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OPINIÃO OPINION 149

“Eu? Eu estou aí, compondo o mundo.”


Uma experiência de controle de endemia,
pesquisa e participação popular vivida em
Cansanção, Minas Gerais, Brasil

“Me? I’m just here, part of the world”.


A field experience on endemic disease control
in Cansanção, Minas Gerais, Brazil

Rosinha Borges Dias 1

1 Departamento de Serviço Abstract This article reports an experience with Chagas’ disease control involving community
Social, Pontifícia
participation in the Jequitinhonha Valley (Minas Gerais, Brazil) implemented during the 1980s,
Universidade Católica
de Minas Gerais. as an action-based participant research project of Popular Education. The main objective was to
Rua Ipê Branco 467, investigate the meaning of Chagas’ disease from the community’s perspective, seeking alternative
Retiro das Pedras,
control measures with their participation. Despite the extremely high prevalence of the disease,
Belo Horizonte, MG
30140-970, Brasil. it was no perceived as a priority by the population, who were living in destitution and simply
fighting for their very survival. Chagas’ disease control was performed in an integrated manner,
taking other community needs into account. The article suggests some forms of participation in
the control of endemic diseases, taking into account the people’s knowledge, in an integrated vi-
sion of both their problems and their ability to mobilize behind concrete interests. Changes are
also needed in the relationship between outside agents and the community, reciprocity in the in-
volvement with community, a permanent attitude of listening and solidarity, a “self-diagnosis”,
and organization of population.
Key words Consumer Participation; Community Participation; Chagas’ Disease; Health Edu-
cation; Communicable Disesase Control

Resumo Este artigo relata uma experiência de controle da doença de Chagas, vivida na década
de 80 em um povoado rural do Vale do Jequitinhonha, MG, e reavaliada recentemente. Trata-se
de um projeto de pesquisa-ação participativa, com aplicação na área de educação popular em
saúde. Teve como objetivo conhecer, do ponto de vista dos sujeitos, o significado da doença de
Chagas na vida de uma comunidade endêmica, procurando com eles alternativas de controle.
Apesar da altíssima prevalência, a doença não chegava a ser prioridade sentida pela população,
que vivia em situação de carências múltiplas e de luta pela sobrevivência. O controle da doença
deu-se de forma integrada com outras necessidades. Levantam-se pistas para trabalhos de parti-
cipação no controle de endemias, levando-se em conta a sabedoria popular, a visão integrada
dos problemas e na mobilização em torno de interesses concretos. Destacam-se como necessá-
rios: a mudança nas relações entre o agente externo e a comunidade, a reciprocidade do envolvi-
mento, a postura de ‘escuta’ e de solidariedade, o autodiagnóstico, a organização da população.
Palavras-chave Participação Comunitária; Doença de Chagas; Educação em Saúde; Controle
de Doenças Transmissíveis

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Introdução mas entrevistas informais com lideranças lo-


cais, visitas às creches, reunião com o conselho
Quando me lembro de Cansanção, sempre me da Associação de Moradores e recebemos um
vem um calorzinho bom ao coração e alguma folheto por eles escrito, entitulado Cansanção e
clareza à mente. À respeito do tema participa- o Progresso.
ção, vem a minha cabeça uma expressão ouvi- O presente texto conta um pouco dessa his-
da de dona Teresa, mulher de idade indefinida, tória, com destaques para as falas da popula-
chefe de família, trabalhadora de enxada, rai- ção. Faremos uma síntese do que foi o projeto
zeira e ‘aparadora de menino’ (parteira), que desenvolvido há dez anos e a situação atual de
morava em uma das grotas de Cansanção, cha- Cansanção. No final, apontamos algumas li-
mada Quilombo. Em uma das vezes em que ções aprendidas sobre participação popular no
nossa equipe lá acabara de chegar de Belo Ho- controle das endemias.
rizonte, para passar três dias com eles, encon-
tramos a senhora andando pelas trilhas da ro-
ça e, alegres, cumprimentamo-la: “E aí, D. Tere- O que foi o trabalho há dez anos
sa, tudo bem? Como vai passando?” Ela nos
olhou e, sorrindo com os olhos, respondeu Os propósitos do projeto
com essa expressão tão bonita: “Eu? Eu, tô aí,
compondo o mundo”. E realmente estava ‘com- A experiência de pesquisa-ação participativa
pondo o mundo’, participando, fazendo a sua vivida de 82 a 85 em Cansanção combinou ati-
parte para que o mundo fosse melhor ali, onde vidades de pesquisa sócio-antropológica, ação
ela sempre viveu. A participação passa pela participativa e controle de doença endêmica.
descoberta de que somos parte de um todo O objetivo era conhecer mais profundamente
maior que nossa pessoa, família ou comunida- o ‘palco’ clássico onde a doença de Chagas
de; parte desse ‘mundão de Deus’, dessa imen- acontece, do ponto de vista dos sujeitos, pro-
sa vida que circula nos seres da natureza e por curando com eles alternativas de controle, bem
todo universo. E que, por isso mesmo, devemos como conhecer o que pensavam os moradores
fazer a nossa parte para que esse mundo seja sobre suas condições de vida, de trabalho, de
mais humano e livre do que é. Às vezes é qua- saúde/doença, os problemas que enfrentavam
se nada o que fazemos, mas estamos dando a no seu dia-a-dia, as relações que estabeleciam
nossa participação. entre os diversos aspectos do cotidiano e, jun-
De 1982 a 1985, desenvolvemos um projeto tos, procurar saídas. Algumas perguntas nos
de pesquisa-ação, ou pesquisa participante, na moviam: Que significado teria a doença de
localidade de Cabeceira do Cansanção, situada Chagas na vida de uma comunidade rural, on-
no Município de Minas Novas, Vale do Jequiti- de 71% das pessoas acima de 15 anos são posi-
nhonha, MG. Tal projeto foi patrocinado pelo tivas para o Trypanosoma cruzi? Se lhes fossem
Comitê de Pesquisas Econômico-Sociais em dados ouvido e direito de opinar, que medidas
Doenças Tropicais da Organização Mundial da adotariam para o controle da doença? Mais do
Saúde ( WHO/TDR/Ser) e pela Universidade que um produto final, com resultados prova-
Católica de Minas Gerais (Puc/MG). O tema do dos, tratou-se de um processo participado de
projeto foi Doença de Chagas: Conhecimento conhecer e agir.
Popular e Novas Estratégias de Controle.
Passados dez anos do término do projeto, Breve quadro da realidade
fomos convidadas pelo Setor de Educação em
Saúde do Distrito Sanitário de Curvelo, da Fun- Na época do projeto, Cansanção era uma loca-
dação Nacional de Saúde (FNS), para visitar a lidade rural dispersa, abrangendo 146 famílias,
localidade novamente, avaliando as mudanças que viviam em várias comunidades ou grotas
ocorridas e oferecendo subsídios metodológi- adjacentes: Tabuleiro, Cristal, Campinho, Qui-
cos para o trabalho de Mobilização Comunitá- lombo, Cabeceira, Borges e Fazenda. Além da
ria que o setor desenvolve em sessenta municí- doença de Chagas, apresentavam alta incidên-
pios do Estado. Para atender a essa demanda, cia de esquistossomose, várias parasitoses in-
algumas atividades foram realizadas: reuniões testinais e também casos de tuberculose e ou-
com educadores da FNS em Belo Horizonte, tras doenças infecciosas, como a leishmaniose.
viagem e visita à área em julho de 96, partici- Eram todos pequenos (micro) proprietá-
pação em uma reunião do Conselho Municipal rios, produzindo basicamente milho, mandio-
de Saúde de Minas Novas. Na visita a Cansan- ca e feijão, em quantidade insuficiente para a
ção, tivemos oportunidade de ter dois encon- reprodução da família. Desde o final da década
tros com a população em geral, fizemos algu- de 60, usavam como estratégia de sobrevivên-

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cia a migração sazonal dos homens para traba- vida com saúde, felicidade. Quero trabalhar
lhar na usinas de álcool e açúcar da região de sem sentir nada.”
Ribeirão Preto, SP. Viviam assim uma situação “Quem tem estudo é mais importante do que
ambígua: eram produtores diretos na agricul- quem não tem. Aliás, quem tem estudo e um pe-
tura durante o tempo das águas e assalariados dacinho de terra, tem tudo. Nós só temos a força
temporários na indústria no tempo da seca. Ti- dos braços.”
nham contato com uma realidade pré-moder-
na e outra quase pós-moderna. As mulheres ti- O processo de trabalho
nham um papel-chave na preservação da vida
no lugar, representando o elo com a terra e sua De maneira sintética, vamos descrever o pro-
condição de proprietários. Contudo, esta sepa- cesso metodológico em algumas etapas, que
ração era vivida com muito sofrimento. na realidade não aconteceram de forma linear,
A localidade não contava com postos de mas de modo dinâmico e muitas vezes conco-
saúde. Na sede do Município (que situa-se a 39 mitantes. O processo iniciou-se com a traba-
km de distância em estrada de terra muito pre- lhosa e fascinante etapa de conhecer e dar-se a
cária) existia um pequeno hospital. Não havia conhecer, através de visitas domiciliares a to-
transporte coletivo, nem morador que possuís- das as famílias, conversas informais, observa-
se carro. A comunicação era feita a pé ou a ca- ção participante, entrevista aberta e convivên-
valo. A escola contava apenas com uma profes- cia com os moradores. Nossa equipe ia à cida-
sora, que atendia ao mesmo tempo 92 alunos de uma vez ao mês e se hospedava com eles. Os
das três primeiras séries. moradores viram assim este começo:
Apesar da altíssima prevalência da doença “Primeiramente elas andaram pelas casas
de Chagas entre os moradores, 71% entre os dando explicação do trabalho e fazendo per-
maiores de 15 anos, o tratamento desta não guntas. Chegaram e foram tomando conheci-
chegava a ser sentido como prioritário pela po- mento com a gente, e a gente também com elas.”
pulação. Era apenas mais um problema, que fi- “No começo o povo tinha medo das pergun-
cava obscurecido diante da cotidiana luta pela tas, não sabiam (...). Muitos ficaram acismados,
sobrevivência: ter o que comer no dia seguinte mas foram amansando...”
e aliviar as dores que os atrapalhavam de tra- “Quando elas começaram eu achei um caso
balhar. muito importante. Elas vieram na minha casa.
A seguir, algumas expressões dos morado- Antes a gente pensava que nós aqui era bicho do
res sobre sua condição de vida que nos toca- mato pro pessoal da cidade, que ignora a gente.
vam profundamente e nos punham a pensar. Parece que não somos da qualidade deles. Com
“Nós vamos levando a vida assim: traba- elas foi diferente. Tratava nós tudo por igual,
lhando e tratando da obrigação. Planta milho, sem fazer pouco caso.”
feijão, mandioca, cana, banana, arroz (...). Plan- “A gente fica muito importante porque as
ta tudo que fala que é manso. Plantar é a vida e pessoas que vêm, dizem que vêm para aprender
se não cuidar de tudo isso, passa fome. Tenho mesmo.”
família grande, todos têm que trabalhar, senão De cada família, foi preenchido um formu-
passa fome.” lário com os dados usuais: idade, parentesco,
“Nossa situação é de doença e de fraqueza, ocupação, educação, características da habita-
mas mais de fraqueza.” O termo fraqueza é usa- ção, produção, e mais a opinião deles sobre a
do por eles para se referir à pobreza associada doença de Chagas, o barbeiro (chupão) e os
ao sentimento de impotência de lutar contra principais problemas do lugar. Foram feitos
ela. exames de fezes e de sangue e consulta médica
“Nós tudo aqui vive é da enxada, com a for- aos que assim quiseram.
ça dos braços, gastando o corpo.” A etapa seguinte foi de sistematização e de-
“O que mata não é a fome, é o pensamento. volução destes dados para os moradores. Foi
Eu vou para São Paulo e fico de lá, pensando na desencadeado um processo de reflexão sobre
mulher e nas crianças. E ela de cá, preocupada os principais problemas apontados nas entre-
comigo lá.” vistas e suas causas. Discutiram as prioridades,
“Mulher é bicho atolado, carregado de filho, levando em consideração a gravidade e urgên-
homem é andejo, despreocupado.” cia dos problemas diante do pequeno alcance
“A vida aqui é mais apertada, mas é mais li- do projeto. Apontaram alternativas sobre o que
vre. Tudo aqui é ruim, só é bom de amigo.” fazer para enfrentar aquela situação. Houve
“Ah,... eu sonho tanta coisa que nem é bom oportunidade concreta de escolha e tomada de
repartir (...). Favorecimento pra gente (...) Quem decisão coletiva sobre as ações que foram im-
tá atolado num buraco quer sair, não é? Quero plementadas ali, com a co-gestão deles, duran-
te mais de dois anos do projeto.

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Aqui cabe um esclarecimento: quando foi muito menor. Mas, se tem união, todo mundo
feito o pedido de financiamento do projeto de reúne para vender e faz o mesmo preço. Porque
pesquisa-ação à OMS (TDR/Ser), foi destinada o comerciante compra por pouco o que nós pro-
uma quantia (cerca de dois mil dólares) para duz e vende por muito. O conhecimento e a es-
um pequeno programa comunitário de contro- perteza veio do trabalho delas. É um tipo de es-
le da doença de Chagas. Deu-se à comunidade a cola pra quem estuda e pra quem não estuda.
oportunidade de opinar, decidir em assembléia Pra quem lê e pra quem num lê. É um outro tipo
e encaminhar o gasto deste recurso (Dias, 1986). de lugar.”
Como na visão deles a doença de Chagas O objeto de nossa atenção era o conheci-
não está desvinculada das condições gerais de mento que havia ali e o desenrolar da ações.
vida, as ações do programa comunitário gira- Era o ‘que coisas aconteciam’ e o ‘como’. A po-
ram em torno de três eixos principais: saúde, pulação não era objeto de nossas ações, mas
melhoria na produção de alimentos e cidada- influía constantemente nas decisões. Essa me-
nia. As principais demandas de saúde foram: todologia exigiu muito tempo e dedicação da
ter acesso à assistência médica (visita do médi- equipe; mais que isso, exigiu uma certa ‘cur-
co uma vez ao mês), exames de sangue, fezes, tição’ e admiração por aquelas pessoas. Teve
remédios, filtros domésticos, melhoria de ha- como pressupostos: compromisso, respeito e
bitação e treinamento de agentes populares de envolvimento com a população, postura muito
saúde. As demandas de melhoria da produção diferente do tradicional distanciamento dos
de alimentos foram sementes de milho, feijão, pesquisadores e técnicos. Havia uma decisão
hortaliças, arado com junta de bois, manguei- interior de busca de aproximação, interesse e
ras para água. As outras demandas referiam-se bem-querer para com aquelas pessoas.
ao registro civil, materiais de construção de um Fragmentos de diários de campo da nossa
salão comunitário, cursos de alfabetização de equipe de trabalho:
adultos, costura e bordado. Aos poucos, foi “Fui fazer uma entrevista numa casa em que
acontecendo uma outra organização da comu- morava uma mulher muito nova e uma crian-
nidade: primeiro em um conselho de represen- cinha de colo. Quase não falou. Fiquei chocada
tantes de cada grota, mais tarde, em uma asso- com tanta pobreza, parecia uma pessoa aliena-
ciação de moradores. da, fora do mundo. Não sabia seu nome com-
Podemos notar que as atividades do pro- pleto, a sua idade. Seu marido estava em São
grama comunitário tiveram alguma lógica, po- Paulo e não tinha notícias dele. O fogo estava
dendo ser organizadas em três grupos de natu- apagado, a prateleira vazia, a casa seca sem na-
rezas diferentes: remediando situações (assis- da. Não tinha vida, não tinha água, não tinha
tência médica etc.), lutando pelas mudanças nada. Só o filho e a casa. Sem nenhuma pers-
(melhoria na produção de alimentos, nas mo- pectiva, sem nenhum ponto de apoio. Era ela e
radias) e despertando a consciência/cidadania eu, uma estranha lhe fazendo perguntas que
(cursos, treinamentos/criação de conselho de não sabia responder, entrando em sua casa, úni-
representantes, registro civil). ca coisa que tinha, querendo saber tudo, coisas
“Eu nunca tinha ouvido falar de reunião. que talvez nunca tivesse pensado, ou com que se
Imagina, uma mulher velha como eu, ainda preocupado, pois a vida dela é o dia de hoje. O
não sabia de reunião.” amanhã, a gente dali não sabe se pode ver, se vai
“Antes a gente passava até um ano sem ver ter o que comer. Como se sobrevive, eu não sei.
ninguém, cada um na sua roça. Dia de domin- Disse-me que quando sai para trabalhar na ro-
go a gente tava com o corpo quebrado. Nós não ça ali por perto, que é a única forma de se ga-
conhecia este negócio de reunião.” nhar algum dinheiro, deixa a criança com os
“Falava doença de Chagas e eu não com- outros. Fiquei pensando: o que será o futuro
preendia o que era, não sabia o quê. Escutava e desta criança, será a mesma vida de sua mãe?
ficava sem saber. Sabia que o chupão ofendia, Não sei.”
mas pensava que era igual formiga, mordia e “Parece que eu tenho um sentimento de nu-
não fazia nada. Era mal passageiro. Não pensa- dez diante de uma realidade tão difícil. Mas to-
va que o chupão ofendia pra fazer doença. Ti- do cansaço e alguma renúncia que venho tendo
nha doença e não sabia por quê.” de fazer neste trabalho, vale a pena quando eu
“Tudo muito interessante e se todo mundo penso na fisionomia das pessoas.”
acompanhar vai ficar bonito. Porque esse traba- “Nem sei direito o que está acontecendo co-
lho está sendo uma escola – a pessoa compreen- migo, a partir deste trabalho em Cansanção. Só
de mais um tiquinho. Agora a gente já sabe fa- sei que estou mudando por dentro. Estou mu-
zer reunião. Por exemplo: se cada um vai vender dando meus pontos de referência, minha ma-
seu produto na cidade, cada um pega um preço neira de ver o mundo. Lá, com eles, descobri

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meus limites, os limites de meu saber, os limites geral parecem mais saídas, ativas e bem-nutri-
do saber de minha ciência. Por outro lado, por das; a migração sazonal para São Paulo conti-
incrível que pareça, no contato e na convivência nua, agora também por parte de algumas mu-
com estas pessoas tão simples e tão sofridas, es- lheres. Segundo informações da Fundação Na-
tou redescobrindo a alegria de viver. Estou dan- cional de Saúde, a transmissão da doença de
do e recebendo alento, ânimo, coragem. A pai- Chagas na área está praticamente interrompi-
xão. Haverá coisa mais importante na vida?” da, não se registrando mais triatomíneos intra-
Os resultados deste tipo de processo vivido domiciliares e infecção de crianças abaixo de
são muito difíceis de ser avaliados e comprova- 14 anos de idade.
dos. Entretanto, a observação do que aconte- Entretanto, observamos algumas carências
ceu ali aponta algumas mudanças na vida da que ainda estão sem ser resolvidas ou encami-
comunidade. Na base motivadora destas, está nhadas. A primeira continua sendo o anseio da
o tipo de relações entre a equipe e a população. população por algum tipo de serviço de aten-
A atitude de interesse, a valorização do saber ção básica de saúde na localidade, o sonho de
popular, a qualidade da atenção, o relaciona- ter um posto de saúde, com agente popular ca-
mento igualitário e principalmente o compro- pacitado para ação preventiva, primeiros so-
misso da equipe produziram entre os morado- corros, atendimentos simples e triagem de en-
res um sentimento de autovalorização e con- caminhamentos. Há também o sonho de uma
fiança que impulsionam à ação e à organiza- pequena farmácia comunitária e da visita de
ção. O sentimento de impotência diante dos médicos. (Por que será que este anseio não foi
problemas deu lugar a uma postura ativa, à resolvido? Será muito difícil um encaminha-
vontade de mudar e à reivindicação junto aos mento através do SUS? O SUS ainda tem futu-
poderes públicos por serviços essenciais. Para ro?) Outra carência era a água para as comuni-
acontecer a transformação de uma postura dades. Pudemos constatar que algumas já con-
passiva para uma postura ativa, entre as condi- seguiram realizar este anseio, por meio de uma
ções necessárias estão o despertar da auto-es- ação da Ampliar, mas falta chegar às comuni-
tima e o reconhecimento da própria dignidade. dades mais distantes do povoado central. Há
Em meio a esta dinâmica vivencial, o con- um poço artesiano furado pela prefeitura com
trole da doença de Chagas foi se dando. Con- apoio da Rural Minas, mas falta fazer as liga-
tribuíram para isso o processo educativo, a me- ções para as casas. Paralelamente, devido às al-
lhoria das casas e a erradicação dos triatomí- tas taxas de parasitoses, especialmente da es-
neos, esta sendo fruto dos desmatamentos e da quistossomose, está planejada uma parceria
borrifação de inseticidas pela Sucam/FNS. entre a prefeitura e a Fundação Nacional de
Saúde na instalação de kits de saneamento bá-
sico.
Dez anos depois Permanecem alguns questionamentos. Por
que será que Cansanção apresentou aumento
Em julho de 1996, voltamos a Cansanção. Foi de número de moradias novas, enquanto em
uma festa nos dois lados: dos moradores e nos- outras zonas rurais da região houve esvazia-
so. Apesar de ter sido uma passagem rápida, mento? Uma razão pode ser a tendência de po-
permitiu-nos observar muitas mudanças: pre- voamentos rarefeitos e dispersos tornarem-se
sença de casas novas e adensamento do povoa- mais adensados para facilitar a chegada de ser-
do principal, que conta com energia elétrica e viços essenciais como água, saneamento, esco-
água encanada; escola com mais de trezentas la, posto de saúde, energia elétrica, telefonia
crianças matriculadas em classes de primeira a etc. Por outro lado, a migração sazonal parecer
sexta séries, contando com 15 professoras, ins- ter dado condições a alguns moradores de per-
talada em prédio em condições precárias; cria- manecerem na roça e fazerem casas novas.
ção de duas creches e várias melhorias (enge- Como estaria Cansanção no contexto maior
nho comunitário, água etc.) com o apoio da do Município e do Vale do Jequitinhonha? Se-
Ampliar (entidade filantrópica de desenvolvi- gundo os depoimentos dos membros do Con-
mento social ligada ao Fundo Cristão para selho Municipal de Saúde de Minas Novas, a si-
Crianças); associação de moradores organiza- tuação de saúde-doença na cidade ainda é
da e bem atuante; aumento de casas de comér- muito precária, apesar de o atendimento mé-
cio local (vendas); algumas antenas parabóli- dico ter melhorado com a abertura da policlí-
cas e televisão; limpeza e cuidado com as ca- nica na cidade. A “alimentação fraquinha de-
sas; moradores locais que se destacam e/ou mais”, a falta de condições de higiene, a falta de
saem da cidade (vereador, presidente da Am- água (que às vezes é obtida a três léguas de dis-
pliar, noviça, seminarista, etc.); as crianças em tância), a falta de instrução sobre o uso de sa-

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nitários, as parasitoses intestinais, são alguns Finalmente, nada disso teria ocorrido se, há
dos problemas apontados pelos conselheiros. treze anos, quando se iniciou o processo, não
Disseram também que a assistência aos postos houvesse ocorrido a acolhida generosa da co-
de saúde da zona rural ainda é difícil (faltam munidade, tão ‘fraca’ em recursos materiais e
atendentes, locais adequados, profissionais ca- tão rica em potencialidades e valores huma-
pacitados e dispostos a dar assistência lá etc.). nos.
“A universidade não forma para o trabalho no
interior, quando a prefeitura consegue profissio-
nais, não estão preparados para enfrentar o que Pistas para trabalhos de participação
vão encontrar ali”. Entretanto, o grande proble- popular
ma de saúde no Município é o mesmo em nível
nacional: falta de recursos financeiros. Contra- No correr da vida, tivemos muitas oportunida-
riamente ao setor educação, que apresentou des de desenvolver trabalhos comunitários.
tantas melhorias, o setor saúde não se desen- Dessas experiências em seus erros e acertos, e
volveu como era preciso. do testemunho de homens e mulheres que nos
No entanto, hoje podemos notar, como eles marcaram com suas utopias e lucidez, pude-
mesmos disseram, a disposição de “um povo mos aprender alguma coisa. Não são certezas e
consciente de seus direitos e deveres de cida- verdades prontas, mas algumas luzes e pistas
dãos, que luta sem cessar para que Cansanção que nos ajudam a caminhar na construção de
continue progredindo cada vez mais”. um mundo mais humano e justo, que é o senti-
Certamente, muitos aspectos importantes do subjacente de qualquer trabalho participa-
passaram despercebidos, não são notados nu- tivo.
ma visita assim tão rápida. Mas, sem dúvida,
houve uma grande melhoria em Cansanção, a O modo de ver a vida das populações rurais
qual se deve principalmente à união e organi- e a ação de controle das endemias
zação dos moradores, ao trabalho da Ampliar,
e ao apoio da prefeitura, principalmente na A primeira atitude do educador ao chegar a
questão da escola. As pessoas da comunidade uma comunidade é de ‘escuta’ e consideração
falavam que tudo começou com o nosso proje- com a cultura local. Deve-se ter atenção e re-
to. Nessa visita houve uma recepção calorosa e conhecimento do saber próprio da população,
cheia de alegria da comunidade à nossa equi- construído com base em suas vivências e expe-
pe, revelando uma imagem muito positiva e re- riências diretas, saber que serve como ponto
conhecida pelo trabalho realizado ali. Essa de identificação do grupo, de interpretação e
questão nos intrigou: quais as razões que leva- representação do mundo a sua volta e veicula-
ram nosso projeto a ter aceitação e reconheci- ção de informações necessárias à sobrevivên-
mento da comunidade? Podemos enumerar al- cia. As pessoas simples geralmente estão mais
guns motivos: atentas ao orador que ao discurso, pois sua cul-
• termos chegado primeiro e trabalhado por tura está baseada na prática da vida e não no
mais de três anos sem descontinuidade em mundo das idéias e dos livros.
uma comunidade que nunca tinha recebido Em conseqüência desta maneira de ver o
atenção social de qualquer outra instituição mundo, podem-se observar pelo menos três
(comunidade ‘virgem’); aspectos que interessam quando se pensa em
• termos chegado de modo diferente do que mobilização comunitária para o controle das
normalmente se chega: ouvindo e prestando endemias: vida colada no aqui e agora, visão
atenção, visitando todas as casas, levando a sé- integrada dos problemas e mobilização em tor-
rio o que se ouvia, valorizando a sabedoria po- no de interesses concretos.
pular, deixando-se contaminar pela alegria na- A vida colada no aqui e agora é uma carac-
tural do povo do lugar; terística do saber de pessoas que vivem no li-
• o caráter de ‘pesquisa’ que leva à sistemati- mite da sobrevivência. Esta maneira de viver é
zação e reflexão sobre a realidade e o pensar mais uma imposição da pobreza ou da fraque-
das pessoas, que não fica só no ativismo; za do que uma opção. Não se trata de ‘por quê’
• a liberdade típica de projeto exploratório, ou ‘para quê’ preocupar-se com o futuro, mas
sem instituição por trás com algum tipo de nor- de ‘como’. Como permitir-se preocupar-se com
matização e controle sobre o que estava ocor- um depois do amanhã, antes de suprir, mesmo
rendo ali; precariamente, o hoje e o amanhã?
• a continuidade da ação participativa comu- A vida cotidiana passa a ser “assim como o
nitária, após o desligamento do projeto, feita dia que amanhece e anoitece, como se vivesse
pela Ampliar. acompanhando a natureza”. Há uma visão mui-

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to localizada dos problemas da vida e de suas A mobilização em torno de interesses con-


causas. O olhar não alcança muito longe. Nesta cretos, outra característica do saber popular,
espécie de ‘ética do tempo presente’ sentem vem do senso de realidade e de concretude que
muitas vezes “um certo embaraçamento que o povo vive, refletindo a vida que leva. É natu-
não sabem explicar”, sentem-se “atados” ou no ral que não se mobilize em torno de idéias, de
“escuro”. Muitas vezes, isso é interpretado pelos informações novas ou da tradicional educação
que chegam de fora como ignorância ou aco- sanitária. No caso do controle das endemias,
modação do povo da roça, mas na verdade não devem-se criar oportunidades para a popula-
é. Esta visão que “não salta para além da pró- ção fazer experiências, ver e manusear instru-
pria sombra, não poderia marcar também a mentos, para entender no concreto o ciclo de
consciência dos limites sociais que sabe do pos- vida dos vetores e da doença.
sível da vida na vida possível? Sabendo-se que a A doença de Chagas, para os moradores de
pretensão impossível é uma das fontes primor- Cansanção é um problema entre tantos que
diais de infelicidade, isto não seria sabedoria?” têm que enfrentar no seu dia-a-dia. Diante do
(Pedro Demo, Brasília, comunicação pessoal). imediatismo em que vivem, da situação emer-
Viver no aqui e agora permite a alegria do ins- gencial de sobrevivência no dia seguinte, essa
tante presente. doença não se constitui como o mais grave, ur-
Com relação ao controle das endemias, isso gente e importante problema. É apenas mais
precisa ser levado em conta. “Este viver dia-a- um, faz parte de um quadro mais amplo. Mas
dia dificulta a percepção de projetos a longo como um problema particular pode ser o cami-
prazo, ou de fenômenos que têm seus efeitos ob- nho para o mais geral, a doença de Chagas po-
servados a grande distância de tempo e de suas de ser o ponto de partida para uma ação mais
causas” (Emma Rubín, Piura, Peru, comunica- ampla, se for encarada justamente dentro des-
ção pessoal). Este é o caso da doença de Cha- te quadro maior, dentro da realidade do povo,
gas, que muitas vezes manifesta sua gravidade integrada nela.
vinte anos depois da picada do triatomíneo. O longo processo de empobrecimento rou-
As escolhas que a comunidade fez para seu ba do povo três coisas. Primeiro os seus bens,
programa de controle da doença de Chagas re- depois os direitos de participação na socieda-
velam uma visão integrada dos problemas. de e, por último, rouba sua consciência. É co-
Ações de controle das endemias se entrelaça- mo se a consciência ficasse grudada, encolhi-
ram com atenção primária à saúde e com ações da. Quando chegam pessoas de fora que acre-
de desenvolvimento social, econômico, educa- ditam, confiam nele, identificando-se, a cons-
tivo e de cidadania. Também a expressão: “Aqui ciência parece renascer. O processo de recupe-
tem a fraqueza e a doença. Mas mais a fraque- ração se dá ao contrário, primeiro se dá o des-
za”, ao entender a fraqueza como sinônimo de pertar da auto-estima e da consciência, que
pobreza mais o sentimento de impotência, re- anima a participação na luta por melhores
vela o modo de pensar a doença misturada à condições de vida.
problemática da vida, raciocínio de totalidade. Para ser coerente com a cultura popular,
Isso pode ser uma indicação da importância da bem como com a complexidade e as interliga-
integração dessas ações, em nível de municí- ções das carências e potencialidades do povo,
pio, e revela a necessidade de parcerias entre o controle das doenças endêmicas deve passar
entidades governamentais e não governamen- por três vias ao mesmo tempo:
tais. A municipalização dos serviços de saúde é 1) Remediando a situação encontrada: tra-
uma saída para o controle da doença de Cha- tando os doentes, encaminhando para a apo-
gas, principalmente na fase de vigilância epi- sentadoria quem não tem condições de traba-
demiológica. lhar, aplicando inseticidas nos focos de vetores
Esta visão integrada dos problemas está etc. Para isso, é necessária a integração em ní-
correta, mas infelizmente a lógica do sistema vel local (município) dos serviços de atenção
passa pela especialização e pela diversificação médica, saneamento, controle de endemias,
dos serviços. Sabemos que a saúde e a doença, educação escolar. Experiências assim já vêm
principalmente quando se trata das endemias, ocorrendo em alguns municípios que têm uma
não são problemas isolados e individuais, são administração popular, atenta ao social.
coletivos. Dependem de como um grupo de 2) Despertando as pessoas para a impor-
pessoas vive, como trabalha, o que come, quan- tância que cada um tem, para o reconhecimen-
to ganha, como mora. Dependem tanto do to da própria dignidade. Esse despertar não se
quanto estão vulneráveis e expostos aos veto- dá pelo discurso, mas pela qualidade da aten-
res, como das características biológicas de seu ção que se lhes dispensa, do relacionamento
corpo e dos serviços de saúde de que dispõem. igualitário, da reflexão conjunta sobre a reali-

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dade em que vivem, da oportunidade de co- te aceito se for entendido como direito de cida-
gestão do programa, projetando utopias. Há dania, como participação popular nas decisões
assim o despertar da consciência que estava das políticas públicas, nas gestões dos progra-
encolhida. É esse estímulo pessoal, essa místi- mas, como controle social. Envolvimento en-
ca que fazem caminhar, não a ciência. A edu- tendido também como envolver e ser envolvi-
cação popular é um instrumento para tal. do, como processo mútuo de educação, com-
3) Atacando as causas: animando a organi- promisso e solidariedade.
zação do povo na luta por melhores condições Para desencadear o processo de participa-
de vida, aumento na produção agrícola, acesso ção popular, a atitude de escuta é fundamen-
a empregos, melhoria nas casas, direito à terra tal, como já foi dito. Escuta entendida como
etc. Isso se dá pela organização da comunida- atenção concentrada e respeitosa que desperta
de em conselhos, associações, fóruns, partici- a auto-estima. Mais do que ouvir, é preciso es-
pação política... cutar com um ‘terceiro’ ouvido, escutar tam-
bém o subjacente à fala.
“... o senhor me escute, me escute mais do
Alguns aspectos importantes que estou dizendo; e me escute desarmado. Mui-
do processo de participação popular ta coisa importante falta nome.” (Rosa, 1970:86).
Não basta a aplicação de um bom questio-
A partir de nossa experiência em Cansanção, nário para se conhecer uma realidade, ele pou-
pudemos observar que o processo de investi- co ajuda na compreensão da vida que se leva
gação com a participação popular contém em ali. A capacidade de observar exige aprendiza-
si elementos didáticos. É confronto e comuni- gem e exercício, exige sensibilidade, capacida-
cação entre sujeitos diferentes, processo recí- de de se incorporar sem chamar a atenção.
proco de educação. Pode representar um espa- Um programa democrático de controle de
ço para o povo reconhecer a própria realidade, endemias é aquele que ouve cuidadosamente a
refletir coletivamente e, principalmente, para população, informa corretamente, consulta
buscar alternativas de vida, dentro da realida- ativamente, abre oportunidades de decisões
de. Para o agente externo (pesquisador, educa- conjuntas e não somente fica devolvendo ao
dor ou técnico) pode representar uma oportu- povo os seus próprios problemas.
nidade para crescer, mudar suas perspectivas e O diagnóstico só funciona se for assumido
pontos de referência, em confronto com o dife- como autodiagnóstico. A participação dos mo-
rente, se for aberto o suficiente para isso. radores no levantamento de dados é impres-
Envolvimento, compromisso, solidariedade cindível, mesmo correndo o risco de que estes
são mais úteis e adequados que a postura de dados não sejam tão científicos ou confiáveis.
distanciamento, neutralidade e rigidez meto- O processo participativo consiste em fazer
dológica. Não se trata de inferências generali- com que o povo comece a se reunir e se encon-
zadoras e relações lineares de causa/efeito. trar, para descobrir e discutir os seus proble-
Mas de captar uma realidade aberta, incerta, mas de vida e para encontrar uma solução:
relativa a tantos fatores, atenta à leitura e inter- problemas concretos, soluções bem concretas.
pretação que os sujeitos fazem. Podem irrom- É importante que a comunidade (por inter-
per repentinamente fenômenos imprevistos e médio de suas lideranças, associação de mora-
incontroláveis que devem ser observados, re- dores, escola etc.) tenha em mãos tudo que dis-
gistrados, acompanhados. ser respeito à sua realidade ou ao trabalho ali
Envolvimento comunitário, estratégia de desenvolvido (dados colhidos, diagnóstico sa-
tantos programas governamentais de controle nitário, relatórios, análises, projetos etc.).
de endemias, pode ser entendido de duas ma- Alguns critérios são necessários na hora de
neiras diferentes. Geralmente é uma simples selecionar os futuros educadores ou agentes
tática para levar a comunidade a fazer o que os populares de saúde para o trabalho participati-
técnicos de fora acham importante. Envolvi- vo com comunidades carentes. Deve ser uma
mento e participação seriam confundidos com pessoa:
doutrinação ou como maneira de usar o povo • com sensibilidade e capacidade de solidari-
para dar mais eficiência aos programas, ou pa- zar-se e não ‘seguir’ sendo igual;
ra baratear seus custos. Levam muitas vezes ao • não muito ’cheia de si’, mas voltada para os
raciocínio errôneo de que a auto-ajuda e a par- outros, entusiasmada com o que faz;
ticipação resolvem tudo, que os problemas lo- • com capacidade de aprender com aquela
cais são locais não só na sua expressão, mas realidade, de fazer perguntas e estabelecer re-
também nas suas origens. Por outro lado, o en- lações, não considerando as situações como já
volvimento comunitário só pode ser eticamen- conhecidas a priori;

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CONTROLE DE ENDEMIA E PARTICIPAÇÃO POPULAR 157

• que preste atenção em detalhes significati- da Cidadania inspirada por Betinho provaram
vos que envolvem sutilezas e emoção dos par- ser. Solidariedade e participação popular estão
ticipantes; de mãos dadas, pois não se pode erradicar a po-
• que tenha capacidade de trabalhar em equi- breza sem o pobre. É por isso que acreditamos
pe, disponibilidade e compromisso; nos resultados e no valor do trabalho de educa-
• que exerça um papel de animação da comu- dores que chegam de fora ‘de braços e corações
nidade, não de direção ou coordenação. abertos’. Educadores que têm uma postura de
Por fim, uma regra de D. Werner: “É neces- profundo respeito para com as pessoas da co-
sário que a pessoa se identifique com os peque- munidade, solidarizam-se com elas e dão um
nos, que seja uma pessoa sincera, com forte sen- ‘empurrãozinho’ para que se organizem com
timento de justiça social, que trate os outros co- mais entusiasmo a fim de construir um dia-a-
mo iguais e se preocupe com os mais necessita- dia mais feliz para o povo do lugar. É importan-
dos” (Werner, 1980:13). Tudo isso pode parecer te a crença no trabalho, o que cria oportunida-
muito ingênuo ou óbvio. São qualidades huma- des para o povo experimentar novas relações,
nas ideais, difíceis de ser encontradas na mes- descobrir a própria dignidade, enfim, “levantar
ma pessoa. Entretanto, é o que se busca. Para o as vistas”. Isso tem acontecido por aí, em mui-
trabalho comunitário, estas qualidades valem tos lugares, com pessoas que acreditam e gos-
mais que as técnicas. tam de trabalhar junto com o povo.
Estamos vivendo tempos de perplexidades Quem dera cada um de nós pudesse res-
e mudanças, às portas de um novo milênio. A ponder, quando perguntado, como D. Tereza
solidariedade ativa ainda é um caminho de sen- respondeu:
tido para a vida, como tantos comitês da Ação “Eu? – Eu estou aí, compondo o mundo”.

Referências

DIAS, R. B., 1986. Controle da Doença de Chagas em


Cansanção, MG, Brasil: Pesquisa e Ação Comu-
nitária. Belo Horizonte: Relatório ao TDR (UNDP/
WB/OMS). (mimeo.)
ROSA, J. G., 1970. Grande Sertão: Veredas. Rio de Ja-
neiro: Livraria José Olympio.
WERNER, D., 1980. The village health care pro-
gramme: community suportive or community
oppressive? Contact, 57:1-16.

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