Professional Documents
Culture Documents
Henrique Fontes
I
A ORGANIZAÇÃO DA COMPANHIA DRAMÁTICA
Era natural, nos fins do ano de 1882, na Capital da Província de Santa
Catarina, o ansioso aguardamento da Companhia Dramática a que dava nome a
menina Julieta dos Santos.
É que esta brasileirinha, que entrara a rivalizar com a genial atrizinha
italiana, Gemma Cuniberti, não era nenhuma desconhecida para a platéia do Teatro
Santa Isabel, pois nele havia estreado a 24 de abril de 1879, aos seis anos e três meses
de idade, ao lado da grande atriz Ismênia dos Santos, e merecera registro na crônica
teatral.
Francisca Julieta dos Santos - tal o seu nome completo - nascera em
Alegrete, na Província do Rio Grande do Sul, a 22 de janeiro de 1873. Seus pais -
Irineu Manoel dos Santos e Rita Leal dos Santos - e seus avós maternos - José
Maria Leal Ferreira e Francisca Leal Ferreira - eram artistas dramáticos e tinham
trabalhado no Rio de Janeiro e nas províncias do Sul. Filha e neta de atores, viu a luz e
fez-se menina no tumulto e nas peregrinações de gente de teatro; e, tendo-lhe morrido a
mãe no verdor da idade, foi criada por sua avó, que ficou sendo sua segunda mãe e a sua
primeira mestra.
Em 1879, já falecido o avô, foram seu pai e seu tio Joaquim Leal Ferreira
contratados para a Companhia Dramática organizada na Cidade de Desterro pelo
conceituado ator e empresário o português Guilherme da Silveira e de que Ismênia
dos Santos, chegada com eles do Rio Grande do Sul a 27 de fevereiro, foi a primeira
atriz.
Entre as peças de maior sucesso da Companhia estava “Maria Antonieta”,
famoso drama de Paolo Giacometti, em que Ismênia dos Santos fazia o papel da
protagonista, no qual se haviam celebrizado a grande trágica italiana Adelaide Ristori e
a preclara atriz portuguesa Emília Adelaide. O papel de Delfim da França, o filho da
desgraçada Rainha, foi dado à menina Francisca.
O drama subiu à cena a 24 de abril de 1879.
“A linda e simpática rainha, - comentou o crítico teatral do jornal “O
Despertador” - esteve sempre ante as vistas dos espectadores admirados e
surpreendidos pelo progressivo e gigante trabalho da insigne artista ( ... ). Um
bravo entusiástico à nossa primeira atriz! Luís XVI foi belamente representado
pelo inteligente ator Guilherme ( ... ). O Sr. Ferreira nos deu um Lafayette que
nada deixou a desejar, quer pelo lado do trabalho artístico, quer pelo
característico e vestuário, que foram os mais apropriados possíveis. Em geral, o
drama correu bem, todos os artistas se esforçaram para o bom desempenho de
seus papéis, o que conseguiram mais ou menos”. E segue-se um elogio à
pequenina estreante : “Seria uma injustiça deixar de aqui mencionar a menina
Francisca, que, no seu papel de Delfim, soube atrair a atenção do público pela
naturalidade com que representou.”
O aparatoso drama, apesar da sua demorada representação, que, começada
às 20 horas e 45 minutos, só terminou perto das duas da madrugada, agradou e foi
novamente programado. Mas a menina adoecera e Guilherme da Silveira quis fazê-la
substituir, ao que se opôs a primeira atriz: - “Não quero. Nunca trabalhei com uma
criança que tanto me agradasse. Não trabalho com outra, ou não vai a peça ou
há de esperar-se que a Chiquinha fique boa ...”
A “menina Francisca” também teve papel no drama “Fru-fru”, encenado a
11 de maio de 1879, em espetáculo de que foi beneficiada a insigne Ismênia dos
Santos. Mas nenhuma notícia ficou de como se aveio na representação..
A 27 de maio de 1879, depois de ter trabalhado na Cidade do Desterro desde
os princípios de março, embarcou a Companhia para a Província de São Paulo.
Noticiando a partida, disse o jornal “O Conservador”: “O Sr. Guilherme, Dª.
Ismênia, Ferreira e seus companheiros deixam gratas recordações ao povo
desta Cidade.”
Em São Paulo, tomou a família da menina Francisca parte em uma
Companhia dirigida por Luís Braga Júnior, que fez excursões de pequeno vulto na
Província, mas em que a menina não recebeu nenhum papel.
Mudou-se depois para a Capital. Aí, num espetáculo em benefício do grande
ator português Eduardo Brasão, que, com a distinta atriz italiana Celestina Paladini,
trabalhava na Companhia Simões, procurou a Sra. Francisca Leal Ferreira dar
notoriedade à netinha. Para isso fê-la decorar e recitar uma poesia, com a qual a menina
surpreendeu e arrebatou o corpo cênico e a platéia. Paladini, abraçando-a, disse-lhe
comovida: “Saúdo em ti, no futuro, a primeira atriz brasileira”. Brasão, beijando-
lhe na testa, chamava-a “A minha ilustre colega”.
Pouco depois, agregou-se a família ao ator e empresário Ribeiro
Guimarães, começando então a menina a trabalhar com o nome de Francisca dos
Santos.
A Companhia andou pelo norte de São Paulo, esteve em Campos,
Petrópolis, Juiz de Fora e São João d’El Rei, dissolvendo-se nesta última Cidade.
Regressou novamente a família Leal Ferreira para a cidade de São Paulo,
onde, em março de 1881, com ela entrou em entendimento o jovem ator Francisco
Moreira de Vasconcelos, então sócio de uma Companhia que trabalhava no norte da
Província e que ficara desfalcada de atores.
Moreira de Vasconcelos mandou propor-lhe contrato. Na família Ferreira
havia os artistas Joaquim Leal Ferreira, filho, Francisca Leal Ferreira, Jesuína Leal
e Irineu dos Santos. Francisca dos Santos ainda não tinha reputação teatral; mas foi-
lhe também indicada: menina de oito anos, que estrearia com a família, recitando “O
Opulento”, poesia muito em voga nas camadas populares.
Moreira de Vasconcelos encheu-se de curiosidade pela menina-atriz, mas
só a viu no palco a 10 de março desse ano de 1881, em São José dos Campos, na
Província de São Paulo; e ficou deslumbrado.
Demos-lhe a palavra. “Lépida, esbelta, bem conformada, donairosa no
andar, uns olhos castanhos, vivos, palpitantes de luz, buliçosos, sem um ponto
fixo, um riso alvorecente ao embate dos olhares da platéia, com a trança
longa, frisada por uns fios louros, uma voz sonora, timbrada como o som de
uma lâmina e vibrante como a nota de cristal ... O público recebeu-a com
palmas. O seu porte incutiu-me esse respeito grave que costuma incutir a
presença das coisas soberanas ... Descerrou os lábios. O primeiro verso adejou
esplêndido de melodia, por sobre as nossas cabeças, como um trino lângüido e
suave de pássaros tropicais ... O auditório não respirava. A voz da atrizinha
combinava em concentração melíflua as notas mais agradáveis da audição
humana. ( ... ) A poesia comum estava-se sublimando na dicção límpida da musa
teatral ! Quando o pano baixou, o público entusiasmado, vermelho, fremente,
louco, a bater palmas alucinadamente, fê-la subir mais duas vezes, numa grita
de possessos. (...) Era um portento que vinha arrebatar-nos as almas com as
explosões talmáticas do seu gênio ! E fui, pela primeira vez, abraçar um
artista”.
“No Rio Claro, - continua Moreira de Vasconcelos, - na noite do seu
primeiro benefício, fui ao palco recitar-lhe uma poesia, em que a animava a
prosseguir. ( ... ) Ao sair do tablado, toda a família Leal esperava-me de braços
abertos... e a velha avó de Julieta, com os olhos inundados desse pranto que
brota dos júbilos supremos ! Tinha sido eu o primeiro a ir saudar aquela criança
de oito anos, diante de um teatro repleto, quando o seu gênio era apenas
comentado na análise de um criança esperta”.
De março a maio de 1881, percorreu a Companhia as principais cidades do
sul e do oeste de São Paulo, sob aplausos. A menina ia progredindo, tendo sua avó e
primeira mestra atendido a indicações de Moreira Vasconcelos quanto à educação
artística da netinha; e o seu nome entrou a figurar nas crônicas teatrais, e a exercer nas
famílias entusiástica simpatia.
Nesta altura, chegou ao Brasil, e passou a arrebatar cultas platéias, a
prodigiosa italiana Gemma Cuniberti, atrizinha de onze anos de idade. Principiaram
então alguns patriotas brasileiros a louvar e encorajar a patriciazinha, esperançados de
nela terem uma competidora da outra menina, considerada rival da grande trágica
Adelaide Ristori.
Mais cresceram então em Moreira Vasconcelos o propósito e a certeza de
ostentar a menina Francisca dos Santos como glória do palco brasileiro. Faltavam,
porém, peças adequadas. Ele escreveu a poesia “Luz para o cérebro”, de propaganda
da instrução da infância, mais para “estudo lingüístico, dicção e gesticulação, do
que propriamente para a seara dos aplausos”. Escreveu depois a comédia “Um
diabrete de nove anos”.
Andava também a aborrecê-lo o nome “Francisca dos Santos”. Parecia-lhe
“nome de criança acrobática de uma companhia eqüestre da província”. Teve
uma inspiração. A menina era “Francisca Julieta dos Santos”, passaria a ser “Julieta
dos Santos”. E este nome e a sua portadora transpuseram os teatros das cidades
provincianas, chegando finalmente à Corte, onde a empresa do “Recreio Dramático”
firmou contrato para algumas apresentações da comédia que para ela escrevera Moreira
de Vasconcelos.
Deu-se a primeira apresentação no dia 22 de maio de 1882. Sobre ela assim
se expressou, dois dias depois, o decano dos jornais da Corte, o “Jornal do
Comércio”: “Anteontem é que na realidade, se apresentou pela primeira vez ao
público desta Capital, no Teatro Recreio Dramático, a menina riograndense
Julieta dos Santos, embora uma semana antes já tivesse aparecido naquele
palco, onde, na noite de benefício do diretor fiscal da empresa, recitou, com
aplauso geral, a poesia “Aurora do Artista”, segundo noticiamos. A mesma
poesia recitou anteontem, mas na comédia em um ato “Um diabrete de nove
anos”, na qual coube o principal papel, é que ela pôde mostrar o seu talento.
Uma criança inteligente e perspicaz; meiga, se lhe falam ao coração; caprichosa
e irritadiça, se a contrariam com insistência; um pouco maliciosa, dessa malícia
que não é de estranhar na idade de oito a dez anos, e imensamente traquinas, o
que lhe valeu o qualificativo de diabrete, tal é a pequena Lili representada pela
menina Julieta , com grande talento e muita naturalidade, graça e
desembaraço, revelando possuir dotes artísticos que tanto têm feito admirar
Gemma Cuniberti, a quem, a despeito de ter tido escola e outro cultivo, não
nos parece nada inferior, consideradas ambas em papéis do mesmo gênero. Se
a Julieta dos Santos possui as qualidades artísticas múltiplas, que temos
admirado na pequena atriz italiana, é um talento digno de ser cultivado com
esmero, dando-se à menina riograndense educação apropriada, no sentido de
dirigir inteligente e conscientemente o natural desenvolvimento de seus
dotes excepcionais, sem nunca obrigá-la a excessivos esforços prematuros, dos
quais, em vez do bem desejado, resultará o seu definhamento, senão a sua
completa inutilização”.
E outros jornais da Corte proclamaram que Julieta não era em nada inferior
a Gemma Cuniberti, que então estava a trabalhar no Ginásio Dramático.
O Imperador Pedro II, que prestigiara a atrizinha italiana, indo vê-la
representar, quis igualmente apreciar a menina brasileira; e a empresa, para ter a honra
da augusta presença, realizou um espetáculo no Teatro São Luís, porque o seu não tinha
tribuna imperial; e o Monarca aplaudiu a atrizinha brasileira e depois a recebeu em
audiência na Quinta da Boa Vista, consagrando-a como uma grande esperança nacional
e digna êmula de Gemma Cuniberti.
Começaram a ferver conselhos sobre a necessária educação artística da
menina. Não apareceu, porém, quem a custeasse. Não surgiu a generosidade de nenhum
Barão de Mesquita, conforme o apelo de José Bonifácio pela “Gazeta da Tarde”;
nem veio ampará-la “esse pobre-rico, o povo”, conforme conclamou Carlos de Laet,
em folhetim do “Jornal de Comércio”.
Julieta dos Santos teve um espetáculo em seu benefício, calorosamente
auxiliado por Ernesto Senna, do “Jornal do Comércio”, e pelo gaúcho Favilla
Nunes. Foi uma das maiores enchentes do Recreio Dramático, sendo a beneficiada
freneticamente aplaudida. Mas o festival teve o seu ponto fraco na comédia, em um ato,
“A vingança de Bilu”, adrede escrita por Francisco de Freitas, comédia que a crítica
agrediu sem dó nem piedade.
Renovaram-se então os conselhos à família Vasconcelos, de muita
prudência e critério na escolha das peças. Mas nenhum teatrólogo da Corte
proporcionou à desabrochante atrizinha provinciana drama ou comédia em que ela
pudesse afirmar a sua virtuosidade. Não repetiram o favor dispensado à educada e bem
provida Gemma Cuniberti, para quem, expressamente, escreveram Artur Azevedo e
Urbano Duarte o drama “O Anjo da Vingança”, e a quem se forneceu, em versão
italiana, o “Demônio Familiar”, para que ela brilhasse no papel de moleque Pedro,
dessa famosa comédia de José de Alencar.
Para fazer Julieta sair da esterilizante monotonia do escasso repertório e
para lhe dar mais vasta e variada platéia, traçou o jovem Moreira de Vasconcelos
arrojado plano: formar uma companhia a que a menina desse o nome, a exemplo
daquela que estava levando Gemma Cuniberti a percorrer o mundo. Parecia-lhe este o
caminho para educá-la, pela crítica imparcial; para obter-lhe repertório, “pelo
patriotismo desafiado”; para fazê-la a primeira estrela da rampa nacional. “Não
seriam as pequenas opiniões, fermentadas no despeito, a julgá-la: seria essa
enorme opinião, que vem do Grão-Pará ao Rio Grande do Sul”.
Cartão de visita para se apresentar ante qualquer platéia ela já possuía.
Desde o Imperador, na Quinta da Boa Vista, às coletividades populares, nos diversos
teatros - Fênix Niteroiense, Recreio Dramático, São Luís, Sant’Ana e Recreio
Riachuelense, a unanimidade julgara-a um talento excepcional, aplaudindo-a com
entusiasmo.
Foi, destemerosamente, organizada a companhia; e a 30 de julho desse
ano de 1882, a bordo do paquete “Rio Negro” e com rumo ao sul, deixou a Baía de
Guanabara, que, três semanas antes, havia deixado a atrizinha italiana, de quem a
brasileirinha se fizera rival e a quem devia, “pelo patriotismo desafiado”, os lauréis
começados a colher.
II
A COMPANHIA DRAMÁTICA JULIETA DOS SANTOS
NA CIDADE DO DESTERRO
A CHEGADA DA COMPANHIA
Assemelhando um cometa
De ascensão, radiante,
Vertiginosa e avante
Surgiu enfim - Julieta.
Vejamos quem são João da Cruz e Sousa, Virgílio dos Reis Várzea e
Manoel dos Santos Lostada : são moços que, na sempre renovada lutas das gerações,
para ela, nas letras estão abrolhando na Capital da Província de Santa Catarina.
Os três haviam publicado em 1881, de maio a setembro, um periódico
literário chamado “O Colombo”.
João da Cruz e Sousa, preto sem mescla, filho de mãe liberta e pai escravo,
nascera na Cidade do Desterro, no ano de 1861, a 24 de novembro, dia de São João da
Cruz. Nascera livre, porque a condição materna - o ventre - é que determinava a
condição civil do filho. Fora criado com toda a estimação na casa abastada de
Guilherme Xavier de Sousa, militar catarinense, herói da Guerra do Paraguai, que
chegou ao posto de marechal de campo e faleceu a 21 de dezembro de 1870. Sua viúva,
Dona Clara Angélica, viveu até 13 de fevereiro de 1875, quando João da Cruz, já
entrado na casa dos catorze anos, era aluno do Ateneu Provincial. Seus pais, Guilherme
de Sousa, já liberto e pedreiro, e Carolina Eva da Conceição, que cozinhava e lavava
para fora, casados a 16 de agosto de 1871, passaram a sustentá-lo, e ele pôde continuar
regularmente os seus estudos. Fez exames preparatórios perante o Delegado da
Instrução Pública nos anos de 1875 e 1876, obtendo aprovação em português, francês e
geografia. E foi aluno distinto, sendo uma verdadeira consagração o seu exame de
francês, prestado na presença do Presidente da Província. Criado no meio de brancos
ilustrados, entrou a participar-lhes das atividades já no ano de 1879, antes de completar
18 anos, sem encontrar restrições quanto à habilitação literária nem esbarrar com
repulsas por causa da origem familiar ( 6). Possuía até melhores títulos escolares do que
os seus dois companheiros brancos.
Virgílio dos Reis Várzea, também da Ilha, mas do lado do mar grosso,
nascera na Freguesia de Canasvieiras, em 1863, no dia 6 de janeiro - Dia de Reis -
donde o seu sobrenome. Era filho do capitão da marinha mercante João Esteves
Várzea, português, e de Dona Júlia Maria Várzea, filha do Major Luís Alves de
Brito e de Dona Miquelina Leonarda de Lemos, gente abastada. Sua família passou a
residir na Cidade, onde ele freqüentou escolas, tendo sido aluno distinto na aula gratuita
de desenho do pintor Manoel Francisco das Oliveiras. Órfão de pai aos treze anos,
tentou fazer o curso na escola Naval. Praticou depois para piloto da marinha mercante e
fez viagens transoceânicas. Desembarcando a instâncias maternas, voltou para o
Desterro em 1881 e aqui estava a agenciar a vida, ultimamente como partidor do foro,
auxiliando a família, que, embora empobrecida com a morte do chefe, não decaíra em
decoro, mantendo boas e prestigiosas amizades e participando da vida da Cidade.
Manoel dos Santos Lostada , nascido a 8 de março de 1860, era o mais
idoso dos três. Era quase ilhéu, pois vira a luz na margem da Baía do Sul da Ilha de
Santa Catarina, mas no continente, na Enseada de Brito. Era de modesta família do sítio,
filho de Marcelino José Inácio e de Dona Generosa Maria da Glória, casados a 21
de junho de 1845. O nome de Manoel dos Santos Lostada ele o formou com inteira
legitimidade, indo buscar os apelidos nas linhas paterna e materna: o avô era José
Inácio de Lostada, o materno era Manoel Luís dos Santos. Nenhuns estudos
regulares fizera e, na ocasião era caixeiro de venda. A seu respeito será perguntado um
ano depois: “Quem é o menino Lostada? Ainda há poucos dias que, na qualidade
de caixeiro do cidadão Marciano de Carvalho, vendia copos de cachaça ao
balcão ! ! ! ( ... ) Apenas aprendeu a ler pouco, a escrever pouco, a contar pouco,
e não conhece a gramática portuguesa senão de nome...” (7 )
Lostada era, entretanto, grandemente conceituado na sua roda. Dele, a esse
tempo, dizia Virgílio Várzea: “ Dos talentos da nova geração é um dos que podia
ter maior nomeada. Porém a acanhada esfera em que vive o tem
impossibilitado de tal. (... ) Tem escrito muitos versos; mas furta-os ao sol da
publicidade, pensando que são gotas d’água.” ( 8 )
Apresentados os três campeões da renovação, fanáticos vitoriadores da
atrizinha Julieta dos Santos, voltemos às impressões da sua estréia.
Murmurou-se que José de Araújo Coutinho, português de nascimento,
radicado no Desterro, onde se casara em 1871, antigo homem de teatro, andara
espalhando entre os espectadores não haver o menor trabalho em ensinar a qualquer
criança o que a laureada menina faz; que ela possui uma dicção não correta, e que nela
“fala a cabeça e não o coração” .
Daí, um artigo entre indignado e respeitoso, inserto como “publicação a
pedido”, em “O Caixeiro”, de 31 de dezembro de 1882, sob o pseudônimo de
Argemiro Pontes. E José de Araújo Coutinho, revestindo-se da sua autoridade de
teórico e prático de coisas teatrais, - ator e empresário que já fora e ensaiador que ainda
era, - varreu a sua testada, em declaração datada de 1º. de janeiro de 1883 e publicada
no “Jornal do Comércio”.
“Não devo dar-lhe a menor importância e resposta, porque não as
merece nem me fica airoso discutir com quem não sei se está habilitado a
conhecer os requisitos da arte de Talma e a avaliar o trabalho dos artistas que a
adotam como profissão e mesmo se as suas condições intelectuais são iguais às
minhas, em estado de perfeito juízo. É, portanto, somente a Julieta dos Santos e
ao público, que a tem apreciado e acolhido no seio de suas famílias, que venho
dar uma satisfação dessas acres e nojentas acusações de Pontes, que não é
Pontes ( ... ) . Disse eu, em pleno saguão do Teatro, em a noite do primeiro
espetáculo da Companhia Dramática Julieta dos Santos (...) que esta débil e
frágil criança, atrizinha de nove anos, é uma inteligência não cultivada ainda,
porém robusta, que raras vezes aparece; uma vocação pela arte como ainda não
se apresentou no Brasil, no seu sexo, principalmente na sua idade; que tem
alguns pequenos defeitos de dicção e entonação que não existiriam se tivesse
como ensaiadores Furtado Coelho, Amoedo, Vitorino Ciríaco e outros com
iguais aptidões; que para exceder a Gemma Cuniberti, só lhe faltam estes
mestres, guias essenciais para elevá-la ao apogeu do talento artístico
dramático, sem o menor defeito, formando-se um gênio, uma raridade e uma
glória para o Brasil que se ufanará de possuir em seu seio uma filha como
Julieta dos Santos.”
E depois de outras considerações e de citar testemunhas, terminou:
“Desafio a quem possa desmentir criteriosamente o que acabo de expor, e
assim tenho cumprido o meu dever perante a minha consciência, perante
Julieta dos Santos, a quem desejo mil venturas, e também perante o público
cuja opinião devemos respeitar, julgando o proceder do seu semelhante”.
Houve, assim, público e favorável pronunciamento de experimentado
profissional sobre a glorificada atrizinha . E há, na sua resposta, uma circunstância que
merece relevo : o acolhimento que Julieta encontrou no seio das famílias.
Continuemos a ouvir os endeusamentos de Julieta.
Os versos em que Virgílio Várzea pôs o Niágara e os grandes rios a
dialogar com os quatro ventos sobre o “portento soberano”, são de 26 de dezembro,
dia seguinte ao da estréia. Em outros, desse mesmo dia, continuou ele a derramar a sua
exaltação; e esses novos versos, de várias medidas e em estrofes variadas, dilatam-se
por 207 linhas métricas, tendo por epígrafe palavras do próprio autor - “Dá-me uma
centelha do teu gênio, / Se queres que mais diga”.
Com este glorificador cortejo de tão estranhos entes, não esgotou Virgílio
Várzea o seu arrebatamento. No dia seguinte, 27 de dezembro, irromperam-lhe novos
versos, que abrem com palavras sugeridas pela “Deusa incruenta”, de Castro Alves, e
repetem termos e figuras dos versos anteriores.
Quem será este “átomo de luz”, esse emissário do “brasíleo gênio”, que
“rápido sumiu-se além do infinito” e “deixou na Europa o povo helêneo idolatrando-o
com fervor contrito” ?
É, manifestamente, figura do teatro, porque leva “estrídulas ovações
consigo”, e porque tem a “força do motor proscênio”. Mas, razoavelmente, não será
Julieta dos Santos, porque não consta haja a sua fama chegado à Europa ; “Sentiu um
choque o continente antigo”.
Será o preclaro João Caetano dos Santos ( 1808 - 1863 ), comparado ao
trágico francês Talma ( François - Joseph Talma, 1763 - 1826) e mesmo cognominado
“Talma Brasileiro” ? Ele em 1860 foi a Portugal e representou com êxito em Lisboa.
Seja quem for, o óbvio é que a imagem “átomo de luz”, há de ter sido
inspirada no cometa que, nos fins desse ano de 1882, foi visível nos céus do Desterro,
conforme noticiou “O Despertador”, de 20 de setembro : “Anteontem de manhã, a
população desta cidade foi surpreendida com a aparição de um cometa
próximo ao sol e distintamente visível” . E a 30 do mesmo mês, inseriu nova
informação: “Continua a ser visível a bela estrela caudal que fora observada
ultimamente durante o dia perto do sol. Agora, às cinco para as seis horas, é
visível esse magnífico cometa do lado do nascente, pouco antes do despontar
do dia.”
Este cometa, “numa noite de observação”, já inspirara um soneto a
Virgílio Várzea, que o dedicou ao seu “prezadíssimo amigo” Manoel dos Santos
Lostada, publicando-o em “O Caixeiro”, com a data de 20 de novembro de 1882.
O SEGUNDO ESPETÁCULO
E multiforme
Só lágrimas de prata
Ou mesmo se desata
Um vagalhão de palma diamantino ! ! ...
Minh’ alma oscila e até na fronte sinto
Medonho labirinto,
Estúpida babel,
E vou cair, revel,
No pélago sem fim dos nadas materiais!
E como os racionais
Eu fico a ruminar umas idéias
De erguer-te, ó novo Talma
Um trono singular, mas feito de Odisséias,
De brancas alvoradas,
Olímpicas, nevadas,
Dos êxtases magnéticos, nervosos de minh’ alma! “ (18)
“Do Universo o grande Obreiro (...) trabalhou (...), seu trabalho foi diário;
e, quando concluiu, mandou um emissário dizer a todo o mundo o gênio tão profundo
que tinha de enviar-nos... E foi este cometa, que disse a toda a terra o nome - Julieta
!”.
Manoel dos Santos Lostada saiu da toada singela para versos vários,
abundantes e arrebatados, tomando por lema versos de Moreira de Vasconcelos “É que
tu tens o dom magnético do gênio ... / Para prender o mundo à rampa do proscênio !”
O QUARTO ESPETÁCULO
O QUINTO ESPETÁCULO
O SEXTO ESPETÁCULO
O SÉTIMO ESPETÁCULO
O OITAVO ESPETÁCULO
“É a hora da partida...
Quero dar-lhe estreito abraço,
E qual ímã junto ao aço
Vai minh’alma à tua unida.
Nunca desates na vida
Da nossa amizade o laço,
Tão pura como é o espaço
Agora ... na despedida.
III
1882. F. de P. M. de C.
“À Independência”