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Identidade, cultura e mídia: a complexidade de novas questões educacionais na

contemporaneidade*

por Rosa Maria Bueno Fischer - publicado em 17/01/2007

José Saramago, no romance Ensaio sobre a cegueira1, coloca-nos diante da miséria humana de
homens e mulheres que, num tempo de inflação de imagens, tornam-se cegos e precisam
reaprender tudo, a usar seu corpo, os sentidos e especialmente a solidariedade mais genuína.
Desaparecida a visão e, portanto, as imagens (no sentido mais palpável dessa palavra, ou seja,
aquilo que os olhos "realmente" vêem), homens e mulheres precisam situar-se de um modo
totalmente novo frente aos limites do próprio corpo. Diante de uma "escuridão branca e
leitosa", os personagens do romance precisam reaprender radicalmente a viver e a comunicar-
se com o outro e consigo mesmos. Essa fábula é escrita num tempo em que pensadores de
diferentes áreas do conhecimento se indagam exatamente sobre os efeitos de uma
reorganização da vida cotidiana, a partir da lógica do mercado, da mídia e da publicidade, das
novas tecnologias de comunicação e informação, e que estaria marcada por algumas
características principais, dentre as quais destaco: a experiência de uma abundância audiovisual
sem precedentes, a tendência a uma homogeneização cultural, sem que - por paradoxal que
pareça - se deixe de contemplar as diversidades; e a interpelação constante ao sujeito privado
e à sua suposta liberdade de escolha.

Se considerarmos que a mídia, hoje, é responsável por um imenso volume de trocas simbólicas
e materiais em dimensões globais, abre-se para a educação um novo conjunto de problemas,
numa dinâmica social que exige não só medidas urgentes por parte das políticas públicas
educacionais, mas igualmente uma reflexão mais acurada sobre as relações entre educação e
cultura, que ultrapasse as já conhecidas afirmações - as quais não negamos, obviamente - de
que a escola está ainda muito distante de acompanhar o seu tempo, de que há hoje muitos
outros espaços de acesso às informações e de que se transformam radicalmente os modos de
interação entre indivíduos e grupos, em vista da presença cotidiana das sempre novas
tecnologias de comunicação na vida das pessoas e no funcionamento geral da sociedade.

Diante disso, proponho que nos perguntemos sobre como efetivamente se dão esses novos
modos de produzir identidades sociais e individuais em nosso tempo. Ou seja: em que medida
a presença da mídia na vida cotidiana produz, reproduz ou dinamiza certos valores, crenças,
sentimentos, preconceitos que circulam na sociedade? Afinal, de que forma os meios de
comunicação têm participado da disseminação de maneiras especiais de ser e estar, de agir, de
comportar-se, de os sujeitos tratarem a si mesmos, a seus corpos e a seu mundo interno? Como
esse espaço fundamental da cultura tem tratado das lutas sociais por direitos que atingem
grupos étnicos, raciais, geracionais, profissionais, ou grupos envolvidos com as questões de
gênero? Enfim, como no campo da educação estamos avançando, no sentido de trazer para
dentro dos espaços escolares a discussão dos saberes que circulam no rádio e na televisão, nos
jornais, na publicidade, bem como, mais especificamente, a discussão das eficazes estratégias
de linguagem desses meios, na busca de uma interação com seus públicos e na luta pela
imposição de sentidos?
Para debater em torno de tais questões, concentro-me neste texto em quatro tópicos principais
ligados ao tema acima proposto: em primeiro lugar, o problema geral da construção de
identidades na cultura contemporânea; a seguir, a presença indiscutível de uma ética
publicitária na constituição das subjetividades; em terceiro lugar, uma discussão sobre a
complexidade dos sentidos na mídia; e, finalmente, algumas repercussões e urgências desse
tema no campo da educação. Os quatro tópicos serão tratados aqui, portanto, à medida que
trazem para a educação novos problemas (ou pelo menos novas formas de ver impasses talvez
já antigos) e algumas perspectivas de redimensionar nossas reflexões sobre o espaço escolar e,
mais amplamente, sobre as urgentes questões educacionais do nosso tempo.

A cultura no centro

Muitos estudiosos, sejam eles do Primeiro ou do Terceiro Mundo, têm sido unânimes em afirmar
que nossas identidades são constituídas culturalmente. O que isso quer dizer? O ponto de
partida dessa importante afirmação é que, como bem escreve Stuart Hall2, a cultura - entendida
como um conjunto de sistemas ou códigos de significação que conferem sentido às nossas vidas,
à nossa história, às nossas lutas, enfim, a todas as nossas práticas - assume, nos últimos tempos,
uma centralidade tal que talvez esse fato possa estar indicando uma das grandes mudanças
históricas do próximo milênio: cada momento de nossa vida social contemporânea é cada vez
mais - e permanentemente - mediado pela cultura; nesse processo, torna-se bem palpável a
idéia de que é impossível separar o "real", o "material", o "concreto", o "vivido" de todas as
significações conferidas às práticas, sentimentos, identificações aí em questão. Hoje não temos
dúvidas, por exemplo, a respeito de que nem mesmo nossa sexualidade, tradicionalmente
atrelada a expressões como vida íntima, privacidade ou segredo, por exemplo, pode ser
desvinculada dos sentidos sociais e culturais que lhe são conferidos; ou seja, como outros
espaços de nossa vida, também ela é socialmente normalizada, também ela é significada pela
cultura3 .

Um exame mais cuidadoso pode mostrar que, no centro das lutas pelo poder, cada vez mais
estão em jogo lutas simbólicas, lutas pela hegemonia de sentidos, lutas pela visibilidade de
imagens, associadas a determinados grupos, a determinadas causas, a determinadas ações
políticas, e assim por diante. Ora, se a cultura está no centro, não haveria como discordar de
que a construção de identidades sociais e individuais já não pode ser vista, em nosso tempo,
como uma questão pertinente prioritariamente ao campo psicológico:

"O que isto sugere é que a identidade emerge não tanto de um centro interior, de um "eu
verdadeiro e único", mas do diálogo entre os conceitos e definições que são representados para
nós pelos discursos de uma cultura e pelo nosso desejo (consciente ou inconsciente) de
responder aos apelos feitos por estes significados, de sermos interpelados por eles (...)".

"( ...) devemos pensar as identidades sociais como construídas no interior da representação,
através da cultura, não fora delas. Elas são o resultado de um processo de identificação que
permite que nos posicionemos no interior das definições que os discursos culturais (exteriores)
fornecem ou que nos subjetivemos (dentro deles). (...) é cada vez mais difícil manter a
tradicional distinção entre "interior" e "exterior", entre o social e o psíquico, quando a cultura
intervém"4.

A estética da publicidade nos modos de ser e estar

Um dos espaços da cultura em que se torna mais visível o processo de construção social de
identidades talvez seja o da mídia e, particularmente, o da publicidade. Dentre os muitos autores
que se debruçam sobre esse tema em todo o mundo, o indiano Madan Sarup, radicado durante
muitos anos na Inglaterra, em Identity, culture and the postmodern world (Identidade, cultura
e mundo pós-moderno), ao tratar da discussão sobre identidade, dedica um capítulo especial ao
que chama de identidade do consumidor e estética do mercado e das mercadorias. Mostra-nos
como, na compra de determinados bens, não são exatamente os objetos o que importa a nós: a
aparência deles, a imagem, a impressão que eles produzem, a fascinação que provocam seriam
bem mais importantes; tudo se passa como se vivêssemos vários momentos de nossa vida em
função de um processo ilusório, pelo qual os objetos funcionariam como um espelho em que
enxergamos nossos desejos tornados realidade5.

Beatriz Sarlo, por sua vez - autora do livro Cenas da vida pós-moderna: intelectuais, arte e vídeo-
cultura na Argentina6 - afirma que as bases de identificação do homem contemporâneo,
especialmente para os mais jovens, estariam nos objetos de consumo, que se tornam seus novos
ícones. Em torno destes, cria-se e desenvolve-se uma estética publicitária que ultrapassa a mera
função da venda de produtos7. Ou seja, estaríamos aprendendo, a partir da centralidade do
consumo - e não apenas da prática cotidiana de vender e comprar objetos, mas, sobretudo, da
experiência permanente de conferir valores e sentimentos, prazeres e angústias a todas essas
práticas - um modo publicitário de falar, de vestir, de pensar as menores experiências diárias,
de apreender e de produzir imagens visuais, sonoras, tácteis. E, por que não, também um modo
distinto de ler e escrever? Esses modos novos de ser e estar no mundo, segundo Beatriz Sarlo,
não se separam de uma certa "comunidade do consumo", a partir da qual vamos constituindo
transitórias e tensas identidades:

"Os objetos nos escapam: às vezes porque não podemos consegui-los, outras vezes porque já
os conseguimos, mas sempre nos escapam. A identidade transitória afeta tanto aos
colecionadores às avessas quanto aos menos favorecidos colecionadores imaginários: ambos
pensam que o objeto lhes dá (ou daria) algo de que precisam, não no nível da posse, mas sim no
da identidade. Assim, os objetos nos significam: eles têm o poder de outorgar-nos alguns
sentidos, e nós estamos dispostos a aceitá-los. Um tradicionalista diria que se trata de um
mundo perfeitamente invertido. Mesmo assim, quando nem a religião, nem as ideologias, nem
a política, nem os velhos laços comunitários, nem as relações modernas de sociedade podem
oferecer uma base de identificação ou um fundamento suficiente para os valores, ali está o
mercado, um espaço universal e livre, que nos dá algo para substituir os deuses desaparecidos.
Os objetos são os nossos ícones, quando os outros ícones, que representavam alguma
divindade, demonstram sua impotência simbólica; são os nossos ícones porque podem criar
uma comunidade imaginária (a dos consumidores, cujo livro sagrado é o advertising, e cujo ritual
é o shopping spree, e cujo templo é o shopping, sendo a moda seu código civil"8.

A diferença, termo que hoje adquire tanto relevo em diversos campos do conhecimento, dos
diversos espaços educacionais, das práticas políticas, dos movimentos sociais - todos falamos
no respeito à diferença, na necessidade do reconhecimento daquele que é diferente - tem, na
publicidade, um sentido muito específico, que caminharia na contramão dessas discussões:
como nos esclarece Oscar Traversa9, a eficácia da publicidade tem uma relação direta com o
fato de através dela promover-se uma tensão dada pelo sentimento de "liberdade de escolha",
diante de objetos sempre diferentes, mas, paradoxalmente, sempre os mesmos. São as
pequenas diferenças que promovem uma espécie de jogo entre a economia mercantil e a
economia libidinal, num processo em que o discurso publicitário, a seleção de determinadas
imagens e palavras, frases melódicas ou cores têm o papel fundamental de nos fazer desejar e
consumir o diferente, de produzir em nós o prazer e o envolvimento, fatores fundamentais para
nossas decisões cotidianas de compra. Aliás, independente de dispor das condições materiais
de compra, grande parte da população é submetida a esse discurso, a essa lógica, a esse modo
de ser e de conceber o mundo, as relações, a própria vida privada: basta lembrar aqui o quanto
é fundamental para jovens de qualquer grupo ou camada social ter a posse deste e não daquele
par de tênis.

Está em jogo, portanto, uma questão que não pode passar ao largo das discussões fundamentais
sobre a escola, por parte dos profissionais da educação: o quanto a publicidade estaria
constituindo, talvez, a linguagem por excelência do nosso tempo, por ser efetivamente presença
maciça em todos os espaços da vida cotidiana, e, principalmente, por funcionar não só como um
lugar de veiculação de modos de vida mas, sobretudo, como um lugar decisivo no processo de
construção de identidades individuais e sociais. Diria, até, que a linguagem publicitária se
constitui em uma espécie de matriz ou de modelo das diferentes formas de expressão utilizadas
pelos meios de comunicação: os mais variados gêneros de programas de TV, por exemplo, e a
própria prática de consumir TV, incorporam uma sintaxe caracterizada pelo acúmulo de belas
imagens em fragmentos, cada vez mais esvaziadas de sentido e, paradoxalmente, tornadas
sempre mais necessárias ao nosso cotidiano, já que falam "a cada um de nós"; ou seja, elas nos
são apresentadas de modo a se fazerem íntimas de nós mesmos, de tal forma que passamos a
usá-las como verdades nossas, não só em termos de "conteúdo", mas principalmente no que se
refere a um modo também fragmentado de conduzirmos nossas mínimas práticas diárias10.

Os objetos de consumo - sabões em pó, barras de chocolate, tênis, sorvetes, carros, cigarros,
bebidas ou bichos de pelúcia - todos eles, cotidianamente, são-nos apresentados no discurso
publicitário, com qualidades de "coisas humanas", de tal forma que usufruir daquele bem
implica diretamente "adquirir" uma certa identidade: usar tal calça jeans ou o relógio de tal
marca significa ter uma "cara", ou ser identificado como detentor de certas qualidades
percebidas socialmente11; assim, submetidos a essa magia, todos nos reconheceríamos de um
modo ou de outro nas identidades que circulam nos anúncios de biscoitos, iogurtes, sandálias e
cartões de crédito. Outra característica desse discurso é que ele opera com um tipo de
pensamento em que não há lugar para a ausência (ou a abertura) de sentido: cada personagem,
cada cor escolhida, cada palavra dita, cada slogan falado ou escrito, cada seqüência melódica
selecionada, tudo está ali, naquele lugar, querendo significar objetivamente algo; esse
pensamento, segundo Roberto Da Matta, "tem a capacidade de confortar e consolar, porque
para ele tudo se liga em feixes ambiciosos e precisos de significações"12.

Ou seja, aprendemos com a publicidade a buscar um certo bem-estar em relação aos


significados: ela esmaece as contradições, limpa o imaginário de terceiros sentidos, mostra-nos
- mesmo que temporariamente - significados unos, representações inequívocas, já que isto
necessariamente é aquilo: "liberdade é uma calça azul e desbotada13. Quando escrevo
"terceiros sentidos", refiro-me aqui ao conceito de "sentido obtuso", criado por Roland Barthes.
Em O óbvio e o obtuso, o semiólogo francês distingue os vários níveis de sentido das imagens,
ao analisar alguns fotogramas do filme "Ivan, o Terrível" de Eisenstein: o nível informativo (ou
propriamente da comunicação), o nível simbólico (e os vários níveis de simbolismo dentro de
um mesmo símbolo) e, finalmente, nível de um terceiro, errático e teimoso sentido (o que está
"a mais" na imagem, a significância, o sentido obtuso, em oposição ao sentido óbvio)14. Apenas
os dois últimos interessam a Barthes, pois que tratam da significação e da significância. Para
efeito da reflexão que venho fazendo neste texto, diria que os produtos da mídia e,
particularmente, da publicidade tendem a educar-nos para não buscarmos o "a mais", à medida
que não nos oferecem - a não ser esporadicamente - produtos (filmes, vídeos, programas de TV,
textos jornalísticos, composições musicais) que nos convidem a mergulhar em "erráticos
sentidos". Quase sempre estamos diante do óbvio, ou pelo menos de uma linguagem que, no
caso da publicidade, brinca com a multiplicidade de sentidos, ao mesmo tempo que fixa um
deles, associando unidimensionalmente valores, sentimentos ou desejos a objetos que se
convida a consumir. Há que se fazer a ressalva de que estamos falando aqui de produtos de
massa, e não de materiais de elaboração mais sofisticada, como é o caso do filme analisado por
Barthes. Porém, já que hoje essa separação entre cultura de massa e cultura erudita já não se
sustenta, em vista das transformações por que vem há bastante tempo passando a cultura de
um modo geral, talvez fosse interessante perguntar que espaços e que tempos temos, adultos,
jovens e crianças, para fruir imagens, sons e textos para além das coisas óbvias.

Seguindo o raciocínio acima exposto, a respeito do discurso publicitário - que carrega de


"humanidade" os objetos e que tende a fixar sentidos unívocos -, eu acrescentaria uma terceira
e uma quarta características, diretamente associadas às duas anteriores: de um lado, a busca da
síntese e da comunicação rápida; de outro, a interpelação feita ao sujeito individual, ou seja, "a
mim", "a você". Ágeis, precisos e sintéticos, esses produtos nos fazem sentir a nós mesmos
contemplados, em questão de segundos, através de cada imagem ou palavra dirigida, seja, por
exemplo, ao cuidado que devemos ter com nossos dentes, com nossos pés, com nossa casa,
nossos filhos, nosso salário, seja a um tipo de beleza que devemos cultivar em nosso corpo e
assim por diante. Em outras palavras, a publicidade e seus produtos sintetizariam um modo de
que poder, como bem analisou Michel Foucault se faz ao mesmo tempo totalizante e
individualizador15. Seqüências meteóricas, algumas delas (de grande anunciantes como Coca-
Cola, Mc Donald's Pepsi, Nike entre tantos outros) resultantes de meses de produção e
veiculadas em diferentes pontos do planeta, destinam-se a alvos muito específicos e, sobretudo,
falam a língua do mundo privado, apanhando-nos pela sutileza com que convidam a exercer a
"liberdade de escolha" diante de produtos feitos cuidadosamente "para cada um de nós".
Vários exemplos poderiam aqui ser lembrados para suscitar um debate sobre como a lógica do
consumo não se separa de um modo de ser proposto ao cotidiano das pessoas de todas as
idades. Vejamos o caso de um anúncio norte-americano, do final da década de 80, feito pela
Pepsi-Cola: duas crianças, um menino e uma menina de seus sete ou oito anos, brincam na beira
da praia; num dado momento, a menina avisa à mãe, com toda a naturalidade: "Mãe, ele fez de
novo!". O menino, com a Pepsi nas mãos, tinha sido sugado para dentro da garrafa. Não era o
menino a beber o refrigerante, mas a Pepsi, literalmente, a engoli-lo. O grande momento do
anúncio não é a imagem do menino "formatado" por uma garrafa de Pepsi, mas a frase feliz e
espontânea da irmã mais nova, através da qual se afirma a "naturalidade" de sermos engolidos
pela marca, pela imagem, pelo consumo de um determinado produto. O anúncio é perfeito
também por mostrar o objeto de desejo nas mãos de duas crianças, ou seja, um objeto natural
e prazeroso que compõe harmoniosamente o mundo infantil.

Sentidos em conflito nas imagens da mídia

Ora, esse processo de criação de tipos de homens e mulheres, de jovens e crianças, imaginados
e vendidos na publicidade e na mídia de um modo geral, quando submetido a uma análise mais
rigorosa, acaba expondo não exatamente um mundo apaziguado, mas a manifestação de uma
verdadeira batalha pela imposição de determinados sentidos. Com isso quero dizer que, se de
um lado jovens e adultos estamos submetidos a uma lógica publicitária de existir, de outro, é
preciso entender que essa realidade não é tão tranqüila assim: se predomina um modo de sentir
e exprimir a vida, as pessoas, as relações, diretamente ligado ao consumo de objetos e símbolos,
é verdade também que aí há conflitos, justamente porque, em primeiro lugar, nos meios de
comunicação e, especialmente, na publicidade, estão em jogo diferentes valores, idéias,
identidades, tradições, conquistas sociais e, em segundo, porque nenhum de nós se submete
igualmente e com a mesma intensidade a todo e qualquer discurso.

Como podemos tornar-nos sujeitos de vários discursos, há que sermos interpelados, há que
sermos chamados, e isso demanda, por parte da mídia e da publicidade, no mínimo um trabalho
cuidadoso de investigação sobre gostos, preferências, hábitos, opiniões, situação social e
econômica dos diferentes públicos e assim por diante. De acordo com algumas teorias do
discurso16, podemos afirmar que, a respeito de qualquer questão - seja ela de ordem política
ou sexual, por exemplo -, os enunciados não são jamais fixos; ou seja, estamos sempre diante
de uma certa indeterminação de sentidos. Isso, imediatamente, nos conduz a pensar em como,
na sociedade, trava-se uma luta permanente em que propostas distintas, projetos às vezes
radicalmente diferentes entre si buscam articular o maior número de significantes em direção a
certos significados17. Nesse particular, a mídia é por excelência o lugar em que circulam e se
articulam representações diretamente ligadas à construção de uma certa positividade, a uma
fixidez, mesmo que temporária, de sentidos em torno de determinados temas.

Lembro aqui as diferentes maneiras de a publicidade identificar a mulher na sociedade


contemporânea, e a convivência de enunciados que a colocam ora como livre e autônoma diante
do homem - capaz de expressar suas fantasias e desejos, além de afirmar-se profissionalmente
-, ora como absolutamente ridícula e submissa em sua vida doméstica, entre sabões e
detergentes milagrosos. Trata-se de produtos para mulheres de camadas sociais distintas? Sim,
mas é bem certo também que tais significados não estão atrelados monoliticamente a esta ou
àquela classe ou grupo social. Os significados circulam entre os grupos, e a mídia realiza esse
espetacular trabalho de mesclar sentidos, de sobrepor imagens, de produzir um mosaico de
emoções e valores, de idéias e sentimentos. Assim é que um mesmo enunciado, por exemplo,
sobre a mulher-mãe-esposa-dedicada, pode materializar-se nas mais diferentes imagens e
seqüências: ou da simples mulher do povo que se presta a gravar um depoimento sobre o sabão
mais eficaz na limpeza das roupas brancas; ou da mulher-patroa que, junto com a empregada,
serve a comida "com amor" (ou seja, com um determinado tempero); ou da mulher-executiva-
de-óculos "que ensina o marido a usar na cozinha o último tipo de talheres; ou da delicada mãe
que, toda felicidade, oferece à família aquela margarina na mesa do café da manhã; ou mesmo
da profissional liberal de 50 anos que, ainda bela (sic), delicia-se no espelho com o novo
lançamento de cremes e maquiagens rejuvenescedores.

Poderíamos pensar, a partir dos exemplos acima citados, que há um duplo processo de
identificação proposto por esse conjunto de anúncios: são contempladas as diversidades
(mulheres de diferentes faixas de idade, camadas sociais e profissões ou ocupações), ao mesmo
tempo em que se procura, através de uma construção imagética e sonora muito peculiar (closes
dos rostos femininos, movimento suave da câmera em longos planos que permitem mostrar os
diferentes cenários em que essas mulheres atuam, sonorização compatível com a suavidade e
leveza das cenas, por exemplo) marcar a identidade básica da mãe-esposa-dedicada. Vale dizer
que esses materiais não existem separadamente do resto da programação das grandes redes de
televisão nem da produção e circulação de um sem-número de publicações de todos os tipos,
também destinadas ao público feminino. Em todos esses espaços, efetivamente dá-se uma
tensão entre os discursos que tradicionalmente definiram a mulher e aqueles que, nascidos das
lutas que se travam pelo menos nestes últimos vinte ou trinta anos, buscam afirmar outras
identidades de gênero.

Haveria, assim, por parte da mídia, a realização de um peculiar trabalho de aproveitamento de


conquistas fundamentais desta últimas décadas do século, referentes ao reconhecimento das
múltiplas identidades culturais e sociais. Por um lado, em diferentes instâncias, desde as ONGs,
o Congresso Nacional, os partidos políticos até os diferentes movimentos sociais, busca-se
enfatizar as lutas por interesses particulares - como o dos negros, das mulheres, dos sem-teto,
dos sem-terra, dos homossexuais, dos portadores de deficiências físicas ou mentais, etc -, de tal
forma que, embora todos os avanços decorrentes desses movimentos, corre-se o risco de
reforçar uma espécie de fragmentação, pela qual os sujeitos e grupos assim divididos podem
alijar-se de um processo maior e necessário de articulação18. De outro, assistimos, nos meios
de comunicação, a uma operação curiosa de inclusão das diferenças (por exemplo, a necessária
presença de homens e mulheres negros nos comerciais e anúncios publicitários; telenovelas e
seriados tendo como personagens femininas centrais uma mulher sem-terra, uma prostituta,
duas lésbicas e assim por diante): procura-se contemplar as diferenças exatamente
estabelecendo uma articulação entre os grupos fragmentados; essa articulação, longe de
reforçar, por exemplo, o principio democrático da igualdade, ou de remeter à participação
equânime de todos os cidadãos, em termos de saúde, educação, trabalho, participação política,
tem um sentido bem mais próximo do que se poderia chamar a harmonização dos contrários.

No discurso publicitário, através da exposição da diferença, busca-se mostrar algum modo de


anulá-la. O exemplo mais inequívoco é o da personagem sem-terra que se apaixona pelo
generoso e paternalista "rei do gado"19; mas poderíamos buscar em cada peça publicitária, em
cada programa humorístico, em cada bloco de um telejornal, a diferença que é ao mesmo tempo
afirmada, pelo fato mesmo de ser mostrada, e negada, quando submetida a um tratamento
formal pelo qual a especificidade do grupo desaparece: a criança negra sorri e é feliz desde que
vestida de bicho da floresta que mama Parmalat. Num país como o Brasil, em que há um
evidente processo de exclusão de imensas maiorias sem direito à saúde, sem direito ao trabalho,
as lutas por inclusão e garantia de direitos tornam-se tarefas quase emergenciais20. Essas lutas,
a meu ver, incluem um trabalho de investigação a respeito das formas pelas quais, do ponto de
vista da construção de representações, os diferentes grupos são significados socialmente, no
caso, pela mídia. De que efetivamente se trata quando assistimos a crianças de todas as idades
falando sobre seus sonhos na "Janela do Fantástico"21 aos domingos? Não nos estaríamos
defrontando com sujeitos, de todas as camadas sociais, que são contemplados em sua
diversidade de classes e etnias, de sonhos e ilusões e, ao mesmo tempo, são representados em
sua "igualdade" de crianças que - quase todas - de certa forma "são sonhadas" como futuros
modelos publicitário ou como bem-sucedidos jogadores de futebol? De discussões como esta é
que estamos tratando aqui.

A escola e os novos arranjos nas lutas discursivas

Convido o leitor, a partir deste momento, a relacionar a discussão que vimos fazendo neste texto
com as tarefas que a escola passa a enfrentar num tempo em que, como diz Jurandir Freire
Costa, fragilizam-se os "meios tradicionais de doação de identidade"22, como a família e a
própria escola. Se estamos de acordo com que já não construímos nossas identidades apenas
ou, principalmente, a partir desses lugares primários, esse é um problema fundamental a ser
enfrentado pela escola. Quando, por exemplo, adolescentes e jovens buscam na publicidade
uma espécie de inspiração para suas práticas - o modo como se expressam oralmente ou por
escrito, o modo como concebem e recebem as manifestações artísticas de todos os tipos, o
modo como se comunicam com os adultos e com seus pares, o modo enfim como compreendem
o social e a si mesmos, quase sempre caracterizado por uma unidimensionalidade de sentidos -
penso que eles estão revelando não só estar em conformidade com os apelos de seu tempo e
correspondendo à linguagem que os constitui, como parte do seu cotidiano, mas também estão
a avisar que nesse lugar, do mercado, da publicidade e dos meios de comunicação, tem-se
oferecido às pessoas uma certa resposta a questões fundamentais sobre, afinal, quem as
representa, quem fala delas e de cada uma delas em particular, quem sabe de seus interesses.
Nesse lugar haveria, supostamente e mesmo que de maneira fugaz, uma acolhida às
inquietações que se elegem hoje como básicas, entre elas o culto ao corpo, por exemplo, o qual
se transformou no grande lugar de identidade, muito mais do que a crença em qualquer utopia
política ou religiosa.
Em segundo lugar, suponho que esse "estado da cultura e da educação" carrega em si mesmo
outras possibilidades. Ou seja, o fato de lugares tradicionais de formação dos mais jovens, como
a família e a escola, sofrerem um deslocamento em suas funções e contarem hoje com a
companhia da publicidade e dos meios de comunicação e de informação, os quais se investem
também de um suposto papel pedagógico, autorizamos a afirmar, talvez, a absoluta necessidade
de buscar definir melhor a especificidade da prática pedagógica escolar, para estes tempos. Diria
que se torna cada vez mais urgente a realização de um trabalho de leitura dos acontecimentos
sociais e suas inúmeras versões, tal como aparecem nos meios de comunicação, acompanhado
de uma operação cotidiana de ultrapassagem dessas versões do senso comum e da opinião
pública, em direção ao pensamento científico, à subversão de um raciocínio absolutamente
apoiado na lógica do mercado e, principalmente, à criação de espaços em que crianças e
adolescentes possam encontrar referências suficientes para aprender a organizar, selecionar e
hierarquizar o imenso volume de informações, dados, imagens, sons e opiniões que recebem
todos os dias.

Essa leitura do social - esse social veiculado pela mídia e pela publicidade, de que estamos
falando aqui - incluiria, necessariamente, o entendimento de que, embora todas as lutas e
conquistas relacionadas à defesa do direito à diferença, à privacidade, há na cultura uma
tendência a nos perdermos no indiferenciado, de vivermos entropicamente confundidos num
coletivo sem nome e sem força social. Tal indiferenciação talvez esteja sendo produzida, entre
outras razões, por uma vivência pouco criteriosa com a massa fragmentada de informações que
consumimos diariamente através dos meios de comunicação. Ora, rigorosamente, essa também
é uma tendência e não uma fatalidade. A busca pela fixação de determinados sentidos é uma
luta, da qual os educadores igualmente participam (ou deveriam participar). Enquanto a escola
ficar no papel tímido de espectadora ressentida de uma sociedade que se pauta pelo mercado
e pelas imagens de sucesso individual, de culto narcísico do corpo, de ilusão de felicidade dada
pelo consumo real ou imaginário, estará apenas marcando seu lugar como ausente do seu
tempo.

Para conquistar lugar melhor nessa disputa, a escola talvez precise compreender que nem as
identidades nem os processos reguladores da cultura (como os da educação e da ação da mídia)
são inteiramente fixos. Como escreve Stuart Hall23, há que se fazer arranjos nessas disputas em
torno do poder discursivo, e isso diz respeito diretamente a lutas que se referem aos modos
como a cultura normatiza, classifica e nos subjetiva em nossas ações diárias e condutas, com
todos os discursos e todas as práticas de poder aí envolvidos. As mudanças profundas no que se
refere às questões éticas e morais, por exemplo, colocam a escola em comparação à mídia e ao
mundo maior do espetáculo - numa situação de desconforto, de perplexidade e, ao mesmo
tempo, de desafio: se, de um lado, os jovens aprendem que já não valem as tradicionais regras
de relações entre alunos e professores, entre pais e filhos e se, de outro, parece que o lugar da
liberdade confunde-se com uma marca de cigarro, de carro ou de tênis, abre-se aí um espaço
absolutamente dinâmico de produção de novos sentidos e, ao mesmo tempo, de redefinição da
escola, do conceito de autoridade, de liberdade e de conhecimento.

Dar conta de todas as noções e imagens prévias dos estudantes (incluindo aí a massa de
informações, valores e símbolos identitários consumidos através dos meios de comunicação),
reelaborando-os, incorporando-os criticamente e realizando a difícil articulação dos mesmos
com o conhecimento científico - esse talvez se constitua um dos aspectos básicos a serem
considerados numa proposta de reestruturação curricular a ser imaginada, pensada e discutida
no espaço escolar e no lugar mais amplo da produção e execução de política públicas em
educação. Se o mundo dos objetos se amplia, se o consumo "nos amolece" para outras lutas,
como diz o geógrafo Milton Santos24, e se estamos imersos em fábulas perversas criadas pela
democracia do mercado e da publicidade, faz-se absolutamente necessário abrir fissuras nessa
construção e desnaturalizar a perversidade e a desigualdade social. Da mesma forma, faz-se
necessário, junto com a melhoria da qualidade técnica e científica do trabalho do professor,
reabrir, no espaço escolar e na sociedade mais ampla, novamente e sob outros termos, a
discussão sobre a solidariedade, afirmando com José Saramago que, neste mundo saturado de
imagens, é urgente deixar de viver como cegos.

Rosa Bueno Fischer é professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio


Grande do Sul (UFRGS).

* Artigo do livro Século XXI - Qual conhecimento? Qual currículo?, da Editora Vozes.

NOTAS

1. SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

2. HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções do nosso tempo. In:
Educação & Realidade: Porto Alegre: UFRGS, V 22, n° 2, p. 15-46, jul./dez. 97.

3. Considerar a forte presença desse tema em quase todos os materiais produzidos pela mídia,
nesse sentido, é bastante produtivo.

5. HALL, op.cit, p. 26-27 (grifos do autor).

6. Cfe. SARUP, Madan. Identity, culture and the postmodern world. Georgia: The University og
Georgia Press, 1996, p. 120 e ss.

7. SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna. Intelectuais, arte e vídeo-cultura na Argentina.


Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.

8. Cito aqui, para concretizar o problema de que estou falando, uma prática que se tem tornado
comum em turmas de Terceira Série de Ensino Médio, de escolas particulares brasileiras: a
criação de uma camiseta que leva gravados os nomes de todos os colegas, como lembrança do
último ano juntos. Em escolas de Porto Alegre, a estampa escolhida, nos últimos cinco anos,
muitas vezes tem sido de imagens ligadas a anúncios publicitários, por exemplo, a gravura de
um maço de cigarros ou de uma garrafa de uísque, em que se associa a marca e o slogan dos
produtos à vida na escola (assim, lá, naquele colégio, eles se sentiram "cada um na sua", free,
"mas com alguma coisa em comum"; ou: lá, eles "envelheceram doze anos" como um bom malte
escocês, e assim por diante). Quando ocorrem casos como os citados, é comum que professores,
psicólogos, pais e orientadores educacionais, perturbados com o problema moral de ver a escola
associada a produtos que podem produzir o vício do fumo ou do álcool, imediatamente se
posicionem na defesa da imagem da instituição diante da sociedade, e deixem de acolher e
analisar outras questões que aí estão em jogo.

9. SARLO, op. cit., p. 28-29 (grifos da autora).

10. TRAVERSA, Oscar. Cuerpos de papel - figuraciones del cuerpo en Ia prensa 1918-1940.
Barcelona: Gedisa, 1997, ps. 21.

11. Ver, a propósito, a discussão que faço sobre a linguagem televisiva no artigo "O Estatuto
Pedagógico da Mídia: Questões de Análise", in: Educação & Realidade: Porto Alegre, UFRGS, V
22, n° 2, p. 59-80, jul./dez. 97.

12. Cie. DA MATTA, Roberto. Vendendo Totens (Prefácio). In: ROCHA, Everardo. Magia e
Capitalismo: um estudo antropológico da publicidade. São Paulo: Brasiliense, 1984.

13. Idem, p. 16.

14. Cfe. BARTHES, Roland. O terceiro sentido. In: . O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1990, p. 45 e ss.

15. Ver sobretudo FOUCAÜLT, Michel. Microfisica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1992.

16. Refiro-me aqui, basicamente, à teoria do discurso de Michel Foucault (exposta em A


arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense, 1986) e aos conceitos de discurso e práticas
articulatórias de Ernesto Laclau e Chantal Mouf e. ,

17. Cfe. Laclau, apud PINTO, Céli Regina Jardim. Democracia como significante vazio. Porto
Alegre, 1999a, p. 16 (cópia digitada).

18. Veja-se, a propósito desse tema, a discussão feita por PINTO, Céli Regina Jardim. A
democracia desafiada: presença dos direitos multiculturais. Porto Alegre: 1999b (texto
digitado).

19. Refiro-me à novela "O Rei do Gado", Novela das Oito reprisada pela Rede Globo em 1999
em Vale a pena ver de novo.

20. Cfe. PINTO, Céli. Op. cit., 1999b.

21. Quadro do programa dominical Fantástico, da Rede Globo.

22. Ver COSTA, Jurandir Freire. Sem fraude nem favor - estudos sobre o amor romântico. Rio de
Janeiro: Rocco, 1998.

23. Op. cit.

24. Em entrevista ao jornalista Cláudio Cordovil, do Jornal do Brasil, dia 05 de abril de 1997.

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