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TEATRO E QUADRINHOS:
uma abordagem pós-moderna
Luiz Zanotti
Z36en
ISBN: 978-85-64471-56-6
CDD 869.4
CDU 82-4
Impresso no Brasil
6 Luiz Zanotti
Desta forma, o sujeito pós-moderno tem a sua
identidade multifacetada, e passa a ser conceituado não
como uma identidade fixa, essencial ou permanente,
mas como uma identidade formada e transformada
continuamente em relação às formas pelas quais somos
representados ou interpelados nos sistemas culturais que
nos rodeiam. Para Hall (2004, p. 13), existem dentro de
nós, identidades contraditórias, que nos movimentam
em diferentes direções, de tal modo que nossas
identificações estão sendo continuamente modificadas
ou deslocadas.
Essa fragmentação traz junto consigo a ideia de
que a realidade está longe de ser homogênea, e que não
é sem razão que o pensamento pós-moderno tenha
abandonado as categorias da totalidade e da essência, o
que significa que tanto o ponto de partida quanto o
ponto de chegada do conhecimento são os dados
empíricos; em outras palavras, não existe uma verdade
atrás de uma aparência, o que existe é só a aparência.
Ainda segundo Hall (2004), a forma unificada e
racional do homem moderno estabelecida a partir da
filosofia cartesiana - centrada no cogito, ergo sum -
começa a ser descentrada a partir do pensamento
marxista. De acordo com esse pensamento, os homens
constroem a História através de suas relações sociais,
eliminando a possibilidade do atributo da
individualidade singular de cada indivíduo.
Para o dramaturgo marxista Bertold Brecht
(1967), o homem é fruto do meio em que vive e,
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protesto de Ginsberg à sociedade capitalista que o autor
chama de Moloch, seja através da ironia de Crumb ao
comentar anúncios comerciais transmitidos nas rádios e
TVs.
Também pudemos verificar nestes artigos a
exacerbação da racionalidade através do conceito de
“produção de presença” elaborado por Gumbrecht que
traz a referencia a uma relação espacial com o mundo e
seus objetos. Uma coisa presente deve ser tangível pelas
mãos humanas e ter um impacto imediato no corpo
humano.
A “produção de presença” diz respeito a todos os
tipos de eventos nos quais existe um impacto de um
determinado objeto que inicia ou intensifica algo nos
corpos humanos sem necessariamente terem sido
mediados pela razão. Significa mais do que a simples
atribuição de um significado metafísico para um objeto
no sentido aristotélico de “além da física e do corpo”
para assumir como a presença desses objetos impacta o
corpo humano.
Este conceito é aplicado principalmente nestes
artigos sobre quadrinhos no sentido de uma narrativa
onde ambos os autores/quadrinhistas abordam a
sexualidade, uma das formas, segundo Gumbrecht de se
obter a “produção da presença”:
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GLAUBER ROCHA, LEITOR DE GUIMARÃES
ROSA.
Introdução
O objetivo deste trabalho é apresentar como a
idéia da coexistência de elementos mutuamente
excludentes, da forma como nos é apresentada através
das palestras de Wolfgang Iser por ocasião do VII
Colóquio UERJ1, se encontra presente, tanto em Grande
sertão: veredas (1956) 2 de João Guimarães Rosa, como
também é utilizada por Glauber Rocha em seu longa
metragem Deus e o diabo na terra do sol (1964)3.
Para isto, inicialmente traçamos uma ligeira
revisão da teoria iseriana desde o aparecimento da teoria
dos efeitos (reader-response criticism), que enfoca a
assimetria entre texto e leitor, até o conceito de
antropologia literária, que trata da interação entre o
fictício e o imaginário.
É importante notar, que mais do que trabalhar na
interpretação destas duas obras de arte, procuramos
aplicar a teoria de Iser como uma explicação para o
fenômeno da coexistência de elementos mutuamente
exclusivos, pois como o próprio Iser afirma: “É
importante notar que tanto as teorias do efeito estético e
1
Estas palestras se encontram transcritas em Teoria da ficção:
Indagações à obra de Wolfgang Iser (1999), conforme
referências bibliográficas.
2
Que será referido no decorrer deste trabalho como Grande sertão
3
Que será referido neste trabalho como Deus e o Diabo
Ensaios sobre cinema, teatro e quadrinhos: 11
uma abordagem pós-moderna
a antropologia literária são basicamente constructos,
ora, constructos não são necessariamente descrições de
ocorrências empíricas”. (ISER in ROCHA, 1999, p. 47)
Iser mostra, no percurso da sua obra, toda a sua
orientação teórica heurística, mantendo um certo
afastamento de instrumentos interpretativos, através
dos quais diferentes estruturas de constituição de
sentido são examinadas e, logo, decodificadas, ou seja,
com o analista se obrigando a fornecer uma
interpretação para um determinado texto.Dessa forma, a
teoria de Iser está muito mais voltada para pressupostos
heurísticos capazes de descrever qualquer gênero de
produção de sentido, ou seja, para investigar as
condições mais gerais ( e portanto mais abstratas) que
possibilitam o próprio ato interpretativo.
(SCHOLLHAMMER in ROCHA, 1999, p. 119)
Seguindo um raciocínio semelhante, João César
Rocha lembra que Iser tem elaborado uma reflexão que,
a exemplo do objeto investigado, se modifica, incorpora
novos conceitos, retoma preocupações, aprofundando
seu alcance e redefinindo suas prioridades numa rara
lição de precisão teórica que continuamente se adapta a
“indecibilidade” do objeto (ROCHA, 1999, p.14).
Enfim, a teoria de Iser se limita através de um esforço
heurístico a constituir esquemas com a finalidade de
mapear a realidade e, portanto, a abordagem iseriana
não pretende interpretar realizações determinadas, mas,
pelo contrário, almeja fornecer um sistema de
referências no âmbito no qual aquelas realizações
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adquirem especificidade, ou seja, não se trata de
elaborar métodos particulares de interpretação, mas de
mapear as disposições mais básicas no interior das quais
o ato interpretativo se torna concebível, e até mesmo
necessário.
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credita à indeterminação de um texto, o que como
veremos adiante possibilita a idéia da coexistência de
elementos mutuamente excludentes. Iser, no primeiro
capítulo “Arte parcial- A interpretação universalista” do
livro O ato de leitura (1996) apresenta a inadequação do
gesto da interpretação teórica da literatura que busca as
significações aparentemente ocultas nos textos
literários, tomando como exemplo o conto The figure in
the carpet (1896), de Henry James, onde o autor
problematiza a procura por significações ocultas nos
textos - o que provavelmente desempenhou um papel
importante na crítica literária de sua época - , mostrando
a sua inadequação (ISER, 1996b, p. 23).
Assim, uma vez perdido o solo firme do
“essencialismo” e com o texto deixando de ser o foco
principal da análise, esta passa para o leitor em sua
interação com o texto; e ciente que nenhuma história
pode ser contada na íntegra, Iser vai trabalhar com o
constructo de um texto que é pontuado por hiatos,
lacunas e negatividades que têm de ser negociados no
ato da leitura. A lacuna (vazio) no texto ficcional induz
e guia a atividade do leitor com a suspensão da
conectibilidade entre segmentos de perspectivas,
possibilitando a participação do leitor no texto;
enquanto a negatividade significa a não realização de
um procedimento (que é esperado pelo leitor), isto é, a
sua realização negativa com a intenção de empurrar o
leitor para fora do texto.
Toda esta estrutura, segundo Schwab traz um
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ficcional, o imaginário e a realidade, tornando possível a
caracterização do referencial reportado, mas sem a
possibilidade de ser por ele determinado, afirmando
assim a proximidade entre os textos ficcionais e não-
ficcionais, uma vez que eles são apenas materiais para a
intenção do autor quando seleciona estes elementos que
vão aparecer na narração, pois, não há representação
puramente concebida, re-presentada.
O processo de elaboração do texto ficcional é
bastante complexo, podendo ser caracterizado como
uma travessia de fronteiras entre dois mundos, que
sempre inclui, o mundo que foi ultrapassado e o mundo
alvo a que se visa, que tanto pode se relacionar a uma
mentira que busca exceder a verdade, como uma
ultrapassagem do mundo real. Para se perceber as
implicações destas duplicações é importante notar que
os atos de fingir, componente básico dos textos
literários, oferecem diferentes áreas para o jogo.
O fictício para realizar o que tem em mira,
depende do imaginário - que não é auto-ativável - , pois
o que tem em mira só aponta para alguma coisa que não
se configura em decorrência de se estar apontando para
ela: é preciso imaginá-la. O horizonte de possibilidades
prefigurado pela transgressão de fronteiras
inevitavelmente modifica as realidades que foram
ultrapassadas, sendo que o imaginário só pode ser
apreendido por meio de seus efeitos que uma vez
ativados, faz com que o que era não possa permanecer o
mesmo.
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mundo aberto as soluções são, na melhor das hipóteses,
provisórias, inexistindo respostas conclusivas” (ISER in
ROCHA, 1999, p. 217).
Iser desenvolve a interação do fictício com o
imaginário, apesar da dificuldade de qualquer afirmação
de suas naturezas ontológicas, pois só podemos
apreendê-los mediante uma descrição operacional das
suas manifestações, através do jogo (play), uma
estrutura capaz de propiciar diferentes tipos de
interação, quer entre o texto e o leitor, quer entre o
fictício e o imaginário. Isso significa que a
“ficcionalização” sempre está sujeita a mudanças, em
decorrência de sua inabilidade para controlar o alvo a
que visava. O jogo emerge da coexistência do fictício e
do imaginário que se fundem, visto que cada um é em si
mesmo incapaz de cumprir qualquer função específica,
sendo necessária a sua interação para desencadear
aquele movimento de jogo.
Assim, num universo ficcional indeterminado, dentro de
uma ilimitada perspectiva de interpretação apoiada pela
dinâmica semântica fornecida pelo jogo interpretativo, e
pelas mudanças constantes de realizações imaginárias,
aparece a condição de existência para a “coexistência de
elementos mutuamente excludentes”, um conceito, que
segundo Jean Paul Riquelme não pode ser previsto por
Aristóteles, pois ao contrário da mimesis; Iser mostra,
desenleaando a trama aristotélica, que a leitura da
literatura é múltipla, podendo chegar-se ao final dela,
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3. A coexistência de elementos mutuamente
excludentes em Grande sertão
1
Todas as referências ao romance Grande sertão: vereda é feita
através da sigla R., acompanhada do número da pagina
conforme edição apresentada nas referências bibliográficas.
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P’an-ku e Lao-kiun, tinham o olho direito ligado ao Sol
e o esquerdo a Lua, sendo que a primeira
correspondência aponta para o futuro, para o princípio
masculino, para a autoridade e a segunda para o
passado, regendo atividades associadas ao princípio
feminino, à fecundação.
1
Barros, assim como Mello, procura desmistificar a imagem
mitológica de Lampião como justiceiro e ideologicamente voltado
para a defesa dos fracos num combate ao coronelismo. Para
Frederico o mito foi formado, principalmente por três fatores, uma
mídia jornalística da época que explorava o assunto, as condições
propícias do sertão (cenário decisivo não apenas no seu aspecto de
ser uma cultura francamente receptiva à violência) e o escudo ético
utilizado pelos cangaceiros.
2
A Tábua de Esmeralda (ou Tábua Esmeraldina) foi o texto que
deu origem à Alquimia islâmica e ocidental.
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“Ouro e prata que Diadorim aparecia ali” (R., p.405)
configura a coexistência do masculino com o feminino
que se faz da seguinte forma: “masculino: o sol, ouro, o
fogo, o ar, o rei, o espírito de enxofre; feminino: a luz, a
prata, a terra, a água, a rainha, o espírito de mercúrio”
(BRANDÃO citado em ALMEIDA, 2009). Ouro
associado ao princípio masculino e ao espírito de
enxofre; a prata ao princípio feminino e ao espírito de
mercúrio.
Enfim, na tentativa de visualizar o processo pelo
qual o real, o fictício joga com o imaginário nessas
diversas leituras, é interessante notar que Loyolla (2009)
apresenta a pedra ametista, como um elemento que
ajuda a elucidar o comportamento ambíguo de
Diadorim, que às vezes é dócil e às vezes é seco, pronto
para matar e vingar. Esta pedra corresponde na
astrologia ao planeta Vênus que faz duas aparições nas
duas extremidades do dia, sendo por isso conhecido
como estrela da manhã e estrela da tarde, o que faz dele
um símbolo de morte e renascimento. “Como deusa da
tarde, sob a influência da lua, favorece o amor e a
volúpia — uma divindade do prazer; como deusa da
manhã, em virtude de seu parentesco com o sol, preside
os atos de guerra e massacre. Assim em Diadorim, ora
suas qualidades guerreiras se impõem, ora ela se
permite ao prazer” (LOYOLLA, 2009).
Essa dualidade estrela da manhã e estrela da tarde
parece ser uma das grandes coincidências entre esta
interpretação proposta por Loyola e o comentário
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espectador um tipo acabado [...], um tipo reduzido, um
tipo estratificado, um tipo dentro dessa tradição, não se
dá a menor possibilidade de diálogo com o espectador,
porque se coloca [...] (AVELLAR, 1995, p. 17)
Da mesma forma como observou certa vez
Marcel Duchamp, "o artista não é o único a realizar o
ato de criação porque o espectador interpreta e decifra
suas significações profundas e acrescenta assim sua
própria contribuição ao processo criativo", Glauber vê a
criação como uma série de esforços, de dores, de
satisfações, de negações, de decisões que não podem
nem devem ser plenamente conscientes, pelo menos no
plano estético. A obra é a expressão em estado bruto,
que deve ser refinada pelo espectador pois: "Liberta pela
imaginação o que é proibido pela razão" (GLAUBER
citado em AVELLAR, 1995, p. 59)
Mas esta liberdade oferecida pela imaginação
não significa para Glauber, assim como já vimos em
Iser, que o filme altere a realidade, pois para ele sempre
existe o aproveitamento e desenvolvimento de
elementos reais:
Não há uma só coisa no filme que não corresponda a um
dado real e concreto, inclusive o próprio fato do
cangaceiro girar. Por que escolhi o Corisco? O Corisco
tinha todas aquelas características que me interessavam:
era um sujeito rápido, ágil, místico, histérico e verboso.
Tinha tudo isso, se chamava Corisco porque ninguém
acertava nele: andava rodando mesmo. (GLAUBER
citado em AVELLAR,
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(fotografia), a conjugação em reversibilidade entre duas
dimensões do audiovisual. Tal reversibilidade infinita
torna possível a coexistência dos elementos contrários,
pois como vimos, Glauber cria uma imagem onde o
espectador descobre que não está a ser imposta uma
visão dirigida como um produto concluído do autor,
buscando eliminar a idéia do espectador como um ser
que contempla, de maneira semelhante com que
Guimarães Rosa trabalha na indeterminação. O artista
quer expulsar e revelar no homem seu conflito e
inconformismo com o mundo e impulsioná-lo ao
desconhecido.Neste sentido, a coexistência dos
excludentes trabalha no sentido de quebrar a resistência,
a automação da consciência, na desconstrução do
caráter normativo das coisas, a fim de abrir espaço para
o novo: “Pela arte é possível "pensar a natureza e o
absurdo" (GLAUBER citado em VENTURA, p. 170).
A “desrazão” que possibilita a coexistência dos
excludentes faz parte da estética de Glauber que
reivindica a libertação das variações ideológicas da
razão e que promova a fusão do humano ao cosmos. A
revolução explicita que a pobreza é um fenômeno da
razão dominadora que recusa o desconhecido,
classificando-o como irracional. A revolução é a
"desrazão" que liberta o homem da razão repressiva. Ela
se faz na imprevisibilidade (VENTURA, 2000, p. 284).
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de Glauber, que se fixa através de elementos móveis,
meios de transportes, que têm justamente a função de
promover uma passagem, de fazer algo circular. E toda
essa circulação ocorre para que a imagem surja, para
que uma determinação se configure. A imagem-
movimento tem por condição a passagem ou a troca que
produz na aproximação de dois elementos mutuamente
excludentes tais como: o vidente e o visível, o visível e
o invisível, o homem e o mundo, a imagem e o som, a
figura e o fundo, e assim por diante.
Nessa aproximação, uma instância pode se
prolongar em outra de maneira que elas se tornem
equivalentes e a circulação chegue a um fim ao se
formalizar uma unificação. Nesse caso, a imagem só
alcança designar, manifestar, ou, no máximo, significar
o mundo, o real, o visível. Em outros casos,
aproximados os domínios, uma diferença íntima entre os
afetos permanece, fissura que jamais cicatriza e através
da qual os domínios se comunicam e se revertem
infinitamente. Nessa comunicação infinita as instâncias
se transformam e o real, transfigurado, torna-se
transreal. (COSTA, 2000, p. 133)
Finalmente, podemos afirmar que tanto Glauber Rocha,
como leitor de Guimarães Rosa, agregou ao seu
repertorio uma estética onde se privilegia a
indeterminação, mostrando a incrível aderência da
teoria de Iser, ao romance rosiano, pois, em literatura, a
encenação torna concebível a extraordinária plasticidade
dos seres humanos, que por possuir uma natureza
6. Referências bibliográficas
32 Luiz Zanotti
em 27/07/2009.
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Rosa-e-Riobaldo-a-porosidade-poetica-Bernardo-
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34 Luiz Zanotti
APOCALIPSE 1,11: MEMÓRIA E
ESQUECIMENTO
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A “cultura da memória” parece ter a sua origem
naquilo que Huyssen chama de “decadência da
modernidade”. Segundo Huyssen (1992, p. 28), a
“exaustão da modernidade” se iniciou com um “novo
iluminismo”, que “exigia um projeto racional para uma
sociedade racional, mas a nova racionalidade foi tomada
por um fervor utópico que, por fim, levou-a a desviar-se
em direção ao mito — o mito da modernização. Neste
sentido, ocorreu uma total recusa do passado em seu
apelo à modernização através da padronização e da
racionalização. Esta “utopia modernista” acabou por
naufragar em suas próprias contradições internas, na
política e na história, propiciando o chamado pós-
modernismo. O termo pós-modernismo se cristalizou
antes da metade dos anos 70, quando afirmações sobre a
existência deste fenômeno social e cultural tão
heterogêneo começaram a aparecer na filosofia, na
arquitetura, nos estudos sobre cinema e em assuntos
literários, ganhando uma espécie de confirmação inter-
diciplinar a partir da publicação de La Condition
postmoderne por Jean_François Lyotard em 1979.
Lyotard fala, dentro deste quadro de emergência do pós-
modernismo, da dissolução de toda espécie de narrativa
totalizante (grandes narrativas) que afirme governar
todo o complexo campo da atividade e da representação
sociais, ou seja, os princípios orientadores e mitologias
universais que um dia pareceram controlar, delimitar e
interpretar todas as diferentes formas da atividade
discursiva no mundo. Para ele, o grande relato
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estatuto vanguardista” (HUYSSEN, 1992, p. 43).
Jameson (2005, pág.ix), também concorda que o
pós-modernismo não pode ser considerado como uma
simples seqüencia de um modernismo que se pensou
compulsivamente sobre o “novo” e se preocupou
principalmente com o registro deste “novo”, enquanto o
pós-modernismo busca a quebra, ou seja, mais do que
novos mundos, o instante “depois” que já não significa a
mesma coisa, as mudanças nas representações das
“coisas” e como esta mudança se efetuou.
Isto significa que os modernistas estavam
interessados em como aconteceram estas mudanças e
sua tendência geral, eles pensavam sobre a própria
“coisa”, substancialmente, de uma forma utópica,
enquanto os pós-modernistas são mais formais neste
sentido e mais “distraídos”. No Modernismo existiam
algumas zonas residuais de “natureza” e “ser” no
sentido da relação com o “referente”, no Pós-
Modernismo, com o processo de modernização
finalizado, onde a natureza se transformou num bem,
estamos num mundo mais “humano” onde a cultura se
transformou numa segunda natureza, e ela se
transformou na chave para entender o pós-moderno,
com uma imensa e histórica aculturação do real, chama
de “estetização da realidade” (BENJAMIN citado em
JAMESON, 2005, pág.x).
Assim, para Huyssen (1992, p. 74), a sensibilidade pós-
moderna é diferente tanto do modernismo como da
vanguarda porque coloca a
1
Esta noção foi desenvolvida pelo sociólogo alemão Niklas
Luhmann que quando aborda a problemática do futuro em The
future cannot begin, distingue “presentes futuros”, concepção
de tipo tecnológico que se dá quando as tecnologias se orientam
para o futuro que se transforma em presente antecipador e;
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implica numa mudança de foco que é deslocado dos
“futuros presentes” para os “passados presentes”; este
deslocamento na experiência e na sensibilidade do
tempo precisa ser explicado histórica e
fenomenologicamente (HUYSSEN, 2000, p. 9).
Em relação ao nosso objeto, o espetáculo
Apocalipse 1,11, uma analogia à Apocalipse, de São
João, que segundo Araújo (2001, p. 117) tem o objetivo
de investigar a zona de tensão existente no final do
milênio 2000 resultado da coexistência do fim dos
tempos com o começo de uma nova era. Esta
investigação, que num primeiro momento, acaba por
direcionar o espetáculo na direção exata do “passado
presente” no sentido dos discursos de memória que
aponta diretamente para a presente recodificação do
passado, que se iniciou depois do modernismo.
44 Luiz Zanotti
É, pois, no plano das abominações da realidade
que somos atirados pelo espetáculo. E o fazemos na
condição de testemunhas (GARCIA, 2001, p. 119)”.
Neste sentido, para Huyssen, (2000, p. 13), o
Holocausto se transformou num simbolo para a
contemporaneidade da falência do projeto iluminista.
Ele serve como uma prova que a civilização ocidental
não pode praticar a anamnese1, de refletir sobre sua
inabilidade constitutiva para viver em paz com
diferenças e alteridades e de tirar as conseqüências das
relações insidiosas entre a modernidade iluminista, a
opressão racial e a violência organizada.
Como vimos, no início deste artigo, as palavras do
Carteiro, além da clara preocupação com o
desaparecimento da memória, já deixa antever a mistura
de humor e cinismo, poesia e crueldade, que serão os
ingredientes privilegiados de Apocalipse, como, na
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e que valoriza a memória como elemento de
guarida frente a um presente e a um futuro
instáveis, [o autor] questiona se não seria o
medo de esquecer que levaria ao desejo de
lembrar ou se, pelo contrário, seria o
excesso de memória que levaria à saturação
esse sistema, gerando, assim, o medo do
esquecimento.
48 Luiz Zanotti
cenografia. Este espaço construído como uma clausura e
sua experiência asfixiante, se abre para o espectador
como “cultura da memória”, onde o presídio se
apresenta como um próprio museu, ou como chama
atenção Huyssen (2000, p. 14):
52 Luiz Zanotti
europeu, Oriente Médio e Africa do Sul (pós-apartheid),
e assim por diante.
Enfim, Apocalipse 1,11, se apresenta como o
medo de esquecer o passado, mas opera também em
uma outra escala, pois para Huyssen (2000, p. 20),
quanto mais nos pedem para lembrar, no rastro da
explosão da informação e da comercialização da
memória, mais nos sentimos no perigo do esquecimento
e mais forte é a necessidade de esquecer. Apocalipse
diz sobre o nosso tempo, marcado, mais precisamente a
partir da segunda metade do século XX, por um
constante reavivamento do passado, pelo despontar de
uma cultura da memória, estimulada por “uma crescente
instabilidade do tempo e pelo fraturamento do espaço
vivido”, provocados, entre outros fatores, pela
sobrecarga de informações e pelo avanço tecnológico
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Ensaios sobre cinema, teatro e quadrinhos: 53
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Revista do Departamento de Artes Cênicas da USP, São
Paulo, n.1, 2001.
54 Luiz Zanotti
O UIVO DE GINSBERG OUVIDO POR
DROOKER.
56 Luiz Zanotti
em direção à lua e às estrelas por uma questão de
acústica. Também é importante notar que os lobos
uivam como uma forma de comunicação a longa
distância, transportando uma série de informações.
Enfim, a finalidade dos uivos dos lobos não é assim tão
diferente das razões pelas quais os humanos elevam
suas vozes ao vento. Em geral, os principais motivos
para os lobos uivarem incluem: um brado de
reagrupamento para a matilha se encontrar; um sinal
para informar a matilha sobre a localização de um lobo;
e uma advertência para lobos estranhos ficarem fora do
território da matilha.
O uivo de Ginsberg expressa tudo isto, além da
frustração, da autodestruição de uma geração que estava
sendo suprimida pelo “American way of life”. Este uivo
também aparece impregnado de loucura e demência de
uma geração, que assim como os animais que são
instintivos e selvagens, estava perdida na floresta urbana
da noite americana. Esta loucura encontra eco na
opinião de psiquiatras do século XIX que associavam a
manifestação da loucura com a fase em que a lua esta
cheia.
O uivo para a lua é a forma de mostrar à
sociedade que todo o “American way of life” era
somente uma miragem e inacessível à maioria dos
cidadãos americanos que eram obrigados como em
Admirável mundo novo, 1984 e Walden II a se
transformarem em semi-humanos regidos sob a
ideologia de um capitalismo selvagem.
58 Luiz Zanotti
O poema Uivo foi adaptado para o cinema pelo
diretor Rob Epstein e estrelado pelos atores James
Franco, Jon Hamm, David Strathairn e Mary-Louise
Parker num filme que mistura cinema preto e branco,
colorido e quadrinhos, sendo que imagens dos
quadrinhos foi posteriormente publicado com o titulo de
Uivo: graphic novel numa combinação entre a poesia de
Ginsberg e a arte gráfica de Eric Drooker, autor dos
famosos quadrinhos “Blood Song” e “Flood”.
60 Luiz Zanotti
O lançamento de Uivo representou a voz de uma
parte desta geração inconformada com os rumos da
América e foi de difícil aceitação pelo público
conservador. Ela é o marco de uma nova geração mais
livre onde passou a existir a verdadeira liberdade de
expressão e escolha sexual que culminou em
movimentos pela paz, como é o caso da geração hippie.
Uivo é muito mais do que um filme atípico pois
traz uma abordagem em que a biografia de Allen
Ginsberg fica num segundo plano, pois o foco principal
é a leitura do poema Uivo, sendo que o filme adquire o
caráter de uma interpretação, deixando o julgamento e a
vida de Ginsberg num segundo plano. Esta escolha do
cineasta faz com que Uivo se apresenta como
estivéssemos numa sessão de leitura de poesias
ilustradas pelas imagens de Drooker, que como veremos
acrescenta uma extrema significação ao poema.
As imagens filmadas tanto em películas preto e
branco como em películas coloridas são usadas para que
o espectador tenha a oportunidade de conhecer alguns
dados biográficos e pontos de vista de Ginsberg através
da visão do cineasta. Esta forma de elaborar um filme
biográfico pode causar certo desconforto no espectador,
acostumado que está em especular a vida de uma
determinada pessoa, mas, sem duvida as imagens de
Drooker são suficientes para prender a atenção da
platéia durante toda a trama.
Assim, o filme apresenta vários recursos que vão desde
as cenas representando a vida passada de Ginsberg em
preto e branco,
Parte I.
A primeira parte, a mais longa e mais
abrangente, traz a advertência e o lamento do problema
vivido pela sociedade americana através de imagens
reais ou surreais que vão se sucedendo através dos
versos ditirâmbicos do autor no seu ritmo frenético do
jazz bepbop ponteado por inesperadas pausas e
iluminações primitivas.
62 Luiz Zanotti
Figura 3. Eu vi as melhores cabeças da minha
geração destruídas pela loucura
64 Luiz Zanotti
possibilidades “virtuais” (presentes, mas não
atualizadas) que a faz perder a sua determinação
(relativizada pelos ajustes dos leitores). Ilusão como
coerência (totalidade) e como “envolvimento total e
distanciamento latente” (formação e rompimento da
ilusão). Os conflitos são latentes e se resolve pela
terceira dimensão (envolvimento e liberação): texto
como evento (um mundo próprio), as estratégias
pessoais conseguem influenciar e modificar a formação
da coerência. O leitor reage a algo que ele mesmo
produz (evento): não é um objeto determinado.
A história destas “melhores cabeças” vai ser
desenvolvida por Ginsberg de uma forma fraturada em
frases que, quase sempre, se iniciam por agregar alguma
qualidade a estas cabeças através da preposição “que”.
Mas quem seriam afinal estas “melhores cabeças”? Jack
Kerouac e William Burroughs? Parece que não, pelo
menos para Drooker, que em nenhum momento de seu
romance gráfico assemelha as suas personagens aos
escritores referidos, o que nos faz crer que estas cabeças
são todos os integrantes da geração beat, incluindo
aqueles que não ganharam fama artística ou literária ou
tiveram interesse na criação de qualquer obra de arte.
Eles eram as “melhores cabeças” porque se recusaram a
viver o “american way of life” caracterizado pela feliz
família americana, pelo patriotismo exacerbado e pelo
espírito militarista. Estas cabeças jamais foram co-
optadas por esta ideologia. Estas “melhores cabeças”
foram ou tentaram serem destruídas pelo abuso da
autoridade e da propaganda governamental do “way of
life” que causava a estes poetas a tristeza e a revolta
pacífica.
Ensaios sobre cinema, teatro e quadrinhos: 65
uma abordagem pós-moderna
destruídas pelo abuso da autoridade e da propaganda
governamental do “way of life” que causava a estes
poetas a tristeza e a revolta pacífica. Estes artistas
zombaram do abuso das autoridades e viraram as costas
para esta sociedade se tornando vagabundos
“iluminados” e desviantes. É interessante notar a
contraposição de Drooker ao realçar a tecla com a figura
do cifrão, um símbolo da sociedade capitalista, com a
palavra madness (loucura).
Aqui, fica clara a antinomia capitalismo/loucura
que tornou a maioria destes artistas impossibilitados de
ganhar a vida justamente devido às suas crenças
políticas e artísticas que não coadunavam com ideologia
americana da época, o que faz Ginsberg (1984, p. 41)
descrever: “[...], escutando o terror através das paredes.
Figura 4.
Que passaram pelas universidades com serenos olhos
radiantes alucinando Arkansas e tragédias
66 Luiz Zanotti
Blake-iluminadas entre os mestres da guerra.
68 Luiz Zanotti
[...] sua própria teoria, a reflexão sobre si mesma,
o aprofundamento do ser-poesia, enquanto signo,
enquanto código, enquanto matéria e consciência
de linguagem. Já a poesia beat, pela própria
natureza da sua proposta, não poderia produzir
teóricos nem ensaístas. E seu alcance e
abrangência intelectual é, necessariamente,
menor do que a da poesia concreta brasileira, sua
contemporânea. (LEMINSKI, 2011, p. 106)
70 Luiz Zanotti
O uivo de Ginsberg expressa tudo isto, além da
frustração, da autodestruição de uma geração que esta
sendo suprimida pelo “american way of life”. Este uivo
também aparece impregnado de loucura e demência de
uma geração, que assim como os animais, são
instintivos e selvagens, perdidos na floresta urbana da
noite. Esta loucura encontra eco na opinião de
psiquiatras do século XIX que associavam a
manifestação da loucura com a fase em que a lua esta
cheia.
O uivo para a lua é a forma de mostrar à
sociedade que todo o “american way of life” era
somente uma miragem e inacessível à maioria dos
cidadãos americanos que eram obrigados como em
Admirável mundo novo, 1984 e Walden II a se
transformarem em semi-humanos.
Uivo, assim como a maioria da estética beat, não
se prende à tradicional métrica ou ritmo poético,
buscando muito mais o que chamamos de associação
livre e fluxo de consciência, e estende cada verso de
acordo com o seu fôlego, pois cada verso deve ser lido
com uma única respiração, lembrando a prosa de
Kerouac no sentido de trazer o jazz como fonte de
inspiração.
O poema é uma tempestade de energia criativa, o
poema começa, cai e se ergue várias vezes, seguindo o
fluxo do corpo e da vida, Ginsberg encontra a sua forma
literária no meio de visões e percepções da própria vida
numa linguagem encorpada através de uma série de
cartas, anotações e manuscritos.
Ensaios sobre cinema, teatro e quadrinhos: 71
uma abordagem pós-moderna
Figura 5. que se deixaram ser enrabados por
motoqueiros
beatíficos e gritaram com prazer
72 Luiz Zanotti
Isto fortaleceu o espírito existencialista dos beats
em conhecer diferentes lugares, diferentes culturas, o
que se tornou aos poucos um tema central da geração
beat. A motocicleta de Droover mostra este interesse em
alcançar novos lugares, de impulsionar a liberdade seja
ela espacial ou sexual.
A liberdade de falar sobre a homossexualidade
num contexto onde a preferência sexual era um assunto
proibitivo traz entre outras coisas a pós-modernidade
que após grande período (desde Descartes) traz de novo
o corpo para o centro das discussões através da sua
presença.
Hans Ulrich Gumbrecht conceitua a presença
como uma crítica ao excessivo racionalismo da
modernidade, que esqueceu que os objetos (“coisas do
mundo”) podem ser mais que uma simples atribuição de
um significado metafísico e que o impacto dessas coisas
podem ir além da razão, perpassando todo o nosso corpo
físico. Essa “ditadura” do significado pela razão tem
sido a prática básica das “humanidades”, sem levar em
conta que a experiência estética oscila entre os efeitos
“presentes” e os efeitos de “significação”, um conceito
semelhante ao da “doença romântica” de Nietzsche, em
seu sentido de que o hiper-desenvolvimento do
consciente – que por sua vez é escravo da linguagem –
acarretou uma consciência clarividente demais que, para
o filósofo, é uma doença, uma doença muito real
(ZANOTTI, 2016).
74 Luiz Zanotti
Figura 6. Que chuparam e foram chupados por
esses querubins
humanos.
Ginsberg traz a idéia de que não é a
licenciosidade do uso de drogas e a homossexualidade
que destrói a juventude americana, mas sim a forma
como eles são reprimidos para suprimir estes atos e a
forma como são perseguidos. Drooker investe numa
floresta de pênis para mostrar a naturalidade da
sexualidade e como bem nos ensina Freud que a
sexualidade é constituída por uma série de eventos
mentais regulados pelo princípio do prazer e, por isso
mesmo, em seu curso, buscam o atingir (FREUD, 1977,
livro VII: 149).
Diferentemente de outros animais que já nascem como
machos ou fêmeas, o ser humano na sua infância tem o
seu instinto sexual fragmentado, que somente mais tarde
será unificado (FREUD, 1977, livro XIII:
Figura 7.
que criaram grandes dramas suicidas nas
margens-penhasco de apartamentos do Hudson
sob o holofote antiaéreo azul da lua &
suas cabeças hão de ser ungidas pela coroa do
esquecimento.
76 Luiz Zanotti
Estes poemas usam a cidade de Nova York como
uma continuação da descrição de “melhores cabeças”.
Nova York foi o lugar de encontro de toda uma geração
beat, figuras que se tornaram ícones de um novo
contexto que mostra uma imagem de Manhattan
entremeada da decadência de uma América que não
pode aceitar os beats, mas que vende sexo a cada
esquina. A imagem mostra a contraposição das figuras
idealizadas das “melhores cabeças” com as imagens
realistas de pessoas vivendo em condições sobre-
humanas. "que se jogaram da Ponte do Brooklin, isto
realmente aconteceu e partiram esquecidos e
desconhecidos para dentro da espectral confusão das
ruelas de sopa e carros de bombeiro de Chinatown, nem
mesmo uma cerveja de graça” (GINSBERG, 1984, p.
46).
Figura 8.
e que por isso correram pelas ruas geladas
obcecados por uma súbita iluminação da alquimia do
uso da elipse do catalogo do metro &
do plano vibratório
78 Luiz Zanotti
Figura 9.
e se reergueram reencarnados na roupagem
espectral do jazz à sombra dourada dos instrumentos e
tocaram o sofrimento de amor da mente nua da
America num Eli Eli lama sabactani lamento de
sax que estremeceu as cidades até o ultimo radio.
Como vimos, Uivo começa descrevendo as
“melhores cabeças” no contexto urbano americano.
Neste contexto, onde está acontecendo uma energia
frenética é importante lembrar a influência da música e
mais especificamente do jazz. Pela primeira vez, a
população urbana ficava maior que a rural, muito
devido ao crescimento das indústrias e detrimento da
atividade rural que trouxe uma série de empregos para a
classe média americana. Nestas áreas urbanas floresceu
uma vibrante área cultural composta de arte, musica e
literatura.
A energia deste movimento atraiu os beats numa
diversidade de contextos, entre eles, no entanto, existe
um lugar especial para a música dos negros de rua, uma
alusão especial à fascinação da geração beat com a
cultura afro-americana, e mais especificamente o jazz.
80 Luiz Zanotti
Figura 10.
com o coração absoluto do poema da vida
estripado de seus próprios corpos
bom para comer por mil anos
CONCLUSÃO
Muitos poetas e artistas contemporâneos
sofreram influência da poesia de Ginsberg. Podemos
sem duvida afirmar que historicamente ele, juntamente
com outros artistas beats, criaram um momento
histórico e único na arte contemporânea (se quiserem
podem chamar pós-moderna) e que esta arte foi muito
bem captada por Drooker que soube balancear o
psicodélico das “melhores cabeças” beats com as
difíceis vidas destas personagens na vida real suburbana
das personagens.
82 Luiz Zanotti
autêntico, longe a artificialidade do “way americano of
life” se estendem para dentro dos bares de jazz e
apartamentos pobres do subúrbio de Nova Iorque, vão
viajar cruzando o país na busca de uma nova maneira de
ver e entender a vida, fugindo dos ideais de vida do
sonho americano, os beats pregavam um novo estilo
existencial de vida que não fosse apregoado pelo
Estado.
Neste sentido é importante o que se apreende no
movimento, pois a vida era “aqui e agora”, ou conforme
vaticina Nietzsche:
84 Luiz Zanotti
Tudo isto traz consigo a ideia de ser presente,
viver o aqui e o agora. Para Ginsberg, assim como para
os beats capturar a verdade mediata envolve focar a
atenção no desejo e ação como espontaneamente e
responder as condições materiais de cada momento.
Esta atenção permite aos beats estabelecer uma conexão
autentica para o mundo que forma a base da poética da
presença, que transcreve o fluxo da experiência de
acordo como acontece a cada momento. Desta forma se
auto-intitularam como rebeldes, mas eles podem ser
contextualizados como o inicio da pós-modernidade.
Isto significa que os beats oferecem um caminho
privilegiado de como o significado é constantemente
produzido. A relação dos beats com o momento.
Muitos críticos tendem de diminuir a relevância
da teoria beat para a academia. O anti-acadêmico, anti-
intelectual beat não esteve interessado em denso e
abstratos conceitos fora da experiência concreta, mas
isto não significa que não estavam pensando em altos
conceitos mesmo que não tivessem sido transmitidos
por um cabedal acadêmico. Os beats ocuparam um
importante período da historia literária e cultural da
America quando o moderno começava a ceder espaço
àquilo que hoje chamamos de pós-modernismo.
(MORTENSON, 2010, p.3)
Outra grande contribuição para a modernidade esta no
fato, segundo (MORTENSON, 2010, p. 7) que os beats
apelam para o corpo em si, baseiam a sua poética na
concepção de uma linguagem derivada do corpóreo.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. São
Paulo: Martins Afonso,1999
BROWN, J. P. S. Wolves at Our Door. University of
New Mexico Press, 2008.
DROOKER, E. Uivo: graphic novel. Globo, s/d.
FREUD S. Edição stantard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago Editora, 1977.
GINSBERG, A. Uivo.LPM, 1984.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Production of Presence:
What Meaning Cannot Convey. California: Stanford
University Press, 2004.
86 Luiz Zanotti
ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético
– vol.2. São Paulo: Ed. 34, 1999.
LEMINSKI, P. Ensaios e anseios crípticos. Unicamp,
2011.
MORTENSON, Erik. Capturing the beat
moment.Southern Illinois University Press, 2010.
NIETZSCHE, F. Gaia Ciência. Martin Claret. 1998.
SAVAGE, B. Allen Ginsberg’s “Howl” and the
Paperback Revolution, Disponivel em
https://www.poets.org/poetsorg/text/allen-ginsbergs-
howl-and-paperback-revolution. Acesso em 22 fev.
2016
ZANOTTI, L. “A quebra da ilusão no teatro pós-
dramático de Will Eno”. Disponivel em
file:///C:/Users/luizzanotti/Downloads/8300-26739-1-
PB%20(1).pdf. Acesso em 28 fev 2016.
88 Luiz Zanotti
Este “novo” gênero tem sua gênese num debate
entre Doubrousky e Philippe Lejeune que no seu livro
Le pacte autobiographique i (1987, p. 31),
problematizava a possibilidade de existir um romance
onde o autor era a própria personagem, apesar de ser um
assunto menor pois, como sabemos o resultado estético
da obra está acima desta escolha. Nesta perspectiva,
Doubrovsky resolveu escrever um romance
autoficcional, criando este neologismo, que
consideramos longe de adquirir um caratê de gênero.
A verdade é que a autobiografia tem toda uma
característica de descrição de fatos verdadeiros, o que
nos lembra Hayden White na sua problematização entre
história e literatura na busca da realidade. O teórico
inglês Hayden White (2001, p. 54) afirma que a
narrativa histórica apenas se diferencia da narrativa
literária pelo conteúdo, visto que os métodos de
historiadores ou escritores literários são os mesmos. De
acordo com ele, o trabalho histórico utiliza como
“veículo” a narrativa, elaborada através de uma
representação ordenada e coerente de acontecimentos.
Assim, White (1995, p. 11) conclui que toda explanação
histórica é retórica e poética por natureza.
A meta-história - estudo referente à História enquanto
historiografia - de White representa uma abordagem
construtiva para a historiografia porque incentiva a
reflexão sobre a questão da verdade. O conceito de
História como narrativa põe em questão as pretensões
de verdade e a objetividade do trabalho dos
historiadores.
90 Luiz Zanotti
não determinar se diz a verdade nem qual é seu valor
expressivo, mas sim trabalhá-lo como uma
materialidade documental:
1
Oficial do governo francês de Vichy que colaborou com o
Regime Nazista.
92 Luiz Zanotti
Das imagens-ação, esperamos sempre ter uma
atitude voltada para o presente, mas para um presente
sensível, que tem a memória como uma forma criadora
do passado.
De acordo com Gilles Deleuze (1999) estas
imagens da memória perdem suas referencias e se
apresentam como imagens de nossa vida presente e não
pela reconstituição de nosso passado. Nesse sentido, a
temporalidade do ser passa a ser um contínuo crescente
de novidades e conseqüentes mudanças nos momentos
que se sucedem (Sayegh. 1998: 29). Desta forma, temos
uma memória que busca nas lembranças sempre um
fundo claro para a percepção, e obtemos do presente
momentos singulares de nossa ação, então, sempre
haverá uma diferença entre o passado e o presente,
mesmo que seja somente de grau e não de natureza.
Dentro desta corrente de veracidade, é importante notar
que Doubrovsky afirma que quando se escreve
autobiografia, tenta-se contar toda sua história, desde as
origens, enquanto que na autoficção a história é
fragmentada, o que segundo Wolfgang Iser (1999)
acarreta uma maior aproximação da literatura à
realidade. Para Iser (1999, p.38-39), a ilusão é
importante para os atos de apreensão: a transmissão ao
vivo e a deliberada contingência do cinema moderno
frustra os instintos romanescos do espectador. A vida
parece mais com Ulisses, mas pensamos como no
romance Três mosqueteiros. Transformação na memória
de uma vida desordenada numa Gestalt coerente.
94 Luiz Zanotti
são retiradas dos sistemas da época e a estabilização
desses modelos (sistemas) se dá pela construção de
sentido por meio de seleções que só se estabilizam
contra o pano de fundo onde estão as possibilidades
virtualizadas e negadas.
96 Luiz Zanotti
Após algumas experiências mal sucedidas,
Crumb se mudou nos meados dos anos 60 para
acompanhar o movimento da contra cultura que
acontecia em São Francisco, decidido a se tornar um
verdadeiro cartunista. Neste sentido ele publica três mil
e quinhentas cópias da revista em quadrinhos Zap
Comix (1968) durante a mais importante fase da
contracultura apresentando seus cartoons satíricos para
o mercado de quadrinhos “underground”.
Seus trabalhos o colocaram como o mais popular
cartunista entre o final dos anos 60s e os anos 70s com o
seu humor satírico e conteúdo explicitamente sexual.
Crumb, é se duvida, um dos mais criativos artistas que
encenou na cena dos “comics underground”. Entre as
sua criações destaca-se Mr. Natural, cuja primeira
aparição esta no primeiro numero de ‘Yarrowstalks’. A
personagem tem poderes mágicos e hábitos sexuais
pouco convencionais. Na seqüência, Crumb cria a
personagem, “Fritz o gato” uma imagem
antropomórfica que vai viver aventuras selvagens,
geralmente de natureza sexual. Este cartum se tornou
muito popular com presença em revistas como Help!’ e
‘Cavalieri’.
. É importante notar que toda esta criação tendo como
motivo a sexualidade está de acordo com as premissas
da “redescoberta do corpo” na contemporaneidade, um
corpo que havia sido abandonado pela filosofia do
“Penso, logo existo” de René Descartes, e que é
resgatado pela filosofia de Friedrich Nietzsche.
98 Luiz Zanotti
que se deixaram ser enrabados por motoqueiros
beatíficos e gritaram com prazer
que enrabaram e foram enrabados por esses
serafins humanos, os
marinheiros, carícias de amor
atlântico e caribeano,
que transaram pela manhã e ao cai da tarde em
roseirais, na
grama de jardins públicos e
cemitérios, espalhando livre-
mente seu sêmem para quem
quisesse vir, (GINSBERG, 1984, p. 44)
Referências bibliográficas