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desprestigiante para Portugal, bem assim como e esta constituía talvez a maior
rendimento, cargos e ligações pessoais das figuras da "Situação", bem como as suas
ela.
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A instituição censória era tanto mais poderosa quanto o chefe do governo
instruía pessoalmente e com regularidade o seu director (durante longos anos o major
Álvaro Salvação Barreto), mesmo quando a tutela dos Serviços de Censura pertencia
1974. Por ironia, o próprio Salazar, que, antes de chegar ao poder, teve artigos seus
1933), seria no fim da vida vítima da engrenagem censória que legou à posteridade: o
para o manterem isolado e quase sob sequestro, impedindo-o de ter uma intervenção
o Príncipe não depende da opinião pública, não devendo por isso segui-la, mas
mediana nem síntese. Esta concepção seria retomada e reformulada, após décadas de
XIX e primeiras décadas do século XX, a partir da constatação do enorme poder dos
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no plano da luta política e da governabilidade. A opinião pública era então
pelos países beligerantes, a censura (tal como a propaganda de Estado) começou para
contra o inimigo externo, mas também contra aqueles que, quase sempre acusados de
liberal, plutocracia, nalguns países os judeus, etc). Despojada assim de todo o seu
da "opinião pública da Nação", que não se confundia com aquela. Enquanto que a
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intrinsecamente harmónica, teria de ser dirigida e enquadrada pelo Estado,
assim estruturada, que o Estado Novo se revia e na qual pretendia apoiar-se para
comunicação social. Na sua forma ambígua, sempre susceptível de uma leitura mais
embora considerasse, por exemplo, que a imprensa exercia uma "função de carácter
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mutilados, as canções excluídas dos repertórios, o empastelamento de emissões de
público não tinha uma percepção clara da amplitude vastíssima da acção da censura
sempre as alusões, por mais anódinas, a qualquer aspecto da sua acção. A lei da
1926 sob a Ditadura Militar, proibia que fossem deixados espaços em branco
dos cortes, que deviam ser preenchidos de modo a que o leitor não pudesse inferir a
acção censória. O blackout informativo de que se rodeava fez com que o próprio
regulamento dos Serviços de Censura (1936) não tivesse sido publicado no Diário do
Governo.
Na realidade, a censura ia muito além das facetas mais conhecidas (ou menos
próprios media a primeira triagem daquilo que o público nacional podia ou devia
"assuntos de carácter político e social" deviam, desde 1936, ser submetidos a censura
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prévia. Toda a publicidade, incluindo os pequenos anúncios da imprensa, estava
que fazia parte o director dos Serviços de Censura. Fados e cantigas populares
também eram alvo da sanha censória, ao mais alto nível do Estado: Salazar, em 1953,
nomes indigitados, no que a polícia política também tinha uma palavra a dizer.
aceitação oficial. Eram ainda os Serviços de Censura que faziam a selecção das
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diários impedidos de publicar anúncios oficiais. Toda esta acção implicava uma
muitos pontos com a da polícia política. Como esta, aliás, também a censura à
dos anos 30 até 1974, o governo recebeu dos serviços de censura competentes
poder.
apertada, vítimas de constantes cortes, punidos por vezes com multas e suspensões.
Entre os diários, foi disso destacado exemplo a República. Se essa relação tensa com
disse, não foi em Portugal propriamente absorvida pelo Estado autoritário. Entre o
pouco que escapava à obsessão censória, havia nessa minoria de jornais e também
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primeiramente a extinção, forçada ou "voluntária", de numerosos títulos da imprensa
quer durante a Ditadura Militar quer depois dela. Segundo fonte governamental, só
43, enquanto o de "situacionistas" subia de 101 para 148. Uma década depois, em
1945, uma classificação elaborada pelo governo na véspera das eleições desse ano já
prévia das novas publicações, bem como uma série de pressões exercidas quer sobre
legal de pesada caução, de que eram dispensadas algumas empresas jornalísticas mas
não outras.
O poder usava meios ainda mais subtis na tentativa de pôr certos jornais ao
serviço da ordem social e política salazarista, fazendo por exemplo lembrar a alguns
censura. No entanto, a acção da censura devia incidir sobre todos os media, inclusive
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simétrico dos noticiários insuportavelmente iguais, dilema que a imprensa conheceu
via mais limpidamente totalitária, era assegurado pela sua posse ou controlo directo
quer pelo partido único quer, sobretudo, pelo Estado. Tal aconteceu primeiro apenas
privados secretamente financiados por dinheiros públicos mas que, apesar disso ou
Para além da censura stricto sensu, isto é, a exercida por serviços estatais
global uma censura difusa, não necessariamente codificada na lei, exercida umas
vezes por organismos de controlo dos ministérios (as Inspecções), outras vezes pela
cadeia hierárquica normal, não raramente pela polícia política. Os efeitos dessa
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informação de importância similar, nas Forças Armadas, na organização corporativa,
nos grandes serviços públicos como os CTT (que, além de exercerem funções
Censura e a polícia política PIDE/DGS) e até nas prisões, onde os jornais deviam
ser segunda vez censurados antes de chegarem às mãos dos presos políticos. Esta
denúncia dos chamados elementos "subversivos" (obrigatória por uma lei de 1936).
Nas redacções dos jornais, por seu turno, antes de actuar o lápis do censor
redacções, era muitas vezes uma medida de antecipação ao lápis azul ditada por
razões de economia e eficácia, uma vez que os cortes acarretavam sempre despesas
sentido muito lato, a censura confundia-se até certo ponto com o clima de
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definido e arbitrado por reduzido número de detentores do poder e, frequentemente,
propaganda do Estado Novo, com cuja acção por vezes se confundia. No vasto
assumiam com frequência uma atitude pedagógica e doutrinária que extravasava das
em colunas e linhas, que certos assuntos poderiam ou deveriam ter, durante quantos
outro trecho, até como forma de evitar cortes mais extensos ou totais.
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propaganda, cuja filosofia comum ficou aliás bem expressa numa frase lapidar de
só existe o que o público sabe que existe" sentença aplicável tanto ao que
convinha que o público soubesse, tarefa da propaganda, como ao que não convinha,
tarefa da censura.
censura não pode ser ignorado ou descurado por quem se debruça sobre qualquer
aspecto da história do Estado Novo, período que foi antecedido e seguido por
salazarismo não duraria um mês". E de facto, nos quase 48 anos decorridos entre a
censura, que inicialmente surgira como uma medida associada à suspensão das
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nenhum jornal podia futuramente publicar-se sem ser submetido a fiscalização
prévia. A medida vigoraria a partir do dia 24, data em que pela primeira vez os
diários trouxeram impressa a menção: Este número foi visado pela Comissão de
Censura. Episódio revelador da luta entre facções e da anarquia inicial que grassou
nas hostes da Ditadura Militar, a prática da censura terá sido introduzida à revelia de
imprensa, subscrita pelo chefe do governo e seus ministros a 5 de Julho de 1926, que
declarava taxativamente no seu artigo 1.º: "A todos é lícito manifestar livremente o
sem necessidade de autorização ou habilitação prévia". Esta redacção não fazia mais
do que retomar quase literalmente o princípio genérico exarado nas leis de imprensa
durante 48 horas, para ser restabelecida logo após o golpe de 9 de Julho que derrubou
o governo. Todavia, por decreto de 29 de Julho do mesmo ano, subscrito pelo novo
redacção do supracitado artigo 1.º da lei de imprensa. Carmona afirmara pouco antes
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A acção censória visava declaradamente impedir a perturbação da ordem
pública, sustentar o governo militar e neutralizar a voz dos seus opositores. Dito de
chefes como uma campanha militar patriótica, não tolerava a "perturbação dos
Não obstante, e ainda que tardasse a definir-se a orientação política "definitiva" que o
A censura revelava-se, entretanto, uma arma decisiva na luta pelo poder entre
tornar num dos principais pontos em torno dos quais se polarizaram as posições
políticas, com alguns generais, como Ivens Ferraz e, depois, Vicente de Freitas, a
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Constituição, a censura foi quase imperceptivelmente passando no discurso político
excepção, criou afinal as condições, ainda que sob uma redacção particularmente
como ela funcionava desde 1926, quer de outros aspectos estruturais da Ditadura
na sua função de força social" (art.º 8.º). Evitando sempre cunhar o termo censura
a opinião pública "de todo os factores que a desorientem contra a verdade, a justiça, a
"preventiva" da opinião pública não ficavam claros, o seu campo de acção não podia
ter sido definido de forma mais vasta e genérica, deixando ao legislador ordinário e,
11 de Abril de 1933), ficara apenas esboçada nas famosas entrevistas concedidas por
constitucional. Publicada, não por acaso, no mesmo dia da entrada em vigor da nova
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legislou a Ditadura anteriormente sobre censura, mantendo-a durante quase sete anos
sem qualquer suporte legal. Sem embargo, a lei da censura fazia repetidas e
inesperadas remissões para a lei de imprensa (a que estava e continuou em vigor era
publicações definidas na lei de imprensa". Ora a lei de imprensa em vigor que, como
nenhum dos seus artigos essenciais nem substituída (até 1971), sendo assim deixada
com o seu fantasmático artigo 1.º, caído em desuso logo à nascença, a afirmar
admitir que não haveria ainda em 1933, nem talvez posteriormente, uma posição
para além dum único ponto: até decisão em contrário, a censura devia continuar. O
seria assumida por Salazar, pelo ministro da Justiça Manuel Rodrigues, por Mário de
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termos bastante expeditivos, dado o carácter delicado e pouco inspirador do tema. Só
pública. Não obstante tratar-se de uma das poucas figuras do regime que opunha
certas reticências ao sistema da censura (ainda que, com vinte anos, na revista Ordem
Nova (1926), aplaudisse a queima pela políca das obras de António Boto, Raul Leal e
duração. Em 1926, a primeira opção dos militares terá sido por uma censura
em curso em Itália, de onde lhes vinha muita da sua inspiração. Apesar das
ambiguidades da legislação atrás referidas, em 1933 Salazar optou de facto por uma
triunfo do Estado Novo autoritário sobre a velha política demoliberal. A longo prazo,
A partir de 1936, veio sobrepor-se ou acrescer a essa censura de regime uma censura
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conflitos espanhol e europeu, enquanto por todo o continente iam desaparecendo os
ressurgia integralmente, tanto mais que a lei da rolha passava a constituir na Europa
sempre à carga com a clássica pergunta junto dos governantes portugueses para
constituía, aliás, o indispensável isco com que o regime atraía a oposição às eleições,
Hermano Saraiva, uma "porta aberta para a subversão violenta de todos os valores e
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provocado pela agitação eleitoral desse ano bastou para que, na revisão
pode, pois, dizer que o regime de Salazar tivesse conservado o sistema censório
Portugal não seria viável entregar à ineficaz organização judicial uma tarefa que
realidade, havia aqui um outro problema prático, que residia na clara inconveniência
com o regime, como o eram os Tribunais Plenários que tinham a seu cargo os crimes
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existisse censura prévia, haveriam previsivelmente de ser muito numerosos. Os
debater, quando era precisamente isso o que num Estado autoritário se negava. Só a
Ferro que seria, aliás, o primeiro presidente do Sindicato Nacional dos Jornalistas
e que, nessa qualidade, aceitaria a censura sem qualquer protesto: "Uma boa lei de
imprensa pode reprimir certos abusos. Mas não os evita..." Mário de Figueiredo
pela oposição, como se via nos curtos períodos de campanha eleitoral, "roubava
"em prol do bem comum". Afirmando reconhecer o vexame que a censura prévia
exemplo dos advogados, numa Ordem dos Jornalistas, a desempenharem "o papel
do Estado!
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maquinações capitalistas e até a interesses estrangeiros. Após a queda do nazi-
como são e não como alguns queriam que fossem", logo impedidos de usufruir das
Justiça (1926-28 e 1932-40), redactor da lei de imprensa de 1926 que nunca cumpriu
nem fez cumprir, defendeu em 1940 a opinião de que os portugueses tinham o "vício
informados e informar, em especial sobre "a vida do Estado, a ordem política interna
e internacional". Com isso prejudicariam a "própria vida da Nação, pelos braços que
furtam ao trabalho, pelos cérebros que furtam ao estudo e pela agitação e alarme que
promovem".
censura, Salazar achava suficiente evocar com dramatismo os transes por que haviam
das forças da ordem. Isso permitia-lhe seguidamente defender que o Estado Novo
implantara uma nova era de liberdade, com uma imprensa isenta a esclarecer e
interpretar o sentir público "talvez com menos sensacionalismo", mas com "maior
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e agravada com o tempo, dos empresários (incluindo alguns apoiantes de Salazar) e
de Lisboa (com destaque para Joaquim Manso, do Diário de Lisboa, João Pereira da
Sindicato dos Profissionais da Imprensa (dirigido por Artur Portela, Belo Redondo e
Julião Quintinha e que foi extinto pelo governo em 1934, para dar lugar ao Sindicato
protesto que Salazar, prestes a assumir a chefia do governo, conseguiu fazer adiar e,
depois, abafou.
No fim da guerra e em meados dos anos 50, novas pressões se exerceram sobre
o governo para que pusesse termo à censura. Na última década da sua governação, o
ditador parecia por vezes resignado a admitir uma reforma, consubstanciada numa
nova lei de imprensa, menos liberal do que a de 1926, mas que dispensasse, segundo
se acreditava, a existência da censura prévia. Essa nova lei de imprensa ficaria até
Caetano impulsionara já desde meados dos anos 50, emperraram ao fim de pouco
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Deu-se, talvez, a fatal constatação de não ser possível, ou sequer desejável, plasmar
numa lei de imprensa as mil e uma prescrições necessárias para obter, da sua
tribunais), o mesmo resultado que, com muito menos trabalho, incertezas, "danos na
marcando com isso uma diferença nada despicienda em relação ao governo anterior.
"arma psicológica" que o inimigo interno e externo não deixaria de usar. Assim o
exigia também a necessária transição dum regime de censura velho de 42 anos para
significativa que, sob Caetano, se operou neste domínio. Em 1971 seria, é certo,
aprovada uma nova lei de imprensa (Lei 5/71), a primeira desde 1926, mas que
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país ou nos territórios ultramarinos se verificasse a existência de "subversão",
competindo à Assembleia Nacional ajuizar sobre tal facto. Tendo este órgão de
obrigatória.
diferente do que se passara em Julho de 1926 excepto que agora a lei havia sido
precedida por uma moderação da prática censória, com efeitos sensíveis no plano
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Numa apreciação global, a censura, em virtude do seu carácter opressor e
uma quota importante de responsabilidade pelo longo acumular das tensões e dos
assacado à falibilidade humana e até a uma certa estreiteza de espírito dos numerosos
como majores e coronéis, não iliba os verdadeiros responsáveis pelo carácter odioso
1944; os responsáveis do SNI (depois SEIT), que entre 1944 e 1974 tutelaram a
que com ele conferiam regularmente. Para além destes principais responsáveis, pode
dizer-se que todo o governo dava orientação e exercia um controlo permanente sobre
outra coisa sendo de esperar, tratando-se dum mecanismo criado para servir uma
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duradouro de mordaça imposta pelo governo a um povo. A vigência, ao longo do
alheamento pela coisa pública e, não em último lugar, incorporou uma espécie de
crítica, teve ainda uma influência muito perceptível na censura dos livros e
espectáculos, ainda que não conseguindo nesses campos tudo quanto pretendia. Basta
talvez referir que os autores portugueses com maior número de obras proibidas e
com pelo menos 15 títulos proibidos) ou por uma literatura anticlerical e brejeira de
larga audiência popular (José Cardoso Jorge, com 34 títulos proibidos e José
Vilhena, com 29, segundo a única lista já publicada, muito incompleta, de livros
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como as de Júlio Dantas, nomeadamente A Ceia dos Cardeais, atesta bem a
ou até notícias sobre actos, iniciativas e alocuções dos papas, quando desagradavam
ao governo.
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e a propaganda do regime passariam a atingir quase em permanência a grande
foi a de um controlo crescente exercido pelo poder político não de forma avulsa
índole entre o poder e as entidades particulares proprietárias dos media, etc.) visava
censor estatal de manga de alpaca e lápis azul figura que, no entanto, nunca
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pluralismo (Salazar e Caetano diziam sempre "partidarismo"). O balanço sistemático
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