológica do signo físico (palavra, cor, forma espacial).
2) Seu reconhecimento (como conhecido ou desconhecido). A compreensão de
seu significado reproduzível (geral) na língua. 3) A compreensão de seu
significado em dado contexto (mais próxima e mais distante). 4) A
compreensão ativo-dialógica (discussão-concordância). A inserção no
contexto dialógico. O elemento valorativo na compreensão e seu grau de
profundidade e de universalidade. (BAKHTIN, 2011, p. 398)

Como não há análise do discurso sem o discurso, pois um estudo bakhtiniano

precisa de um objeto empírico presente como a materialidade dos textos do jornal a Folha

de S. Paulo (de março de 2013 a novembro de 2014) sob o tema do programa “Mais

Médicos” e o discurso da presidente Dilma Rousseff sobre o mesmo e referido programa,

no dia 22 de outubro de 2013 (vale ressaltar, aqui, que o discurso da presidente não foi

de nenhuma forma publicado no jornal a Folha de São Paulo). Por isso são a fonte de

pesquisa, o objeto empírico e de percepção psicofisiológica do signo físico - “Saúde” -,

enquanto enunciado, materialidade verbal (1).

O reconhecimento de um signo e seu significado precisam estar inseridos no

processo de interação para seu reconhecimento, que exige um conhecimento prévio ou

mesmo um desconhecimento. Na tensão entre estes dois há a importância da língua, como

lugar construído por interações entre “palavras alheias” e “palavras próprias” (PONZIO,

2010) até que se reestabeleça ou se esqueça a origem da palavra, por apropriação na fala

de quem toma a palavra. As palavras só são reconhecidas pelo uso da abstração dos

falantes, que colocam a palavra como conhecida, desconhecida ou reconhecida. Este

reconhecimento depende, por exemplo, como a palavra “Saúde” está sendo empregada
48

na cultura da sociedade contemporânea. Para fazer seu reconhecimento é preciso analisar

as fontes de seu esquecimento e os indícios da forma como é empregada no sentido de

“Qualidade de Vida”; ou em um desafio maior, como se faz o reconhecimento do termo

biopsicossocialdiscursivo dentro de uma dinâmica de discursos de humanização da saúde

e do programa “Mais Médicos” (2).

Liga-se ao segundo ponto (2) o terceiro (3), pois o significado depende de sua

compreensão em um determinado contexto, em um território preciso, mais próximo com

as discussões sobre o trato médico no jornal Folha de S. Paulo ou em um mais distante

que busca as origens da formação médica dentro da História, desde Hipócrates (século V

a.C) até as concepções de medicina que estão nos discursos da presidente Dilma Rousseff,

sancionando a lei do programa “Mais Médicos”, em 22 de outubro de 2013. Portanto é

preciso uma contextualização do enunciado, pois é essencial já que ela é capaz de refletir

a realidade extraverbal do próprio enunciado. Como se o verbal atingisse o real, mas isso

só é possível pelo cotejamento de textos e suas tensões com o contexto (3).

O último ponto de uma metodologia, segundo preceitos de Bakhtin (2011), se dá

pela compreensão ativo-dialógica que é a formuladora da contrapalavra, pois vive dessa

autonomia reflexiva sobre o dado, gerando o criado; que implica na não submissão à

palavra do outro, necessária à compreensão e à análise. Por exemplo, as ocorrências de

uma prática de saúde biopolítica estão em constante tensão com as concepções de saúde

biopsicossociológica, o que acaba gerando a interpretação da contrapalavra desta tese, de

que a aproximação entre ciências médicas e ciências humanas só se dá efetivamente pelo

conceito de “Qualidade de Vida” ou pelo conceito de biopsicossocialdiscursivo24. Ou

24
Biopolítica, na concepção de Foucault, parte das análises genealógicas que se complementam com o
mapeamento do poder disciplinar e, em seguida, com o biopoder. Para Foucault, a constituição do Estado
49

seja, o juízo de valor de uma pesquisa aparece ao ponto que a atividade dialógica pensa e

repensa os valores na compreensão e seu grau de profundidade na percepção

psicofisiológica do signo (1), em seu reconhecimento enquanto sentido ideológico (2),

compreensão do significado em um contexto preciso e histórico e social (3) e por fim,

pela sua capacidade geradora de dialogia.

Ao selecionar texto da Folha de São Paulo, das setecentas e oitenta e três (783)

ocorrências, no período de vinte (20) meses, o que ficou mais evidente foi justamente a

briga ideológica em torno Programa “Mais Médicos”, porém para fazer a análise o

cotejamento, preferi selecionar textos dispersos, de forma quase aleatória, justamente

para buscar neles o que mais se evidenciava: a realidade discursiva, oculta ou às claras.

Não há critério nenhum na seleção dos textos, pois a busca seria por ver o que a mídia

diz, não em quantidade, mas em temas, modos e chamadas para o assunto em torno das

disputas de um signo ideológico como “Saúde”. Foi nesta forma aleatória que encontrei

a obviedade de que o signo “Saúde” tornara-se ideológico nas mãos de uma disputa de

classes, ficou nítido que muito mais que, simplesmente, “Qualidade de vida” estão em

disputa as forças de poder político, principalmente exercido pela grande mídia brasileira,

espelhada na Folha de São Paulo. A razão de retirar os textos da Folha está justamente

por ela representar de forma tácita a democracia de discursos na grande mídia brasileira,

mas o que há na realidade é claro uso nas mídias em prol do poder econômico. A Folha

moderno, com a gênese e o desenvolvimento das novas relações de produção capitalistas, leva à instauração
da anátomo-política disciplinar e da biopolítica normativa enquanto procedimentos institucionais de
modelagem do indivíduo e de gestão da coletividade; em outras palavras, de formatação do indivíduo e de
administração da população. Podendo assim, ser o conceito de “Qualidade de Vida” um dispositivo
discursivo biopolítico de opressão do Homem, ou um instrumento de normatização do Humano do Homem,
o qual o biopsicossocialdiscursivo tenta criar uma tensão e negar ao ponto de garantir não uma simples
normatização, mas uma singularização da saúde de cada indivíduo.
50

de São Paulo exerce o jogo sujo do quarto poder, o poder ideológico, para manutenção da

Status Quo. Os chamados “barões da mídia” estão profundamente atrelados aos “barões”

do poder de outrora, o que coloca em xeque o papel da mídia oficial, que é a do governo,

frente a grande mídia, que é a privada e conduz-se a um interesse de classes25.

Em meio a tudo isso, nota-se que há uma força humanizadora das ciências

conjecturais (GINZBURG, 1983) na obra de Bakhtin, porém o teórico russo não defendeu

nenhuma tese (a da humanística, por exemplo, porque não tinha a pretensão de fazer um

método científico a ser seguido) claramente em qualquer volume de sua obra já publicada.

Contudo, vejo, aqui, uma tese voraz, iminente, passível e detectável em seus estudos e

meus objetivos caminham ao encontro dela, embora seja o Humanismo ético mais

importante, que a humanística como ciência26:

1) Analisar, de forma geral, o trabalho de profissionais da saúde, em especial

daqueles que estão humanizando (talvez como face biopolítica de controle) o trato clínico

assistencial da área, buscando um diálogo comprobatório da relação entre o eixo histórico

25
“Pela primeira vez, os que estão no governo não são os mesmos que dominam os meios de comunicação
e por isso há informação sobre corrupção. Pela primeira vez, os corruptores estão pagando. Antes, só alguns
intermediários eram acusados de corrupção” disse em entrevista o fotógrafo brasileiro, mundialmente
reconhecido por suas fotografias em que busca revelar os modos de vida e da dignidade dos homens, mesmo
que esta falte em muitos casos, Sebastião Salgado sobre o momento de vasta divulgação de corrupção pelas
grandes mídias, as quais estão profundamente envolvidas em esquemas ilícitos.
(http://www.revistaforum.com.br/blog/2015/03/sebastiao-salgado-pela-1a-vez-os-que-estao-no-governo-
nao-sao-os-mesmos-que-dominam-os-meios-de-comunicacao/) – Acessado em 04 de abril de 2015.
26
Ao concluir da tese ficou nítido como a minha caça foi toda centrada na Humanística. Imaginava eu
encontrar uma espécie bem definida e bem acabada de método, mas não foi o que encontrei, pois a ética
humana de grandes pensadores, como Bakhtin, não se limita em destacar um método, uma ciência, uma
linha filosófica, mas em colocar à prova o próprio humano do Homem, seu ego, seu individualismo, sua
cegueira teórica e seu mal índice de leitura da realidade, quando não consegue ver que há o lúdico, a poesia,
a sensibilidade, o trágico, a flama, o sangue, além do suor, da iluminação e da lógica. Caçei a Humanística,
mas, ao final, encontrei o Humanismo. Ficou a tese ao prazer do inacabado, ou como parte do que dois
olhos são capazes de ler da realidade, pelo limite, pela impotência e pela humanidade digna de aceitar os
limites que só outros olhos são capazes de dar ao nosso olhar.
51

filosófico (rompendo o método galileano) com o eixo cotidiano e prático das ações na

Saúde no Brasil (como o programa “Mais Médicos”).

2) Ler e comentar os discursos que estão na formação dos profissionais da saúde,

como o médico e, também novas profissões no século XX, que é o trabalho do terapeuta

ocupacional ou do psicólogo, por exemplo. Avaliar como os profissionais da área são

capazes de reunir as forças centrífugas e centrípetas (convergentes e divergentes) de um

humanismo filosófico nascente captado pelos discursos e textos na grande mídia sobre a

temática do programa “Mais Médicos”, que envolvam o tema e envolvam práticas que

usufruem da Humanização da Saúde como escolha teórico-prática.

A partir das análises dos pontos 1 e 2 acima, abre-se a necessidade de discutir a

ideia de que há um humanismo salutar refletido no trabalho, por exemplo, do terapeuta

ocupacional27, ou de outros profissionais, que pode indicar caminhos para uma ciência

que aborda com mais eficácia as relações humanas materialistas sócio interacionistas:

pois observa o ser humano em suas fragilidades/potencialidades (velhice, adolescência,

27
A profissão Terapia Ocupacional surge, oficialmente, em 1917 com a fundação da Sociedade
Nacional para a Promoção da Terapia Ocupacional (National Society for Promotion of Occupational
Therapy – NSPOT) que foi, posteriormente, renomeada para Associação Americana de Terapia
Ocupacional (American Occupational Therapy Association – AOTA). O contexto do seu nascimento é
marcado pela guerra e pelo fato de as mulheres assumirem novos papéis dentro da sociedade. A idéia de
criar uma profissão ligada à reabilitação (naquele momento muito atrelado ao feminino) visava “expandir
o contingente de trabalho em tempos de escassez de mão-de-obra e, simultaneamente, aplacar a pressão
crescente das mulheres para serem incluídas nos esforços de guerra” (Vogel, 2002). É importante ressaltar
que a profissão nasce atrelada à idéia de que era necessária a criação de um profissional que oferecesse
formas de ocupação aos convalescentes e a desse aos pacientes o benefício terapêutico da atividade
(HAMLIN apud VOGEL, 2002). Nasce uma profissão que acredita que a ocupação é algo inerente à
natureza humana e que poder estar ativo traz benefícios terapêuticos. Defino, portanto, que a Terapia
Ocupacional é a profissão da área da saúde que se ocupa do fazer humano. Quando digo profissão, defino
que é um campo de atuação e de produção de conhecimento e não uma técnica; quando digo área da saúde,
considero a saúde vista de maneira integral, inclusive nos aspectos que se interseccionam com a educação
e com a chamada área social; quando digo fazer humano, refiro-me a todo tipo de construção objetiva e
relacional que o homem faz durante sua história de vida. A partir desta definição, entende-se que a Terapia
Ocupacional tem como ponto estrutural o que chamamos de “fazer humano”, e que este ponto norteia nossas
ações para a compreensão de que a inserção social deste homem se dá através do fazer (potencialidade
funcional e relacional).
52

doenças, traumas, erros e transições) em relação dialógica com exaustivo modelo

tecnocrata (juventude, escolhas eficientes, saúde, supressões e acertos), como traços

biopolíticos.

Já notamos que a arquitetônica do Círculo de Bakhtin (2009 e 2011) é a base

metodológica, assim como o paradigma indiciário de GINZBURG (1983) e a teoria do

cotejamento de GERALDI (2012) para este estudo, sendo os conceitos de dialogia, de

cronotopia e de alteridade imprescindíveis para a estabilização do estudo, pois são

motivados e motivadores pelo olhar de contraste a que um pensador de cultura deve ter.

Sendo que as bases metodológicas devem passar por três tópicos bakhtinianos: “não

separar a ideologia da realidade material do signo (colocando-a no campo da

‘consciência’ ou qualquer outra esfera fugidia e indefinível.” (BAKHTIN, 2009, p. 44).

Dessa forma, importa realmente construir uma leitura histórica da sociedade nos

seus aspectos mais amplos – que seja em dois recortes, citados anteriormente na

apresentação: um vertical, que observe o histórico e ressuscitável – o tempo grande; e

outro horizontal, a pequena temporalidade, que analise o trabalho prático e cotidiano dos

discursos sobre o programa “Mais Médicos” em uma grande mídia brasileira. Pois uma

vez que a base material esteja implantada no grupo organizado é que vamos nos

encarregar de ditar os caminhos possíveis de instalação dos signos, enquanto material

concreto de elaboração do humano do homem e de sua consciência: “não dissociar o signo

das formas concretas da comunicação social organizada entendendo-se que o signo faz

parte de um sistema de comunicação social organizada e que não tem existência fora desse

sistema, a não ser como objeto físico”. (BAKHTIN, 2009, p. 44).

Porém vale ressaltar que surgiu, então, uma necessidade de afunilar a leitura da

realidade para um conjunto comunicativo, como discursos indiciários de Humanização


53

da área da saúde e o Programa “Mais Médicos”, entre os meses de março de 2013 a

novembro de 2014, em seus fatos discursivos, justamente para escolher os indícios.

Pois bem, somente em um período estabelecido em um território preciso e


em um grupo socialmente organizado, em que, girando a vida material em
torno de construtos simbólicos específicos e estabelecendo relação
comunicativa mais direta e eficiente pode-se produzir material ideológico e
dessa forma constituir subjetividades bem definidas discursivamente. Circula
um discurso formador desse grupo social e ele recebe sua energia ideológica
da realidade material, ventilando-a na sociedade pelas relações comunicativas
estabelecidas. (MIOTELLO, 2001, p. 26)

E como terceira regra metodológica: “Não dissociar a comunicação e suas formas

de sua base material (infraestrutura).” (BAKHTIN, 2009, p. 44)

Nesse caso, se há um discurso hegemônico circulante, é preciso buscar sua


‘força espiritual’, no dizer de Marx, na infraestrutura daquela sociedade, no
modo como ela estabelece sua produção material, e não nas vontades
subjetivas ou nas construções dadas ao acaso. Esses discursos são captados,
incensados, festejados e ampliados pelos meios midiáticos, que se encarregam
não só em divulgar notícias e instalar consumo, mas modelizam e constituem
acontecimentos e subjetividades.” (MIOTELLO, 2001, p. 27)

Uma análise dos discursos de humanização e textos que circularam pela grande

mídia (no nosso caso a Folha de S. Paulo) sobre temas relevantes de saúde e formação

médica no Brasil, será ponto de partida para se entender os acontecimentos e indícios de

mudanças ocorridas e ocorrentes na linguagem, mas que também podem revelar o que o

tempo grande esconde. Fica proposto, portanto, discutir como os discursos heterogêneos,

divergentes e convergentes da humanização se interpenetram e são constitutivos um do

outro no jogo social na construção de uma ciência mais humana, de uma possível chamada

para a Humanística bakhtiniana, já que é ela que estamos à caça.

Por ser a realidade é realmente opaca, mas o que nos permite decifrá-la é o olhar

arguto, como o de Bakhtin, Geraldi e Ginzburg, que olham paras os indícios como pistas

verbais, rastros ideológicos, sintomas enunciativos de uma sociedade que está em


54

movimento ao “desconhecido” ou, simplesmente, como indica esta tese, está rumo a uma

Humanística bakhtiniana (se quisermos pensar em um método científico), a que Ponzio

(2008) chamou mais precisa e amplamente de Humanismo da Alteridade (o que é mais

amplo, pois trabalha uma ética e não um método), em que a escuta da palavra outra é o

caminho para levar à humanização, que luta pela alteridade.

Agucemos o “faro”. Vamos aos indícios da trilha humanística e de um humanismo!


55

CAPÍTULO PRIMEIRO – O HOMEM

"Eu queria aprofundar o que


não sei, como fazem os
cientistas, mas só na área dos
encantamentos."

[Manoel de Barros]
56

1 CAPÍTULO PRIMEIRO - O HOMEM

1.1 BAKHTIN E UMA CONCEPÇÃO DE HUMANISMO

“Não somos aparelhos de


objetificar e registrar de entranhas
congeladas, temos que
continuamente parir nossos
pensamentos em meio à nossa dor,
dando-lhes maternalmente todo o
sangue, coração, fogo, prazer,
paixão, tormento, consciência,
destino e fatalidade que há em nosso
viver. Viver isto significa para nós
transformar continuamente em luz e
flama tudo o que somos e também o
que nos atinge. Não podemos agir
de outro modo.”
[NIETZSCHE]

Nada de grande advém do que não é verdadeiro, disse Tzvetan Todorov e isto se aplica

a toda filosofia de pensamento bakhtiniano. Mikhail Bakhtin (1895 - 1975) não só

contribuiu para uma reelaboração do pensar linguístico, mas também para um refletir

científico e filosófico fecundo e humanizador. Fez-nos, com isso, pensar o tempo todo o

humano do Homem28. Fez o Homem centro dialógico das Ciências. Trouxe-nos à luz a

conceituação da dialogia, do excedente de visão, da memória de futuro, da cronotopia e,

28
O teórico que melhor trabalhou o conceito é Edgar Morin, ao deixar claro que a ideia de se atribuir ao
gênero homo a forma de sapiens não foi pouco sábia e ética. Pois ser Homo implica ser demens: em
manifestar uma afetividade extrema, convulsiva, com paixões, cóleras, gritos, mudanças brutais de humor,
em carregar consigo uma fonte permanente de delírio, de loucura que é a fonte desmedida da criação. Sem
a desrazão o homem é objeto mecânico e não humano. Por isso, quando enuncio humano do Homem, estou
falando com Morin (1997), sobre a definição dele de Homo sapiens-demens e muito com Nietzsche e sua
filosofia trágica, que diz que a flama, a vontade, o fogo das paixões também são objetos das ciências, e
negar isso é relegar às ciências humanas apenas o caráter mecanicista. É como se o sério apaga-se o riso. É
como se a rigidez apaga-se a liberdade. É como se o siso apaga-se o lúdico. Não definir o Homem, portanto,
é importante para continuarmos buscando as melhores formas de dar dignidade a cada ser. Defini-lo seria
um regresso anterior ao que conceituou Nietzsche e seria ficar abaixo do que conceitua Morin.
57

em especial, para esta tese, a palavra como signo ideológico. Por isso, entender a

língua/linguagem como o mais sensível instrumento humano de manifestação histórica,

tornou-se um dos pilares filosóficos mais revigorantes e salutares para a própria ciência,

e Bakhtin ainda nos leva além, já que é pela língua que a singularidade se manifesta mais

sensivelmente e por ela que as ideologias dialogam:

As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e


servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É, portanto,
claro que a palavra será o indicador mais sensível de todas as transformações
sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram
forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados
e bem formados. A palavra constitui o meio no qual se produzem lentas
acumulações quantitativas de mudanças que ainda não tiveram tempo de
adquirir uma nova qualidade ideológica, que ainda não tiveram tempo de
engendrar uma forma ideológica nova e acabada. A palavra é capaz de registrar
fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais.
(BAKHTIN, 2009, p. 43)

O aquém-científico estruturalista e normativo (galileano, tão criticado por

GINZBURG, 1983) moveu-se com os conceitos bakhtinianos, a palavra tornou-se viva e

ganhou matizes outrora inimagináveis se comparadas às conceituações monocromáticas

e assujeitadoras da linguística do século XX até meados da década de 70. As contribuições

de Michel Foucault (1984) foram cruciais, promotoras e de uma importância visceral para

a montagem daquilo que hoje chamamos com sabor “ciência da linguagem”, mas

também, o além-científico está muito associado ao que faremos como pesquisadores e

herdeiros dessas contribuições foucaultianas e, principalmente, para esta tese, com a

fecundidade do pensamento de Mikhail Bakhtin. Como demonstra minuciosamente

Foucault (2000, p. 45), o homem é uma invenção recente, isto é, seu status de ser pensante

desenvolveu-se por volta do século XIX. E é deste primeiro ponto de definição do

“homem recente”, em Foucault, que vamos partir para entender a concepção de

humanística bakhtiniana.
58

Esse homem, recente, que pensa sobre si mesmo surge quando a cultura ocidental

permitiu pensar o finito a partir do próprio homem. “O homem surge na biologia, na

economia política e na filologia como invenção recente desses saberes, não estando,

portanto, mais no final de um ciclo ordenado como o modelo último e perfeito” (Ibidem).

Não obstante, ele é dado à experiência, e é pensado como um objeto a ser descoberto e

desvendado, como um objeto que tem um corpo físico com estrutura e funcionamento

que devem ser explorados. A linguagem fará parte dessa busca por entender qual homem

é esse, que se constitui também pela fala. Enquanto um ser que trabalha produzindo

capital, as condições econômicas, sociais, políticas, jurídicas e biológicas, que circulam

nesse espaço serão pensadas como constitutivas dele próprio.

O além-científico passa pelo fio bambo de um humanismo iminente, captado pelas

antenas afloradas da linguística e de um estudo de seu indicador mais sensível: a palavra

como signo ideológico. Se há uma ciência capaz de abordar o iminente e a memória de

futuro29, ela é a Análise do Discurso marxista materialista histórico, a linguística

bakhtiniana.

O que vem causando uma crise científica são as nuances de uma fantasmagoria

humanista (talvez iniciada por Nietzsche, em “Para Além do Bem e do Mal”, escrito entre

1885 e 1886), que encontra em teóricos dos últimos três séculos razões para existir em

dois eixos (pensando em um contexto mais amplo, em um grande tempo, dividido em

dois eixos), lidos nesta tese, assim: em um discurso de humanização da área da saúde30;

29
Análise dos Discursos (no plural, como cobra GERALDI, 2012), pelo cotejamento, pode ser mais
humana e aberta aos jogos discursivos em disputa a cada uso do signo verbal. É pela capacidade de
ubiquidade social da palavra que ela se torna mais neutra, e podendo desempenhar o personagem no papel
de “indicador social mais sensível” pronto para aflorar nossa memória, seja de passado, presente e futuro.
30
O Discurso de Humanização nas ciências médicas vem ganhando terreno e a cada dia e a cada fato
discursivo mais vemos uma preocupação com o trato médico (clínico assistencial) e os profissionais de
saúde com o tema no Brasil, seguindo uma tendência que aparece ser de escala mundial. “Humanização na
59

e em uma reflexão filosófica contemporânea31; o primeiro, em um horizontal-cotidiano

(da pequena temporalidade); e o segundo, em um vertical-histórico (do grande tempo).

No primeiro eixo, analisar os discursos constituintes da humanização que envolvem a

área da saúde no Brasil, em especial o Programa “Mais Médicos” como parte de um

processo em voga. E pelo segundo eixo, discutir a quebra no século XX do puro

racionalismo-científico dos séculos anteriores (do século XVI galileano ao XX

einsteiniano) como ponto de partida para perspectivas latentes da filosofia da linguagem

humanística que já influencia a prática clínica - assistencial em nossos tempos, e para o

homem biopsicossocialdiscursivo baseado, aqui, principalmente em Bakhtin32. São duas

área de saúde compara-se talvez em termos de grandeza a água potável para o planeta. (...) A medicina
vem sofrendo avanços importantíssimos ao longo das décadas, principalmente nas últimas, os profissionais
estão cada vez mais qualificados do ponto de vista técnica e a tecnologia vem avançando cada vez mais
em benefícios do diagnóstico mais preciso e rápido. Porém, estes mesmos profissionais, de modo geral, do
ponto de vista humano se afastaram por demais dos pacientes, o que favorece a abertura de uma lacuna
imensa na relação profissional da saúde-paciente. (...) Até mesmo nos próprios Hospitais de ensino onde
esta arte deveria ser ensinada, a relação humana ainda está muito distante de onde deveria estar. Chamar
o paciente pelo nome e não pelo número do seu leito ou pela sua doença, conhecer seus familiares e suas
condições de vida, informar como está sua vida após a alta, fazer com que o paciente saiba qual é sua
doença e como ela evoluirá, são atitudes, entre outras, que precisamos resgatar.” (Fagundes Neto, Ulysses
e Ferrano, José Roberto. Prefácio. In: A Face Humana da Medicina – do modelo biomédico ao modelo
biopsicossocial/Mario Alfredo De Marco (org.). São Paulo: Casa do psicólogo, 2003.) Há que se refletir a
partir desta citação se o modo discursivo de chamar o “paciente” por “paciente” já não é um ato
desumanizador?! Uma revolução bakhtiniana para as ciências da saúde requer maior empenho e atenção
aos traços individuais que englobam a “integralidade” do ser humano. Por exemplo, o simples fato
discursivo de chamar o doente pelo nome, já o individualiza e humaniza a relação médica e doente. Ainda
mais, para Bakhtin não há sujeito paciente, mesmo que em silêncio, o sujeito sempre está em uma atividade
responsiva, sempre a construir compreensão e respostas às compreensões. Há estudos comprovados de
indivíduos que saíram do coma e lembram-se de conversas e relações afetuosas durante o coma (exemplo
dado pelo filme “Fale com ela”, de Pedro Almodóvar. Espanha, 2002) . Isto é um forte sintoma de que o
indivíduo está em contínua responsividade ativa.
31
Podemos apontar alguns nomes, como: Jacques Rancière é um filósofo ligado à filosofia política
instigante, por produzir as teorias do Dissenso e do Desentendimento; Edgar Morin, como pensador ilustra
uma inusitada denominação para o homem contemporâneo, a do Homo sapiens-demens; Michel Foucault,
ao rediscutir as relações de poder, o biopoder e seu revitalizador ensaio sobre a História da Loucura na
idade clássica; Ludwig Wittgenstein, por pensar a ética como resultante das relações de linguagem;
Benedetto Saraceno, por divulgar a reabilitação psicossocial, que humanizou a atenção ao doente mental;
Emerson Merhy, por suas discussões sobre o trabalho (o cuidado) e o trabalhador (o cuidador) do SUS;
C. Dejours, por desenvolver a psicodinâmica do trabalho.
32
Bakhtin não teoriza sobre o pensamento médico e prática médica, porém sua filosofia da linguagem vai
direto ao ponto nevrálgico: o humano e os modos como o homem se manifesta pelo signo verbal de forma
dialógica. Segundo Augusto Ponzio (1998), o pensamento bakhtiniano é revolucionário por inserir no
60

linhas, duas cronotopias, que servem para colocar em embate intenso e voraz: 1) o

humanismo (subjetivista) e; 2) o tecnicismo (objetivista abstrato). O que há de relação

entre os dois?

A crise científica de hoje, iniciada no final do século XIX (GINZBURG, 1983)33,

apresenta-se como um declínio da racionalidade (a qual falaremos no Capítulo Segundo,

sobre o CRONOTOPO atual das ciências) que abre caminhos para o jogo dialógico, entre

as infinitas possibilidades de manifestação tecnicista e as variadas formas de

comunicação em cada cronotopo da sociedade neoliberal, indo da periferia das grandes

cidades excludentes, passando pelos novos modos de vida dos emergentes, chegando à

escassez irônica de recursos de luxo para “os mais que ricos”, herdeiros que ganham mais

mundo a compreensão teórica com bases em um “Humanismo da Alteridade”, que valoriza a alteridade, a
diferença, o fazer através da partilha do sensível (Rancière). Vejo influências de outros teóricos na
concepção e construção deste “Homem Biopsicossocialdiscursivo” que defendo como um fruto da
revolução bakhtiniana, como Foucault, Nietzsche, Freud, Derrida, e até no físico Albert Einstein. “Se
Newton enxergou tão longe porque subiu nos ombros de gigantes, Einstein não fez diferente, nutriu-se da
física de Kepler e Newton para superá-los. Sendo esta última, a física newtoniana, a que terá sido o
principal obstáculo para a desconstrução teórica do século XX: o obstáculo do mito da racionalidade;
pois a física newtoniana esteve desde o início vinculada à ascensão da racionalidade, já que nos séculos
XVII e XVIII o pensamento empírico concebia o global como uma perfeita máquina mecânica, totalmente
explicada por matemática exata. R. Descartes no campo da filosofia transparece este espírito racionalista
através do método do pensamento analítico. Quando surgem no século XX a teoria da relatividade de
Einstein e a teoria quântica com Heisenberg o global ganha valores relativos e probabilísticos. Atomiza-
se as relações a critérios cronotópicos, de tempo e espaço, e de escalas subatômicas, de interconexões que
não podem ser entendidas isoladamente, dependendo assim das interações e jogos sociais como processo
de existência e funcionamento. Por isso A. Einstein, ao lado de Nietzsche, Bakhtin, Derrida, Foucault e
Morin, também contribui para o declínio da racionalidade.” (OLIVEIRA, 2006, p. 78)
33
Abrem-se aqui algumas questões: alguns dizem que a crise da razão começa, para Husserl, por exemplo,
quase que concomitante ao seu nascimento moderno. O positivismo como a crise da ciência e da cultura,
pois segundo ele a ciência é fundamentada no mundo da vida. Ao se distanciar do mundo da vida inicia sua
decadência. Husserl denuncia a crise da civilização desde Descartes, interpretando-a. Como uma crise das
ciências europeias. Critica o método cartesiano e seu maior inimigo é o positivismo. Situa essa crise não
nos fundamentos teoréticos, mas no fracasso das ciências na compreensão do “homem”. A origem da crise
é a convicção de que ―a verdade do mundo apenas se encontra no que é enunciável no sistema de
proposições da ciência objetiva, ou seja, no objetivismo. O Objetivismo, diz Husserl, coloca de lado as
questões decisivas para uma autêntica humanidade. Com isso a ciência perde importância para a vida e o
mundo! (SILVESTRI, 2014)
61

sendo herdeiros do que indo ao mercado em busca do trabalho assalariado34. A crise

científica afeta não só o modo de pensar o mundo, mas também o modo de viver no

mundo. A análise do discurso é sociológica, além de psicanalítica, por ser o habitat do

estudo do signo ideológico por excelência - da palavra. Esquecer os jogos de poder e os

embates de classes sociais no interior de cada signo ideológico é manter a ciência afastada

da crise35. Manter a crise distante da ciência é papel de uma linguística preocupada com

a estabilidade técnica e assujeitadora, ou seja, é fazer da linguística uma ciência apenas

estruturalista, como se fosse ela a “verdade”.

Como poderia algo nascer de seu oposto? Por exemplo, a verdade, do erro?
Ou a vontade de verdade, da vontade do engano? Ou a ação não egoísta, do
egoísmo? Ou a pura, solar contemplação do sábio, da concupiscência? Tal
gênese é impossível: quem sonha com ela é um parvo, e mesmo pior que isso:
as coisas de supremo valor têm de ter uma outra origem, uma origem própria
– desse mundo perecível, aliciante, enganoso, mesquinho, desse emaranhado
de ilusão e apetite, é impossível deduzi-las! Pelo contrário, é no seio do ser, no
imperecível, no Deus escondido, na ‘coisa em si’ – é ali que tem de estar seu
fundamento, ou em nenhuma outra parte!” – Esse modo de julgar constitui o
típico preconceito pelo qual se reconhecem os metafísicos de todos os tempos;
esse modo de estimativas de valor está por trás de todas as suas proceduras
lógicas; a partir dessa sua “crença”, eles se atarefaram em torno de seu “saber”,
em torno de algo que, no final, é solenemente batizado como “verdade”.
(NIETZSCHE, 2014, p. 302)

34
PIKETTY, Thomas. O Capital no Século XXI/ Thomas Piketty; tradução Monica Baumgarten de Bolle.
– 1. ed. – Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.
35
Há estudos sobre a Determinação Social da Saúde muito avançados, nas últimas décadas, que fazem a
análise dos diferentes tratamentos dentro da área médica para as distintas classes sociais. Revelam os
estudos que a natureza da política ainda é de luta de classes, afetando as relações sociais. A saúde depende
do acesso ao produto da civilização e esse acesso se dá para cada grupo, de diferentes formas, na
dependência de como se organiza a vida em cada sociedade. Essa é a essência da idéia da determinação
social da saúde e da doença: a forma como se organiza produção da vida em sociedade determina diferentes
formas de viver, adoecer e morrer, para os diferentes grupos sociais. Há uma luta, portanto, em torno do
capital pelo acesso a saúde e é ele que determina o acesso à saúde. O litígio está armado: entre o Humanismo
e o Capitalismo. E esta é uma crise que precisa ser enfrentada.
62

A crítica de Nietzsche ao racionalismo não fora lida devidamente e em tempo, no

final do século XIX, pois as teorias racionalistas, objetivistas e estruturalistas do século

XX tentaram afastar, pelo o que a história registrou, por puro preconceito, quaisquer

manifestações humanistas, ou inexatas, das ciências naturais, técnicas e médicas, por isso

durante um bom tempo o mundo científico pautou-se na monstruosidade de elidir das

criações humanas o seu centro criador: a própria racionalidade sensível da humanidade.

Rancière (1996) surge aí com um ponto de vista polêmico, já que sua teoria em torno do

conceito de Dissenso causa um desconforto latente sobre os rumos da história. Porém,

Rancière em sua filosofia política do dissenso é extremamente frutífero para olhar o

mundo e des-inventarmos o mito do homem biofísico e do homem reduzido às leis do

reino inanimado e mecânico. O fantasma do humanismo, aparente em discursos de

humanização na área da saúde, que ronda a atualidade abre diálogos com a teoria de

Rancière (1996 e 1999).

“O consenso é a supressão da política” (RANCIÈRE, 1996, p. 379). Sendo assim,

o dissenso é a verdadeira natureza da política, pois faz viver o antagonismo social, o

conflito de opiniões e a multiplicidade de culturas valorizando a diferença e o embate. O

dissenso é a divisão no núcleo do mundo sensível que institui a política e sua

racionalidade própria. É a divisão do mundo sensível em seu núcleo racional. Levando

Rancière à seguinte hipótese: a racionalidade política é a de um mundo tornado comum

pela própria divisão, embora para Bakhtin é totalmente possível o pressuposto da tensão.

Nota-se a referência a um novo pensamento humanista (um espectro marxista) se

movendo no conceito mundo sensível. Pois não há muitos objetos do mundo exterior que

não tenham sido interpretados, calculados, sentidos e significados pelo subjetivo do

homem. Complementando o pensamento, os signos são de natureza sócio-interacionista

e por isso, sócio-ideológica; ou melhor, em Bakhtin (2009, p.33) “um signo é um


63

fenômeno do mundo exterior”. O mundo sensível depende da divisão racional para

estabelecer o consenso, contudo é promotor também do dissenso, do litígio, do

desentendimento, do refratário, da metáfora e da polissemia. No mundo sensível cindido

pelo racional, o signo torna-se arena de lutas, porque todo signo está sujeito ao confronto;

por estar sujeito aos ataques de ideologias.

Notemos mais em meio aos conceitos, que as ciências não podem deixar escapar às

análises o humano do homem e a concepção de homo sapiens-demens de Edgar Morin

(1997), que colocam o humano em um jogo dialógico de razão e loucura, consciência e

demência, siso e sensibilidade. Atestando o sensível no núcleo racional, e vice e versa.

Mas como a linguagem pode revelar esse jogo dialógico do racional com o sensível? A

linguagem é esse jogo duplo, ou melhor, jogo múltiplo; é ela uma espécie de razão

sensível ou sensibilidade racional, pois brota de uma lógica sentida pelo humano a cada

interação. “Há um logos do mundo sensível e um espírito selvagem que animam a

linguagem; a comunicação no invisível dá continuidade àquilo que é instituído pela

comunicação no visível.” (NOVAES, 1999). O jogo dialógico consuma-se além de jogos

duplos. A dialogia consuma-se além da dialética.36

O início do desvendar da fantasmagoria humanista passa por estudar a crise da

racionalidade (no Capítulo Segundo) por seus veios mais íntimos: os textos e os

discursos, portanto, passa pela linguística. Bakhtin já nos havia indicado o caminho: “O

texto é a realidade imediata (a realidade do pensamento e das vivências) (...). Onde não

36
Fernando Pessoa com seus heterônimos já havia transcendido o certo/errado mecanicista com seu “eu”
múltiplo póstumo aos dialéticos mecanicistas e contemporâneo a Bakhtin, Einstein e Freud. A literatura de
Fernando Pessoa traz a razão sensível para o interior das ciências, basta saber sentir com o que em nós
pensa: “o que em mim sente está pensando.” (CAEIRO, Alberto, 1914). Há na heteronímia de Fernando
Pessoa uma dialogia permanente, pois há sempre a busca pelo Outro em relação a si mesmo. Há uma
incompletude permanente, pois é diálogo em movimento. Coisas de uma invenção do “ homem recente”,
que Foucault nos legou em teoria.
64

há texto não há objeto de pesquisa e pensamento.” (BAKHTIN, 2011, p. 307). É neste

ponto, que esta tese se embebe, pois é a linguística: a ciência capaz de dialogar em

primeira instância com os discursos latentes, vivos e em atividade, já que analisa textos e

suas palavras como indicadores mais sensíveis das transformações sociais.

É o texto: a manifestação histórica mais humana; é o registro nos tempos dos modos

de vida, do pensar e do sentir do humano do homem. O homem é, nisso, o pai da história

e da língua, e são elas “gêmeas”.

Metaforicamente, história e língua têm laços univitelinos. Nasceram juntas, mas

uma em cada instante, cada uma descobriu o sopro e a respiração em seu respectivo

tempo, porém em tempos próximos, em tempos também gêmeos. A ponto de tornar-se

claro que não há história sem língua, como não há texto (escrito ou oral) sem contexto,

não há signo ideológico sem território preciso ou, interação verbal sem grupo socialmente

organizado.

Contudo, em meio à história e à língua, o único ser que vive em diálogo com ambas

é o ser humano. Aristóteles foi mais além, dizendo: “Único entre todos os animais, o

homem possui a palavra” (ARISTÓTELES, Política, I, 1253, p. 9). Mesmo que a

invenção do alfabeto tenha sido e continue sendo uma das maiores criações da

humanidade, não é o alfabeto que simplesmente coloca o homem como único; mas, sim,

a posse da palavra (interativa, ideológica, valorativa e sígnica), pois antes da

normatização do registro o homem já se manifestava de maneira ímpar no mundo (já

havia, antes do alfabeto ou mesmo da escrita, variadas manifestações de língua,

distintivos grupos sociais e disputas ideológicas pelo valor dos signos). Entretanto, não

se nega que a invenção da escrita surgiu para afirmar a posição de destaque do Homo

sapiens na escala evolutiva dentre os seres vivos. Podendo o ser humano, então, ver-se

capaz de produzir história, registrar memórias, construir heranças, erguer sociedades


65

heterogêneas em regiões (a) diversas com apenas uma centelha triboluminescente: o signo

verbal. No topo da escala evolutiva e com os textos em mãos, o homem segue criando as

duas irmãs gêmeas - história e língua - muitas vezes confundidas, porém sempre distintas

e complementares.

O que o homem faz com a língua e com a história é o que o diferencia. É o que o

torna animal sócio-político-histórico, ou seja, ideológico e discursivo. O homem encarado

como biofísico concretiza o existir, porém o que o faz dessemelhante é, por ironia, o

cogito cartesiano (o duvidar), é a dialogia do conceito psicossocial-discursivo.

Bakhtin entra no embate por uma ciência mais humana, acreditando que é pelo viés

da filosofia da linguagem que poderíamos encontrar rumos mais intrinsecamente

humanos (aqui vale nesta tese, pensar como Bakhtin pode contribuir para as ciências

médicas), e nos leva a pensar o “como” seria salutar a inversão do modus operandi

científico (em que os humanos andam sendo tratados como objetos, às vezes pelo sistema

político, outras vezes pelos profissionais da saúde, embora nem todos os profissionais

tratem os seres humanos como objetos) para um modo que recebam tratamentos mais

humanos ao homem (MORIN, 1997), em suas diferenças, em suas imperfeições, em suas

falibilidades, em suas singularidades, em suas individualidades. Há a defesa de uma

ciência com um conviver dialógico (BAKHTIN, 2009/1929) e em um humanismo da

alteridade (PONZIO, 2008/1998) pautados nas dessemelhanças; e não em um

monologismo da identidade mecanicista e idealista, que vê/trata o homem segmentado

em apenas corpo biofísico; ocultando sua psique (consciência) e suas relações sociais

(jogos ideológicos embebidos de signos verbais, os quais são alimento à consciência).37

37
“O idealismo e o psicologismo esquecem que a própria compreensão não pode se manifestar senão
através de um material semiótico (por exemplo, o discurso interior), que o signo se opõe ao signo, que a
própria consciência só pode surgir e se afirmar como realidade mediante a encarnação material em signos.
66

Já há muito (desde o início do século XX) a doença/saúde deixou de ser apenas

biofisiológica, ampliou-se cientificamente para uma concepção sociológica e interativa.

A saúde não está apenas ligada à biologia, mas ao biopsicossocial de cada indivíduo. O

sujeito é visto através da sua saúde social, em suas interações com o meio, e com seus

interlocutores; sendo que sua saúde e sua doença estão relacionadas à sua integralidade

(preceito do SUS), à sua completude corpóreo-discursiva, à sua falibilidade física e

ideológica. Sendo a saúde detectável como um signo das ciências humanas, da filosofia

da linguagem, da linguística.

Parece que discutir “saúde” como signo ideológico pode contribuir para a discussão

e construção de uma ciência mais humana, como uma posição político-ideológica que

acredito ser fundamental para este nosso mundo contemporâneo. Mikhail Bakhtin

contribui muito para a construção de uma mudança de atitude científica, pelo viés da

filosofia da linguagem e dos estudos linguísticos, propondo erguer uma espécie de

humanística (como ciência) e um humanismo (como ética), logo no seu nascedouro que,

para ele, é diálogo, o uso do signo verbal em cronotopos distintos em que se encontram o

Eu e o OUTRO de dois sujeitos autores.

Afinal, compreender um signo consiste em aproximar o signo apreendido de outros já conhecidos; em


outros termos, a compreensão é uma resposta a um signo por meio de signos [em uma cadeia ideológica].
(...) Essa cadeia ideológica estende-se de consciência individual em consciência individual, ligando umas
às outras. Os signos só emergem, decididamente, do progresso de interação entre uma consciência
individual e uma outra. E a própria consciência individual está repleta de signos. A consciência só se torna
consciência quando se impregna de conteúdo ideológico (semiótico) e, consequentemente, somente no
processo de interação social. (...) A consciência individual é um fato sócio ideológico. (...) Os signos são o
alimento da consciência individual, a matéria de seu desenvolvimento, e ela reflete sua lógica e suas leis.
A lógica da consciência é a lógica da comunicação ideológica, da interação semiótica de um grupo social.
Se privarmos a consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico, não sobra nada. A imagem, a palavra,
o gesto significante, etc. constituem seu único abrigo. Fora desse material, há apenas o simples ato
fisiológico não esclarecido pela consciência, desprovido do sentido que os signos lhe conferem.”
(BAKHTIN, 2009/1929, p. 32-35)
67

Nossa pesquisa transcorre em campos limítrofes, isto é, nas fronteiras de


todas as referidas disciplinas, em seus cruzamentos e junção.
O texto (escrito ou oral) enquanto dado primário de todas essas disciplinas,
do pensamento filológico-humanista no geral (inclusive do pensamento
teológico e filosófico em sua fonte). O texto é a realidade imediata (realidade
do pensamento e das vivências), a única da qual podem provir essas disciplinas
e esse pensamento. Onde não há texto não há objeto de pesquisa e pensamento.
(...) Nisto reside a diferença essencial entre as nossas disciplinas (humanas)
e naturais (sobre a natureza), embora aqui não haja fronteiras absolutas,
impenetráveis. O pensamento das ciências humanas nasce como pensamento
sobre pensamento dos outros, sobre exposições de vontades, manifestações,
expressões, signos atrás dos quais estão os deuses que se manifestam (a
revelação) ou os homens (as leis dos soberanos no poder, os legados dos
ancestrais, as sentenças e enigmas anônimos, etc.). (BAKHTIN, 2011, p. 307-
308)

No encontro de dois textos, há dois seres humanos, no mínimo, em diálogo. Por

isso o modo como o discurso é proferido diz muito do ambiente político que passa um

país, ou mesmo de uma situação em que os jogos de poder estão em debate. Assim está

evidenciado no modo como a presidenta da república Dilma Rousseff (transcrito no

Capítulo Terceiro desta tese) inverte o cerimonial, ao primeiro cumprimentar um médico

cubano em seu discurso e não o vice-presidente da república, que só será saudado depois

de todos os médicos e profissionais da saúde, no dia 22 de outubro de 2013. O que quer

dizer esta inversão no cerimonial? Diz sobre a situação política, as disputas que se

acirraram sobre o tema Saúde nos últimos meses, principalmente em cima do Programa

“Mais Médicos”. O médico saudado é o Juan Delgado, o mesmo que fora vaiado e

ultrajado dias antes por médicas brasileiras no aeroporto de Fortaleza. Talvez queria a

presidenta da república inverter os cumprimentos como forma civilizada, humanizada e

respeitosa de dizer que o poder no mudo está na dignidade com que tratamo-nos e não na

forma brutal em que dirigimos nossos gestos como forma apenas de “birra de classe”.

Contudo, para entendermos toda a disputa em torno do signo ideológico “Saúde” no

Brasil de hoje, temos que ler com atenção alguns textos da Folha de São Paulo (jornal

conservador), para que possamos observar melhor o que está em jogo, quais as vozes
68

estão em litígio, quais mudanças sociais a palavra pode vir a evidenciar. Chamamos os

exemplos de textos, que serão comentados a cada final de tópico de cada capítulo, de

exemplos das pequenas temporalidades, pois são amostras textuais que evidenciam

discursos ideológicos claros no lastro daquilo que Bakhtin chama, atualidade material e

discursiva. Vamos ao primeiro, de Felipe Scalisa, até chegarmos ao discurso de Dilma

Rousseff comentado no Capítulo Terceiro.

“Quanto a mim, em tudo eu ouço


vozes e relações dialógicas entre elas.”
[BAKHTIN]

TEXTO 1. Exemplo da pequena temporalidade38.

Felipe Scalisa: A face oculta da medicina


13/11/2014 02h00

Nesta terça-feira (11) veio à tona na Alesp (Assembleia Legislativa do


Estado de São Paulo) o grande número de estupros, de agressões homofóbicas,
de assédios e de trotes na Faculdade de Medicina da USP. Casos que, pela
repetição, demonstram o lado sistemático da violência e seu caráter estrutural,
que se encontra na maioria das faculdades de medicina do país.
Na audiência pública, oito relatos de violência a –pontuais e culturais–
foram expostos, entre os quais dois casos de estupro em eventos organizados
por outros alunos e realizados nas dependências da universidade. Foram
relatadas também iniciativas anteriores da faculdade de omitir os casos, a fim
de preservar a imagem da instituição e evitar constrangimentos.
Foi demonstrado também, pelo volume de documentos e registros, como
uma cultura de tradições e hinos que fazem alusão ao machismo pode tornar
reais as intenções de estupro e como trotes são utilizados para manter
hierarquias e redes de poder que vão desde as relações entre alunos até aquelas
entre docentes e profissionais mais influentes.

38
Geraldi afirma que a compreensão dos enunciados será maior na medida em que o pesquisador conseguir
“ampliar os contextos”, ou seja, fazer emergir “mais vozes” do que aquelas que são evidentes, na superfície
discursiva, não para encontrar a “fonte do dizer”, mas para fazer dialogarem textos, diferentes vozes.
Cotejar texto com texto é dar contextos a um texto (GERALDI, 2012, p. 29 -30). Por isso, a cada final de
tópico dentro de cada capítulo há um exemplo de materialidade discursiva, que chamei de exemplo da
pequena temporalidade, entendido como lugar em que, segundo Bakhtin, é o lugar da “atualidade, do
passado imediato e o futuro previsível (desejado)” (BAKHTIN, 2013, p. 409). Os textos de exemplos da
pequena temporalidade vão dar o cotejamento necessário para a compreensão das disputas ideológicas
sobre o tema “Mais Médicos” e ao todo da tese.
69

A audiência pública buscou não se restringir apenas ao agressor como


responsável final pela violência, mas falar do que aumenta os riscos de esses
atos se efetivarem.
Vimos como nosso maior ensinamento na graduação é o pacto de silêncio,
o consentimento passivo como grande instrumento de manutenção de
estruturas nas quais aprendemos a lidar e a conviver com a corrupção do
mundo.
Práticas sórdidas, desde a "pasta" –segurar à força um colega e enfiar pasta
de dente em seu ânus como forma de punição por algum descumprimento de
ordem– até a contratação de prostitutas para servir a homens dentro dos
espaços da faculdade, foram relatadas na audiência. O desfecho não poderia
ser outro: a cultura da faculdade prejudica nossa formação humana. E estamos
falando de educação médica.
Sabemos que a sociedade pode até estar satisfeita com a formação técnica
dos médicos, mas é notório como está insatisfeita com a falta de humanização
desses profissionais, cuja prerrogativa é promover saúde, não a mera ausência
de doenças. Tentam preencher essa deficiência pelo currículo formal, mas se
esquecem do currículo oculto –práticas e culturas-, que molda sujeitos do
início ao fim da faculdade.
Ainda assim, há severa resistência entre os alunos da faculdade a aceitar
críticas ao que eles reproduzem. Certamente, a vida universitária é impactante
e há amor verdadeiro pelo que se vive nesse ambiente. Conseguir absorver
críticas, nesses casos, é um ato de coragem.
Para alento da democracia, entretanto, pode-se debater o significado das
práticas relatadas pelos estudantes que conseguiram romper as leis de silêncio
da faculdade. Algumas verdades, contudo, precisam ser assumidas.
A principal delas é que expor o que fazemos nos traz vergonha. Sentimos
que nessa exposição manchamos a imagem de uma faculdade que é orgulho
nacional. Entretanto os relatos das vítimas de estupro, trote e agressões são
apenas uma face oculta. Temos de assumir os problemas e enfrentá-los.
Espero que meus colegas, vendo-se como agentes da realidade, possam
captar essa verdade e transformá-la em algo positivo. Ficar no saudosismo
melancólico da realidade que se esvai pode nos cegar para o novo, que pretende
ser muito melhor. Ficou ainda mais claro, enfim, que a faculdade precisa da
ajuda da sociedade civil para conseguir se espelhar em ética. O isolamento da
universidade é algo pernicioso.
A educação médica humanizada é de interesse de todos e merece o olhar
coletivo para a sua construção. A sociedade deve dizer que tipo de médico quer
ver sair dessas instituições e, a partir daí, analisar se certas práticas são
adequadas ou não. A transparência acaba sendo, portanto, a chave para esse
projeto.

FELIPE SCALISA OLIVEIRA, 22, aluno do 3º ano da FMUSP -


Faculdade de Medicina da USP, é coordenador de cultura da Direção
Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina e um dos depoentes da
audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo para
averiguar casos de violação de direitos humanos na FMUSP.
70

Há dois fortes pilares ideológicos e três vozes (discursivas) em que o texto de Felipe

Scalisa dialoga para pensarmos o Homem, a Medicina humanizada e pensarmos o

cotejamento de vozes (BAKHTIN, 2010). Primeiro, há a voz do Discurso de Sociedade

(discurso estrutural), que se estabelece entre jogos tensos e entre tensões ideológicas do

Capitalismo, da Eficiência, da Meritocracia e da Democracia; segundo, há uma voz do

Discurso da Formação Médica (discurso científico), que é a colisão entre a ideologia da

técnica e a ideologia do trato humanitário; e terceiro, há a voz do Discurso da Tradição,

que é um misto de Ideologia do medo, Ideologia do silêncio, Ideologia da vergonha para

a manutenção do status (que seria um código de conduta de determinada cultura para seu

engessamento provisório, espécie de discurso moral), que a carreira médica acaba

traduzindo contemporaneamente. Os três discursos (estrutural, científico e moral) são

pilares que dialogam entre si e se interpenetram formando um cenário mais amplo,

polifônico, de discurso mais audível e que coloca em xeque, justamente, o pensarmos o

Homem. Sendo que os dois eixos centrais em disputa são: 1) o de uma medicina

humanizada (subjetivista) e; 2) o de uma medicina tecnicista (objetivista abstrata).

A primeira voz a aparecer, com nitidez, é o discurso ideológico da tradição (o

moral), fruto de uma construção histórica em torno da faculdade de medicina, que no

Brasil, acaba sendo um celeiro de uma nova elite justamente por ser a profissão médica a

mais rentável e promissora entre as profissões há mais ou menos um século - “Medicina

é a carreira de ensino superior com o melhor desempenho trabalhista e com maior

escassez de profissionais, revelou estudo do Ipea (Instituto de Política Econômica

Aplicada)” (FSP, julho de 2013 – em anexo). Contudo, o discurso de tradição bebe de

outras fontes estruturais históricas e mais profundas. Esse discurso aparece pela tensão,

em trechos como: “o grande número de estupro e agressões homofóbicas(...) pela

repetição, demonstram o lado sistemático da violência e seu caráter estrutural, que se


71

encontra na maioria das faculdades de medicina...” e “Vimos como nosso maior

ensinamento na graduação é o pacto de silêncio, o consentimento passivo como grande

instrumento de manutenção de estruturas nas quais aprendemos a lidar e a conviver com

a corrupção do mundo...” (os grifos são meus). O título de Felipe Scalisa dialoga com

essa tradição, chamando-a de “face (tradição) oculta”, que é uma denúncia muito clara

dos pilares de uma sociedade, ao tentar o tempo todo, pelo discurso, formular e reconhecer

suas ideologias, o que leva uma parte dos estudantes de medicina não notar que estão no

meio de um turbilhão discursivo-cultural, levando alguns por pura reprodução e falta de

reflexão a adotar a meritocracia como algo divino: “Ainda assim, há severa resistência

entre os alunos da faculdade a aceitar críticas ao que eles reproduzem. Certamente, a vida

universitária é impactante e há amor verdadeiro pelo que se vive nesse ambiente.

Conseguir absorver críticas, nesses casos, é um ato de coragem.” Felipe Scalisa é sagaz

ao ponto de dar dicas e saídas nesse trecho, porém o importante é o jogo tensivo dos

discursos e das ideologias para analisarmos o porquê desse texto como análise.

A segunda voz a aparecer é o discurso ideológico da Sociedade (estrutural), do

conjunto social organizado para convívio comum, que, com isto, esbarra no limite da

conceituação de Democracia, conjunto social organizado para o respeito ao direito e à

liberdade comum a todos. No discurso ficam evidenciadas disputas materiais das

ideologias, como nos trechos: “É de interesse de todos e merece o olhar coletivo para a

sua construção...” e “Ficou ainda mais claro, enfim, que a faculdade precisa da ajuda da

sociedade civil para conseguir se espelhar em ética (...) A sociedade deve dizer que tipo

de médico quer ver sair dessas instituições.” Vale dizer que tais discursos estão inseridos

em outros internos e muito vivos, que pressionam o convívio democrático e social no

Brasil: os discursos internos e implosivos do Capitalismo e o da eficiência, que acabam

alimentando a dinamicidade da democracia e alargando as diferenças sociais, pois não se


72

pode esquecer que a sociedade cobra cura das doenças, eficácia no tratamento médico, o

que no país acabada sendo um fator problematizador ora por causa da “dupla porta”

(apesar do SUS atender mais de 100 milhões de pessoas, hoje são mais de 30 milhões

entrando pela porta privada dos planos de saúde em hospitais públicos e privados), ora

por efeito desta causa, pois os conglomerados clínicos e médicos usufruem da “dupla

porta” para tornar mais rentável a sua profissão do que já é, segundo os índices do

Ipea/2013 – em anexo. A publicação do artigo no jornal cria uma pequena ponte de

diálogo entre a faculdade e a sociedade, colocando em voga uma discussão (polifonia)

que não deveria sair da pauta de qualquer instituição que mexa com vidas e gestão

humanas: a Saúde do Homem. As respostas ao texto publicado no jornal são dados que

merecem luz e investigação, pois podem indicar esse jogo tensivo das partes: comunidade

civil e comunidade acadêmica. Entretanto, o que fica mais evidente é que cada discurso

não fica isolado, pois em baixo de cada palavra há camadas de sentido que cada grupo

social oculta ou revela.

A terceira voz de discurso ideológico que aparece é o da Formação Médica (o

científico), que acaba sustentando toda a discussão entre a Tradição e a Sociedade

(espécie de sustentáculo para a vontade de verdade e a vontade de saber em nosso tempo).

Há um forte apontamento do texto para o debate da formação médica, do começo ao fim

do artigo, como se fosse o motor da discussão e do próprio texto, como enunciado: “O

desfecho não poderia ser outro: a cultura da faculdade prejudica nossa formação humana.

E estamos falando de educação médica(...)” e “Sabemos que a sociedade pode até estar

satisfeita com a formação técnica dos médicos, mas é notório como está insatisfeita com

a falta de humanização desses profissionais, cuja prerrogativa é promover saúde, não a

mera ausência de doenças. Tentam preencher essa deficiência pelo currículo formal, mas

se esquecem do currículo oculto –práticas e culturas-, que molda sujeitos do início ao fim
73

da faculdade.” Há aí uma ampla abertura a um embate para a divisão dada ao que é

tecnicista e que é humanista, pois logo se vê que o que está em debate entre os discursos

é: 1) a formação técnica (cirúrgica, estruturalista, biofísica, normativa e morfológica de

dar “nome aos bois” e resolver o problema, a dor, no caso) e; 2) a formação humana

(profilática, preventiva, cuidadora, assistencial, biopsicológica e social de dar cuidados,

informações e formação educacional como forma de prevenção de doenças).

“A face oculta da medicina” publicado em novembro de 2014, pelo estudante Felipe

Scalisa, no jornal Folha de S. Paulo é um enunciado polifônico, concreto e dialógico,

portanto. A gama de discursos em seu interior deve ser desfiada de seu novelo ou nó,

contudo para melhor índice de leitura de uma teoria humanística nos coube localizar,

didaticamente, apenas três (o discurso da sociedade, o discurso da tradição e o discurso

da formação médica), justamente para servir de linha para uma tessitura mais homogênea

como tese, embora a potencialidade de exploração de um texto não se exaure nele mesmo,

pois um texto é um enunciado preso, também, ao tempo de quem o lê ou lerá, criando a

dialogia, além de ser enroscado, emaranhado, ao tempo que fora escrito, ao seu

materialismo histórico, social e discursivo. Um texto nunca é um fio só, ilhado, isolado,

náufrago de seus outros discursos, mas um enunciado concreto, contingente e social.

O enunciado existente, surgido de maneira significativa em um


determinado momento histórico, não pode deixar de tocar os milhares de fios
dialógicos existentes, tecidos pela consciência ideológica em torno de um dado
objeto de enunciação, não pode deixar de ser participante do diálogo ativo do
diálogo social. Ele também surge desse diálogo como seu prolongamento,
como sua réplica, e não sabe de que lado ele se aproxima desse objeto.
(BAKHTIN, 2010, p. 86)

A consciência ideológica de um texto se revela pelo cotejamento com outros textos,

cotejamento de vozes, polifonias e outros discursos, pelo embate (vamos ver mais adiante,

a cada final de capítulo, como, porquê e o quê os textos cotejados indicam). Todavia, fica
74

evidente no contraste dos três discursos - Sociedade, Tradição e Formação Médica – que

o embate fixa-se sobre uma fantasmagoria heterocientífica, sobre um espectro que ronda

as ciências em seus limites, entre ciências naturais e ciências do espírito, ou se preferir,

entre ciências médicas e ciências humanas. Evidencia-se o caráter de denúncia do artigo,

sua mensagem direta aos padrões de valores morais e na busca por uma ética que a

sociedade possa iluminar à academia. Porém, evidencia-se também no mesmo patamar, a

lucidez com que se questiona a formação humana do profissional a ser vislumbrada. O

que está em debate, definitivamente, ao longo do enunciado concreto do texto de Felipe

Scalisa é o pensar o Homem, como centro nevrálgico das ciências e não como objeto de

uma sociedade que oculta, por acordos mornos e tácitos que promovem o contra-processo

humano, chamado de reificação, ou como prefere chamar PONZIO (2008) de efeito do

“Humanismo da identidade”, que é a linha filosófica que autoriza o EU ser a referência

de tudo e, como efeito, excluí, apaga, silencia, reifica e individualiza a si e ao OUTRO,

ou seja, mata o jogo e as tensões discursivas que tanto Bakhtin defendeu. Vale lembrar,

que para Bakhtin diálogo é utopia, pois não se fecha, pois está provisoriamente acabado,

à espera de outros textos, outros discursos, de outros interlocutores no grande tempo,

movimentando a corrente contínua das relações dialógicas.

O texto de Felipe Scalisa indica tensões em curso, como vimos, no mínimo três

discursos e duas ideologias em embate (a do humanismo subjetivista e a do tecnicismo

objetivista abstrato). Sendo que elas apontam a mudança de paradigma do signo “Saúde”

para “Qualidade de vida” pela denúncia estampada entre os discursos com vestimenta,

talvez seria mais propício um jaleco, de Sociedade, de Democracia, de Meritocracia, de

Tradição e de Formação acadêmica, mas que ocultam a nudez do ser, do ente, do Homem

contemporâneo colocado como objeto de investigação anatômica e não como ente vivo e

gerador de conhecimento mais humano, demasiado humanista.


75

1.1.1 OS SIGNOS IDEOLÓGICOS: “SAÚDE” E “QUALIDADE DE VIDA”

“O conceito de saúde reflete a


conjuntura social, econômica, política
e cultural. Ou seja: saúde não
representa a mesma coisa para todas as
pessoas. Dependerá da época, do
lugar, da classe social. Dependerá de
valores individuais, dependerá de
concepções científicas, religiosas,
filosóficas.”

[Moacyr SCLIAR]

São signos complementares, ora são sinônimos, ora são paradoxais: “Saúde” e

“Qualidade de Vida” são conceitos que estão a partir da segunda metade do século XX

atrelados. A própria definição de saúde pela Organização Mundial de Saúde, a qual é a

mais conhecida, diz que há implicações legais, sociais e econômicas dos estados de saúde

e doença do homem (OMS). A definição encontrada no preâmbulo da Constituição da

Organização Mundial de Saúde (OMS), criada em 1948, diz que saúde é um estado de

completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas ausência de doenças (definição

muito próxima aos conceitos biopolíticos de Foucault). Segundo Bakhtin, um signo não

existe apenas como parte de uma realidade, mas ele também promove reflexos e refrações

dessa realidade e de outras, por isso o signo verbal é uma realização da realidade e da

interação das consciências, que estão em um ambiente externo material bem demarcado

pelo tempo, pelo espaço e pelos produtos ideológicos que alimentam as vidas, portanto

um signo só nasce no contexto propício e propiciador. E este contexto foi o que conduziu

ao Segunda Guerra Mundial (1945), pois trouxe novas formas de cuidados com o humano

do homem, dentre eles o cuidado com aquilo que se definia como “Saúde”.

Houve uma preocupação em dar contornos positivos para o conceito e o “bem-estar

social” veio a calhar naquele momento histórico anterior a Guerra Fria. Foi também

mérito da OMS tratar “saúde mental” como conceito atrelado à saúde, agora não mais
76

apenas corporal – biofisiológica. Certo é que o conceito ainda causa questionamentos no

ambiente acadêmico, político, econômico e discursivo, já que na primeira definição da

OMS muito se vê de idealismo e metas inatingíveis para cada homem em seu contexto e

ambiente diverso dos outros. Por isso, muito recentemente na história, cerca de meio

século, houve uma redefinição do conceito, ou seja, houve uma espécie de “migração” do

valor ideológico do conceito trabalhado anteriormente citado, para um que diz que saúde

acontece:

À medida em que o indivíduo ou grupo é capaz, por um lado, de realizar


aspirações e satisfazer necessidades e, por outro, de lidar com o meio ambiente.
A saúde é, portanto, vista como um recurso para a vida diária, não o objetivo
dela; abranger os recursos sociais e pessoais, bem como as capacidades físicas,
é um conceito positivo. (OMS, 2001, p. 9)

Neste segundo momento do conceito de “Saúde”, vemos influência da economia

(“recursos sociais”); do mercado profissionalizante, que abrange tanto o trabalho da

nutricionista, terapeuta ocupacional, psicólogo, passando pelo educador físico até chegar

ao médico (“bem como as capacidades físicas”); além de uma postura nova em relação

ao que se entendia (até meados do século XX) como “completo bem-estar”, agora muito

mais ligado à “qualidade de vida”, de ordem estatística e como maneira de medição de

índices da vida, das relações, das condições e da singularidade do ser dentro de um tempo

histórico determinado e de um meio cultural influenciador.

Nas origens etimológicas da palavra “saúde” muito se encontra do caráter

positivista, ou biopolítico, do signo ideológico que se perpetuou ao longo da história; pois

saúde em português, deriva de salude, vocábulo do século XIII, em espanhol salud

(século XI), em italiano salute, que derivam do latim salus (salutis), com o significado

de salvação, conservação da vida, cura, bem-estar. Porém o étimo francês santé, do

século XI, advém de sanitas (sanitatis), designando no latim sanus: “são, o que está com
77

saúde”, aproximando-se mais da concepção grega de higiene. O que leva a uma

concepção não só positiva (talvez por influência de Augusto Comte, pensador positivista

do século XIX) da vida como também sanitarista. Saúde, portanto, pelo radical

etimológico aparece como um “estado positivo do viver”. Contudo, a grande guinada se

deu a partir dos séculos XV e XVI, por influência de um pensamento antropocêntrico,

mas também por uma mudança de postura do saber científico que via nos fatores externos

e materiais uma forte influência no conceito, ali começava a migrar o conceito do campo

biofísico para um campo mais biopsicossocial, estudado apenas quatro séculos depois.

O suíço Paracelsus (1493 – 1541) afirmava que as doenças eram


provocadas por agentes externos ao organismo. Naquela época, e no rastro da
alquimia, a química começava a se desenvolver e influenciava a medicina.
Dizia Paracelsus que, se os processos que ocorrem no corpo humano são
químicos, os melhores remédios para expulsar a doença seriam também
químicos, e passou então a administrar aos doentes pequenas doses de minerais
e metais, notadamente o mercúrio, empregado no tratamento de sífilis, doença
que, em função da liberalização sexual, se tinha tornado epidêmica na Europa.
Já o desenvolvimento da mecânica influenciou as ideias de René Descartes,
no século XVII. Ele postulava um dualismo mente-corpo, o corpo funcionando
como uma máquina. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento da anatomia,
também consequência da modalidade, afastou a concepção humoral (ideia
inicial de Hipócrates – 460- 377 a.C) da doença, que passou a ser localizada
nos órgãos. No famoso conceito de François Xavier Bichat (1771-1802), saúde
seria o 'silêncio dos órgãos'.” (SCLIAR, 2007, p. 31)

Até o conceito de saúde ter adquirido caráter sociológico na história da humanidade

nota-se que diferentes pensadores, dos clássicos aos modernos, já se incomodavam com

as definições que postulavam e postergavam o próprio humano do homem, em sua

singularidade. A separação, ou mesmo o dualismo, mente-corpo, faz parte da tradição

ocidental do mens sana in corpore sano do pensamento da antiguidade clássica até a

concepção recente, últimos 30 anos, de estudos em “Saúde Mental”, que observa o

homem na sua autonomia dentro das atividades que pode e deve exercer em sua realidade

de vida, portanto, apresenta-se como algo não tão positivista assim. Uma conclusão
78

parece evidente: a saúde ao migrar para o conceito de qualidade de vida nos últimos anos,

transformou-se em um sintoma de uma mudança de postura ao definir o homem pelo seu

aspecto fatal próprio e de falibilidade humana. Tal mudança de postura advém de uma

trama de fios ideológicos que contagiam as infraestruturas e cotejam as superestruturas,

mudando até mesmo a palavra e seu valor, como indicador mais sensível não só das

transformações sociais, mas também como indicador sensível de uma visão do homem

sobre ele mesmo. Parece ser a linguística uma ciência capaz de detectar os efeitos e causas

da briga por termos, da ordem do discurso, do dialogismo inerente em cada palavra como

signo ideológico, revelando as íntimas mudanças, as tênues nuances de significados entre

um tempo e outro, seja no grande tempo, pensado através dos séculos em filosofia e

ciência, seja na pequena temporalidade, pensada pelo empirismo das relações dos

discursos sobre o conceito de saúde, na realidade brasileira do programa “Mais Médicos”.

A definição de saúde na contemporaneidade, portanto, aproxima-se de uma

condição de bem-estar da pessoa nas diferentes funções: físicas, mentais, afetivas e

sociais (esta tese acrescenta justamente neste ponto: o “discursivo”); não se identifica

com a simples ausência de doença, mas com a plena eficiência de todas as funções:

orgânicas e culturais, físicas e relacionais. Embora, enquanto a saúde da alma sempre foi

objeto de pesquisa da filosofia, não valeu o mesmo peso ou foco à saúde do corpo. Com

o advento da filosofia da medicina, de uma nova cultura da corporeidade e da

reconsideração da saúde como bem-estar geral ligada a uma política do Estado Social que

insere a saúde entre os direitos humanos39, o que faz com que ela se apresente como

39
O ano de 1948 é muito significativo para a História do mundo contemporâneo, pois ao final da Segunda
Grande Guerra Mundial (1939 -1945) as ciências, o pensamento filosófico, as sociedades, as políticas e a
ética tiveram que ser repensadas. Duas datas importantes surgem em 1948: 7 de abril, conhecida hoje como
o dia mundial da Saúde, fora instaurada a Organização Mundial da Saúde, que trouxe bases da Medicina
79

biopolítica, que chega a propor uma série de problemas éticos, teóricos e sanitários. Pois

uma vez que o conceito de saúde deve ser entendido não só em sentido físico, mas

também psicológico e moral, e que se identifica com a ideia de bem-estar em referência

à pessoa na sua totalidade, compete situar o problema da saúde no horizonte

antropológico, que comporta o tratamento de questões não simplesmente médicas, mas

propriamente filosóficas, como as de natureza e norma. Está aí a aproximação da área da

saúde com a filosofia, entre política e ciência, pois ela hoje é estatística, antropológica,

moral, sanitarista; portanto a saúde “migrou” de um lugar curativo para um lugar

preventivo40, em que a Atenção Primária de Saúde abre diálogo com nossa

do Reino Unido, cuja é conhecida pelo seu caráter público e abrangente no tratamento de todos os seres
humanos, independentemente de suas raças, credos, origens econômicas; e 10 de dezembro, data da
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Muito da base a OMS influenciou a escrita da Declaração
Universal, principalmente, nos cuidados com a Saúde de todos como um benefício para a Democracia. A
Saúde como direito ganhou mais força a partir, portanto, do ano de 1948.
40
Houve um distanciamento no último século XX entre a Medicina Curativa da Preventiva. A medicina
tem evoluído técnico, humana e tecnologicamente. Se antigamente o foco era identificar a doença e tratá-
la, usando para isso as tecnologias mais sofisticadas, nos dias de hoje pesquisas comprovam que a
prevenção é o melhor caminho para a qualidade de vida. É a medicina preventiva que se encarrega de propor
medidas de prevenção de doenças e promoção da saúde. Portanto, a educação visando à prevenção continua
sendo a melhor forma de alcançar e manter uma vida saudável. Hoje é fundamental recorrer ao seu médico
não apenas quando se sente mal, mas sim para conhecer melhor o seu organismo, para aprender a cuidar
dele, para detectar precocemente eventuais anomalias e para, em última análise, viver melhor. Isto fica claro
na reportagem com o médico Antônio Carlos Lopes: “O corpo humano é uma engrenagem complexa, tudo
está interligado. Quando surge um problema não basta apenas olhar o detalhe, é preciso conhecer o corpo
todo. É assim que o clínico geral vê o nosso organismo: um trabalho cheio de desafios que exige do
profissional dedicação e muito conhecimento. Ele segue os mesmos passos de um detetive: estuda, observa,
investiga. Ou seja, vai atrás de pistas para desvendar os mistérios da medicina para tratar os pacientes e
prevenir doenças. A tecnologia é importante, mas não é o principal. Para o doutor Antônio Carlos Lopes,
o mais importante é a competência do médico, que deve saber avaliar os exames de forma correta. “A
tecnologia avançada vem a ser um perigo na mão de um médico incompetente porque ele passa a tratar o
exame e não o doente. Existem os exames a serem solicitados para ajudar nos diagnósticos, quantificar o
diagnóstico, mas não qualificar o diagnóstico. Tem que ser um diagnóstico clínico”, diz. Além disso,
Antônio Carlos ressalta que também trabalha para prevenir as doenças, e não só diagnosticá-las: “A
medicina não é só curativa, ela é preventiva”. (http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2013/02/medicina-
nao-e-so-curativa-e-preventiva-diz-antonio-carlos-lopes.html) – Acessado em 29 de janeiro de 2015.
80

contemporaneidade e muitos debates mesmo dentro da classe médica sobre o conceito,

com status político:

Os cuidados primários de saúde, adaptados às condições econômicas,


socioculturais e políticas de uma região deveriam incluir pelo menos; educação
em saúde, nutrição adequada, saneamento básico, cuidados materno-infantis,
planejamento familiar, imunizações, prevenção e controle de doenças
endêmicas e de outros frequentes agravos à saúde, provisão de medicamentos
essenciais. Deveria haver uma integração entre o setor de saúde e os demais,
como agricultura e indústria.
O conceito de cuidados primários de saúde tem conotações. É uma proposta
racionalizadora, mas é também uma proposta política; em vez da tecnologia
sofisticada oferecida por grandes corporações, propõe tecnologia simplificada,
“de fundo de quintal”. No lugar de grandes hospitais, ambulatórios; de
especialistas, generalistas; de um grande arsenal terapêutico, uma lista básica
de medicamentos – enfim, em vez da “mística do consumo”, uma ideologia da
utilidade social. Ou seja, uma série de juízos de valor, que os pragmáticos da
área rejeitam. A pergunta é: como criar uma política de saúde pública sem
critérios sociais, sem juízo de valor?
Por causa disso, nossa Constituição Federal de 1988, artigo 196, evita
discutir o conceito de saúde, mas diz que: “A saúde é direito de todos e dever
do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que vivem à
redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação”. Este
é o princípio que norteia o SUS, Sistema Único de Saúde. E é princípio que
está colaborando para desenvolver a dignidade aos brasileiros, como cidadãos
e como seres humanos. (SCLIAR, 2007, p. 39).

Aliado ao deslocamento dos conceitos de saúde para qualidade de vida está o

Discurso de Humanização da área da Saúde - esta forma revigorante que trata o “paciente”

por indivíduo singular, não mais como homem passivo e apenas ouvinte na atividade

clínica –; está também o discurso mercadológico dos medicamentos, dos planos de saúde

e o discurso das atividades práticas em um país em desenvolvimento como o nosso, o

Brasil. O que é potencializada pela marca ideológica acirrada da globalização da segunda

metade do século XX, época em que o transporte de informações e a transferência de

valor se tornou quase que imediatos para a história. O fluxo exorbitante de informações

e de tecnologias de nossa época globalizada e neoliberal faz com que o conceito de saúde

no ocidente tenha diretrizes mundiais com dimensões também planetárias, a questão de


81

saúde rompe fronteiras entre norte e sul, ou entre ocidente e oriente, pois trabalha questões

éticas, ontológicas e da existência humana e de sua normatização da vida e da forma de

medir a sua qualidade em viver41. Neste contexto macro, que valoriza, paradoxalmente, a

singularidades, o surgimento da OMS a partir da Organização das Nações Unidades

propicia um amplo debate conceitual-filosófico que nos afeta:

O conceito da OMS, divulgado na carta de princípios de 7 de abril de 1948


(desde então o Dia Mundial da Saúde), implicando o reconhecimento do direito
à saúde e da obrigação do Estado na promoção da saúde, diz que “Saúde é o
estado do mais completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a
ausência de enfermidade”. Este conceito refletia, de um lado, uma aspiração
nascida dos movimentos sociais pós-guerra: o fim do colonialismo, a ascensão
do socialismo. Saúde deveria expressar o direito a uma vida plena, sem
privações. Um conceito útil para analisar os fatores que intervêm sobre a saúde,
e sobre os quais a saúde pública deve, por sua vez, intervir, é o de campo da
saúde (Health Field), formulada em 1974 por Marc Lalonde, titular no
Ministério da Saúde e do Bem-Estar do Canadá – país que aplicava o modelo
médico inglês. De acordo com esse conceito, o campo da saúde abrange:
A biologia humana, que compreende a herança genética e os processos
biológicos inerentes à vida, incluindo os fatores de envelhecimento;
O meio ambiente, que inclui o solo, a água, o ar, a moradia, o local de
trabalho;
O estilo de vida, do qual resultam decisões que afetam a saúde: fumar ou
deixar de fumar, beber ou não, praticar ou não exercícios;
A organização da assistência à saúde. A assistência médica, os serviços
ambulatoriais e hospitalares e os medicamentos são as primeiras coisas em que
muitas pessoas pensam quando se fala em saúde. No entanto, esse é apenas um
componente do campo da saúde, e não necessariamente o mais importante; às
vezes, é mais benéfico para a saúde ter água potável e alimentos saudáveis do
que dispor de medicamentos. É melhor evitar o fumo do que submeter-se a
radiografias de pulmão todos os anos. É claro que essas coisas não são
excludentes, mas a escassez de recursos na área da saúde obriga, muitas vezes,
a selecionar prioridades. (Idem, p. 37)

41
Em janeiro de 2013, o ministro de finanças do Japão, Taro Aso, chegou a dizer que os mais velhos
“deveriam apressar-se a morrer”, em uma declaração extremamente anti-ética, pois desconsidera a força de
labor intelectual dos mais velhos e apenas valoriza a força de trabalho manual e gerador de capital. Muito
se colocou em pauta sobre a declaração de Taro Aso, inclusive questões de ortotanásia (escolha de morte
natural sem que aparelhos retardam a chegada da morte). Contudo, fica claro, que no mundo em que
vivemos, mais uma vez, o que está em jogo é a tensão entre o humanismo e o mecanicismo objetivista.
82

O caráter de hoje termos uma saúde preventiva e constante tensão com a saúde

curativa pode inibir ações desumanizadoras (biopolíticas), mas não as elimina;

incentiva ações políticas, de pensamento a longo prazo, mas não coíbe por completo

os métodos imediatistas e políticas populistas, já que estamos em um campo das

ciências que qualquer descuido leva à morte, como qualquer campo que envolva

atividades humanas e seres vivos, como engenharia, e em perspectiva de sanitarismos,

inclui-se aí o trabalho do educador, que desfaz as crenças e hábitos anti-higiênicos por

outros mais salutares, preservando assim vidas, mesmo estando distante da linha de

frente das ciências médicas. O que houve? Para que o curativo e o preventivo se

tornassem as faces de uma mesma moeda em prol da Saúde como Qualidade de Vida?

A ampliação de um signo verbal se dá pela necessidade das interações que ele

irrompe no meio social. No percurso do modo curativo para o preventivo muito do que

é ideológico se moveu, irrompeu, saturou e ressuscitou. A própria noção do ser

humano acaba por sofrer novas medições, trazendo para o estatuto da saúde, por

exemplo, os contornos de saúde mental; já que no século XX os adventos da

psicanálise moveram o saber científico e filosófico tanto nas “Ciências da Natureza”

quanto nas “do Espírito” (BAKHTIN, 2011). A convergência das duas se deu no

século XX, o materialismo adentrou os estudos do inconsciente, em especial, pela

primeira vez pelo Círculo de Bakhtin, pelos livros Freudismo (1927) e Marxismo e

Filosofia da Linguagem (1929); mas depois tudo se moveu de forma a convergir as

ciências da saúde às ciências humanas. E o território que podemos notar, que há um

intenso diálogo na natureza das ciências, se dá pela formulação dos signos como

produto ideológico, que afeta o ser:

Todo signo, como sabemos, resulta de um consenso entre indivíduos


socialmente organizados no decorrer de um processo de interação. Razão pela
qual as formas do signo são condicionadas tanto pela organização social de tais
83

indivíduos como pelas condições em que a interação acontece. Uma


modificação destas formas ocasiona uma modificação do signo. É justamente
uma das tarefas da ciência das ideologias estudar esta evolução social do signo
linguístico. Só esta abordagem pode dar uma expressão concreta ao problema
da mútua influência do signo e do ser; é apenas sob esta condição que o
processo de determinação causal do signo pelo ser aparece como uma
verdadeira passagem do ser ao signo, como um processo de refração realmente
dialético do ser no signo. (BAKHTIN, 1929. p. 45)

Ficou como marca importante a relação mútua entre a linguagem e o ser humano,

em que se a linguagem se movimenta pelo signo verbal e por discursos demarcados, logo

a realidade em jogo também apresenta formas de transição. O surgimento, por exemplo,

de um conceito caro para a área da saúde nos últimos 30 anos que é o de “saúde mental”42,

logo aparece com frequência nos programas de governo das grandes cidades, como a

metrópole paulistana, que hoje tem uma das maiores redes públicas de assistência à

doença mental, por ser também uma das maiores cidades do mundo com índices

alarmantes de pessoas precisando de tratamento. Se fôssemos fazer uma definição de

42
A Saúde Mental é a área da medicina que mais cresce em casos, pois a depressão, “doença do século
XX”, logo se tornará a doença que mais afeta os seres humanos no século XXI. “A questão da Saúde
Mental em nosso país está mais uma vez colocada em discussão. Desta vez a partir da recente publicação
do livro Cidadania e Loucura — Políticas de Saúde Mental no Brasil, reunindo trabalhos de alguns dos
nossos melhores pensadores no assunto. A idéia original da coletânea foi fazer um mapeamento do estado
atual da discussão sobre a questão, as práticas terapêuticas voltadas para o campo da loucura e os
processos sociais que determinam a emergência da chamada doença mental. No momento em que a
sociedade brasileira se encontra mobilizada na construção de um novo contrato social, através da
Constituinte, a leitura desse livro é obrigatória; o lugar destinado ao chamado doente mental expressa, de
uma forma contundente, como a sociedade brasileira é excludente, rígida e hierarquizada, porque são
grupos sociais marginalizados os alvos preferenciais dos aparatos de controle, rotulações e reclusão. A
loucura tem sido uma companheira inseparável do homem ao longo de todo o seu trajeto conhecido pela
história. As referências a loucos são encontradas desde o Velho Testamento aos estudos etnográficos das
sociedades chamadas primitivas. Não existe cultura que deixe de ser sensível àquilo que escapa a sua
norma, definindo incessantemente as fronteiras entre a loucura e a normalidade, voltando seu olhar para
a presença dos "loucos" no convívio com as pessoas "normais" e produzindo estratégias para enfrentar os
produtos dessa divisão. Como já foi demonstrado no clássico História da Loucura, de Michel Foucault, a
partir do século XIX a tarefa de vigiar a fronteira entre a razão e a loucura e montar guarda na sua
cancela, foi destinada à Medicina.” FREITAS, Fernando. CIDADANIA E LOUCURA — Origens das
políticas de Saúde Mental no Brasil. Costa, Nilson do Rosário e Tundis, Silvério (org.), Petrópolis,
Abrasco/Vozes, 1987.
84

Saúde Mental diríamos: que é o equilíbrio emocional entre o patrimônio interno e as

exigências ou vivências externas. É a capacidade de administrar a própria vida e as suas

emoções dentro de um amplo espectro de variações sem contudo perder o valor do real e

do precioso. É ser capaz de ser sujeito de suas próprias ações sem perder a noção de tempo

e espaço. É buscar viver a vida na sua plenitude máxima, respeitando o legal (leis

contratuais) e o Outro.

Logo se pensa nos fatores causadores de doença mental atualmente, já que dentro

de uma definição de saúde na contemporaneidade os agentes causadores estão atrelados

ao social, às estatísticas e às normas sanitárias. Não há hoje como dissociar saúde de

sanitarismo, pois são temas do mesmo discurso. O que faz com que a política seja assunto

da área da saúde, assim como sociologia, quando se discute medidas preventivas e

ambiente sócio relacional dos habitantes de uma pequena ou grande e tumultuada cidade.

E ao dialogarem, saúde e política, saúde e sociologia, logo aparece grudado aos estudos

à noção, cada vez mais, de “Qualidade de Vida”. Não há como falar de noção de saúde

sem cotejar a ideia de qualidade de vida. Tornou-se um discurso hegemônico, científico,

político e filosófico poderoso, ou simplesmente, biopolítico. O que acaba por nos valer

ressaltar o significado em voga sobre o que é “Qualidade de vida” – já que seria o método

utilizado para medir as condições de vida de um ser humano, seja o bem espiritual, físico,

mental, psicológico e emocional, além de relacionamentos sociais, como família e

amigos, como também a saúde, a educação, poder de compra, habitação, saneamento

básico e outras circunstâncias da vida.

Pensando nisso, em esclarecer o que é qualidade de vida, a Organização Mundial

de Saúde (OMS) desenvolveu um questionário composto por seis domínios: o físico, o

psicológico, o do nível de independência, o das relações sociais, o do meio ambiente e o

dos aspectos religiosos, portanto o conceito de qualidade de vida está ligado a uma visão
85

estatística, muito influente a partir do século XIX. O conceito “Estatística” vem da palavra

alemã “Stat”, que quer dizer “Estado”; seria, portanto, pelo radical da palavra, uma forma

de leitura totalizante do governo sobre o contingente populacional (biopolítica), por isso

aparece também em voga, o conceito de Índices de Desenvolvimento Humano (IDH).

Que está também intimamente ligado à “Qualidade de Vida”, já que o IDH é uma medida

comparativa de recursos financeiros, alfabetização, educação, esperança média de vida,

natalidade (medições biopolíticas, pelo jeito). São, com isso, maneiras de avaliar e medir

o bem-estar de uma população. Lembrando que o Estado de bem-estar social foi à política

econômica de países, na primeira metade do século XX, que via o Estado como agente,

promotor e defensor social e organizador da economia. E nesta orientação, o Estado é um

Leviatã vivo e onipresente, que é o agente regulamentador de toda vida e saúde social,

política e econômica. Vincula-se com a ampliação do conceito de cidadania, logo depois

da grande depressão de 1929. Buscando a igualdade de oportunidades. Acabam sendo

três conceitos intimamente vinculados e são lados de uma mesma moeda capitalista – o

Estado do Bem-Estar Social, a Qualidade de Vida, e o IDH. Montando assim um discurso

muito audível nos textos da realidade brasileira do século XXI: o da Saúde por

contingente estatístico que mede a Qualidade de vida.

TEXTO 2 – Exemplo da Pequena Temporalidade

Barjas Negri: Mais médicos (de saúde da família)


23/02/2014 03h00 – Publicado na Folha S. Paulo.

A fim de ampliar e melhorar a qualidade do atendimento da atenção básica


em saúde, o Ministério da Saúde criou em 1994 o Programa Saúde da Família
(PSF), em parceria com os municípios.
Cada equipe do PSF é composta, no mínimo, por um médico generalista,
um enfermeiro, um auxiliar ou técnico de enfermagem e seis agentes
comunitários de saúde. Posteriormente, acrescentou-se as equipes de saúde
bucal.
No primeiro ano, foram implantadas 328 equipes, em 55 municípios. Pela
sua importância para a atenção básica na saúde, o PSF foi ampliado
86

notavelmente no governo Fernando Henrique Cardoso. No período em que foi


ministro da Saúde, José Serra deu apoio, prioridade e recursos para que os
municípios implantassem novas equipes, que cresceram dez vezes em cinco
anos.
Em 2002, último ano da gestão FHC, quando eu já estava no comando do
ministério, o PSF acumulara 16,7 mil equipes, que acompanhavam 55 milhões
de pessoas, em 4.200 municípios. Esse exército de profissionais de saúde foi
decisivo para derrubar a mortalidade infantil, ampliar a cobertura das
vacinações e, em muitos casos, proporcionar a primeira consulta médica ou
odontológica de milhões de pessoas.
O governo Lula deu sequência ao programa, chegando em 2010 a 31,6 mil
equipes em 5.300 municípios. No governo Dilma Rousseff, esperava-se que o
PSF recebesse mais apoio e recursos financeiros para continuar crescendo, mas
não foi isso o que aconteceu. Em três anos, o PSF ganhou apenas 3.000 novas
equipes, um aumento pífio.
A média anual de implantação de equipes do PSF no governo FHC foi de
2.046. No de Lula baixou para 1.870 e, no de Dilma, caiu ainda mais para
1.018, evidenciando o enorme retrocesso. Mantida a média dos governos
anteriores, o PSF deveria ter 40 mil equipes em 2014, o que, ao que tudo indica,
não irá ocorrer.
Incapaz de dar respostas corretas a essa fragilidade, o Ministério da Saúde,
sob o comando de Alexandre Padilha, criou um programa-tampão denominado
Mais Médicos, com a meta ambiciosa de contratar 13 mil médicos estrangeiros
e nacionais, em detrimento ao programa estratégico de saúde da família que,
segundo Adib Jatene, deveria atingir 52 mil equipes.
Até agora, foram contratados 6.600 médicos, 80% dos quais cubanos que,
em algum momento, voltarão ao seu país de origem. São trabalhadores
temporários. Ou seja, em vez de uma ação de caráter permanente em relação
às equipes de saúde da família, composta por nove profissionais, optou-se por
um inepto remendo de um médico temporário estrangeiro.
Se o atual governo federal tivesse dado a prioridade devida ao PSF, com
mais recursos aos municípios e incentivos permanentes à formação de mais
médicos generalistas, o Brasil não precisaria importar médicos, e a saúde
pública não seria tão mal avaliada pela população brasileira.
É precisamente a falta de profissionais da saúde voltados à atenção básica
das famílias que tem sobrecarregado hospitais e serviços de diagnóstico e
tratamento, bem como as redes de urgência e emergência nos municípios. Ao
completar 20 anos, o PSF merecia mais.
BARJAS NEGRI, 63, foi ministro da Saúde do governo Fernando
Henrique Cardoso e prefeito de Piracicaba pelo PSDB de 2005 a 2012

Sobre o campo dos discursos há um emaranhado de fios ideológicos e de vozes,

uma polifonia intensa. Observa-se uma constância de discursos já observados no primeiro

texto cotejado (TEXTO 1) que dialoga com o de Barjas Negri (TEXTO 2), e que o

discurso científico, da formação médica, entra em conflito com o discurso das demandas
87

da sociedade, e mesmo com um discurso que evidencia disputas políticas (entre os

Governos de Fernando Henrique Cardoso – PSDB - e Luís Inácio Lula da Silva - PT).

Porém, há algo mais material e concreto para ser analisado, pois em um discurso do

jornal Folha de S. Paulo (FSP), podemos ver a opinião isolada de um cidadão, como

podemos ver a visão da linha editorial do periódico; podemos ver a opinião de um homem

público, como podemos ler a opinião de homens anônimos, de outrora. A variedade e a

polifonia são imensas; entretanto é pautada por uma linha editorial conservadora do jornal

de maior circulação no país, o que vale ressaltar que as tradições culturas e grafocêntricas

no Brasil ainda são oligárquicas e defendem uma manutenção do poder por parte dos

donos da informação, por isso ao ler a FSP sempre será com um olhar analítico de

linguística – aquele que não apenas lê signos verbais, mas ideologias, vozes discursivas

e disputadas políticas no interior de cada enunciado. É bem realidade que os temas são

variados na FSP, como requer a democracia a que o Brasil vive hoje, e um deles nos

chama potencial atenção: o programa Mais Médicos sancionado em Outubro de 2013,

mas em debate desde junho do mesmo ano. Sobre o tema muitos discursos se deflagraram

na sociedade brasileira: o da “classe médica” em confronto com o do Governo Federal; o

da “classe média conservadora” em confronto com Políticas de Importação de Médicos

estrangeiros, em sua maioria cubanos; o da, chamada, Direita com o da, chamada,

Esquerda brasileiras; o discurso da Humanização da área da saúde e o discurso da

retificação da área acelerado pelo projeto neoliberal; o discurso da “medicina generalista”

com o da “medicina focada em especializações”; o discurso da “vocação pela medicina”

com o discurso da “medicina como carreira” com maior rentabilidade no país; o discurso

da ética e o discurso do capital.

Todas as vozes e discursos revelam um ambiente histórico no Brasil propício para

largas avaliações, dentre elas a nossa: avaliar como marcas textuais, sintomas dentro dos
88

discursos, enunciados ideológicos revelam uma tendência à Humanística; a qual as

Ciências Humanas, ao longo do último século, vêm influenciando as Ciências da Saúde

(naturais ou médicas), e vice e versa, em um diálogo tenso com a biopolítica (entendido

na obra de Michel Foucault como o estilo de governo que regulamenta a população

através do biopoder - a aplicação e impacto do poder político sobre todos os aspectos da

vida humana). Ao exemplo de um ex-primeiro ministro da Saúde escrever no periódico

de maior circulação do país e revelar em seu discurso de forma audível suas diferenças e

predileções por uma perspectiva mais ligada ao Programa de Saúde da Família (PSF); e

uma declarada posição crítica ao programa Mais Médico, chegando a chamá-lo de

“programa-tampão”. O artigo de opinião do ex-ministro da Saúde, Barjas Negri, deixa

claro os pontos de discórdia entre uma classe partidária e outra, contudo deixam mais

evidentes o modo como a Saúde, como conceito, depende intimamente de Políticas

Públicas, não só no Brasil, mas em todo país que busca o Bem-Estar Social apoiado em

estatísticas de índices de Qualidade de vida e de IDH – índices de desenvolvimento

humano.

O ex-ministro da Saúde do Brasil (Barjas Negri) traz dados relevantes da

implantação na última década, entre o PSF e a novidade do Mais Médicos e a abrangência

dos dois programas. Mas deixa claro sua predileção por “Mais Médicos de Saúde da

Família”, logo no título, e impõe estatísticas e dados ao longo do texto, que comprovam

com quem ou o que está confrontando (o Governo Federal). Neste ínterim o que valeria

ressaltar é a natureza do debate democrático que se abre com textos assim, pois coloca

em xeque uma discussão sobre a qualidade e quantidade de valores que devem ser

colocados em jogo dentro de um debate sobre o signo “saúde” e seu lastro em torno do

signo “Qualidade de Vida.”


89

Pelo cotejamento de apenas dois textos (TEXTO 1 e TEXTO 2, que são exemplos

da pequena temporalidade) já nota-se que há duas ideologias muito poderosas fabricando

toda a tensão dos discursos, sejam partidaristas, sejam técnicos, sejam acadêmicos, sejam

éticos. São eles: o humanismo subjetivista, de um lado; e o tecnicismo objetivista

abstrato, de outro. São duas forças poderosas que afetam o debate nas mídias e na

sociedade. Se pensarmos nestas duas forças, vamos ver que elas são os dois motores

ideológicos do mundo, sendo uma centrífuga e outra centrípeta; um oficial e outra

cotidiana, uma que dispersa energia e outra que produz energia. Fazendo movimentos

contrários uma a outra, mas criando movimento e um devir permanente na realidade da

língua e nas vidas humanas em diversas culturas. Há um discurso oficial, hoje, muito

próximo ao do consumismo exacerbado, racionalista, matemático, que cobra eficiência e

desempenho, produtividade – um discurso que vem matando pessoas. E outro discurso

que pede ponderação com o humano do Homem, pedindo reflexão sobre os caminhos que

transformam o homem em apenas máquina, que vêm objetificando o humano, vêm

reificando as relações. O fio tensionado entre as duas ideologias aparece tanto no texto

(2) de Barjas Negri quanto no texto (1) de Felipe Saclisa (por enquanto, só nos dois textos,

mas fica evidente no contraste causado pelo discurso de Dilma Rousseff em 22 de outubro

de 2013, que está transcrito no Capítulo Terceiro desta tese), pois ambos são passos

calculados na corda bamba da realidade em debate. O certo não está em um lado ou no

outro, mas no propósito do causador do conflito: as relações materiais e sociais.

O trato médico, ou a formação nas escolas de medicina, ou o “Programa de Saúde

da Família”, ou o do “Mais Médicos”, são sintomas de um debate entre duas ideologias

poderosas que movimentam o mundo, muito próximas ao que Bakhtin, em 1929, definiu

como Objetivismo abstrato e Subjetivismo individualista, para fazer uma crítica aos

caminhos metodológicos da Linguística do início do Século XX. Talvez, ali, naquele


90

momento histórico, Bakhtin tenha se dado conta da fissura no paradigma racionalista (no

Capítulo Segundo desta tese) e abertura para uma humanística ou para um humanismo

bahhtiniano, que seja a relação entre técnica e trato humano, e não apenas a supressão de

uma pela outra. Toda esta discussão teórica não apenas diz sobre as relações científicas,

mas, sobretudo, coloca as relações de vida, as relações reais, as relações materiais,

políticas e sociais em voga. Bakhtin usava a teoria para falar de vida, e usou a vida para

pensar também em teorias. Uma não exclui a outra. Estão em intensa relação como duas

grandes ideologias devem sempre estar e brigar. A tensão é que dá a omnilateralidade ao

Homem, em detrimento a unilateralidade que o Capitalismo ergueu com os tempos43. E a

omnilateralidade é a condição de uma Humanística bakhtiniana, mais do que isso, de um

Humanismo bakhtiniano.

43
O conceito de omnilateralidade é de grande importância para a reflexão em torno do problema
da educação em Marx e para a humanística bakhtiniana. Ele se refere a uma formação humana oposta à
formação unilateral provocada pelo trabalho alienado, pela divisão social do trabalho, pela reificação, pelas
relações burguesas estranhadas, enfim. Esse conceito não foi precisamente definido por Marx, todavia em
sua obra há suficientes indicações para que seja compreendido como uma ruptura ampla e radical com o
homem limitado da sociedade capitalista. A unilateralidade burguesa se revela de diversas formas: de início
a partir da própria separação em classes sociais antagônicas, base segundo a qual se desenvolvem modos
diferentes de apropriação e explicação do real; revela-se ainda por meio do desenvolvimento dos indivíduos
em direções específicas; pela especialização da formação; pelo quase exclusivo desenvolvimento no plano
intelectual ou no plano manual; pela internalização de valores burgueses relacionados à competitividade,
ao individualismo, egoísmo, etc. Um exemplo de visão omnilateral é o texto, “Consumo, logo existo”, de
Frei Betto, em que no último parágrafo o sistema capitalista é colocado em xeque: “vou com frequência a
livrarias de shoppings. Ao passar diante das lojas e contemplar os veneráveis objetos de consumo,
vendedores se acercam indagando se necessito algo. “Não, obrigado. Estou apenas fazendo um passeio
socrático”, respondo. Olham-me intrigados. Então explico: Sócrates era um filósofo grego que viveu
séculos antes de Cristo. Também gostava de passear pelas ruas comerciais de Atenas. E, assediado por
vendedores como vocês, respondia: “Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para
ser feliz.” (BETTO, Frei - http://triplov.com/frei_betto/consumo.html). Acessado em 02 novembro de
2014.
91

1.2 A HUMANÍSTICA BAKHTINIANA – O OLHAR DE MIKHAIL BAKHTIN E O OLHAR QUE


HUMANIZA O HOMEM.

“Pergunta e resposta não são


relações (categorias) lógicas; não
podem caber em uma só
consciência (una e fechada em si
mesma); toda resposta gera uma
nova pergunta. Perguntas e
respostas supõem uma distância
recíproca. Se a resposta não gera
uma nova pergunta, separa-se do
diálogo e entra no conhecimento
sistêmico, no fundo impessoal.”
[BAKHTIN]

É comum encontrarmos a resposta contida na pergunta, porém uma pergunta bem

feita pode valer mais que suas respostas, pois nela o gérmen de futuro está latente, já que

abre caminhos e possiblidades muito mais que as respostas, fruto de forças do Devir

bakhtiniano. Há em cada pergunta uma latência de futuro, uma espécie de gravidez de

futuro, o inesperado a ser criado. Na resposta está o dado, o esperado, o material, não

menos importante que a pergunta, mas mais próximo a pequena temporalidade do

previsível. É preciso olhar para as chamadas “ciências inexatas” e notar que o paradoxo

é seu centro, a “exatidão” está no interior da busca da “inexatidão” (até está na formação

das palavras). Portanto, a resposta deve gerar perguntas novas, pois é assim que o

dialogismo se faz de forma ininterrupta. A questão aqui se faz imprescindível: cabe

separar tanto ciências humanas das ciências exatas; as ciências do espírito das ciências

naturais (BAKHTIN, 2011); o subjetivismo individualista do objetivismo abstrato

(BAKHTIN, 2009), a linguística das ciências médicas?

Dada à novidade que são as Ciências da Linguagem e as Ciências Humanas

(nascidas somente no final do século XIX e início do XX), é ainda insipiente ou não

existe, atualmente, uma análise bakhtiniana no domínio de estudos da área da saúde. Se


92

pensarmos o último século, o mesmo em que viveram ou influenciaram as obras de

Ferdinand Saussure, Wilhelm von Humboldt, Michel Foucault, Michel Pêcheux e

Mikhail Bakhtin, ainda há territórios virgens, intocados, para análise das ciências da

linguagem, dita linguística, em suas análises da ordem dos discursos. Assim como para o

Círculo de Bakhtin no início do século XX - entre os anos de 29 e 30 - não havia uma

análise marxista do domínio da filosofia da linguagem, parece que a problemática de

nosso trabalho também caminha por um terreno virgem; por isso é preciso moderação e

olhar atento, já que estudar os discursos, as vozes, que permeiam e constituem a área da

saúde e o programa “Mais Médicos” estão todos ligados ao humano do homem, à sua

existência biopsicossocial-discursiva.

Dentro da separação que se fez entre “Ciências da Natureza” e “Ciências do

Espírito”, a qual boa parte dos teóricos participaram no século XIX, principalmente

Dilthey (BAKHTIN, 2011), convencionou-se colocar as Ciências Humanas na categoria

do segundo grupo, das “Ciências do Espírito”. Logo, ao final do século e início do XX

muitos outros teóricos de grande expressão não acataram tão bem e refutaram um

distanciamento tão binário, e pouco dialógico. O Círculo de Bakhtin em um primeiro

momento dialoga com a tese de Wilhelm Dilthey (1833 – 1911), pensador alemão que

esteve no centro dos debates sobre o estatuto das ciências humanas e sociais, e que foi

referência constante em todos os desdobramentos posteriores da hermenêutica. Dilthey

recusava o posicionamento positivista que pretendia reduzir as ciências humanas e sociais

às ciências da natureza.

Entendia ele que as “Ciências do Espírito” (Geisteswissenschaften) se


opunham às “Ciências da Natureza” (Naturwissenschaften) por terem objetos
ontologicamente diferentes e, por consequência, métodos diferentes. Segundo
Dilthey, o objeto das ciências da natureza (os fenômenos naturais) é estranho
ao sujeito cognoscente no sentido de que o ser humano não pode conhecê-lo
por dentro, a partir do interior; já o objeto das ciências do espírito (o mundo da
cultura) não é estranho ao homem. (FARACO, 2009, pág. 41)
93

É papel da filosofia questionar e continuar questionando os limites das ciências, por

isso de Nietzsche a Humboldt, de Kierkegaard a Sartre, de Kant a Freud, de Dilthey a

Bakhtin44, o trabalho de heterociência ou ciência das fronteiras - que é a filosofia - espécie

de ciência que permeia os campos de todas as ciências. Heterociência, que sempre deve

aparecer como o lugar do pensador, que é o lugar mais livre que o do cientista, para que

possa, com isso, transcender as fronteiras de disciplinas e metodologias estabelecidas.

Foi, portanto, papel dos filósofos no final do século XIX e durante todo o processo de

constituição da linguística, em seu primeiro século, o XX. O Círculo de Bakhtin, o tempo

todo em que produziu, esteve muito empenhado em construir um pensamento filosófico

vigoroso, para tanto passou pelos caminhos que encontrou dentro das ciências humanas,

da literatura à linguística, da estética à ética da filosofia do ato responsável, do marxismo

à filosofia da linguagem. E, portanto, nesta tese, acaba sendo desafio questionar os limites

da ciência da saúde que compreendem o homem em sua singularidade, de forma integral

e humana, e como os discursos e vozes fazem da tensão (o Homem) um ato responsável

na realidade.

Muito as ciências progrediram nos últimos anos, ainda mais nas últimas décadas, e

se compararmos os séculos, não houve um século tão dinâmico em revoluções para as

ciências humanas como o último, o século XX. Há aproximados 100 anos os discípulos

44
Sabe-se que há uma fonte de estudos de Bakhtin em Kierkegaard e Kant, e um forte diálogo e crítica à
Humboldt, Dilthey e Freud; embora a influência de Nietzsche e, menos ainda, de Sartre apareça em seus
trabalhos e escritos, vale pensar como tais pensadores são trilhas teóricas que podem se aproximar de
Bakhtin para pensarmos a fissura no paradigma racionalista. Em que Nietzsche aparece com destaque, pois
além de se intitular um filósofo trágico foi um dos primeiros a pensar a crise da razão e na tensão dialética
entre duas ideologias (uma apolínea, racional, que valoriza o objetivismo; e outra, dionisíaca, sensível, que
valoriza a subjetividade). Estas duas linhas de pensamento estão muito presentes na formulação do
Objetivismo Abstrato e do Subjetivismo Individualista que lemos no Marxismo e Filosofia da Linguagem,
de 1929.
94

de Ferdinand Saussure publicavam o marco inaugural da linguística – O Curso de

Linguística Geral. Livro tão lido quanto questionado pela escolha do método e do objeto

mínimo de análise: o fonema. O viés estruturalista ao qual o livro demonstra, muito mais

por uma visão dos discípulos do que pelo próprio Saussure, fez com que a Análise do

Discurso viesse ao encontro em meados do século buscar o fio ideológico, político, da

ordem dos discursos, em Pêcheux e Foucault como discípulos de uma linha de

Althusser45. A linha francesa deu contornos diferentes para a Linguística, pois mergulhou

no estudo daquilo que mais interessa as ciências humanas: a aproximação com o homem,

como animal político, e não somente como agente estruturador, lógico, matemático e

cartesiano. Contudo, as heterogeneidades discursivas e as frestas do saber científico

humano ainda estariam obscuras para a linguística se não houvesse a entrada dos

questionamentos do Círculo de Bakhtin, desde a década de 20 e sua descoberta no

ocidente na década de 70, sobre o papel das Ciências Humanas; sobre o objeto mínimo

de método científico: a voz, que dará razão ao conceito de polifonia ou de heteroglosia; e

sobre o enunciado concebido como aquele que só tem sua completude na interação, na

enunciação, em um contexto social determinado pelas relações que as atividades humanas

promovem, ou seja, sem o amplo conceito de dialogia a linguística não revolucionaria

seus próprios eixos.

Mas muito mais a história dos homens se fez nítida, com vozes, que delinearam

claramente, aos nascidos no século XX (principalmente pelas feridas narcísicas, que

falaremos na conclusão da tese), uma distinção entre o oficial e o cotidiano, entre o dito

45
Louis Althusser (1918 -1990) com seus conceitos de aparelhos ideológicos do estado influenciou a
formação de seus ilustres alunos franceses, principalmente os mais importantes para os estudos da
linguística do século XX: Michel Pêcheux e Michel Foucault, pois pensavam, a partir de Althusser, de
forma marxista a realidade material e histórica dos discursos.
95

e o não-dito, ou melhor, entre a substituibilidade, característica da obsolescência do

sistema neoliberal capitalista, e a “insusbstituibilidade” (talvez esteja aqui os pontos

cruciais de toda tensão da tese), característica da unicidade evêntica do ser sem álibi da

filosofia bakhtiniana. Aqui está o mais latente conflito da chamada humanística. O século

XX trouxe à tona a questão existencial entre liberdade e responsabilidade, entretanto

trouxe também novas concepções sobre a saúde, trazendo para as ciências o conceito de

“qualidade de vida”, e questionamentos e práticas que consideram o social, o ambiente,

os ciclos de vida, as interlocuções, como primordiais para uma prática clínica que englobe

a saúde do homem. O território virgem, intocado, das ciências da saúde em diálogo com

a filosofia de Bakhtin parece ter encontros: o homem (a humanística); o social (a

cronotopia); e o discursivo (o enunciado concreto das atividades humanas e interações

verbais).

Considerar o homem, hoje, é levar em conta as vozes que o constitui. De um lado a

voz hegemônica do capital; de outro a voz de uma sociedade de direitos; de outro a voz

totalitária do Estado; de outro a voz da natureza biológica de tempos cíclicos e finitos; de

outro a voz da prática dos profissionais da saúde; de outro a voz da cultura discursiva que

circula pelos periódicos de nossa época - a da opinião pública; de outro a voz do

pensamento filosófico que questiona as fronteiras científicas estabelecidas; de outro a voz

viva na pequena temporalidade - a imediata e das teorizações - seja da academia científica

ou das ruas cotidianas; e de outro, a voz perene da grande temporalidade – a que quer

transcender a pequena temporalidade, como parte de uma reflexão maior que, embora,

dispersa, difusa, heterogênea e não necessariamente contínua, se estende no tempo, isto

é, não começa das teorizações de hoje, nem nelas se esgota. Considerar o homem é

analisar, portanto, os pressupostos básicos em que a realidade da linguagem é o fenômeno

social da interação verbal, ou seja, a realidade da linguagem é a dinâmica da


96

responsividade, das relações dialógicas em sentido amplo. É considerar o homem sobre

o dado e o criado, mas também sob a dialogia que se abre no que é dado e por aquilo que

é criado (que vamos ao longo da tese demonstrando o que é o dado e o que é o criado,

embora o criado ficará bem explícito no capítulo terceiro, ao fazer uma análise simples

do Discurso de Dilma Rousseff sancionando a lei do programa “Mais Médicos”).

Sobre o dado se faz necessário coletar vozes, de tempos e temporalidades distintas,

que permitam uma análise do conceito de saúde, contudo, também, que abra uma larga

observação sobre a razão de haver uma espécie de migração discursiva para “Qualidade

de Vida”. Sob o dado, sob um enunciado, uma palavra, pode haver inúmeras atividades

humanas e atividades discursivas que permitem uma análise do signo verbal como

sintoma de mudança ou mesmo como dado de estabilidade. Mas também, sobre o criado,

pois,

O enunciado nunca é apenas um reflexo, uma expressão de algo já existente


fora dele, dado e acabado. Ele sempre cria algo que não existia antes dele,
absolutamente novo e singular, e que ainda por cima tem relação com o valor
(com a verdade, com a bondade, com a beleza, etc.). Contudo, alguma coisa
criada é sempre criada a partir de algo dado (a linguagem, o fenômeno
observado da realidade, um sentimento vivenciado, o próprio sujeito falante, o
acabado em sua visão de mundo, etc.). Todo o dado se transforma no criado.
(BAKHTIN, 2011, p. 326)

Por isso, ao falar em discurso de humanização na área da saúde pela visão da

filosofia bakhtiniana é também agir sobre o dado e ao mesmo tempo viver sobre o criado,

e por outra óptica, é viver sob o dado e agir no criado. Na área da saúde o surgimento do

biopsicossocial tornou-se quase hegemônico no século XX, já que fez a história da clínica

olhar para a saúde do homem por aspectos sociológicos, que por sua vez influência o

psíquico, e podendo afetar o biológico do indivíduo. Tornou-se comum, nos séculos XX

e XXI, estudos em “Medicina de Família e Comunidade”, ou conceitos como “Saúde

Coletiva”, “Saúde da Família” e a consequente chegada de profissões novas dentro da


97

área, como psicanalista, o psicólogo, o terapeuta ocupacional, o fonoaudiólogo, o

fisioterapeuta, e até mesmo repensou-se a dinâmica médica, odontológica e de

enfermagem. Todos são dados criados pela dinâmica a que os séculos caminharam e que

abriu perspectivas com força no século XX, que no entanto, nos faz observar que

mudanças e criações tão sintomáticas, fortes em teor discursivo, podem, em um grande

tempo, serem tomadas ainda do devir, próxima ao que a humanística bakhtiniana

direcionava: “o objeto real é o homem social (inserido na sociedade), que fala e exprime

a si mesmo por outros meios.” (BAKHTIN, 2011, p. 319), isto tudo, sem deixar de lado

o nosso objeto de análise linguística: o texto – que “é o dado (realidade) primário e o

ponto de partida de qualquer disciplina nas ciências humanas.”

Nesse chamado território virgem, enunciação, a que vivemos, em que a filosofia da

linguagem bakhtiniana pode iluminar as ciências da área da saúde, em recíproca

verdadeira, faz com que sobre o dado haja um criado, ou seja, haja uma tese a ser

interrogada à luz das ciências, dos textos e da própria noção de temporalidade, que

levantaria a saúde como um processo biopsicossocial-discursivo; que entenda o homem

de forma integral e humana pelo Sistema Único de Saúde (SUS); que conceba a noção de

corpo como finito, porém podendo ser cuidado por uma saúde preventiva; que não

descarte os estudos psicanalíticos sobre a saúde mental do cidadão; que revigore o

entendimento do homem pelo próprio homem, pela necessidade das relações sociais e

pela qualidade a que elas são pautadas; e principalmente que compreenda que os discursos

são de natureza ideológica, portanto são artificiais na história e são orgânicos na cultura,

e que o homem é objeto real de análise linguística, por meio de seus discursos e interações

com o meio, o tempo, a cultura, o Outro e com o Devir, ou seja, que compreenda o homem

por sua natureza dialógica também na concepção daquilo que se convencionou chamar

de Saúde.
98

Não há saúde sem dialogismo, como não há homem sem território preciso

socialmente organizado e que dele não surjam às interações e mais variadas atividades

humanas para a manutenção da vida, seja dado pelo nome “saúde” ou mais recentemente

na história de “Qualidade de Vida”.

TEXTO 3. Exemplo da Pequena Temporalidade

O pronunciamento de Dilma – ao Sete de Setembro.


DE SÃO PAULO
- Publicado na Folha de São Paulo.

“Queridas brasileiras e queridos brasileiros,

Há 191 anos o Brasil viveu sua primeira grande mudança política. Deixou de
ser uma colônia para se transformar em um país independente. Hoje, nosso
Grito do Ipiranga é o grito para acelerar o ciclo de mudanças que, nos últimos
anos, tem feito o Brasil avançar. O povo quer, o Brasil pode e o governo está
preparado para avançar nesta marcha.
2013 tem sido um ano de intensos desafios políticos e econômicos aqui e
no resto do mundo. Apesar da delicada conjuntura internacional, nossa
economia continua firme e superando desafios. Acabamos de dar uma prova
contundente. No segundo trimestre fomos uma das economias que mais
cresceu no mundo. Superamos os maiores países ricos, entre eles os Estados
Unidos e a Alemanha. Ultrapassamos a maioria dos emergentes e deixamos
para trás países que vinham se destacando, como o México e a Coreia do Sul.
O melhor é que crescemos em todos os setores, e a indústria e os
investimentos mostraram franca recuperação. Falharam mais uma vez os que
apostavam em aumento do desemprego, inflação alta e crescimento negativo.
Nosso tripé de sustentação continua sendo a garantia do emprego, a inflação
contida e a retomada gradual do crescimento.
(...)
Minhas amigas e meus amigos,

O Pacto da Saúde irá produzir resultados rápidos e efetivos. O Mais Médicos


está se tornando realidade, e tenho certeza de que, a cada dia, vocês vão sentir
os benefícios e entender melhor o grande significado deste programa.
Especialmente você que mora na periferia das grandes cidades, nos pequenos
municípios e nas zonas mais remotas do país, porque você conhece bem o
sofrimento de chegar a um posto de saúde e não encontrar médico, ou ter que
viajar centenas de quilômetros em busca de socorro.
O Brasil tem feito e precisa fazer mais investimentos em hospitais e
equipamentos, porém a falta de médicos é a queixa mais forte da população
pobre. Muita morte pode ser evitada, muita dor, diminuída, e muita fila,
reduzida nos hospitais, apenas com a presença atenta e dedicada de um médico
em um posto de saúde.
99

A vinda de médicos estrangeiros, que estão ocupando apenas as vagas que


não interessam e não são preenchidas por brasileiros, não é uma decisão contra
os médicos nacionais. É uma decisão a favor da saúde.
O Brasil deve muito a seus médicos, o Brasil deve muito à sua Medicina,
mas o país ainda tem uma grande dívida com a saúde pública e essa dívida tem
que ser resgatada o mais rápido possível.
(...)
Viva o Sete de Setembro! Viva o Brasil! Viva o povo brasileiro!
Obrigada e boa noite.”

Já que o signo não pode se dissociar do tema, pois forma e tema do signo ideológico

só poderão ser desmembrados abstratamente; logo todo signo ideológico vê-se marcado

pelo horizonte social de sua época e de seu grupo social. Nas palavras de Bakhtin: “Todo

signo, como sabemos, resulta de um consenso entre indivíduos socialmente organizados

no decorrer de um processo de interação.” (1929, p. 45). O pronunciamento da presidenta

da república para o 7 (Sete) de Setembro - data comemorativa da independência do Brasil

- guarda não só o horizonte de vozes, mas também marcas dos grupos sociais e vozes

sociais, políticas, econômicas, jurídicas, éticas, científicas – polifonias discursivas.

Ao enunciar um discurso muito se revela, no caso do pronunciamento da presidenta

se revelou um caráter republicano forte, resquício da memória republicana brasileira que

vê na data da independência uma marca histórica da descolonização, do pensar por si

próprio como nação; há logo no início a forte presença do discurso econômico, cercado

de dados sobre os índices de crescimento da indústria, contenção da inflação e controle

ou melhora dos índices de emprego (“O melhor é que crescemos em todos os setores, e a

indústria e os investimentos mostraram franca recuperação. Falharam mais uma vez os

que apostavam em aumento do desemprego, inflação alta e crescimento negativo. Nosso

tripé de sustentação continua sendo a garantia do emprego, a inflação contida e a retomada

gradual do crescimento.”) – tudo isso faz parte de um discurso de viés econômico mas

também trabalhista, e que demarca o homem como ser jurídico, como aquele que vive

sob as leis que lhe asseguram emprego e dignidade; há um discurso sobre a dignidade
100

também atrelado ao cuidado da saúde, ao qual o Governo Federal está tratando o

programa “Mais Médicos”, mas muito mais forte é o caráter humanitário que alimenta o

discurso de qualidade de vida, de cuidado com qualquer ser humano de lugares

longínquos, periféricos e que por escolhas de status econômicos de uma certa parcela da

classe médica não são tratados. A explicação mais óbvia é de questões ideológicas e

econômicas, para tamanho número de médicos nas periferias e em comparação aos

grandes centros como São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal (média de 4 médicos

por 1 mil habitantes) para a própria periferia da capital de São Paulo (que precisa de mais

de 1mil médicos do programa “Mais Médicos”) ou de estados como o Piauí, que tem o

pior índice da Federação (com 0,7 médicos por 1mil habitantes).

Vale ressaltar o trecho do discurso de Dilma Rousseff, em 7 de setembro, em que

coloca em debate o uso de uma medicina humanizada contra uma medicina apenas

equipada e técnica: “O Brasil tem feito e precisa fazer mais investimentos em hospitais e

equipamentos, porém a falta de médicos é a queixa mais forte da população pobre. Muita

morte pode ser evitada, muita dor, diminuída, e muita fila, reduzida nos hospitais, apenas

com a presença atenta e dedicada de um médico em um posto de saúde.” (Os grifos são

meus). O “porém”, como partícula adversativa, separando as duas orações iniciais coloca

o debate em seu lugar em voga: de um lado o fazer da medicina que acredita que a

presença do médico já alivia complicações no sistema de saúde da população mais carente

e; de outro rebate o discurso que cobra equipamentos e hospitais, que são investimentos

muito mais dispendiosos. O conflito está aceso e armado entre essas duas orações. Um

conflito que se estende entre classes, entre discursos, entre técnicas de formação médica,

entre visões científicas, entre visões políticas. O “apenas” na sequência do período,

aparece como advérbio, para dar ênfase ao discurso de humanização frente ao técnico. O

advérbio serve para acentuar a tensão entre os discursos, entre as ideologias, e fazer da
101

materialidade do dizer uma centelha que provoca o fogo nos debates. A materialidade de

um texto reflete e refrata a materialidade histórica dos jogos sociais, por isso não dá para

dissociar texto de seu contexto, pelo viés da Linguística bakhtiniana.

É papel da linguística não se prender a amarrações de ordem de classe, ou vieses

políticos que deterioram a visão sobre o ser humano, pois quando o humano do homem

está em foco científico, a ética dos trabalhos deve prevalecer. As ciências humanas dentro

da área da saúde podem ajudar, quando trabalhadas pelo humanismo da alteridade em

Bakhtin (PONZIO, 2008), que respeita as singularidades de um corpo saudável e ainda

mais de uma visão ideológica salutar, distante das amarras de poder em que algumas

classes sociais que vincularam. Há muitos interesses em discussão em torno do signo

“Mais Médicos”, mas há muito mais no grande tempo do signo saúde que se revelam

renovadamente a cada vida que se trata, seja na periferia ou em um grande e renomado

hospital de uma grande metrópole do mundo. Tratar saúde é cuidar do ser humano.

Mesmo que o corpo físico, objeto de estudos em anatomia sirva à saúde, ou para ciências

humanas da filosofia da medicina, pois o corpo material é também um produto ideológico

do saber, da construção do saber que cerca o laboratório de anatomia em uma

universidade de formação médica.

Para um pesquisador, o tempo é de dialogismos, e não de visões estanques e de

respostas já previsíveis. Ciências Humanas são Ciências Naturais, pela natureza da

proposição e da serem, ambas, conjecturais (GINZBURG, 1983, p. 128) na pesquisa da

“coisa viva” e não apenas da “coisa morta”. É isso o que a Linguística não deixou

escapar: seu poder conjectural de fazer perguntas, muita mais do que fazer uma exegese

das respostas.

Nota-se em todo o debate a presença evidente das duas forças ideológicas

(humanismo subjetivista e tecnicismo objetivista abstrato) no discurso da presidente da


102

república no 7 de setembro, ou no modo como Ginzburg (entre o método galileano e as

ciências conjecturais), Ponzio (entre o Humanismo da identidade e o Humanismo da

Alteridade) e Bakhtin formulam suas teorias. E parece ser esta a relação mais densa a que

podemos estudar e prosseguir os escritos nos próximos tópicos e capítulos.


103

1.3 O HOMEM E A CLÍNICA – TECNOLOGIA DO PODER EM FOUCAULT E O HOMEM COMO


PODER REIVINDICADO E EXERCIDO NA HISTÓRIA DA HUMANIZAÇÃO DA ÁREA DA SAÚDE

“Geralmente, pode-se dizer que


existem três tipos de lutas: contra as
formas de dominação (ética, social
e religiosa); contra as formas de
exploração que separam os
indivíduos daquilo que eles
produzem; ou contra aquilo que liga
o indivíduo a si mesmo, e o
submete, deste modo, aos outros
(lutas contra a sujeição, contra as
formas de subjetivação e
submissão).”
[FOUCAULT]

No mito do minotauro Quíron, filho de Cronos e da ninfa Filira, foi adotado por

Apolo – Deus do Razão -, que lhe ensinou todos os seus conhecimentos: artes, música,

poesia, ética, filosofia, artes divinatórias e profecias, terapias curativas e ciência. Quando

Quíron tornou-se adulto, era conhecido como um grande sábio, profeta, médico e mestre

por transmitir seus conhecimentos a todos que desejassem aprender. Ele era o ‘centauro

chefe’ e o preceptor máximo. Ele tinha o poder de cura nas mãos, e o que não conseguia

curar, ninguém mais conseguia. Mas um dia, foi ferido em uma festa pela flecha de

Hércules, que havia sido banhada no sangue da Hidra (monstro com várias cabeças de

víboras venenosíssimas), causando em Quíron uma ferida incurável. Surgindo aí um dos

maiores paradoxos da mitologia que acompanha a história do homem: pois aquele que a

todos curava, não poderia curar a si mesmo. A admiração por Quíron, na mitologia, vem

pelo caráter humanitário e persistente de dar cura aos que precisam, mesmo que não

tivesse o mesmo êxito para a sua própria cura. Quíron tornou-se símbolo da medicina, na

etimologia seu nome quer dizer “aquele que trabalha e age com as mãos” - ou seja,

cirurgião -, e é símbolo máximo àqueles que desejam formar-se médicos humanitários.


104

Quíron e em sua saga incurável assemelha-se a ideia de alteridade, que,

vigorosamente, é um dos pilares de toda obra filosófica de Bakhtin, pois a cura que o

médico busca é para o Outro, mesmo que para si não sirva, o profissional de saúde deve

reconhecer a dor do outro para poder cuidar, mas também se deve afastar da dor que não

é sua, por questões físicas, psicológicas, de sanidade e de sapiência. O humanismo da

alteridade (PONZIO, 2008), em Bakhtin, que trata de um ato responsável não indiferente

ao outro, traz muito dessa perspectiva que o cuidado com o outrem pede. Seja na medicina

ou nas ciências humanas é cada vez mais a pretensão da ética científica, que precisa

colocar o homem como centro das ciências, uma abordagem mais humanizadora, pois são

nelas que os discursos se deflagram e na realidade se espraiam.

A alteridade metaforizada em Quíron e em sua danação, pode parecer a mesma que

o homem tem em relação ao Outro, já que temos uma necessidade estética absoluta do

Outro, uma necessidade de acabamento estético pela visão, pelo excedente de visão do

Outro (BAKHTIN, 2011), o que acaba nos gerando uma vigorosa necessidade ética

também da alteridade mais imediata ou distante que só o Outro nos dá. Ética e estética

estão “indissociadas”, pois ambas são valores adquiridos do mundo exterior, são

ideologias do mundo externo, como bens materiais e simbólicos de uma época. Não é à

toa que a palavra ética está no interior da palavra estética – Est [ética], já que ambas

trabalham na consciência dos homens. Quíron é essa analogia do homem com seu igual,

em finitude mortal; com seu dessemelhante em vida e escolhas dentro dela; é um dos

mitos do eterno retorno (NIETZSCHE, 2014) que movem as atividades cotidianas de

cuidado com o Outro, de pensamento a longo prazo, de altruísmo, de generosidade, de

prevenção – características as quais um médico humanizado deve trabalhar em si e

promover no outro. O sábio minotauro adquire sapiência ao encontrar e buscar em si a

cura os cuidados, os antídotos para os Outros; mas por maldição, danação, ou natureza
105

mítica qualquer, não obtém para si; só consegue para o Outro. Esta ideia casa com a

concepção bakhtiniana de que a diferença do/com outro nos promove como singularidade,

nos identifica, porque nos distingue em partes. Mas chegar a uma concepção clínica, de

tratamento medicinal no mundo contemporâneo, em que a singularidade, a alteridade, e

as faces individuais sejam consideradas relevantes é uma atividade também, por que não

dizer, hercúlea. As vozes e os discursos que circulam na pequena temporalidade, na

atualidade, nas mídias interativas, levam quase todas para um descuido humano, uma

objetificação desnecessária que trata o paciente como algo passivo. Entretanto, um,

chamado, “paciente” é alguém vivo, com histórias, com memória, com laços familiares e

sociais, como todo homem enquanto ser cultural (todavia, vale fazer uma ressalva, pois

aquele que está doente é chamando de “paciente” porque a doença não é um ato voluntário

da pessoa – a pessoa não quer ficar doente, comumente). Sendo pois equivocado tratar o

“paciente” como alguém que não sente e vive, pois ao fazer isso seria ocultar a sanidade

da própria medicina. Passa pelo caminho do reconhecimento da alteridade, como ponte

dos processos terapêuticos e clínicos, o bom uso da saúde como sinônimo de qualidade

de vida. A história da clínica diz muito deste processo a que passamos e chegamos, e um

dos maiores nomes da filosofia a pensar tal processo é do francês Michel Foucault.

É importante ressaltar, logo neste ponto da tese, que Foucault (em toda sua obra,

principalmente na História da Sexualidade) não nos dá caminhos, mas nos ilumina os

caminhos do pensamento, como deve fazer um pensador. Diz Foucault: “O indivíduo é,

sem dúvida, o átomo fictício de uma representação “ideológica” da sociedade; mas é

também uma realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder que se chama

‘disciplina’” (FOUCAULT, 1987, p. 161). Parece ser esta a sentença que nos faltava para

guiar os estudos sobre Foucault. Nitidamente, propôs-se a construir um pensamento sobre

as ciências, e não uma Ciência. É um estudioso no mais puro e iluminado sentido do


106

termo, pois se propôs, pelo que lemos em sua vasta obra, um panorama sobre a Clínica,

sobre o homem do século XX, que seria uma espécie de justaposição das culturas e

histórias que recebe e oculta, portanto é o indivíduo uma “representação ideológica” da

sociedade, como um vivente cultural.

Lendo Foucault, vem uma visão mais pormenorizada sobre sua obra a partir de suas

aulas e conferências na década de 70. Em um primeiro momento parecia, Foucault, aceitar

o assujeitamento de forma muito clara, porém não o fez assim tão simplesmente, apenas

descreveu as formas em que o sujeito transformou-se em jurídico-disciplinar, para que

observássemos o modo como as Ciências caminham e para iluminar onde teríamos que

trilhar, se quiséssemos o humano em seu lugar de direito, que é o centro das ciências. Por

isso os estudos sobre a Clínica são todos ligados aos poderes disciplinares, e uma

ordenação teórica toda pautada em relações de disciplina e poder:

Creio que o poder disciplinar é certa modalidade, bem específica da nossa


sociedade, do que poderíamos chamar de contato sináptico corpo-poder (o que
metodologicamente implica deixarmos de lado o problema do Estado, dos
aparelhos de Estado, e nos desembaraçarmos da noção psicossociológica de
autoridade). (FOUCAULT, 1973. p. 51)

E mais adiante explica a noção de poder disciplinar:

Numa relação de soberania, o que chamarei de função-sujeito se desloca e


circula acima e abaixo das singularidades somáticas; e, inversamente, os
corpos vão circular, se deslocar, se apoiar aqui ou ali, fugir. Vai-se ter,
portanto, nessas relações de soberania um perpétuo jogo de deslocamentos, de
litígios, que vão fazer as funções-sujeitos circular umas em relação às outras e,
depois, as singularidades somáticas, digamos – com uma palavra que não me
agrada muito, vocês já verão por quê -, os indivíduos. E a vinculação da
função-sujeito a um corpo determinado é coisa que só se pode fazer de maneira
descontínua, incidente, momentânea, por exemplo em cerimônias. (Idem, p.56)

Também a partir de Foucault podemos pensar que o sujeito contemporâneo é uma

justaposição de símbolos históricos e ideológicos, que faz pensar que o processo é

totalitário ao ponto de aceitarmos o assujeitamento – vale ressaltar que na obra de Bakhtin


107

é impossível o ter assujeitamento. Mas, não, pois além de decretar algo subjugado ao jogo

social é algo que aponta também um corpo sofisticado que escolhe e filtra para si o que

pode dar conta de si, é um Eu de justaposições, mas também de escolhas e de negações

perante o poder disciplinar. Portanto, o sujeito emerge quando usa a língua, para

intermediar a realidade. A palavra surge como poder vigoroso do homem na história, as

chamadas técnicas de si em Foucault e ato responsável em Bakhtin.

Há um largo campo assustador nas teorizações de Foucault, já que um poder quer a

assepsia da história e a ordem como deusa das relações. Mas isto faz parte de um

pensamento racionalista que entrou em crise no século XX e Foucault contribui para a

ruína, da melhor forma, por dentro. Porém não podemos negar que o pensador francês

produziu sistemas filosóficos que viam o poder disciplinar tomar conta das atividades

humanas: “O poder disciplinar olha para o futuro, para o momento em que a coisa

funcionará sozinha e em que a vigilância poderá não ser mais que virtual, em que a

disciplina, por conseguinte, tornar-se-á um hábito.” (1973, p.59). Disto, vieram as

problemáticas estruturalista e racionalistas que devemos negar com força e estudos:

Têm no poder disciplinar uma série constituída pela função-sujeito, a


singularidade somática, o olhar constante, a escrita, o mecanismo da punição
infinitesimal, a projeção da psique e, finalmente, a divisão normal-anormal. É
tudo isso que constitui o indivíduo disciplinar; é tudo isso que ajusta enfim um
ao outro a singularidade somática e um poder político. E o que podemos
chamar de indivíduo não é aquilo a que se prende o poder político, o resultado
dessa vinculação, pelas técnicas que lhes indiquei, do poder político à
singularidade somática. (...) E, nessa medida, se o que eu lhes disse é verdade,
vocês estão vendo que não se pode dizer que o indivíduo preexiste à função-
sujeito, à projeção de uma psique, à instância normalizadora. Ao contrário, é
na medida em que a singularidade somática se tornou, pelos mecanismos
disciplinares, portadora da função-sujeito que o indivíduo apareceu no interior
de um sistema político. É na medida em que a vigilância ininterrupta, a escrita
contínua, a punição virtual enquadrou esse corpo assim sujeitado e dele
extraíram uma psique, é nessa medida que o indivíduo se constituiu; é na
medida em que a instância normalizadora distribui, exclui, retoma sem cessar
esse corpo-psiquê que o indivíduo se caracteriza. (Idem, pág. 70)
108

Dentro das normatizações, padronizações, disciplinas é que o sujeito também se

manifesta. O sujeito está em jogo entre o que preexiste e o que faz daquilo que existe. A

força desasujeitadora do indivíduo está nisso: na forma como ele filtra, dialoga, escuta,

produz texto diante às condições de produção cultural, o que é uma armadilha, pode ser

também sua liberdade. Aparece aí a ideia de corpo subjetivado que não há querer em

desfazer as hierarquias, as coerções, as proibições, para valorizar o indivíduo, como se o

indivíduo fosse algo que existe em todas as relações de poder, que preexiste às relações

de poder e sobre o qual pesam indevidamente as relações de poder. Na verdade, o

indivíduo é o resultado de algo que lhe é anterior e que é esse o mecanismo, todos esses

procedimentos, que vinculam o poder político ao corpo. É porque o corpo foi

“subjetivado”, isto é, porque a função-sujeito fixou-se nele, é porque ele foi

psicologizado, porque foi normalizado, é por causa disso que apareceu algo como o

indivíduo, a propósito do qual se pode falar, se pode elaborar discursos, se pode tentar

fundar ciências. Ou seja, as Ciências surgem do indivíduo, que articula o corpo com o

espaço e o tempo.

Pensando nas diretrizes do pensamento foucaultiano, o tempo e o espaço são a

cultura, a cronotopia a que o homem, promotor de ciência, deve se articular, responder,

conviver, modificar, por isso logo damos de encontro com o discurso do capitalismo,

como forma disciplinadora, como forma sistêmica de ação do indivíduo com a vida, com

a saúde, com o corpo, com a qualidade de vida. Sobre o capitalismo e a individualização

o pensador francês da microfísica do poder diz:

Tem-se o costume de fazer da emergência do indivíduo no pensamento e


na realidade política da Europa o efeito de um processo que é ao mesmo tempo
o desenvolvimento da economia capitalista e a reivindicação do poder político
pela burguesia; disto teria nascido a teoria filosófico-jurídica da
individualidade que vocês veem se desenvolver, grosso modo, desde Hobbes
até a Revolução Francesa. (...)
A constituição efetiva do indivíduo a partir de certa tecnologia do poder;
e a disciplina parece-me ser esta tecnologia. (...)
109

De um lado o indivíduo jurídico-disciplinar – o individualismo – de outro,


houve o desenvolvimento de toda uma tecnologia disciplinar que fez aparecer
o indivíduo como realidade histórica, como elemento das forças produtivas,
mas como elemento também das forças produtivas, como elemento também
das forças políticas; e esse indivíduo é um corpo sujeitado, pego num sistema
de vigilância e submetido a procedimentos de normalização. (Idem, p. 71)

A tecnologia do poder capitalista ao mesmo tempo que cerceia os limites do

indivíduo, ao longo da história, deu a ele autonomia perante a própria história. Na Idade

Média o homem que não pertencia a certas castas sociais não tinha autonomia de vida,

liberdade de expressão, potencialidades de individualização, por uma gama de fatores

ideológicos, políticos, sociais do ambiente medieval com baixa expectativa de vida e

quase nula qualidade das liberdades individuais, o que se modificou gradualmente e

potencialmente com o advento de uma tecnologia de poder chamada capitalismo. A teoria

toda de Foucault é feita, portanto de um paradoxo que envolve o ser humano: pois

cerceia e liberta, assujeita e potencializa o sujeito, disciplina e cria rebeldias.

Contudo, o que caberia pensar aqui é como as ciências da saúde podem ser

influenciadas pela ciência que tem o humano do homem como centro. Qual a contribuição

às ciências humanas Foucault traz, que possa ajudar a construir relações de poder dentro

da área de saúde de forma mais salutar? A resposta do teórico, discípulo de uma tradição

francesa pós-maio de 68, aponta para o sujeito jurídico em confronto com o sujeito

humanista, da disciplina à liberdade histórica:

As ciências humanas – é o jogo entre o indivíduo jurídico – homem como


indivíduo disciplinar – e conjuntamente se tem na direção inversa o discurso
humanista – com àquela que diz o indivíduo disciplinar é alienado, sujeitado,
é um indivíduo que não é autêntico 'desbastem-no, ou melhor, restituam-lhe a
plenitude dos seus direitos, e encontrarão, como sua forma originária viva e
vivaz, um indivíduo que é o filosófico-jurídico'. (...)
E o que se chama Homem, nos séculos XIX e XX, nada mais é que a
espécie de imagem remanescente dessa oscilação entre o indivíduo jurídico,
que foi o instrumento pelo qual em seu discurso a burguesia reivindicou o
poder, e o indivíduo disciplinar, que é o resultado da tecnologia empregada por
essa mesma burguesia para constituir o indivíduo no campo das forças
110

produtivas e políticas. É dessa oscilação entre indivíduo jurídico, instrumento


ideológico da reivindicação do poder, e o indivíduo disciplinar, instrumento
real do seu exercício físico, é dessa oscilação entre o poder que é reivindicado
e o poder que é exercido que nasceram essa ilusão e essa realidade que
chamamos o Homem. [FOUCAULT, 1971, p. 34]

Foucault é bem claro, nesta passagem, sobre o paradoxo que cerca o indivíduo em

sujeito na pequena e na grande temporalidade discursivas, na atualidade capitalista e na

história da montagem dos sistemas políticos, jurídicos, econômicos e culturais. O Homem

é uma espécie de ilusão e, paradoxalmente, de realidade do poder exercido e do poder

reivindicado dentro da ordem disciplinar e jurídica. Tal sujeito jurídico é a resposta de

um sistema pautado em direitos biopolíticos. Tal sujeito disciplinar é a resposta de um

sistema pautado em deveres. Ambos são adventos históricos da contemporaneidade

histórica, desde os Iluministas, pois neles o poder do direito ganhou campo e hoje tanto

influencia as atividades humanas em diferentes foros de articulação e busca por

dignidade, cidadania e privacidade. A sofisticação do mundo contemporâneo coloca a

saúde do homem também neste lugar jurídico e disciplinar. Os planos de saúde, os

programas de governo na área, as atividades preventivas, o cuidados curativos, as

recomendações por exercícios físicos, as variadas abordagens alimentares, a política de

importação de médicos, os litígios discursivos dos dentro das entidades representativas

de classes fazem parte de uma grande e sofisticada trama de fios ideológicos e discursivos

que tecem a palavra, como signo ideológico, como signo histórico, como signo

sociológico, como signo científico, como signo filosófico. Por isso ao analisar as razões

da aproximação do signo “saúde” de uma palavra que hoje parece seu sinônimo imediato

“qualidade de vida”, descobrimos e descortinando o humano do homem dentro das

ciências, dentro dos textos, como objeto de análise do próprio homem, como objeto

material da história seja como ilusão, mas também como realidade. Tratar “saúde” como

conceito é aproximá-la da Filosofia, ciência que faz a metacientificidade, a leitura


111

superior das ciências, como ciência supervisora e que traz as relações para o chão, para o

orgânico, para a finitude das coisas finitas, e para a utopia das coisas infinitas, pois

trabalha o homem no seu tempo de vida, mas também vê o homem além do seu tempo. O

vigor bakhtiniano trabalha este pequeno tempo e o grande tempo de forma concomitante

em todas as obras do Círculo, já que entende que ciência é esta espécie de limite, mas a

filosofia é um deslimite das ações científicas. É a cobrança ética sobre as formas morais.

Em outras palavras: entre Kant, o papel da filosofia é prevenir a razão de


ultrapassar os limites daquilo que é dado na experiência; porém ao mesmo
tempo – isto é, desde o desenvolvimento do Estado Moderno e da gestão
política da sociedade, o papel da filosofia é também vigiar os excessivos
poderes da racionalidade política.” (Idem, p. 233)

Cabe a Filosofia contemporânea questionar e vigiar os excessivos poderes políticos,

cabe a ciência da linguagem estudar como esses poderes se exercem pelos jogos de

linguagem e de discurso sobre e sob as relações da tecnologia de poder, chamada de

Capitalismo. Cabe também a ciência da linguagem olhar para o enunciado como objeto

material de um mundo representado, pois há ali ideologia, há ali bem um simbólico, há

ali bem cultural e saber científico acumulados. Um texto nunca é apenas um objeto

humano, é bem ideológico de uma época, é o bem concreto das ações subjetivas e

objetivas das políticas do cotidiano. Ao ler e comentar um texto estamos analisando a

história e, fundamentalmente, a política (ou a biopolítica).

Texto 4. Exemplo de Pequena Temporalidade.

Dilma rebate críticas e diz que importação de médicos é medida de curto


prazo
08/07/2013 -18h38

A presidente Dilma Rousseff usou seu discurso durante o anúncio de seu


programa para ampliação do número de médicos no sistema público nesta
segunda-feira (8) para rebater críticas da classe médica. Ela afirmou também
112

que o governo não vai priorizar a contratação de médicos estrangeiros em


detrimento daqueles formados no Brasil.
Uma das medidas anunciadas obriga os estudantes de medicina a
trabalharem por dois anos na rede pública de saúde antes de conseguirem o
registro definitivo de médico. Com isso, a duração do curso passa de seis para
oito anos.
As críticas motivaram uma série de manifestações da categoria pelo país
nas últimas semanas. Os atos atacaram infraestrutura e baixos salários -
reforçados pela presidente também como investimentos prioritários--, mas
sobretudo contra a priorização de mão de obra estrangeira.
Nesta segunda-feira, a Folha mostrou que, sob pressão, o governo desistiu
da importação de 6.000 médicos cubanos ao país e deve lançar nesta semana
programa para atrair profissionais estrangeiros tratando Espanha e Portugal
como países "prioritários".
Segundo Dilma, o programa "não tem como principal objetivo trazer mais
médicos do exterior, mas sim levar mais saúde para o interior do Brasil".

"Até que tudo isso aconteça, eu pergunto a vocês e pergunto a todos os


brasileiros que nos assistem neste momento: quem vai atender aos brasileiros
que não têm acesso médico até que todo esse processo amadureça e aconteça?
Estou falando do agora, dos próximos meses, porque é com isso que o governo
tem de se preocupar, com o que vai acontecer mais na frente e o que vai
acontecer agora. Estou falando da justa e inquestionável reclamação dos
brasileiros por uma saúde pública melhor agora", completou Dilma.
A presidente insistiu que "o conhecimento profissional, o contato humano,
a boa orientação, são atitudes que estão acima de tudo". "Valem mais do que
máquina de última geração", disse.
"Não se pode obrigar um médico que prefere viver na capital a ir para o
interior. Não se pode fazer isso. Mesmo que possamos oferecer toda a estrutura
necessária e uma boa remuneração. O profissional de saúde tem o direito de
trabalhar onde quiser, de viver com sua família onde preferir, e de fazer o tipo
de medicina que escolheu como melhor para sua carreira", afirmou a
presidente.

A contrapalavra é uma resposta dada a uma palavra anterior (Dilma Rousseff está

claramente contrapalavrando outros discursos no texto acima). Pensemos um pouco mais

teoricamente, já que o ato responsivo a que o ser humano faz desde seu nascimento

sofistica-se ao longo da vida, podendo chegar ao patamar de questionar os bens

simbólicos, ideológicos e discursivos de sua época e de outras (Foucault, Nietzsche e

Bakhtin fizeram isso). O saber filosófico que se prima em estudos, leituras de outras

culturas, outros tempos, e modos de pensar, faz surgir no humano do homem uma
113

categoria ímpar de pensador, não mais o pensador que naturalmente pensa, mas o que usa

o seu senso crítico natural para observar como os jogos de poder são artificiais, são

invenções históricas, discursivas e ideológicas. Porém, por mais que sejam artificiais, são

reais, materiais e são alimento das consciências e das formas de subjetividade humana

também. O pensar do filósofo se distingue, ao lado da linguística, dos outros que são

agentes do cotidiano. Como em uma metáfora contado pelo professor de literatura

italiana, da Universidade da Calábria, Nuccio Ordine Diamante, para seus alunos: “Dois

peixes jovens encontram-se casualmente com um peixe mais velho que nada na direção

contrária. Este cumprimenta-os com a cabeça e lhes diz: ‘Bom dia, rapazes, como está a

água?’. Os dois peixes jovens nadam mais um pouco; depois um olha para o outro e

pergunta: "Que diabos é água?". A intenção, desta parábola, é ilustrar o papel e a função

da cultura.

Parece que em uma metáfora simples e ordinária pode-se dizer que o linguista ao

lado do filósofo ou pensador de cultura, deve saber que é “peixe” e está na “água”,

diferentemente dos outros “peixes” que não se dão conta que estão na “água”. Se a “água”

turva, se agita, ou sofre o efeito da poluição o pensador questiona-se das causas e as vê

como artificiais e de ordem ideológica, porém os outros distintos peixes que convivem

no mesmo meio ambiente, ainda não. Uma forma de observar a existência da “água”, das

ordens discursivas é afastar-se de seu tempo. Refletir sobre os modos de cultura da

dinâmica de um mundo cada dia mais interconectado e menor em distâncias pela

globalização, seja de tecnologias ou de culturas em diálogo.

A presidente Dilma Rousseff em seu breve pronunciamento recortado na

reportagem acima está por meio de sua resposta “contrapalavrando” discursos do

Conselho Federal de Medicina, que chamou a medida provisória que criaria o programa

“Mais Médicos” de totalitária e eleitoreira. Há uma clara relação no sistema republicano


114

com programas governamentais podendo se tornar campanhas, porém há algo maior em

jogo no interior desse discurso, dessa contrapalavra da Presidenta da República: há um

claro litígio entre os interesses públicos e o privado; entre um Governo Federal e uma

Classe Médica; entre um discurso humanitário e um discurso mercadológico (portanto,

um debate político com viés biopolítico).

O embate desses discursos mostra uma clara sociedade brasileira em transformação,

pois coloca em questão o conceito do que é saúde, do que é qualidade de vida. E quando

um texto é escrito, publicado em mídias oficiais ou de grande circulação é sinal de que as

ideologias estão se movimentando sob o texto, longe do texto, sobre o texto e além da

história do texto. A contrapalavra é esta espécie de dialogia do devir, que promove o

movimento do que é material e histórico, como dado, para um outro patamar histórico de

futuro, como criado; movendo a cultura e movendo o cronotopo, portanto, o Homem que

sobre signos materiais vive na saúde ou na doença.

Mais uma vez duas ideologias se enfrentam no discurso: “A presidente insistiu que

"o conhecimento profissional, o contato humano, a boa orientação, são atitudes que estão

acima de tudo". “Valem mais do que máquina de última geração”: a ideologia de um

Leviatã tecnicista levanta seus tentáculos contra a ideologia de um espectro humanista,

neste trecho. Dilma Rousseff em sua fala deixa transparecer a relação à que o Homem se

encontra entre as duas ideologias. Deixa transparecer que o que vale mais não é a

“máquina de última geração” é o “contato humano (...) acima de tudo”. Há muita coisa

em jogo nesta fala, muito mais em gastos financeiros (é muito mais caro montar um

hospital ou comprar um equipamento de última geração que formar um médico no país)

do que se poderia mensurar em uma leitura de texto. Contudo, as duas ideologias que

brigam e se atraem estão cada vez mais nítidas pelo cotejamento dos textos. A voz

tecnicista objetivista abstrata aparece implícita na fala da presidente, pois é para ela que
115

a governante responde, ao afirmar que o contato humano deve ser prioridade no

tratamento médico no país. Estamos em um momento de embate, no qual a área da saúde

vem deixando muito às claras uma espécie de disputa muito mais que política, que por

vida, que por discursos, mas uma disputa ética, de valores, de relações sociais, que é o

mais alto grau de materialismo histórico e existencial que um ser humano pode ter: sua

relação de vida com outras vidas, de preservação e cuidados com os Outros em sociedade.

O Humanismo da Alteridade reconhece esse gesto pelo Outro como um largo campo do

agir na Democracia, onde o direito é comum a todos e cada vida é responsabilidade de

todos.

Por isso, como um caçador de Ginzburg, sinto “cheiro” de uma Humanística se

configurando vigorosamente entre as ideologias do mundo. Mas posso estar enganado. É

preciso observar mais detalhes nas trilhas, farejar melhor o cenário e tomar a conclusão

que garanta o Devir da pesquisa e das gerações futuras.


116

Capítulo Segundo - O Cronotopo

"Não serei o poeta de um mundo caduco.


Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,


não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, do tempo presente, os homens presentes,
a vida presente."

[Carlos Drummond de Andrade]


117

2 Capítulo Segundo - O Cronotopo

2.1 O CONCEITO DE CRONOTOPIA, A CRISE DA RACIONALIDADE E O CONCEITO DE


INTEGRALIDADE DO SUS TRABALHANDO A QUALIDADE DE VIDA.

“A produção de ideias, de
representações, da consciência,
está, de início, diretamente
entrelaçada com a atividade
material e com o intercâmbio
material dos homens, como a
linguagem da vida real.”
[MARX E ENGELS]

Pensar o conceito de Cronotopia é questionar o olhar, metaforicamente, no conceito

contemporâneo de fotografia; pois ambos procuram retratar o imediato, mas também o

histórico ou o atemporal. Há um olho no objeto estático e outro olho no movimento; um

olho no estável, outro no instável. Para um pensador de cultura, como Bakhtin, a

Cronotopia (tempo/espaço) de cada contexto depende dos dois olhos e de uma terceira

força, que é a da singularidade de cada homem, do click único, como agente do meio e da

materialidade histórica.

Tempo e espaço são categorias autônomas, separadas; contudo são

interdependentes, precisam uma da outra (Bakhtin -1895 a 1975 - talvez por influências

de Einstein – 1879 a 1955 -, já tenha pensado na autonomia das categorias físicas, na

elaboração sofisticada do conceito cronotópico). Isto faz o movimento das culturas, dos

costumes, dos hábitos, pois é a relação do homem com o espaço e o tempo de cada

ambiente social, mas o que dá mais dinamicidade às categorias é a linguagem e a

interpretação do ser humano sobre a vida, como em uma fotografia que registra o instante

e a marca material da concretude de um determinado espaço físico; mas o faz, como


118

registro, como olhar, como interpretação da realidade, como representação da vida.

Cronotopia é um efeito teórico de fotografia, ambas são formas de olhar o mundo.

Se seguirmos a metáfora que aproxima a cronotopia da fotografia, podemos

encontrar três pilares em cada uma delas, por exemplo na cronotopia: a) o tempo; b) o

espaço; e c) o olhar do intérprete. Ou os três, na fotografia: aa) senso geométrico espacial;

bb) a sensibilidade do tempo do click fotográfico e; cc) a intuição do olhar e interpretação

do fotógrafo. Dois grandes mestres da fotografia são, o francês, Cartier-Bresson

(considerado o “Olho do século XX”, com suas fotos em preto e branco que só usam a

luz natural)46 e, o renomado brasileiro, Sebastião Salgado, que diz em suas palestras pelo

mundo que: “Um fotógrafo não apenas fotografa com uma lente, ou uma máquina, mas

fotografa com sua história, sua ética, sua memória pessoal”47. É inegável o talento dos

dois fotógrafos, ainda mais quando se vê que o instrumento de trabalho empunhado em

uma das mãos é um objeto intermediário entre o olhar e o mundo, entre a ética própria e

a vida, entre um olhar oblíquo e a realidade. Um fotógrafo com uma câmera fotográfica

na mão está na busca de estabilizar o instável, registrar o movimento, fotografar a

46
Henri Cartier-Bresson (1908-2004) é considerado o pai do fotojornalismo mundial, o que se configura
como algo muito revelador de como o mundo é descrito, registrado e narrado, pois pela imagem de uma
fotografia muito se pode dizer, denunciar e registrar no século XX. Mas há uma característica muito peculiar
como Cartier-Bresson fotografava pelas lentes de sua ética. Pois ele era um exímio caçador, já que buscava
o “instante decisivo” e para um bom fotógrafo como para um bom caçador, talvez a palavra que mais se
confunde com o da arte a que mais se dedicou, seja a mesma repetida por ele: “Observar, observar,
observar”. “É pelos olhos que compreendo”, disse o fotógrafo.
47
Sebastião Salgado é doutor em economia e trabalhou em agências de notícia internacionais ao lado de
Henri Cartier-Bresson. Um outro caçador do “instante decisivo”, mas com características bem marxistas e
muito ligado à forma de denunciar os abusos do homem contra o próprio homem e a natureza. A obra de
Sebastião Salgado é inspiradora para toda esta tese, pois parece fazer ele através de fotografias, de um olhar
que expõe contrastes e culturas, de um modo de arte e denúncia, um dizer que declara que o Homem é um
vivente cultural, que se adapta ao local em que vive, produz e reproduz muito do que tem e recebe de
cultura. Assim são seus trabalhos mais famosos como Gênesis (2011), Terra (1997) ou África (2010). Todo
o sua vida e obra podem ser vistos no documentário “O Sal da Terra” com direção de Win Wenders e
Juliano Ribeiro Salgado. Brasil/ França, 2014.
119

dinamicidade do mundo que nenhuma arte ou ciência dá conta por completo, embora

tente e pode por interpretação e registro fazer uma leitura. Foi assim que Bakhtin pensou

na cronotopia, como conceito, que estabelece o diálogo intenso entre a pequena

temporalidade (o tempo atual, o passado imediato, o futuro previsível, o contemporâneo)

e o grande tempo (o tempo histórico, do diálogo infinito e inacabável em que nenhum

sentido morre). Uma fotografia é o mais latente diálogo entre a pequena temporalidade e

o grande tempo.

Voltando um pouco na história para olharmos o ambiente da criação da fotografia,

nota-se que houve uma mudança por efeito da nova técnica de registros, mas também em

sua causa. Em meados do século XIX, o advento da máquina fotográfica irá influenciar

as pinturas realistas (movimento iniciado em 1855), mas não só ela, os conceitos

socialistas também fizeram os pintores, como Gustave Courbet (1819 -1877), procurarem

retratar a vida dos oprimidos, a vida campesina, dos quebradores de pedras, nos

mineradores, dos agricultores, em resposta ao forte teor da teoria de Marx (O Manifesto

Comunista, fora publicado em 1848), e como contrarresposta ao idealismo romântico

burguês da estética artística anterior. O século XIX é conhecido como um século de crises

de paradigmas, não só entre burgueses e proletários (Marx), ou entre românticos e

realistas/naturalistas (Machado de Assis), ou racionalistas positivistas e irracionalistas

como Nietzsche, mas há nele uma instauração categórica da crise da racionalidade.

Embora, Rancière (1999) tenha tratado e venha tratando do tema em inúmeros livros

sobre o dissenso na política, há uma crise da razão na raiz da filosofia localizada no final

do século antepassado. Para hoje enxergarmos a fotografia como categoria técnica e

artística muito caminhamos pela redefinição da arte e do conhecimento humano, por isso

interessa olhar como a invenção da fotografia e seu breve trajeto influencia e são

influenciados os modos de olhar do homem sobre si mesmo. Ninguém melhor que


120

Nietzsche (1844 -1900) para representar a crítica à razão, a crise de paradigma filosófico

e a possível abertura para um novo humanismo.

“O homem é um ente que deve ser ultrapassado”, disse ele; e o que propõe
é ultrapassar incessantemente o ser de conjuntura, que somos num dado
momento, a fim de buscar estados mais completos de humanização (...)
Nietzsche ensina a combater a complacência, a mornidão das posições
adquiridas, que o comodismo intitula moral, ou outra coisa bem soante (...)
Talvez se possa dizer, com efeito, que a partir do século XVIII e até o
nosso, ela (a filosofia racionalista) cuidou mais da natureza do espírito e das
condições de seu funcionamento que do seu caráter de aspecto da atividade
humana total. Doutro lado, analisou de preferência tudo que condiciona o
comportamento e dele resulta; raras vezes desceu às suas raízes vivas.
Semelhante tarefa coube não raro à arte, cuja importância como forma de
conhecimento não decresceu no mundo moderno, como se poderia pensar à
primeira vista. A acuidade psicológica, por exemplo, não se confunde com a
competência dos especialistas, e deve ser buscada menos neles do que em obras
com as de Dostoievski, Proust, Pirandello ou Kafka; e não é de estranhar que
o maior psicólogo do nosso tempo, Freud, seja uma espécie de ponte entre o
mundo da arte e o da ciência; entre os processos positivos de análise e intuição
estética. (CÂNDIDO, 2014, p. 419-421)

Antônio Cândido instaura uma proposição interessante, ao dizer que Nietzsche

é um humanista, pois procurou o tempo todo entender o “funcionamento do caráter de

aspecto da atividade humana total”, não ocultando o trabalho que a arte tem na

completude do que é o homem, “a fim de buscar estados mais completos de

humanização”, acusando a filosofia e as ciências de raras vezes descer às raízes vivas.

Lembrando Ginzburg (1983) que diz que é papel do linguista como o do médico fazer

uma “ciência conjectural”, que investiga o vivo, o movimento, as pistas, os rastros, e não

apenas a coisa morta, como um estruturalista ou positivista galileano o faz. O que

Nietzsche, pelo que diz CÂNDIDO (2014), faz é dizer que a filosofia precisaria de um

caminho mais vivo, sem recusar a arte; caminho este, o tempo todo, trilhado por Bakhtin,

no Questões de Literatura e Estética – A teoria do romance (2010) ou no A Cultura

Popular na Idade Média e no Renascimento – o contexto de François Rabelais (2013).

Não se pode desconsiderar dizer que a arte é um aspecto vivo e que deve ser
121

profundamente investigado pelos filósofos, pelas linguistas, pelos médicos, para total

compreensão do humano do homem – “Quem interpreta mal uma obra de arte, interpreta

mal a si mesmo” (Freud, 2013). Nesta brecha que a filosofia deu no final do século XIX,

vista por Nietzsche (em O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música, publicado em

1872), coloca-se em crise a razão positivista, a razão científica estruturalista, a razão

puramente dialética, a razão de um humanismo da identidade.

A aproximação metafórica entre a arte de um fotógrafo, como Sebastião Salgado,

com a teoria de Bakhtin, seria uma ponte de entendimento entre o fazer técnico e o fazer

humanizado, entre o fazer dialético e o fazer dialógico, entre o operacional e o fazer

qualitativo, entre o fazer da identidade e o fazer do humanismo da alteridade (PONZIO,

2008). E essa ponte é o dialogismo, contido no olhar de Salgado e na mão de Bakhtin, ou

nas investigações da alma humana em Dostoievski48, por exemplo.

O que leva dizer que o simples migrar da palavra “Saúde” para “Qualidade de Vida”

se alimenta também dessa brecha vista por Nietzsche, desse olhar de oblíquo de Sebastião

Salgado, desse olhar de contraste de Bakhtin, dessa crise de paradigma, dessa crise de

racionalidade, a que o mundo se viu no final do século XIX e pôde olhar nos olhos da

própria morte nas guerras mundiais (de 1914 a 1945). A crise prevista por Nietzsche,

antes do século XX começar, aponta um humanismo que precisaria beber dos aspectos

48
"Dostoievski conhece a fundo a alma humana, sabe que o universo humano é constituído de seres cuja
característica mais marcante é a diversidade de personalidades, pontos de vista, posições ideológicas,
religiosas, antirreligiosas, nobreza, vilanias, gostos, manias, taras, fraquezas, excentricidades, brandura,
violência, timidez, exibicionismo, enfim, sabe que o ser humano é esse amálgama de vicissitudes que o
tornam irredutível a definições exatas. Dessa consciência da diversidade de caracteres dos seres humanos
como constituintes de um vasto universo social em formação decorrem as múltiplas vozes que o
representam, razão por que Dostoievski aguça ao máximo o seu ouvido, ausculta as vozes desse universo
social como um diálogo sem fim, no qual vozes do passado se cruzam com vozes do presente e fazem seus
ecos se propagarem no sentido do Futuro." (Paulo Bezerra, na apresentação do "Problemas da Poética de
Dostoievski" de Bakhtin. 2010, p. XI)
122

vivos da vida, nota-se isso quando o pensador alemão diz, de forma categórica, por meio

de um aforismo vertiginoso e arrepiante, que declara o verdadeiro valor da teoria, dos

livros, das ciências e da filosofia: “Para que serve um livro que não for capaz de nos

transportar além dos livros” (NIETZSCHE, 2014, p. 423). Assim, fotografia e cronotopia

se unem como olhares e linhas interpretativas da vida, em dialogia pura buscando a

estabilidade. Paradoxo científico, causador da crise. Ou condenação do pensamento.

Parecendo que estamos, como diz Geraldi (2007) ao citar Placer, condenados a significar:

...nós, os humanos, não podemos crescer, viver e envelhecer sem instituir


um tempo, sem fragmentar, pautar e contabilizar seu devir e seu passar; não
sabemos deixar transcorrer nossa vida sem nomear, sequenciar, ordenar e
esclarecer o sentido do que passa e do que existe, do que permanece e do que
se desvanece; não desejamos viver sem especificar o indivíduo próprio e o
alheio, o que nos une e nos separa, o que nos diferencia e nos iguala (PLACER
apud GERALDI) Projetar, qualificar e significar. Memória de Futuro, cálculo
de horizontes de possibilidades e acabamento transitório do presente: três
aspectos de uma mesma, complexa e contínua perturbação: a das perguntas
fundamentais. (GERALDI, 2007, p. 42)

Se estamos condenados a significar, catalogar, contar, parece que a teoria e a

filosofia deveriam beber dessa fonte, que diz que a vida é mais importante e que toda

ciência serve para a vida. Assim vale olharmos para a teoria de Bakhtin, sempre como

uma interpretação e nunca como uma verdade absoluta, já morta por Nietzsche ao dizer

que Deus estava já morto, frente ao que as propostas científicas e filosóficas apontavam,

como possiblidades e não mais por determinismos. Sendo que as possibilidades estão

todas dentro da cronotopia.

O conceito de cronotopia na filosofia da linguagem em Bakhtin é fundamental, não

só por separar e unir a concomitância dos tempos – a pequena temporalidade e o grande

tempo, a atualidade iminente e a história – mas por dar carga concreta e caráter único para

cada enunciado. Por este viés, toda palavra é um signo renovável desde a pequena

temporalidade pelo grande tempo, pois uma palavra enunciada pode trazer memórias à
123

tona, e mesmo uma palavra nova, um neologismo, conserva e conversa com os tempos e

espaços que habita, habitou e habitará. Toda palavra é relacional, pois depende do seu

tempo e do seu espaço, mas depende muito mais dos seus ouvintes, interlocutores, que

são obra da condição ontológica de tempo e espaço. Assim, neste contexto armado e

sofisticado de temporalidades surge com força de uma palavra fundamental para

pensarmos Saúde entre o tecnicismo abstrato e o humanismo subjetivista. A palavra é:

integralidade (preceito do SUS).

Como signo ideológico, o aparecimento de uma palavra é uma resposta do Homem

à História e ao seu tempo. Uma palavra é, portanto, o encontro de fios ideológicos, de

tempos e principalmente, de relações. O termo “integralidade” denota característica,

particularidade ou condição do que é integral, completo; ou um conjunto de tudo aquilo

utilizado para formar ou completar um todo; completude. Ganha o termo “integralidade”

mais força vital quando utilizado como preceito do SUS, do Sistema Único de Saúde do

Brasil, como Lei Orgânica da Saúde (Lei Federal 8080/1990), já que quando tornado

preceito ou lei, antes fora pensado e discutido. Uma palavra não surge do nada e em nada

ela não pode virar. É uma palavra que integra outras leis (Direitos Humanos pela ONU,

Direitos da Saúde pela OMS), conversa com a história brasileira em um período de

redemocratização do país (Constituição de 1988) e com a memória de futuro da cultura

neoliberal e de uma mudança de paradigma na área de saúde para qualidade de vida.

O conceito de integralidade está ligado a uma ideia de alta eficácia nos serviços de

saúde e a um processo de trabalho centrado no usuário do sistema de saúde no Brasil.

Considerando que o SUS engloba 100% dos Sistema de Saúde brasileiro, apesar de 20%

ser privado, criando as chamadas “duplas portas” em hospitais públicos como o Hospital

das Clínicas em São Paulo. A integralidade é, portanto, um princípio básico que significa

assistência ao usuário. Em tudo o que o usuário da rede precisar, desde a garantia de boas
124

condições de vida, ser acolhido nas Unidades de Saúde, ter seus problemas resolvidos e

até possuir acesso a todas as tecnologias de cuidado. O grande desafio da integralidade é

operacional, já que precisa ser absorvida por uma ordem de gestores. Trabalhadores,

usuários, tornando-a presente na vida cotidiana dos serviços de saúde, seja no hospital,

seja em unidades básicas, territórios e domicílios do Programa Saúde da Família. A

integralidade é uma linha de produção de cuidado, uma rede que tem por objetivo a

produção de serviços em saúde, em que a integralidade funcione de forma sistêmica e

incorporada como algo inerente aos serviços de saúde. As linhas de cuidado significam

uma assistência que se produz por fluxos contínuos entre os serviços, com o acesso

assegurado e tranquilo do usuário, a toda rede assistencial. Para isso ocorrer de forma

salutar, há que se ter uma mudança de atitude do profissional em relação ao usuário, que

vai além do seu conhecimento técnico: pois está ligada à forma como o profissional

percebe o usuário, e isto tem a ver com a sua subjetividade. A subjetividade é a forma

singular com que as pessoas significam a realidade e interagem com ela. Por conseguinte,

o significado que os profissionais dão aos usuários e ao trabalho em saúde vai definir em

muito o cuidado que produzem. Torna-se importante para a integralidade o aspecto do

trabalho em equipe, em rede, já que o conceito de integralidade é uma diretriz que traz
125

em si o significado ético-político do “cuidado cuidador”, de trabalho em rede.

Por exemplo, em uma Estratégia de Saúde da Família (ESF) o conceito tem um

lugar privilegiado, por se tratar de atenção básica, que, por princípio deve atender a grande

maioria da população, por ter grande capilaridade junto à comunidade e contar com o

acolhimento e vínculo do usuário e os profissionais da saúde. Vale ressaltar que a

integralidade é um preceito do SUS, que dialoga fortemente com Programas de Saúde

Coletiva ou Saúde da Família, ainda mais em um país continental e diversos em culturas

como o Brasil. Os desafios são grandes, ainda mais por saber que integralidade é a

integração entre os aparatos técnicos-científicos-políticos-legislativos e culturais. É

trazida como princípio doutrinário de política do Estado, em que Saúde é um direito e um

serviço, e suas origens são do Movimento de Reforma Sanitária brasileira nas décadas de

1970 e 1980, em plena ditadura militar. Contudo, o que mais valeria apontar, neste ponto

da tese, é que o conceito de “integralidade” é fulcral para o entendimento de Saúde, não

mais, somente, como biomédica, biofísica ou biopsicossocial, mas como sinônimo de

Qualidade de Vida. Em um patamar mais contundente, podemos dizer que saúde ganha
126

contornos de atitude política, atitude social, atitude humana e atitude profissional, pois

saúde é a integração e integralidade entre as partes, o conjunto das partes do Estado é hoje

também o conjunto das partes do Ser. Vale a analogia clássica aqui, advinda dos tempos

do liberalismos político econômico, que coloca o Ser como integrante do Estado, portanto

o Estado como responsável pelo nascimento do Ser e por seus cuidados até a morte. As

garantias dessa integração Ser/Estado ainda estão sendo legisladas e montadas, mas já é

nítido como a Era Contemporânea (iniciada do século XVIII) dá margem e contornos a

uma Saúde como aparato legal, jurídico e de direito do Ser. Em outra dimensão, a Saúde

não é lei abstrata, mas lei da vida, lei humana, lei ética, lei cada vez mais concreta a partir

da revolução liberal do Leviatã (referência ao livro clássico de Tomas Hobbes, do século

XVIII).

A cronotopia do liberalismo nos legou uma margem de desafios, porém a nossa

cronotopia contemporânea nos traz desafios ainda maiores: enquanto o sistema político

econômico pede uma reificação do homem (ao entender o homem como número e gerador

de lucro, e considerar o “economicamente ativo” como aquele que detém trabalho

assalariado), o conceito de saúde precisa ficar cada vez mais singular, humanizador,

sistêmico e biopsicossocialdiscursivo. Neste contexto que o preceito de “integralidade”

nasceu, na contemporaneidade, para dar sustentação a um tipo de Sistema de Saúde que

priorize o usuário da rede, que seja tratado como humano, tratado pelo nome e sobrenome

e não apenas por número, ou apenas denominado de “paciente”, não como aquele que

está apenas esperando a cura, mas na tensão de também procurar saber os modos de

melhorar em conjunto com o corpo médico assistencial.


127

TEXTO 5. Exemplo de Pequena Temporalidade

Setor privado tem 4 vezes mais médicos do que a rede pública


Concentração no atendimento particular é maior no Norte e no Nordeste;
na capital paulista, a relação é inversa
Dado é de pesquisa do Conselho Federal de Medicina, que mapeou os
postos de trabalho de médicos no Brasil
JOHANNA NUBLAT DE BRASÍLIA

A oferta de médicos por usuário na rede privada é quatro vezes a oferta no


SUS (Sistema Único de Saúde).
A cada mil usuários de planos de saúde há, em média, 7,6 postos de trabalho
médico ocupados. Na rede pública, essa relação cai para 1,95.
A disparidade vai a extremos em Estados do Norte e Nordeste, segundo
mapa feito pelo CFM (Conselho Federal de Medicina) e Cremesp (Conselho
Regional de Medicina do Estado de São Paulo).
Considerando o número de pessoas atendidas em cada rede, o
abastecimento de médicos no setor privado é 12 vezes o da rede pública na
Bahia, 9,7 vezes no Acre e 9,6 vezes no Pará.
Os dados consideram oferta de postos de trabalho e não quantidade de
médicos registrados. Consultórios particulares não entraram na conta.
Os índices de disparidade refletem falta de investimento no SUS, segundo
análise do estudo.
No Sudeste, a distribuição é mais homogênea e chega a haver inversão nas
ofertas. O SUS é mais bem abastecido de médicos que a rede privada, em
relação aos usuários, nas capitais Rio de Janeiro, Vitória e São Paulo.
Segundo Mário Scheffer, coordenador do estudo, o Brasil tem diversas
taxas de densidade médica, desde as comparáveis às de países africanos até às
de europeus.
Mas é difícil relacionar o dado brasileiro a outros países pela forma única
do sistema no país, afirma Ligia Bahia, professora de saúde coletiva da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Na Inglaterra, o sistema é quase todo público; nos EUA e na França, os
hospitais são privados, mas podem receber financiamento do seguro de saúde
público. O Brasil é dividido em hospitais públicos e privados, que, às vezes,
atendem também ao SUS.
NÃO FALTAM MÉDICOS
CFM e Cremesp concluíram que não há falta de médicos no país, e sim de
políticas que levem a uma melhor distribuição dos profissionais.
Os conselhos criticaram a abertura indiscriminada de novos cursos de
medicina, que ampliam a reserva de profissionais, e a falta de recursos para o
setor.
"As oportunidades para os médicos na área privada são maiores por causa
de um certo protecionismo e imobilismo na esfera pública", diz o
oftalmologista Claudio Lottenberg, presidente do Hospital Israelita Albert
Einstein
O ministro Alexandre Padilha (Saúde) disse que é prioridade do governo
formar médicos com qualidade e estabelecer mecanismos que direcionem
profissionais para o interior, para o SUS e para regiões carentes.
128

Padilha diz que já existe desconto na dívida do financiamento estudantil


para médicos que trabalhem no SUS em regiões desfavorecidas.
O estudo atestou que há menor proporção de médicos no interior do país.
O documento ainda mostrou maior atuação de mulheres na profissão -são
maioria na faixa até 29 anos- e a divisão de médicos em vários empregos e
longas jornadas. Em São Paulo, há jornadas de mais de 50 horas semanais
Colaborou CAROLINA SARRES

A integralidade como preceito do Sistema Único de Saúde (SUS) ganha carga de

caráter político (biopolítico). Na reportagem acima, datada de dezembro de 2011, única

fora do lastro programado, de estudos sobre o Mais Médicos, arquitetado pela gestão do

Ministro Alexandre Padilha em julho de 2013; traz o litígio discursivo entre os discursos

oficiais do Governo e os Conselhos de Medicina. Parece ser clara a estratégia da grande

mídia brasileira, neste caso da Folha de S. Paulo, confrontar desde tempos remotos os

discursos oficiais do Governo com o discurso dos Conselhos, sem uma maior abertura

para as vozes da classe civil. O litígio formado pela Folha de S. Paulo se estende como já

que vimos registros (são exemplos, TEXTO 2 ou TEXTO 4 dos exemplos da pequena

temporalidade) de um duro embate político atual em torno da Saúde no Brasil. A disputa

política faz parte da disputa do signo, no seu interior e no seu entorno de significações e

sentidos, porém cabe lembrar que no campo de debate da Filosofia da Linguagem

Bakhtiniana cada palavra é um signo ideológico, por isso seus desdobramentos

sofisticados e amplos são também temas do debate, e são exemplos concretos da

multiplicidade dos debates. Pensar “integralidade” é observar o modo como o conceito

de saúde se move nos tempos contemporâneos; é observar que na própria natureza do

signo verbal há uma arena cada vez mais pautada em estatísticas, em quantidades, mas

também em qualidades e cuidados humanos. Migrar o signo ideológico para outro não é

matéria fácil da filosofia da linguagem, mas é matéria de estudos.


129

O texto só tem vida contatando com outro texto (contexto). Só no ponto


desse contato de textos eclode a luz que ilumina retrospectiva e
prospectivamente, iniciando dado texto no diálogo. Ressaltamos que esse
contato é um contato dialógico entre textos (enunciados) e não um contato
mecânico de "oposição", só possível no âmbito de um texto (mas não do texto
e dos contextos) entre os elementos abstratos (os signos no interior do texto) é
necessário apenas na primeira etapa da interpretação (da interpretação do
significado e não do sentido). (BAKHTIN, 2011, p. 401)

A natureza dos embates dentro de um texto é toda ideológica, como já sabemos,

mas é toda simples e mecânica. Em que o Governo está em direto confronto com os

Conselhos de Medicina. Talvez esse embate seja um modo de “fazer” a notícia, já a

oposição entre duas linhas de pensamento político traz também uma contribuição

democrática, se for propositiva em vários aspectos, embora saibamos que o maniqueísmo

das mídias oficiais serve para promover a venda da informação e do jornal. Entretanto,

não podemos negar que há duas fontes ideológicas no texto que são fortes e dentro delas

há a polifonia de vozes discursivas de toda a sociedade. Traz para os limites do texto a

cronotopia da pequena temporalidade, em que o passado imediato e o futuro já conhecido

são matérias-primas que promovem as leituras de um texto. Coloca-se em confronto e

como ponto central o funcionamento do SUS – sistema único de saúde – em meio aos

discursos dos Conselhos de Medicina, do Governo e das pesquisas estatísticas. Mais uma

vez nota-se que os índices, as estatísticas, os dados, as pesquisas, domam boa parte do

que se pensa hoje como conceito de “Saúde”. Não é irrelevante pensarmos a influência

das ciências exatas, dos cálculos das demandas da sociedade, sobre a reconfiguração de

um conceito, ou palavra, como é na casa o do termo “Saúde”. Por isso, não basta ter um

texto, um enunciado, uma visão, pois um texto só ganha vida em contato com outros

textos, pelo cotejamento entre discursos (GERALDI, 2012), entre textos, entre contextos,

entre ideologias. Aparece aí o papel crucial de toda cronotopia, da marcação material, de

um território preciso, que é necessário para que uma palavra tenha significado (1),
130

reconhecimento (2), contextualização (3) e dialogicidade ativa (4). Tanto na pequena

temporalidade quanto no grande tempo.

Ao final, notamos que o olhar do fotógrafo, como Sebastião Salgado, ou o olhar de

contraste do pensador de cultura, como Mikhail Bakhtin, fazem justamente o diálogo

entre os tempos, as temporalidades, as culturas; por pura arte, intuição, técnica,

sensibilidade e ética. Talvez esteja no modo como um fotógrafo caça o “instante decisivo”

ao olhar para o humano do homem, usando a técnica, que esteja se configurando o que se

poderia chamar de Humanística bakhtiniana. E ela está viva na nossa frente agora.

A caça está viva aos nossos olhos!


131

2.1.1 O CENÁRIO PARA A IMPLANTAÇÃO DO SUS – SISTEMA ÚNICO DE


SAÚDE – E O “MAIS MÉDICOS”.

“No entanto, o ser da expressão é


bilateral: só se realiza na interação
de duas consciências (da do eu e da
do outro); a penetração mútua com
manutenção da distância; é o campo
de encontro de duas consciências, a
zona do contato interior entre elas.”
[BAKHTIN]

O cenário poderia ser chamado de biopolítico (FOUCAULT, 1987), porém é mais

complexo. Em que a população seria o “novo corpo: corpo múltiplo, corpo com inúmeras

cabeças, se não infinito pelo menos necessariamente numerável”. (Idem, p. 23). E a

biopolítica vai se ocupar, portanto, com os processos biológicos relacionados ao homem-

espécie, estabelecendo sobre os mesmos uma espécie de regulamentação. E, para

compreender e conhecer melhor esse corpo, é preciso não apenas descrevê-lo e quantificá-

lo – por exemplo, em termos de nascimento e de mortes, de fecundidade, de morbidade,

de longevidade, de migração, de criminalidade, etc. –, mas também jogar com tais

descrições e quantidades, combinando-as, comparando-as e, sempre que possível,

prevendo seu futuro por meio do passado. E há aí a produção de múltiplos saberes, como

a Estatística, a Demografia e a Medicina Sanitária. Para Foucault, o “limiar de

modernidade biológica” de uma sociedade reside exatamente no momento em que a

espécie humana entra em jogo nas estratégias políticas de um Estado. “O homem”, diz

ele, “durante muito tempo, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e, além

disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal, em cuja política, sua

vida de ser vivo está em questão” (FOUCAULT, 1988, p.188). É pelo fato de encarregar-

se da vida, mais do que a ameaça da morte, que o poder pode apropriar-se dos processos

biológicos para controlá-los e eventualmente modificá-los. Com efeito, para Foucault,


132

Se pudéssemos chamar de ‘bio-história’ as pressões por meio das quais os


movimentos da vida e os processos da história interferem entre si, deveríamos
falar de ‘biopolítica’ para designar o que faz com que a vida e seus mecanismos
entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-saber um agente de
transformação da vida humana. (FOUCAULT, 1988, p. 134)

Para o pensador da biopolítica, a partir do século XVIII, o Ocidente conheceu uma

profunda transformação nos mecanismos de poder. O poder de soberania, o direito de

causar a morte ou de deixar viver tão característico desse poder, é agora substituído por

“um poder que gera a vida e a faz se ordenar em função de seus reclamos”. Segundo o

teórico francês, o século XVIII marca o processo de entrada da vida na história, isto é, a

entrada dos fenômenos próprios à vida humana na ordem do saber e nos cálculos do

poder. Assim sendo, os processos relacionados à vida humana começam a ser levados em

conta por mecanismos de poder e de saber que tentam controlá-los e modificá-los.

O homem ocidental aprende pouco a pouco o que é ser uma espécie viva
num mundo vivo, ter um corpo, condições de existência, probabilidade de vida,
saúde individual e coletiva, forças que se podem modificar, e um espaço em
que se pode reparti-las de modo ótimo. Pela primeira vez na história, sem
dúvida, o biológico reflete-se no político; o fato de viver não é mais esse
sustentáculo inacessível que só emerge de tempos em tempos, no acaso da
morte e de sua fatalidade: cai, em parte, no campo de controle do saber e de
intervenção do poder. (Ibidem)

Porém, o cenário no século XXI é mais complexo que a biopolítica foucaultiana

poderá explicar, e mais consolidado também, o que por si só é uma afirmação do biopoder

que tanto se dedicou Foucault. Valeria olhar o dualismo sobre o signo “saúde” a que

estamos tão tutorados e ligados do nascimento à morte. Cabe aqui fazer uma leitura do

cenário; cabe separar a cronotopia de nosso tempo para uma análise, que seja feita a partir

da pequena temporalidade.

Na pequena temporalidade que é o tempo do imediato, da atualidade, do discurso

esperado, estão discursos que mexem com a qualidade de vida como se fosse um paralelo
133

da noção de saúde. O binômio Saúde/Qualidade de Vida tornou-se signo ideológico não

por acaso, mas por disputas internas dentro do signo verbal e muito mais por disputas

externas, materiais e históricas. Saúde ampliou-se em conceito durante todo o século XX,

pois passa por questões biológicas, químico-hormonais, genéticas, físicas, fisiológicas,

sanitaristas, estatísticas, sociais, familiares, relacionais e, portanto, discursivas.

Entretanto, para que um Sistema Único de Saúde – SUS – fosse implantado,

recentemente, no Brasil, deveu-se observar o cenário mundial e os cuidados com a Saúde,

porém no Brasil a necessidade pareceu mais política do que científica, por um sistema

governamental que ficou muito evidente nas últimas décadas do século XX, com a

implantação de programas variados (como exemplos: o Programa de Saúde da Família,

Programa de Saúde Coletiva, Programa de Erradicação da Poliomielite, Programa “Mais

Médicos”). Valeria observar como o cenário mundial se comportou nos últimos anos,

como os discursos e ideologias moveram a Saúde em países como os EUA, Canadá e

Reino Unido, que são considerados países desenvolvidos, embora haja casos de uma falha

de perspectiva no sistema de saúde estadunidense que compromete o neoliberalismo

político em larga escala.

Exemplo contemporâneo em discussões sobre saúde, está a maior nação do mundo

em questões econômicas, os Estados Unidos da América, porém apenas ocupa a posição

37 em qualidade de sistema de saúde no mundo e tem uma distribuição de número de

médicos pífia (1,9 médicos por 1mil/habitantes) em comparação com países como Cuba

(6,7 médicos por 1mil/habitantes), Rússia (4,3 médicos por 1mil/habitantes), Uruguai (3,7

médicos por 1mil/habitantes). A explicação para a baixa qualidade dos serviços de saúde

estadunidense é de ordem política e econômica, pois eles privatizaram todo o sistema

público a partir de Richard Nixon (presidente dos EUA entre 1969 e 1974), o que acabou

por corromper um projeto maior de cuidados e atenção básica da população por um


134

projeto de cunho capitalista desumano. Nos Estados Unidos atualmente, ¼ da população

não tem plano de saúde e não tem sistema público de saúde. Para ser tratado naquele país,

há que se endividar desde o nascimento à morte.

Os EUA é um típico exemplo, na pequena temporalidade, de que o discurso

econômico tomou conta do conceito de saúde, tornando deficitário os índices de qualidade

de vida dentro da dita maior nação do mundo, em termos de capitalismo neoliberal e de

vontades discursivas contemporâneas, como o lucratividade e eficiência. Tal problema já

foi debatido por vários livros e dentro da política de vários governos como o de George

W. Bush, Clinton ou Obama, mas no documentário SICKO – SOS Saúde, o arroubo fica

mais evidente49. Já que o comparativo se faz entre países com sistema público de saúde

com maior expectativa de vida, maior taxa de natalidade, melhores cuidados com os seres

humanos, como são os casos de Canadá, Reino Unido, França e a contestada nação

Cubana (pelos embargos econômicos sofridos desde a década de 60 do século XX). O

documentário é um painel do deficiente sistema de saúde americano. A partir do perfil de

cidadãos comuns, somos levados a entender como milhões de vidas são destruídas por

um sistema que, no fim das contas, só beneficia a poucos endinheirados. Valendo-se da

lógica de que, se você quer permanecer saudável nos Estados Unidos, é bom não ficar

doente (biopolítica). Claro viés ideológico tomou conta do signo saúde em países e

49
SICKO – SOS Saúde, de 2007, do premiado diretor Michel Moore. O olhar de contraste que causa o
documentário é muito pertinente para pensarmos os processos de tratamento de Saúde no mundo todo.
Reino Unido, França, Cuba, Canadá e EUA têm seus sistemas de Saúde vasculhados, e fica nítido no filme
como o processo de objetificação do Homem pelo Capitalismo transformas vidas em mercadorias de cartéis
de Saúde, principalmente nos EUA. Cuba, Reino Unido, Canadá e França aparecem como contrapontos ao
sistema de saúde estadunidense. Em um mundo globalizado, o problema local estadunidense acaba sendo
um problema global. O olhar do pensador de cultura logo fica armado frente aos contrastes que sustentam
certos sistemas, políticas, hegemonias e ideologias. Fica evidenciado que o sistema EUA de saúde não é
critério de boa conduta para os outros países do mundo que pensam em uma medicina humanizada.
135

sistema econômicos, dos quais os EUA não são exemplo para nenhum tipo de discurso

ideológico que valoriza a saúde individual de seus cidadãos, como garantem as

Constituições da maioridade dos países democráticos, como o Brasil, Canadá, Cuba e até

mesmo os EUA. País, este, que usou da grande depressão pós-guerra para descuidar dos

seres humanos, enquanto o Reino Unido em 1948 instituía um Sistema Universal de

Saúde, em que todos teriam direito a um tratamento digno de cuidados com a vida (não

se pode esquecer que esta iniciativa impactou positivamente na montagem dos Direitos

Humanos em dezembro de 1948).

No Brasil, os contornos políticos e ideológicos apesar da grande influência

estadunidense nas ditaduras militares na América Latina, que incluiu o Brasil, não foram

tão devastadores e retificadores como na dinâmica do país de Nixon, porém cabe ressaltar

que em um viés histórico o Brasil apenas instituiu seu Sistema Único de Saúde (SUS) na

Constituição Federal de 1988, na abertura da democracia brasileira. E hoje, segundo

dados do Conselho Nacional de Saúde e da OMS, é tido como um dos maiores sistemas

públicos de saúde do mundo. Todos esses dados sobre política, escolhas econômicas e

discursivas fazem do signo saúde no Brasil uma arena viva de embates de lutas de grupos,

classes, conselhos, congressos e conceitos. Não há como olhar para o conceito de saúde

sem observar que há disputas na pequena temporalidade e no grande tempo, sendo assim

muito se observa do caráter evêntico da política nacional de saúde por meio de um

programa denominado “Mais Médicos”. Que é um programa lançado em 8 de julho de

2013 pelo Governo Federal – gestão da presidenta Dilma Rousseff - para suprir a carência

de médicos nos municípios do interior e nas periferias das grandes cidades do país. O

programa pretende levar 15 mil médicos para as áreas onde faltam profissionais. O

formato da "importação" de médicos de outros países foi alvo de duras críticas de


136

associações representativas da categoria, sociedade civil, estudantes da área da saúde e

inclusive do Ministério Público do Trabalho.

Porém, faz parte de uma política que no mundo dá muito certo em países

desenvolvidos, já que no Reino Unido 37% dos médicos são importados e no Brasil,

apenas 1,7% são médicos estrangeiros. Antes da chegada dos profissionais estrangeiros,

o Brasil possuía 388.015 médicos, correspondendo a 2 médicos para cada mil habitantes.

Em comparação, esse índice é de 3,2 na Argentina, 4 em Portugal, 1,9 na Coréia do Sul e

2 no Japão. Os números brasileiros eram considerados bons, mas há no país uma

distribuição desigual de médicos por região, sendo que 22 estados possuem um índice

inferior à média nacional e apenas 8% dos médicos estavam em municípios com

população inferior a 50 mil habitantes, que somam 90% das cidades brasileiras. Enquanto

o Distrito Federal e os estados de São Paulo e Rio de Janeiro possuem taxas bem acima

da média nacional – 4,09, 3,62 e 2,64 médicos por mil habitantes, respectivamente –, os

estados do Maranhão, Pará e Amapá sequer têm um médico a cada 100 mil habitantes,

com taxas de 0,71, 0,84 e 0,95 respectivamente. A exemplo disso, a OPAS (Organização

Pan-Americana de Saúde) /OMS informou, no final de julho de 2013, que vê com

entusiasmo o lançamento do “Mais Médicos” pelo governo brasileiro. Segundo o órgão,

a medida guarda coerência com as resoluções e recomendações da OMS sobre a cobertura

universal em saúde, o fortalecimento da atenção básica e primária no setor e a equidade

na atenção à saúde da população. Para a OPAS/OMS, são corretas as medidas de levar

médicos, em curto prazo, para comunidades afastadas e de criar, em médio prazo, novas

faculdades de medicina e ampliar a matrícula de estudantes de regiões mais deficientes,

assim como o número de residências médicas. De acordo com o órgão, países que têm os

mesmos problemas que o Brasil está colhendo resultados da implementação de medidas


137

semelhantes. Na distribuição de médicos no Mundo - O Brasil a posição 72 no ranking,

com 2,2 médicos por mil habitantes.50

O SUS – Sistema Único de Saúde - surge no esteio das políticas nacionais que

apareceram com muita eficiência, em comparativo aos EUA e outras políticas nacionais

de saúde, pois colocam o ser humano como parte de um coletivo, de uma família, de uma

comunidade e por outro lado dando atenção e modos curativos para os que precisam.

Portanto, surgem duas linhas dentro do SUS desde a meada da década de 90 do século

passado que merecem destaque, pois irão entrar em confronto com o programa “Mais

Médicos”, e em outras horas irão complementar um pensamento mais humanizado, ora

mais biopolitizado, do sistema público de saúde no Brasil, algo que muito se assemelha

ao que Bakhtin (2012, p. 311) chamaria de Humanística, que seria uma tendência

crescente de humanização das ciências em geral, sendo elas da “Natureza” (naturais) ou

do “Espírito” (humanas), como definia Dilthey no início do século XX.

As duas vertentes são: a Atenção Básica à Saúde – que trata do primeiro nível de

atenção à saúde, segundo o modelo adotado pelo SUS. É, preferencialmente, a “porta de

entrada” do sistema de saúde. A população tem acesso a especialidades básicas, que são:

clínica médica (clínica geral), pediatria, obstetrícia e ginecologia. Estudos demonstram

que a atenção básica é capaz de resolver cerca de 80% das necessidades e problemas de

saúde (dados da cartilha do SUS); e o Programa Saúde da Família, que é uma estratégia

50
É importante fazer uma análise do número de médicos, incluindo generalistas e médicos especialistas
para cada 1.000 habitantes que estão dispostos pelos mundo – ver anexo, o mapa mundial da distribuição
de médicos. Interessanse ver que médicos são definidos como aqueles que estudam, diagnosticam, tratam
e prevenem doenças, lesões e outros problemas físicos e mentais de seres humanos através da aplicação da
medicina moderna. Eles também planejam, monitoram e avaliam os planos de cuidados e tratamento dos
outros prestadores de cuidados de saúde. A OMS estima que menos de 23 trabalhadores da saúde (médicos
apenas, enfermeiros e parteiras) por 10.000 seria insuficiente para satisfazer as necessidades de cobertura
de cuidados de saúde primários. Fonte: http://www.indexmundi.com/. - Acessado em 21 de janeiro de 2015.
138

prioritária adotada pelo Ministério da Saúde para a organização da atenção básica, no

âmbito do SUS, dispondo de recursos específicos para seu custeio. É responsável pela

atenção básica em saúde de uma área determinada. Cada equipe (médico, enfermeiro e

auxiliar de enfermagem) deve atender no mínimo 2.400 e no máximo 4.500 pessoas,

podendo solucionar 80% dos casos em saúde das pessoas sob sua responsabilidade (dados

do Portal da Saúde do Governo Federal). Ambas vertentes de cuidados sejam curativos –

no caso da atenção básica – ou sejam preventivos – no caso do PSF – são limites de uma

discussão necessária do que se configura como o conceito de saúde no Brasil de hoje, que

a cada discurso fica forte uma tendência ao cuidado sociológico, estatístico e de menção

da qualidade de vida.

TEXTO 6 – Exemplo da Pequena Temporalidade


Editorial: Guerrilha médica

20/09/2013 – Publicado na Folha de S. Paulo

Dada à celeuma, é natural que governo federal e entidades médicas


continuem sem se entender quanto à filosofia e à oportunidade do programa
Mais Médicos.
É inaceitável, porém, que as associações de classe tenham decidido fazer a
lei com suas próprias mãos, criando uma série de empecilhos burocráticos para
não emitir o registro dos profissionais estrangeiros --o que atrasa ainda mais o
início do programa. Marcada para esta semana, a estreia de 682 médicos
precisou ser adiada por causa dessa disputa infrutífera.
Não importa o que pensem os médicos, o Planalto baixou uma medida
provisória que obriga os conselhos regionais da categoria a expedir os registros
mesmo para profissionais que não tenham passado pelo processo de validação
do diploma. Medidas provisórias, como se sabe, têm força de lei.
Se a classe não está de acordo, conta com várias possibilidades de ação.
Pode tentar convencer o Congresso a rejeitar a regra; se não conseguir, como
parece mais provável, tem ainda a oportunidade de recorrer à Justiça.
Há argumentos jurídicos para questionar não só o conteúdo da iniciativa --
um advogado com verve poderia descrevê-la como uma ameaça à saúde
pública, por exemplo--, mas também sua forma.
Em tese, medidas provisórias precisam atender ao duplo critério de
relevância e urgência. É difícil demonstrar urgência no programa, contudo,
sendo secular a falta de médicos nos rincões do país.
A maior ausência é de planejamento, mas os conselhos não podem ignorar
a presunção de legalidade do instrumento legislativo e inventar procedimentos
139

com o único intuito de descumpri-lo. Agindo dessa maneira, retiram-se do


campo da divergência democrática para flertar com um delito.
Médicos não estão acostumados com isso, mas às vezes é preciso
reconhecer a derrota. Ainda que o governo venha sendo populista e pouco sério
nessa novela, parece inatacável o argumento de que é legítimo e necessário
levar profissionais de saúde, incluindo os cubanos, a lugares onde os brasileiros
não estão dispostos a ir.
Fariam melhor os conselhos se parassem de boicotar a emissão dos
registros e se concentrassem em aprimorar o Mais Médicos.
É preciso insistir que levar um profissional com um estetoscópio a lugares
carentes é mero paliativo --embora muito necessário--, que fica muito aquém
de resolver a contento os problemas da saúde.
Como o tema entrou na agenda pública, os médicos deveriam pressionar o
governo por seus pleitos legítimos, como a destinação de mais verbas ao setor
e a criação da carreira de médico do SUS.

O embate ideológico fica cada vez mais claro no interior dos textos. Com o

cotejamento dos textos apresentados aqui e meramente comentados, logo temos já uma

constante: o litigioso confronto entre a classe médica e o Governo Federal. Há uma

insistência significativa do tema “Mais Médicos” mesmo em assuntos operacionais do

Sistema Público de Saúde no Brasil. Chega um momento que parecem circular apenas a

esfera política partidária, entre esquerda e direita, ou Partido dos Trabalhadores (PT) e

Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), dos conselhos de medicina e governo

federal; porém são embates que traduzem bem os conflitos no interior do signo “Saúde”

sendo levado para um outro patamar, além de político, que abarca influenciando as

medidas de cada grupo, cada vertente, cada partido, cada visão ideológica. Nota-se que o

embate é mais complexo que as notas oficiais deixam transparecer. A guerrilha está

armada. Os jogos de poder estão latentes em cada palavra do jornal, entre um “boicotar”

atribuído aos conselhos de medicina, como atitude ineficaz, e um “apenas mero paliativo”

atribuído a presença de médicos em lugares longínquos, logo aparecem como estruturas

claras de um conflito cheio de atribuições de valores sociais, políticos e ideológicos.

A contundência de um pensar linguístico faz com que tomemos um texto como uma

trama complexa de fios ideológicos, um editorial de um jornal guarda inúmeras vozes em


140

seu interior, polifonia, mas revela em um só tempo, o do texto, uma conversa com a

realidade material e com as discussões que quer silenciar ou aflorar. Há uma forte carga

discursiva e material no título “Guerrilha Médica”, como luta armada de argumentos,

debates, valores, políticas e litígios jurídicos, como mostra o próprio editorial da Folha

de S. Paulo; entretanto, os discursos em confronto que observamos revelam algo que na

filosofia da linguagem bakhtiniana chama a atenção para o signo como material em

disputa, ideológico, pois todos os estudos sobre conhecimento científico, literatura,

política, religião, jurisprudência estão estreitamente ligados aos problemas da filosofia,

segundo Bakhtin:

Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como


todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao
contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é
exterior. Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado
fora de si mesmo. Em outros termos, tudo o que é ideológico é um signo. Sem
signos não existe ideologia. Um corpo físico vale por si próprio: não significa
nada e coincide inteiramente com sua própria natureza. Neste caso, não se trata
de ideologia. (BAKHTIN, 1929, p. 31)

O jornal, material periódico publicado, é um arcabouço diário de relações sígnicas

da pequena e grande temporalidade de uma cultura, assim como um editorial ou um artigo

de opinião. Dentro deles há um produto ideológico na mensagem, na temática, no tipo de

abordagem, na escolha do título que refletem o que querem e refratam o que também não

fora desejado. A diferença de um corpo físico que vale por si só com um jornal (que é

físico e material palpável) são gritantes, pois o corpo físico reflete leituras, mas quando

esvaziado de ideologia, apenas é corpo material não podendo ser interpretado em si

mesmo, mas quando em um contexto, em um território histórico preciso, qualquer peça

de um jornal é centelha de interpretações variadas.

Porém, as leituras de um jornal não podem ser abertas ao infinito abstrato ou ao

relativismo absoluto, pois um produto ideológico significa diante seu contexto, sua
141

trajetória, sua memória, sua ação como produto de consumo e bem material interpretado.

Não há como lançar qualquer juízo de valor solto sobre um jornal. As palavras são

escolhidas, selecionadas para aquele tipo de reportagem, aquele tipo de dizer e aquele tipo

de escolha discursiva (BAKHTIN, 2011). Levando em conta, por exemplo, que um

editorial é feito por um grupo de jornalistas “renomados”, já conhecidos, experientes,

politizados e fortemente armados de argumentos ideológicos. Um editorial é diferente de

qualquer outro artigo escrito dentro de um periódico, pois carrega a mensagem, voz da

empresa jornalística, do grupo de acionistas, da escolha partidária, ou mesmo tendenciosa

visão de mundo. Consequentemente, tudo isso faz do editorial de um jornal como o do

periódico Folha de S. Paulo, um potente compêndio de amarrações sígnicas, que levam a

uma complexidade ideológica, política, econômica, jurídica e ética das mais sofisticadas,

como ponto de análise da realidade brasileira no pequeno tempo e no grande tempo.

Das várias lutas do interior de um periódico estão à luta pela venda de produtos,

pela informação mais democrática, da escolha por uma perspectiva do debate, etc,

contudo a que vale aqui: é a luta ideológica que movimenta o debate da saúde como bem

ideológico e político. Quando um editorial de um jornal se coloca crítico ao

posicionamento de uma grupo específico, no caso aqui da Classe Médica e seus

Conselhos Federais, Regionais e Federais representados, frente a uma política nacional

(Ministério da Saúde) com respaldo internacional (OMS) pelo combate a falta de

infraestrutura e pela qualificação em três tempos (curto, médio e longo prazos) do

contingente médico, não só acreditando que a importação de profissionais da saúde

resolveriam o problema nacional, mas apontando que a médio prazo há de se formar mais

médicos no Brasil e incentivá-los a migração ao interior e regiões com quantidade

insipiente de médicos, além de, a longo prazo, cuidar e programar uma formação sólida

em atenção básica, em médicos generalistas, em médicos com formação em saúde


142

coletiva e da família. Coloca-se, aqui, em paralelo dois discursos: o de uma classe que

opera desfalcando a ética dos cuidados da saúde; e o de uma preocupação com o tempo

de cuidado com a vida de uma população que envelhece em média 3,7 anos a cada

pesquisa censitária, feita a cada duas décadas, sobre a expectativa de vida e a qualidade

da saúde do brasileiro. De um lado um grupo ideológico forte em discurso, pois acumulou,

em torno de si, capital, política, discursos oficiais e oficiosos. De outro uma medida

paliativa que visa à quebra do monopólio deste grupo ideológico, mas por meio de um

radical humanizador de todas as atividades de saúde no país, passando pelo “Mais

Médicos” e saindo da Atenção Básica, como aspectos da política.

Em outras palavras, o cenário e o estágio do SUS e da saúde no Brasil dependem

de jogos ideológicos entre a sociedade civil, as vozes polifônicas dos jornais, o poder

público e as necessidades de um mundo globalizado, em que a saúde é um jogo tenso

entre ser coletiva, familiar a todos, singular, biopolítica e/ou biopsicossocial-discursiva.


143

2.2 A ESCOLHA PELA FILOSOFIA DE BAKHTIN SOBRE A CRISE EM SAUSSURE – A ESCOLHA


PELO HUMANO DO HOMEM

“O lugar da filosofia. Ela começa


onde termina a cientificidade exata
e começa a heterocientificidade.
Pode ser definida como
metalinguagem de todas as ciências
(e de todas as modalidades de
conhecimento e consciência).”
[BAKHTIN]

Na base de todo signo verbal, do que é linguístico, está o embate e a crise

(RANCIÈRE, 1999), assim como em todas as atividades humanas desenvolvidas por

linguagem (BAKHTIN, 1976). Logo, toda ciência é produto da estabilização das

instabilidades cotidianas formuladas pelo dissenso. Fruto aparente de um todo provisório,

ora estruturalista, ora sócio-interacionista, ultimamente. Ciências novas e encaminhadas

como pós-modernas como a antropologia51, a psicanálise, e aqui, primordialmente

tratada, a linguística estão em constante (des)construções. Isto se torna mais nítido em

estudos de uma Filosofia Linguística, que com uma visão panorâmica acompanha os

meandros de estudos na ciência da linguagem a partir dos de Ferdinand Saussure e outros

ao longo do século XX. Mas o que a Linguística ou mesmo a Filosofia Linguística tem a

contribuir no esclarecimento das disputas biopolíticas no interior do binômio

Saúde/Qualidade de vida?

51
Embora seja ainda muito polêmica a definição de pós-moderno para a Filosofia e para as Ciências Sociais,
é um termo que apareceu com muito naturalidade nas Artes e na Literatura, por considerar a obra de arte
como um objeto interagente com o expectador, fazendo com que o expectador se questione, se incomode,
se ponha em interação com a arte que o faz se questionar. Nota-se que a definição de pós-moderno quebra
o paradigma mecanicista abstrato ou do puro objetivismo abstrato, e coloca o homem em questão constante.
Trazendo para a Arte novamente o caráter de questionar na pequena temporalidade a revelação do tempo
grande. As ciências pós-modernas têm muito de conjectural, assim como a arte pós-moderna suscita os
pensamentos nas galerias ou mesmo pelos gratittis do muros cotidianos.
144

Este capítulo servirá para desfazer alguns equívocos e preconceitos com a teoria de

Saussure, não todos, pois Bakhtin leu muito de Saussure e foi capaz de apontar o erro do

linguista francês. Contudo, três textos novos e anotações de Saussure, mostram que ele

tinha total noção da escolha estruturalista que estava fazendo, fazendo com que nós

pensemos em uma Filosofia Linguística, que pense a construção da ciência da linguagem

no século XX, a partir do muito daquilo que nos legaram russo e o francês.

A Filosofia Linguística nos serve para pensar os (des)caminhos das ciências da

linguagem, muito mais que nos conduzir a uma exegese de uma monologia teórica, que

nos leve a salvação que é a perdição do caminho científico unilateral. Está a Filosofia da

Linguística interessada em observar, dialogar, com os modos e não indicar a ‘verdade’

(muito próximo ao que queria Nietzsche, ou quer Ginzburg, por exemplo). Mas ver as

ciências como uma necessidade humana, os modos de ciência, e as ‘subciências’ como

tentativas do mover do paradigma científico. E está a Filosofia Linguística no caminho

ético (de um mundo ético, que se move constantemente), enquanto as ciências da

linguagem circulam em um caminho estético (de um mundo estético, que se apresenta

com um acabamento provisório, mas bem pautado, metódico, explicado e fechado em si

mesmo). Contudo, por mais que o fazer científico aparente ser provisório é

profundamente necessário. Postulações da linguística saussuriana nos serviram e servirão

para construção de inúmeras vertentes linguísticas (são exemplos Benveniste, Bakhtin, e

também teóricos da Análise do Discurso). Sendo este fazer científico tão necessário à

“...nós, os humanos, (pois) não podemos crescer, viver e envelhecer sem instituir um

tempo, sem fragmentar, pautar e contabilizar seu devir e seu passar, não sabemos deixar

transcorrer nossa vida sem nomear, sequenciar, ordenar e esclarecer” (PLACER, 2001, p.

82). Tanto é da natureza humana catalogar o que se passa, quanto da visada ética buscar

o ‘bem’ comum entre as ciências. Encontramos dois teóricos (Bakhtin e Saussure) em


145

especial caso neste artigo, vistos como diferenciados pensadores e filósofos da linguística.

Ao fazerem ao longo de suas vidas reavaliações de suas teorias, ou pela busca constante

por interlocutores ímpares, como fez Bakhtin ao dialogar com Freud (no Freudismo, em

1927) e Einstein (para estabelecer o conceito de cronotopia), ainda nas primeiras duas

décadas do século XX; ou fez Saussure para levantar os conceitos em torno do signo ao

dialogar com a filologia do século XIX, e instituir o que chamam de Linguística, até hoje.

Poucos tiveram uma visão como a de Ferdinand Saussure já no início do século XX,

por suas conferências que geraram o “Curso de Linguística Geral” (CLG). Poucos

notaram que os estudos da linguagem deveriam ser pautados na langue, em um primeiro

momento, que é a escolha de Saussure para estabelecer critérios mais estruturais para a

linguística, para posteriormente seguir aos estudos da parole, que foi entendida como

móvel, individual e, portanto, de complexa formulação para aquele momento. Saussure

fez uma escolha, acertada, em um primeiro momento. Mas estudos complementares no

século XX iriam dialogar frequentemente com o que Saussure nos deixou como legado

aberto e promissor: a possibilidade de estudos sobre discurso (AD) e da enunciação de

Benveniste. É, portanto, da escolha estruturalista de Saussure que descortinamos toda a

Linguística do século XX, para agora pensarmos o binômio Saúde /Qualidade de vida. O

erro de Saussure foi escolher apenas o estruturalismo. Nos legou o aberto e o

desconhecido por descobrir. Está aí a primeira falha do francês, detectada pelos outros

linguistas que vieram depois.

Para entender a visão privilegiada de Saussure é preciso um olhar breve sobre três

textos específicos: As Palavras sob as Palavras: os Anagramas de Ferdinand de Saussure,


146

e
o Curso de Linguística Geral os Escritos de Linguística Geral52. Nos três textos

notamos a diferenciação de Saussure ao compararmos seus três trabalhos, e as condições

de produção de cada texto, já que o segundo (CLG) é escrito por três de seus discípulos,

e não todo pelo próprio Saussure. Isto já quebraria alguns preconceitos acerca da

linguística de Saussure, apenas associada ao estruturalismo. Ainda mais sabendo que:

Para mim, quando se trata de linguística, isto é acrescido pelo fato de que
toda teoria clara, quanto mais clara for, mais inexprimível em linguística ela se
torna, porque acredito que não exista um só termo nesta ciência que seja
fundado sobre uma ideia clara e que assim, entre o começo e o fim de uma
frase, somos cinco ou seis vezes tentados a refazê-las” (SAUSSURE, 2011, p.
11)

Em momento algum no ELG (Estudos de Linguística Geral) Saussure vai


entender o caráter dual da linguagem como sendo constituído por uma parte
que é essencial e por outra que é secundária. Língua e fala, apesar das suas
especificidades, são inseparáveis para Saussure. Quando Bally e Sechehaye
compreendem a língua como a parte essencial da linguagem e a fala como
secundária estão mutilando completamente o pensamento do mestre
genebrino. Acrescente-se a essa mutilação o fato de que o enunciado “a
Linguística tem por único e verdadeiro objeto a língua encarada em si mesma
e por si mesma” nunca foi proferido por Saussure, quer seja no ELG, quer seja
nos cursos de linguística geral.” (SIGNORI; BARONAS, 2010, p. 75)

Descobre-se um Saussure crítico da própria Linguística estruturalista que o

consagrou postumamente, pois sabia que os caminhos eram promissores e inacabados.

Pois Saussure sabiamente via sua teoria como ainda, mesmo que revista, provisória. Aí

está também seu erro. Encontramos um Saussure cheio também de incertezas, contrário

ao que se apresenta em CLG. Encontramos um Saussure além da própria linguística,

52
Os Escritos de Linguística Geral, trazendo o pensamento saussuriano como foi deixado por ele mesmo.
A edição foi organizada por Simon Bouquet, a partir da descoberta, em 1996, de novos manuscritos
saussurianos, em hotel da família de Saussure, em Genebra.
147

questionando os caminhos e em crise pelas trilhas tomadas por sua linguística. Fazendo-

o assim um filósofo da linguística.

Por outro lado, se pensarmos em Bakhtin, o próprio pensador russo se denominava

um estudioso da cultura por meio da linguagem, e não apenas linguista. O inacabamento

da teoria bakhtiniana também reforçam essa tese, porém há conceitos primordiais para os

estudos linguísticos em toda a sua teorização, como o de dialogia, heteroglosia, excedente

de visão, exotopia. É de comum acordo aceitarmos Bakhtin como um dos grandes

pensadores da linguagem no século XX, apesar de não, para muitos, nos deixar uma

metodologia como os estruturalistas sempre o querem nos fazer acreditar. Talvez por isso

o legado bakhtiniano nos seja mais caro e valioso, por nos fazer mover sobre os valores

científicos da linguística, nos dando uma visão exotópica, uma perspectiva histórica.

Rompendo assim aquela visão do ensino de linguística monolítica, assim como fez

Foucault procurando, no capítulo anterior, romper com todo estruturalismo abstrato

objetivista. Saussure se viesse mais 15 anos, reformularia toda a sua teoria.

É prática corrente, no ensino da linguística, apresentar-se ao estudante uma


imagem mais ou menos monolítica e homogênea da ciência à qual é iniciado.
Limita-se o ensino aos textos mais recentes da teoria considerada “correta”
pelos organizadores do currículo. As teorias rivais são simplesmente ignoradas
ou então relegadas a um plano totalmente secundário, sendo interpretadas
como “desvios” sem importância da doutrina “correta”. Além disso, raramente
considera-se necessário apresentar esta doutrina dentro de uma perspectiva
histórica.” (DASCAL, 1978, p. 63)

O pensador Bakhtin causa a revolução, em uma perspectiva histórica, por contrastar

a importância do Outro na construção da linguagem. Saussure não quis adentrar estudos

subjetivos – parole - e individuais, a priori, para se dedicar ao sistema da língua - langue.

Mas via Saussure um campo promissor para seus estudos futuros. Por isso numa

perspectiva ampla, podemos ver a importância dos dois: o último se dedica a língua como

sistema; e primeiro, dedicado a linguagem como interação eu/outro. São campos


148

diferentes, não há como fazer paralelos, a não ser os já feitos pelo próprio russo no

“Marxismo e Filosofia da Linguagem” (MFL), em que o russo aponta os próton-pseudos

da teoria saussuriana, e a aponta como um excelente exemplo do objetivismo abstrato,

próximo ao que chamamos aqui tecnicismo mecânico, ou estruturalismo, ou mesmo

método científico exatóide, que sozinho não contribui em nada para pensarmos o conceito

da palavra como signo ideológico, seja ela “Saúde” ou “Qualidade de Vida”.

Ambos pensadores são importantes, ainda mais em uma perspectiva histórica, pela

força de suas teorias, nos levando a uma contundente filosofia linguística. Tanto Saussure

quanto Bakhtin se preocuparam com a natureza do signo linguístico. É bem verdade que

o segundo dialoga com o primeiro, e faz de sua teoria sobre o signo ideológico uma

contrapalavra ao signo imerso na teoria da língua como sistema. Saussure ao estudar a

língua, afasta-se de estudos sobre o sujeito, a história e a fala. O que Bakhtin viria

posteriormente estudar no MFL em 1929, encontrando na base da linguagem a ideologia

que mais adiante a Análise do Discurso iria valorizar, e definir como objeto de seus

estudos: a ordem dos discursos.

Análise do Discurso se define pela sua proposta das novas maneiras de ler,
colocando o dito em relação ao não dito, ao dito em outro lugar,
problematizando as leituras de arquivo, expondo o olhar leitor à opacidade do
texto”. Já o discurso é o lugar de observação do contato entre a língua e a
ideologia, sendo a materialidade específica da ideologia o discurso e a
materialidade específica do discurso, a língua. (ORLANDI, 1987, p.87).

Obviamente nem Saussure, nem Bakhtin são os pais da Análise do Discurso (AD),

mas não há como negar as contribuições de ambos para o desenvolvimento de inúmeros

campos da linguística e da própria AD. Entretanto há em ambos a contribuição mais

reveladora, pois ambos eram ocupados em mover o fazer linguístico, este fazer científico

tão novo e constantemente em crise no século XX.


149

Investigação científica da linguagem humana – objeto da relativamente


nova ciência denominada ‘linguística’ – sofreu, em sua curta existência, um
grande número de transformações. Os métodos de observação e análise dos
dados, a própria delimitação do objeto de estudo e, consequentemente, também
os resultados obtidos – nada ficou imune a essas mutações. Longe de terem
cessado, elas continuam a processar-se ainda hoje, diante de nossos olhos.
Teorias diferentes, muitas vezes opostas em relação a questões fundamentais,
continuam disputando a primazia dentro da linguística atual. A evolução
recente dessa disciplina, portanto, constitui-se num campo privilegiado para o
estudo dos vai-e-vens do pensamento científico. De forma mais específica, os
seguintes fatos conferem um interesse particular ao estudo da evolução
linguística:

a) O estudo da linguagem humana transformou-se, nos últimos cem anos,


de uma disciplina ‘literária’, de função meramente auxiliar (do ponto de vista
pedagógico) e de caráter normativo, em uma ‘ciência’ na plena acepção do
termo – com todas suas conotações de prestígio para uns e de estigma para
outros. A análise dessa transformação nos proporcionaria sem dúvida uma
certa compreensão das condições sociológicas, psicológicas, históricas e
epistemológicas da ‘emergência’ de uma ciência.

b) A sucessão relativamente rápida, na história recente da linguística, de


teorias e abordagens radicalmente distintas e conflitantes entre si parece
indicar a ocorrência, nessa disciplina, de várias ‘revoluções científicas’ durante
um período relativamente curto. A tentativa de verificação dessa tese pode
levar ao refinamento do conceito de ‘revolução científica’ (e dos conceitos que
lhe são associados) ou à sua rejeição, ou seja, pode servir como instrumento
para a testagem dos modelos existentes da evolução da ciência.

c) Os dois pontos anteriores adquirem especial interesse se levarmos em


conta que a linguística tem servido como modelo de ‘cientificidade’ para as
demais ciências humanas (basta lembrar certas palavras-chave como
‘estruturalismo’, ‘behaviorismo’, etc.). Ou seja, os resultados – quaisquer que
sejam – das análises acima propostas poderiam ser vistos como sintomáticos
para as demais ciências humanas.

d) A linguística sempre foi uma ciência altamente conscientizada do ponto


de vista metodológico. O estudo de sua evolução pode, portanto, revelar a
influência que podem ter diferentes concepções do método científico, quando
são mais ou menos explicitamente assumidas pelas diferentes escolas dentro
de uma disciplina. A tomada de consciência desse tipo de influência é de
interesse do próprio linguista, enquanto que sua caracterização geral é do
interesse do filósofo, do historiador e do sociólogo da ciência.” (DASCAL,
1978, p 45.)

Para todo filósofo da linguagem, o objeto da linguística é a linguagem humana, os

caminhos para os cientistas é que difere, sejam, como exemplos, a Análise do Discurso,
150

a lexicologia, ou a linguística aplicada. Por isso tanto para Saussure quanto Bakhtin o

pensar linguagem em filosofia linguística está além das próprias teorias que formularam,

e que por anos vêm os cientistas tentando estabilizar em metodologias.

Bakhtin não se distanciara muito do compromisso da linguística, assim como

Saussure:

A linguística, eu ouso dizer, é vasta. Particularmente, ela comporta duas


partes: uma que é mais próxima da língua, depósito passivo, outra que é mais
próxima da fala, força ativa e verdadeira origem dos fenômenos que se
percebem em seguida, pouco a pouco, na outra metade da linguagem.
(SAUSSURE, 2004, p. 273)

Bakhtin entra no embate por uma ciência mais humana, e Saussure por uma Ciência

sem verdades absolutas, pautando a língua como sistema, sendo o signo arbitrário,

acreditando que é pelo viés da Filosofia da Linguagem (ou pela Filosofia Linguística) que

poderíamos encontrar rumos mais intrinsecamente humanos, e nos leva a pensar o “como”

seria salutar a inversão do modus operandi científico (em que os humanos andam sendo

tratados como objetos) para um modo que recebam tratamentos mais humanos ao homem,

em sua insusbstituibilidade humana (MORIN, 1997; BAKHTIN 2011), em suas

diferenças, em suas imperfeições, em suas falibilidades. Há a mesma crise de paradigma

na teoria de Saussure e de Bakhtin, ambos viram a mesma fissura no pensamento

racionalista. E há a defesa de uma ciência com um conviver dialógico (BAKHTIN, 1929)

e em um humanismo da alteridade (PONZIO, 2008) pautados nas dessemelhanças; e não

em um monologismo da identidade mecanicista e idealista, que vê/trata o homem

segmentado em apenas corpo biofísico; ocultando sua psique (consciência) e suas

relações sociais (jogos ideológicos embebidos de signos verbais e arbitrários, os quais são
151

alimento à consciência)53. Bakhtin e Saussure, dentro de uma Filosofia Linguística, são

como pensadores e estudiosos da linguagem que tinham em suas consciências as maiores

armas da causa e da crise da racionalidade: pensavam no valor científico, muito além dos

apenas estruturais; pensavam nos ideológicos, muito além dos materiais; pensavam no

Devir da Linguagem, mas apenas Bakhtin o encarou. E nisto se pauta verificar a

proficuidade da palavra, por meio de seu significado, reconhecimento, contexto e

dialogicidade, seja a palavra um conceito tão vivo e dialógico, como “Saúde” ou

“Qualidade de Vida.”

TEXTO 7. Exemplo da Pequena Temporalidade.

Plano do governo é vazio, eleitoreiro e totalitário, diz Conselho de


Medicina.
COUTINHO

08/07/2013 – 20h03 -Publicado na Folha de São Paulo

O Conselho Federal de Medicina criticou nesta segunda-feira (8) o plano


do governo para ter mais médicos no interior do país, lançado pela presidente
Dilma Rousseff como uma resposta à onda de protestos.
Segundo o presidente da entidade, Roberto Luiz d'Ávila, as medidas não
resolverão o problema da saúde no Brasil, que precisa de mais qualidade e não
mais quantidade.

53
“O idealismo e o psicologismo esquecem que a própria compreensão não pode se manifestar senão através
de um material semiótico (por exemplo, o discurso interior), que o signo se opõe ao signo, que a própria
consciência só pode surgir e se afirmar como realidade mediante a encarnação material em signos. Afinal,
compreender um signo consiste em aproximar o signo apreendido de outros já conhecidos; em outros
termos, a compreensão é uma resposta a um signo por meio de signos [em uma cadeia ideológica]. (...) Essa
cadeia ideológica estende-se de consciência individual em consciência individual, ligando umas às outras.
Os signos só emergem, decididamente, do progresso de interação entre uma consciência individual e uma
outra. E a própria consciência individual está repleta de signos. A consciência só se torna consciência
quando se impregna de conteúdo ideológico (semiótico) e, consequentemente, somente no processo de
interação social. (...) A consciência individual é um fato sócio ideológico. (...) Os signos são o alimento da
consciência individual, a matéria de seu desenvolvimento, e ela reflete sua lógica e suas leis. A lógica da
consciência é a lógica da comunicação ideológica, da interação semiótica de um grupo social. Se privarmos
a consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico, não sobra nada. A imagem, a palavra, o gesto
significante, etc. constituem seu único abrigo. Fora desse material, há apenas o simples ato fisiológico não
esclarecido pela consciência, desprovido do sentido que os signos lhe conferem.” (BAKHTIN, 1929, p. 32-
35)
152

O conselho defende um aumento no orçamento da saúde e mais estrutura.


"É um programa vazio e sem consistência, onde faltou a solução definitiva, e
não medidas paliativas e eleitoreiras", disse o médico.
D'ávila afirma que o atendimento não vai melhorar nos próximos anos com
o aumento de médicos.
"A população não pediu mais médicos. O governo inventou isso, depois de
um gerenciamento incompetente, vem colocar a culpa dizendo que faltam
médicos. É maldade colocar a responsabilidade que os médicos não querem ir
ao interior. Queremos ir, mas falta estrutura. É impossível trabalhar se falta
agulha, medicamento. É um sofrimento muito grande", disse.
O presidente do conselho de medicina comparou a obrigatoriedade para
que os formandos trabalhem dois anos no SUS como um ato de país totalitário.
"Os países totalitários fazem isso, os países sérios criam condições para que
os recém-formados possam ir espontaneamente ao interior. Por que só os
médicos? Não faltam engenheiros? Se derem as condições e uma carreira, o
médico estará em todo o lugar", afirmou.
D'ávila deu como exemplo Brasília, que proporcionalmente tem mais
médicos que na Inglaterra, mas a qualidade é bem abaixo. A Inglaterra tem um
dos modelos que inspirou o Ministério da Saúde neste novo plano.
"A diferença é que os países desenvolvidos colocam mais de 70% do total
de dinheiro investido na saúde e o Brasil coloca 44% e as famílias colocam
56% em pagamentos diretos ou planos de saúde", afirmou.
ENFRENTAMENTO
O presidente do Conselho Federal de Medicina disse que a entidade vai
trabalhar em duas frentes para derrubar o projeto do governo. A primeira é,
ainda no Congresso, alterar os termos da Medida Provisória.
Além disso, o conselho disse que analisará o texto para questioná-lo na
Justiça.
"Se acharmos que é ilegal, vamos a todos os tribunais. Temos duas frentes:
a derrubada da medida provisória no Congresso e questioná-la judicialmente",
afirmou.
Bakhtin, no Marxismo em Filosofia da Linguagem (1929), fala de uma
espécie de Psicologia do Campo Social, que é inteiramente exteriorizada na
palavra, no gesto, no ato. Em que tudo está nela, exposto nela, na sua
superfície, movimentando na troca de material, principalmente, no material
verbal. O discurso, ou as vozes, que o presidente do Conselho Federal de
Medicina enuncia são parte da nossa Psicologia do Corpo Social que,
É o meio ambiente inicial dos atos de fala de toda espécie, e é neste
elemento que se acham submersas todas as formas e aspectos da criação
ideológica ininterrupta: as conversas de corredor, as trocas de opinião no teatro
e, no concerto, nas diferentes reuniões sociais, as trocas puramente fortuitas, o
modo de reação verbal em face das realidades da vida e dos acontecimentos do
dia a dia, o discurso interior e a consciência auto-referente, a regulação social.
(BAKHTIN, 1929, p.43)

A criação ideológica submersa na fala, no gesto, no material verbal do presidente

do Conselho de Medicina demonstra uma clara visão elitista, burocrática e de classe, já

que defende o trabalho nos médicos como dependente de infraestrutura e negando o


153

caráter da interação médica com os seus clientes em estado grave, ou mesmo precisando

de apenas uma consulta pedagógica em regiões inóspitas brasileiras. O trecho destacado

a seguir é muito relevante: "A população não pediu mais médicos. O governo inventou

isso, depois de um gerenciamento incompetente, vem colocar a culpa dizendo que faltam

médicos. É maldade colocar a responsabilidade que os médicos não querem ir ao interior.

Queremos ir, mas falta estrutura. É impossível trabalhar se falta agulha, medicamento. É

um sofrimento muito grande" (os grifos são meus). A carga de ataque do texto pelo uso

da auto-vitimização do presidente do Conselho de Medicina é evidente. Coloca-se que a

população não pede mais médicos, nem que os médicos têm culpa se falta estrutura, mas

a culpa e a responsabilidade é toda do governo de “gerenciamento incompetente”. O

cenário de disputa política se tornou muito notório ao andar das análises dos textos sobre

o tema “Mais Médicos”, durante 20 meses, ainda mais prova que a natureza da cultura de

debate em torno da saúde é muito rasa e parca, se considerarmos a auto-vitimização tanto

do governo quanto dos órgãos responsáveis pela medicina no país. Há o tempo todo em

todos os texto a forte presença de pontos de tensão ideológica: a formação médica

(tecnicista e/ou humanizada); a qualidade de vida (medida pela infraestrutura ou pelo

contingente médico/populacional); a saúde individual como efeito da coletiva (cuidados

preventivos e curativos em programas governamentais); a democratização do acesso à

saúde pelo SUS; a elitização de alguns campos da medicina destina à especialistas e certas

classes sociais; a “dupla porta” (possibilidade de atendimento tanto pelo SUS quanto pelo

plano privado) nos hospitais dos grandes centros urbanos; e a imensa tensão entre os

grupos de poder político, ideológico ou financeiro do país que deixam a saúde do cidadão

brasileiro em estado de descuido.

O que está em jogo no discurso do médico-presidente do Conselho Federal é mais

profícuo de discussões filosóficas e éticas do que de debates de lutas de classes, porém a


154

luta de classes parece reverberar mais alto nas falas do entrevistado. Há claro debate de

classes. Se a Psicologia do Corpo Social deve ser estudada por dois pontos importantes,

sendo eles: o conteúdo, dos temas que se atualizam em um dado momento histórico, de

tempo, e de formulação ideológica; e os tipos ou formas de discurso pelos quais os temas

tomam forma, são ventilados na mídia, comentados em redes sociais, se realizam, são

experimentados e pensados. Sendo assim, a forma da reportagem pode não ter

privilegiado o melhor do conteúdo da fala do entrevistado, já que uma entrevista recebe

o recorte detalhado para a impressão por parte do jornalista e do conselho editorial do

periódico envolvido (consideramos isso, mas não esqueçamos que tudo está em disputa

dentro de um texto até as vírgulas, não-ditos e palavras retiradas do texto na versão final,

a que não tivemos acesso). Podemos ver uma clara escolha pelo discurso do dissenso, do

litígio entre o Conselho Federal de Medicina e o Governo Federal. Além de podermos

encontrar uma forte marca da visão classista médica sobre atitude do Governo por meio

de um programa que importa médicos estrangeiros. Há no interior da reportagem uma

voz que vem das ruas, deflagrada pelos pedidos nas, chamadas, Jornadas de junho de

2013, que fez surgir com mais rapidez o programa “Mais Médicos”, mas também há uma

voz que trava as ruas e as mudanças sociais que o país necessita, e esta vem de elites

financeiras, além da descrença que se dá a voz popular. O constructo da psicologia do

corpo social estuda essas vozes que se digladiam, se reformulam, nas consciências como

material ideológico, como material de hábitos de vida, como capital cultural enraizado

em certas elites, classes e memória sobre alguns signos de palavras como “povo”, “classe

média”, ou mesmo a própria “medicina”. Para Bakhtin, em toda a sua teoria, se o signo é

material ideológico e alimento das consciências, então o ser humano é um ser cultural por

excelência. Ele recebe as informações, as formações do meio ambiente ao qual vive e

interage, portanto, se alimenta das atividades em família, sociais, em conselhos,


155

agremiações, congressos e com isso acaba por refletir e refratar muito do que o meio sócio

cultural constrói para que ele reproduza. A marca na fala do presidente do Conselho

Federal de Medicina é de um ser de seu tempo, mergulhado na defesa de um elitismo de

classe, de uma visão que não caminha para a humanização da saúde, que não defende

uma postura a curto prazo de ações pontuais e temporais em regiões longínquas para sanar

uma deficiência de contingente médico brasileiro, e que a médio e longo prazo

“institucionalize” as infraestruturas necessárias a cada região, município ou estado.

O viés das ciências humanas é tratar o humano, assim como o viés da saúde deveria

ser também o humano. Olhar o pensamento bakhtiniano nesta vertente, é olhar ao que se

pode defender como conceito de vida, ou seja, deve-se defender a vida como dádiva e

unicidade evêntica do ser sem álibi, em seu ato responsável, seja por ter escolhido a

profissão de médico, ou de pedreiro, ou de engenheiro ou ser simplesmente, sertanejo,

pois vive cuidando do sertão. Para tanto é preciso uma medicina e um Conselho de

Medicina pautados no humano do homem, em sua singularidade física, política, social,

ideológica e ética, levando ao que Bakhtin chama de ato responsável não indiferente

(BAKHTIN, 2012).

Está mais que na hora, de cada palavra, em cada espaço social, se tornar um ato de

resistência ao biopolítico, ao poder instaurado, às hegemonias, aos elitismos, para que a

disputa não seja só político-partidária entre os Conselhos de Medicina e o Governo

Federal. É preciso resistir!

(...) não existe (...) um lugar da grande Recusa – alma da revolta, foco de
todas as rebeliões, lei pura do revolucionário. Mas sim resistências no plural,
que são casos únicos: possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas,
selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas
ao compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício; por definição, não
podem existir a não ser no campo estratégico das relações de poder. [...] As
resistências não se reduzem a uns poucos princípios heterogêneos; mas não é
por isso que sejam ilusão, ou promessa necessariamente desrespeitada. Elas
156

são o outro termo nas relações de poder; inscrevem-se nestas relações como o
interlocutor irredutível. (FOUCAULT, 1988, p. 134)

Fonte de resistências (no plural) é expressão, como signo ideológico, que pode

alimentar toda a humanística bakhtiniana. Pegar a palavra e “descamá-la” para verificar

seu conteúdo é o caminho para notar que “Saúde” é muito mais que biológica, mas um

signo vivo, mais amplo até, que o sentido dado atualmente ao conceito de “Qualidade de

vida”. E o caminho é o pensar linguístico tanto pela Filosofia da Linguística, que

questiona os caminhos que tomamos durante o século XX quanto pela própria

Linguística, que deve se fazer pela análise de um olhar de contrastes, por meio do

cotejamento de textos, pois está lá no fundo, na realidade material do signo linguístico, a

sua natureza de ser e de dizer.

Quando a palavra “Saúde” migrou para “Qualidade de vida” duas ideologias

ficaram evidentes (a do objetivismo abstrato e a do humanismo Subjetivista), porém

trouxeram à tona o corpo da caça aos olhos do pesquisador. Temos definitivamente uma

humanística bakhtiniana viva e em curso histórico.

Vamos à caça de uma evidência mais palpável!


157

2.3 DA SAÚDE, COMO CONCEITO BIOFÍSICO, À QUALIDADE DE VIDA, COMO


CONCEITO BIOPISCOSSOCIALDISCURSIVO.

“A palavra é um fenômeno
ideológico por excelência. A
realidade toda da palavra é
absorvida por sua função de signo.
A palavra não comporta nada que
não esteja ligado a essa função,
nada que não tenha sido gerado por
ela. A palavra é o modo mais puro
e sensível de relação social.”
[BAKHTIN]

Ao longo do trabalho, aqui, vai ficando evidente que o objetivo da tese poderia ser

defender a teoria bakhtiniana como uma chave para uma nova ciência – a Humanística.

Mas não o é. Pois chegarmos a uma nova ciência é ferir a ética bakhtiniana, pois é escolher

um método e não uma metodologia de leitura, ou seja, é reduzir como fizeram os

estruturalistas com a Linguística. Porém, meu interesse é deixar evidente que os signos

ideológicos (a qualidade de vida e saúde) são exemplos de “eufemismos” biopolíticos

(dizendo de uma forma mais direta), e que o “Mais Médico”, é o corpus escolhido para

mostrar as tensões em torno de cada signo verbal e ideológico. Caberia, portanto, rever o

título da tese, deixando as “contribuições bakhtinianas” (do título original54) e tirar a parte

“da saúde à qualidade de vida”? Então, um título possível seria: A Humanística

Bakhtiniana: uma ciência para o humano? Contudo, não é só isso, pois isolaria apenas

um dos pontos da tese, afinal há também a crise do paradigma da racionalidade entre a

Saúde e a Qualidade de Vida, que por mais que não tenha sido Bakhtin o inventor e

54
Da Saúde à Qualidade de Vida – Contribuições Bakhtinianas.
158

preconizador, é um lugar promissor e ainda fecundo de análises. Há, portanto, algo maior

acontecendo, maior que a teoria bakhtiniana dê conta, pois é algo da vida, da dialogia

viva das relações sociais e de poder, além também do biopolítico de Foucault. É algo

vivo, póstumo à Foucault, à Bakhtin e à Nietzsche. É um movimento das ciências, de

mudança de paradigma filosófico, mais amplo e linguístico; entretanto, mais promissor e

vivo do que teórico, fechado em que um modelo biofísico que não dá mais conta.

Vamos olhar o contraste entre o cronotopo de nosso tempo, com o de outro

momento histórico a partir de Descartes, para fazer um cotejamento de contextos além

dos textos, para elucidar por que temos que investigar o signo “Saúde” mais próximo de

“Qualidade de Vida” e ver quais são as pistas, rastros, pegadas úmidas, odores do

espectro, e estalitos de galhos que a fantasmagoria deixou, e que nos trouxeram até um

conceito biopsicossocialdiscursivo frente a outros, como o biofísico, por exemplo.

Inspirou-se em Descartes (1596 -1650) um modelo médico biofísico, em um

primeiro momento (embora Ginzburg ateste como sendo galileano), não só como

abordagem filosófica, mas como visão do corpo, da vida e da saúde. O corpo visto como

máquina, agindo de forma mecânica foi durante séculos um paradigma científico da

manutenção da vida. Sendo saúde “o silêncio do corpo” (concepção do século XVI), pois

máquina que range, trepida, e faz barulho precisa de conserto. Analogamente, o corpo

que tossia, estava ofegante e lento estava doente. O racionalismo científico de Galileu a

Newton inspirou o positivismo dos séculos posteriores, a visão de mundo mecanicista

trouxe benefícios, contudo trouxe a reboque uma concepção, claramente, reificadora do

Homem, já que o tratava pelo funcionamento do corpo e da sanidade (esta, muitas vezes,

era medida por ordens discursivas, por exemplo: a concepção religiosa e cultural, que

podia matar, excluir ou salvar o indivíduo). Entretanto, o que não se considerava até o

século XIX, cientificamente, era a possibilidade do meio, dos bens simbólicos e materiais,
159

da ordem dos discursos, do material ideológico dentro da concepção de mundo de uma

dada cultura em um tempo e espaço (cronotopo), ou seja, não se considerava a

importância das “Ciências do Espírito” (Dilthey apud BAKHTIN, 2011) e mais tarde

chamada de Ciências Humanas, como Sociologia, Psicologia, Antropologia, Filosofia e

Linguística, de estarem diretamente ligadas à concepção que mudaria o conceito de

“Saúde” para “Qualidade de Vida”.

O modelo médico priorizara a mecânica, a física, a matemática dos corpos. Os

métodos quantitativos da química e da biologia foram usados de maneira bem relevante

para o tratamento de doenças e curas, durante séculos, seja nas teorias dos humores ou

das Deficiências Físicas, desde Hipócrates até a teoria sádica de Procusto, o modo do

cuidado do homem com o seu semelhante passou por um paradigma lógico e muito

racional. E o que mais contribuiu, historicamente, para esta forte vertente fora o filósofo

francês, René Descartes, como o seu “cogito ergo sum”.

A interpretação do “Penso, logo existo” levou a Filosofia a um patamar racional

importante, apesar que também se levou, equivocamente, a grosso modo, ao monismo da

sentença: “essência precedia a existência”, pois a razão (essência) seria a causa

inalienável do homem, pois seria-lhe inata sua razão, sua capacidade de pensar (em uma

visão reduzida do pensamento de Descartes). A forte defesa antropocêntrica de que o que

diferenciava o homem dos outros animais ganhou força e reflexos após Descartes, já que

a razão fazia tal distinção, mas a Astrofísica em Galileu e a Física Mecânica em Newton,

em tempos remotos de Descartes, comprovavam empiricamente a visão racionalista.

Ficou legada a existência ao segundo plano, e as forças que a alimentam, como forças

metafísicas ou das “Ciências do Espírito” (Dilthey apud BAKHTIN, 2011).

Vale ressaltar que durante muitos séculos havia dois tipos de Ciência: a Física e a

Metafísica; o que promoveu uma visão cultural turva sobre o próprio ser humano. Tudo
160

o que não era quantificável e palpável era Metafísico, portanto das Ciências Metafísicas,

como a Filosofia, Artes, Política, etc. E pelo outro lado, aquilo que mais tarde viria a se

tornar Ciências Exatas e da Natureza eram Ciências Físicas, como Matemática, Física,

etc. Porém, fica o próprio corpo humano como lugar de incógnita para os teóricos por

longo anos, pois se a parte física do homem era mecânica, como então estudar a Biologia?

Se no aspecto anatômico podemos ver a Física, como estudar doenças que afetavam o

“espírito”, como a melancolia, o tédio, e mais recentemente a depressão? As respostas

durante os séculos foram variadas, mas quase todas caiam em explicações ideológicas de

classe, como consideravam os medievais: “Doença é uma danação de Deus sobre

determinados homens”.

A resposta viria mais adiante, no século XVIII, com a contribuição forte de uma

nova ciência exata – a Estatística. Porém, a Estatística, lembrando mais uma vez que a

palavra deriva da alemã “Stat” (“Estado”), trouxe contornos muito mais sociológicos do

que numéricos para a história da filosofia. Pois, assim o homem era calculado por

contingentes; com isso começaram a ser levados em conta aspectos sociais, culturais,

religiosos, políticos, sanitários e econômicos.

O século XIX, em que Karl Marx, observara a dicotomia entre classes e a luta entre

elas como motor da história, fez com que a Estatística definitivamente entrasse como

ciência contribuinte para a montagem daquilo que chamamos, hoje, de Ciências

Humanas, além de outros campos do saber. A recente história das Ciências, ditas

Humanas (como falamos no início do Capítulo Segundo): linguística, psicologia, filosofia

da linguagem, sociologia, economia, entre outras, na própria história do homem que

trouxeram revelações para todas as ciências. Hoje, a visão de mundo, que temos hoje,

conota que os fatores de relações sociais podem levar o indivíduo a ter uma vida mais ou

menos saudável.
161

A visão de mundo atual vê que o conceito “Qualidade de Vida” deva muito ao

advento de uma visão sobre a existência não mais como efeito da essência, como

interpretou-se em Descartes, mas como algo que precede a essência. Esta inversão de

valores (embora já houvesse ocorrido anteriormente em Aristóteles), é uma inversão de

paradigma e que mudou de forma brutal a óptica do mundo. Podemos chamar essa

mudança de paradigma, como uma das mais relevantes “revoluções copernicanas” da

Filosofia.

Só é possível chegar a uma mudança de paradigma importante se os bens materiais

de um determinado cronotopo servem de alimento para a consciência, ou seja, se

consideradas as ideologias e as condições histórias que estão no entorno da mudança.

Mudar o paradigma que colocava a essência predecessora da existência para uma visão

existencialista, popularizada, em Sartre, já no século XX, que invertia dizendo que era a

“existência que precedia a essência”. Chegamos a um ponto em que muito sob os signos

verbais se moveu, muito sob a história se transmutou, muito sobre as consciências

influenciou. E boa parte desses sintomas e mudanças vieram do modo de pensar a vida

com o advento das Ciências Humanas como Ciência relevante. A inversão de paradigma

veio para contribuir, pois a “essência” era adquirida ao longo das interações, das

experiências, dos alimentos da consciência, assim a ética e a moral tornaram-se bens

materiais e sociais, que são adquiridos na existência. O que em toda obra bakhtiniana

aparece muito forte, já que a “ideologia é alimento da consciência”, sendo assim, tudo o

que é adquirido pelo homem é o material externo que lhe serve de combustível interno,

subjetivo e objetivo durante a vida e suas interações, transformando o homem em um

vivente cultural.

O pilar da interação é um dos pilares mais vigorosos do pensamento humanista, e

em Bakhtin, não é diferente, pois a visão que se configurou com uma análise marxista da
162

filosofia da linguagem, em Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929), ou na crítica aos

métodos freudianos em Freudismo (1927), são todas de base material histórico e sócio-

interacionista. A essência, é portanto, adquirida. E a existência é que proporciona as

aquisições essenciais da vida. Há aí uma outra “revolução copernicana”, a revolução que

tira o homem do lugar divino e o coloca em um lugar mundano (causado por feridas

narcísicas, que vamos tratar na conclusão, pois parecem ser elas uma evidência forte da

Humanística bakhtiniana), cercado de relações de vida, de material cultural e ideológico,

de discursos e palavras. Revolução, essa, que apresenta as marcas relevantes da

Sociologia, da Antropologia, da Política e da Linguística para um novo modo de ver o

homem, agora pelo seu viés humano, sem mistificações metafísicas.

Quando o existir precede, a Filosofia se torna imprescindível, assim como a

Sociologia para a área da Saúde, pois ambas agora partem seus processos investigativos

da coisa viva e da materialidade histórica de jogos ideológicos. O corpo nasce, se

desenvolve, sofre e é finito, materialmente ele existe ou existiu. Mas o que o corpo é,

além de anatômico, aquilo que alimenta a Filosofia e a área da Saúde em questões e

pesquisas, já que, para Bakhtin, o material adquirido pelo homem por meio de sua

“essência” é sempre sígnico, portanto, ideológico.

Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural e social) como


todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao
contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é
exterior. Tudo o que é ideológico possui um significado e remete a algo situado
fora de si mesmo. Em outros termos, tudo o que é ideológico é um signo. Sem
signos não existe ideologia. Um corpo físico vale por si próprio: não significa
nada e coincide inteiramente com sua própria natureza. Neste caso, não se trata
de ideologia.
No entanto, todo corpo físico pode ser percebido como símbolo: é o caso,
por exemplo, da simbolização do princípio de inércia e de necessidade na
natureza (determinismo) por um determinado objeto único. E toda imagem
artístico-simbólica ocasionada por um objeto físico particular já é um produto
ideológico. Converte-se, assim, em signo o objeto físico, o qual, sem deixar de
fazer parte da realidade material, passa a refletir e a refratar, numa certa
medida, uma outra realidade.
163

O mesmo se dá com um instrumento de produção. Em si mesmo, um


instrumento não possui um sentido preciso, mas apenas uma função:
desempenhar este ou aquele papel na produção. E ele desempenha essa função
sem refletir ou representar alguma outra coisa. Todavia, um instrumento pode
ser convertido em signo ideológico: é o caso, por exemplo, da foice e do
martelo como emblema da União Soviética. A foice e o martelo possuem, aqui,
um sentido puramente ideológico. Todo instrumento de produção pode, da
mesma forma, se revestir de um sentido ideológico: os instrumentos utilizados
pelo homem pré-histórico eram cobertos de representações simbólicas e de
ornamentos, isto é, de signos. Nem por isso o instrumento, assim tratado, torna-
se ele próprio um signo. (BAKHTIN, 1929, p. 31)

A distinção entre corpo físico e corpo sígnico pertence não só ao universo da

Linguística; mas também ao da concepção de Saúde atual, pois o modelo médico de

outrora deu lugar a um modelo que considera as relações da existência material com

outros bens materiais e imateriais na formação do humano do homem, como fatores

sociológicos, psicológicos, econômicos, políticos. O que levou a um modelo

biopsicossocial. Vale ressaltar que a política apesar de “supra ciência”, por Aristóteles, e

a economia, como promotora das lutas de classes, para Marx, entram como ciências

sociais na porção última do termo “bio-psico-social”.

A Qualidade de Vida aparece como conceito sinonímico de Saúde dentro do modelo

biopsicossocial. São considerados índices sociais, de expectativa de vida, de renda

capitalista, de sanitarismo e educação para medir a qualidade de vida dos cidadãos. Nota-

se que qualidade se mensura, portanto, depende de estatísticas, quantidades e medidas,

gerando índices e interpretações. Nota-se, além, que saúde é cercada por ciências tanto

naturais, quanto humanas, o que nos dá, em suma, uma visão mais abrangente de que o

corpo não é apenas físico, mas também sígnico. Um corpo em um laboratório de anatomia

é um signo de estudos para futuros médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, educadores

físicos, etc. Portanto, não é apenas físico, é signo.

Se o corpo é signo, sendo físico; então, sendo signo, é ideológico (estamos aqui,

definitivamente, diante a caça). Logo, saúde é discursiva. O deslocamento do conceito de


164

saúde para qualidade de vida traz essa nova embocadura ainda não respondida. Saúde

depende de ideologias? Um corpo físico fenece, degrada-se, perante as ações do tempo

natural, mas também sob a natureza do tempo estudado pelas “Ciências do Espírito”, das

Ciências Humanas, das Ciências da Linguagem? Sim, pois saúde é ideológica. Saúde não

é uma abstração da ideia, é ideológica porque é real, material histórico, corpo físico;

porque se constrói nas relações da vida, nas atividades humanas, nos diálogos que homem

tem com a estrutura capitalista, com as faltas na infraestrutura, com os programas político-

governamentais, com o descaso com as populações da periferia e de regiões distantes de

grandes centros comerciais ou civilizatórios, com as disputas de classes com o programa

“Mais Médicos”, e com a própria definição de saúde que migrou de curativa para

preventiva, de médica para biopsicossocial, mais ainda mais por ser a saúde cada vez

mais, claramente, biológica, psicológica, social, ideológica, portanto, discursiva. O

conceito de saúde é, com bases na leitura da filosofia da linguagem de viés bakhtiniano,

biopsicossocialdiscursiva.

TEXTO 8. Exemplo da Pequena Temporalidade

Saúde é vítima da falta de organização, dizem especialistas


CLÁUDIACOLLUCCI
29/03/2014. 03h00
Desorganização é a palavra que sintetiza bem o estado em que se encontra
hoje o sistema de saúde brasileiro e que permeou as discussões durante o
Fórum a Saúde do Brasil, realizado pela Folha.
Houve consenso entre os palestrantes de que faltam ordenação da rede de
assistência e integração entre os setores público e privado e de que sobram
entraves à inovação científica e tecnológica.
No setor público, apesar dos avanços nos 25 anos do SUS, o país carece de
coordenação mais efetiva da rede assistencial. Sem atenção básica que resolva
os problemas mais simples de saúde, proliferam as filas nos hospitais.
Realidade semelhante vivem os hospitais privados, com seus prontos-
socorros lotados de pacientes que poderiam ter sido atendidos em consultórios
médicos.
Arthur Chioro, ministro da Saúde, enumerou no fórum vários desafios,
entre eles a mudança do atual modelo de atenção à saúde, ainda muito centrado
na doença e não na prevenção. Aumentar a eficiência da atenção básica e
renovar a rede hospitalar são algumas das outras metas do governo federal.
165

O secretário estadual da Saúde de São Paulo, David Uip, acrescentou que


o sistema é prejudicado por desperdício e por corrupção.
O governo federal estuda a substituição da tabela SUS por nova forma de
remuneração -pacotes de procedimentos para atendimento integral do paciente.
O atual modelo de remuneração leva a distorções, como o doente ter à
disposição serviços de hemodiálise, mas não um nefrologista para cuidar da
insuficiência renal.
A mudança no modelo de remuneração também foi defendida no fórum
pelos dirigentes hospitalares Claudio Lottenberg (Albert Einstein), Gonzalo
Vecina Neto (Sírio-Libanês) e Walter Cintra Júnior (Instituto de Ortopedia do
Hospital das Clínicas).
MAIS MÉDICOS
O debate mais acalorado do fórum foi sobre o programa Mais Médicos, do
governo federal. O urologista Miguel Srougi o qualificou como inconsistente
e ineficaz.
Mozart Sales, secretário de Gestão do Trabalho e da Educação do
Ministério da Saúde, rebateu, defendendo o programa como forma de ofertar
assistência a populações pobres que vivem em regiões onde os médicos
brasileiros não querem se fixar.
A temperatura também subiu no painel sobre os sistemas de saúde. Mário
Scheffer, professor da USP, afirmou que o país está destinando cada vez mais
dinheiro público à área privada, com repasse de recursos e isenção fiscal.
Scheffer apontou para o crescimento da venda de planos incompatíveis com
as exigências mínimas. "A ANS [Agência Nacional de Saúde Suplementar] foi
capturada pelos interesses do mercado que ela deveria regular."
O presidente da Abramge (Associação Brasileira de Medicina de Grupo),
Arlindo de Almeida, discordou de Scheffer. "As exigências para os planos de
saúde funcionarem estão até aumentando."
Na área de pesquisa, Antônio Britto, presidente-executivo da Interfarma
(Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa), criticou a falta de
incentivo a testes clínicos, atribuída à "relação mal resolvida com a inovação".
João Massud Filho, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina
Farmacêutica, também citou a fraca presença do Brasil na pesquisa clínica e
disse que a dificuldade de fazer testes no país é "antiética".
O excesso da carga tributária foi outro tema debatido. Um terço do que é
pago pela população na área da saúde se resume a impostos e taxas.
"É mais barato entrar na farmácia mugindo do que tossindo", disse Gilberto
Luiz do Amaral, do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação, ao
condenar tributos menores do setor veterinário.

Na concepção bakhtiniana a palavra por si só já é uma arena de luta de classes, ela

é, portanto, ideológica. Colocada a palavra no lugar de conceito a ser debatido em um

fórum (organizado pelo jornal Folha de S. Paulo) entre entidades e profissionais da Saúde,

é potencializar seu caráter polissêmico, polifônico e dialógico. Vale ressaltar que o

território preciso, o lugar dos interlocutores, as experiências de vida e de leituras dos


166

envolvidos e o recorte temático, são sempre únicos, por serem evênticos. O gênero notícia

relativiza-se pelo suporte físico do periódico – jornal Folha de S. Paulo -, pelo conteúdo

composicional, pela temática sobre a realidade e pelas escolhas das palavras da redatora

da notícia (BAKHTIN, 2011), o que materializa-se desde o título “A saúde é vítima da

falta de organização, dizem especialistas” (os grifos são meus) até o último parágrafo,

que compara os homens aos outros animais, para deixar claro que o sistema político,

cultural, econômico, social, está reificando as ações e as necessidades humanas do

homem. Se voltarmos para a definição da palavra, como signo ideológico por excelência,

logo nota-se que a saúde física de um indivíduo, em sua singularidade ontológica (física

e consciente), é interdependente de um todo mais acima e abaixo das próprias escolhas

do ser humano, seja o que comer, vestir, exercitar, comprar, viver (aqui a caça mostra os

dentes ao caçador, logo se vê sua prole). A saúde do homem contemporâneo depende de

organizações, mesmo que em debates desorganizadores, que estão além da mecânica de

seu corpo físico e de sua potencialidade de consciência enquanto indivíduo vivo. A saúde

do homem depende das arestas apontadas entre os discursos de especialistas da área e

políticas sobre as vidas. A reportagem ao dizer que “a saúde é vítima de desorganização”

abre caminho para um debate, para preocupações, para ocupações dos próximos anos,

mas também afasta o leitor do conteúdo mais importante: a defesa da vida e sua

manutenção pelos cuidados que mais necessita quando for preciso. Entre Ministro da

Saúde e professores de universidades renomadas, como USP (Universidade de São Paulo)

e UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo), há discursos e ideologias digladiando

em intensidade tão carnal e voraz que a dialogia do signo saúde ganha vida a cada

enunciado sobre o tema e os conteúdos, mas também arrefece ao apenas colocar em um

patamar abstrato formas concretas de salvar vidas. Por isso, é preciso olhar a palavra não
167

como signo abstrato apenas, mas como signo vivo, concreto, tangível, dialógico, real.

Assim é o conceito de ideologia em Bakhtin:

(…) necessário quebrar essa tradição de análise da ideologia como


subjetiva/interiorizada, que entendia a ideologia como uma ideia com lugar
permanente na cabeça do homem (se se mantiver apenas na consciência, a
ideologia degenera e morre, por carência de interação regeneradora), e como
idealista/psicologizada, que entendia a ideologia como uma ideia já dada, com
a qual é possível apenas se defrontar, e que também se desenvolve no interior
individual (ideologia não poderia ser compreendida como acontecimento vivo
e dialógico). (MIOTELLO, 2013, p. 81)

Considerar Saúde, como conceito inerente à Qualidade de vida, é levar em conta

que os jogos de poder, que as escolhas discursivas, são de base ideológica, assim como o

homem, pois são o produto da consciência dos homens e que suas escolhas são pautadas

no que ele recebe de material histórico, cultural, e pela sua memória de futuro, que

também não pode ser considerada como idealista/psicologizada ou

subjetiva/interiorizada, mas como possibilidade real de existir, de vir a ser. Seria para

Bakhtin a saúde o símbolo do corpo grotesco, feito de carne e osso, sangue e suor,

humores e sinapses, política e debates de classe; mas sobretudo, é (a saúde) um conceito

perpétuo e pétreo à consciência dos homens. Pois é, ela, feita de material sócio-físico-

biológico-cultural-ideológico-discursivo.

Aos olhos do caçador, podemos dizer que a Humanística bakhtiniana está solta e

foi encontrada, mas talvez tenhamos caçado algo pelo método, sem notar que a

metodologia daria mais conta!


168

Capítulo Terceiro - A Cultura


1.
“Um galo sozinho não tece a manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro: de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzam
os fios de sol de seus gritos de galo
para que a manhã, desde uma tela tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.”

[João Cabral de Melo Neto]55

55
A metalinguagem de um poema faz da linguagem um mecanismo de renovação e reflexão da tessitura da
própria linguagem (isto fica nítido no poema de João Cabral pelo ritmo quebrado, pelas silepses, pelas
metáforas, pela pontuação que induz a uma leitura cheia de "pedras-vírgulas" pelo caminho do poema).
Escrever é tecer, é emaranhar fios ideológicos, "fios de sol de gritos de galo", centelhas sígnicas do
pensamento e do dizer humanos. No poema ("Tecendo a manhã") João Cabral de Melo Neto metaforiza o
homem como galo. Afinal o último não grita, canta; metaforiza-se o homem também em aranha, pois é o
homem que tece o texto-teia. É o poeta que apanha os fios de sol. O que há no poema é uma Gaia Ciência,
tratada por Nietzsche, e nos escritos do José Miguel Wisnik (“Poesia expressa. No tempo da pressa”), como
a ciência da sensibilidade, que entende o homem racional, mas também pertencente ao mundo instintivo e
cercado da Natureza. Entretanto, o homem também aparece como humano, pois só ele é capaz de fabricar
tenda, toldo, tela e criar linguagem sofisticada ao ponto do neologismo "entretendendo" - um entendimento
de todos, em que entrem todos. Esses materiais são artefatos bem humanos, advindos do engenho do
homem. O poema é uma metáfora óbvia do nascer do dia. Mas o que torna o poema esplendoroso é imaginar
que o que faz a manhã nascer são os “fios de sol” que saem dos bicos dos galos, que antes do dia raiar,
acordam a vizinhança com seus cantos e cantos-respostas de outros cantos de galo. Sim, é uma imagem
surrealista magnífica! Fechar os olhos e imaginar que de cada galo vem um raio de sol; e que depois de
dado, solta-se e plana solto para unir-se com outros fios de sol, "gritos de galo", formando uma "tela tênue"
"livre de armação", que unida forma-se um balão iluminado de fogo, chamado sol. Esta "luz balão", é a
manhã brotando. É o emaranhado de fios da teia-sol. É a própria tessitura de palavras no poema iluminado-
sol. É o futuro-sol feito de união, pois um galo/homem sozinho não tece uma manhã, sempre precisará de
outros galos/homens. Em último nível, o poema é uma metáfora da própria tessitura de um poema, seriam
as palavras "fios" que se unem a outros tantos "fios de sol dos gritos de galo" montando um texto, e a "luz-
169

Capítulo Terceiro - A Cultura

3.1 SAÚDE MIGRANDO PARA QUALIDADE DE VIDA: AMPLIAÇÕES


POSSÍVEIS VINDAS DO OLHAR CIENTÍFICO BAKHTINIANO.

“Dois peixes jovens encontram-


se casualmente com um peixe mais
velho que nada na direção
contrária. Este cumprimenta-os
com a cabeça e lhes diz: ‘Bom dia,
rapazes, como está a água?’. Os
dois peixes jovens nadam mais um
pouco; depois um olha para o outro
e pergunta: "Que diabos é água?"
[Nuccio DIAMANTE]

Vale dizer, nesta tese, que Bakhtin era um pensador da Cultura (GERALDI, 2007).

Mais que um filósofo da linguagem, mais que um linguista; pois se dedicou a não só

analisar a noção de valor nas Ciências da Linguagem do século XX, mas com questões

de Filosofia Moral (Para uma Filosofia do Ato Responsável), com questões da psicanálise

(Freudismo), com questões da Sociologia (Marxismo e Filosofia da Linguagem), com

questões da Literatura (Problemas da Poética de Dostoievski), com questões da Cultura

e História (A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento). O amplo olhar de

Bakhtin, o faz como um dos pensadores mais importantes sobre a Cultura contemporânea,

por notar três importantes pontos: 1) a cultura é trama de fios de linguagem com nó no

tempo – memória - e no espaço – território preciso; é o caldo da consciência que se

corporifica por meio das interações da linguagem; 2) O tempo e o espaço (Cronotopia)

balão" seria o entendimento do poema, a revolução que a palavra pode trazer ao pensamento. Sendo assim,
um "metapoema" com sua poética metalinguagem. Como se coubesse ao leitor, tecer o amanhã, ou mesmo,
como se ele pudesse empinar o sol de um novo dia, a cada leitura que faz da vida, por meio da literatura
cabralina. Por isso o poema é a epígrafe para o Capítulo sobre Cultura desta tese. Pois uma Cultura sempre
precisará de seus fios ideoógicos para tecer o amanhã.
170

são categorias autônomas que se encontram de forma diferente em cada grupo humano

ou atividade humana, promovendo gêneros textuais diversos, situações diversas, arenas

mínimas de disputas ideológicas diversas no simples enunciar de uma palavra, ou seja, há

dialogia em cada palavra do mundo; 3) por ser a Cultura uma trama ideológica e a

Cronotopia (tempo/espaço) autônoma, sempre a partir de um dado, (estabelecido,

estacionado, estável) haverá o criado (o novo, a novidade, o instável).

O dado e o criado no enunciado verbalizado. O enunciado nunca é apenas


um reflexo, uma expressão de algo já existente fora dele, dado e acabado. Ele
sempre cria algo que não existia antes dele. Absolutamente novo e singular, e
que ainda por cima tem relação com o valor (com a verdade, com a bondade,
com a beleza, etc.). Contudo, alguma coisa criada é sempre criada a partir de
algo dado (a linguagem, o fenômeno observado da realidade, um sentimento
vivenciado, o próprio sujeito falante, o acabado em sua visão de mundo, etc.).
Todo o dado se transforma em criado. (BAKHTIN, 2011, p. 326)

Bakhtin é contundente ao dizer o quão o mundo é feito do movimento do dado ao

criado, de dialogia, cuja fonte é um perpetum móbile presente nas entranhas da vida. Mas

adiante no mesmo texto (O Problema do Texto na Linguística, na Filosofia e em outras

Ciências Humanas) o pensador de cultura russo diz que é “bem mais fácil estudar (o dado)

que o criado” (2011, p. 326), por considerar o papel da Ciência moderna muito aquém do

que poderia ser se estudasse o criado, e o que o criado traz de interpretação. Diz mais

ainda, ao propor que “o texto é o dado (realidade) primário e o ponto de partida de

qualquer disciplina nas ciências humanas” (Idem, p. 319). O que coloca como ponto

crucial do fazer científico a interpretação e o diálogo, e a dialogia como fator culminante

do movimento do pensamento para que não perca no dado o que há de novo e criado.

Bakhtin com isso institui um novo método científico, pautado na experiência evêntica do

estudo:
171

A investigação se torna interrogação e conversa, isto é, diálogo. Nós não


perguntamos à natureza e ela não nos responde. Colocamos as perguntas para
nós mesmos e de certo modo organizamos a observação ou a experiência para
obtermos a resposta. Quando estudamos o homem, procuramos e encontramos
signos em toda parte e nos empenhamos em interpretar o seu significado.
(BAKHTIN, 2011, p. 319)

Há três elementos nas Ciência, então: 1) o ser, o observador, com sua experiência

de vida e suas leituras; 2) o cronotopo, o tempo e o espaço, como território preciso em

que a língua é texto dado; e 3) o devir, que é a memória de futuro, o novo criado pela

dialogia da vida, o grande tempo, que é o infinito e o inimaginado agindo sobre a pequena

temporalidade. Considerando que um “observador não tem posição fora do mundo

observado, e sua observação integra como componente o objeto observado” (BAKHTIN,

2011) o fazer científico é uma investigação que abarca o ser, a cronotopia e o devir.

Quanto mais o cientista coloca-se na verticalidade de si e em relação ao Outro e dos

tempos, mais se aproxima da questão filosófica a ser estudada, pois deve olhar os tempos

– o Grande Tempo e a Pequena Temporalidade – como se fossem campos de ação da

linguagem com contundência ontológica, assim é observar o signo “Saúde” e a cultura de

saberes que se montou em torno do significado de “Qualidade de Vida”. Fazer linguística

é pôr em diálogo e também pensar a Cultura.

O lugar da filosofia. Ela começa onde termina a cientificidade exata e


começa a heterocientificidade. Pode ser definida como metalinguagem de
todas as ciências (e de todas as modalidades de conhecimento e consciência).”
(BAKHTIN, 2011, p. 400)

E, sobre o Grande Tempo,


A compreensão recíproca entre os séculos e milênios, povos, nações e
culturas assegura a complexa unidade de toda a humanidade, de todas as
culturas humanas (a complexa unidade da cultura humana), a complexa
unidade da literatura da sociedade humana. Tudo isso se revela unicamente no
nível do grande tempo. Cada imagem costuma desenvolver-se no espaço
estreito do pequeno tempo, isto é, na atualidade do passado imediato e do
futuro representável – desejado ou assustador. (…) O pequeno tempo – a
atualidade, o passado imediato e o futuro previsível [desejado] – e o grande
172

tempo – o diálogo infinito e inacabável em que nenhum sentido morre.”


(BAKHTIN, 2011, p. 407 - 409)

O homem é o ser cultural que expandiu o zoon-politikon aristotélico. Dotado de

linguagem e arcabouços sociais passados os tempos, não mais é denominado apenas como

ser social, ou animal social, já que das interações sociais adquire valores, hábitos,

costumes, língua, gestos. O animal social é um ser cultural, pois observa o passado e a

sofisticação das estruturas culturais com quem recebe o dado, mas cria o novo. Parece

que em Bakhtin o pêndulo da História não para, é ritmado do pelo agente histórico que é

o homem, cuja formação do ser é uma formação livre. O que determina o Homem não é

seu passado apenas, mas aquilo que sonha, que faz do futuro e movimenta o presente. A

determinação do homem científico é a investigação das origens e a abertura ao devir. O

conceito de Aristóteles, há tempos, trouxe ao homem a potencialidade de organizar a

Cultura como um bem ideológico. Assim até mesmo o conceito de Saúde é ideológico,

de tempos em tempos muda, por isso de tempos em tempos deve ser chamado de bem

discursivo e linguístico, pois é fruto da arena das lutas de classe ou arenas das disputas

políticas.

Vale dizer algo extremamente relevante sobre o conceito de cultura, para Bakhtin:

o indivíduo é um ser livre, por ter uma formação livre, entretanto sua consciência é

adquirida de material sígnico e ideológico por meio da linguagem em determinado meio

social, portanto, formando a cultura – o homem como um vivente cultural. Há no mínimo

três movimentos nisso: do homem, da cronotopia e do devir. A Cultura aparece como

conceito aberto, ou seja, furado, esburacado, pelos raios de vida. O homem, como ser

cultural, fabrica seu próprio perpétuo devir por meio da linguagem. “O indivíduo não tem

apenas meio e ambiente, tem também horizonte próprio” (BAKHTIN, 2011, p.394).

Entretanto, ele não é isolado, um ser adâmico, mas sim social e dependente do outro, da
173

alteridade, em que existe “para o outro e com do outro” buscando a cada encontro um

autoconhecimento. Com isso, “constatamos que o discurso humano é um fenômeno

biface: todo enunciado exige, para que se realize, a presença simultânea de um locutor e

de um ouvinte” (VOLOCHÍNOV, 1930), o que acaba por gerar a cultura entre as

individualidades e alteridades. A linguagem se encontra nas mãos dos indivíduos como

“em um perpétuo devir” cujo desenvolvimento “segue a evolução da vida social”:

A linguagem não é alguma coisa de imóvel, fornecida de uma vez por


todas, e rigorosamente determinada em suas “regras” e em suas “exceções”
gramaticais. Ela é um produto da vida social, a qual não é fixa e nem
petrificada: a linguagem encontra-se em um perpétuo devir e seu
desenvolvimento segue a evolução da vida social. A progressão da linguagem
se concretiza na relação social de comunicação que cada homem mantém com
seus semelhantes. (VOLOCHÍNOV, 1930)

O desenvolvimento do Homem e da Cultura se dá pela compreensão da vida social

do ser humano pela linguagem em movimento e não por uma linguagem estanque, morta,

petrificada. Dessa forma, mesmo que, para a construção de um estudo linguístico, seja

necessário partir de um enunciado concreto, é importante que seja ele considerado “como

um momento”, uma simples gota no oceano da comunicação verbal, cujo movimento

incessante é o mesmo que o da vida social da história, seja no grande tempo ou na pequena

temporalidade.

TEXTO 9. Exemplo de Pequena Temporalidade.

TENDÊNCIAS/DEBATES
A vinda de médicos cubanos ao Brasil é irregular?

Carta aos médicos cubanos


Bem-vindos, médicos cubanos. Vocês serão muito importantes para o
Brasil. A falta de médicos em áreas remotas e periféricas tem deixado nossa
população em situação difícil. Não se preocupem com a hostilidade de parte
de nossos colegas. Ela será amplamente compensada pela acolhida calorosa
nas comunidades das quais vocês vieram cuidar.

A sua chegada responde a um imperativo humanitário que não pode


esperar. Em Sergipe, por exemplo, o menor Estado do Brasil, é fácil se deslocar
174

da capital para o interior. Ainda assim, há centenas de postos de trabalho


ociosos, mesmo em unidades de saúde equipadas e em boas condições.

Caros colegas de Cuba, é correto que nós médicos brasileiros lutemos por
carreira de Estado, melhor estrutura de trabalho e mais financiamento para a
saúde. É compreensível que muitos optemos por viver em grandes centros
urbanos, e não em áreas rurais sem os mesmos atrativos. É aceitável que parte
de nós não deseje transitar nas periferias inseguras e sem saneamento. O que
não é justo é tentar impedir que vocês e outros colegas brasileiros que podem
e desejam cuidar dessas pessoas façam isso. Essa postura nos diminui como
corporação, causa vergonha e enfraquece nossas bandeiras junto à sociedade.

Talvez vocês já saibam que a principal causa de morte no Brasil são as


doenças do aparelho circulatório. Temos um alto índice de internações
hospitalares sensíveis à atenção primária, ou seja, que poderiam ter sido
evitadas por um atendimento simples caso houvesse médico no posto de saúde.

Será bom vê-los diagnosticar apenas com estetoscópio, aparelho de pressão


e exames básicos pais e mães de família hipertensos ou diabéticos e evitar,
assim, que deixem seus filhos precocemente por derrame ou por infarto.

Será bom vê-los prevenindo a sífilis congênita, causa de graves sequelas


em tantos bebês brasileiros somente porque suas mães não tiveram acesso a
um médico que as tratasse com a secular penicilina.

Será bom ver o alívio que mães ribeirinhas ou das favelas sentirão ao vê-
los prescrever antibiótico a seus filhos após diagnosticar uma pneumonia. O
mesmo vale para gastroenterites, crises de asma e tantos diagnósticos para os
quais bastam o médico e seu estetoscópio.

Não se pode negar que vocês também enfrentarão problemas. A chamada


"atenção especializada de média complexidade" é um grande gargalo na saúde
pública brasileira. A depender do local onde estejam, a dificuldade de se
conseguir exame de imagem, cirurgias eletivas e consultas com especialista
para casos mais complicados será imensa. Que isso não seja razão para
desânimo. A presença de vocês criará demandas antes inexistentes e os
governos serão mais pressionados pelas populações.

Para os que ainda não falam o português com perfeição, um consolo. Um


médico paulistano ou carioca em certos locais do Nordeste também terá
problemas. Vai precisar aprender que quando alguém diz que está com a testa
"xuxando" tem, na verdade, uma dor de cabeça que pulsa. Ou ainda que um
peito "afulviando" nada mais é do que azia. O útero é chamado de "dona do
corpo". A dor em pontada é uma dor "abiudando" (derivado de abelha).

Já atuei como médico estrangeiro em diversos países e vi muitas vezes a


expressão de alívio no rosto de pessoas para as quais eu não sabia dizer sequer
bom dia --situação muito diferente da de vocês, já que nossos idiomas são
similares.
175

O mais recente argumento contra sua vinda ao nosso país é o fato de que
estariam sendo explorados. Falou-se até em trabalho escravo. A Organização
Pan-americana de Saúde (Opas) com um século de experiência, seria cúmplice,
já que assinou termo de cooperação com o governo brasileiro.

Seus rostos sorridentes nos aeroportos negam com veemência essas


hipóteses. Em nome de nosso povo e de boa parte de nossos médicos, só me
resta dizer com convicção: Um abraço fraterno e muchas gracias.

DAVID OLIVEIRA DE SOUZA, 38, é médico e professor do Instituto


de Pesquisa do Hospital Sírio-Libanês. Foi diretor médico do Médicos Sem
Fronteiras no Brasil (2007-2010)

Destoa muito, o texto do médico David Oliveira de Souza, pelo cotejamento com

os outros textos analisados (TEXTOS 2, 3, 4 e 8) até aqui. Destoa pelo tom elegante, não

querendo denunciar (mas o fazendo) as diferenças de perspectivas sobre a vinda dos

médicos estrangeiros ao Brasil. Destoa pela modalidade ou gênero textual empregado,

embora a temática seja a mesma (Programa “Mais Médicos), o conteúdo composicional

mudou e o estilo do autor dá uma carga mais tênue ao dizer e ao conteúdo. Destoa pela

singeleza que um artigo jornalístico, um editorial, uma notícia, ou um recorte de discurso,

deixam faltar frente uma carta pessoal de um leitor do jornal, dirigida a seus leitores e

principalmente aos destinatários – os médicos cubanos. Destoa porque coloca em terceiro

plano a disputa partidário, política, meritocrática, elitista, para colocar em primeiro plano

o trato médico com a população necessitada, e em segundo plano, insistir em um debate

sobre a formação acadêmica dos médicos brasileiros frente a uma tendência mundial –

importação de médicos por deficiência frente as demandas, maior número de profissionais

envolvidos na Atenção Primária da Saúde e técnicas humanizadora. Destoa por ser um

indivíduo falando de seu horizonte de possibilidades frente o discurso de organizações

financeiras, políticas e ideologias. Há aí um claro contraste entre a cordialidade humana

e a agressividade do capital financeiro. Destoa, pela cultura adquirida e escolhida para

dar boas-vindas aos médicos cubanos.


176

Fica evidenciado no contraste entre os textos (TEXTO 9 com o 2, por exemplo),

pelo cotejamento, a tensão do signo enquanto arena de luta de classes, arena de embate

ideológico, arena de conflitos políticos, arena de disputas culturais, arena de competições

sígnicas e materiais. Os signos em disputa são variados, mas calculados e selecionados

ficam todos no campo da humanização e da ressignificação da “saúde” por “qualidade de

vida”. O que há no texto 9 é algo novo, propositivo, frente a outros textos que priorizam

julgar, dar juízo de valor e pouco oferecem de futuro, de devir, de construção. A carta

dirigida aos cubanos, do ativista dos médicos sem fronteiras, David Oliveira, aponta um

mover diferente no trecho: “A presença de vocês criará demandas antes inexistentes e os

governos serão mais pressionados pelas populações” (os grifos são meus), parece

acreditar que as sociedades vão se movendo e se ajeitando, sob e além dos embates,

meramente políticos. Vão as classes e os seres humanos se movendo o mundo. Em uma

disputa entre os discursos cotidianos e os discursos oficiais, os que mais se movem são

os primeiros e são eles que os oficiais devem seguir para não perder o poder, na tentativa

de monologismo (BAKHTIN, 2009).

A adaptação aos discursos cotidianos se dá pela dinamicidade, principalmente, por

meio da linguagem, ou da língua. Importante olhar como a barreira da língua é

mencionada, carta aos médicos cubanos, com algo facilmente superável quando se quer

curar, cuidar, ajudar outro ser humano: “Para os que ainda não falam o português com

perfeição, um consolo. Um médico paulistano ou carioca em certos locais do Nordeste

também terá problemas. Vai precisar aprender que quando alguém diz que está com a

testa ‘xuxando’ tem, na verdade, uma dor de cabeça que pulsa. Ou ainda que um peito

‘afulviando’ nada mais é do que azia. O útero é chamado de ‘dona do corpo’. A dor em

pontada é uma dor ‘abiudando’ (derivado de abelha)”. Este trecho mostra como prova

irrefutável que é a língua o lugar da cultura, do embate, da enunciação, da comunicação


177

mais direta e mais dinâmica e se adapta entre os interlocutores (entre quem fala e quem

ouve).

Essa orientação da palavra em função do interlocutor tem uma importância


muito grande. Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é
determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que
se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do
locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao
outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última
análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada
entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra
apoia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e
do interlocutor. (BAKHTIN, 2009, p. 117)

Por isso a palavra reflete e refrata a cultura de um ser, não apenas a Cultura oficial,

como costume adquirido socialmente e como parte da ideologia oficial adquirida pelo

indivíduo, simplesmente; mas sim da cultura do cotidiano do olhar único e singular do

indivíduo sobre a Cultura oficial que recebe. Por isso dá para afirmar que o homem é um

vivente cultural por que sua condição de vida a dialogia pura. A tensão entre o oficial e o

cotidiano alimentam a palavra de cargas ideológicas, fazendo dela ponte, mas também

arena mínima de lutas de classes, da luta entre uma verdade e uma mentira. A tensão entre

o oficial e o cotidiano está o tempo todo expressa em um enunciado concreto, mergulhado

em sua enunciação. A “Carta aos médicos cubanos” é uma ponte trafegável por

enunciados que representam cada lado da disputa política, do embate entre medicina

humanizada e medicina tecnicista. Fazer filosofia marxista da linguagem é colocar como

base de sua doutrina a enunciação como realidade da linguagem e como estrutura

sociológica, a que se retiram cinco tópicos fundamentais, segundo o pensador de cultura

russo:

1. A língua como sistema estável de formas normativamente idênticas é


apenas uma abstração científica que só pode servir a certos fins
teóricos e práticas particulares. Essa abstração não dá conta de
maneira adequada da realidade concreta da língua.
2. A língua constitui um processo de evolução ininterrupto, que se realiza
através da interação verbal social dos locutores.
178

3. As leis da evolução linguística não são de maneira alguma as leis da


psicologia individual, mas também não podem ser divorciadas da
atividade dos falantes. As leis da evolução linguística são
essencialmente leis sociológicas.
4. A criatividade da língua não coincide com a criatividade artística nem
com qualquer outra forma de criatividade ideológica específica. Mas,
ao mesmo tempo, a criatividade da língua não pode ser compreendida
independentemente dos conteúdos e valores ideológicos que a ela se
ligam. A evolução da língua, como toda evolução histórica, pode ser
percebida como uma necessidade cega de tipo mecanicista, mas
também pode tornar-se “uma necessidade de funcionamento livre”,
uma vez que alcançou a posição de uma necessidade consciente e
desejada.
5. A estrutura da enunciação é uma estrutura puramente social. A
enunciação como tal só se torna efetiva entre falantes. O ato de fala
individual (no sentido do termo “individual”) é uma contradictio in
adjecto. (BAKHTIN, 2009, p. 132)

Assim se dá a evolução da língua, por interação verbal, por enunciações e cadeias

enunciativas. E assim se dá a definição da cultura, também por cadeias discursivas, de

costumes, de interlocuções, de embates ideológicos. A Cultura romântica, por exemplo,

foi estabilizada não pelos próprios indivíduos que viviam na época, mas pela cadeia de

enunciações que se fez em contraponto com outros movimentos ao longo da História,

como exemplo o Realismo, o Naturalismo, ou mesmo o Neoclassicismo (movimentos

artísticos, cronologicamente, posteriores e anteriores ao Romantismo do século XIX).

Uma Cultura se distingue pelo contraste no tempo contido nos olhos. Mas também se

distingue pela forma como aborda os cidadãos de sua época, de seu espaço, em seus

modos de linguagem e ações entre as linguagens. A “Carta aos médicos cubanos” destoa

pelo seu caráter humanista frente às cobranças tecnicistas do Conselho Federal de

Medicina (TEXTO 8), que diz exaustivamente que falta equipamento e infraestrutura para

o agir médico. Que há falta de equipamentos no Brasil não se nega, porém apenas ficar

preso aos discursos assim, como do Conselho Federal de Medicina, retratados ao longo

desta tese, faz com que se reduza muito os mais amplos aspectos em debate: a formação

médica, a humanização da saúde, o aparecimento da qualidade de vida como norteador


179

do trato médico. Há um contraste de culturas, de visões de mundo, de horizontes de

possiblidades, que mexem nos horizontes enunciativos, discursivos, a que a linguística

deve se ater com precisão. Pois, por contraste e cotejamento de textos (GERALDI, 2012)

nota-se que a estrutura da enunciação é realmente uma estrutura puramente social, em

que há embates ideológicos, luta de classes, e visões díspares no interior de cada texto,

retratado pela mídia selecionada, em nome dos Conselhos de Medicina ou em nome de

Governo, ou de parcelas de população. Não é interessante nesse ponto tomar partido sobre

as visões ou julgar qual está certa ou errada, entretanto é crucial notar que há um

reducionismo do tema, um reducionismo de visão, talvez provocado pela própria mídia,

que quer mais o embate maniqueísta do que o esclarecimento e organização do sistema

de saúde no Brasil. Há interesses em jogo no amplo mercado dos planos de saúde e das

clínicas médicas brasileiras, e isto já não se pode negar e ocultar. Há interesses da mídia

nesse nicho de mercado, obviamente. Contudo, há de se observar o mais largo contraste

entre um pensamento que trata Saúde como mercadoria, e outro que trata Saúde como

Qualidade de vida. O médico humanizado parece alimentar os dois campos, mas é muito

mais imprescindível na segunda visão, como destoa a exímia “Carta aos médicos

cubanos” publicada em um momento histórico litigioso recente, para a Medicina no

Brasil, no jornal Folha de S. Paulo.

Se existe contraste de cultura serve para que possamos entender a nossa própria

cultura, olhando para o vertical de nós mesmos, então é preciso olhar na arena mínima

ideológica destes contrastes: a palavra. Olhar a razão e os fatores que fizeram migrar

“saúde” para “qualidade de vida” é o suficiente para elaborar um pensamento assertivo

sobre o tema? Não, se desconsiderarmos os fatores sociais, a enunciação, a unidade de

um código linguístico socialmente constituído, a signicidade dos termos, sua percepção


180

psicofisiológica do signo, seu reconhecimento, seu contexto e sua dialogicidade.

(BAKHTIN, 2011, p. 398; GERALDI, 2013, p. 32 -33)

A palavra migra, e com ela mudam-se os seus sentidos e os sentimentos mais

profundos do homem que a enuncia. Tudo questão de dialogismo, motor das culturas e

do olhar de contraste. E tudo isso é questão do homem como vivente cultural.

Por fim, a “Carta aos médicos cubanos” destoa de tudo e dos discursos tecnicistas

objetivistas e abstratos, porque ela é a humanística bakhtiniana se manifestando como

efeito de um humanismo mais amplo e ético.


181

3.2 NOVAS PROFISSÕES NA SAÚDE E NOVOS TERMOS NA CONSTRUÇÃO DO


CONCEITO BIOPSICOSSOCIAL-DISCURSIVO DE QUALIDADE DE VIDA.

“A impressão luminosa de uma


coisa sobre o nervo óptico não se
apresenta, pois, como um estímulo
subjetivo do próprio nervo óptico,
mas como forma objetiva de uma
coisa que está fora do olho. No ato
de ver, porém, a luz de uma coisa,
de um objeto externo, é
efetivamente lançada sobre outra
coisa, o olho. Trata-se de uma
relação física entre coisas físicas. Já
a forma-mercadoria e a relação de
valor dos produtos do trabalho em
que ela se representa não tem, ao
contrário, absolutamente nada a ver
com sua natureza física e com as
relações materiais [dinglichen] que
dela resultam. É apenas uma
relação social determinada entre os
próprios homens que aqui assume,
para eles, a forma fantasmagórica
de uma relação entre coisas.”
[Karl Marx]

O homem contemporâneo ao olhar o mundo faz do seu olho um periscópio para a

realidade. As imagens, os valores, os signos são refrações e reflexões do valor do signo

em si. Contudo, nenhum signo está solto no ar, fora da realidade, do materialismo

histórico, das relações e das questões relacionais à existência e da humanidade. Assim é

o signo saúde aos olhos do homem contemporâneo, assim são as formas de trabalho que

acompanham o olhar dos que vivem refrações e reflexos de um mundo pós-guerras

mundiais. O olhar do homem mudou, fortemente, a partir de Marx, alterou-se depois de

Freud, conscientizou-se depois de Heiddeger, responsabilizou-se a partir de Sartre; em

uma gradação histórica e teórica evidente que mostra que o homem deve olhar para os

objetos da vida e as mercadorias, com signos de valor humano estabelecidos por trocas.

Sendo que, dentro destas trocas, surgiu um novo modo de agir sobre o signo “Saúde”;

com base em um legado que prioriza a reabilitação do ser humano pós-guerra. Neste
182

contexto, a palavra de ordem no século XX foi reabilitação social da Saúde. Não assusta,

portanto, o surgimento do conceito de Saúde Mental dentro da psiquiatria, e também não

assusta a razão que fez necessária a instauração da profissão de Terapeuta Ocupacional,

ou Psicólogo, Nutricionista, ou do Psiquiatra.

A Psiquiatria nasceu no mundo médico masculino e detentor do saber da


doença. Entretanto, sobre a doença mental pouco se sabia, pois, os doentes
ainda estavam entre outros tantos marginalizados. Muitas foram as crises as
quais a Psiquiatria teve que passar para chegar a formar sua personalidade.
Crises que compreendo como sendo, pelo bem ou pelo mal, como momentos
de lucidez e mudança. O trabalho como instrumento terapêutico, quase o único,
da Psiquiatria. (…) No início do século XX a personalidade da psiquiatria
amadurece diante do avanço das pesquisas científicas e fundamentalmente da
composição de um significante campo teórico sobre doença mental. Algumas
dessas pesquisas e teorias tiveram nas oficinas de trabalho o seu campo
laboratorial de observação e experimentação. Depois, a Medicina exigida
militarmente, no durante e pós guerras, acabou por incorporar um caráter
militar aos seus programas assistenciais. Estes em seguida viriam a ser
aglutinados sob a denominação de Reabilitação. Nesse momento, o quadro
médico ficou muito desproporcional diante da demanda de doentes e
traumatizados; sendo esta também uma das causas na intensificação das
pesquisas de laboratório quanto a tratamentos biológicos e farmacológicos.
Como consequência, o interesse da Psiquiatria pelo instrumento de trabalho
ficou bastante reduzido. Houve a partir de 1914 a necessidade de ampliar a
equipe médica e não havia tempo para que fosse só de médicos. (...) Em 1950,
as antigas Auxiliares de Reconstrução agora Terapeutas Ocupacionais
mantinham ainda sua identidade profissional vinculada ao modelo médico.
(…) Mas, foi só a partir dos anos setenta que puderam definitivamente tomar
para si o pensar, estudar, criar técnicas de terapia ocupacional. Por aí, a
Medicina e principalmente a Psiquiatria passa a interrogar a Doença e
privilegiar a Saúde. Alguns psiquiatras e centros psiquiátricos buscam
subsídios na Sociologia, Antropologia, Economia, Genética e Psicanálise,
depois a Cibernética etc; reivindicando espaços políticos para a criação de
programas de Saúde Mental. (…) A Psiquiatria Social, a Anti-Psiquiatria e
Psiquiatria Dinâmica, deixam o hospital em busca de um espaço de atuação
com e na sociedade. (…) O fazer dentro e o fazer fora são mantidos por uma
via de mão dupla. Com isso e através disso, desde o lazer até o trabalho
profissional estão previstos como forma de manter-se em relação. (BENETON,
1995, p. 72)

O periscópio do homem contemporâneo já nasce com ele, em um entendimento de

mundo posterior a Marx, em que as palavras são ponta ideológica e dita de um iceberg

submerso de não-ditos. Coloca-se o dizer em um lugar real dentro do não-dito que é a


183

História, as cargas ideológicas, as memórias que podem significar em apenas uma

palavra, ubíqua é toda a condição de toda palavra. Olhar o contexto pós-guerras é

fundamental para ver a necessidade do surgimento da Saúde Mental e da Terapia

Ocupacional dentro do que é sabido e não-dito, ou seja, dentro da História. Uma profissão

surge das interações e intempéries de seu tempo. Um conceito aparece pela primeira vez

da necessidade de entendimento do ser humano sobre si próprio (embora Foucault na

História da Sexualidade mostre como os cuidados e as técnicas higiênicas estão presentes

no mundo antigo. Não obstante, Foucault ainda levanta perguntas como: as próprias

técnicas de si não tornam o homem mais distante de sua “natureza” de homem?). As

antigas Auxiliares de Reabilitação do pós-1914 logo ganharam o nome de Terapeutas

Ocupacionais por necessidade humana e histórica. Hoje, não há como negar a

contribuição a Área da Saúde com o surgimento das Terapeutas Ocupacionais para o

tratamento assistencial de um ser humano contemporâneo que precisa de vozes e escutas

que o observem em sua humanidade e em suas relações, distanciadas do olhar-médico-

diagnóstico. Uma crise de saúde de um indivíduo, hoje, pode ser vista com algo mais

biopsicossocialdiscursiva, em que nada se exclui na leitura de um ser humano posto em

observação clínica. A aproximação das Ciências Humanas com as Ciências da Saúde se

faz extremamente necessárias, quando observa-se um indivíduo não somente por seu

aspecto biológico, mas também relacional com o meio, as pessoas, as condições de vida,

as quantidades estatísticas, as determinações sociais, o quão ele aceita ou refuta discursos

ideológicos de seu tempo e as razões humanas de sua crise.

Crise vista como diagnóstico situacional pode surgir sobre qualquer


trajetória individual: em uma esquizofrênico, em um deprimido, histérico, por
ocasião da perda de um emprego, em uma passagem de idade, quando da
mudança de ambiente, etc. (BENETON, 1995, p. 81)
184

Um profissional da saúde que observa o ser humano e lhe dá um diagnóstico

situacional tornou-se fundamento e fundamental para o século XX e início do XXI, pois

a crise no homem lhe é natural, do ponto de vista, onto e etimológico. A palavra “Crise”

vem de “Krisis”, que quer dizer pensar, ponderar - é uma condição social e biológica do

homem. A consciência do homem é lugar permanente de crises, pois os discursos ali

circulam, ali dialogam, ali encontram material para o vir a ser e o que é (não se pode

esquecer o que diz Foucault no Capítulo Segundo desta tese, que “o homem é uma

invenção recente”). Importante ressaltar que a ideia de crise, aqui, tem tanto sentido

positivo quanto pejorativo; como ponto de partida para entendimento do conceito de ser

humano na contemporaneidade e para depois observarmos as saídas dadas pelos

terapeutas da saúde para situações extremas de crise psicótica: a reabilitação do indivíduo

por atividades humanas de vida cotidiana e sócio-interativas. Fica, depois do surgimento

da terapia ocupacional, da psicologia, da psiquiatria e da Saúde Mental, cada vez mais

evidente o caráter biopsicossocialdiscursivo do conceito de Saúde.

Texto 10. Exemplo de Pequena Temporalidade

Depressão e suicídio
Publicado na Folha de S. Paulo. Em 27 de março de 2014. Coluna Pensata.
Por Luiz Caversan
A agência que controla a comercialização de medicamentos nos Estados
Unidos, a FDA, tomou uma importante decisão esta semana: determinou que
as embalagens de antidepressivos ostentem um alerta para o risco de o usuário
desse tipo de remédio cometer suicídio.
185

A iniciativa põe mais lenha na fogueira de uma discussão que já vem


ocorrendo há pelo menos dois anos e que diz respeito ao impacto que a
disseminação do uso dos antidepressivos pode causar nas populações.
Estão aqui envolvidos remédios que são de uso comum no exterior e
também no Brasil: Prozac, Zoloft, Effexor, Remeron, Serzone, Luvox,
Lexapro, Celexa (ou Cipramil), Paxil (Aropax) e Wellbutrin (Zyban).
A teoria mais aceita pelos médicos é a seguinte: com o início do tratamento
com esses remédios, o doente em situação mais grave consegue sair da situação
de torpor ou inação em que em geral se encontram, passando a dispor do
mínimo de ânimo necessário para tomar iniciativas. Uma iniciativa possível
seria tentar (ou conseguir) colocar em prática uma ideia fixa extremamente
comum à mente deprimida: pôr fim à vida e ao sofrimento.
Teoria bem razoável, essa.
Porque quem conhece a doença de experiência própria ou por conta do
relacionamento com algum portador sabe --ou ao menos tem condições de
saber-- como se desenvolve esse processo de saída parcial do limbo em que o
paciente se encontra quando a depressão ataca para valer, e a dificuldade que
envolve a retomada de contato com a realidade.
Mas considero que seja importante notar outros aspectos mencionados
apenas "en passant" no debate sobre o alerta determinado pelo FDA.
Seja qual for o nível de depressão, o início de qualquer tratamento com
antidepressivo é problemático. Por intermédio da bula dos medicamentos ou
na conversa com o médico especialista, o usuário de cara ficará sabendo que o
medicamento só passará a fazer efeito de fato depois de pelo menos duas, três
semanas de uso. E que uma série de efeitos colaterais poderão ocorrer durante
o tratamento.
Agora imagine a seguinte situação: um homem ficou deprimido, quadro
clássico e grave. Perdeu o interesse pelo trabalho, pela família, pelos amigos,
por sexo, pela vida, não sai de casa, chora, sente-se ameaçado, com medo e
sem razão de viver. Mas não consegue interagir com nada, fica prostrado
dentro de casa. Se pensa em se matar, não tem forças para isso.
Sofre, além de tudo, com o preconceito generalizado que existe em relação
a esse tipo de comportamento "estranho". Sofre também porque, como todo
bom deprimido, arrasta uma culpa sem fim.
Dependendo da personalidade e do contexto social desse homem, procurar
tratamento será um martírio à parte. Psiquiatras? Remédios de tarja preta? É o
fim...
Mas, não, trata-se apenas do começo. Porque, se enfrentar seus medos e
preconceitos, o homem irá ao médico, provavelmente será instado a adotar um
dos antidepressivos de última geração e desenvolverá uma expectativa enorme
em relação aos resultados --que espera serem imediatos-- da sua atitude
corajosa.
No entanto, o que provavelmente vai suceder é: os sintomas da depressão
continuam, com melhoras que aparentemente não justificam o "sacrifício", e,
muito pior, a possibilidade de surgirem efeitos colaterais é muito grande.
Então, além de tudo o que já vinha sucedendo, podem surgir: dor de cabeça,
excesso ou falta de apetite, tremores, insônia ou excesso de sono, pesadelos,
186

suor abundante, ondas de calor, inapetência sexual ou priapismo, crises de


choro, dificuldade de concentração, euforia etc., etc.
Em maior ou menor intensidade, esses efeitos indesejáveis podem
acompanhar a utilização de praticamente todos os antidepressivos, inclusive os
de última geração --basta ler a bula, está tudo lá...
Ora, o cidadão conseguiu romper minimamente as amarras da doença para,
enfrentando seus próprios preconceitos, procurar o médico estigmatizado,
passou a tomar o remédio estigmatizado e, ainda assim, o que descobre, nas
primeiras semanas de tratamento, é apenas que aumentou o sofrimento?
É duro, muito duro de aguentar.
Daí a necessidade inapelável de todo tratamento com antidepressivo exigir
a presença de um médico atencioso e dedicado, se não um especialista, ao
menos um profissional muito bem informado sobre tudo o que pode acontecer
com o paciente e disposto e pronto a dar toda a sustentação necessária.
Quem vive, viveu ou conhece essa realidade não tem dúvidas quanto a isso.
Ainda mais que a vulgarização do diagnóstico da depressão está levando
cada vez mais médicos não-psiquiatras a receitarem os antidepressivos. Menos
mal que se combata a depressão em várias frentes, sem esperar que o doente
chegue ao "fundo do poço". Mas deve haver a conscientização de que o
remédio não é a panaceia sem riscos que levará ao melhor dos mundos.
*
Como já informei nesse espaço, estou preparando um trabalho de fôlego
sobre depressão. A ideia inicial era realizar um livro que ajudasse as pessoas a
entenderem e enfrentarem melhor o transtorno que aflige tanta gente. Agora,
esse projeto evolui e está em processo de transformação, mas continua
crescendo.
Portanto, convido leitores que tenham conhecimento próprio ou de
terceiros que enfrentam ou enfrentaram situações difíceis por conta da
depressão, por favor que escrevam, que enviem depoimentos, façam sugestões,
deem dicas, enfim que se disponham a compartilhar suas experiências. Se
julgar conveniente, o leitor pode omitir sua identidade ou a daquele que viveu
uma situação concreta relatada.
Creio que a troca de informações é fundamental na luta pela melhoria da
qualidade de vida de quem enfrenta essa realidade.
*
Ainda a propósito da "polêmica" provocada pela inconstância das
preferências alcoólicas do sambista Z, peço licença ao doce e querido colega
Joaquim Ferreira dos Santos, titular da coluna "Gente Boa", do jornal "O
Globo", para reproduzir a nota que ele publicou dia desses:
"Mônica, mulher de Zeca Pagodinho há quase 20 anos, mãe de seus três
filhos, acompanha a polêmica em torno das brahmas do marido com certo
enfado. Mônica não toma partido entre marcas. Pelo contrário. 'O que eu queria
mesmo é que ele parasse de beber', desabafa."

O cronotopo do homem contemporâneo, que é o nosso tempo de crises,

depressivos e forças mercadológicas, instaurou uma busca constante por saúde por meio
187

dos fármacos. Os antidepressivos, as bulas químicas e a valorização errônea dos

psiquiatras, pôs em xeque o diagnóstico situacional, a que os Terapeutas Ocupacionais,

os psicólogos, os psicanalistas e psiquiatras tanto priorizam. Contudo, dentro do próprio

signo saúde há uma batalha intensa entre mercado capitalista e humanização dos

tratamentos, que aparece cada vez mais voraz com o passar do tempo e o fortalecimento

das industriais farmacêuticas ao longo das últimas décadas, principalmente nos EUA e

em países ocidentais, como o Brasil. O número alarmante de deprimidos e de suicídios

provoca os devidos questionamentos sobre o conceito vulgar que se toma atualmente de

Saúde, como algo ainda vinculado ao modelo biomédico, biofísico, em que diz que tudo

pode ser tratado com química em todos os casos. A Coluna PENSATA, de 27 de março

de 2014, escrita pelo jornalista Luiz Carvesan traz duas de vozes e discursos bem claros:

de um lado, o tratamento fármaco-químico necessário; de outro, o tratamento situacional

e humanizador do médico como imprescindível para recuperação do paciente/cidadão.

Traz a necessidade de um acompanhamento assistencial de um profissional da saúde em

cima do indivíduo com o problema de depressão, para que não ocorra o pensamento em

suicídio ou a tentativa. O profissional pode ser tanto um médico, clínico geral até

psiquiatra; um psicólogo, um assistente social, ou agente comunitário da saúde; e pelas

condições situacionais, o trabalho do terapeuta ocupacional, do psicólogo ou do psiquiatra

são fundamentais.

No capítulo 9 da História da Loucura (1972), Foucault faz uma análise sobre o

papel do médico e do doente e da inexatidão da medicina, passando pela crença na

panaceia (espécie de placebo que curaria todos os males de forma geral) até ao uso da

escuta na cura de doenças, chegando a dizer que o médico psicanalista deve ser um tanto

quanto filósofo para ajudar a curar o doente. O pensador francês constrói habilmente um

panorama histórico sobre a medicina e a terapêutica:


188

Nos séculos XVII e XVIII, o pensamento e a prática da medicina não têm


a unidade ou pelo menos a coerência que nela agora conhecemos. O mundo da
cura se organiza segundo princípios que são, numa certa medida, particulares,
e que a teoria médica, a análise fisiológica, e a própria observação dos sintomas
nem sempre controlam com exatidão. (FOUCAULT, 2012, p. 297)

A inexatidão da medicina não foi só tema de debate de Foucault, mas também,

como já vimos de Ginzburg (1983), em primeiro lugar por que o mito da panaceia não

desapareceu totalmente, no entanto, a ideia da universalidade nos efeitos de um remédio

começa a mudar de sentido por fim do século XVII, segundo Foucault. Em cada tema

terapêutico, ainda mais quando se fala de depressão, a panaceia sobrevive,

metamorfoseada, mas constituindo um obstáculo à procura do medicamento específico,

do efeito localizado em relação direta com o sintoma particular ou caso singular. “O

mundo da cura, no século XVIII, por exemplo, permanece em grande parte nesse espaço

da generalidade abstrata” (Idem, p. 300). O que o levou a afirmar que:

(...) a maior parte da prática médica não está nas mãos dos médicos. Ainda
existe, ao final do século XVIII, todo um corpus técnico da cura que nem os
médicos nem a medicina nunca controlaram, por pertencer totalmente a
empíricos fiéis a suas receitas, números e símbolos. Os protestos dos doutores
não deixaram de aumentar até o final da era clássica; em 1772, um médico de
Lyon publica um texto significativo, L’Anarchie médicinale: “a maior parte da
medicina prática está nas mãos das pessoas fora do seio da arte; as curandeiras,
as damas de misericórdia, os charlatões, os magos, os vendedores de roupa
usada, os hospitaleiros, os monges, os religiosos, os droguistas, os ervatários,
os cirurgiões, os farmacêuticos, tratam maior número de doentes e dão mais
remédios do que os médicos.” (Idem, p. 306 -307)

O que leva Foucault a dizer que o papel da cura, como aquilo que combate um

sintoma determinado só virá ao fim da era clássica (século XVIII) e irá instaurar um

domínio novo para as ciências médicas:

No entanto, foi a era clássica que deu à noção de cura seu pleno sentido.
Velha ideia, sem dúvida, mas que agora vai assumir toda sua amplitude pelo
fato de vir substituir a panaceia. Esta deveria suprimir toda doença (isto é,
todos os efeitos de toda doença possível), enquanto a cura vai suprimir toda a
doença (isto é, o conjunto daquilo que existe na doença determinante
189

determinada. (...) Portanto, ao mesmo tempo que uma prática, toda cura é uma
reflexão espontânea sobre si mesma, sobre a doença e sobre o relacionamento
que se estabelece entre ambas. O resultado disso não é mais, simplesmente,
uma constatação, mas uma experiência; e a teoria médica ganha vida numa
tentativa. Algo, que logo se tornará o domínio clínico, começa a manifestar-se.
Domínio onde a relação constante e recíproca entre teoria e prática se vê
desdobrada num confronto imediato entre médico e paciente. (Ibidem)

A busca de uma cura para todo mal, além de idealista é desproporcional a uma

ciência humanista, pois com o tempo foi ganhando contornos absolutos e depois inexatos,

justamente pelas pesquisas se tornarem mais exatas. A relação médico e doente mudou

desde o início, mas sempre esteve no fio tenso entre o tecnicismo e o humanismo. Olhar

as causas de depressão no mundo atual é olhar para as condições de vida dos homens,

seja pelo viés estatístico, seja pelo viés genético, seja pelo viés sociológico; o que deixa

claro que é preciso olhar a complexidade da relação médico e doente não apenas com

assertivas, mas com mais dúvidas. O desemprego é realmente um fator de risco para

depressão no mundo capitalista hoje? Não resta dúvidas que pode potencializar no

indivíduo uma predisposição à depressão, se ele encarar e introjetar o discurso capitalista

vigente, de que ser adulto deve ser um ser que produz capital para consumir e ser feliz.

Mas pensar a doença da depressão é também falar das cobranças que se tem sobre

o Homem contemporâneo, há, portanto, aspectos econômicos, sociais, jurídicos, políticos,

existenciais, além dos aspectos que sustentam um corpo vivo, os biológicos. Contudo, o

questionamento abarcar a heterogeneidade do físico e do biológico do corpo humano,

além dos aspectos discursivos. Talvez por isso, valeria ler o que Foucault diz sobre a

importância de enfrentarmos o pensamento cartesiano ainda hoje:

A heterogeneidade do físico e do moral no pensamento médico não se


originou da definição de Descartes das substâncias extensa e pensante; um
século e meio de medicina pós-cartesiana não conseguiu assumir essa
separação ao nível de seus problemas e seus métodos, nem entender a distinção
das substâncias como uma oposição entre o orgânico e o psicológico.
190

Cartesiana ou anticartesiana, a medicina clássica nunca incluiu na antropologia


o dualismo metafísico de Descartes. Uma medicina puramente psicológica só
se tornou possível no dia em que a loucura se viu alienada na culpabilidade.
(...) Descartes no começo de suas Méditations descobre em sua resolução e na
duplicação de uma consciência que nunca se separa de si mesma e que não se
desdobra, a medicina impõe do exterior, e na dissociação entre médico e
doente. O médico, em relação ao louco, reproduz o Cogito, em relação ao
tempo do sonho, da ilusão e da loucura. Cogito exterior, estranho à própria
cogitação e que só pode impor-se a ela na forma da irrupção. (Idem, p. 326)

O que nota-se o dualismo metafísico de Descartes deveria ser ponto de diálogo,

conquanto se observasse a construção da própria medicina ao longo dos séculos até chegar

nesta concepção que trata Saúde como Qualidade de vida. Em que o elemento não só

biológico, mas também o psicológico, parece ter lugar nas técnicas.

É preciso ser filósofo para poder curar os doentes da alma, pois como a
origem dessas doenças não passa de um desejo violento de uma coisa que o
doente considera um bem, é dever do médico provar-lhe, com sólidas razões,
que aquilo por ele desejado é um bem aparente e um mal real, a fim de que ele
corrija seu erro. (Idem, p. 392)

E complementa Foucault, dando contornos que se arriscam a uma análise

discursiva, como caminho para o trabalho do médico ou do psiquiatra em saúde mental:

No entanto, há uma diferença de natureza entre as técnicas que consistem


em modificar as qualidades comuns ao corpo e à alma e as que consistem em
investir a loucura pelo discurso. Num caso, trata-se de uma técnica das
metáforas, ao nível de uma doença que é alteração da natureza. No outro, trata-
se de uma técnica da linguagem, ao nível de uma loucura percebida como
debate da razão consigo mesma, (...) em um movimento discursivo.
(FOUCAULT, 2013, p. 326)

No caso de ser um debate de uma técnica da linguagem, em que a loucura busca razão

por falar com si mesma, logo encontra-se que o chão, o território seguro, é o fator

sociológico de interação, em que o verbal reflete e refrata o real e social. Lembrando que

a consciência é um fato sócio-ideológica (BAKHTIN, 2009, p.35). A linguagem será

sempre o ponto que assume o papel de vanguarda da consciência do dizer do Homem,


191

com isso muito das técnicas de cura de doenças contemporâneas como a depressão vieram

e estão associadas à psicóloga. E “é exatamente aí que nasce a psicologia” (FOUCAULT,

2012, p. 337). O que virá, por exemplo Freud a fazer é propor um diálogo que fora

esquecido desde os tempos clássicos, pois irá propor um “diálogo com o desatino”, pois

retoma a loucura ao nível de sua linguagem, reconstituía assim um dos elementos

essenciais de “uma experiência reduzida ao silêncio do positivismo” (Ibidem).

Não há mais como reduzir a conversa ao mero positivismo, portanto. A depressão,

como doença diagnosticada no e do século XX, é um fato sociológico por sua causa e

efeito entre os discursos do que convencionou-se chamar de Homem, Cultura, Cronotopo

do Capitalismo. Não há como ocultar que o desatino de nossa realidade é muito mais

material histórico do que biológico, mostrando que ter saúde não só é ter qualidade de

vida, mas saber que os contornos dela são biopsicossocialdiscursivos, pois a saúde não se

mede somente por questões biológicas e sociais, mas por quetões políticas e de luta de

classes, pelo jeito cada dia mais evidente.

Agora que descobrimos a caça, a sensação que se tem é que a caça esteve o tempo

todo com o caçador, veio a certeza de que ela vive à solta e não pode ser presa, pois

perderia seu ponto irracional, louco e criador, que são as fontes do humano do homem,

ou seja, veio a dúvida se o caçado não era uma ilusão. A humanística era a caça, mas o

que ficou evidente foi o humanismo, pois a primeira é apenas uma ciência, um método,

mas o desconhecido, a metodologia é da escuta do novo, de um humanismo, que não

cessa de se ampliar e caminhar sem que tenhamos como aprisioná-lo, pois é ele nosso

álibi, nossa utopia e o dono de nosso diálogo com o que queremos de ciência.
192

3.3 ANÁLISE DO DADO (DO TEXTO) E A INSTAURAÇÃO DO CRIADO (O


BIOPSICOSSOCIALDISCURSIVO): O PROGRAMA “MAIS MÉDICOS” E A HUMANISMO
BAKHTINIANO.

“O problema do texto nas ciências


humanas. As ciências humanas são
as ciências do homem em sua
especificidade, e não de uma coisa
muda ou um fenômeno natural. O
homem em sua especificidade
humana sempre exprime a si
mesmo (fala), isto é, cria texto
(ainda que potencial).”
[BAKHTIN]

Com uma máquina fotográfica na mão buscando o “instante decisivo”, ou com os

ouvidos atentos nas conversas orais e cotidianas que dão corpo aos mitos como Quíron,

ou mesmo com a mão no lápis como se se estivesse com o dedo no gatilho para delinear

o homem em um conto, como Dostoievski56, assim age em perspicácia também o

pesquisador dos estudos da linguagem, como um caçador das origens (GINZBURG,

1983), que monta narrativas complexas e as transmite por oralidade sobre as aventuras

que teve e sobre as pistas que viu. Porém há diferenças entre a caça de cada um deles:

Uma coisa é analisar pegadas, estrelas, fezes, (animais e humanas),


catarros, córneas, pulsações, campos recobertos de neve ou cinzas caídas de

56
Dostoievski, no conto “Sonho de um homem ridículo”, apresenta todas as características de uma obra-
prima da literatura que vasculha a alma humana, pois narra a vida de um homem prestes a cometer suicídio
já com o dedo no gatilho, mas adormece inexplicavelmente e tem um delírio, um sonho, em que a realidade
entrara no sonho e o sonho era um mergulho no tempo grande e se misturara com a pequena temporalidade.
Como se o sonho fosse a cronotopia e a dialogia mais puras. Dostoievski é inspiração e objeto de
investigação de toda obra bakhtiniana, não por acaso. Neste conto o sonho é experiência, como se o ser
vivente cultural vivencia-se pelo consciente tudo aquilo que o corpo inerte não responde, mas permaneceria
a mente em diálogo com a realidade. Com em “um sonho dentro do sonho”, como diz um verso da canção
“Um Sonho” da banda Nação Zumbi/2014. Nota-se que sonho é experiência e a experiência é um sonho.
Assim é a consciência materialidade da vida e a vida materialização das consciências. Esse devir simbiótico
entre vida e sonhos, consciência e realidade, é matéria-prima de toda a obra bakhtiniana.
193

cigarros; outra, é analisar escrita ou pintura ou discurso. A distinção entre


natureza (viva e inanimada) e cultura é fundamental, por certo muito mais
importante do que as distinções, um tanto mais superficiais e mutantes, entre
as diferentes disciplinas. (GINZBURG, 1983, p. 121)

Quando se caça as origens ou as causas, e estas não podem ser repetidas, não há

alternativas que senão inferi-las de seus efeitos (é como dizer que nossa caça teve prole,

se expandiu e não podemos mais contê-la). Não há como buscar, simplesmente, a origem

da palavra primeira dita por um ser adâmico em estudos da linguagem, na filologia, na

filosofia linguística, pois os sentidos são renovados a cada utilização e a dialogia do signo

verbal se move materialmente entre as forças centrífugas e centrípetas, entre os pilares

dos discursos oficiais e dos cotidianos, justamente pela palavra ser de uma ubiquidade

social astronômica e mágica. A palavra não pode ser neutra, pois seus efeitos não o são.

A palavra é o próprio cronotopo.

O cronotopo em Bakhtin, segundo PONZIO (2013), é o que dá unidade a toda obra

do pensador russo, pois está ligado a um só tema: a unidade de uma ideia por vir (em

desenvolvimento) e ao amor pelas variações dos fenômenos, em busca da pluralidade dos

pontos de vista. O que deu origem aos conceitos como exotopia, extralocalização,

excedente de visão, que dizem respeito a colocar-se fora em relação a todos os momentos

da unidade arquitetônica, tema de visão estética, e é desse lugar “extralocalizado” do eu

que pode ser representada sua unidade irrealizável, deixando o ponto de vista próprio do

eu como algo parcial e limitado. É preciso “sair da unidade espaço-temporal da

identidade, do tempo pequeno na contemporaneidade e delinear, do ponto de vista

participativo e não indiferente, uma arquitetônica da alteridade, do tempo grande”

(PONZIO, 2013, p. 28).

Cronotópica é a própria língua como tesouro de imagens. E Cronotópica é


a palavra enquanto capaz de conter internamente a transferência de
194

significados espaciais transferidos para relações temporais. (...) Cronotópica é


a relação entre a obra como mundo nessa representado e o mundo real no qual
a obra continua a viver, que é uma relação de constante ação recíproca,
“parecida ao interrompido metabolismo entre o organismo vivente e o
ambiente que o circunda: enquanto o organismo é vivo, esse não se funde com
o ambiente, mas se o destacarmos do ambiente, ele morre”. (...) Assim o
cronotopo é a ideia, o tema, que determina o seu caráter unitário e o mantem
em diálogo com o nosso tempo. (PONZIO, 2013, p. 42 – 45)

A pluralidade de pontos de vista que causa a cronotopia e suas categorias, como

extralocalidade, exotopia e o aceite da alteridade como ponto da arquitetônica

bakhtiniana, faz com que se observe um discurso ou uma ideologia apenas analisados

pelo cotejamento de vozes (GERALDI, 2012), de outros textos, de outros discursos. O

dado é um emaranhado cronotópico, que está em desenvolvimento para tornar-se o

criado. Por isso analisar, por simples comparativo, os textos, ou a mudança do signo

Saúde para Qualidade de Vida, (o dado) fez com que descobríssemos o movimento do

criado (o biopsicossocialdiscursivo na área da saúde).

Quais são os efeitos no dado do que está sendo criado? O que o programa “Mais

Médicos” traz de dizeres, discursos, vozes quando é escolhido para ser enunciado como

proposta de um governo frente aos pedidos de uma sociedade democrática por direitos à

saúde? Que universo discursivo e simbólico age em torno do criado a ponto de ser

chamado de Humanística bakhtiniana?

O dado no discurso de Dilma Rousseff dirá com quem conversa, que dialogicidade

aponta, que signicidade revela, que contextualizações coopera, que Devir movimenta que

não para uma Humanística bakhtiniana ou de um Humanismo bakhtiniano?


195

As respostas estão todas no signo verbal, nesta centelha triboluminescente que é a

palavra57, arena mínima das lutas sociais, nesse elemento cronotópico em que as imagens

se espelham, nesse lugar de memória por onde viajam as consciências, nesse espaço

abstrato em que as culturas se materializam primeiro; ou seja, estudar a palavra é

encontrar o mais vivo dos humanismos dentro das ciências, pois onde se lê a palavra, se

lê o humano do homem. Revelada está toda graça e potência da Humanística bakhtiniana

justamente no que temos de mais humano: o pensar com a palavra; o interagir pela vida,

com a palavra. Mas a humanística por ser uma ciência nova não dará conta, por certo, de

todos os jogos de vida no interior de um texto, por isso um dado diz, mas não revela o seu

segredo que tanto gera o criado de forma ininterrupta e viva ao longo dos tempos e eras.

DADO – Discurso da Presidente Dilma Rousseff, sancionando Lei do programa

“Mais Médicos”, em 22 de outubro de 2013:

1 Primeiro eu quero cumprimentar o Juan (médico cubano que fora recebido com ovos e
xingamentos por médicas cearenses no aeroporto, em setembro de 2013), não apenas pelo fato
dele ter sofrido um imenso constrangimento quando chegou ao Brasil, o que, do ponto de vista
pessoal e em nome do governo e, eu tenho certeza, do povo brasileiro, eu peço nossas desculpas
5 a ele. Mas também pelo fato de nós estarmos aqui hoje e eu queria cumprimentar cada um dos
médicos e das médicas aqui presentes. Eles representam, eu conversei com eles antes, eles
representam muito bem a grande nação latino-americana. Por isso que, quando nós nos
olhamos, é como se nós víssemos os brasileiros representados em cada um deles como eu vejo
todos os latino-americanos, os argentinos, eu vejo os salvadorenhos, eu vejo os cubanos, eu vejo
10 os venezuelanos, eu vi bolivianos, equatorianos. Então, eu queria saudar primeiro esses médicos

57
O que há nos capítulos 1 e 2, explicitamente, da obra Marxismo e Filosofia da Linguagem, de Mikhail
Bakhtin (Volochínov), é um dos mais belos mergulhos na alma das ciências humanas, pois o objeto de
estudos escolhido é a palavra, como centelha que se acende em contato com outra consciência embebida
de líquido flamejante, o contato entre duas consciências na interação humana é sempre triboluminescente,
de atrito e faíscas; como arena mínima fluídica da luta de classes; como flama de signo ideológico por
excelência, como ponte de fogo na interação material entre uma consciência e outra. “A palavra é o
fenômeno ideológico por excelência. A realidade toda da palavra é absorvida por sua função de signo. A
palavra não comporta nada que não esteja ligado a essa função, nada que não tenha sido gerado por ela. A
palavra é o modo mais puro e sensível de relação social.” (BAKHTIN, 2009, p. 36).
196

que vieram de longe para ajudar o Brasil a ter uma política de saúde que levasse esse serviço
essencial a todos os brasileiros.
Queria também saudar os médicos brasileiros e saudar do fundo do coração esses
médicos, porque eles representam... Eles representam uma parte generosa e competente do
15 nosso país. Portanto, hoje, nesse momento que eu trago aqui a minha assinatura para sancionar
o Programa Mais Médicos, eu começo cumprimentando aquele profissional que todas as pessoas
principalmente quando estão fragilizadas por uma doença, elas procuram e que precisam do
carinho da atenção do atendimento da mão amiga, do conselho, e esperam por ele. Eu queria
dizer a todos vocês que uma das profissões mais generosas do mundo é a profissão do médico,
20 essa capacidade de atender, confortar, de dar conselhos e de virar quase uma pessoa da família
quando vive muito perto de nós. A todos vocês então que são o centro desse Programa Mais
Médicos, médicos brasileiros e médicos formados fora do Brasil, médicos de outras partes do
mundo, mas médicos latino-americanos também, queria dizer a todos vocês uma palavra muito
simples. Muito Obrigada.
25 Cumprimento o nosso querido vice-presidente da República Michel Temer, o presidente
do Senado Federal, senador Renan Calheiros, presidente da Câmara dos Deputados, Deputado
Henrique Eduardo Alves. Queria cumprimentar os ministros de estado que participaram dessa
grande iniciativa e ação que é o Programa Mais Médicos. Cumprimentar primeiro o ministro
Alexandre Padilha e sua equipe, a ministra Gleisi Hoffmann da Casa Civil que coordenou esse
30 processo que envolve vários ministérios, o ministro Aloizio Mercadante da Educação. Queria
cumprimentar a ministra Ideli Salvatti das Relações Institucionais que deu o seu suporte para o
trânsito desse processo no Congresso Nacional. Cumprimentar também o ministro Celso Amorim
e, ao cumprimentá-lo, dirijo meus cumprimentos aos comandantes da Aeronáutica, do Exército
e da Marinha que nos ajudaram e nos ajudaram de forma muito efetiva na implantação desse
35 programa. Queria cumprimentar também o ministro das Relações Exteriores, ministro
Figueiredo, que foi essencial na articulação da vinda dos médicos de fora para o Brasil. Queria
cumprimentar em nome deles, todo o ministério.
Dirigir um cumprimento ao Tadeu Filippelli, governador em exercício do Distrito Federal,
e ao governador do Acre, meu companheiro Tião Viana. Queria cumprimentar e agradecer os
40 senhores relatores da Medida Provisória 621 senador Mozarildo Cavalcanti e o deputado Rogério
Carvalho que foi o relator também dessa matéria e a quem eu agradeço. Cumprimentar o
deputado Francisco Escórcio e o senador João Alberto Souza, respectivamente, presidente da
comissão e vice-presidente que analisou a Medida Provisória. Cumprimentar todos os senadores
aqui presentes, José Pimentel, líder do governo no Congresso Nacional, Ana Rita, senadora
45 Ângela Portela, senador Antônio Carlos Valadares, senador Benedito de Lira, senador Eduardo
Amorim, senador Eduardo Suplicy, senador Eunício Oliveira, senador Humberto Costa, senador
João Ribeiro, senador Jorge Viana, senador Romero Jucá, senador Valdir Raupp, senador
Vicentinho Alves e senador Wellington Dias.
Queria cumprimentar as senhoras e os senhores deputados ao cumprimentar o líder do
50 governo, na Câmara Federal, o nosso querido Arlindo Chinaglia, queria também cumprimentar o
prefeito Fortunati de Porto Alegre e cumprimentar o prefeito de Granja, Romeu Aldigueri e,
através dos dois, eu cumprimento todos os prefeitos que, eu tenho a certeza, são os grandes
beneficiários dessa medida dos Mais Médicos mesmo porque são eles que estão mais próximos
à população do nosso país de norte a sul e de leste a oeste. Queria cumprimentar também e
55 agradecer as senhoras e os senhores reitores, a cada um deles pela sua dedicação, seu apoio,
para que esse programa se tornasse realidade. Cumprimentar os secretários estaduais e os
secretários municipais de saúde que serão nossos grandes parceiros, coordenados e liderados
pelos prefeitos. Cumprimentar os nossos jornalistas e jornalistas... e as jornalistas, os nossos
fotógrafos e os nossos cinegrafistas.
60 Meus amigos aqui presente... presentes, hoje faz cento e vinte dias que eu me dirigi ao
Brasil através duma rede de televisão para externar os cinco pactos que os governadores de
todos os estados junto com os prefeitos das capitais, junto com as lideranças e a representação
dos poderes do legislativo, do Congresso Nacional, e de todos os poderes, juntamente com os
movimentos sociais, tínhamos formulado. Eram cinco pactos que nós formulamos. Esses pactos,
65 eles respondiam às demandas dos movimentos de junho e convergiam com aquilo que o governo
197

considerava que era as grandes questões que precisavam urgentemente de atenção do governo
e do país. Essas propostas, elas tinham a previsão de ações concretas e eu queria primeiro dizer
pra vocês que nesses exatos quatro meses o que nós propomos vem se tornando
progressivamente realidade e isso para nós é algo muito importante porque significa que
70 compromisso assumido tem de ser compromisso cumprido. E eu vou começar fazendo um
rápido, muito curto balanço dos pactos para chegar no pacto da saúde. O pacto pela
responsabilidade fiscal e por extensão com a estabilidade macroeconômica é a mãe dos outros
pactos, porque sem isso não há viabilidade para se exercer e se executar os demais pactos.
Nestes quatro meses, ficou claro que a compromisso do governo com a robustez
75 macroeconômica, com os indicadores da nossa economia, mostraram que o Brasil passa essa
crise com uma situação especial: nós mantemos a inflação sob controle, o desemprego se
encontra num dos níveis mais baixos e o orçamento fiscal está completamente sob controle e
equilibrado.
Nós propusemos também um pacto pela reforma política. Esse pacto pela reforma
80 política, ele visava tornar mais aberta e transparente a atuação de todos os entes políticos,
partidos e instituições, o próprio governo, enfim, todas as instituições. Algumas dessas medidas
vêm sendo debatidas dentro do Congresso Nacional. Eu e o governo temos uma convicção de
que é uma imposição dos tempos atuais, portanto é inexorável o aprimoramento de nossas
regras de representatividade política, de uso transparente do dinheiro público e de combate à
85 corrupção. Eu vou continuar a defender uma ampla reforma política que aprimore... que
aprimore as regras da representação e se faça por meio da mais ampla representação popular.
Esse então é o segundo pacto.
Os outros três pactos que eu propus à nação dizem respeito à qualidade dos serviços
públicos e eu tenho orgulho de dizer hoje que eles estão todos sendo bem encaminhados. O
90 pacto pela mobilidade urbana, por exemplo, com mais investimentos em transporte coletivo, nas
grandes e nas médias cidades brasileiras, está avançando. E nas peque... e nos pequenos
municípios também. Nós destinamos cinquenta bilhões, além dos noventa bilhões que já
tínhamos aplicado, para investir em metrô, para fazer integração, a integração dos diferentes
modais, VLT; BRT; quando é o caso, barcas; quando é o caso, transporte fluvial; e também,
95 quando for o caso, as nossas exigências implicam em bilhete único de transporte. Esse pacto está
bem encaminhado e eu acredito que várias cidades já têm acesso aos recursos para melhorar a
mobilidade urbana e melhorar o transporte público.
Quanto ao pacto pela educação, é importante dizer que ontem, nós..., que ontem não,
que nós aprovamos há uns meses atrás a lei que destinou 75% dos royalties do Governo Federal
100 para a educação e 25% para a saúde. Daqui pra frente, os royalties da área do pré-sal serão
destinados integralmente, sejam eles devidos ao governo federal, ao estado ou aos municípios.
E aí é muito importante dizer que o daqui pra frente é que aconteceu ontem. Ontem, nós
licitamos o Campo de Libra, talvez o maior campo de petróleo em explora... em processo de
exploração do mundo no momento atual. Este campo, ele vai permitir de fato os grandes
105 recursos para a saúde e para a educação. No caso da educação, o Fundo Social do Pré-sal destina,
para ser distribuído entre essas duas áreas, em torno de mais de trezentos bilhões de reais. Isso
é algo absolutamente significativo pro Brasil, mesmo porque é bom lembrar que com este
modelo de partilha, a União os estados e os municípios ficam com 85% das receitas, se você
considerar também a Petrobrás. É bom explicar que nesses 85%, 75% é da União, 10%
110 corresponde à parte da Petrobrás. Portanto, aqueles que falam em privatização no mínimo
desconhecem essas contas. Além disso, esse valor é importante porque mostra de fato que o
passaporte pro nosso futuro, é transformar essa riqueza perecível, finita, que é o petróleo, numa
riqueza infinita, que é dar educação de qualidade pro povo brasileiro.
Eu tenho certeza que esse é um processo vitorioso. O Brasil ontem mostrou que sabe o
115 que quer e mostrou também que foi construído um dos maiores consórcios de empresas para
explorar o pré-sal. E é sempre bom lembrar que esse Campo de Libra é um dos. Se a gente
considerar que este ano de 2013 nós produzimos dois milhões e cem mil barris-dia, esse campo
no seu pico produzirá um milhão e quatrocentos mil barris-dia, ou seja, 67% de tudo que nós
produzimos hoje. Então é uma honra que o Congresso Nacional tenha aprovado e eu tenha
120 sancionado esses recursos para a educação, porque é de fato recurso do óleo excedente que
198

constitui o maior volume de dinheiro para a educação. Os royalties agregam valor a isso. Entre
um e outro, pra vocês terem uma ideia, existe uma diferença significativa: enquanto o óleo
excedente, porque nós recebemos em excedente em óleo, o óleo tirado de lá, nós temos uma
parte dele, nós comercializaremos esse óleo, teremos a mesma, o acesso à mesma riqueza que
125 as empresas têm, garantindo às empresas um lucro muito significativo. Mas o que eu quero dizer
é que mudou o modelo. Antes você recebia um valor fixo, agora você recebe petróleo. E petróleo
é petróleo. E nós vamos transformar petróleo em educação, em livros, em conhecimento.
Essa alquimia foi feita, e eu agradeço ao Congresso Nacional, essa alquimia de
transformar petróleo em livros, em professores, em mais educação pro nosso país, eu agradeço,
130 porque ela sempre é feita com vontade política.
Bom, o pacto que nós hoje..., que nós hoje aqui estamos tornando cada vez mais, mais
realidade é o pacto pela melhoria da qualidade da saúde pública, por meio do aumento primeiro
e prioritariamente por meio do aumento do número de médicos..., do número de médicos. Da
formação também, como mostrou o ministro Mercadante, de novos profissionais qualificados,
135 do aumento também da especialização dos nossos médicos, porque hoje uma das coisas que me
preocupam muito é que no Brasil faltam pediatras e quando falta pediatras, falta atendimento
às crianças. Então, é urgente melhorar a formação de médicos especialistas e olhar também
aquilo que é a demanda do país.
Eu queria dizer pra vocês que nós tornamos, começamos cada vez mais a implantar esse
140 pacto pela saúde pública com o Mais Médicos. Esse programa que se transformou em lei, que o
Congresso Nacional aprovou e que eu sanciono é um programa que eu considero dos mais
importantes do meu governo e eu quero manifestar aqui publicamente o meu agradecimento à
Câmara e ao Senado que mais uma vez demonstraram sua sensibilidade aos grandes problemas
nacionais e também uma capacidade de compartilhar decisões que são cruciais, que são
145 importantes pro país com o Executivo.
Esse pacto, então, expresso nos Mais Médicos é também pra mim uma etapa pra gente
continuar combatendo a exclusão, a exclusão que transforma o acesso ao médico numa forma
de repartir uma parte ou, ou segregar uma parte da população, não lhe dando condições de ter
acesso a serviço público essencial. E também esse programa é o nosso compromisso com o
150 acesso a serviços públicos, no caso da edu... da saúde, um serviço público essencial.
Nós demos grandes passos no Brasil pra reduzir a desigualdade e reduzir a distribuição
de renda que era uma distribuição de renda que alijava o nosso povo dos ganhos do
desenvolvimento econômico. É fato que desde o início do governo Lula nós demos passos
significativos para reduzir a pobreza e acabar com a miséria no Brasil. Neste momento em que
155 nós comemoramos dez anos do Bolsa Família, nós podemos dizer que esses passos foram
significativos. Todos os cadastrados no nosso cadastro único, que levantou todos aqueles que
viviam abaixo da linha da pobreza, recebem hoje uma renda suficiente para que a gente afirme
que desde 2011 nós tiramos os últimos 22 mil 58, 22 milhões que ainda estavam na pobreza.
Agora, nós temos certeza que esse 22 milhões, além daqueles outros que nós ainda não
160 atingimos, porque não estão no cadastro único, mas todos aqueles que saíram da miséria e da
pobreza extrema têm um desejo. Esse desejo é ter acesso cada vez a melhores serviços, a
serviços com mais qualidade, a produtos com mais qualidade, a saúde de mais qualidade,
sobretudo ter acesso a médicos. E nós sempre soubemos que quando a gente cria participação
e democracia, todo mundo vai exigir mais participação e mais democracia, quando a gente
165 amplia a inclusão social, as pessoas vão querer mais inclusão social. Por isso que a gente sempre
afirmou que o fim da miséria no Brasil é apenas um começo. E é por ser um começo que esse
Programa Mais Médicos tem tanta importância no meu governo. Todas as pesquisas de opinião,
todas as análises técnicas das universidades mostram que o maior anseio da população brasileira

58
Equívoco, logo em seguida corrigido para “milhões”.
199

é ter acesso a um atendimento médico e que esse atendimento médico fosse humano, que o
170 médico pegasse a pessoa, auscultasse, tratasse. E essa reivindicação é a reivindicação que nós
vemos por trás do Programa Mais Médicos. O Programa Mais Médicos, assim, é essa
compreensão profunda de que o fim da miséria é apenas um começo.
Nós sabemos que devemos atender a todos os brasileiros, mas devemos ter um
compromisso, sobretudo, com as populações mais pobres e mais fragilizadas do nosso país. E
175 sabemos, também, é bom que se diga isso e se reafirme, como é entranhada e resistente a
desigualdade no acesso ao serviço de saúde, entranhada e resistente. Por isso é preciso atacá-la
com muita energia e absoluta prioridade. E é isso que faz e que exige a determinação e o
compromisso que é o que caracteriza o Mais Médicos.
Sabe, Padilha, não é coragem não, é dever, porque quando é o dever, não pode haver
180 nada entre a gente e o objetivo que seja intransponível e é isso que nós hoje estamos transpondo,
essa distância que há e essa diferença que há no acesso à saúde pública e aos médicos em nosso
país.
Nós sabemos que a desigualdade começa, por exemplo, na oferta insuficiente de
médico nas periferias das grandes cidades. Padilha aqui relatou vários bairros de Salvador, um
185 dos, o quarto maior estado em população do nosso país. Nós sabemos também que aparece nos
estados da região norte e nordeste, o nosso prefeito de Granja se referiu a isso, aparece nas
periferias das cidades de estados, considerando os demais, razoavelmente ricos, como é o caso
lá na prefeitura de Porto Alegre que o prefeito Fortunati já relatou e nos municípios do interior,
como foi dito aqui pelo prefeito de Granja, nos municípios fronteiriços do nosso país, para as
190 populações indígenas, pros quilombolas, enfim, pra todas as populações excluídas do nosso país.
Agora nós queremos que eles tenham médicos é isso e disso que se trata. Eu quero dizer pra
vocês que também é importante lembrar o pro... o efeito que a ausência de médicos nos postos
de saúde produz nas UPAs, produz nos hospitais, o que significa em aumento de filas, em
aumento de custo para o próprio país. Não se trata pura e simplesmente de atender a questão
195 da desigualdade. Se trata, sobretudo, de atender a desigualdade, mas se trata também de
estruturar essa grande conquista brasileira que é o Sistema Único de Saúde. Porque o Sistema
Único de Saúde é algo que nós conquistamos, e é interessante que tenhamos feito isso
juntamente quando conquistamos a democracia. Não é de graça que isso ocorreu. Então,
resolver a questão dos Mais Médicos é de fato reconhecer a importância do Sistema Único de
200 Saúde e dar a ele, dar a ele cada vez mais força e coluna vertebral de sustentação.
Mais médicos nos postos de saúde, mais médicos na atenção básica vai significar sempre
menos doença e é essa a equação política fundamental. Mais médicos, menos doença.
E eu queria dizer pra vocês que o Mais Médicos veio efetivamente para mudar esse
quadro de distribuição desigual do acesso ao médico. Nós pretendemos que em torno de mil e
205 trezentos médicos. Nós pretendemos não, nós afirmamos que cerca de mil e trezentos médicos
já estão nos postos de saúde. No fim desse mês é que nós pretendemos atingir três mil e
quinhentos profissionais, o que vai implicar no atendimento a mais, a mais doze milhões de
brasileiros. E isso é o começo, nós vamos aumentar mês a mês este número. Até o final do ano a
nossa meta é atender vinte e três milhões de brasileiros.
210 E até abril do ano de 2014 nós pretendemos ter em torno de treze mil médicos aqui no
Brasil participando do programa, entre médicos brasileiros e médicos formados no exterior. Com
isso nós chegaremos em abril a garantir cerca de quarenta e seis milhões de brasileiras e
brasileiros com atendimento médico de qualidade nos municípios do nosso Brasil a fora.
O ministro Mercadante já disse que o Mais Médicos também implica numa visão da
215 importância dos médicos jovens e das médicas..., dos futuros médicos jovens e das futuras
médicas jovens serem formados e terem a oportunidade de se formar.
Eu queria dizer que nós também sabemos que o Mais Médicos é composto de várias,
várias ações, entre elas essa de formação de jovens médicos, de ampliação da residência, mas
também nós estamos ampliando a infraestrutura do nosso país. Estamos ampliando a
220 infraestrutura e tudo isso está sendo feito em parceria com os municípios. Essa infraestrutura na
qual nós estamos investindo mais de, quase treze bilhões de reais em postos de saúde e
equipamentos, nós estamos construindo em torno de mil e cem UPAs vinte e quatro horas e dez
mil e seiscentos postos de saúde, além dos onze mil que estão sendo ampliados e reformados.
200

Eu que também queria dizer que o Mais Médicos é um reconhecimento à medicina e ao


225 papel do médico, tanto do médico especialista, quanto do médico..., do médico da atenção
básica, do médico da saúde da família. E é um pacto. É um pacto, não só pela saúde, mas é um
pacto que nós estamos fazendo com a classe média 59, com a classe médica, com os médicos que
estão aqui nos ajudando, com os médicos recém-formados desse país, com o Brasil do norte,
com o Brasil do nordeste, com o Brasil do interior; sobretudo, esse é um pacto generoso e é um
230 pacto humano. É um pacto em prol da saúde da população. E para nós ele é fruto dessa parceria
que hoje nós estamos fazendo com todos os médicos do nosso país que atuarão nesta área e
com todos os médicos que vieram dos outros países, se formaram em outros países, e que vieram
nos ajudar.
Eu queria destacar, para finalizar, o imenso esforço feito pelo ministério da saúde. Em
235 especial, eu queria destacar a figura do ministro Padilha. Ministro Padilha... O ministro Padilha,
do lado do governo, enfrentou de maneira obstinada uma oposição. Muitas vezes passou por
situações similares à do Juan. E manteve a sua postura firme, uma pessoa que escutou
tranquilamente as críticas, soube responder a elas com tranquilidade, demonstrou capacidade
de diálogo e ele não podia fazer isso se não tivesse também uma equipe sustentando a sua
240 atuação. E eu queria agradecer à equipe do ministro Padilha em nome do Mozart.
Pelas, viu Mozart, pelas inúmeras horas de reunião, pela toda a dedicação da equipe do
Ministério da Saúde. E eu queria que todos soubessem aqui o quanto foi importante também a
participação da Casa Civil da Presidência da República. Agradeço também à ministra Gleisi.
Enfim, às médicas e aos médicos brasileiros que já participam e aos que vierem a
245 participar do Mais Médicos, sobretudo aqueles recém formados que a partir do início do ano
quiserem ter uma experiência fundamental que é essa proximidade com o nosso povo, com o
povo brasileiro.
Mais uma vez eu finalizo agradecendo àqueles que vieram de outros países, que não
trouxeram as suas famílias, que muitas vezes estão com saudade, que estão aqui trabalhando,
250 que demonstram um imenso carinho pelo povo brasileiro. Agradeço a eles. Eles vieram nos
ajudar e nos apoiar. Agradeço a cada um e a cada uma. Esse país vai ficar eternamente gratos a
vocês.
Talvez essa participação de vocês seja a mais perfeita, a mais completa, não só forma de
integração da América Latina e dos outros países, mas também é um atestado de cidadania
255 brasileira. Muito obrigada.

59
Equívoco, logo em seguida corrigido para “médica”.
201

CRIADO – O Debate pelo Humano no Homem, não mais pela Humanística

Bakhtiniana, mas pelo Humanismo ético bakhtiniano.

“Quando acreditamos
apaixonadamente em algo que
ainda não existe, nós o criamos. O
inexistente é o que não desejamos o
suficiente.”

[Franz KAFKA]

Há, portanto, uma potente linha de pensamento sobre as ciências, uma inauguração

de visão filosófica em Mikhail Bakhtin, que poderia ser chamada de Humanística, que foi

feita de maneira voraz e com grande fôlego em seus escritos, principalmente em dois

textos poderosos da filosofia linguística bakhtiniana, que para erguer esta tese foram

imprescindíveis: 1) O Problema do Texto na Linguística, na Filosofia e em outras

Ciências Humanas; e 2) Metodologia das Ciências Humanas.

Torna-se natural depois de ler toda a obra bakhtiniana e do Círculo apontar as pistas,

os rastros, os estalitos de galhos, do que aqui chamo de espectro marxista, ou

fantasmagoria paradigmática de um humanismo latente nos textos de Bakhtin. Em sua

preocupação em erguer diálogos, muito mais que conceitos; em erguer interpretações,

muito mais que métodos; em erguer dialogias e utopias, muito mais que totalitarismos e

absolutismos.

O acontecimento da vida do texto, isto é, a sua verdadeira essência, sempre


se desenvolve na fronteira de duas consciências, de dois sujeitos. Um
estenograma do pensamento humanístico é sempre o estenograma do diálogo
de tipo especial: a complexa inter-relação do texto (que interroga, faz objeções,
etc.), no qual se realiza o pensamento cognoscente e valorativo do cientista. É
um encontro de dois textos – do texto pronto e do texto a ser criado, que reage;
consequentemente, é o encontro de dois sujeitos, de dois autores. (BAKHTIN,
2011, p. 311)
202

Um dado (um texto) colocado em análise pela linguística bakhtiniana é sempre

fonte do criado. O discurso de um presidente da república (“da Presidenta”, esta disputa

por termos que se instaurou pela denominação da primeira mulher presidente do Brasil já

caracteriza um litígio tenso entre as ordens e as resistências, entre as demandas de uma

sociedade em transformação, entre os dispositivos disciplinares e as recusas do mesmo e

do passado) no dia em que sanciona a lei do Programa “Mais Médicos”, aponta uma

multidão de vozes em diálogo, uma heteroglosia polifônica. O próprio discurso da

presidenta é dialógico por buscar no auditório e em cada grupo dele, dividido em

singularidades humanas, um padrão discursivo que vá de encontro a todos presentes na

cerimônia - do Ministro da Saúde ao médico cubano (Juan) constrangido em um aeroporto

cearense em setembro de 2013; do vice-presidente da república federativa do Brasil ao

médico salvadorenho no meio da multidão no auditório, que viera para integrar o

programa “Mais Médicos”.

As saudações iniciais do Discurso de Dilma mostram a importância do Programa

para a Política Nacional, e a importância médica para salvaguardar o serviço de saúde

pública no Brasil. Os médicos estrangeiros são saudados, para logo depois serem

saudados os médicos brasileiros, os quais são chamados de “generosos” (mostrando um

jogo de cena e de domínio com o auditório, bem pertinente aos discursos abertos e orais.

Nas linhas 17 a 19). A presidenta enfatiza a palavra e chama a classe médica de uma “das

mais generosas” (linha 17), em clara oposição às críticas feitas a eles (como vimos pelo

cotejamento de textos ao longo da tese, por exemplo TEXTO 2 e TEXTO 7), os médicos,

de serem elitistas, em discursos enunciados pela mídia brasileira ao longo do debate e

instauração do Programa, entre junho e outubro de 2013. Essa aproximação da oradora

com o público humaniza o tom da conversa, pois traz o ouvinte para perto do locutor, já

que em ambos há, a partir deste momento, um lastro comum: o trato humano da saúde.
203

A presidente, ao finalizar, a saudação aos médicos com um “Muito Obrigado” faz

a clara aproximação com o auditório, pois assim desnuda-se a comandante em chefe da

nação para dar lugar à cidadã brasileira que reconhece na profissão do médico a

generosidade humana que tanto alimenta o cuidado com saúde.

Há uma larga gama de cumprimentos aos envolvidos no processo da montagem da

Medida Provisória que deu possibilidade de existência ao Programa Mais Médicos como

lei; e há cumprimentos aos outros presentes no auditório, incluindo cinegrafista e

jornalistas. (Das linhas 23 a 54). Todo o aparelho governamental é deflagrado nestes

cumprimentos, mostrando que no momento político a que estamos no Brasil,

principalmente, após a abertura para a democratização, em 1984, há mais espaços para

diálogos e proposições democráticas como um Programa Governamental declaradamente

imbuído de diminuir as desigualdades sociais no território nacional. Contudo, a máquina

governamental em países com grande parte da história ligado às oligarquias, nepotismos

e muito dependente da grande mídia como formuladora da opinião dos cidadãos, ainda

carecem de um retorno da classe civil que seja inspirador e modificador das amarras e

tentáculos de um grande Leviatã governamental e tupiniquim. Os cumprimentos revelam

que o aparelho governamental tem dimensões monstruosas em um país de proporções

continentais, embora ainda pequeno em desenvolvimento de cidadanias.

A presidente Dilma (a partir da linha 56 até a linha 120), começa a apresentar a

complexa gama de relações sociais e de grupos que tiveram participação na criação do

programa “Mais Médicos” desde a instauração dos cinco pactos para o Brasil, em

conjunto com as prefeituras, governadores, grupos sociais e congresso nacional. Coloca

o pacto da reforma fiscal como prioridade (linha 58), pois seria ele o que daria

sustentação econômica para os outros (4) quatro pactos; em seguida o da reforma política

(linha 72), como sendo este o da garantida da democracia; na sequência o terceiro, o pacto
204

da mobilidade urbana (linha 80), respondendo as cobranças das vozes que vieram das ruas

nas chamadas Jornadas de Junho (linha 60), que culminaram em protestos e revogação da

tarifa de ônibus e metrôs na cidade de São Paulo60; como quarto pacto trabalhado estava

60
Nas ruas de São Paulo viu-se deflagrar uma exemplar arena de lutas ideológicas, discursos de vertentes
antagônicas na mesma avenida (discursos fascistas e discursos comunistas, discursos de direita e discursos
de esquerda, discursos democráticos e discursos integralistas). Os ecos das manifestações ainda reverberam
pelas mesas, mídias, ruas, vielas e escolas brasileiras, porém para tentarmos entender o processo que
estamos vivendo, foram fatos discursivos entre 7 dias do mês de junho de 2013 que promoveram o mais
claro fato linguístico dos últimos vinte anos na política democrática brasileira, desde “Os Caras Pintadas”
em 1992. De 13 a 20 de junho foram vistos os mais heteróclitos manifestos partidários, apartidários e anti-
partidários. O dia 13 de Junho demarcou para a sociedade paulistana e brasileira, que usufrui direta e
indiretamente das redes sociais, um claro contraste de discurso com a grande mídia, já que enquanto
manifestantes eram duramente violentados nas imediações da Avenida Paulista em meio a gritos de “Sem
Violência”, aquilo que era dito e considerado, pela mídia oficial, deturpava o ato como sendo mais um
manifesto juvenil, sem causas. Contudo, as redes sociais e os celulares fizeram o papel primordial
polifônico – dando voz aos que eram oprimidos no ato –, montando assim um mosaico democrático e
dissensual nunca observado tão às claras e em tempo real na história recente brasileira. O ato do dia 13 de
junho fora chamado pelo Movimento Passe Livre (MPL), pedindo a revogação do aumento da tarifa do
transporte público na cidade de São Paulo. O caráter político do manifesto ganhou dimensões ao alcance
do tamanho do território de umas das nações mais extensas do mundo, entretanto trouxe consigo vozes que
outrora não se ouviam, mais por apagamento da grande mídia do que pela própria história. O ato do dia 13
trouxe à tona inúmeras discussões políticas, democráticas e nacionalistas, o que acabou por chamar a
atenção de toda a população brasileira para os problemas de ordem pública (Educação, Saúde, Transporte
etc.). Viu-se no dia 13 a grande mídia tendo os olhos feridos, por tiros de borracha dados pela polícia militar
do Estado de São Paulo. A população brasileira viu a maneira turva e desfocada que um único veículo de
comunicação pode dar para a realidade; viu que as outras mídias – “Mídia Ninja”, as páginas em redes
socais e celulares – poderiam dar uma versão mais real dos fatos, já que a realidade é polifônica e nunca
monológica e parcial. Temos no dia 13 um exemplo de opressão de vozes, opressão policial e ruptura do
discurso único e oficioso da mídia, o que irá corroborar para o ato do dia 20, como resposta. A
contrarresposta à mídia foi dada pela população no ato mais democrático do mês de junho, ocorrido no dia
17, porém no dia 20 já com a revogação consentida por parte dos governos do Estado e da Prefeitura, muitos
que vieram às ruas foram contratados, dando assim ao ato um carácter não tão orgânico como o do dia 17
de junho. Era nítido, pelos gritos de ordem e lemas nas ruas que o público das manifestações mudou em
dias – no dia 13 eram pessoas questionando o transporte público e a sua falta de qualidade; no dia 17 eram
cidadãos cobrando democracia e fim da opressão do Estado, além de responder veementemente à
monologia midiática dos últimos anos; já no dia 20 eram partidos políticos (de Direita e de Esquerda) e
uma pequena parte de anarquistas. O que tornou o dia 20 uma data a ser estudada, pois estava ali uma forte
vertente que confundia apartidarismo com anti-partidarismo; e também o forte apagamento da história, já
que os partidos políticos de esquerda, que tanto fazem parte da nossa trajetória, foram obrigados a baixar
suas bandeiras. Os desejos e anseios de uma população foram traduzidos como um desejo único anti-
partidarista, o que acabou por silenciar as vozes apartidaristas e partidarista, que tanto vigoraram nos
últimos dias de nossa história. Em meio a tudo isto, uma imagem metafórica chamou a atenção: enquanto
205

o da Educação, o qual foi amplamente festejado por destinar os recursos do PIB nacional

em quase 10% à educação, como diz a presidente em diálogo direto com a memória de

futuro: “esse valor é importante porque mostra de fato que o passaporte pro nosso futuro,

é transformar essa riqueza perecível, finita, que é o petróleo, numa riqueza infinita, que é

dar educação de qualidade pro povo brasileiro” (os grifos são meus); e como o último e

quinto pacto, o da Saúde,(que aparecerá a partir da linha 125), virá como carro-chefe do

discurso, como tema principal, da resposta gerada pelo Governo Federal aos desafios de

governar e dar contrapalavra às inquietações políticas e de lutas de classe dentro do

universo social brasileiro.

No chamado “quinto pacto” a preocupação com a saúde é evidente, mais ainda com

números, qualificação, estatísticas, tanto da formação médica (linhas 125, 126 e 198),

quanto do número de médicos destinados à atenção básica. Saúde ganha contornos de

Qualidade de Vida nas palavras do governo, por ser tratada como dado estatístico,

quantificável, qualitativo, mas também no discurso da presidente como realidade humana.

A Qualidade de Vida trabalha em duas direções claras: uma, voltada para as estatísticas;

outra voltada para o cuidado humano, “porque hoje uma das coisas que me preocupam

muito é que no Brasil faltam pediatras e quando falta pediatras, falta atendimento às

crianças. Então, é urgente melhorar a formação de médicos especialistas e olhar também

aquilo que é a demanda do país.” (linhas 127 -128). Vale aqui ressaltar que tal

perspectivas em análise de proporções, de contingentes populacionais, estudos de casos

os da Esquerda caminhavam na via direita da Avenida Paulista, os da Direita, na via da esquerda, o que por
si só já evidenciava o paradoxo que é o animal político, desde a Grécia ao Brasil atual, já que o ser político
não só se manifesta em palavras e ideologias, mas também em apagamentos e ressurreições históricas
(ouviu-se muitos gritos fascistas e, por outro lado, palavras de ordem comunistas).
206

e determinações sociais só foi possível com a entrada da ciência estatísticas (início do

século XIX) para dentro do sanitarismo, dando assim contornos de uma saúde que sairia

do âmbito médico apenas para algo chamado de biopsicossocial (no século XX). Isto é, a

partir do século XIX o homem torna-se estatística.

Contudo, mais adiante (linha 150) a ideia que se trabalha no discurso é uma resposta

ao homem legal, jurídico, pautado em uma lei, ou medida provisória, que institui o

Programa “Mais Médico” como lei federal, como resposta a este homem jurídico que se

estabeleceu no sujeito contemporâneo muito recentemente, após o liberalismo do século

XVIII. Toda resposta do Estado ao Homem deve passar pelo cidadão, como pertencente

ao Estado. Interessante notar que (na linha 149) é detectada a participação política dentro

da democracia como causadora de inclusões sociais, que a sociedade brasileira demanda.

A fala da presidente traz à tona a potência do diálogo e dos embates para a formação de

uma democracia mais sólida e de inclusões, chegando a dizer que os movimentos de junho

de 2013 foram resultados de uma maior política de inclusões. O que acaba gerando outras

demandas, pois uma população de saltou de dois (2) milhões de estudantes universitários

em 2001, para sete (7) milhões em 2013, logo traz novas demandas e novas cobranças,

novos e importantes mecanismos de inclusão, pois se não lhes for garantidos direitos

básicos, como educação, saúde e transporte de qualidade, logo teremos uma nova classe

social chamada precariado (o que muitos chamam de classe média C), em que tudo é

precário, a universidade onde estudam, o transporte que utilizam e plano de saúde que

lhes é ofertado.

Das vozes audíveis no discurso de Dilma, encontramos a voz do homem jurídico, a

voz do cidadão legal, a voz do sujeito estatístico e a voz do indivíduo contingente, que é

aquele que aparentemente é invisível aos olhos da maioria, mas aparece muito claramente

nas pesquisas estatísticas de qualidade de vida ou IDHM (Índice de Desenvolvimento


207

Humano Municipal), norteadas por parâmetros internacionais, mostrando que a luta

contra a exclusão é planetária, globalizada, com um discurso forte, voz poderosa da carta

dos direitos humanos de 1948.

Na fala da presidenta da república brasileira há uma preocupação com a inclusão

do cidadão outrora excluído, não só pelo programa de saúde do governo federal pensando

em qualidade de vida, mas pelo programa bolsa família, que segundo os dados ditos (linha

160) conseguiu tirar 22 milhões de seres humanos da miséria (os que tinham ganhos

menores a ¼ de salário mínimo per capita por família). A voz de um discurso de saúde

não é uníssona, sem ecos, sem ruídos, mas uma voz emaranhada por discursos que

formam o sujeito jurídico contemporâneo, o cidadão legal, o sujeito estatístico e o

indivíduo contingente, pois a saúde é física, concreta e histórica; a saúde é viva,

discursiva, biológica e ideológica; a saúde é existencial, química, hormonal e psicológica.

Não há como negar nos nossos tempos do termo Saúde, como signo ideológico que conota

Qualidade de Vida (o que faz, ironicamente, que direitos básicos, se tornassem prestígio

para a Presidente. Resultado das tensões sobre os signos verbais e as disputas políticas).

Pautado ainda muito na voz das estatísticas, a fala de Dilma Rousseff traz nuances

importantes de duas vozes: “Todas as pesquisas de opinião, todas as análises técnicas das

universidades mostram que o maior anseio da população brasileira é ter acesso a um

atendimento médico e que esse atendimento médico fosse humano, que o médico pegasse

a pessoa, auscultasse, tratasse. E essa reivindicação é a reivindicação que nós vemos por

trás do Programa “Mais Médicos”. O Programa “Mais Médicos”, assim, é essa

compreensão profunda de que o fim da miséria é apenas um começo.” (Nas linhas 180-

185). Primeiro, a voz da opinião pública levantada por pesquisa, portanto por estatística;

e a outra, por uma voz da inclusão, humanitária, preocupada com o tratamento

interpessoal nas microesferas do poder governamental, esferas capilares do Estado. Não


208

se pode esquecer que desde uma concepção biomédica, ou biopsicossocial, estatística e

qualitativa, a Saúde sempre foi um dado real que se corporifica no ser humano. Por isso,

não dá para observar números sem cuidar do ser humano a que o número traduz. Ou seja,

por mais que a linha de raciocínio seja ou esbarre no fator econômico, o caráter fortemente

humanístico prevalece na área da saúde, ainda mais quando se pensa no signo ideológico

Qualidade de Vida – como estatísticas, dados, medições do quão o ser humano vive em

condições de vida plena e bem relacionado com o meio ao qual convive e habita. Portanto,

as duas ideologias se manifestam no discurso de Dilma mais uma vez: de um lado o

tecnicismo objetivista abstrato e de outro o humanismo subjetivista.

Em outro trecho muito eloquente da fala da presidente, nota-se que a Qualidade de

vida tem um grande valor humanizador, humanístico, pelas vozes que ressoam do

discurso (entre as linhas 187 e 217), em que o trato humano aparece como dever do Estado

(biopolítico), distanciando-se do Leviatã hobbesiano, pois aqui o Governo tem larga

preocupação com as camadas do povo, com a saúde dele, com as vidas em questão, que

vale reler com maior acuidade:

Nós sabemos que devemos atender a todos os brasileiros, mas devemos ter um
compromisso, sobretudo, com as populações mais pobres e mais fragilizadas
do nosso país. E sabemos, também, é bom que se diga isso e se reafirme, como
é entranhada e resistente a desigualdade no acesso ao serviço de saúde,
entranhada e resistente. Por isso é preciso atacá-la com muita energia e
absoluta prioridade. E é isso que faz e que exige a determinação e o
compromisso que é o que caracteriza o Mais Médicos.
Sabe, Padilha, não é coragem não, é dever, porque quando é o dever, não
pode haver nada entre a gente e o objetivo que seja intransponível e é isso que
nós hoje estamos transpondo, essa distância que há e essa diferença que há no
acesso à saúde pública e aos médicos em nosso país.
Nós sabemos que a desigualdade começa, por exemplo, na oferta
insuficiente de médico nas periferias das grandes cidades. Padilha aqui relatou
vários bairros de Salvador, um dos, o quarto maior estado em população do
nosso país. Nós sabemos também que aparece nos estados da região norte e
nordeste, o nosso prefeito de Granja se referiu a isso, aparece nas periferias das
cidades de estados, considerando os demais, razoavelmente ricos, como é o
caso lá na prefeitura de Porto Alegre que o prefeito Fortunati já relatou e nos
municípios do interior, como foi dito aqui pelo prefeito de Granja, nos
209

municípios fronteiriços do nosso país, para as populações indígenas, pros


quilombolas, enfim, pra todas as populações excluídas do nosso país. Agora
nós queremos que eles tenham médicos é isso e disso que se trata. Eu quero
dizer pra vocês que também é importante lembrar o pro... o efeito que a
ausência de médicos nos postos de saúde produz nas UPAs, produz nos
hospitais, o que significa em aumento de filas, em aumento de custo para o
próprio país. Não se trata pura e simplesmente de atender a questão da
desigualdade. Se trata, sobretudo, de atender a desigualdade, mas se trata
também de estruturar essa grande conquista brasileira que é o Sistema Único
de Saúde. Porque o Sistema Único de Saúde é algo que nós conquistamos, e é
interessante que tenhamos feito isso juntamente quando conquistamos a
democracia. Não é de graça que isso ocorreu. Então, resolver a questão dos
Mais Médicos é de fato reconhecer a importância do Sistema Único de Saúde
e dar a ele, dar a ele cada vez mais força e coluna vertebral de sustentação.
Mais médicos nos postos de saúde, mais médicos na atenção básica vai
significar sempre menos doença e é essa a equação política fundamental. Mais
médicos, menos doença. (Os grifos são meus) (ROUSSEFF, 2013, s.n.)

Torna-se nítido como há um forte discurso pautado nas relações da vida, de saúde,

de qualidade de vida, na fala, aqui representada pela presidente da república do Brasil.

Contudo, esta fala é um exemplo do que os governantes do mundo em prol das

democracias contemporâneas devem exercitar: sua humanidade, seus governos como um

dever, pois são representantes legais de um público democrático, quando eleitos por voto

direto, quando eleitos em um período histórico que coloca o ser humano em um patamar

de vozes jurídicas, estatísticas, qualitativas, ontológicas, políticas, ideológicas, químicas,

psicológicas e discursivas. O que Dilma discurso é um dever que todo governante deve

ter com seus eleitores e cidadãos. Em um primeiro momento, não faz mais que seu dever.

É preciso separar uma fala contemporânea da pequena temporalidade e colocá-la

no tempo grande, como exercício do Devir, pois quando se faz isso, nota-se que um

discurso não surge ou surgiu do nada, ou à toa; mas vem das disputas ideológicas

anteriores, e surge como resposta à questões postas na realidade, ou como contrapalavra

às palavras de oposição, por exemplo, há um discurso muito evidente do Capitalismo

reificador, em que pessoas são cada vez mais egoístas e vivem em meio a uma
210

“modernidade líquida” (BAUMAN, 2001)61; mas por outro lado, há um discurso também

muito evidente em grandes estadistas contemporâneos preocupados, ou melhor, ocupados

61
Lemos o mundo com os olhos que temos, porém nossos olhos podem mudar o que vemos e o que vemos
pode passar a ser diferente daquilo que outrora acreditávamos. Na última semana de aulas em 2012, uma
aluna, candidata à medicina USP, trouxe-me a convicção de que Zygmunt Bauman em "Modernidade
Líquida", defendia, no capítulo 1 - "Emancipação", uma sociedade regrada, totalitária, hegemônica, segura,
que daria as possibilidades ao sujeito de se tornar cidadão, justamente, por ser a sociedade totalitária, em si
mesma, o símbolo maior do ápice civilizatório, pois nela temos a possibilidade de vivermos bem, com
qualidade, podendo ascender socialmente por méritos individuais e que apaga, em nós, o desconforto da
indecisão, da dúvida. Qual a justificativa? De que tudo é medido, já previamente pensado e testado, sendo
que nós, seres humanos, não teríamos a inóspita tarefa de duvidar mais. Assim seria para nós mais fácil,
justo e bom seguir regras. Que humanos seres seríamos se apenas seguíssemos as regras?! Somos, com
isso, meros cativos ao sistema e felizes por pertencermos a ele?! Indignei-me com Bauman, por ter causado
tal interpretação. Embora soubesse que não eram dele aquelas palavras, principalmente de um sociólogo
polonês. Indignei-me com os olhos que leram aquilo e reproduziram tal dizer: de que são os homens felizes
na sociedade em que vivemos, na Europeia por exemplo (na qual a xenofobia, a crise financeira, o
desemprego e as intolerâncias já afastariam qualquer tipo de ser, ela, a fonte inspiradora de uma sociedade
exemplar sem "dúvidas"). Bauman usa desse argumento [de que a indecisão é desconfortável ao sujeito
pós-moderno] para justamente desconstruí-lo. Chega a dizer que a base de tudo aquilo que chama de Sólido,
é justamente o sujeito que sequer se torna cidadão, que é o estágio mínimo para que o indivíduo se torne
um indivíduo de fato [liberto e consciente de todos os seus papéis como cidadão, sujeito agente histórico e
indivíduo consciente de suas armas na sociedade líquida]. Mas, nada como a ilustração que Bauman traz
para quebrar o argumento daquilo que é sólido, os regimes totalitários, hegemônicos que nos enganam, nos
ludibriam, nos deixam confortáveis em nossas casas, "chafurdando" na lama de discursos. Bauman escolhe
a metáfora do líquido justamente para distinguir do que é sólido, do que é totalitário. E sabemos a partir de
Marx, no Manifesto de 1848: "Tudo o que é sólido se desmancha no ar." Valeria ouvir Saramago, escritor
português, também nestas horas, por sua ironia: "Vivemos um tempo de verdades múltiplas. As absolutas
morreram. Só a mentira é Global." Bauman e Saramago sabem que a mentira que se tornou global tem a
mesma casa: os discursos monológicos e hegemônicos, tratados como verdade absoluta e sólida, totalitária
e ditatorial. Sabemos que toda monologia apaga as diferenças, oblitera vozes, caça pensamentos e tolhe
autonomias. Marx, Bauman e Saramago são três dos sabem que o sólido como verdade se desmancha no ar
do tempo que oxigena as vidas. Indo mais adiante, segundo Bauman e também segundo Platão, pelo "Mito
da Caverna", há muito perigo nisso: o dos porcos não se verem, e nem sequer vislumbrarem, como seria ter
a forma humana ou ver o que há além das sombras nas paredes da Caverna e no porquê da falta de cores
delas. O de não sonharem em ter a dúvida. O perigo é o de não sentirem o desconforto da dúvida os mover,
mas apenas os instintos. Por isso Bauman traz a Odisseia como ilustração, e mostra como agem os "porcos",
ou melhor, como age uma sociedade apolítica quando surge o fator libertador [que neste caso se ilustrará
na figura de Odisseu]: Numa versão apócrifa da Odisseia ("Odysseus und die Schweine: das Unbehagen
an der Kulitur"), Lion Feuchtwanger propôs que os marinheiros enfeitiçados por Circe e transformados
em porcos gostaram de sua nova condição e resistiram desesperadamente aos esforços de Ulisses para
quebrar o encanto e trazê-los de volta à forma humana. Quando informados por Ulisses de que ele tinha
encontrado as ervas mágicas capazes de desfazer a maldição e de que logo seriam humanos novamente,
fugiram numa velocidade que seu zeloso salvador não pôde acompanhar. Ulisses conseguiu afinal prender
211

com questões de inclusão, altruísmo, humanização, tolerância, socialização e qualidade

de vida (em uma perspectiva biopolítica). Em análise simplória, pode-se chegar a esses

pontos, essas duas vozes (objetivismo abstrato do capitalismo e subjetivismo humanista)

como as mais evidentes no nosso mundo, porém não se pode esquecer que são disputas

ideológicas que ceifam vidas e melhoram outras em menor escala.

É louvável, portanto, ler em um discurso do maior representante da nação, da

comandante em chefe, da presidente da república, a clara preocupação democrática em

dar concretude e respostas às “vozes das ruas” (Jornadas de Junho de 2013). Mas não

nos iludamos com o que é feito, pois os jogos políticos e econômicos estão cada vez mais

afastados da grande população, é preciso que o sujeito jurídico de cada cidadão esteja

atento e cada dia mais consciente dos jogos de poder que cada signo verbal traz à tona;

por isso, pensar saúde como qualidade de vida é uma trilha para um fazer político mais

cotidiano e vital dentro do processo democrático, porque o sujeito passa a pensar em

qualidade de relações, passa a cuidar do outro mais imediato, pois é no cuidado que o

outro recebe que ele passa com maior educação, gentileza e respeito ao que outro espera.

Em uma conta simples podemos usar uma analogia, já que o acúmulo de riquezas cresce

um dos suínos; esfregada com a erva maravilhosa, a pele eriçada deu lugar a Elpenoros - um marinheiro,
como insiste Feuchtwanger, em todos os sentidos mediano e comum, exatamente "como todos os outros,
sem se destacar por sua força ou por sua esperteza”. O "libertado" Elpenoros não ficou nada grato por
sua liberdade, e furiosamente atacou seu "libertador": Então voltaste, tratante, intrometido? Queres
novamente nos aborrecer e importunar, queres novamente expor nossos corpos ao perigo e forçar nossos
corações sempre a novas decisões? Eu estava tão feliz, eu podia chafurdar na lama e aquecer-me ao sol,
eu podia comer e beber, grunhir e guinchar, e estava livre de meditações e dúvidas: "O que devo fazer,
isto ou aquilo?" Por que vieste? Para jogar-me outra vez na vida odiosa que eu levava antes? (BAUMAN,
2001, p. 25). Aos meus olhos a vida odiosa e humana é bem melhor justamente pelo desconforto que temos
em relação ao mundo, aos Outros e a nós mesmos. Por isso evoluímos, por isso erguemo-nos humanos:
pela dúvida! Em suma, Bauman, sabe que o que dá liquidez à sociedade é a dúvida e não seu contrário.
Portanto, há uma Humanística bakhtiniana em Bauman.
212

em uma vertical e não se espalha, enquanto o acúmulo de pobreza se espalha na

horizontal. Sendo assim, quanto mais um sujeito acumula riquezas, mais sobe na vertical,

porém ao lado se espalha um acúmulo contrário. A saída não é só a socialização do capital

individual (ou mesmo da taxação das heranças, como cobra Thomas Piketty no livro de

não-ficção mais vendido no ano de 2014, O Capital no século XXI)62, embora possa ser

para muitos, mas a distribuição de cuidados com a população mais carente. Pois ao cuidar

do outro, a qualidade de vida do “rico” aumenta, e consequentemente a do “pobre”

também. Assim são os dados dos países mais desenvolvidos, escandinavos, por exemplo,

onde os sistemas de saúde e educação são 100% públicos, gratuitos e de invejável

qualidade. A saída dos países escandinavos foi simples, espalha-se qualidade, educação

e preocupação com a formação da cidadania, consequentemente se aumenta a qualidade

de vida, e por isso os melhores índices de IDH são nórdicos, ora a Noruega em primeiro,

62
Piketty está questionando a mesma crise de paradigma das ciências, da Saúde até a Qualidade de Vida,
ao escrever sobre economia e desigualdades no seu “O capital no século XXI”: “De um ponto de vista
estritamente teórico, pode haver outras forças que aumentem o grau de igualdade. É possível, por exemplo,
supor que as tecnologias de produção tendem a exigir uma capacitação crescente do trabalhador, de tal
modo que a participação do trabalho na renda deveria aumentar (enquanto a do capital deveria diminuir),
algo que poderíamos chamar de “hipótese do capital humano crescente”. Ou seja, o progresso da
racionalidade tecnológica deveria conduzir automaticamente ao triunfo do capital humano sobre o capital
financeiro e imobiliário, dos executivos mais habilidosos sobre os acionistas, da competência sobre o
nepotismo. Se assim fosse, a desigualdade se tornaria, por natureza, mais meritocrática e menos estática
(embora não necessariamente mais baixa) ao longo da história: a racionalidade econômica, nesse caso,
levaria à racionalidade democrática. Outra crença otimista muito difundida na atualidade é a ideia de que
o aumento da expectativa de vida faria com que a “luta de classes” fosse substituída pelas “lutas de
gerações” – uma forma de conflito muito menos polarizada e aguerrida do que os conflitos de classe, pois,
afinal, todos seremos jovens e velhos em algum momento de nossas vidas. Esse inexorável fato biológico
supostamente leva a crer que a acumulação e a distribuição da riqueza não mais conduziriam a um
confronto implacável entre as dinastias de herdeiros e as dinastias dos que nada possuem além da sua
força de trabalho, mas sim a uma lógica de poupança do ciclo da vida: as pessoas constroem seu
patrimônio durante a juventude para que possam manter determinado padrão de vida na velhice. O
progresso da medicina, aliado à melhorias da qualidade de vida, muitos argumentam, teria transformado
por completo a própria natureza do capital.” (PIKETTY, 2014, p. 28)
213

ora a Finlândia, Suécia, Dinamarca. Saúde definitivamente é Qualidade de vida e a fala

da presidente deixa bem evidente esta voz, fantasmagórica, contemporânea. Um espectro

humanitário ronda nossos tempos.

Na fala da presidente os números são claros, desde os dados concretos que o

programa quer atingir, 23 milhões de brasileiros, ao vislumbre de ter até o final do ano de

2014 cerca de 13 mil médicos no Programa Mais Médicos. Contudo, uma voz que

precisava ser respondida e levantada na fala da presidente seria a da classe médica, a das

críticas da classe médica (TEXTO 2, 4 e 7), outrora chamada de “elitista” por parte da

população, da imprensa e até mesmo por parte do governo. Passar pelo período atual do

Brasil de hoje, anos de governo FHC – Fernando Henrique Cardoso -, LULA – Luiz

Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff (governos neoliberais e em que os ideias

democráticos estão ainda se consolidando, desde 1994), sem tocar no litígio discursivo

que é o Programa “Mais Médicos” frente os conselhos de medicina brasileiros, seria

deixar para trás um arcabouço riquíssimo de disputas políticas advindas de raízes culturais

oligárquicas, aristocratas e hereditárias do Brasil contemporâneo. E Dilma dá voz e

respostas ao que entende como medicina e como médicos “generosos”, em todo o

discurso, mas de forma mais direta no trecho:

Eu que também queria dizer que o Mais Médicos é um reconhecimento à


medicina e ao papel do médico, tanto do médico especialista, quanto do
médico..., do médico da atenção básica, do médico da saúde da família. E é um
pacto. É um pacto, não só pela saúde, mas é um pacto que nós estamos fazendo
com a classe média... com a classe médica, com os médicos que estão aqui nos
ajudando, com os médicos recém-formados desse país, com o Brasil do norte,
com o Brasil do nordeste, com o Brasil do interior; sobretudo, esse é um pacto
generoso e é um pacto humano. É um pacto em prol da saúde da população. E
para nós ele é fruto dessa parceria que hoje nós estamos fazendo com todos os
médicos do nosso país que atuarão nesta área e com todos os médicos que
vieram dos outros países, se formaram em outros países, e que vieram nos
ajudar. (Os grifos são meus) (ROUSSEFF, 2013, s.n.)
214

A resposta de Dilma é para a classe médica, há esta clara presença da contrapalavra

à classe médica. E a escolha da comandante em chefe da nação é pelo discurso humanista,

humanitário, em que valoriza o trabalho “generoso” do médico por vocação em

detrimento do médico que escolheu a profissão por status econômico e político (segundo

relatório do IPEA de 2013, a profissão médica no Brasil é a mais rentável para

investimentos)63. Há uma forte disputa política no Brasil, evidenciada pela disputa de

classes. Hoje, no Brasil, regiões como o sudeste têm um número exorbitante de médicos

em comparação com o norte e nordeste, e variados são os motivos: as melhores escolas

de especialização em medicina estão no sudeste; os recursos em tecnologia são maiores

em escolas de espacialização; os financiamentos para pesquisa são mais vantajosos no

sudeste; as possibilidades de ascensão financeira e de qualidade de vida estão também no

sudeste; além de um forte histórico político oligárquico na região mais populosa do país.

Mas tudo isso pode ser mudado com vontade política e conscientização da população e

dos novos profissionais da saúde, assim parece ser o intuito, segundo a fala da presidente

ao sancionar a lei do Programa “Mais Médicos”, das novas medidas governamentais que

63
“Medicina é a carreira de ensino superior com o melhor desempenho trabalhista e com maior escassez
de profissionais, revelou estudo do Ipea (Instituto de Política Econômica Aplicada). Um ranking criado
pelo instituto considerando quatro variáveis salários, jornada de trabalho, cobertura previdenciária e taxa
de ocupação mostrou que os médicos têm o melhor resultado global. Considerando dados de 48 profissões
de todo o país, medicina é a carreira que oferece o maior salário médio (R$ 6.940,12) e a maior taxa de
ocupação (91,8% dos profissionais estão trabalhando). Além disso, possui a décima maior cobertura
previdenciária: 90,7% dos trabalhadores tem algum plano de aposentadoria, seja público ou privado. O
bom desempenho da categoria nesses três critérios compensou o posicionamento ruim no ranking de
jornada de trabalho. Dos 48 grupos de profissionais analisados, o de médico é o quarto que mais trabalha.
Sua jornada média semanal é de 42,03 horas. De acordo com Marcelo Neri, ministro interino da Secretaria
de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e presidente do Ipea, os números revelam que há
uma escassez de médicos no país.” (Folha de São Paulo, julho de 2013) – Acessado em 21 de janeiro de
2015.
215

se preocupam com a Saúde como Qualidade de Vida contingencial, e não mais classista

ou elitista.

Em cada signo ideológico há um confronto de vozes, do passado, da história, do

presente, e até mesmo do devir, do futuro. Assim Mikhail Bakhtin nos legou um modo de

pensar muito orgânico e próximo à vida, escolhendo o diálogo, e não apenas a

conceituação; a dialogia, e não simplesmente, a dialética idealista. A vida gira em

constantes cronotopias e é preciso colocar o humano do homem como centro, pois é dele

o nosso sustento em acreditar que é pelo diálogo, como utopia alcançável; pela palavra

com signo da consciência; e pela ciência, como interpretação humana, que podemos

tornar a saúde muito mais cheia de qualidade de vida, por ser ela fruto orgânico, genético,

interacionista e político do que nos torna mais profundamente humanos: as relações da

vida.

Ter saúde no mundo contemporâneo é, definitivamente, resistir aos discursos do

mercado objetificador, que interpela as individualidades em apenas consumidores; é

renunciar as discursos que transformam o homem em mero receptáculo de informações e

desinformações; é escolher a força irrupdora da palavra como resposta, como revolta,

como revolução, como devir, como utopia, como símbolo da potencialidade humana em

cuidar da vida; é escolher o olhar de contraste para revelar as opressões e negá-las a cada

respiração do corpo que ainda vive.

Estamos, portanto, frente ao criado, olho no olho64, caça e caçador, língua e

linguista, homem e vida.

64
Tornou-se pertinente, ao longo do paralelo metafórico que se fez do pesquisador ser uma espécie de
caçador das origens, que mostrar qual a importância de se estar frente a frente com o objeto de pesquisa é
fundamental, não apenas manipulando o corpus, mas em relação com ele, deixando o dado se dialogizar
216

como criado, deixando a novidade agir no devir. Há contudo, um poema de Paulo Leminski muito
pertinente e que diz: "eu/quando olho nos olhos/sei quando uma pessoa/está por dentro/ou está por fora/
quem está por fora/não segura/um olhar que demora". Estes versos reafirmam uma prática do dia a dia que
diz muito sobre as pessoas: o que o olhar delas sustenta. No Brasil, se muito olhamos nos olhos das pessoas,
com uma demora maior, logo encontramos uma cordialidade já miscigenada com o modo de falar e de ser
que sustenta o brasileiro (que penso ser uma característica muito positiva, exemplar ao mundo em conflitos
religiosos e políticos). Embora, haja também uma aparente falta de senso crítico, de leitura da realidade
política, da cultura do debate, que poderiam contribuir para questionar se o olho no olho é um lugar de
respeito, de tolerância e construção de qualidade de vida; mas isto, temo, que venha se perdendo. É preciso
o olho no olho com o Devir. É preciso ouvir as razões do outro e para ver o que se cria de novidade do
encontro de alteridades. Vendo quem está por dentro ou quem está por fora. Por isso olhar do pesquisador,
como o do caçador, deve intimidar a ponto de paralisar ou estabilizar o corpus de análise, mesmo sendo ele
um signo dialógico (ideológico e em movimento), o nosso olhar tem que se demorar, com vontade de
entendimento, de ausculta e de revolução. Parafraseando Frida Kahlo (artista plástica mexicana): "onde não
puderes ‘revolucionar’. Não te demores". O caçador, enquanto pesquisador, deve estar disposto a mudar de
vida e de postura a partir da nova descoberta ou dos reais perigos que a caça traz para sua sobrevivência. O
Homem frente a Qualidade de Vida está em crise, olho no olho, e se movendo para um Humanismo que
precisa responder ao olhar ferino do mundo mecânico objetivista e reificador, que o quer produtivo,
eficiente ou morto. É preciso ficar atento, pois a caça pode virar o caçador.
217

CAPÍTULO ÚLTIMO - O DEVIR

“Eu tenho uma ideia fixa: o porvir.


E se não vir? dirão os incrédulos.
Não importa para mim sabê-lo;
O que importa é trabalhá-lo.”

[Mário Jorge]
218

CONCLUSÃO

“É necessário ter uma nova


admiração filosófica antes de
qualquer coisa: tudo poderia ser
outra coisa. É preciso olhar o
mundo da mesma maneira como
se lembra da infância, amá-lo
como se pode amar algo ingênuo
(a um menino, a uma mulher, ao
passado)”.
[BAKHTIN]

Chegamos ao ponto final, olho no olho com a caça que buscávamos, fica nítido que

crontópica é a língua, que dialógica é a palavra (PONZIO, 2013, p.42), que utópico é o

humano do homem, por isso a caça não pode ser mais presa: pois temos diante nossos

olhos o mais vasto e promissor humanismo ético.

Disse na introdução desta tese que toda trajetória culminava na revelação que está por

trás da expressão “é notório” (na segunda linha do trecho do artigo publicado por Felipe

Scalisa na FSP – TEXTO 1 do Exemplo de Pequena Temporalidade) com a conotação de

que algo está nítido, claro para todos, evidente para todos. Mas será que ficou tão claro

assim depois de escolher uma forma conjectural de análise, baseada em Ginzburg (1983),

no cotejamento de Geraldi (2012) e na metodologia para ciências humanas de Bakhtin

(2011)?

Afinal fazer uma ciência conjectural é moldar um conhecimento indireto, e segundo

Bakhtin, as imagens só se revelam no tempo grande, por isso podemos partir da análise

da pequena temporalidade, como um pequeno exemplo e reflexo do amplo. Só podemos

partir da materialidade dos textos (foram 10 TEXTOS, no total, retirados da Folha de São

Paulo, até chegarmos ao discurso da presidente Dilma Rousseff) por meio de cotejamento

de comentários entre eles, para que se revelasse o contexto mais amplo e as disputas mais
219

densas. Contudo, ficou evidenciado que há dois pilares em debate intenso: primeiro, o

sistema formador de seres humanos; segundo, os seres humanos formadores dos sistemas

ideológicos; mas no meio dos dois estão as duas forças ideológicas que movimentam a

tese, em disputa: o mecanicismo e o humanismo.

Mas para encontrá-las com suas marcas e evidências tivemos que buscar uma pista

interpretativa, para que pudéssemos sair à caça do que “é notório”. E esta expressão foi

apenas uma peça pequena no cenário do que buscávamos como sendo a Humanística (mas

erroneamente), para que o todo se revelasse nas disputas em jogo, texto por texto,

exemplo por exemplo, nas ideologias. Havia dizeres opacos em todos os textos (nos

exemplos da pequena temporalidade) que deram conta, pois serviram de cotejo para que

a disputa entre duas ideologias ficasse clara: de um lado, a postura de mundo mecânico,

autoritário, valorizador da meritocracia, antidemocrático e funcional (objetivismo

abstrato) e de outro, um humanismo da alteridade infuncional (subjetivismo), e nos textos

havia a declarada tensão entre essas duas ideologias, que nos deixam brilhar aos olhos a

faísca do Humanismo ético bakhtiniano, que é aquele que entende Qualidade de vida

como o encontro de alteridades, o diálogo das diferenças, o cuidado com a dignidade do

Outro, como uma forma de amor próprio, pois nessa ética o EU é um Outro/EU, e não

uma forma abstrata e mecânica de vida no mundo.

Nascem leitores de Bakhtin todos os dias. Estamos sedentos por maneiras


de viver e pensar que não repitam mais modelos hierárquicos, autoritários e,
enfim, antidemocráticos. A filosofia bakhtiniana enredada desde a atividade
estética nos possibilita inicialmente a compressão do Outro como contrário do
Eu; em decorrência nos permite entender que a cura para toda segregação,
totalitarismo e dogmatismo está na irredutibilidade do Outro, pois criando
relações humanizadas gera-se interação e, mesmo se essa for turbulenta, ainda
assim ela me constitui. Nosso poder está em abrirmo-nos ao Outro, ir em busca
do Outro, ao encontro com o Outro. (SILVESTRI, 2012, p. 174)
220

A disputa entre as duas ideologias faz o humanismo da alteridade surgir como busca

utópica, contudo é preciso que este humanismo lute pela infuncionalidade dentro de um

sistema que oprime, que coloca o capital como objetivo único, funcional e divino, quando

as relações da vida se espelham apenas no capital, temos um mecanicismo objetivista,

que encontra função somente naquilo que é produtivo; porém é hora de olhar para “o

direito de alteridade que diz respeito ao “direito” à infuncionalidade” (PONZIO, 2010, p.

142). Pois, é preciso fazer frente como um filósofo infuncional, um intelectual

infuncional, um poeta infuncional a um mundo mecânico, autoritário, antidemocrático,

prosaico, que cobra apenas o direito de identidade, de funcionalidade, de eficácia e de

produtividade65. Afinal, “o poeta deve compreender que sua poesia tem culpa pela prosa

trivial da vida.” (BAKHTIN, 2013, p. XXIX).

65
Para falar sobre infuncionalidade é preciso fazer uma nota de rodapé mais larga, e que seja movida por
pura licença poética:"a linguagem não é alguma coisa de imóvel, fornecida de uma vez por todas, e
rigorosamente determinada em suas “regras” e em suas “exceções” gramaticais. Ela é um produto da
vida social, a qual não é fixa e nem petrificada: a linguagem encontra-se em um perpétuo devir e seu
desenvolvimento segue a evolução da vida social. A progressão da linguagem se concretiza na relação
social de comunicação que cada homem mantém com seus semelhantes." – (Volochínov. In: “Estrutura do
Enunciado”, de V.N. Volochínov - 1930). O Perpétuo Devir funciona “de único para único”. Assim, de
único para único, que Bakhtin revolucionou mais uma vez boa parte do pensamento científico. Para mim,
o homem é aquilo que escolhe (ato responsável e vivo no presente, como a escolha de cada palavra) e sonha
(aquilo que o futuro determina). E que Jacques Derrida vaticinou em uma frase:"Herdeiro não é alguém
que apenas recebe, mas alguém que escolhe". Ou no verso: "Nenhuma árvore explica os seus frutos,
embora goste que lhos comam." (Miguel Torga). Tanto Torga quanto Derrida parecem inverter um conta
comum da sociedade capitalista, já que nela parece valer o resultado ou a função das coisas. Para Torga,
como para Bakhtin, como para Geraldi, Miotello e Ponzio o que parece importar é o processo tanto quanto
a finalidade ou a funcionalidade, tanto quanto a INFUNCIONALIDADE. Basta inverter uma conta. Um
simples resultado seria, resultado infuncional: O que determina o homem é seu futuro (Geraldi - adaptado),
como o que explica a existência da árvore é a natureza de seu fruto (Sócrates- adaptado). Como se o que
fosse importante é a própria importância que se dá ao que é importante. Como o que torna algo importante
é o quanto de sonho há nele. Sendo assim, todo ser humano é importante, e torna-se mais quando damos
chance aos sonhos! Bakhtin é uma inversão da ciência atual – racionalista, mecânica e ainda atual. Bakhtin
não nega a lógica, apenas a desinventa. Como Manoel de Barros que “Desinventa” o nosso pensamento e
faz a gente carregar água na peneira como um menino: “Tenho um livro sobre águas e meninos./ Gostei
mais de um menino/que carregava água na peneira./ A mãe disse que carregar água na peneira/era o
221

Não há como afastar para um pensador de cultura, por exemplo, a medicina das

ciências das humanas, pois são, ambas, uma reflexão necessária para a oxigenação do

corpo vivo que são todos os campos científicos perante à filosofia. Se voltarmos à

expressão “é notório” do texto de Scalisa, notamos que ela não só conversa com pontos

fundamentais de todo o trabalho de construção do texto final de doutoramento,

principalmente com o discurso de Dilma em 22 e outubro de 2013, e do olhar da pesquisa,

como laço definitivo/provisório também de minha memória pessoal, familiar e trajetória

profissional, mas fez valer e ressaltar que o ponto nevrálgico de todo o trabalho é o olhar

de contraste e a tensão entre discursos, entre culturas, entre ideologias presentes no

mesmo tempo grande ou pequena temporalidade, cuja tensão foi matéria de estudos de

Heráclito (o filósofo do "tudo flui enquanto resultado da tensão contínua dos opostos em

luta") e é da Filosofia Política de Rancière, que diz que: “A instituição política é idêntica

mesmo que roubar um vento e sair/ correndo com ele para mostrar aos irmãos./ A mãe disse que era o
mesmo que catar espinhos na água/ O mesmo que criar peixes no bolso./ O menino era ligado em
despropósitos./ Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos./ A mãe reparou que o
menino/gostava mais do vazio/do que do cheio./ Falava que os vazios são maiores/e até infinitos./ Com o
tempo aquele menino/que era cismado e esquisito/ porque gostava de carregar água na peneira/ Com o
tempo descobriu que escrever seria/o mesmo que carregar água na peneira./ No escrever o menino viu/
que era capaz de ser/noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo./ O menino aprendeu a usar as palavras./
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras./ E começou a fazer peraltagens./ Foi capaz de
interromper o vôo de um pássaro/ botando ponto final na frase./ Foi capaz de modificar a tarde botando
uma chuva nela./ O menino fazia prodígios./Até fez uma pedra dar flor!/ A mãe reparava o menino com
ternura./ A mãe falou:/ Meu filho você vai ser poeta./ Você vai carregar água na peneira a vida toda./ Você
vai encher os vazios com as suas peraltagens e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos.”
(Poema de Manoel de Barros - Retirado do livro: Exercícios de ser criança). Manoel de Barros é um
desinventor. Inverte como num hipérbato os discursos hegemônicos e capitalistas. Inverte a óptica do olhar
o mundo. Inverte o fluxo lúdico-seriedade, ou os sonhos-realidade. Constrói o fluxo duplo daqui para lá de
lá pra cá. Desinventa a poesia - faz uma “metapoesia”, ao falar de onde nasce o poeta; - faz uma
metalinguagem, ao falar do que se constrói os poemas; faz uma metalinguística, ao falar que a linguagem
do olhar deve ser inversa ao olhar comum e prosaico. [Des]inventa e promove poesia. Bakhtin é isso: uma
desinvenção poética, como a de Manoel de Barros! Pois era único ao falar "de único pra único"! Ao fazer
da filosofia, uma obra cheia de INFUNCIONALIDADE.
222

à instituição da luta de classes. A luta de classes não é o motor secreto da política ou a

verdade escondida por trás de suas aparências. Ela é a própria política.” (1999, p. 32)

Por um lado, não há segredo na teoria bakhtiniana, pois são duas ideologias em tensão

latente, que fazem da palavra cronotopia, da língua dialogia e do humano do homem uma

utopia66: o objetivismo abstrato e o subjetivismo individualista, estas são as duas

ideologias. A língua está em um perpétuo devir em suas variáveis cronotopias entre as

forças centrífugas e forças centrípetas; a palavra está em permanente diálogo com as

perguntas fundamentais entre a ideologia oficial e a ideologia do cotidiano da história; o

homem está em perene estágio de acabamento e incompletude entre o tecnicismo

objetivista abstrato e o humanismo subjetivista. Não há mistério, portanto, em dizer que

a tensão, o embate, o conflito, entre o instável e a vontade de estabilidade movem o pensar

de Bakhtin e todo a nossa pesquisa, portanto, não há como negar que a palavra, nesta tese,

é signo de resistência, de diálogo, de utopia e de posicionamento histórico com olhar de

contraste como requer uma filosofia para o ato responsável (2010), que responda que

66
O entendimento de “utopia” deve ser próximo a algo como meta a ser buscada eticamente, que ainda não
fora alcançada, mas que se caminha para que ela aconteça. Muito da Filosofia da Linguagem de Bakhtin
tem na utopia o seu motor, seu humanismo ético. Por exemplo, o diálogo era uma categoria utópica para
Bakhtin, ainda mais, dentro do regime totalitário de Stalin, a que o pensador russo fora oprimido de
conversar com os amigos e por isso perdera todos os seus colegas de debate do Círculo de Bakhtin. Mas
isso não quer dizer que é uma categoria utópica por ser abstrata, ou impossível de ser alcançada, pois em
certas situações há que se ter utopias para mover a realidade, como uma filosofia de um ato responsável,
em que se valoriza o ato, como passo singular de cada um e que não pode ser substituído em seu dever de
responder, de ter o ato responsável. Contudo, a melhor definição de utopia foi registrada pelo escritor
uruguaio Eduardo Galeano: "A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois
passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei.
Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar". O humano do Homem
sempre foi a utopia de toda a filosofia da cultura de Mikhail Bakhtin, promovendo o que chamo de
Humanismo ético bakhtiniano e merece uma defesa de tese de doutoramento, e muitos outros estudos e por
inaugurar uma linguística da escuta e não apenas da fala.
223

quando a palavra migra seu valor social, sua signicidade, muda também sua

contextualização, sua dialogicidade e sua atividade, como é o caso de “Saúde” para

“Qualidade de vida”.

E em que se conclui e consiste a palavra como arma de resistência? Ou em que diálogo

ou em que utopia ou em que posicionamento histórico? A resposta é simples. Consiste no

entendimento do ser humano como um ser vivente cultural, o ser que em relação dialoga

com densidade linguística, que ao nascer vai, por interação, tendo consciência e material

sígnico; que ao crescer vai, por diálogos, sendo complementado pelo olhar do Outro (pela

alteridade); que ao falar vai, por interlocuções, sendo provocado a fazer perguntas sobre

o vertical de si pelo olhar do Outro, do viver e da sociedade (talvez as três perguntas

existenciais fundamentais estejam imbuídas aí).

Como resistir frente ao que são os discursos da sociedade consumista? Lembro de uma

conversa como meu irmão mais velho (Altair), que conclui bem a ideia trabalhada de que

o pesquisador é um caçador (GINZBURG, 1983), um caçador que resiste. Aos 53 anos,

dele, frente aos meus 35 anos contando uma passagem de sua vida em que apanhara na

infância de nosso pai. Havia ali no modo de contar um ato de resistência, que ele talvez

chamaria de teimosia, outros de irresponsabilidade. Contudo, há ali no modo e no porquê

de me contar o evento, um ato responsável de resistir ao que nos cobram os discursos

hegemônicos. Somos os dois únicos irmãos homens, por isso o diálogo tem características

mais confessionais e ancestrais. Sentado à minha frente contara que indo visitar nossa

avó, Helena, na fazenda, em uma manhã de fim de semana avistou um teiú (lagarto típico

da vegetação do serrado mineiro), e logo ficou curioso para caçar o animal, ver onde ele

iria, em que toca moraria, que alimento estava buscando, que rastros deixaria. Coisa típica

de caçador de nossas origens, que busca os estalitos de galhos, os odores, as pegadas

úmidas de um animal à espreita. Este mesmo caçador que, segundo Ginzburg (1983), deu
224

origem às nossas narrativas, podendo ser o primeiro que deu nascimento à filosofia e à

poesia, pois tanto uma quanto a outra se originaram de tradições orais, de modos de narrar

e registrar os caminhos (assim nasceu a Mitologia Clássica narrada por poetas como

Homero ou Virgílio). Há, portanto, no caçador uma fonte originária do pesquisador, cuja

argúcia não pode faltar para investigar os rastros, segundo Geraldi (2012). Quando meu

irmão deu prosseguimento a narrativa, fiquei interessado no modo como ele narrava,

como se as marcas do dia estivessem 45 anos depois ainda nele. Aquele dia ficou marcado

e seus instintos de criança caçadora e curiosa estavam aflorados, pois perseguiu o lagarto

até a toca e o esperou por mais de (9) nove horas sair do buraco, para emboscá-lo e

capturá-lo, pra pura maldade, curiosidade, irresponsabilidade ou exercício de argúcia.

Obviamente que o tempo que para ele era diversão e adrenalina, para os adultos era

angústia e desespero por notícias do menino de 8 anos que desaparecera. Ao final do dia,

com o lagarto amarrado no cordão ao voltar para casa e ele já sabia que receberia uma

punição severa e violenta. Pois foi. Apanhou de forma brutal de nosso pai. A surra está

em sua memória há mais de 45 anos. E os valores daquele dia ficarão por mais duas ou

três gerações.

Mas por que ele me contara esta história e o qual a razão dela fazer parte desta

conclusão, como uma digressão? A resposta é simples. As forças da ideologia do

cotidiano são vitais para oxigenação do corpo social, ainda mais as narrativas. E naquela

história de irmão para irmão, há algo que não é banal. Talvez porque uma surra não se

esquece; mas havia mais ali no conteúdo, havia um porquê. Pois meu irmão sabia que eu

o entenderia em uma coisa, é preciso resistir no que se é. Ao encontrar o vertical de si,

sempre em relação ao Outro, não se pode desistir ao que se escolhe para ser, como em

uma Filosofia do Ato Responsável (BAKHTIN, 2010), nem renunciar aos efeitos de seus

porquês.
225

Ao longo da vida, Altair sempre foi bom em capturar animais, passa ainda hoje as

manhãs caçando pássaros, vira e mexe aparece com um pardal selvagem recolhido pelas

mãos só para mostrar o seu feito de “menino de 8 anos” que não se perde com o tempo.

Quando me contou essa história eu já sabia o que tinha a dizer: cada ser humano é uma

fortaleza de resistência para a vida e de si próprio e para o diálogo com as vidas de cada

um, a que convive. Aquilo era puramente bakhtiniano no entendimento profundo. Por que

leio assim? Porque sobre meu olhar de contraste uso lentes definitivamente bakhtinianas

para ler o mundo. E assim foi com esta tese.

É preciso resistir, e insistir com certas utopias. E o Humanismo ético bakhtiniano é a

mais plena utopia e resistência que Círculo de Bakhtin poderia nos ter legado, como se

fosse uma resistência de “menino-caçador” que sabe que seu feitio é caçar o devir, o que

ainda não cabe em nomes, ou um espectro do Devir, como fez Marx, em 1848, no

Manifesto Comunista, enquanto as ruas estavam em chamas e ninguém sabia o nome

daquilo que ocorria.

Pelo Humanismo bakhtiniano chego a algumas conclusões: 1) O que dá unidade a um

valor, a uma palavra, é a cronotopia; 2) O que garante vida à pesquisa é a dialogicidade

do objeto estudado, pelo olhar humano; 3) Não há como dissociar um texto de seu

específico contexto para que seu significado tenha tempo de renovação e tempo de

destruição; 4) Não há como se afastar da Alteridade, da pluralidade de pontos de vista,

para se ter consciência provisória/completa sobre o vertical de si mesmo; 5) O homem é

um ser vivente cultural que por meio de relações adquire valores, estética e ética, e que

carrega uma quinta ferida narcísica.

O que seria essa proposição nova que sugiro apenas na conclusão e que chamo de

ferida narcísica? O que é a quinta ferida narcísica trazida pela Humanística bakhtiniana
226

e não pelo Humanismo ético? As explicações passam por Bakhtin, pelos conceitos de

alteridade, consciência e dialogia.

“A própria consciência só pode surgir e se afirmar como realidade mediante a

encarnação material em signos” (BAKHTIN, 2009, p. 34). Basta esta sentença de Bakhtin

no Marxismo e Filosofia da Linguagem para notar que o pensador russo, como vimos ao

longo da tese, já indicava, em 1929, sua revolução de pensamento e já apontava uma

fissura no paradigma científico do chamado “Humanismo da Identidade” para dar espaço

a um “Humanismo da Alteridade” (PONZIO, 2012). Principais promotoras da ferida

narcísica. Contudo, o caminho para que Bakhtin trouxesse à tona uma revolução passou

por inverter uma conta cartesiana, o axioma filosófico do cogito ergo sum, que colocava

a consciência (o pensar, o duvidar, o cogito) como pressuposto para a existência (o ser, o

existir, o sum), sendo que a primeira só se torna encarnada em signos a partir da

germinação real das interações da vida (da segunda), ou seja, Bakhtin afirma que pensar

é consequência do existir e do interagir, pois só assim há a encarnação material em signos

na consciência dos seres humanos.

Notamos, portanto, a importância de pensarmos a categoria do Outro em


vez de pensarmos na perspectiva objetificante “Eu-Tu”. O eu penso cartesiano
estava já falido quando Bakhtin se debruça sobre essas questões. Era mais que
urgente um novo paradigma que possibilita novas relações humanas e não
objetificadas. O Eu-Tu faz do Tu um objeto da consciência do Eu. O Outro,
para pensar a contraposição do Eu, é um Outro Eu – uma pessoa – e não um
objeto. O Eu-Tu nos mantêm numa relação desigual, hierárquica, pois a
balança pende para o lado do Eu. Essa categoria do pensamento incide num
lugar comum de silêncio e do simples querer ouvir. Quando adentramos na
perspectiva da alteridade não entendida simplesmente como um objeto, mas a
constituinte da própria identidade, saímos da centralidade do Eu
autoconstituinte e dos desdobramentos problemáticos dessa perspectiva.
(SILVESTRI, 2012, p. 176)

Nessa perspectiva de Outro Eu frente à do Eu-Tu cartesiano, nasce uma perspectiva

poderosa e humanizadora, e chega causando uma ferida no ego do homem cartesiano. A


227

expressão “ferida narcísica” foi usada por Freud (1905) para indicar as perdas que o

Ego/EU humano sofrera com alguns adventos científicos, que quebraram assim algumas

ideias, outrora vistas como absolutas. Segundo Freud, foram quatro feridas: a) Copérnico

que retira o homem do planeta que era o centro do universo (consequentemente, retira o

homem do centro do universo), mostrando que o sistema astrofísico era heliocêntrico; b)

Darwin que retira do homem o caráter divino, pois ele descende dos primatas, pela

evolução biológica das espécies; c) Marx que retira um único homem do centro da

História, mostrando que a História não tem centro, pois ela existe na boca de quem a conta

e não mais apenas pela boca de uma elite, uma monarquia, um império, um rei, ou

burguesia; d) o próprio Freud faz uma ferida no ego narcísico do homem, ao dizer que

este não é dono nem da própria consciência, “da própria casa”. As quatro feridas

trouxeram a ideia cartesiana de Homem, que faz apologia apenas ao EU, para se quebrar

no chão da realidade. Ficou nítido como o EU era uma categoria filosófica fajuta, já que

o homem não se faz sozinho, se faz de relações sociais, de relações de poder, de tomada

de consciência, que só são possíveis se se adquiridas do processo da vida, das interações,

e da aquisição de signos ideológicos que alimentam a consciência, dando à ela corpo

encarnado de material sígnico.

Os signos só emergem, decididamente, do processo de interação entre uma


consciência individual e uma outra. E a própria consciência individual está
repleta de signos. A consciência só se torna consciência quando se impregna
de conteúdo ideológico (semiótico) e, consequentemente, somente no processo
de interação social. (BAKHTIN, 2009, p. 34)

A consciência é portanto nascida em um segundo momento, dias e interações depois

do nascimento do corpo, do nascimento biológico do ser. Há, então, o segundo

nascimento: o social, o da própria consciência, que se dá a partir da escuta, da interação,

de tentativas e erros, de observações e acertos. A tábula rasa hoje sabemos não é tão rasa
228

como previam os iluministas, pois os códigos genéticos já trazem cargas e informações,

porém não são eles dotados de conhecimento, atributo apenas do homem com consciência

para interpretar as informações. A interpretação, a reflexão e a consciência só são

formados a partir das interações com os signos materiais e ideológicos. A carne do corpo

biológico precisa de ‘encarnamento’ cultural. Precisa de alteridade para se identificar.

Precisa de outras consciências para ser. Precisa do embate de perspectivas e olhares

diferentes para se promover como consciência. Precisa de dialogia. Precisa de polifonia.

Precisa de heteroglosia. Precisa de excedente de visão. Precisa de cronotopia e exotopia.

Por exemplo, hipoteticamente, um garoto nascido no Brasil levado logo nos meses iniciais

de vida para a Suécia, sem seus familiares, sem contato nenhum com a cultura e os hábitos

brasileiros, irá absorver em seu nascimento social ou de consciência as marcas, interações,

perspectivas culturais do local sueco em que for criado. Mostrando que o meio lhe

possibilita as leituras futuras de um ser, mas não as determina por completo. Não há como

chegar a desastrosa conclusão que diziam os naturalistas, do século XIX, que o meio

determina o ser, pois o ser não é feito de determinismos apenas, mas de possibilidades. A

consciência do homem é um filtro sofisticado e intransferível, por isso a linguagem faz o

papel de ferramenta imperfeita, de ponte entre consciências do nascimento à morte do

indivíduo. O ser é único, indiviso, mas também é cultural, social e produto das interações.

O grande paradoxo que é o ser humano, é também sua grande salvação. Puro dialogismo.

A consciência é, portanto, o lugar onde a alteridade é encontrada em estado permanente.

A alteridade está na consciência do nascimento à morte do ser social. A alteridade é a

água interminável e sempre perene da consciência. De onde o homem, cuja sede sacia e

molha o seu amplo universo de palavras. Não há palavra sem consciência, como não há

neutralidade quando se nasce socialmente. A palavra sempre será banhada, encarnada

como signo ideológico, de cultura e alteridade na e pela consciência.


229

O cogito cartesiano sofre com Bakhtin uma quinta ferida narcísica: o homem não é

dono da primeira palavra do mundo, não é um ser adâmico hipotético a cada vez que fala.

O que o homem diz é um emaranhado de fios ideológicos que tramam sobre as

consciências; ele fala por palavras alheias e as torna próprias (ou minhas próprias/alheias)

por uma interação bem real, ‘encarnada’ e sutil, que vive perene e morre heroica em um

anonimato fatal da condição humana em si. Ferida narcísica grave, pois confirma o

Eu/Outro como centro da linguagem e da consciência, não apenas o EU (Egocentrismo

Romântico), nem apenas o OUTRO (determinismo naturalista), mas é a relação com a

alteridade que ‘encarna’ os signos e que constrói a consciência dos homens. A palavra da

consciência de um homem é sua salvação e seu paradoxo, pois é o discurso velho na

entonação do novo, do único em forma ‘irrepetível’, pois é alheio e próprio ao mesmo

tempo.

Por isso a alteridade nos identifica e a diferença nos altera do nascimento à morte, da

carne aos signos. A consciência é nossa salvação em vida, mas também nosso mais amplo

objeto e instrumento de estudos da linguagem, se assim queremos entender a ordem dos

discursos, como quis Bakhtin, em toda a sua obra, colocando o humano do homem no

centro das Ciências (Humanismo ético bakhtiniano), por meio daquilo que mais tarde

Ponzio chamou de Humanismo da Alteridade (PONZIO, 2012), e que aqui chamo de

Humanística bakhtiniana, como abertura para um novo significado e sentido para a

Saúde, que partam de lembranças, leituras, indícios e olhares:

Significado e sentido. As lembranças a serem preenchidas e as


possibilidades antecipadas (a interpretação em contextos distantes). Nas
lembranças levamos em conta até os acontecimentos posteriores (no âmbito do
passado), ou seja, percebemos e interpretamos o lembrado no contexto de um
passado inacabado. (BAKHTIN, 2011, p. 393)
230

Ao final do trabalho, fica mais claro, que ao longo da pesquisa tornou-se importante

olhar o passado como inacabado e ver que uma palavra quando agrega ao seu sentido

outros significados, muito mais que um símbolo físico se moveu, mas se movimentaram

todas as relações sociais em torno daquele antigo símbolo, tornando-o um signo

ideológico por excelência e com evidências marcadas no contexto material histórico,

como exemplos, os nascimentos da Saúde Coletiva, da Terapia ocupacional, do

Psicanalista, da Saúde Mental67, do Nutricionista, do Fisioterapeuta, do discurso de

Humanização da Saúde, da Determinação Social da Saúde, dos Programas de Saúde da

Família, do Programa Mais Médicos, dos debates acalorados sobre Qualidade de vida, da

biopolítica, da bioética e de uma necessária aproximação da ciências médicas como

reflexão das ciências humanas, pois a saúde deixou há tempos de ser um signo biofísico,

apenas, para tornar-se biopsicossocial-discursivo. E esta é minha resposta para a tensão

permanente entre a visão, puramente, mecânica e o humanismo, que precisa sempre rever

67
Estima-se, que as doenças mais incapacitantes do século XXI sejam as tratadas pela Saúde Metal. Por
exemplo, a depressão é hoje a terceira maior, atrás apenas de alcoolismo e doenças respiratórias. Mas para
linhas da Medicina Oriental, por exemplo, as doenças respiratórias estão relacionadas com a tristeza,
portanto poderão ser incluídas como Doenças Mentais nos próximos anos. Tudo começa por encarar a falta
de tratamento como um dos mais importantes problemas de saúde mental de hoje. Descrevendo
inicialmente a magnitude e o ônus das perturbações mentais e comportamentais. O capítulo mostra que são
comuns, afetando 20% -25% de todas as pessoas, em dado momento, durante a sua vida. São também
universais, afetando todos os países e sociedades, bem como indivíduos de todas as idades. Estas
perturbações têm um pronunciado impacte econômico, direto e indireto, nas sociedades, incluindo o custo
dos serviços. É tremendo o impacte negativo sobre a qualidade de vida dos indivíduos e famílias. Há
estimativas de que, em 2000, as perturbações mentais e neurológicas foram responsáveis por 12% do total
de anos de vida ajustados por incapacitação (AVAI) perdidos, por todas as doenças e lesões. Prevê-se que,
até 2020, o peso dessas doenças terá crescido para 15%. E, no entanto, apenas uma pequena minoria das
pessoas atualmente afetadas recebem tratamento. Ou seja, em 2020, estima-se que as Doenças Mentais
sejam o principal agente incapacitador dos seres humanos, e sendo a depressão a maior dentre elas.
Contudo, torna-se nítido que o homem deve lutar contra as forças de um capitalismo mecânico e reificador,
por meio de uma resistência consciente, que aponte a qualidade de vida como centro das ciências e um
cuidado humano, demasiado humano, como pilar de resistência.
231

seus limites em um mundo cada vez mais construtor de patologias. O homem diante a

essa cronotopia e cultura, deve inspirar-se em Quíron (minotauro, símbolo mitológico da

medicina), permanentemente, e procurar como um caçador de pistas e evidências

discursivas a melhor forma de curar suas feridas e as dos outros. Mas tudo isso é questão

do eterno retorno. Ou melhor, tudo é questão do tempo grande, aquele que não cabe em

palavras de uma vida, mas podem falar como fizeram meus dois olhos tendo uma ideia

fixa e um trabalho constante: o Devir.

Com isso as perguntas norteadoras do trabalho, foram respondidas:

1) Quais as compreensões de Saúde/Qualidade de Vida que esta tese almeja

defender frente ao materialismo histórico do mundo capitalista neoliberal, frente à

modernização objetificadora dos seres humanos? Compreensões que olhem o binômio

Saúde/Qualidade de Vida por um viés de ciência aberta ao desconhecido, como ciência

inexata, como ciência livre à reflexão das ciências humanas, uma ciência que seja um agir

humano ético, em defesa da vida e dos direitos, mesmo que o mundo máquina ande

transformando as relações sociais em formas de reificação do Homem, em apenas

consumidor. Há uma tensão permanente que devemos enfrentar: o mundo máquina

objetificadora frente ao humanismo subjetivista que luta pela manutenção da vida pelo

lema heraclitiano do “saber viver e deixar morrer, e deixar viver e saber morrer”.

2) Almeja defender a crise da racionalidade, como um novo agir (humanística) ou

o novo agir como promotor de mais uma crise na racionalidade científica? Muito mais

nos aproximamos em defender o novo agir do humanismo do que de uma humanística, já

iniciado por Bakhtin, a partir de Nietzsche, em sua forma genealógica de romper com a

racionalidade filosófica, cobrando a vida em suas regularidades e tragédias para dentro

das ciências, ou passando por Foucault, que bebe da fonte genealógica de Nietzsche para

falar que estamos no “oco da noite”, em que o humanismo ético bakhtiniano já existe
232

dentro da crise da racionalidade, basta trabalhá-la, do que promover mais uma crise de

racionalidade:

Creio que é preciso ter a modéstia de dizer que, por um lado, o momento
em que se vive não é esse momento único, fundamental ou irruptivo da história,
a partir do qual tudo se realiza ou tudo recomeça; é preciso ter a modéstia de
se dizer ao mesmo tempo que – mesmo sem essa solenidade – o momento em
que se vive é muito interessante e precisa ser analisado, decomposto, e que de
fato saibamos nos colocar a questão: o que é a atualidade? (...) A tarefa da
filosofia é dizer o que é a atualidade, dizer o que somos esse “nós hoje”. Mas
se permitindo a facilidade um pouco dramática e teatral de afirmar que esse
momento em que vivemos é, no oco da noite, aquele da maior perdição ou, ao
contrário, aquele em que o sol triunfa. Não, é um dia como os outros, ou
melhor, é um dia que jamais é realmente como os outros. (Michel Foucault,
1983, p. 45)

3) As ciências da saúde/médicas podem ser consideradas ciências humanas apenas

por tratar a saúde como um signo ideológico próximo ao conceito de qualidade de vida?

As ciências da saúde são uma reflexão necessária das ciências humanas e por isso

biopsicossocial-discursiva. Pois nota-se que:

“As discussões sobre a inexatidão da medicina promoveram as primitivas


formulações daquilo que viria ser os problemas epistemológico central das
ciências humanas. (...) Um fio consistente conecta entre si esses modos de
conhecimento: todos nascem da experiência, do concreto e do individual. Essa
qualidade concreta era tanto a força quanto o limite desse tipo de
conhecimento.” (GINZBURG, 1983, p. 116)

Sendo o biopsicossocial-discursivo o termo que daria conta das conotações

políticas e de luta de classes no interior do signo “Saúde”, afinal o que justifica o

tratamento de uma mulher negra ser tão distante de o tratamento de um homem branco

no Brasil, se não for questões ideológicas, políticas, de luta de classes e por isso

discursivas? A resposta passa por analisarmos o conhecimento sobre o Homem, o

Cronotopo e a Cultura pelo que há de inexatidão nas ciências, mas também pelo que há

de materialismo histórico e luta de classes nos discursos.


233

4) Apenas os discursos promovidos no entorno do Programa “Mais Médicos”, de

março de 2013 a Novembro de 2014, dão conta dos sintomas indiciários de um novo

paradigma humanístico ou da crise da racionalidade? Não sem serem cotejados por

outros textos, por isso o cotejamento dos discursos com outros discursos nos dão o cenário

mais amplo e concreto da realidade histórica a que estamos atravessando. No “oco na

noite” o vertical de si fica evidente, pois a vida está em perigo, ou por um novo paradigma

de relações de vida, ou por uma maior crise da racionalidade. Embora, o que esteja

ocorrendo tornou-se declaradamente uma revolução humanística que precisa ser levada

adiante como questão do grande tempo.

Ou nas palavras de Bakhtin, (2011, p. 410): “Não existe a primeira nem a última

palavra, e não há limites para o contexto(...). Não existe nada absolutamente morto: cada

sentido terá sua festa de renovação. Questão do grande tempo.”

Em suma, esta Tese, apenas diz que: Saúde é uma palavra inventada ao longo da

História para o Homem entender o porquê vive, e com isto adquire Ética, se complexifica,

quando passa a defender a vida do Outro, a palavra do Outro, o Direito do Outro, a

Qualidade de Vida do Outro, como se fosse a sua própria, como o bem mais precioso.
234

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia 1930-62. Edição crítica. GUIMARÃES, Júlio
Castañon (org.). São Paulo: Cosac Naify, 2012.

BAKHTIN, M. M. A Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de


François Rabelais/ Mikhail Bakhtin; tradução de Yara Frateschi Vieira – São
Paulo: HUCITEC, 2013a.

______________. (1979) Estética da Criação verbal/ Mikhail Mikhailovich Bakhtin;


prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov; introdução e tradução do russo Paulo
Bezerra. 6ª ed. - São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

______________. (1929a). Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas


fundamentais do método sociológico da linguagem/ Mikhail Bakhtin (V. N.
Volochínov); prefácio Roman Jakobson; apresentação Marina Yaguello; tradução
Michel Lahub e Yara Frateschi Vieira, com a colaboração de Lúcia Teixeira
Wisnik e Carlos Henrique D. Chagas Cruz - 13ª ed. São Paulo: HUCITEC, 2009.

______________. Para uma Filosofia do Ato Responsável; tradução aos cuidados de


Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João editores,
2010.

______________. (1929b) Problemas da Poética de Dostoievski/ Mikhail Bakhtin;


tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. – 5. Ed. – Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2013.

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241

Textos da Folha de São Paulo, Exemplos da Pequena Temporalidade. Em sequência


de uso, cotejamento e diálogo dentro da tese:

SCALISA, Felipe. A Face oculta da medicina. Folha de São Paulo, São Paulo, 13 de
novembro de 2014. Caderno de Opinião, p. 3. TEXTO 1.

NEGRI, Barjas. Mais médicos (de saúde da família). Folha de São Paulo, São Paulo, 23
de Fevereiro de 2014. Caderno de Opinião, p. 3. TEXTO 2.

ROUSSEFF, Dilma. Pronunciamento ao Sete de Setembro. Folha de São Paulo, São


Paulo, 08 de setembro de 2014. Caderno Poder, p. 13. TEXTO 3.

FOLHA, São Paulo. Dilma rebate críticas e diz que importação de médicos é medida de
curto prazo. Folha de São Paulo, São Paulo, 08 de setembro de 2013, Folha Poder, p. 5.
TEXTO 4.

NUBLAT, Johanna. Setor privado tem 4 vezes mais médicos do que a rede pública. Folha
de São Paulo, Brasília, 01 de dezembro de 2011. Caderno Poder, p. 12. TEXTO 5.

FOLHA, São Paulo. Guerrilha Médica. Editorial da Folha de São Paulo, São Paulo, 20
de setembro de 2013. Editorial, p. 1. TEXTO 6.

COUTINHO, Felipe. Plano do governo é vazio, eleitoreiro e totalitário, diz Conselho de


Medicina. Folha de São Paulo, Brasília, 08 de julho de 2013, Caderno Poder, p. 9. TEXTO
7.

COLLUCCI, Cláudia. Saúde é vítima da falta de organização, dizem especialistas. Folha


de São Paulo, São Paulo, 29 de Março de 2014, Caderno Opinião, p. 2. TEXTO 8.

SOUZA, David Oliveira. A vinda de médicos cubanos ao Brasil é irregular? / Carta aos
médicos cubanos. Folha de São Paulo, São Paulo, 13 de agosto de 2013, Caderno de
Opiniões/Debates, p. 02. TEXTO 9.

CABERSAN, Luiz. Depressão e suicídio. Folha de S. Paulo, São Paulo, 27 de março de


2014, Coluna Pensata, p. 04. TEXTO 10.
242

ANEXO A

Mapa sobre a distribuição desigual de médicos por região no Brasil. Fonte. IBGE/2012.
243

Ma

Mapa da distribuição de médicos no mundo e em cada estado brasileiro. Fonte: Ministério


da Saúde/2014.
244

Propaganda de um Curso preparatório para vestibulares, mostrando os nomes dos


aprovados na primeira chamada da medicina USP – FMUSP – em São Paulo.

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