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Resumo
Palavras-chave
Correspondência:
Denis Domeneghetti Badia
Depto de Ciências da Educação
UNESP – Campus de Araraquara
Rodovia Araraquara – Jaú – Km 01
14800-901 – Araraquara – SP
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.35, n.2, p. 233-249, maio/ago. 2009 233
Paradigms, values and education
Abstract
Keywords
Contact:
Denis Domeneghetti Badia
Depto de Ciências da Educação
UNESP – Campus de Araraquara
Rodovia Araraquara – Jaú – Km 01
14800-901 – Araraquara – SP
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Segundo Toulmin (1973), a palavra para- nuidade para uma concepção em moldes de
digma começa a ser utilizada no domínio da descontinuidade. Nesse sentido (e só nesse, pois
ciência por Lichtenberg em meados do século no resto muitas são as diferenças), pode-se di-
XVIII, precisamente no momento em que tam- zer que a noção de paradigma pertence à com-
bém vai ser adotada pela linguística da época, plexa família dos “jogos de linguagem” de
dada a necessidade de encontrar modelos de Wittgenstein (1961), das “realidades múltiplas”
conjugação e declinação no âmago da lingua- de Schütz (1972; 1978), das “realidades alterna-
gem. Em física, dava-se o mesmo: tratava-se de tivas” de Castaneda, das “estruturas da lingua-
reduzir certos fenômenos insólitos a modelos gem” de Lee-Whorf, das “problemáticas” de
que definissem determinada racionalidade. De Bachelard (1934; 1975) ou dos “epistemas” de
acordo com Prado Coelho (1982), “questões de Foucault (apud Giddens, 1978). Em todas essas
arranjo [...] o paradigma é um fator de ordem e noções, existe a ideia de que o nosso mundo se
de ordenação” (p. 27). O uso do termo perma- multiplica noutros mundos mais ou menos au-
nece discreto. Certa apatia acontece até o final tônomos, seja ao longo do processo histórico ou
do século XIX, até que Lichtenberg começa a ser seja na própria textura do presente que nos
lido e a influenciar a nova filosofia da ciência envolve. A separação entre esses mundos, sua
como, por exemplo, o empiriocriticismo de relativa incomunicabilidade, os problemas da
Mach. Com a leitura de Lichtenberg, emerge o tradução entre si e a (im)possibilidade de encon-
termo adentrando o cenário científico. O para- trarmos um mundo estável e objetivo, que se
digma entra novamente em cena filosófica por torne padrão de avaliação de todos os outros,
meio de Wittgenstein entre 1938 e 1947. são algumas das questões que pervagam o uso
Por volta dos anos 1950, chegava aos Es- da noção de paradigma. Diante dessa problemá-
tados Unidos. Nessa época, Kuhn (2000), homem tica, segundo Prado Coelho (1982), duas reações
de formação científica, começava a se interessar são possíveis:
pela filosofia, posteriormente, de modo mais espe-
cífico, pela história e filosofia da ciência. Ele se 1. ou se aceita a diversidade do real, aca-
refere às obras importantes de Koyré, Meyerson, bando por dissolver nela todas as referênci-
Metzger (cuja influência sobre Bachelard é decisi- as estáveis;
va) e Maier. No entanto, a formação filosófica de 2. ou se considera que essa diversidade é ape-
Kuhn terá ainda outros componentes: os trabalhos nas aparência e oculta um nível subjacente de
de Piaget, sobretudo no domínio da psicologia da padrões absolutos. (p. 28)
percepção; as concepções de Lee-Whorf, estabe-
lecendo as bases de um relativismo linguístico Iremos, assim, oscilando entre o relativismo
(cada linguagem determina uma concepção de e a absolutização, ou seja, em termos do século
mundo, que condiciona os que nela falam); as aná- XX, entre Collingwood (1940; 1978) e Frege (1971)
lises de Quine sobre o empirismo e seus dogmas; como vetores respectivos dessas orientações de
os estudos de história da cultura de Lovejoy; e os sentido. Respectivamente com a holonomia, tería-
ensaios de Fleck sobre a importância dos grupos mos, por um lado, o equivalente dessa polêmica
científicos. Kuhn vai traçar os primeiros esboços de nas discussões entre Prigogine (Petitot, 1988) e a
suas futuras ideias a partir de 1951 na série de Escola de Bruxelas – nos vetores de Bachelard
Conferências do Instituto Lowell de Boston. Em (1934; 1975) e de Morin (2000) e, por outro lado,
1957, publica The copernican revolution. Ao final a “teoria das catástrofes” e a topologia de Thom
dos anos 1950, iria se impor a ideia de paradigma. (Petitot, 1988), próximas a uma arquetipologia.
Entretanto, agora o termo paradigma Frege (1971) afirmava que se quisermos
está fortemente associado à passagem de uma conhecer o mundo, não podemos reduzi-lo a
concepção de história em moldes de conti- um mero fluxo de fenômenos, pois precisamos
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crer em coisas estáveis, que persistem sob as relações se dão de cima para baixo, isto é, temos
mudanças e transformações. Essa estabilidade axiomas, princípios e leis gerais que possibili-
encontra-se nos puros conceitos quando somos tam o entendimento dos enunciados de obser-
capazes de pensá-los em si mesmos, libertos das vação. É a clássica descrição da dedução. De
sedimentações históricas que os envolve. Se os qualquer modo, o sistema teórico é sempre um
conceitos têm uma história, trata-se apenas da sistema de relações lógicas entre proposições.
história de como nós os conhecemos, não da Collingwood (1978) dirá que isso só serve para a
história dos próprios conceitos, que subsistem matemática. Diz ainda que não encontra nos ou-
numa esfera intemporal do entendimento. A tare- tros domínios do conhecimento essa linearidade
fa da filosofia consiste em apreender a forma axiomática e vai explicar isso:
pura do conceito: por isso, ele orienta seus estu-
dos para os domínios da lógica e da matemática. 1. entre os enunciados da teoria as rela-
Collingwood (1940; 1978) situa-se no polo ções não serão relações de verdade, mas
oposto da antinomia absoluto-relativo. Para Prado relações de significado ou sentido: cada
Coelho (1982), entretanto, esse relativismo de enunciado interpreta-se noutros, e assim
Collingwood nada tem a ver com o subjetivismo vai se tecendo o texto do significado e o
contemporâneo ou o modo contemporâneo do tecido da significância. Mas nenhum enun-
solipsismo epistemológico como, por exemplo, ciado garante ou avaliza a verdade dos
assumido por Foerster (1974). A diversidade, ou outros. Há apenas um significado em cons-
a diferença, conceitual é um ponto de partida trução. Ou um processo de significância ou
objetivo da reflexão de Collingwood. O que está significatividade;
tematizado, no caso de Frege (1971), é a exis- 2. esse significado, esse sentido, essa signi-
tência de um estrato conceitual intemporal e ficância ou significatividade se constroem
absoluto capaz de servir como referência, sem não sob a forma de sistema axiomático, mas
controvérsias, para a avaliação de todos os ou- em forma de rede de pressuposições. (p. 62)
tros estratos e incidências. A célebre distinção
entre Sinn e Bedeutung, nos Escritos lógicos e É a partir da concepção da teoria como
filosóficos , que é densamente discutida por sistema formado por redes de pressuposições e
Rusell (1990), não terá outra finalidade. relações de significado que Collingwood chega-
A experiência conceitual de Collingwood rá à conclusão que, em qualquer teoria, quais-
não autoriza admitir isso. Se queremos fazer um quer enunciados pressupõem outros enunciados
julgamento, emitir um juízo sobre uma teoria, mais gerais que os fundamentam e justificam.
temos como único padrão objetivo o próprio São esses enunciados mais gerais que assegu-
conjunto de valores do quadro cultural a que essa ram a eficácia lógica dos demais. No entanto,
teoria pertence e nada além disso. Collingwood onde isso para?
(1940) parte da estrutura tradicional das teorias Cada enunciado estabelece relações com
científicas, tal como entendida pela filosofia de os enunciados adjacentes e com aqueles mais
seu tempo. Uma teoria é constituída por um particulares a que ele dá fundamento. Entretan-
sistema de proposições entre si vinculadas por to, estabelece também com aqueles que estão
uma rede de relações lógicas. De um ponto de mais acima e lhe dão uma razão de ser. Contu-
vista empirista, essas relações se dão de baixo do, no termo da hierarquização, quem manda?
para cima, isto é, os enunciados teóricos pro- Collingwood dirá que é um sistema de pressu-
duzem-se a partir dos enunciados de observa- posições absolutas, e isso será o paradigma.
ção, partindo-se do fato para a lei, do dado De modo denso e minucioso, Prado Coe-
para a abstração. É a clássica descrição da lho (1982) mostra que a problemática episte-
indução. De um ponto de vista racionalista, as mológica do paradigma, da década de 1960,
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das matrizes socioantropológicas e antropo- lindes iniciais: mas para haver convergência ou
psicanalíticas dos paradigmas e epistemas, confronto paradigmáticos e recondução, pois
Kuhn repete, disfarçando e amortecendo, os para os limites específicos, isso se daria a par-
efeitos daquilo que Collingwood assume às tir de onde? Seria preciso um “espaço neutro”
claras. Vejamos isso em Collingwood e, depois, ou então um “ponto de vista meta-”. No entan-
vinculemo-lo a Kuhn. to, isso seria uma metalinguagem e, portanto,
Collingwood (1940) diz que se compreen- evidenciaria o caráter retórico do paradigma. Pas-
dermos o paradigma como um sistema de pres- semos a explorar isso lembrando dois pontos de
suposições absolutas, a que acrescentaríamos do Kuhn (apud Geertz, 2001) que levam diretamente
teor de um pensamento inconsciente, há dois à questão da infiltração instaurativa dos valores
modos, como sintetiza Prado Coelho (1982), de nos paradigmas e à socialização dos “exemplares”
incomunicabilidade que o paradigma define. por meio da “função diferenciadora da educação”
em sua promoção de “especialidades”. Ele afirma
[...] em primeiro lugar, eu não posso con- que a ciência normal e as revoluções são:
frontar enunciados cujo significado depende
de sistema de pressuposições diferentes. Há [...] atividades baseadas na comunidade. Para
aqui universos que se incompatibilizam. Em descobri-las e analisá-las, primeiro é preciso
segundo lugar, eu não posso comparar um desenredar a estrutura comunitária mutável das
sistema de pressuposições absolutas com ciências ao longo do tempo. Um paradigma
outro sistema de pressuposições absolutas. não rege [...] um assunto, mas um grupo de
Porque, onde está o espaço neutro (sem praticantes. Qualquer estudo das pesquisas
pressuposições) para as por em confrontos e norteadas por paradigmas ou destruidoras de
avaliar? É a própria linha da racionalidade paradigmas deve começar pela localização do
que se fratura nesta multiplicidade de mundos grupo ou grupos responsáveis. (p. 146)
incomparáveis. (p. 30)
Portanto, o paradigma é uma produção
É a mesma ideia que, em a Fenome- de consenso e de conhecimento como consen-
nologia do mundo social e em Collected Papers, so a partir do grupo comunidade científica e/
Schütz defenderá, na linhagem de James, sobre ou dos intragrupos, na qual Kuhn evidencia, ao
as realidades múltiplas, definindo-as como âm- longo de todo o Posfácio, o papel formador da
bitos finitos de sentido, de modo que são “pluri- cultura e da linguagem na transmissão desses
(uni)versos”, onde cada um “habita” e cuja modelos ou “exemplares”: trata-se precisamente
transversalização e cruzamento é altamente pro- daquilo que Durkheim (1963) designou como
blemática, pois são mundos diferentes ou “mun- “função diferenciadora da educação”, que nada
dividências” diferentes, onde só a comoção mais é, na terminologia da Escola Cultura e
permite o “salto paradigmático” — perceba o Personalidade, que a transmissão das “especia-
teor emotivo e inconsciente do termo “como- lidades” como elementos culturais de um grupo
ção”: os franceses chamariam, inicialmente, com específico no profundo desenvolvimento dado
Ribot, Janet e Flournoy (apud Ellenberg, 1974), de por Linton (1961). Nesse sentido, o paradigma,
“ideias-força”, que evolveu para “lógica do senti- como diz Kuhn, será “um sistema de exemplos
mento” e, por fim, na etnopsiquiatria de Devereux compartilhados” que, a rigor, corresponde com
(1974; 1980), para “emoções-força” ou valores. maior precisão ao que Barthes (1968) chama de
Isso introduz, por um lado, grandes limi- “logotécnicas” e que Bachelard (1934; 1975)
tações à proposta de Blanchot-Foucault, o chamava de “noumenotecnias”. Quer dizer, isso
“princípio da recondução aos limites” para um definirá a linha em que será tratada por Kuhn a
dado paradigma, que peca por extrapolar seus questão da incomensurabilidade, no qual des-
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tanto ao enfoque de uma restrita sociologia do riedade violenta, legitimada por uma organiza-
conhecimento quanto ao de uma epistemologia ção tecnoburocrata do saber e por uma educa-
que ainda paga seus tributos ao racionalismo — ção praxiológica que a operacionaliza pela
como em Bachelard (teoria dos não valores e dos noção de violência simbólica.
obstáculos epistemológicos, ruptura epistemoló- Lembremos, com Bourdieu (1975): “todo
gica ciência-ideologia, perfil epistemológico, o poder de violência simbólica, isto é, todo
corracionalismo da cidadela científica). Entretanto, poder que chega a impor significações e a
cabe dela reter que, nos paradigmas, desde sem- impô-las como legítimas, dissimulando as rela-
pre, estaremos enclausurados na linguagem (Apel, ções de força, acrescenta sua própria força, isto
2000), sendo o paradigma as redes de leitura e in- é, propriamente simbólica, a essas relações de
terpretação da pretensa realidade (“X”), na qual não força”. Mostra o autor que a educação opera-
existe algo como “a realidade” porque o acesso cionaliza essa violência simbólica, em nosso
que a ela temos é sempre mediado pela linguagem caso, do arbitrário da imposição retórico-para-
ou função simbólica... a menos que, com ingenui- digmática e numa dinâmica da exclusão/inclu-
dade... e má fé... nos situemos nas várias recupe- são compulsória pelas “estratégias de precon-
rações do “projeto referencial-ontológico” — cuja ceito”, por meio do duplo arbitrário da ação
crítica irredutível foi feita por Rorty (2001), em pedagógica. Diz o autor:
livros como A filosofia e o espelho da natureza...
— e que, assim, situemo-nos antes do linguistic 1. Toda ação pedagógica (AP) é objetiva-
turn (Rorty, 1997) da filosofia analítica ou da Kehre mente uma violência simbólica enquanto
(Hottois, 1981) da hermenêutica, antes, portanto, imposição, por um poder arbitrário, de um
de Wittgenstein (1961) e de Heidegger (1967)... o arbitrário cultural... 1.1. A AP é objetivamen-
que soaria como um irônico arcaísmo antropoló- te uma violência simbólica, num primeiro
gico! Poderemos mostrar agora a retórica sofística sentido, enquanto que as relações de força
da persuasão, presentificando-se nos paradigmas. entre os grupos e as classes constitutivas de
Desde o Protágoras de Platão, a maiêutica uma formação social estão na base do poder
socrática se opõe à retórica dos sofistas, expli- arbitrário que é a condição da instauração
citada, como nos mostram Gomperz (1969) e de uma relação de comunicação pedagógi-
Guthrie (1975), pelos procedimentos acoplados ca, isto é, da imposição e da inculcação de
da erística e da peirástica, respectivamente o es- um arbitrário cultural segundo um modo ar-
pírito polêmico e a arte de persuasão violenta. bitrário de imposição e de inculcação (edu-
Esses procedimentos retóricos são encontrados cação)... 1.2. A AP é objetivamente uma vio-
nas “logotecnias” da “matriz disciplinar”, definin- lência simbólica, num segundo sentido, na
do aquilo que Chauí (1969) chama de “discurso medida em que a delimitação objetivamente
competente”. Na burocratização da vida social e implicada no fato de impor e de inculcar
no saber administrado da/pela razão técnica, o certas significações, convencionadas, pela
discurso competente significa que não é qualquer seleção e a exclusão que lhe é constitutiva,
um e de qualquer lugar que sabe e pode falar o como dignas de serem reproduzidas por
que quiser. Portanto, só aquele que está inves- uma AP, re-produz (no duplo sentido do ter-
tido e ocupa uma posição numa organização mo) a seleção arbitrária que um grupo ou
burocrática estará legitimado e terá a competên- uma classe opera objetivamente em e por
cia definida para dizer-enunciar um discurso seu arbitrário cultural. (p. 20-22)
também definido, ao qual é atribuída uma auto-
ridade institucionalizada. Portanto, chegamos ao paradoxo das
Retórica da persuasão e discurso compe- estratégias de conhecimento dos paradigmas
tente aprofundam-se, em seu caráter de arbitra- como produção de estratégias do preconceito.
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emotivos, isto é, qualidades imediatas e irredu- ção dos modos, meios e fins de ação acessí-
tíveis das vivências na experiência emotiva, veis. Fazendo uma análise detalhada dessa
sendo consequentemente alógicos e irracionais; definição, que não reteremos aqui, o autor
subtraem-se, portanto, a uma abordagem me- mostra que essa “construção lógica” é sempre
diante as leis lógicas porque, precisamente, são permeada pelo desejo, afeto ou catexis, e isso
dados imediatos das vivências do Lebenswelt de tal modo que o valor — que o autor sempre
(mundo da vida) que condicionam, de modo prefere dizer “valor de grupo” e não valor cul-
preciso, as elaborações cognitivas; (2) há um tural — não passa de uma racionalização para
pluralismo de valores, que Max Weber chama- uma catexis. Distinguindo entre os valores
va de “politeísmo de valores”, que são tantas cognitivos, valores expressivos e valores estima-
orientações possíveis da ação social segundo os tivos, posto que a catexis é evidente nos dois
vetores diversos que os sistemas de conheci- últimos, Kluckhohn (1962) desenvolve ampla
mento acolhem, pois a sociedade e a cultura, argumentação sobre o componente catético ou
por intermédio dos grupos, selecionam esses afetual dos valores cognitivos. Evidenciando
vetores de orientação e estabelecem uma hie- que, via de regra, os valores coincidem com a
rarquia de valores de tal modo que a famosa “cultura encoberta” do grupo — depois o autor
“neutralidade axiológica” de Max Weber (1965) designou-a como “cultura implícita” ou “cultura
é impossível: todo sistema de conhecimento e latente” sob o influxo das investigações antropo-
pensamento é orientado a partir desses a priori psicanalíticas —, Kluckhohn mostra o funciona-
emotivos plurais. Por isso, os franceses da es- mento da dimensão inconsciente na cultura do
cola da “lógica do sentimento” falam em “emo- grupo e nas instituições sociais, por onde os sis-
ções-força”. Em suma, os sistemas cognitivos temas cognitivos são estruturas de pressupostos
são orientados por tais a priori emotivos. E isso de teor afetivo, catético ou inconsciente.
de tal modo que o afeto, como dirá P. Janet Poderemos, então, compreender essa di-
(2000), ou a libido, como dirá seu discípulo mensão socioantropológica dos paradigmas ar-
Freud, fundam tais a priori emotivos. Lembre- ticulada à dimensão antropo-psicanalítica des-
mos, num parêntese, por razões de consistência no tes a partir de Bastide (1979), Jacques (1988)
rastreamento genético-conceitual, que há um e Devereux (1980), compreendendo, portanto,
escalonamento entre afeto/libido/inconsciente: tra- o caráter “arbitrário” da persuasão retórica nos
ta-se do trajeto que vai de Janet, com O automa- paradigmas: trata-se de uma indução inconsci-
tismo psicológico, publicado em 1889, ao Freud ente de racionalizações e polêmicas como es-
da “econômica” e das “tópicas”, como mostra- tratégias de conhecimento fundada na in-
ram, na gênese conceitual do trajeto, Starobinski questionabilidade dos a priori emotivos ou das
(1970) e Reich (1976), publicado nos Primeiros emoções-força que são os valores. A educação
Escritos. Em suma, o inconsciente está na base simplesmente comunica esses valores de grupo
da elaboração paradigmática: é a “indução transmitindo paradigmas. A questão de sua
arquetipal do conceito pela imagem”, como diz transformação envolve, precisamente, um traba-
Durand (1969, p. 62). lho sobre a dimensão fantasmática da ação so-
É precisamente isso que será elaborado cial como veremos em Jacques (1988).
na segunda vertente, ou seja, na axiologia de Frente ao que já foi dito, poderemos com-
Kluckhohn (1968; 1962), dentro dos marcos da preender claramente, com Bastide (1979), que os
teoria da ação do grupo de Parsons. Kluckhohn paradigmas, os sistemas cognitivos e os planeja-
(1968) define o valor como uma concepção mentos são instituições sociais. Diz o autor:
explícita, mas geralmente implícita, própria de
um indivíduo ou característica de um grupo A antropologia aplicada, tal como a defini-
sobre o desejável que é determinante na sele- mos, considera os modelos de intervenção,
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de grupo podem ser mais claramente aprecia- (mesmo na auto-observação) produzem defor-
das quando vistas como “resistências” de gru- mações que são, não só técnica mas também
pos de pessoas que inconscientemente se logicamente impossíveis de serem eliminadas,
agarram às instituições de que dispõem, já 9. toda metodologia eficaz em ciência do
que as mudanças nas relações sociais ameaça- comportamento deve tratar tais perturbações
riam perturbar defesas sociais preexistentes como sendo os dados mais significativos e
contra a ansiedade psicótica. (p. 313) mais característicos na pesquisa nessa ciência.
10. Ela deve explorar a subjetividade inerente
Na medida em que os paradigmas são a toda observação como a via régia para uma
instituições sociais, são sistemas de pensamen- autêntica objetividade, e não fictícia.
to e são sistemas sociais mobilizados contra a 11. Essa objetividade deve ser definida em
emergência da ansiedade psicótica ou da angús- função daquilo que é realmente possível, mais
tia originária: eles são mecanismos de defesa do que em função do que “deveria ser”.
potenciados e esse é seu “teor inconsciente” 12. Negligenciadas ou embelezadas de modo
como sistemas de pressuposições absolutas ou defensivo pelas resistências e contratrans-
sistema de valores, pois falamos sempre a partir ferência, vestidas como metodologias, essas
de uma tábua de valores que nos situa e permi- “perturbações” tornam-se a fonte de erros
te que situemos os outros com relação a nós... incontrolados e incontroláveis ao passo que,
Nessa medida, a possível ação transformadora da 13. quando são consideradas como dados
educação acha-se limitada... fundamentais e característicos das ciências
Devereux (1980) detecta o caráter perverso do comportamento, são mais válidas e mais
e o funcionamento inconsciente dos paradigmas, aptas a produzir tomadas de consciência que
sistemas de pensamento e metodologias científi- qualquer outro tipo de dados. Em suma, os
cas, amplificando as considerações anteriores. Diz dados das ciências do comportamento susci-
que o estudo científico do homem: tam uma angústia contra a qual nos defende-
mos por meio de uma pseudometodologia
1. é obstado pela angústia provocada pelo inspirada pela contratransferência; tal mano-
recobrimento entre o tema de estudo e o bra é responsável por quase todos os erros
observador; das ciências do comportamento. (p. 16-17)
2. esse recobrimento exige a análise do lu-
gar e da natureza da partilha entre ambos; Derradeira objeção ao mito da objetivida-
3. essa análise deve compensar a parcialida- de científica dos paradigmas e à correlata fun-
de da comunicação entre o tema e o obser- ção lógico-racional e axiologicamente neutra da
vador a nível consciente mas educação na elaboração paradigmática e em sua
4. não deve ceder à tentação de compen- transmissão, bem como da famosa “ruptura
sar a plenitude dessa comunicação a nível epistemológica” bachelardiana-althusseriana ci-
inconsciente, ência/ideologia: o paradigma é uma fantasia, ou
5. a qual desperta a angústia e, assim, tam- melhor, tem o funcionamento de uma fantasia.
bém, as reações de contratransferência Hillman (1999), muitas vezes, diz “de acordo
6. que deformam a percepção e a interpre- com a fantasia de Kérényi”, “de acordo com a
tação dos dados e fantasia de Freud”, “de acordo com minha fan-
7. produzem resistências e contratransferência tasia”, querendo significar o teor de fantasia da
que assumem as feições de metodologia, pro- teoria ou paradigma. Entretanto, o trajeto já se
vocando novas deformações sui generis. preparara para ele. Ele tem a coragem de enun-
8. Desde que a existência do observador, sua ciar o problema epistemologicamente, tirando-
atividade de observador e suas angústias lhe as consequências e propondo, assim, de
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Nesse sentido, não há como recusar um 1963), do “princípio de saturação dos limites”
perspectivismo retórico e uma relativização, que (Sorokin-Durand, 1969) e de uma “filosofia da
fariam um jogo entre o “relativismo ontológico” criação científica” (Moles, 1998), em termos
de Feyerabend (2007), o “tudo vale” e o epistemológicos, Paula Carvalho relativizou os
“etnocentrismo crítico” de Martino (1980). Terí- paradigmas em heurísticas e elaborou uma
amos um relativismo ontológico mitigado ou um cartografia dessas heurísticas em antropologia
relativismo epistemológico nos quais os epistemas das organizações educativas (Paula Carvalho,
seriam tratados no ludismo transicional. 1990) e em culturanálise de grupos (Paula
Para Monique Augras (1989), as elabo- Carvalho, 1991). Enfim, trabalhando com os
rações de Paula Carvalho estariam sob a égide conceitos de educação fática e ação cultural
de um politeísmo epistemológico e de certa em vários projetos, esse autor mostrou como,
visão do pragmatismo em pesquisa. Pensamos no nível microssocial de vários grupos
que, ao lado do já mencionado “princípio de socioculturais, poderiam ser utilizadas as pro-
recondução aos limites” (Blanchot-Foucault, postas de Bion (1987) e de Winnicott (1971).
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Recebido em 12.06.08
Aprovado em 07.05.08
Denis Domeneghetti Badia, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e doutor em Educação pela FEUSP, é
professor do Departamento de Ciências da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de
Ciências e Letras da UNESP/Araraquara e diretor do Centro Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Imaginário (CIPI - FCL -
UNESP - SCAr).
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.35, n.2, p. 233-249, maio/ago. 2009 249