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Eu sou tu. E nós?

Eu: Al Berto

Kenedi Santos Azevedo1

RESUMO: O medo é o mote delineador para a produção poética de Al Berto. Esse estado
emocional resultante da consciência de perigo e ameaça que o mundo impõe, infiltra-se nas
malhas textuais do poeta lusitano fazendo com que se desperte o desejo de autorreflexão e
autoconhecimento, aspectos observáveis na poesia contemporânea. Diante dessas questões,
pretende-se, com este artigo, compreender o desdobramento do eu nos poemas que compõem
a coletânea intitulada O Medo, analisando também a situação do sujeito na
contemporaneidade. Para discorrer sobre tais temas, utiliza-se como aporte teórico o livro de
Émile Benveniste, Problemas de Línguística Geral, no qual dedica espaço para trabalhar a
ideia de alocução e seu emprego no discurso; além do ensaio de Julia Kristeva,
nomeadamente Estrangeiros para nós mesmos, em que levanta hipóteses sobre a relação eu-
outro. E demais livros de viés literário que, de certo modo, contribuem como arcabouço para
este trabalho.
Palavras-Chave: Al Berto, Alocução, Alteridade, Subjetividade, Eu.

ABSTRACT: Fear is the theme that outlines the entire Al Berto’s poetic production. This
emotional state that is resultant from the consciousness of danger and threaten that the world
imposes, infiltrates in the text of the Portuguese poet making the desire of self-reflection and
self-knowledge come out, and they are both present in the contemporary poetry. Based on
these questions, this article aims the comprehension of the unfoldment of the self in the poems
that are part of The Fearcollection, also the analysis subject’s state in the contemporaneity.
Some works will be used as theoretical contributors to discuss such themes: the book
Problems in General Linguisticsby Émile Benviste, that makes room for the discussion of
allocution in discourse; also, Julia Kristeva’s essay called Strangers to Ourselves, in which,
she brings up hypotheses about the relation between self and other. And also, other literary
books that contribute to the theoretical base of this article.
Keywords: Al Berto, Allocution, Alterity, Subjectivity, Self.

1
Mestre em Literatura Portuguesa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Membro do Grupo de Estudos
e Pesquisas em Literaturas de Língua Portuguesa da UFAM (GEPELIP). Manaus – Amazonas – Brasil.
E-mail kenedi.santosazevedo@gmail.com.
1. Introdução

A poesia portuguesa contemporânea configura-se pelo desprendimento, por parte de


seus escritores, “no caso da Poesia Portuguesa [Experimental dos anos 60],... [do] ilhamento
cultural promovido pela ditadura salazarista” (SILVA, 2011, p. 134) e reabilitação, a partir
dos anos setenta do século XX, da subjetividade e a expressão do desejo; caracterizando com
isso, uma nova dicção no fazer poético lusitano. O poema constituído de narratividade
comporta as ânsias e os desejos do poeta, a inquietação e o despojamento do sujeito,
tornando-se lugar de refúgio e abrigo. O novo horizonte desponta na verve literária com a
(in)corporação da proposta de uma poesia que prima pela experiência, nos múltiplos
patamares, distanciando-se daquela poesia que servia de paradigma para toda uma época de
vanguarda. Escrevendo sobre a geração de literatos que então se estabelece, Nuno Júdice
(2001) diz que de fato esses poetas “– os que publicam na transição de 80 para 90 –
apresentam significativas diferenças em relação à geração precedente” e que uma das marcas
distintivas apresenta-se no discurso coloquial, no qual se presencia “um certo desprezo pela
convenção literária e pelos códigos do lirismo, [que] manifestam-se de forma quase
programática, retirando ao poema a efusão subjectiva que, [...] surge ainda com acentuada
visibilidade na poesia de 70”.
O anseio por liberdade nos vários âmbitos, tanto culturais, políticos e sociais, quanto
estético-literários, abriu espaço para novos poetas relevados pelo (des)compromisso com o
poético, por intermédio de um discurso dinâmico e em certa medida vertiginoso, perturbador
da razão e da serenidade do espírito. Como conclui Luis Maffei (2011), “são muitos sempres e
nuncas que contornam a poesia portuguesa de agora, o que equivale a dizer que são muitos os
agoras que se encontram nos poetas que ainda ousam, neste tempo, ser poetas” (p. 395). Esses
mesmos poetas tiveram pela frente a tarefa de mostrar que a poesia portuguesa pós 25 de abril
(de 1974) está mais viva do que nunca. É partir daí que o sujeito engajado com os assuntos de
cunho político e social, aspectos externos ao ser, se (re)inventa e busca outro percurso, tão
contrário ao assumido pelos seus antecessores. Se antes havia uma preocupação com os
problemas exteriores, do mundo, esse grupo de intelectuais volta-se para si, na tentativa de se
compreender, numa trajetória interna agora, no/do seu mundo subjetivo.
Para Rosa Maria Martelo (2008), “há actualmente, na poesia portuguesa, uma linha de
escrita que se caracteriza por tematizar o mundo contemporâneo sob um olhar intensamente
marcado pela perda” (p. 291). É deste modo que os temas como a morte, o desassossego, a
homossexualidade e a utilização do corpo na escrita, imperam, manifestando a perturbação, a
tensão e a construção do ser, nos textos, a ponto de torná-lo abstrato, fragmentado, exercendo,
em certo sentido, uma ruptura com o universo extratextual. A articulação entre corpo e texto,
corpo e imagem, será um contínuo na lírica al-bertiana, no limite máximo de se ter o próprio
poeta determinando um protocolo poético cujas linhas se ajustam aos parâmetros do sistema
que então se forma na contemporaneidade, “e, de poema para poema, constrói-se a imagem de
um sujeito-poeta que se encontra muito perto daqueles que traz para o espaço da escrita, no
interior do qual eles são a própria alegoria” (p. 300). Diante de tais conjecturas, invocam-se,
para fins esclarecedores, as palavras de Manuel Frias Martins (1983), ao comentar a
infiltração do sujeito no discurso literário; à constituição dessa instância nos textos
“chamemos-lhes autor, escritor, poeta, ela não é de maneira nenhuma uma ausência como
querem alguns, mas, antes, o sujeito vivo e activo do facto literário”, é o próprio sujeito da
enunciação se pondo como agente responsável pela interpelação da sua realidade, ainda que
seja por intermédio da imaginação criadora “– mesmo quando são os conteúdos subjetivos do
próprio sujeito que parecem ser o único objeto interpelável” (p. 28, 29).
Tal condição do ser, nos poemas de Al Berto, demonstra o desejo excessivo de busca
da compreensão de si mesmo. Há, parece, na escrita, um subterfúgio em que o eu-poético se
depara com o eu-físico, a ponto de dialogarem sobre seus afetos, seus amores, seus
questionamentos, dissabores, saudades ou, em todo caso, sobre si mesmos. O presente ensaio
desenvolve-se a partir do perímetro que enquadra a poesia desse escritor português e os
instantes em que essas vozes se alternam ou se respondem, na tessitura lírica de cada poema,
como lugar que se constitui na contemporaneidade.
A partir dessa observação, desenvolve-se a primeira parte do artigo empreendendo o
desafio de ampliar os estudos sobre a obra de Al Berto debatendo a infiltração do eu nas
esferas ficcionais, de maneira a vincular esse eu também ao instante da escrita. Investigar o
lugar de fala do sujeito da enunciação e o tempo que se estabelece intra e extratextual.

2. Aditamento do eu

O trabalho poético de Al Berto, desde o primeiro livro, Á procura do vento num


jardim d’agosto, até o último, Horto de incêndio (de 1974 a 1997), está reunido em uma
compilação intitulada O Medo. E não é em vão o título. O escritor desenvolve seus textos a
partir da instauração do sentimento de aversão ao mundo, tanto o real, quanto o criado por ele
mesmo, portanto, ficcional. O medo de pertencimento absoluto do ser, ao ser, o faz desdobrar-
se, estabelecendo-se assim um eu-outro, que pode ser, também, ora o eu-tu ora o eu-nós. Essa
questão de alteridade perpassará toda obra desse poeta, levando o leitor a um deslocamento de
sua posição, assumida nos poemas pelo próprio ser poético, agora alocutário dele mesmo, em
um diálogo constante entre o ente civil e o ente ficcional. Veja-se o excerto cujas linhas
reforçam essas assertivas:

eis a deriva pela insônia de quem se mantém vivo num túnel da noite. os corpos de
Alberto e Al Berto vergados à coincidência suicidaria das cidades. [...] para
sobreviver à noite decidimos perder a memória. cobríamo-nos com musgo seco e
amanhecíamos num casulo de frio, perdidos no tempo. mas, antes que a memória
fosse apenas uma ligeira sensação de dor, registramos inquietantes vozes,
caminhávamos invisíveis na repetição enigmática das máscaras, dos rostos, dos
gestos desfazendo-se em cinza. escutamos o que há de inaudível em nossos corpos.
era quase manhã no fim deste cansaço. despertava em nós o vago e trêmulo desejo
de escrever. passaram doze anos e esquecer-te seria esquecer-me. repara no
estremecimento do sangue, a morte rendilhando peste nos ossos, os dedos
paralisados, a fala, os espelhos. no escuro beco do mundo segrego abelhas de
espermas, a luz do mar onde teço corpos de água, a escrita que vem da treva,
lembro-me: um corpo voltou a mover-se no interior do meu. (AL BERTO, 1997, p.
11, 12) [grifo do autor].

O poeta se coloca como instância poética e se faz sujeito da enunciação, assumindo a


postura de um eu que observa a si mesmo, instituindo duas entidades ficcionais que ora são
ele mesmo. Al Berto é o pseudônimo de Alberto Raposo Pidwell Tavares, ambos inseridos
como sujeitos do enunciado no discurso lírico, assumindo sobremaneira a representatividade
do afastamento do eu externo ao enunciado e, principalmente, externo à enunciação: aquele
que escreve.
“decidimos perder a memória”, “cobríamo-nos com musgo”, “caminhávamos
invisíveis”, os elementos sublinhados indicam o uso da primeira pessoal do plural, o nós.
Temos, então, que o eu da enunciação, imediatamente observador dos “corpos de Alberto e Al
Berto”, se identifica com o eu do enunciado e se faz outro(s), gerando dúvida nele próprio
que, à medida que o tempo passa, não sabe quem realmente é porque “passaram doze anos e
esquecer-te seria esquecer-me”, sendo, portanto, esses outros, ele próprio que “despertava em
nós o vago e trêmulo desejo de escrever”, já que “um corpo voltou a mover-se no interior do
meu”. Quem se move no interior do eu, é o outro que é ele mesmo e não outro, diferentemente
da heteronímia pessoana que, nas palavras do próprio Fernando Pessoa, ao falar sobre o
desdobramento de personalidade, “distingue-se por idéias e sentimentos próprios, distintos
dos meus, assim como, em mais baixo nível desse grau, se distingue por idéias, postas em
raciocínio ou argumento, que não são minhas, ou, se o são, o não conheço” (PESSOA, 1990,
p. 46).
Se utilizando da alocução, o eu que fala de si mesmo, no texto al-betiano, instala o
outro nele e de tal maneira se capta a si mesmo, se confronta, se instaura tal como anseia a
ser, e por fim se historiza nessa história fragmentada, muitas vezes ambígua. A linguagem,
destarte, é utilizada aqui como palavra, palavra poética, convertida nessa expressão da
subjetividade iminente e evasiva que compõe a condição do diálogo desenvolvido nas esferas
ficcionais. A escrita faz-se instrumento de um discurso no qual os traços típicos do sujeito se
libertam e se inventam, atingindo o outro e se fazendo reconhecer por ele, nele. Após
reconhecer-se no eu-outro, o eu-lírico, retorna a si mesmo, em um processo que lembra uma
espiral, já que essa ida e volta, esse desprendimento, ocorre na medida em que o mesmo eu-
lírico centraliza todos os resultados dessa ação, configurando-se como uma linha curva, sem
se fechar.

Quando saio de "mim" para estabelecer uma relação viva com um ser, encontro ou
proponho necessariamente um "tu" que é, fora de mim, a única "pessoa imaginável".
Essas qualidades de interioridade e de transcendência pertencem particularmente ao
"eu" e se invertem em "tu". Poder-se-á, então, definir o tu como a pessoa não
subjetiva, em face da pessoa subjetiva que eu representa; e essas duas "pessoas" se
oporão juntas à forma de "não-pessoa" (= "ele") (BENVENISTE, 1976, p. 255).

Detalhando as proposições formuladas por Émile Benveniste, entende-se que se eu e


tu são ambos caracterizados como indicadores de pessoa, por outro lado, se opõem um ao
outro, no interior da classe que estabelecem, por um elemento mínimo cuja natureza
linguística é necessário determinar. A definição da segunda pessoa como sendo a pessoa à
qual a primeira se dirige convém sem dúvida ao seu emprego mais ordinário; isso, todavia,
não quer dizer que seja único e estável. Pode ainda utilizar a segunda pessoa fora da alocução
e fazê-la entrar numa variante "impessoal". Outro aspecto observável diz respeito à ideia de
não-pessoa, representada linguisticamente pelo ele, oposto pela pessoa subjetiva eu e pela
pessoa não subjetiva tu. Levando em conta tal questão, temos que essas instâncias, vistas sob
o viés sintático, desfazem-se no próprio texto. Entretanto, e aí se vai além do campo da
linguagem, já que estamos falando de poesia, esse ser que se desdobra em outros, no sentido
stricto sensu da palavra alteridade, não é outra pessoa, mas ele mesmo, já que no diálogo entre
o eu e o tu, há vestígios de uma simbiose cujas características formarão um nós, que foge à
instituição de um ele, distante.
“despertava em nós o vago e trêmulo desejo de escrever”. De maneira geral, em se
tratando ainda de alocução, o nós, não está relacionado com um eu quantificado ou
multiplicado, é, na verdade, um eu dilatado além da pessoa exata, amplificada, mais maciça;
nas palavras de Benveniste “o‘nós’ anexa ao ‘eu’ uma globalidade indistinta de outras
pessoas” (p. 258). Ocorre, nesse processo, uma dupla instância conjugada, causando, de tal
maneira, uma ambigüidade no discurso. O poema “Ofício da fala”, de alguma forma, elucida
a intersecção entre as vozes que se sobrepõem nos textos do poeta do medo:

da suave fala das abelhas conhecíamos


o híbrido ouro dos abdômenes, a transparência irreal das asas carregadas de pólenes
e desconhecidas tarefas
conhecíamos o murmúrio majestoso do mel
e de como à proximidade dos dedos em pleno voo se solidifica a luz

os corpos em cera clamam pelo vagaroso olhar das melíferas despojadas


e no rumorejar do místico alimento surge, armazenada nos favos da língua, a fala

no fundo, eu atravessava-te sem me deter


nada sabia ou sei acerca da morte
nem das ruínas deste outro corpo que o mel é capaz de ressuscitar
(AL BERTO, 1997, 183).

De acordo com o Dicionário de símbolos, de Herder Lexikon, “por parecer que morre
no inverno e ressurge na primavera, a abelha também surge como símbolo da morte e da
ressurreição”, além do que “simbolizam muitas vezes a eloquência melíflua, a inteligência e a
poesia” (2013, p. 09). Ao falar sobre o ofício da escrita, o eu-lírico o compara ao trabalho de
colher o néctar das flores para fabricar o mel, por parte das abelhas. Analisando essa imagem,
inicialmente, pode-se compreender que a escrita não é uma tarefa fácil, mas sim uma arte
laboral. Sendo de tal modo, o poema, pelas mãos do poeta, em comparação com o mel, o
resultado desse processo, “a eloquência melíflua, a inteligência e a poesia”. Mas, em todo
caso, o que tudo isso tem a ver com morte e ressurreição? O mel simboliza a vida, posto que é
alimento, deste modo, infere-se que para manter-se vivo, o poeta escreve. Que mesmo depois
de morto, continuará vivo por intermédio de seus textos. E isso se intensifica em Al Berto
porque ele renasce no eu-outro e se faz texto, poesia: “Por trás de cada poema existe o corpo
que o gerou num instante de pânico” (AL BERTO, 1997, p. 231).
As vicissitudes do eu ficam aparentes no poema “Auto-retrato com revólver”, de
modo especial quando se pensa no seu dilatamento a partir de um desprendimento: “as
palavras foram alinhavadas pelos preguiçosos dedos/ o texto transparece na claridade das
manchas de tinta/ teço a ausência de um corpo que me é absolutamente necessário, doem-me
estes gestos// [...] sinto-me vazio hoje (AL BERTO, 1997, p. 168).
A ambivalência do discurso al-bertiano torna-se notória, primeiramente porque em um
excerto fica dito que “por trás de cada poema existe o corpo que o gerou”, já em outro,
assume tecer “a ausência de um corpo”, e que sente-se “vazio hoje”. Al Berto se projeta nos
poemas a ponto de ausentar-se e tornar-se espectador de si mesmo. Ao mesmo tempo em que
observa a si, num jogo especular, percebendo do mesmo modo o vazio deixado pelo
dilatamento do eu em outro. Contudo, forjando uma postura narcisista, Al Berto e Alberto,
amplificam-se a ponto de não saberem se eu sou o tu, se o eu somos nós ou vice-versa, como
fica claro nos trechos “o espelho acende o meu reflexo. não me reconheço nele” ou ainda
“conheço-te, sou a tua imagem perdida uma noite dentro do espelho” (AL BERTO, 1997, p.
131 e 363).
Concorda-se com Helena Nagamine Brandão, quando afirma que “a noção de
subjetividade não está mais centrada na transcendência do EGO, mas relativizada no par
EU—TU, incorporando o outro como constitutivo do sujeito” (2004, p. 59). Dessa maneira,
fica proeminente que a linguagem, de modo especial, a poética, não é mais evidência,
transparência de sentido instituído por um único sujeito, visto como homogêneo, todo-
poderoso. Antes muito pelo contrário, é um sujeito que divide o espaço discursivo com o
outro, que no caso de Al Berto, é ele mesmo, como fica evidente no poema “recado”, do livro
Horto de incêndio, último publicado em vida pelo poeta, em que se constata o eu-lírico se
dirigindo ao ente que pode ser Al Berto ou Alberto.

ouve-me
que o teu dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para tua morte

vai até onde ninguém te possa falar


ou reconhecer – vai por esse campo
de crateras extintas – vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te


e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do vôo – deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração – ouça-me

que o dia te seja limpo


e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna – o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite

não esqueças o navio carregado de lumes


de desejos em poeira – não esqueças o ouro
o marfim – os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço
(AL BERTO, 2000, p. 9, 10).
Um “recado” constitui o meio de se manifestar para si mesmo e para os outros por
intermédio da escrita. Do mesmo modo, uma mensagem torna o escritor presente para aquele
a quem ele a envia, subjetivando a escrita conforme se infiltra nas malhas textuais. E presente
não meramente pelos esclarecimentos que ele lhe concede sobre sua vida, suas ações, suas
conquistas e fracassos, suas aventuras e desventuras; presente, por conseguinte, como um tipo
de presença imediata e quase física. Escrever é, conseqüentemente, utilizando-se das palavras
de Michel Foucault (2004), “se mostrar, se expor, fazer aparecer seu próprio rosto perto do
outro”, além do que o recado pode ser considerado “ao mesmo tempo um olhar que se lança
sobre o destinatário e uma maneira de se oferecer ao seu olhar através do que lhe é dito sobre
si mesmo”, em outros termos “[...] prepara de certa forma um face a face” (p. 156).
O eu-lírico, impreterível, chama a atenção de seu alocutário, que no caso também
desempenha o papel de destinatário, para desejar que o dia lhe seja limpo e ajudá-lo na
caminhada por esse “campo de crateras extintas”. Ademais, o “recado” à maneira instrucional,
acima de tudo, prepara o outro eu para um certo rito de passagem, iniciado com “os sessenta
comprimidos letais ao pequeno-almoço”. O poeta vê a fugacidade no “navio carregado de
lume”, no qual há estreita ligação com liberdade, isto é, a morte como a libertação deste estar
no mundo sem objetividade. Comentando sobre os escritos al-bertianos, António Ramos Rosa
(1991), entende que “à violência desta destruição responde o poeta com uma violenta
negatividade que é uma pulsão de liberdade absoluta, que procura por todos os meios o seu
espaço vital” (p. 119). O que se espera não é simplesmente o “etéreo visitante desta noite”,
mas o viver após a morte em uma “morada eterna”, a destruição para a renovação, para a
purificação do ser para uma nova maneira de viver, não no esquecimento, mas nas lembranças
daqueles que o leram e que o lerão, porque ele sabe que escreve para todos, contudo, nem
todos lerão aquilo que escreve, entretanto, sua obra estará sempre viva, tornando-o
inesquecível.
Pode-se constatar assim que “a opacidade do mal ou a agressividade do mundo é tão
intensa que provoca um choque e um desmoronamento geral, mas esta destruição não
constitui uma supressão pura e simples da identidade do poeta” (ROSA, 1991, p. 119), mas o
seu aditamento na tessitura poética, do seu, agora, próprio mundo. Al Berto busca o
despojamento de tudo que o prende às conveniências, tanto no campo intelectual, quanto
social e político.
3. Eu estrangeiro

Al Berto vive um período de autoexílio em Bruxelas, tempo de errância e


descobrimento. Após essa temporada retorna a Portugal, revelando-se poeta e passando a
estabelecer o projeto poético iniciado com a idealização do Programa Editorial Pidwell
Tavares, cujo slogan desenvolve-se no seguinte grupo de palavras: SEJA BREVE STOP
LEIA-NOS STOP (ANGHEL, 2006, p. 63), em letras garrafais dando a idéia não apenas de
um anúncio, mas também do grito de um grupo de escritores, que, apesar de estar à margem
da literatura tradicional, empenha-se em fazer ouvir a sua voz, que por muito tempo ficou
emudecida pelo silêncio das trevas que foi a instauração do Estado Novo.
O então poeta passa a ser estrangeiro no próprio país, questão evidenciada pelo fato de
os textos, nos primeiros livros, serem escritos em francês. Concorda-se com Tzvetan Todorov
(1999) ao dizer que “o exilado de retorno ao país natal não é de todo semelhante ao
estrangeiro em visita – nem mesmo ao estrangeiro que ele mesmo foi, no momento em que
debutou no exílio” (p. 16). Se a princípio a deambulação por países que não são o seu
revelavam soluções para indagações provocadas quando ainda jovem, agora a travessia
transcorre o seu próprio ser, sua consciência, numa busca incessante por respostas
relacionadas no confronto entre o eu-poético e o eu-físico “[...] caminhamos ainda/ sabemos
que deixou de haver tempo para nos olharmos/ a fuga só é possível para dentro dos
fragmentados corpos/ e um dia... quem sabe?/ chegaremos” (AL BERTO, 1997, p. 191),
adventícios um para outro, o que provoca um autoexame. Algumas vezes numa observação
dos fenômenos psíquicos da própria consciência, análise subjetiva do espaço-eu
desconhecido.
Essa introspecção realiza-se pela sistematização que se encerra no próprio poeta ao
manifestar afetivamente seu desinteresse do mundo exterior, àquele configurado no seio
poético como se verifica no trecho “a espera, a espera de mim mesmo acabara. estou agora
vivo na escrita que me define, me evoca, e me esquece. mas soaria a falso o que tenho a dizer
sobre a morte, calo-me...” (AL BERTO, 1997, p. 234); refúgio e abrigo para os instantes em
cuja atitude autocontemplativa, muitas vezes, absoluta e introvertida, reflete o lugar de
resistência e despojamento do sujeito.
Em dado momento Al Berto assume uma postura narcísica, em um sentido, algumas
vezes, egocêntrico, dando uma importância exagerada à sua própria pessoa, que mantém uma
contínua luta para descobrir a si próprio, por isso mesmo um narcisismo invertido, já que é a
silhueta que o observa – seu próprio reflexo –, não o contrário: “alguém fotografa alguém. o
espelho acende o meu reflexo. não me reconheço nele. existe uma saída secreta que nunca
utilizo, nem mesmo na fotografia” (AL BERTO, 1997, p. 131). O que equivale a dizer que,
em consonância com Julia Kristeva,

estabelecido em si o estrangeiro não tem um si. No limite, uma segurança oca, sem
valor, que centra as suas possibilidades de ser constantemente outro, ao sabor dos
outros e das circunstâncias. Eu faço o que se quer, mas não sou “eu” – meu “eu” está
em outro lugar, meu “eu” não pertence a ninguém, meu “eu” não pertence a “mim”...
“eu” existe? (KRISTEVA, 1994, p. 16) [grifo da autora].

Dessa maneira, acontece o confronto de subjetividades estendendo-se para além do


próprio ser, infiltrando-se nos textos e se fazendo poesia. O eu do espaço real cede lugar ao eu
do ambiente ficcional, tornando-se, de tal modo, um eu-outsider no próprio eu, obviamente no
universo poético. Sendo assim, o desdobramento e ao mesmo tempo fragmentação do eu
remete às conjecturas de Emmanuel Lévinas (2011) ao afirmar que a alteridade se infiltra na
identidade do pensante ou possuidor como desejo metafísico (procura do absolutamente outro,
uma coisa inteiramente diversa), “desejo de uma terra onde de modo nenhum nascemos. De
uma terra estranha a toda natureza, que não foi nossa pátria e para onde nunca iremos” (p. 20),
com isso, o filósofo discute a irreversibilidade do eu em outro e sobre o modo como o eu
procura a identificação com o outro, quando “um corpo[-outro] voltou a mover-se no interior
do meu”. O poema abaixo ilustra a vontade de regresso ao seu lugar de origem e o corpo
como solução, como um novo exílio.

o sol ensina o único caminho


a voz da memória irrompe lodosa
ainda não partimos e já tudo esquecemos
caminhamos envoltos num alvéolo de ouro fosforescente
os corpos diluem-se na delicada pele das pedras

falam os rios deste regresso e pelas margens ressoam passos


os poços onde nos debruçamos aproximam-se perigosamente
da ausência e da sede procuramos os rostos na água
conseguimos não esquecer a fome que nos isolou
de oásis em oásis

hoje
é o sangue branco das cobras que perpetua o lugar
o peso de súbitas cassiopeias nos olhos
quando o veludo da noite vem roer a pouco e pouco a planície

caminhamos ainda
sabemos que deixou de haver tempo para nos olharmos
a fuga só é possível para dentro dos fragmentados corpos
e um dia... quem sabe?
chegaremos
(AL BERTO, 1997, p. 191)

Problematizando a ideia suscitada acima, de um eu-outsider no próprio eu, define-se


três instâncias presentes no ato enunciativo formada pela tríade eu-tu, aqui e agora, em
outros termos, determina-se no poema acima, o locutor, o destinatário (-alocutário), a
cronografia e a topografia. Feito esse esclarecimento parte-se para a apreciação do texto.
Locutor. O eu-lírico enuncia instantes de deslocamento antes do regresso à sua terra
natal. O sol no primeiro verso indica a luz como guia num percurso em que a “memória
lodosa”, porque estática, sem antes ser acionada, talvez pelas ocasiões de descontentamento,
ativa imagens que o fazem retomar o passado, no intuito de entender sua atual situação. A
incessante busca proporciona inúmeras descobertas, ainda que seja a revelação iminente da
ausência, da solidão, ou mesmo o autoconhecimento. Destinatário (alocutário). “Os corpos
diluem-se nas pedras” a ponto de tornarem-se um; antes, porém, ocorre o estranhamento na
medida em que o tempo os afasta. O eu de hoje dirige-se, ato contínuo, ao eu de ontem e fica
sabendo “que deixou de haver tempo para nos olharmos” e, assim, realizam um diálogo na
procura constante de respostas para sua atual situação: “’eu’ existe”? Quando esses eus são
colocados em confronto resta o desejo de não desprendimento e a eterna caminhada, o retorno
às suas origens, já que “a fuga só é possível para dentro dos fragmentados corpos”.
Cronografia. No poema, e, não somente o selecionado acima, mas a maior parte da produção
al-bertiana, constrói-se na medida em o eu-lírico retoma o passado para compreender o
presente. “conseguimos não esquecer a fome que nos isolou/ de oásis em oásis”. Percebe-se o
afastamento que ocorre entre o eu de ontem do eu de hoje. O tempo como agente responsável
pelo distanciamento daquele que parte para o país estrangeiro, mesmo que seja para um
autoexílio, daquele que retorna, cheiro de experiências apreendidas em outras localidades: e
um dia... quem sabe?/ chegaremos. Entretanto, ao regressar, depara-se com as reminiscências
recuperadas pelas fotografias, pelos antigos escritos guardados, pelo olhar ao espelho, na
ânsia pelas possíveis respostas suscitadas no passado. Topografia. Ao sair de Sines em
Portugal, Al Berto vive a maior parte do exílio em Bruxelas e passa a fazer os percursos feitos
por Rimbaud nos/pelos países europeus. Essa caminhada fica marcada nos textos do poeta.
“caminhamos envoltos num alvéolo de ouro fosforescente”, na cavidade do tempo, no espaço
de quebra entre o eu que sai de seu país e o eu que retorna, já aculturado por forças da
tradição estrangeira, o que o faz estrangeiro no próprio país, onde terá que se adaptar ou
rejeitar as novas convenções presentes no instante de seu regresso.
A nostalgia, as lembranças e a constituição da melancolia, aguçadas pelo contato com
os objetos, os perfumes e os sons, “aos quais não pertence mais” (KRISTEVA, 1994, p. 17),
são referências contínuas na obra de Al Berto. Entretanto, ainda de acordo com Julia Kristeva,
“ele jamais está simplesmente dividido entre aqui e alhures, agora e antes”, porque “os que se
acreditam assim crucificados esquecem que nada mais os fixa lá longe e que nada ainda os
prende aqui” (1994, p. 18), sendo, portanto, estrangeiro na sua própria terra, em si mesmo.

4. Considerações finais

Tentou-se, neste trabalho, entender um fenômeno linguístico, a alocução, presente na


obra de Al Berto, desde o primeiro livro publicado ao último, verificando, por meio dos
estudos do linguista Émile Benveniste, a aplicabilidade da teoria na leitura de alguns poemas
selecionados, mesmo compreendendo que isso prevalece em maior parte de seus textos
poéticos.
Como ficou visto, a relação eu-outro na obra desse poeta remete também à discussão
sobre a dêixis, o poder investido em cada pessoa identificada pelo pronome, pelo lugar de
onde ela fala ou de onde alguém a situa. E daí surgir um questionamento sobre a posição do
sujeito da enunciação no espaço e tempo português. De demonstrar, de modo especial, onde
fala o eu observador dos corpos de Al Berto e Alberto.
Retomando a questão de não-pessoa, representada pelo ele, é possível agora
compreender que Al Berto se rebela contra a própria linguagem conotativa, referencial, que
estabelece um padrão para o entendimento do texto e exclui quem dele se afasta, em alguns
momentos, o próprio leitor, espectador das encenações, do vestir das máscaras do poeta. Em
outros momentos, há, então, referência à relação entre a linguagem e a política, o poder. Não
podemos esquecer que, a partir da década de 60, se fortalecem os movimentos por direitos
trabalhistas, contra o padrão sexual, contra a ditadura política. Como lembra o poeta em
“vestígios”: “noutros tempos/ quando acreditávamos na existência da lua/ foi-nos possível
escrever poemas e/ envenenávamos boca a boca com o vidro moído/ pelas salivas proibidas –
noutros tempos/ os dias corriam com a água e limpavam/ os líquenes das imundas máscaras”
(2000, p. 11).
Além do que, se verificou que a hesitação diante do eu e sua existência tem pouca
duração no poeta do medo, porque ocorre o deslocamento do olhar posto que o outro,
estrangeiro, passa a ser eu, de modo especial em seus poemas, visto que “por trás de cada
poema existe o corpo que o gerou num instante de pânico” (AL BERTO, 1997, p. 231).
Referências

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