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1.

Ricordanza della mia gioventú - Augusto dos Anjos

A minha ama-de-leite Guilhermina


Furtava as moedas que o Doutor me dava.
Sinhá-Mocinha, minha Mãe, ralhava...
Via naquilo a minha própria ruína!

Minha ama, então, hipócrita, afetava


Suscetibilidade de menina:
"- Não, não fora ela-" E maldizia a sina,
Que ela absolutamente não furtava.

Vejo, entretanto, agora, em minha cama,


Que a mim somente cabe o furto feito...
Tu só furtaste a moeda, o oiro que brilha...

Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama,


Eu furtei mais, porque furtei o peito
Que dava leite para a tua filha!

Paraíba 1907
2. “À mesma D. Ângela” – Gregório de Matos

Anjo no nome, Angélica na cara,


Isso é ser flor, e Anjo juntamente,
Ser Angélica flor, e anjo florente,
Em quem, senão em vós se uniformara?

Quem veria uma flor que a não cortara


De verde pé, de rama florescente?
E quem um Anjo vira tão luzente,
Que por seu Deus, o não idolatrara?

Se pois como Anjo sois dos meus altares,


Fôreis o meu custódio e minha guarda
Livrara eu de diabólicos azares.

Mas vejo que por bela, e por galharda,


Posto que os Anjos nunca dão pesares,
Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.
3. Trem de Ferro – Manuel Bandeira

Café com pão


Café com pão
Café com pão

Virge Maria que foi isto maquinista?

Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força

Oô...
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
Da ingazeira
Debruçada
No riacho
Que vontade
De cantar!
Oô...

Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficiá
Oô...
Menina bonita
Do vestido verde
Me dá tua boca
Pra matar minha sede
Oô...
Vou mimbora vou mimbora

Não gosto daqui


Nasci no sertão
Sou de Ouricuri
Oô...

Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente...
4. Fanatismo - Flor Bela Espanca

Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida!


Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...


Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

"Tudo no mundo é frágil, tudo passa...


Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:


"Ah! podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: princípio e fim!..."
5. Noturno - Flor Bela Espanca

Amor! Anda o luar todo bondade,


Beijando a terra, a desfazer-se em luz...
Amor! São os pés brancos de Jesus
Que andam pisando as ruas da cidade!

E eu ponho-me a pensar... Quanta saudade


Das ilusões e risos que em ti pus!
Traçaste em mim os braços duma cruz,
Neles pregaste a minha mocidade!

Minh'alma que eu te dei, cheia de mágoas,


É nesta noite o nenúfar dum lago
Estendendo as asas brancas sobre as águas!

Pousa as mãos nos meus olhos, com carinho,


Fecha-os num beijo dolorido e vago...
E deixa-me chorar devagarinho...
6. Retrato - Cecília Meireles

Eu não tinha este rosto de hoje,


assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,


tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,


tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?
7. Moderno - Jorge Fernandes

Tomou o matélo pesado todo cheio de barro


E tocou a destruir todo verso bem feito...
Malhou nas ogivas dos decassílabos: - tá! tá! tá!...
E os pedaços de cornijas cahiam pelo chão relvoso
Numa monotonia de pedaços de cornijas...
Fez cahir todas as flôres de liz que corneavam as janellas
E sobre o montão novo de ruínas de versos sonoros
Começou a viçar toda a vegetação alegre da terra:
Pés de jurubebas, canapuns, pinhões se erguiam...
As flôres que ainda não foram vistas: azues – amarelas – vermelhas – pintadas.
As folhas viçosas dos mata-pasto...
Lagartixas...Calangos num sim-sim de cabeça se estiravam
Ao sol gostosamente quente...
Melões de São Caetano enfeitavam todo o basculho
Da architectura colonial...
8. Autopsicografia - Fernando Pessoa

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,


Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas da roda


Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.
9. Soneto de separação - Vinícius de Moraes
Inglaterra , 1938

De repente do riso fez-se o pranto


Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento


Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente


Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente,

Fez-se do amigo próximo o distante,


Fez-se da vida uma aventura errante,
De repente, não mais que de repente.

Oceano Atlântico, a bordo do Highland Patriot, a caminho da Inglaterra, setembro de


1938.
10. "Rios sem discurso" – João Cabral de Melo Neto

A Gabino Alejandro Carriedo

Quando um rio corta, corta-se de vez


o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.

O curso de um rio, seu discurso-rio,


chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloqüência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase e frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate.

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