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Eu: Al Berto
RESUMO: O medo é o mote delineador para a produção poética de Al Berto. Esse estado
emocional resultante da consciência de perigo e ameaça que o mundo impõe, infiltra-se nas
malhas textuais do poeta lusitano fazendo com que se desperte o desejo de autorreflexão e
autoconhecimento, aspectos observáveis na poesia contemporânea. Diante dessas questões,
pretende-se, com este artigo, compreender o desdobramento do eu nos poemas que compõem
a coletânea intitulada O Medo, analisando também a situação do sujeito na
contemporaneidade. Para discorrer sobre tais temas, utiliza-se como aporte teórico o livro de
Émile Benveniste, Problemas de Línguística Geral, no qual dedica espaço para trabalhar a
ideia de alocução e seu emprego no discurso; além do ensaio de Julia Kristeva,
nomeadamente Estrangeiros para nós mesmos, em que levanta hipóteses sobre a relação eu-
outro. E demais livros de viés literário que, de certo modo, contribuem como arcabouço para
este trabalho.
Palavras-Chave: Al Berto, Alocução, Alteridade, Subjetividade, Eu.
ABSTRACT: Fear is the theme that outlines the entire Al Berto’s poetic production. This
emotional state that is resultant from the consciousness of danger and threaten that the world
imposes, infiltrates in the text of the Portuguese poet making the desire of self-reflection and
self-knowledge come out, and they are both present in the contemporary poetry. Based on
these questions, this article aims the comprehension of the unfoldment of the self in the poems
that are part of The Fearcollection, also the analysis subject’s state in the contemporaneity.
Some works will be used as theoretical contributors to discuss such themes: the book
Problems in General Linguisticsby Émile Benviste, that makes room for the discussion of
allocution in discourse; also, Julia Kristeva’s essay called Strangers to Ourselves, in which,
she brings up hypotheses about the relation between self and other. And also, other literary
books that contribute to the theoretical base of this article.
Keywords: Al Berto, Allocution, Alterity, Subjectivity, Self.
1
Mestre em Literatura Portuguesa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Membro do Grupo de Estudos
e Pesquisas em Literaturas de Língua Portuguesa da UFAM (GEPELIP). Manaus – Amazonas – Brasil.
E-mail kenedi.santosazevedo@gmail.com.
1. Introdução
2. Aditamento do eu
eis a deriva pela insônia de quem se mantém vivo num túnel da noite. os corpos de
Alberto e Al Berto vergados à coincidência suicidaria das cidades. [...] para
sobreviver à noite decidimos perder a memória. cobríamo-nos com musgo seco e
amanhecíamos num casulo de frio, perdidos no tempo. mas, antes que a memória
fosse apenas uma ligeira sensação de dor, registramos inquietantes vozes,
caminhávamos invisíveis na repetição enigmática das máscaras, dos rostos, dos
gestos desfazendo-se em cinza. escutamos o que há de inaudível em nossos corpos.
era quase manhã no fim deste cansaço. despertava em nós o vago e trêmulo desejo
de escrever. passaram doze anos e esquecer-te seria esquecer-me. repara no
estremecimento do sangue, a morte rendilhando peste nos ossos, os dedos
paralisados, a fala, os espelhos. no escuro beco do mundo segrego abelhas de
espermas, a luz do mar onde teço corpos de água, a escrita que vem da treva,
lembro-me: um corpo voltou a mover-se no interior do meu. (AL BERTO, 1997, p.
11, 12) [grifo do autor].
Quando saio de "mim" para estabelecer uma relação viva com um ser, encontro ou
proponho necessariamente um "tu" que é, fora de mim, a única "pessoa imaginável".
Essas qualidades de interioridade e de transcendência pertencem particularmente ao
"eu" e se invertem em "tu". Poder-se-á, então, definir o tu como a pessoa não
subjetiva, em face da pessoa subjetiva que eu representa; e essas duas "pessoas" se
oporão juntas à forma de "não-pessoa" (= "ele") (BENVENISTE, 1976, p. 255).
De acordo com o Dicionário de símbolos, de Herder Lexikon, “por parecer que morre
no inverno e ressurge na primavera, a abelha também surge como símbolo da morte e da
ressurreição”, além do que “simbolizam muitas vezes a eloquência melíflua, a inteligência e a
poesia” (2013, p. 09). Ao falar sobre o ofício da escrita, o eu-lírico o compara ao trabalho de
colher o néctar das flores para fabricar o mel, por parte das abelhas. Analisando essa imagem,
inicialmente, pode-se compreender que a escrita não é uma tarefa fácil, mas sim uma arte
laboral. Sendo de tal modo, o poema, pelas mãos do poeta, em comparação com o mel, o
resultado desse processo, “a eloquência melíflua, a inteligência e a poesia”. Mas, em todo
caso, o que tudo isso tem a ver com morte e ressurreição? O mel simboliza a vida, posto que é
alimento, deste modo, infere-se que para manter-se vivo, o poeta escreve. Que mesmo depois
de morto, continuará vivo por intermédio de seus textos. E isso se intensifica em Al Berto
porque ele renasce no eu-outro e se faz texto, poesia: “Por trás de cada poema existe o corpo
que o gerou num instante de pânico” (AL BERTO, 1997, p. 231).
As vicissitudes do eu ficam aparentes no poema “Auto-retrato com revólver”, de
modo especial quando se pensa no seu dilatamento a partir de um desprendimento: “as
palavras foram alinhavadas pelos preguiçosos dedos/ o texto transparece na claridade das
manchas de tinta/ teço a ausência de um corpo que me é absolutamente necessário, doem-me
estes gestos// [...] sinto-me vazio hoje (AL BERTO, 1997, p. 168).
A ambivalência do discurso al-bertiano torna-se notória, primeiramente porque em um
excerto fica dito que “por trás de cada poema existe o corpo que o gerou”, já em outro,
assume tecer “a ausência de um corpo”, e que sente-se “vazio hoje”. Al Berto se projeta nos
poemas a ponto de ausentar-se e tornar-se espectador de si mesmo. Ao mesmo tempo em que
observa a si, num jogo especular, percebendo do mesmo modo o vazio deixado pelo
dilatamento do eu em outro. Contudo, forjando uma postura narcisista, Al Berto e Alberto,
amplificam-se a ponto de não saberem se eu sou o tu, se o eu somos nós ou vice-versa, como
fica claro nos trechos “o espelho acende o meu reflexo. não me reconheço nele” ou ainda
“conheço-te, sou a tua imagem perdida uma noite dentro do espelho” (AL BERTO, 1997, p.
131 e 363).
Concorda-se com Helena Nagamine Brandão, quando afirma que “a noção de
subjetividade não está mais centrada na transcendência do EGO, mas relativizada no par
EU—TU, incorporando o outro como constitutivo do sujeito” (2004, p. 59). Dessa maneira,
fica proeminente que a linguagem, de modo especial, a poética, não é mais evidência,
transparência de sentido instituído por um único sujeito, visto como homogêneo, todo-
poderoso. Antes muito pelo contrário, é um sujeito que divide o espaço discursivo com o
outro, que no caso de Al Berto, é ele mesmo, como fica evidente no poema “recado”, do livro
Horto de incêndio, último publicado em vida pelo poeta, em que se constata o eu-lírico se
dirigindo ao ente que pode ser Al Berto ou Alberto.
ouve-me
que o teu dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para tua morte
estabelecido em si o estrangeiro não tem um si. No limite, uma segurança oca, sem
valor, que centra as suas possibilidades de ser constantemente outro, ao sabor dos
outros e das circunstâncias. Eu faço o que se quer, mas não sou “eu” – meu “eu” está
em outro lugar, meu “eu” não pertence a ninguém, meu “eu” não pertence a “mim”...
“eu” existe? (KRISTEVA, 1994, p. 16) [grifo da autora].
hoje
é o sangue branco das cobras que perpetua o lugar
o peso de súbitas cassiopeias nos olhos
quando o veludo da noite vem roer a pouco e pouco a planície
caminhamos ainda
sabemos que deixou de haver tempo para nos olharmos
a fuga só é possível para dentro dos fragmentados corpos
e um dia... quem sabe?
chegaremos
(AL BERTO, 1997, p. 191)
4. Considerações finais
ANGHEL, Golgona. Eis-me acordado muito tempo depois de mim: uma biografia de Al
Berto. Lisboa: Quasi, 2006.
FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade, política. Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran
Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
JÚDICE, Nuno. “A literatura portuguesa: dos anos 70 à década de 90”. In: Revista Brasil de
Literatura, Ano III, 2001 Disponível em:
http://members.tripod.com/~lfilipe/arqmorto/arquivo_morto.html. Acesso em 17 de
novembro de 2014.
KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Tradução de Maria Carlota Carvalho
Gomes. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
LEXIKON, Herder. Dicionário de símbolos. Tradução de Erlon José Paschoal. 15. ed. São
Paulo: Cultrix, 2013.
MAFFEI, Luis. Agora a dizer de agora, um esboço contemporâneo. In: ALVES, Ida,
MAFFEI, Luis (Orgs.). Poetas que interessam mais: leituras da poesia portuguesa pós-
Pessoa. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011.