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[ ANAIS ELETRÔNICOS ]

[ Organizadores ]

Adriane Vidal Costa


Gabriel Amato
Guilherme B. de Almeida
Luan Vasconcelos
Miriam Hermeto
Rodrigo Patto Sá Motta

Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um


olhar crítico, para não esquecer

Belo Horizonte
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
2014
Seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
18 a 20 de março de 2014
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

[ Reitor ]
Jaime Arturo Ramírez

[ Vice-reitora ]
Sandra Regina Goulart Almeida

[ Diretor da FAFICH ]
Fernando de Barros Filgueiras

[ Vice-diretor da FAFICH ]
Carlo Gabriel Kszan Pancera

[ Chefe do Departamento de História ]


Tarcísio Rodrigues Botelho

[ Coordenadora do Colegiado de Graduação em História ]


Adriane Vidal Costa

[ Coordenador do Programa de Pós-Graduação em História ]


José Newton Coelho Meneses
[ Realização ]

Grupo de pesquisas História Política, Culturas Políticas na História –


UFMG

[ Comissão organizadora ]

Adriane Vidal Costa


Gabriel Amato
Guilherme B. de Almeida
Luan Vasconcelos
Miriam Hermeto
Rodrigo Patto Sá Motta

[ Diagramação dos anais ]


Gabriel Amato

[ Apoio ]
Seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não
esquecer (2014 : Belo Horizonte, MG)
S471a Anais eletrônico do Seminário 1964-2014 : um olhar
crítico, para não esquecer [recurso eletrônico] / Organizado
por Rodrigo Patto Sá Motta, Miriam Hermeto Sá Motta,
Gabriel Amato Bruno de Lima . - Belo Horizonte :
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2014.

1 pdf e-book (514 p.)


Textos apresentados em Seminário realizado de
18 a 20 de março de 2014, em Belo Horizonte, Minas
Gerais.

ISBN: 978-85-62707-55-1

1. Ditadura e ditadores - Brasil.2. Brasil – História -


1964-2014. I. Motta, Rodrigo Patto Sá . II. Hermeto,
Miriam. III. Lima, Gabriel Amato Bruno de. IV.Título.

CDD: 981.063
CDU: 981.063
[ Sumário ]

Apresentação ........................................................................................................................ 3

Textos .................................................................................................................................... 6

A representação do Nordeste na MPB: uma análise através das canções de Geraldo


Vandré e Gilberto Gil – Adolfo Borges Santos ............................................................ 6

A modernização conservadora no sertão pernambucano durante o regime militar


(1964 – 1985), um estudo de caso: Projeto Sertanejo – Alexandre Black de
Albuquerque ...............................................................................................................15

“É o caos, o caos que está instaurado em volta e dentro de mim”: Dias Gomes e as
reflexões sobre o papel dos artistas e intelectuais após 1985 – Aline Monteiro de
Carvalho Silva ........................................................................................................... 26

A “revolução” não será comemorada: horizonte de expectativa e as políticas de


memória da grande imprensa brasileira frente ao contexto dos 50 anos do golpe –
André Bonsonato Dias .............................................................................................. 36

Entre o consenso e o conflito: Os ministros do Superior Tribunal Militar no processo


de liberalização da ditadura militar brasileira (1974-1979) – Angélica do Carmo
Coitinho ......................................................................................................................48

A morte do estudante secundarista Edson Luís e seu regime de historicidade –


Angélica Müller ...........................................................................................................58

Memórias de histórias de violação dos direitos humanos durante as ditaduras


militares no Brasil e no Cone Sul – Anna Flávia Arruda Lanna
Barreto........................................................................................................................ 68

O anticomunismo na imprensa diária de Sorocaba (1964-1968) – Bruno de


Barros......................................................................................................................... 80

Ufanismo, conservadorismo e iconografia política na música popular brasileira: um


estudo de caso sobre o EP Wilson Simonal, novembro de 1970 – Bruno Vinícius
Leite de Morais........................................................................................................... 87

A verdade que o Brasil suporta: um estudo sobre a Comissão Nacional da Verdade –


Carlos Artur Gallo....................................................................................................... 99

Uma cidade apática? O início da ditadura civil-militar no Rio de Janeiro segundo o


Cinema Novo – Carlos Eduardo Pinto de Pinto........................................................111

A canção e o censurável – Cecília Riquino Heredia ................................................121


A legitimação da autoridade e a positivação da democracia: Castelo Branco visita
Blumenal-SC em 1965 – Cristina Ferreira................................................................130

A Campanha Operário Padrão: uma iniciativa para a conformação dos trabalhadores


durante a ditadura militar – Daniela de Campos.......................................................141

Com-paixão: um estudo sobre a resistência feminina em Belo Horizonte na Ação


Popular entre 1964 e 1972 – Débora Raiza Carolina Rocha Silva...........................150

O anticomunismo no A Imprensa: Igreja católica contra as Ligas Camponesas (1962-


1964) – Dmitri da Silva Bichara Sobreira..................................................................160

“Sempre fui mais de esquerda”: memória e história de uma arenista gaúcha –


Eduardo dos Santos Chaves.....................................................................................170

Filhos de hoje, homens de amanhã: 1964 aconteceu em abril – Enzio Gercione


Soares de Andrade...................................................................................................181

O Movimento de Cultura Popular do Recife (MCP) nos autos dos Inquéritos Policiais
Militares (IPMs) produzidos pelo Regime Militar Brasileiro (1964-1985) – Fábio Silva
de Souza...................................................................................................................189

A disputa pelo significado de guerrilha durante os governos militares brasileiros


(1964-1985): considerações preliminares – Fabrício Trevisan................................ 202

Memória de segunda geração no documentário brasileiro recente – Fernando


Seliprandy................................................................................................................ 213

Jornais e jornalistas mineiros: a censura na vigência do AI-5 (1968-1978) – Flávio de


Almeida.................................................................................................................... 220

Integrar o Brasil, combater a “subversão”: universitários e militares na criação do


Projeto Rondon (1967-1969) – Gabriel Amato Bruno de Lima.................................231

A Polícia Militar do Estado de São Paulo durante a ditadura civil-militar (1970-1982):


notas de uma pesquisa – Gabriel dos Santos Nascimento.......................................239

Mulheres e militância: um estudo sobre os padrões de representação simbólica


durante a ditadura militar no Brasil – Gabriella Nunes de Gouvêa.......................... 252

Cinefilia e militância política: enquadramentos e cortes em tempos de golpe –


Geovano Moreira Chaves ....................................................................................... 263

Leonel Brizola: rumo a Guanabara (1962) – Graziane Ortiz Righi .......................... 273

O Conselho de Segurança Nacional e a Ditadura (1964-1969) – Guilherme Bacha de


Almeida ................................................................................................................... 286
A literatura brasileira contemporânea e a (re)construção do passado: o papel dos
narradores nos romances de Milton Hatoum – Juliane Vargas Welter.................... 293

O chamado “caso Diaféria”: o desenrolar do processo contra o cronista acusado de


violar a Lei de Segurança Nacional – Kelly Yshida.................................................. 302

Os Clubes 4-S de jovens rurais durante os anos iniciais da Ditadura Militar no Brasil
(1964-1970) – Leonardo Ribeiro Gomes.................................................................. 313

Cerceando liberdades: a AESI universitária e a ingerência do regime militar na UFMG


– Luan Aiuá Vasconcelos Fernandes....................................................................... 325

Reparação e afeto: a luta pela memória no documentário feito por parentes de presos
políticos no Brasil – Luciana Carla de Almeida........................................................ 336

O Território do Terror: agitações, prisões e repressões no alvorecer do golpe civil-


militar no Amapá – Maura Leal da Silva................................................................... 347

Testemunho e esquecimento durante a transição brasileira: as denúncias de Inês


Etienne Romeu e suas repercussões (1981) – Mauro Eustáquio Costa Teixeira.... 358

O humor gráfico, um instrumento de resistência cultural e política à ditadura?


Reflexões sobre a ação dos chargistas do jornal Pasquim, frente à censura do regime
autoritário brasileiro – Mélanie Toulhoat.................................................................. 369

O golpe em cena: história e memória no quintal do “Teatro CPC-UNE” – Natália


Cristina Batista......................................................................................................... 379

Questionamentos sobre as relações de condicionalidade entre proposições artísticas


e o contexto político do Brasil na década de 1960 nas obras dos Salões Municipais
de Belas Artes da Prefeitura de Belo Horizonte – Nelyane Santos e Rodrigo
Vivas......................................................................................................................... 390

A resistência estudantil ao golpe civil-militar de 1964 na cidade de Ouro Preto-MG –


Otávio Luiz Machado................................................................................................ 402

Direito à verdade e à memória: (re)memorar é preciso – Paula de Souza


Constante................................................................................................................. 412

Qual nome? A pesquisa onomástica em contextos transicionais: reflexões sobre o


modelo de justiça de transição – Pedro Ivo C. Teixeirense..................................... 424

Carta(s) de 1967/69 e constitucionalismo: “tivemos constituição”? – Raoni Macedo


Bielschowsky............................................................................................................ 438

O Golpe de 1964 e a repressão ao movimento de “trabalhadores favelados” em Belo


Horizonte – Samuel Silva Rodrigues de Oliveira..................................................... 449
Construindo a importância política: movimento estudantil e a estratégia cultural na
cidade de João Pessoa (1976 a 1979) – Talita Hanna............................................ 460

O Estado de exceção é a regra: vidas sujeitadas à justiça militar em tempos de


ditadura – Tásso Brito.............................................................................................. 468

Ação Democrática Parlamentar: anticomunismo, democracia e radicalização política


(1961-1965) – Thiago Nogueira de Souza............................................................... 476

“Criar é resistir”: a produção cultural em tempos de autoritarismo – Valéria Aparecida


Alves......................................................................................................................... 485

Análise das audiências públicas da Comissão Nacional da Verdade: apontamentos


sobre a articulação dos conceitos de história de vida, luta por reconhecimento e
memória coletiva – Vanessa Veiga de Oliveira........................................................ 496

Raul Seixas no torvelinho dos anos de chumbo: autoritarismo, contracultura,


redemocratização – Vitor Cei................................................................................... 507
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UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014

[ Apresentação ]
Neste momento – em que se completa o cinquentenário do Golpe de 1964 – vivemos
condições propícias para análises menos afetadas pelo calor de um dos eventos políticos
mais traumáticos da história brasileira do século XX. O distanciamento no tempo favorece
um olhar mais analítico e menos passional, ainda que interessado politicamente e
compromissado com o repúdio à violência e ao autoritarismo.
Em que pese essa constatação sobre o distanciamento temporal, os temas
relacionados ao Golpe e à Ditadura continuam plenos de atualidade, já que alguns aspectos
do seu legado seguem nos interpelando e permanecem à espera de soluções satisfatórias:
o autoritarismo que continua impregnando certas relações sociais; a democratização
incompleta do Estado e da sociedade, parte dela ainda incapaz de exercer a cidadania
plena; os níveis elevados de violência social e policial que nos assolam; as desigualdades
sociais (de renda, de educação, de acesso à justiça) extremas que ainda caracterizam a
paisagem brasileira. Seria um equívoco atribuir à Ditadura a culpa pelo surgimento de tais
problemas, visto que eles fazem parte das estruturas da nossa sociedade há muito tempo.
No entanto, o Golpe interrompeu um processo político que poderia ter levado ao
enfrentamento de algumas dessas questões, já que segmentos populares estavam se
organizando e demandando sua inclusão política e social. Mais ainda, as políticas
implantadas pela Ditadura contribuíram para agravar sobremaneira as desigualdades
estruturais da sociedade brasileira.
A atualidade da Ditadura deve-se também ao impacto duradouro, portanto, ainda
visível entre nós, das políticas de modernização implantadas naqueles anos, que, até certo
ponto, distinguem o caso brasileiro dos regimes políticos semelhantes vigentes nos países
vizinhos pela mesma época. Os militares brasileiros e seus aliados civis lograram
deslanchar um processo de modernização que implicou mudanças importantes na
infraestrutura do país, com repercussões principalmente na economia, nas comunicações,
no aparato tecnológico e científico, na indústria cultural, entre outros. No entanto, tal projeto
modernizador teve como par inseparável a conservação dos pilares tradicionais da ordem
social, cuja base é a exclusão (política e social) perene das camadas subalternas. Uma
modernização conservadora, portanto, e acima de tudo autoritária, já que os projetos de
desenvolvimento foram comandados pela tecnocracia civil e militar, e as dissensões que
não eram passíveis de cooptação foram entregues à máquina repressiva (também ela
modernizada naqueles anos).
O contexto atual é também propício para esta reflexão, tendo em vista o
aquecimento das “batalhas de memória” sobre o período. Há alguns anos vem sendo
debatida uma espécie de vitória simbólica dos “vencidos”: se os militares venceram no

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campo político durante os anos da ditadura, a memória social que se construiu sobre o
período, no processo de redemocratização, tem marcas mais presentes das esquerdas,
tanto no que tange ao reforço do par resistência/dominação, quanto na construção de um
imaginário que encerra nos anos 1964-1985 certos males da sociedade brasileira – como a
tortura, a violência do estado, as políticas públicas que fomentam a desigualdade social. No
campo da historiografia, essa vitória simbólica vem sendo questionada há alguns anos com
estudos que tratam da temática de maneira mais complexa. No que tange à memória social,
no entanto, esse debate ganhou corpo mais recentemente, especialmente em função da
política de memória que vem sendo implementada, em níveis federal e estaduais, nos
últimos anos, com a tentativa de rever os processos de anistia e a construção de uma justiça
de transição – com instituição de comissões de verdade.
Exatamente por sua atualidade e relevância, a Ditadura Militar tem sido objeto de
inúmeras investigações (acadêmicas e jornalísticas), atraindo cada vez mais jovens
pesquisadores formados nas Universidades. O incremento nas pesquisas com enfoque na
Ditadura salta aos olhos, se comparamos o quadro atual com a última efeméride relevante,
a dos quarenta anos do Golpe em 2004. Nos últimos anos, muitos trabalhos têm aparecido
no cenário acadêmico, por vezes explorando sendas originais a partir de novos enfoques,
em outros casos baseando-se nos acervos documentais abertos recentemente à pesquisa.
Tendo em vista esse cenário acadêmico e político, propomo-nos a organizar o
seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer no âmbito do Programa de
Pós-Graduação em História da FAFICH/UFMG. Nosso propósito foi o de reunir
pesquisadores da casa com convidados externos, na expectativa de contribuir para o debate
acadêmico sobre o tema. Entre os dias 18 e 20 de março de 2014, cerca de trezentos
inscritos assistiram a seis mesas redondas sobre os temas do golpe; da ditadura e o cenário
internacional; dos embates culturais e intelectuais; das relações entre a história e a
memória; dos movimentos sociais e ativistas contra a ditadura; e, por fim, da transição e dos
desafios da democratização.
Em contraste com eventos anteriores, desta feita decidimos abrir inscrições para a
apresentação de trabalhos de pós-graduandos e pós-graduados cujas pesquisas
abordassem temas relacionados ao evento. Esse gesto deveu-se à percepção do
incremento nos trabalhos acadêmicos sobre o golpe e a ditadura, e também à convicção de
que os jovens pesquisadores têm muito a oferecer à historiografia dedicada a tais objetos.
Selecionar os trabalhos inscritos foi uma tarefa árdua, já que recebemos um número
elevado de propostas (140, no total), provenientes de todas as partes do país. Mas ficamos
contentes pelo interesse despertado pelo evento, e pela oportunidade de reunir tantos
pesquisadores engajados no estudo do golpe e da ditadura. Diante do espaço e tempo

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disponíveis para as discussões, a comissão selecionou 90 trabalhos para serem


apresentados em mesas temáticas realizadas durante o evento. Das pesquisas aprovadas,
74 foram efetivamente debatidas durante o seminário e 49 delas têm, agora, os textos
publicados nestes anais eletrônicos.

Comissão organizadora do seminário


1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer

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[ Textos ]

A representação do Nordeste na MPB:


uma análise através das canções de Geraldo Vandré e Gilberto Gil

Adolfo BORGES Santos


Especialista em História e Culturas Políticas pela UFMG
adolfoborgess@yahoo.com.br

Introdução

Durante os conturbados anos 60, a Música Popular Brasileira (MPB) traz para seu
âmbito questões ideológicas, sociais e políticas, que muitas vezes se confundem com as
discussões estéticas da canção. Expressão artística com uma grande potencialidade para
se comunicar com as “massas” ela era pensada como algo que poderia contribuir de forma
eficaz para formação de uma brasilidade autêntica e legítima; era essa a percepção dos
agentes envolvidos na construção dessa instituição1.

A música enquanto expressão cultural tinha um duplo sentido: o de se comunicar


com o povo e o de incorporar a cultura popular como tema de sua produção. Assim,
possuindo um papel que ia muito além do entretenimento e do mero deleite estético, tendo
também uma tarefa social a cumprir; a conscientização da população e a construção de uma
nação livre, soberana, tentando criar, a partir do pensamento do nacional-popular, uma
cultura autenticamente brasileira.

Dentro da cultura política do nacional-popular o Nordeste brasileiro – juntamente com


a favela carioca e o seu samba2 – serviu como inspiração para a criação musical,
oferecendo ritmos e informações poéticas para canções que tentavam ser a expressão de
uma brasilidade original, buscando um homem em estado puro, não contaminado pelo
capitalismo desumano.3

1
A questão da MPB ser uma instituição, mais que um gênero musical, é colocada por Marcos
Napolitano em seu livro Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-
1969). Para ele a MPB consegue agregar inúmeros ritmos e gêneros musicais diferentes. Assim o
que faz com que toda essa diversidade seja agregada em apenas uma sigla se da muito mais em um
nível sociológico e ideológico.
2
O espetáculo Opinião foi uma tentativa de unir esses dois mundos e a classe média, visto que em
seu projeto, original, unia Nara Leão, representando a classe média, João do Vale representando o
nordeste e Zé Keti representando o samba do morro carioca.
3
Tal análise é baseada na teoria do romantismo revolucionário, criado por Michel Lowi e Robert
Sayre, citado por Marcelo Ridenti em seu livro Em busca do povo brasileiro: Artistas da revolução, do
CPC à era da TV.

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Ao mesmo tempo em que o Nordeste fornecia os elementos para a construção desse


novo homem, esta mesma região era também cenário do que havia de mais arcaico no país.
Assim tínhamos, por um lado, o camponês pobre, mas valente, fraterno, preocupado com a
comunidade e não praticante de um individualismo burguês, um indivíduo que apesar do
sofrimento, da opressão das oligarquias e das dificuldades do clima ainda era muito
apegado às suas tradições e à sua terra e isso era o que o Nordeste tinha de mais precioso
e que poderia servir de modelo para toda a nação. Por outro lado ali reinavam o
coronelismo, as oligarquias e as grandes famílias tradicionais, que comandavam com mãos
de ferro a região.

O cenário descrito acima é recorrente em narrativas encampadas por diversas


correntes ideológicas, artísticas, culturais, políticas e sociológicas. Como ressalta o autor
Durval Muniz de Albuquerque Jr, em sua obra, A Invenção do Nordeste e outras artes:

O nordeste não é recortado só como unidade econômica, política ou


geográfica, mas primordialmente, como um campo de estudos e produção
cultural, baseado numa pseudo-unidade cultural, geográfica e étnica. O
Nordeste nasce onde se encontram poder e linguagem, onde se dá a
produção imagética e textual da espacialização das relações de poder.
Entendamos por espacialidade as percepções espaciais que habitam o
campo da linguagem e se relacionam diretamente com um campo de forças
que a institui. (ALBUQUERQUE JR, 1999. p. 33)

Para o autor, não se deve pensar o Nordeste como um espaço geográfico possuidor
de uma realidade pura e simples, a qual artistas, cientistas e políticos se debruçam para
alcançá-la; não se deve pensar que existe um verdadeiro Nordeste a ser alcançado pela
produção intelectual. Antes disso deve-se analisar a região como algo que se constrói e se
reconstrói a cada discurso que toma o tema como ponta de partida.

A importante obra de Albuquerque Jr, trata a questão de maneira original e abarca


uma temporalidade que vai desde os anos 20 até o momento em que, de acordo com esse,
há uma radical contestação tropicalista dos enunciados e imagens construídas sobre o
Nordeste brasileiro. No entanto, como não era o objetivo proposto pelo autor, ele não nos
diz de que maneira há esse rompimento. O presente artigo pretende jogar um pouco mais
de luz sobre esse momento da MPB, ao analisar a produção de um expoente do movimento
tropicalista, Gilberto Gil e um autêntico representante da cultura política do nacional-popular,
Geraldo Vandré.

Quais foram os pontos de discordâncias musicais, políticas e ideológicas entre os


dois? De que maneira buscaram retratar o Nordeste em suas músicas? Como esses
projetos são expressados em suas canções? Como dialogam com as referências artísticas
anteriores e as reproduzem em seus trabalhos? Um ajudou a lançar as bases de um novo

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projeto musical brasileiro, o outro sente que o seu trabalho foi derrotado, o que significa isso
para história musical, cultural e política do Brasil? Vale ressaltar que tanto Vandré como Gil
são nordestinos, e trazem memórias e referências artísticas do lugar onde nasceram, mas
trabalham cada um a seu modo sobre um mesmo material.

Uma análise sobre a produção desses artistas pode iluminar questões relevantes
sobre a história dos anos iniciais da ditadura militar brasileira. Para tal análise e para o
entendimento mais fácil do trabalho irei analisar as canções de Geraldo Vandré primeiro,
depois as de Gil, para que posteriormente seja traçado um paralelo entre as obras. Vale
ressaltar que no trabalho de conclusão de curso apresentado em, 2013, para o curso de
especialização, História e Culturas Políticas, da UFMG, do qual esse artigo é derivado,
foram analisadas 12 canções, aqui serão analisadas apenas 4.

Geraldo Vandré, o nacional-popular e o Nordeste

A primeira canção analisada será Terra plana e posteriormente Ventania. As duas


canções seguem a tendência do disco que é privilegiar expressões musicais originárias do
campo com violas, queixada de burro, triângulo assim como outros instrumentos ligados a
sonoridade rural. A tristeza, a angústia de um mundo em modificação, também é presença
marcante nas faixas, além, claro, da preocupação com a comunicação com o público. Nem
todas as canções tratam claramente do Nordeste, a análise será feita com base em algumas
imagens e enunciados que evidenciam que a região é citada e serve claramente como
inspiração para a produção das canções.

Rimar amor e dor é uma constante para Vandré como ele mesmo deixa claro na
primeira faixa Terra Plana, que abre sendo declamada tendo uma viola ao fundo:

Meu senhor, minha senhora // Me pediram pra deixar de lado toda tristeza /
pra só trazer alegrias e não falar de pobreza / e mais, prometeram que se eu
cantasse feliz / agradaria com certeza / eu não posso enganar / misturo tudo
que vi / canto sem competidor / partindo da natureza do lugar onde nasci /
faço versos com clareza; / a rima, belo e tristeza / não separo dor de amor /
deixo claro que a firmeza do meu canto / vem da certeza que tenho / de que o
poder que cresce sobre a pobreza / e faz dos fracos riqueza / foi que me fez
cantador.

Nesse trecho podemos verificar várias características de sua obra. A arte para ele
possui um imperativo ético de denunciar a miséria do povo brasileiro, para se fazer esse
trabalho ele parte da terra onde nasceu, a Paraíba:

Eu sou de uma terra plana/ De um céu bem largo e profundo.

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O Nordeste é o espaço em que se encontra uma gente pobre, mas forte, capaz de
lutar e de oferecer resistência, e o que é mais interessante é que ele enxerga nos
nordestinos um povo querendo se organizar como é característico da visão do romantismo
revolucionário que imperava nos anos 60:

Aos pés de muitas igrejas/Lá você vai encontrar


Esperança e caridade,/Querendo se organizar.

Logo em seguida a canção vai tocar em outro tema recorrente nas produções
voltadas para a temática nordestina, a religiosidade:

(...)mil cegos pedindo esmola e a terra inteira a rezar. // Se um dia eu lhe


enfrentar / não se assuste capitão / só atiro pra matar / e nunca maltrato não /
na frente de minha mira / não há dor nem solidão. // E não faço por castigo /
que a Deus cabe castigar / e se não castiga ele / não quero eu o seu lugar /
apenas atiro certo na vida / que é dirigida pra minha vida tirar

A religiosidade nordestina é aqui apresentada como uma das formas de luta de


revolta, e não como alienante, se misturam duas figuras o beato e o cangaceiro, cangaceiro
que não incorre no ato covarde da tortura, mas apenas defende a sua vida contra o
opressor, neste caso o capitão. Ao analisar o discurso da esquerda nacionalista em relação
a esses dois personagens Albuquerque Jr diz que:

O cangaço e o messianismo surgem ora como experiência alienante, ora


como desalienadora no discurso das esquerdas. A esquerda lança mão dos
mitos do cangaceiro e do santo para denunciar as condições de injustiça e
miséria do Nordeste, ou mostrá-los como mitos populares que devem ser
dessacralizados, deseroicizados, para que o povo encontre a verdadeira
forma de revolta (...) (ALBUQUERQUE JR, op cit, p.221)

A canção Terra Plana, evidencia outra característica de Vandré, aqui já citada, a


angústia presente na melodia e nas letras das músicas. Mesmo o seu canto sendo contente
é capaz de fazer uma pessoa chorar assim como um lamento sertanejo relatando sua vida
miserável. Sentimento que não provoca uma inércia, mas que também convoca a ação.

Gilberto Gil, a Tropicália e o Nordeste

A primeira canção de Gil a ser analisada será Coragem pra Suportar, ela trata do
sertão nordestino e ainda é bem calcada no estilo de canção típico do nacional-popular. O
nordestino nesta canção é visto como forte e valente, lembrando a consideração de Euclides
da Cunha que cunhou a célebre frase; “O sertanejo é antes de tudo um forte” aproximando-
se das composições de Vandré e de tantos outros artistas da MPB. Mesmo porque a letra

ISBN: 978-85-62707-55-1
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data de 1964, período em que Gil ainda era claramente influenciado pelo nacional-popular
em seu trabalho. O que é inovador nessa canção é a presença da expressão do som
universal, marcada pela guitarra de Sérgio Dias e na melodia que o baixo faz ao fundo. Tal
composição melódica é permeada da influência dos Beatles.

Se na poética ela ainda é uma composição típica do nacional-popular, ao fim ela se


torna uma canção tropicalista por justapor musicalmente o canto tradicional nordestino ao
elemento externo do pop urbano, colocando tudo em um mesmo plano. Demonstra-se assim
que, para Gil, não era impossível se falar do Nordeste apenas usando os elementos
musicais tradicionais locais, poderia se tratar das questões da região com um aspecto
modernizante, mas colocando essa modernização no mesmo plano do arcaico o que leva o
ouvinte a ter certa inquietude.

A letra também carrega a influência de João Cabral de Mello Neto, passando uma
mensagem direta sem rodeios, “uma coisa tosca, esculpida brutalmente, bonita” (Gil, apud
Rennó, 2003, p,61):

Lá no sertão quem tem /Coragem pra suportar/Tem que viver pra ter
/Coragem pra suportar/E somente plantar/Coragem pra suportar (...)//Ou
então vai embora/Vai pra longe e deixa tudo/Tudo que é nada.

No final a música deixa mais clara ainda a questão da migração nordestina,


necessária a quem deseja ter uma vida melhor O que demonstra que algumas imagens e
discursos do nacional-popular ainda estão presentes na poética tropicalista, no entanto
utilizadas de maneiras distintas.

A canção Procissão, talvez seja uma das mais estudadas obras de Gilberto Gil, ela já
havia sido lançada em seu disco anterior, mas com um arranjo totalmente diferente do disco
de 1968. A sua produção antiga ainda é bem calcada nos moldes do nacional-popular, ela
reproduz a religiosidade presente no interior nordestino e tem como inspiração a sua
memória pessoal, já que na sua cidade natal era recorrente essa manifestação religiosa.

Portanto a referência dele não era apenas feitas em cima de discursos realizados por
outros artistas, mas de uma memória pessoal. No entanto a segunda versão, apresentada
no disco em questão, parece parodiar a primeira, ao colocar distorções de guitarras e ritmos
pop, que foram acrescentados pelos Mutantes. Gil ainda sobrepõe a sua visão infantil sobre
as procissões religiosas acrescentando uma visão esquerdista a essa:

Eles vivem penando aqui na terra/esperando o que Jesus prometeu,/ E Jesus


prometeu coisa melhor/Pra quem vive nesse mundo sem amor/Só depois de
entregar o corpo ao chão/só depois de morrer neste sertão.

ISBN: 978-85-62707-55-1
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Ao mesmo tempo em que é empregado certo respeito às manifestações religiosas


nordestina, é também feito uma incriminação, por considerar essa também uma
manifestação alienante, pois é necessário arrumar um jeito para viver aqui na terra e não só
aguardar a ajuda de Deus:

Mas se existe Jesus no firmamento/Cá na terra isso tem que se acabar.

Todas as tradições nacionais estão postas em um mesmo balaio, agregando também


o novo. Tal característica não era trazida de maneira aleatória, mas refletia uma grande
preocupação contra a mera transposição do elemento estrangeiro ao ambiente nacional;

O Tropicalismo também integrou elementos da música pop, então moda


mundial. A integração se deu devido à preocupação com o consumo e, acima
de tudo, devido às possibilidades apresentadas pelo pop de, combinando-se
com outros elementos, produzir efeitos artísticos de crítica musical brasileira.
Assim não é adequada a idéia de que o pop foi integrado apenas por
decorrência de sua irradiação internacional. Esta questão não escapou aos
tropicalistas que discutiram os vários aspectos da importação cultural e
sentiram a necessidade de se defender dela. Para além das determinações
do mercado, sua discussão tinha outro objetivo: evidenciar os ‘muros do
confinamento cultural brasileiro’. A integração da música pop contribuiu para
ressaltar o aspecto cosmopolita, urbano e comercial do tropicalismo e, ao
mesmo tempo, comentar o arcaico na cultura brasileira. (FAVARETTO p.27
1979)

Assim o que era arcaico na cultura nordestina, o que era tradicional, não era
rechaçado pelos tropicalistas, mas comentado em suas canções de maneira distinta das
composições tipicamente nacionalistas. O Nordeste aqui não é avesso à modernidade, mas
também não existe uma divisão clara entre o arcaico e o moderno: antes uma comunhão
entre os dois elementos. A procissão, arcaica, junto a uma crítica esquerdista contra
alienação, e a modernidade cosmopolita pop, se une em torno de uma mesma canção.

Outra questão a ser comentada é a critica ao paternalismo empregado não só ao


povo brasileiro, mas em especial ao Nordeste:

(...)Muita gente se arvora a ser Deus/E promete tanta coisa pro sertão/que
vai dar um vestido pra Maria/Que vai dar um roçado pro João/Entra ano e sai
ano e nada vem/Meu sertão continua a Deus dará,/Mas se existe Jesus no
firmamento,/Cá na terra isso tem que se acabar.

Isso nos remete à crítica feita por Albuquerque Jr, ao afirmar que o Nordeste surge
do reconhecimento da derrota e que por isso existe a necessidade de tutelá-lo.

O discurso continua sendo o do paternalismo, a repetição dos enunciados sobre a


miséria e a incompatibilidade da região com a modernidade mesmo quando, o discurso do

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nacional-popular, criticava e denunciava a miséria da região. Mas o que os tropicalistas


tentaram fazer foi romper com esses conceitos, utilizando-se deles mesmo de forma irônica,
deslocados dos seus lugares iniciais. Gil combate o paternalismo da direita de maneira
direta na letra e o da esquerda no deboche, visível na melodia.

Conclusão

A presença do Nordeste na obra de Gil e Vandré é marcante, como vimos, ambos


usavam a região para tratar da realidade brasileira. Tanto um quanto o outro admitem o
atraso econômico nordestino e brasileiro, no entanto isso os levava a diferentes propostas
para a resolução do problema. Enquanto o tropicalista Gil acreditava na modernização, sem
ter uma concepção de progresso puramente nacional-popular, e faz isso ao agregar
elementos musicais estrangeiros à tradição do cancioneiro nordestino, mostrando a
compatibilidade dessas duas formas, Vandré se negava a utilizar tais elementos trabalhando
apenas com que ele considerava tradicional, original, sem o elemento exógeno.
Demonstrando, dentro de um pensamento nacional-popular, que ali poderia estar à semente
para a formação de um projeto de nação mais fraterna e humana. Os dois trabalharam
fortemente a tradição cultural nordestina e as resgataram, por vezes, nas mesmas
manifestações artísticas: nos cantadores de feiras, no canto sertanejo dos vaqueiros, nas
manifestações religiosas e nas inúmeras imagens recorrentes nas produções intelectuais do
nacional-popular, que perpassaram as produções cinematográficas, literárias, teatrais etc.

O resgate dessa tradição, no entanto, serve para a construção de dois projetos


culturais distintos.

Sobre o prisma do materialismo histórico, Walter Benjamin faz a seguinte análise em


relação ao resgate da tradição:

(...) Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela
se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha
consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os
que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se as classes
dominantes, como seu instrumento. Em cada época é preciso arrancar a
tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. (...) O dom de despertar
no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador
convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o
inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.
(BENJAMIN, 1994, p. 224).

Geraldo Vandré, mesmo não sendo o historiador a quem Benjamin faz referência,
trabalha com o passado e a tradição e tenta resgatá-la como uma forma de luta contra o

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opressor - que para ele seriam as forças capitalistas estrangeiras que atuavam em diversas
áreas, inclusive na esfera cultural exportando para as regiões periféricas do capitalismo
suas formas. Na música isso se daria na influência do pop britânico e norte americano que a
cultura nacional estava sofrendo. Trabalhar sobre o material tradicional brasileiro, mais
especificamente o nordestino, era reacender a centelha da esperança, era criar uma contra-
hegemonia cultural, capaz de combater o imperialismo yankee.

Na visão do compositor paraibano, Gil com o seu projeto tropicalista representava


também um inimigo a ser combatido, pois esse ameaçava corromper a MPB – instituição
verdadeiramente brasileira, na ótica de Geraldo Vandré – com uso de estrangeirismos
musicais. Para Vandré, o tropicalismo mesmo tendo a preocupação com a tradição, não
ajudaria a mantê-la viva, pois a mistura que o movimento propunha já a leva à morte.
Gilberto Gil, ao contrário de Vandré, acredita que o resgate das tradições misturadas a
referências musicais universais faz com que essas permanecessem vivas e em constante
evolução.

Nesse artigo esboço uma breve discussão de como o discurso em relação ao


Nordeste brasileiro permeou a produção musical brasileira dos anos sessenta. Mostrando
como a concepção política e estética – que naquele momento se misturavam – moldavam
também o discurso das produções culturais em relação à região.

Referências
1) Bibliografia

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Massangana; São Paulo: Cortez.

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história da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense.

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Paulo: Brasiliense, 1984.

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brasileira. São Paulo: UNESP, 2009.

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Horizonte: Autêntica, 2005.

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MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume, 2001.

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RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV.
Rio de Janeiro: Record, 2000.

RISÉRIO, Antônio. O solo da sanfona: contextos do Rei Baião. Revistausp, São Paulo,
1989/1990

SILVEIRA, Dalva. Geraldo Vandré: a vida não se resume em festivais. Belo Horizonte: Fino
Traço, 2011.

2) Discografia

GILBERTO GIL. Gilberto Gil. São Paulo: Polygram/Fontana/Philips, 1968. 1 LP.

GERALDO VANDRÉ. Canto Geral: EMI Odeon, 1968. 1 LP.

ISBN: 978-85-62707-55-1
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A modernização conservadora no sertão pernambucano durante o regime militar


(1964 – 1985), um estudo de caso: Projeto Sertanejo

Alexandre Black de ALBUQUERQUE


Mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
xandeblack2@yahoo.com.br

Introdução

Este artigo parte do interesse de se lançar um olhar sobre o processo de


desenvolvimento regional durante o governo militar e a chamada “modernização
conservadora ou autoritária”, essa última permeia toda a história nacional, antes e depois do
processo ditatorial iniciado em 1964 e finalizado em 1985. O autoritarismo – que enxerga o
Estado como uma máquina capaz de se sobrepor aos interesses da sociedade e a ser
quase infalível, prescindindo das experiências locais e atuando, supostamente, em nome do
bem comum –, já era fato antes do golpe militar de 1964 e, de forma atenuada, existe até os
dias de hoje.

A escolha do semiárido pernambucano como referência para o estudo ocorreu por


dois motivos. Em primeiro lugar, por ter sido esse estado um dos maiores beneficiados pelos
incentivos fiscais da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE e pelos
programas de desenvolvimento postos em prática pelo Governo Federal; em segundo lugar
pelas secas periódicas que assolam essa região. Entre os programas de desenvolvimento
implementados no Sertão pernambucano1, destaca-se o Programa Especial de Apoio ao
Desenvolvimento da Região Semi-árida do Nordeste – Projeto Sertanejo, que objetivava
melhorar o nível de renda dos pequenos proprietários, arrendatários e sem-terras,
integrando-os à economia de mercado; no entanto, não foi bem isso que ocorreu,
sequestrado pelos interesses das elites locais, o programa terminou por beneficiar,
fundamentalmente, a grande propriedade e a indústria, tanto a produtora de insumos
agrícolas como a consumidora de bens agrícolas.

Breve Relato da Política Agrícola dos Governos Militares

O golpe militar de 1964, apesar de se pretender redentor do Brasil, não contribuiu


significativamente para modificar a realidade do semiárido, no entanto, é verdade que,
através do que se convencionou chamar de “modernização conservadora”, conseguiu criar
algumas ilhas de prosperidade em meio à miséria, como por exemplo, o polo de fruticultura
para exportação de Petrolina.

1
O Estado de Pernambuco está dividido em 5 Mesorregiões: Metropolitana do Recife, Mata
Pernambucana, Agreste, Sertão e São Francisco.

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Tão logo o golpe de 1964 tornou-se vitorioso, a reforma agrária, como política de
desenvolvimento do campo, seria abortada, o governo militar expressaria um novo momento
da discussão nacional sobre distribuição das terras. Inicialmente, encamparia o discurso da
reforma agrária, mas, ao mesmo tempo, apaziguaria os ânimos dos latifundiários, ao torná-
la de difícil execução.

Vale salientar que a intensa essão das elites rurais contra qualquer processo que
visasse uma melhor distribuição de terras ocorreu em todo o território nacional, e não só no
“Nordeste oligárquico e atrasado”. Contendo em seu texto diferenciações entre as regiões, o
Estatuto da Terra parecia confirmar que o problema agrário se concentrava na região menos
desenvolvida, quando, de fato, a luta pela terra se desenrolava de norte a sul do país.

A Agricultura do Sertão

Dominada pelo binômio latifúndio/minifúndio e pelo sistema gado/algodão2, a


agricultura sertaneja operava com baixa produtividade, sendo incapaz de produzir
excedentes em quantidade suficiente para alimentar a população e fornecer divisas para
financiar a importação de máquinas e equipamentos industriais. A modernização do setor
agrícola se fazia necessária, segundo seus defensores, por ser conveniente à redução dos
preços dos alimentos, como medida para aumentar o poder de consumo das massas. O
assalariamento do meio rural faria crescer o mercado de bens industriais e a demanda por
insumos por parte de uma agricultura modernizada favoreceria a expansão da indústria.
Logo, as expectativas que recaiam sobre a modernização do campo eram imensas. Para os
arautos da modernização o mais importante à transformação da agricultura, em um grande
sistema empresarial, seria a formação de uma nova mentalidade “capitalista” na população
do campo, como supostamente estava ocorrendo nas áreas urbanas mais desenvolvidas do
país. A emergência desse “novo homem” seria capaz de dinamizar a economia, pois com
sua “racionalidade”, tomaria decisões que, em última instância, privilegiaria a acumulação de
capital e a geração de emprego e renda. Em outras palavras, a modernização significaria a
ampliação do modo capitalista intensivo de produção e de distribuição nas atividades

2
No sistema gado/algodão o algodão ocupava as áreas mais úmidas da propriedade, deixando para
a pecuária extensiva à zona mais seca. Em geral, após a colheita, os resíduos eram transformados
em pasto para os animais. As relações de trabalho eram diversificadas. Havia a sujeição, em que o
trabalhador morava na terra e dispunha de uma pequena área para plantar e pagava por esse
“arrendamento” com parte dos bens produzidos e com trabalho para o latifundiário. Na parceria, o
aluguel da terra era pago com apenas um produto: o algodão, ficando vetadas outras culturas por
serem menos rentáveis. No arrendamento propriamente dito, o pagamento era em dinheiro, mas, só
na aparência, o rendeiro tinha mais liberdade, uma vez que não podia plantar o que quisesse e sua
renda monetária era tão escassa que apenas pagava o arrendamento e, em geral, terminava por ter
que trabalhar para o proprietário alguns dias por semana, em troca de um pequeno salário ou comida.
Por fim, havia o trabalho assalariado.

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agrícolas. Esse processo ganharia força durante o regime militar, ficando conhecido como
“modernização conservadora”. Martins (2008, p. 49) define bem o fenômeno:

Modernização conservadora tem sido a expressão corrente utilizada para


qualificar a intervenção da ditadura no campo. Popularizou-se na imprensa,
em rodas parlamentares, nos meios de técnicos e acadêmicos. Conforme
esclarecem estudiosos, se convencionou conceituar assim um padrão
capitalista de agricultura que modificou as relações de produção, sem alterar
o regime fundiário.

Como se constata do exposto, a modernização da agricultura não transformou a


estrutura agrária do Sertão. Baseada no uso mais intenso de tecnologia e insumos
industriais, o desenvolvimento no setor agrícola se apresentou:

Altamente assimétrico e ‘concentrador’ nos seus efeitos sobre os diversos


grupos. Em outros termos, a mudança tecnológica não é neutra para os
grandes proprietários rurais e camponeses, e tendeu a acrescentar a
disparidade entre estes dois grupos, dos quais somente os primeiros estão
em condições de absorver inovações complexas, fruto do grau de
desenvolvimento capitalista. (ALVES; FIORENTINO, 1980, p. 2).

Essa assimetria entre o grande e o pequeno proprietário, não foi, todavia, fruto,
apenas, da disparidade de renda, o fato do Estado ter sido capturado pelas oligarquias, que,
aliás, sempre ocuparam uma posição central na estrutura do poder, aumentou essa
disparidade, ao concentrar os investimentos na grande propriedade. A forma da relação do
Estado com os diversos agentes sociais e a estrutura agrária, então existentes, parecem ter
sido elementos decisivos para que a tecnologia fosse relativamente neutra na questão da
concentração de renda ou até na amplificação desse processo. O ineficiente acesso a bens
imateriais, como educação, foram mais importantes, sobretudo num ambiente de maior
intensidade tecnológica.

A Mesorregião do Sertão Pernambucano

Na Mesorregião do Sertão de Pernambuco o sistema gado/algodão aparenta, a


primeira vista, fazer menos sentido. De fato, em Pernambuco, a maior parte da área
ocupada pelo sistema estava inserida num subsistema gado/policultura alimentar tradicional.
O algodão no estado era descontínuo e ocupava uma área relativamente exígua mas
importante economicamente. As semelhanças ecológicas, geológicas e produtivas, no
entanto, fizeram com que Melo (1978) colocasse a Mesorregião do Sertão Pernambucano
dentro dos limites desse sistema. No município de Triunfo, por exemplo, a cultura da cana-
de-açúcar era dominante, em parte, pela altitude, que passa dos 1000 metros, com índices
pluviométricos bem superiores à média do Sertão e, em parte, pelos solos de qualidade
pouco usual na região.

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A interação gado/algodão, a partir do século XIX, proporcionou estímulo para a


expansão da economia da Mesorregião do Sertão Pernambucano e mudanças na
demografia local, na medida em que a cultura do algodão necessitava de muitos mais
braços que a pecuária. A estrutura agrária da região, Herança da colonização portuguesa,
no entanto, manteve-se inalterada: grandes latifúndios entrecortados por pequenas
propriedades rurais. A ocupação da maioria das terras por imensas propriedades rurais,
grande parte ociosa, impediu o crescimento do mercado interno, mesmo após a abolição da
escravidão, promovendo, ainda, forte concentração de renda e criando poderosos grupos de
poder que atuavam no sentido de se perpetuar no comando da máquina pública.

Nas pequenas propriedades do Sertão a principal forma de cultura agrícola era a de


subsistência. Era, sobretudo, neste subsetor dedicado a produção de alimentos, que se
encontrava o mais baixo nível de capitalização da agricultura, o que contribuía para
perpetuar a baixa produtividade do trabalho e do solo, tornando praticamente inviável a
produção de um excedente comercializável. A situação era pior entre os pequenos
agricultores pois, sem acesso a bens imateriais, como educação, reproduziam em suas
terras as técnicas dos latifúndios, extremamente prejudicais ao solo, causando erosão e
baixa produtividade. Uma dessas técnicas era a broca, que implica na derrubada da mata e
na limpeza do terreno pela queimada. Nos latifúndios o sistema gado/algodão (ver nota de
rodapé 3, p. 2) dominava, sendo responsável pelo pequeno excedente da economia
sertaneja.

O ponto comum a todos os tipos de relações econômicas entre pequenos e grandes


proprietários e arrendatários era a baixa produtividade do trabalho e a insignificante
utilização de meios monetários nas transações estabelecidas entre as partes. No processo,
o latifundiário foi capaz de criar um mecanismo de transferência de renda que se
materializava no momento da comercialização da produção, cabendo aos parceiros e
arrendatários apenas uma fração do valor, ou quantidade do produto, notadamente do
algodão. Desta forma, relações de classes extremamente desiguais impediam o
desenvolvimento local. A intervenção da ditadura tentaria mudar o quadro de estagnação
sem, no entanto, alterar a estrutura agrária.

O Projeto Sertanejo

O Projeto Sertanejo estabelecido pelo Decreto n. 78.299 de 23 de agosto de 1976,


parecia assumir uma posição contrária à “modernização conservadora” ao apoiar o pequeno
proprietário e os agricultores sem terras e defender investimentos através do crédito, para a
reestruturação agrária, tendo em vista aumentar a resistência da pequena propriedade
camponesa à seca. No entanto, já no seu nascedouro, o projeto foi deturpado, atendendo

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produtores com pouco menos de 100 ha e, sobretudo, produtores que possuíam entre 100 e
500 ha. Os produtores não proprietários e os trabalhadores sem terras foram, logo de início,
excluídos, não tinham como oferecer garantias ao sistema de crédito. Segundo Carvalho
(1987, p. 211) o Projeto Sertanejo,

Originário da SUDENE, [...] pretendia orientar-se para o tratamento do


problema das secas através do fortalecimento das unidades de produção
agropecuária da zona semi-árida do Nordeste e da exploração das
potencialidades de um desenvolvimento adaptado as condições ecológicas
da Região, notadamente pela extensão das ações desenvolvidas nos
perímetros irrigados do DNOCS às áreas que os circulavam.

O programa tinha intenção de atuar, de alguma forma, em relação à reestruturação


agrária do semiárido, mas isso não passou de intenções. Cortes de verbas comprometeram
ainda mais os resultados das intervenções e o fato do Sertanejo se articular com muitos
programas que igualmente não estavam atingindo os objetivos traçados, apenas piorava o
quadro. Também seria um programa para superar a seca, como afirmou, em tom oficioso, o
jornal Folha de São Paulo (12/05/1976, p. 13),

A área de Sertão do Nordeste, a mais subdesenvolvida do país, terá


requintes tecnológicos apenas experimentados por países altamente
industrializados da Europa. A sofisticação do Sertão, através da
implementação do “Projeto Sertanejo”, permitirá que dentro de cinco a dez
anos o problema da seca seja superado facilmente pelos lavradores.

Essa descrição otimista da “Folha” jamais se concretizou e, em pouco tempo, assim


como ocorreu com outros programas, os pequenos agricultores listados, inicialmente, como
o principal público alvo, foram superados pelos grandes proprietários rurais, que detinham o
poder político na região e estreitos laços com o governo federal, sempre em busca do apoio
das oligarquias regionais para manter a governabilidade.

No final de 1982, auge do projeto, segundo Vasconcelos (1983), estavam


funcionando 107 núcleos, beneficiando 14.474 produtores rurais, dos quais 8.971 (62%)
possuíam propriedades com menos de 100 ha e 5.503 (38,0%) entre 100 e 500 ha. A
superfície abrangida pelo projeto alcançava 474.000 km2, e a área total das propriedades
diretamente beneficiadas atingia 1.803.000 ha. Esses produtores rurais representavam,
entretanto, uma ínfima parcela (1,6%) dos 917.843 que deveriam ter sido beneficiados.

Os principais pontos do programa estavam relacionados com a escassez d’água no


semiárido, a estrutura agrária da região, a melhoria das condições de produção e, por
último, o desenvolvimento de culturas voltadas para o mercado. Para isto propunha: a)
formação de reservas de água, b) intensificação da produção irrigada, c) economia do uso
de água, d) fomento à agricultura seca, e) intensificação da produção pecuária, f)

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conservação e melhoria do solo, g) reorganização da estrutura fundiária, h) prestação de


assistência técnica, i) prestação de serviços, j) aperfeiçoamento do sistema de
comercialização e cooperativismo.

No papel muitos projetos tocavam nessas questões, mas na prática, as ações


realizadas iam na direção contrária aos objetivos explicitados. Documento interno da
SUDENE (1980, p.1) chamava atenção para o fato das áreas escolhidas nem sempre
atenderem ao critério de menor resistência à seca e afirmava que o projeto nada fizera pela
reestruturação agrária e, a assistência técnica, praticamente, não havia chegado ao campo,
dois anos após o seu inicio.

Na avaliação do Projeto Sertanejo, a SUDENE (1981, p.4) observou que os técnicos


do programa, em geral, não conheciam as especificidades do Sertão, apenas seguiam a
cartilha convencional contribuindo, dessa forma, para a má utilização dos já escassos
recursos. Entre as práticas danosas referia-se ao desmatamento indiscriminado, que
provoca erosão no solo, a irrigação excessiva capaz de salinizar o solo, os silos mal
projetados, o plantio de espécies impróprias ao local, a invasão de áreas propícias à lavoura
pela pecuária, etc.

Em relação, especificamente, as ações realizadas com o intuito de aumentar a


resistência da produção local à seca, a SUDENE (id., p.4) afirmou:

Com o objetivo de aumentar a resistência das unidades produtivas, as


equipes técnicas dos núcleos têm se preocupado, sobretudo, com as formas
de acumular água e com a perfuração de poços, esquecendo ou
desconhecendo as recomendações mais seguras dos estudiosos da zona
semi-árida no sentido de uma maior adaptação da economia às condições
ecológicas pela exploração selecionada de plantas e animais.

O Projeto Sertanejo sofreu, também, como outros implementados na região, de


problemas de excessiva “centralização administrativa, em nível de administração central e
de diretorias regionais, por parte do DNOCS, sem delegação de poderes aos gerentes dos
núcleos para administrarem o programa e para gerirem os recursos financeiros” (SUDENE,
1979, p. 67).

Por sua vez, o Ministério do Interior (VASCONSELOS, 1983), chamou atenção para
uma série quase interminável de deficiências de ordem técnico-administrativas que
prejudicavam ainda mais o Projeto Sertanejo, destacando, entre elas: i) instabilidade
funcional do pessoal contratado, ii) diferentes normas administrativas no tocante a salários,
diárias, etc, iii) localização inadequada de algumas sedes de núcleos, iv) tetos financeiros
definidos de forma aleatória sem prévio estudo, v) utilização de recursos do programa como

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fonte de financiamento de outras atividades, vi) modificação de projetos no meio da


execução, vii) concentração de oferta de crédito de curto prazo, viii) descontinuidade de
repasse aos agentes financeiros.

Segundo o Banco Mundial (1983), em 1981, apenas de 5% a 10% das metas


globais do projeto foram atingidas. Nem mesmo a criação de 30 mil empregos diretos (4 mil
em Pernambuco), e 99 mil indiretos (10 mil em Pernambuco), contribuiu para influenciar a
realidade do projeto, ainda mais levando-se em conta que esses empregos representavam
apenas 2,7% da População Economicamente Ativa – PEA da área beneficiada.

Em relação aos recursos, um montante considerável de verba foi destinada ao


projeto a fundo perdido e sua quase totalidade liberada, mesmo que com atraso. No entanto,
cabe salientar que, em termos de destinação dos recursos, grande parte, cerca de 70%,
foram “[...] mais centralizados na implantação da infra-estrutura técnico-administrativa que
nos segmentos de apoio ao Programa, inclusive assistência técnica, [...]”(VASCONCELOS,
1983, p. 60).

Ao contrário do que ocorreu com os recursos a fundo perdido, o apoio do governo


federal, no tocante ao crédito rural do Projeto Sertanejo, foi de pouca expressividade. Na
verdade, de todos os recursos (idem), 51% receberam autorização do Conselho Monetário
Nacional – CMN e, apenas 40%, tiveram autorização do Banco Central.

A partir de 1983, o Projeto Sertanejo deveria ser absorvido pelo Projeto Nordeste, o
que não ocorreu. O Projeto Sertanejo foi um conjunto de oportunidades perdidas. Lutando
contra a falta de recursos financeiros que terminaram por decretar sua extinção.

Os entraves, no entanto, dificilmente poderiam ser corrigidos, pela própria natureza


da modernização autoritária, que privilegiava o grande em detrimento do pequeno. Não é de
se estranhar, portanto, que só em teoria o Projeto Sertanejo estivesse voltado para o
pequeno agricultor, este não foi exatamente um grupo beneficiado pelas políticas de
modernização implementadas pelo governo militar.

O Caso de Dois Núcleos do Projeto Sertanejo

A análise dos documentos sobre a constituição de dois núcleos do Projeto Sertanejo


em Pernambuco, situados em Salgueiro e Custódia, merece especial atenção, não só por
permitir desvendar a realidade socioeconômica dessas áreas na época da implementação
das ações, bem como para constatar o que efetivamente foi realizado e sua coerência com
as diretrizes do projeto.

ISBN: 978-85-62707-55-1
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Sabe-se que o objetivo geral do Projeto Sertanejo era tornar a agricultura do


semiárido mais resistentes à seca, favorecendo, sobretudo, os produtores não proprietários,
os trabalhadores sem terras e os produtores com menos de 100 ha.

Os núcleos de Salgueiro e Custódia3 abrangiam uma área de 2.827 km2 e envolviam


municípios que, juntos, se estendiam por mais de 9.000 km2 abrigando cerca de 150.000
pessoas em cada núcleo. Como estavam no Sertão, os núcleos sofriam dos problemas
comuns à região: baixa precipitação pluviométrica, evapotranspiração superando as
precipitações, temperatura média ao redor de 27ºC, inclusive com a chamada Caatinga
hiper xerófila como cobertura vegetal. Até o relevo das duas áreas, distantes cerca de 177
km entre si, eram semelhantes, possuindo superfícies suavemente onduladas com algumas
áreas fortemente onduladas. Em relação às águas de superfície, os dois núcleos
apresentavam as mesmas deficiências típicas do Sertão, mais em relação às águas
subterrâneas, o núcleo de Custódia parecia ter uma situação bem melhor, com mais
disponibilidade desse recurso e com melhor qualidade. As duas regiões apresentavam solos
pobres, dificultando o desenvolvimento agrícola e social. Constituíam-se, assim, como
típicas regiões aptas a receber o Projeto Sertanejo. A estrutura agrária era tipicamente
brasileira, com forte concentração de terra e com os latifúndios ocupando as melhores
áreas. Em qualquer uma das regiões, as principais culturas agrícolas eram o algodão, milho,
feijão, mandioca e mamona. A pecuária era de vital importância e a produtividade geral
muito baixa. Mais de 70% da população economicamente ativa trabalhavam no setor
primário. O setor industrial praticamente inexistia, empregando não mais que 311 pessoas
no núcleo de Custódia e 661 no núcleo de Salgueiro. Com tão baixo dinamismo econômico,
não se poderia esperar a existência de um setor terciário muito desenvolvido, o que limitava
ainda mais as opções de emprego, contribuindo para o péssimo quadro social, tão comum
ao Sertão.

Em relação aos transportes, vital para o escoamento da produção e importação de


bens, os dois núcleos estavam, relativamente, bem servidos, pois eram cortados pela BR-
232 e pela Rede Ferroviária Federal, além de outras BR’s e PE’s que os ligavam a Recife e
a municípios do Sertão e Agreste e até, de forma relativamente eficiente para o padrão
regional da época, a outros estados, incluindo capitais. Isso, no entanto, não significou um
sério impulso ao desenvolvimento, como demonstra os documentos produzidos.

Quando se trata das condições sociais da população a situação era bastante


precária. Os indicadores educacionais de Custódia e Salgueiro revelavam uma elevada taxa

3
Os dados desse tópico estão em Departamento Nacional de Obras Contra as secas – DNOCS,
1977a e DNOCS, 1977b.

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de analfabetismo. A grande maioria da população de 15 anos e mais não havia sequer


concluído as quatros primeiras séries do então chamado ensino 1 (atual ensino
fundamental). Poucos conseguiam ter acesso ao 2º grau (atual ensino médio). Some-se a
essa situação a baixa qualidade do ensino ofertado, apresentado altos índices de evasão e
reprovação. Em relação à saúde a realidade não era diferente: faltavam médicos, dentistas
e leitos hospitalares para atender uma população sujeita a doenças infecto-contagiosas e,
em geral, com serias carências alimentares.

Com isso, as poucas oportunidades que surgiam não podiam ser bem aproveitadas
pela população de baixa renda, espremida entre o latifúndio, o analfabetismo e as péssimas
condições de saúde. O sistema de Extensão Rural não era capaz de superar essas
deficiências e, talvez, nem almejasse, ligado que estava aos grandes proprietários de terras.
Tendo por base esse contexto o Projeto Sertanejo visava “a reestruturação das explorações
familiares de tamanho adequado, previamente estabelecidos, capaz de serem explorados
racionalmente, dando melhores condições ao pequeno e médio agricultor de resistir aos
períodos de estiagem” (DNOCS, p.62, 1977a)

As ações preliminares para a implantação dos núcleos foram semelhantes, diferindo,


apenas, no total de agricultores que seriam beneficiados. No núcleo de Custódia foram
cadastrados 9.318 possíveis beneficiários, enquanto no de Salgueiro, 6.926, em ambos os
casos, representavam produtores não proprietários, produtores sem terras e produtores com
menos de 100 ha, destacando-se, no total, estes últimos.

Para alcançar o desenvolvimento das pequenas propriedades o programa tentou


algumas alternativas, como a associação de agricultura irrigada/agricultura seca, utilização
de plantas resistentes à estiagem e elaboração de um seguro agrícola. Estudos seriam
realizados tendo em vista a melhor forma de implementar essas alternativas.

Isso, por si só, não seria fácil, pois os projetos desenvolvidos pelo Sertanejo
envolviam vários órgãos e empresas federais e estaduais: DNOCS, EMBRATER, BB, BNB,
INCRA, entre outros –, totalizando 14 entidades diferentes que teriam que funcionar
interligadas com bastante precisão. Evidente que os projetos desenvolvidos em Custódia e
Salgueiro, como outros do Sertanejo, não atingiram os objetivos do programa, não lograram
alcançar a reestruturação fundiária nem mudar a realidade do pequeno agricultor.

Considerações Finais

O desvendamento de uma parte da ação do Estado brasileiro no semiárido


pernambucano durante a ditadura militar, mostrou que as políticas empreendidas
beneficiaram apenas pequena parcela da população sendo, desse modo, incapazes de

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modificar com a intensidade desejada a realidade local. Alocando verbas em projetos


duvidosos, quase invariavelmente favorecendo os de sempre – latifundiários,
atravessadores e industriais –, o Estado tentava impor uma “revolução capitalista” em uma
zona econômica extremamente subdesenvolvida, mesmo para os padrões brasileiros. A
consequência foi o surgimento de enclaves com razoável dinamismo econômico, incapazes,
porém, de influenciar o restante do semiárido, onde se encontrava a grande maioria da
população da região.

As velhas formas de desenvolvimento local, no entanto, não foram abolidas, os


novos e velhos métodos se superpuseram ampliando a presença do Estado. O Projeto
Sertanejo não cumpriu seus objetivos. Na verdade havia, quase sempre, uma divergência
entre o foco teórico do projeto, e sua atuação na prática. Como fica claro no caso de
Salgueiro e Custódia, onde os produtores sem terra e os pequenos produtores foram
suplantados pelos proprietários com até 100 ha ou mais.

Esse processo de inserção do semiárido na economia nacional - “reivindicado” pela


inevitável modernidade que, enfim, deitava raízes no território nacional, na ótica dos
militares, nada mais era, no entanto, que a velha “modernização conservadora” em sua mais
fiel tradução: o autoritarismo a serviço de uma minoria.

Referências

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Paulo, São Paulo, 12 de maio. 1976, primeiro caderno, p. 13.

MARTINS, Mônica Dias. Açúcar no Sertão: a ofensiva capitalista no nordeste do Brasil.


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SUDENE. Projeto Sertanejo: relatório anual de acompanhamento. Recife, 1979.

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Recife, 1981.

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NORDESTE DO BRASIL S.A.. Projeto especial de apoio ao desenvolvimento da região
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“É o caos, o caos que está instaurado em volta e dentro de mim”: Dias Gomes e as
reflexões sobre o papel dos artistas e intelectuais após 1985

Aline Monteiro de Carvalho SILVA


Doutoranda em História na Universidade Federal Fluminense (UFF)
alinemcs@gmail.com

Este artigo pretende versar brevemente, através da obra Meu Reino por um Cavalo,
sobre a produção de Dias Gomes no período da redemocratização e restabelecimento da
democracia plena no país. O dramaturgo era, nos anos de 1950, 1960 e 1970, conhecido
por suas obras teatrais e televisivas críticas a situação do país, ao governo, a política, e etc..
Nos anos de 1980 e 1990, refletiu, através da ficção e da literatura sobre o papel dos
intelectuais e artistas atuantes no período anterior e sua função dentro da nova realidade do
país.

Escrita em 1988, Meu Reino por um Cavalo foi uma das primeiras obras produzidas
pelo autor durante as duas últimas décadas de vida, onde apareceram questões que
mostravam como o autor lidava com a nova realidade que se apresentava a ele, ao país, ao
mundo. A questão da memória, da trajetória de Dias Gomes, das preocupações do presente
em relação ao passado, da função do artista e intelectual no pós-ditadura militar, tanto
através da personagem fictícia e quanto a do próprio dramaturgo, são caras a este trabalho.
Pretendo então pensar os cruzamentos entre a trajetória do autor, os questionamentos
sobre sua função na nova realidade política e social brasileira dentro do contexto da
redemocratização e consolidação da democracia.

Dias Gomes nasceu na Bahia, em 1922, mudando-se com a mãe para o Rio de
Janeiro ainda na adolescência. Escreveu sua primeira peça aos quinze anos; aos dezoito
anos já estava escrevendo para a companhia de teatro de Procópio Ferreira. Poucos anos
depois saiu da companhia e começou trabalhar em São Paulo na emissora de rádio de
Oduvaldo Vianna (Pai). Foi nesse período na capital paulista que filiou-se ao Partido
Comunista Brasileiro, de onde viria a se retirar na década de 1970. A carreira do dramaturgo
ganhou vulto concomitantemente ao crescimento e a afirmação do Teatro Brasileiro
Moderno e sua vertente mais popular.

Mesmo com a retomada do seu teatro e o sucesso de suas peças, em 1964 o


dramaturgo voltou a trabalhar no rádio. Com o golpe em abril do mesmo ano, foi demitido
sumariamente da Rádio Nacional. Sem o emprego da Rádio Nacional, Dias Gomes procurou
outros meios de obter renda durante os cinco primeiros anos de ditadura. De 1969 a 1977
deixa de escrever para o teatro, rompendo esse hiato com As Primícias. O ano de 1969 foi
um marco na carreira de Dias Gomes, pois foi quando o autor de O Santo Inquérito passou

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de reconhecido teatrólogo a escritor de telenovelas. Em fins dos anos de 1980, Dias Gomes
decidiu parar de escrever novelas, voltando dedicando-se ao teatro e às minisséries
televisivas. Morreu em 1999, em meio adaptação de sua peça Dr. Getúlio, sua Vida, sua
Glória para a tevê.

A peça Meu Reino por um Cavalo passa-se em quatro planos diferentes: o da


realidade, o da ficção, o da memória e da alucinação. A personagem principal é Otávio
Santarrita1, um dramaturgo em meio a uma crise artística e pessoal. Uma das personagens
secundárias e a segunda a ser apresentada ao público é sua esposa, Selma Santarrita2,
seguida por Solange3, atriz que protagoniza as peças de Otávio e sua amante. As outras
personagens que aparecem ao longo da peça são os filhos de Otávio e Selma, Tavinho4 e
Soninha5, e alguns pequenos personagens, que entram rapidamente em cena, como o
Assaltante, que tenta roubar a casa de Selma e Otávio e sai sem levar nada; o Analista, que
escuta o desabafo de Otávio; o Oficial, que o interroga em um de seus delírios; o Produtor
das peças do dramaturgo; o Imortal6, que visita Otávio quando este está tentando uma
cadeira na Academia; o Juiz, que media a luta entre Selma e Solange; e até Vianninha,
quem vem ajudá-lo em seu processo de criação.

A história desenvolvida por Dias Gomes é um retrato sobre as incertezas, as dúvidas


e as inseguranças de um artista e intelectual em fins da década de 1980. Otávio Santarrita é
um teatrólogo que está em meio a uma crise criativa, intelectual e pessoal. Meu Reino por
um Cavalo foi escrita em 1988, tendo sido encenada pela primeira vez no ano seguinte 7.

1
Otávio Santarrita é assim descrito pelo autor: “[...] Otávio Santarrita tem mais de cinquenta anos,
mas aparenta bem menos. Espírito inquieto, ultra exigente consigo mesmo, obcecado pela ideia fixa
de se superar sempre e consciente de sua responsabilidade como intelectual. A crise em que se
debate advém de tudo isso”. Ressalto que a questão do intelectual, de sua função na sociedade, a
autocrítica ao seu papel, tem espaço nas obras de Dias Gomes desde fins dos anos de 1960, em
peças como Amor em Campo Minado (ou Vamos Soltar os Demônios) (1969) e Campeões do Mundo
(1979). (GOMES, 1989, p. 13.)
2
“Selma é uma mulher bonita, nos seus quarenta e cinco anos, elegante, inteligente, personalidade
ofuscada pela personalidade mais forte de Otávio. Tem consciência disso, o que motiva um tom
sempre crítico e ressentido em relação a ele”. (GOMES, 1989, p. 14.)
3
“É uma bela mulher de quarenta anos, com o fascínio pessoal das primeiras atrizes. Alia beleza e
sensualidade. O fato de colocar tudo em função de sua carreira não faz dela uma pessoa calculista
ou interesseira”. (GOMES, 1989, p. 22.)
4
O filho do casal é inserido na peça e descrito de maneira a mostrar rebeldia, revolta: “Entra um rock
pauleira. Som altíssimo. [...] Tavinho entra dançando. Vamos chamá-lo de um típico representante da
juventude desengajada pós-moderna”. (GOMES, 1989, p. 27.)
5
Soninha tem catorze anos, está grávida e não sabe qual dos namorados é o pai: “Volta o rock
pauleira. Soninha entra dançando alucinadamente com os três namorados. Quando cessa a música
ela está diante de Otávio e Selma. Namorados saem”. (GOMES, 1989, p. 38.)
6
É interessante ver como Dias Gomes retrata o Imortal, como uma personagem arrogante, que se
sente superior aos outros, de forma a parecer um idiota através de suas falas (GOMES, 1989, p. 67-
80). Anos mais tarde, o novelista viria fazer parte da Academia Brasileira de Letras.
7
A peça estreou em 17 de maio de 1988, no Teatro Nelson Rodrigues, no Rio de Janeiro. No elenco
estavam nomes consagrados – Paulo Goulart, Nicete Bruno e Ângela Leal – como as personagens

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A peça trouxe para o palco os dilemas e os conflitos do próprio dramaturgo. Os


questionamentos da personagem Otávio mostravam não apenas as confusões do
dramaturgo fictício, mas também do próprio Dias Gomes. Nosso autor expressou na fala da
personagem as suas confusões diante daquele mundo em que não se encaixava e não
compreendia as mudanças que vinham ocorrendo. Em sua autobiografia, o novelista afirmou
que quando terminou de escrever a obra percebeu que havia

até certo ponto (me) desnudado em público, ao tentar expor minhas


perplexidades sobre aquele momento histórico e questionar meu ofício de
escritor.[...] A identificação de Santarrita, escritor teatral, com o autor da
peça era inevitável. Apesar de muitas dessemelhanças, essa ilação tinha
sua razão de ser: eu colocara em meu protagonista minha angústia na
forma de retratar um mundo em alucinante transformação, na tentativa
desesperada de adequar o teatro ao mundo, para dar-lhe a dimensão de
nosso tempo, como já tentara em Campeões do Mundo.[...] Tomado de
tremenda confusão mental, Otávio Santarrita quer escrever uma peça,
escreve quatro ao mesmo tempo, e sua cabeça se transforma num
verdadeiro caos, quando decide, concomitantemente, pensar o mundo e o
teatro. Mas o teatro tem sentido? O mundo tem sentido? (GOMES, 1998, p.
343-344)

O primeiro diretor da peça, Antonio Mercado, no prefácio de Meu Reino por um


Cavalo, afirmava também que a dramaturgia nacional passava por um período complexo e
parecia

debater-se num impasse de criatividade, não há saída senão mergulhar


fundo na crise. Dostoievsky anotava em seu Diário que às vezes é preciso
desesperar-se para que do desespero nasçam novas perspectivas. Em
termos de dramaturgia, isso implica em renunciar às fórmulas consagradas,
questionar os arquétipos teatrais de todos os tempos, repudiar a delimitação
tradicional das categorias estéticas, subverter as regras e receitas de
construção dramática, na tentativa de inventar um palco adequado à
coreografia fantástica, alucinada e caótica das personagens do nosso
tempo. No fundo, é isso que Otávio Santarrita tenta fazer nesta peça,
inspirado Dias Gomes – ou vice-versa? (GOMES, 1989, p. 9.)

Era latente para Dias Gomes e Antônio Mercado que o teatro nacional precisava
transformar-se, criando novas encenações, ideias e conceitos.

Personagem central da trama de Meu Reino por um Cavalo, Otávio Santarrita é um


escritor teatral que está em meio ao processo de criação de seu novo espetáculo, mas que,

principais. Contava ainda com Benjamin Cattan, Jandir Ferrari e Kiki Lavigne nos papéis secundários
e com um elenco de apoio. O diretor dessa versão foi de Antônio Mercado, sendo a música e a trilha
sonora de Guilherme Dias Gomes, filho do dramaturgo. Ao falar sobre a encenação da peça em sua
autobiografia, Dias Gomes disse que a peça ”não foi entendida pelos críticos dos grandes jornais,
muito pouca gente mesmo a entendeu. O espetáculo foi remontado em São Paulo, excursionou a
Salvador, e o equívoco continuou. Sim, um grande equívoco, sustento com absoluta convicção. Tive
outros fracassos em minha carreira, todos justificados – este totalmente injusto. A fúria niilista com
que alguns críticos o atacaram faz me pensar. E me traz à memória o desabafo de Tchecov: ‘Se eu
tivesse dado ouvido aos críticos, tinha morrido bêbado na sarjeta’”. (GOMES, 1998, p. 344.)

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devido a sua confusão mental, está compondo quatro peças ao mesmo tempo. Em sua
volta, há uma mistura de realidade e delírio, e é onde desenrolam-se seus problemas, suas
crises e sua relação com as demais personagens.

Otávio se vê perdido em meio aos compromissos de trabalho; a falta ou excesso de


criatividade, mas que para ele é mais uma confusão mental do que qualquer outra coisa
(GOMES, 1989, p. 19); ao pedido de divórcio de sua mulher após vinte e dois anos de
casamento e sua relutância em aceitá-lo; aos problemas com os filhos – o vício do filho e a
gravidez da filha; em relação à sua amante, pela pressão dela para terminar a peça para
que possa protagonizá-la. Para Otávio as coisas estão saindo do controle, “é o caos, o caos
que está se instaurando em volta e dentro de mim” (GOMES, 1989, p. 50.).

Em uma das cenas escritas por Dias Gomes, surge, em meio a uma das alucinações
da personagem Otávio Santarrita, a figura de Vianninha, sendo travado o seguinte diálogo
entre eles:

VIANNA – Olá, companheiro. Como é que é?


OTÁVIO – (Levanta-se, surpreso.) Vianninha! Você não tinha ido...?
VIANNA – (Sorrindo.) Claro que sim. Vim só te dar uma força. Os
companheiros me pediram. Tarefa... Paulinho e o Leon estão preocupados
com você. O velho também.
OTÁVIO – É... acho que estou entrando em parafuso.
VIANNA – Eu sei. Também passei por isso. É uma barra.
OTÁVIO – E como é que se sai dessa, companheiro? Me diz.
VIANNA – Mergulhando de cabeça na confusão. De repente as coisas ficam
claras como água em pote de barro. Não se desespere. Vá fundo que você
chega lá.
OTÁVIO – É bom ouvir isso. Você não sabe como a coisa piorou depois que
você se foi. Ah, você não sabe. Tá muito sofrido.
VIANNA – Tem que sofrer, tem que sangrar.
OTÁVIO – Bons tempos aqueles...
VIANNA – Meu avô deve ter dito isso. Meu pai também. Nossos filhos
provavelmente irão dizer, que merda de mundo vocês nos deixaram. Porque
a culpa é nossa mesmo. Só que, como dizia um amigo meu, no bonde da
História, nunca sente no banco que viaja de costas.
OTÁVIO – Porra, Vianna, a gente agitou, a gente sonhou... a gente fez
coisas! Ou você tem dúvidas? Eu confesso que tenho.
VIANNA – Se você tem dúvidas, é porque está vivo. É bom, é ótimo ter
dúvidas. Duvide sempre. Não acredite em nada sem duvidar um pouco. As
pessoas que têm certeza de tudo nunca são confiáveis. Vai fundo,
companheiro. Dê um abraço na turma.
Vianninha desaparece. Muda a luz. (GOMES, 1989, p. 94-95.)

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Neste trecho aparece a ideia de aquela geração, da qual Otávio fez parte, lutou, correu atrás
de seus ideais, não escreveu sua história da forma que desejaram, que lutaram, o que
levara o protagonista a fazer indagações, refletir sobre o passado, o presente e as
possibilidades de futuro.

O dramaturgo fictício reflete sobre o mundo em que está vivendo, sobre os novos
padrões, sobre as certezas inabaláveis que caíram por terra. O teatrólogo questiona-se:

OTÁVIO – Será que só eu sou assim? Você. Você não tem dúvidas?
Ninguém tem dúvidas? Todo mundo sabe para onde ir, o que fazer, por que
lutar? Será que todo mundo acorda de manhã, escova os dentes, sai de
casa, sabendo exatamente como ocupar o resto do dia de uma maneira que
dê sentido à sua vida? Houve um tempo em que eu sabia, sim. O mundo
era dividido em dois, preto e branco. Nada de semitons. Os que queriam
mudar tudo e os que não queriam mudar porra nenhuma, Uma linha clara
demarcando os dois campos. Ou se estava de um lado ou se estava do
outro. E o sentido da História nos parecia cristalino. Tínhamos grandes
causas, grandes bandeiras. A campanha do petróleo... a luta pela paz... as
Ligas Camponesas... o CPC... a luta contra a ditadura.(GOMES, 1989, p.
16.)

Dias Gomes fala, em alguns trechos da peça, sobre a situação vivida no país, como
a questão econômica, as altas e as constantes mudanças nos preços dos produtos; trata da
questão do crescimento da violência, da necessidade de segurança privada, dos assaltos,
etc.. O país é, para Otávio,

um trânsito muito louco, um país muito louco, ninguém respeita sinais, mão
e contramão... “proibido estacionar”... “proibido ultrapassar”... “proibido
dobrar à esquerda”... “proibido matar índios”... “proibido derrubar árvores”...
“velocidade máxima de 60 quilômetros”... inflação: mil por cento ao ano!
Onde vou aplicar meu dinheiro? Bolsa, dólar, overnaite... Para onde vai este
país e para onde vamos todos nós? Roleta-russa! (GOMES, 1989, p. 84)
A juventude daquele período era desengajada, não lutava por seus ideais, por suas
opções, sendo alienada em relação à condição política do país, do mundo, e da sua própria
situação. Essa falta de engajamento aparece bem no trecho em que há o diálogo entre pai e
filho:

[...]
TAVINHO – Acho que é por sua posição política meio babaca.
OTÁVIO – Babaca?
TAVINHO – Isso de engajamento. Já era.
OTÁVIO – Engajamento não é sectarismo político, maniqueísmo ideológico,
realismo socialista, essas bobagens. Nunca embarquei nessa. Mesmo
quando militava no Partido, sempre preservei a minha liberdade de criação.
Nunca submeti uma peça minha à apreciação de qualquer Comitê. Sempre
8
fui um indisciplinado e me orgulho disso . E hoje sou um livre-atirador.

8
Dias Gomes sempre disse em entrevistas e em sua autobiografia que o Partido Comunista

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TAVINHO – E por que você precisa ser atirador? Atirar em quê? Por quê?
Pra que?
OTÁVIO – Porque do contrário não tem sentido... Tudo passa a ser inócuo.
TAVINHO – Atira pro alto, velho.
OTÁVIO – Isso é alienação.
TAVINHO – É... Alienação é o grande barato do pós-moderno. Para com
essa babaquice de querer retratar o mundo, conscientizar pessoas, teatro
social, esse troço. Isso é papo dos anos 60, quando vocês pensavam que
iam mudar tudo. Não mudaram porra nenhuma. Ninguém mais tem saco pra
isso.
OTÁVIO – (Profundamente chocado.) Me deixa olhar bem pra você... Sabe
que às vezes custo a acreditar que você seja meu filho?
TAVINHO – Isso é problema teu lá com a velha... (Sai.) (GOMES, 1989, p.
85-86)

Está claro ao leitor – e expectador – de Meu Reino por um Cavalo que Otávio
Santarrita não se identifica com os padrões e modelos atuais, com o que ele considera
alienação e desengajamento, com a falta de objetivos, de motivos para lutar. O dramaturgo
não compreende mais o teatro, ele já não é mais como conhecia, é sem engajamento, não
busca mostrar a realidade nem transformar o mundo, o país, a sociedade. Para ele o “nosso
mundo atual já não se ajusta ao drama, então o drama já não se ajusta ao mundo. Foi
Brecht quem disse isso, ou algo parecido. É preciso ajustar o teatro ao mundo, dando a ele
a dimensão do nosso tempo” (GOMES, 1989, p. 28).

Um dos grandes motes deste texto era a tentativa de Dias Gomes – e Otávio
Santarrita – de se adaptar a nova realidade do país, do mundo e do teatro. Em 1985, havia
se encerrado o governo militar que havia ficado vinte e um anos no poder; o país estava em
um processo de redemocratização. Em 1988, ano em Dias Gomes escreveu a peça, essa
nova democracia estava consolidando-se, a nova constituição saia do papel, e o povo
estava aprendo a lidar com as mudanças políticas e sociais que vinham ocorrendo. Para os
dois teatrólogos – tanto o da ficção, quanto o real – que vinham de certezas e lutas nos anos
de 1950, 1960, e 1970, aqueles anos de 1980 estavam recheados de incertezas e poucas
resoluções. Dias Gomes afirmou, em sua autobiografia, que sua personagem estava
baleada pela confusão ideológica do final do século XX (GOMES, 1989, p. 344.), assim
como o autor de Roque Santeiro estava.

Brasileiro, do qual fazia parte, nem nenhum de seus Comitês culturais o havia obrigado a escrever
sobre nenhum tema, censurado ou vetado nenhuma de suas peças. Sobre ser um indisciplinado,
também é uma referência constante quando fala sobre sua trajetória de vida, tanto que o título de sua
autobiografia é Apenas um Subversivo. Segundo o próprio, “em disciplina deixava muito a desejar,
como sempre, já que a rebeldia se afirmava como traço marcante de meu caráter”. (GOMES, 1998, p.
31.)

ISBN: 978-85-62707-55-1
32 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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As duas últimas décadas da vida de Dias Gomes, sua produção artística foi
desenvolvida em um ritmo menos intenso. A queda de sua produção ocorreu paralelamente
ao final do governo dos militares; ao processo de redemocratização; ao fim da chamada
“grande família comunista” 9. Houve, para o autor e outros que compartilhavam as mesmas
ideias, a perda das bases políticas, sociais e econômicas do projeto comunista internacional
e com o fim do PCB; além do aparecimento de novos atores políticos, sociais e intelectuais,
entre outras questões.

Após ter entrado para a Rede Globo no ano de 196910 e ter criado, durante a década
de 1970, alguns de seus maiores sucessos televisivos, como o Bem Amado e Saramandaia,
tendo se afastado por alguns anos da cena teatral, voltou a escrever peças em 1977 (As
Primícias), nos anos de 1980 a produção do dramaturgo foi arrefecendo. Naquele período,
em que já era um reconhecido e badalado autor de telenovelas, decidiu por questões
pessoais e pela doença e morte de sua esposa Janete Clair, distanciar-se das telenovelas,
com exceção das produções de Roque Santeiro e Mandala. Em inícios de 1980 lançou uma
série baseada em sua novela O Bem Amado, tendo sido refúgio para aquele período
conturbado.

Em 1988 também adaptou O Pagador de Promessas à tevê11, sofrendo censura


econômica por parte da emissora. Foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1991,
voltando, um ano depois, à televisão com Ferreira Gullar, quando escreveu a série As
Noivas de Copacabana. Em 1993 lançou o livro Derrocada e em 1995 levou às telas da
televisão a polêmica minissérie Decadência, que também tornou-se livro. Em 1996,
novamente com a colaboração de Ferreira Gullar, escreveu a mininovela O Fim do Mundo.
Adaptou para a televisão em 1997, o livro Dona Flor e seus Dois Maridos de seu amigo
Jorge Amado, novamente com Ferreira Gullar e Marcílio Moraes. Veio a falecer em um
acidente automobilístico dois anos depois.

Nos anos de 1980 e 1990, a militância política e a crítica ao governo foram


gradativamente perdendo espaço, fazendo com que os intelectuais e artistas atuantes nos
anos de 1950, 1960 e 1970, procurassem adaptar-se as transformações, a nova realidade
que abria-se para eles. Antes e durante a ditadura militar, a principal matéria-prima de Dias

9
Este termo foi cunhado por Marcelo Ridenti em seu livro Em Busca do Povo Brasileiro. O autor
considera que esta “grande família comunista” foi um grupo de intelectuais e artistas que pensou e
produziu, ao longo de várias décadas, especialmente os anos de 1950, 1960 e 1970, para um
determinado Brasil e utilizou a arte para tal produção. (RIDENTI, 2000.)
10
Segundo ele, dois motivos o levaram a aceitar a proposta de trabalho na Globo, emissora
identificada com o governo militar e que sofria duras críticas por parte de seus pares: a sua situação
econômica e a oferta de uma “uma plateia verdadeiramente popular” (GOMES, 1998, p. 255-256.)
11
Dias Gomes adaptou um bom número de suas peças para a televisão, como O Berço do Herói, que
se tornou Roque Santeiro, O Bem Amado, O Pagador de Promessas, entre outras.

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33 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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Gomes era a análise crítica da política, das questões sociais, do governo. Com o fim do
regime, a volta da democracia, o fim do Partido Comunista, a queda do muro de Berlim,
entre outros fatores, houve, para o dramaturgo e outros artistas, a necessidade de habituar-
se aos novos desafios apresentados por aquele contexto.

A geração de Dias Gomes, ligada à esquerda, a uma proposta de teatro engajado,


acreditava ser responsável pela construção da nação, estando à ideia de nação e de povo
indissociáveis, além de crerem que era a população brasileira quem garantiria a unidade
nacional. Para além, consideravam-se intérpretes das massas populares e precisavam
auxiliá-las na tomada de consciência de sua vocação revolucionária. Eram os criadores de
um projeto que tinha como objetivo a emancipação das classes populares e o
desenvolvimento econômico (PECÁUT, 1990).

Para além, temos que pensar a relação entre esta produção e o que se objetiva
passar a posteridade. Como afirma Pierre Laborie (2009, p. 92) em suas discussões acerca
da questão da memória, “cada memória social transmite ao presente uma das múltiplas
representações do passado que ela quer testemunhar. Entre diversos outros fatores, ela se
constrói sob influência dos códigos e das preocupações do presente, por vezes mesmo em
função dos fins do presente”. Mais do que isso, a memória acaba por afetar a construção de
opiniões e de visões posteriores do passado, que é estabelecido por conta de apreensões,
percepções, intenções, etc., vindas do presente. A memória surge através de múltiplas
representações do passado, acabando por ser exacerbada, com sua natureza militante e
justiceira, “ainda mais quando ela se faz portadora de questões ou mesmo de reivindicações
identitárias, leva a raciocinar sobre o passado em função unicamente de fins do presente”
(LABORIE, 2009, p. 94).

Dias Gomes escreve suas peças e obras literárias, utilizando-se da ficção e das
experiências que estavam ocorrendo em um determinado momento para representar a
realidade, mas também é influenciado por pensamentos e códigos que derivam do passado.
Não é a toa que em Meu Reino por um Cavalo, a geração de Otávio era militante, engajada,
que lutava por seus objetivos, por um teatro engajado, enquanto a geração de seus filhos,
ou melhor, a imagem que ele tem de Tavinho, Soninha e da juventude em fins dos anos de
1980, é de alienação, desengajamento, de desinteresse sobre os rumos do país, da política,
da sociedade. É interessante observar a visão do autor, através de suas personagens, sobre
a geração que nasceu e começava a crescer e amadurecer após o fim do governo dos
militares. Se sua geração lutou, enfrentando as pressões políticas e muitas vezes físicas de
um regime de exceção em busca de seus objetivos, a geração de seus filhos, que vivia as

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34 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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vésperas do novo milênio já não tinha pelo que lutar, pelo que combater, sem empenhar-se
– talvez vocação para tal – na luta por seus objetivos.

Para Ênio Silveira, amigo e editor de várias peças do teatrólogo, e que escreveu a
orelha da peça, Meu Reino por um Cavalo é uma comédia que reflete sobre como nossos
valores, muitas vezes considerados irrefutáveis, podem ser relativos. Senso assim, Dias
Gomes era coerente com os propósitos que fizeram escrever esta obra, como

a repulsa a ortodoxia uniformizada e o desejo de afastar-se um pouco das


limitações duma objetividade “realista”, MEU REINO POR UM CAVALO é
como que uma metralhadora giratória atingindo vários alvos com uma só
rajada: a conformidade burguesa, a rigidez estrutural do teatro
convencional, os arquétipos sociais e individuais do bom comportamento
preconcebido.

Em suma: Dias Gomes quis sentir-se livre de todas as malhas em que se


achava envolvido para reencetar, em plena liberdade de movimentos, sua
busca de linguagem inovadora – e provocadora – para a sua já famosa
dramaturgia. (GOMES, 1989)

Antonio Mercado era partidário da mesma ideia que Ênio Silveira e destacava que as
fórmulas consagradas e os valores absolutos não eram mais realidade, estando em falência.
Reforçava que

o protagonista desta peça é um autor que, em muitos aspectos, traz as


impressões genéticas de seu colega e criador, o também dramaturgo Dias
Gomes, capaz de utilizar magistralmente a ironia, o humor e a sátira para
discutir os temas mais candentes e relevantes sem aborrecer as plateias.
Como Dias, Otávio jamais abdica da autocrítica ferina e sarcástica, mesmo
nos mais graves momentos de crise. E como Otávio – um materialista
histórico “ecumênico e sensual”, indisciplinado e rebelde – Dias Gomes
reafirma neste texto a sua fé no teatro e na capacidade de autossuperação
do homem. Criador e criatura são dois livre-atiradores que compartilham as
mesmas perplexidades, as mesmas inquietações e a mesma energia
criadora na tentativa brechtiana de adequar o teatro ao mundo. Para dar-lhe
a dimensão do nosso tempo. Do contrário, a arte para eles seria inócua e a
ação humana desprovida de sentido. (GOMES, 1989, p. 8-9)

As duas últimas décadas do século XX foram marcadas por diversas transformações


no cenário político e mundial. Essas mudanças foram sentidas por Dias Gomes e por uma
geração de artistas e intelectuais, no Brasil e fora deles, ligados à esquerda, a uma arte
engajada, a luta por ideais políticos e ideológicos. Para o dramaturgo e seus iguais, havia o
sentimento de estar passando por uma crise ética e política, que contribuía para modificar a
percepção do mundo e de seu trabalho.

Dessa forma, a maneira que percebia e analisava o país e o mundo em


transformação estão presentes em suas obras dos anos de 1980 e 1990. O processo de
abertura da ditadura militar até a redemocratização do país, passando pelo governo do
General Figueiredo; pelas Diretas Já; pela euforia da eleição de Tancredo Neves e a

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decepção com sua morte; pelo governo de José Sarney; pela eleição, mandato e
impechamant de Fernando Collor e a subida a presidência do seu vice, Itamar Franco; e
pela eleição e reeleição de Fernando Henrique Cardoso, acabam sendo inspiração e estão
representadas em suas peças e projetos televisivos. No plano mundial, a crise do
comunismo internacional, o fim da URSS, a queda do muro de Berlim, também
influenciaram nas suas produções.

Meu Reino por um Cavalo, apesar de seu final – Otávio Santarrita finalmente
consegue escrever sua peça, acabando com sua crise criativa, e se separando da mulher,
ficando com sua amante – é uma obra pessimista com uma conclusão satisfatória. Há, em
seu fim, um sinal de esperança para Otávio e para Dias Gomes. Em outras de suas
produções posteriores, esse tom pessimista ganhará destaque novamente, como na obra
Derrocada, na minissérie e, posteriormente, livro, Decadência. Em 1995, em entrevista ao
programa Roda Viva, o dramaturgo reafirma que a dramaturgia, e as outras artes, estavam
em crise, que provavelmente só passaria no início do século XXI. Para ele, vivíamos “um fim
de século, um característico fim de século, em que realmente não há nada. Nós esperamos
que vá acontecer alguma coisa, e certamente irá acontecer” (GOMES, 2012, p. 152.).
Aquele fim de século, para o novelista, decadência era a palavra que melhor definia o
momento histórico brasileiro e mundial; ela era ética, estava ligada a economia, às artes, e
etc.. Afinal, aquele era um característico momento de transição.

Referências

DELGADO, Lucilia A. Neves & Ferreira, Jorge Luiz (horas.). O Brasil Republicano: o Tempo
da Ditadura. Rio de Janeiro: Editora Civilização brasileira, 2003, v. 4.

GOMES, Dias. Apenas Um Subversivo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

___________ . Meu Reino por um Cavalo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

GOMES, Luana Dias; GOMES, Mayra Dias (org.). Dias Gomes. Rio de Janeiro: Beco do
Azougue, 2012.

LABORIE, Pierre. “Memória e Opinião”. In: AZEVEDO, Cecília; BICALHO, Maria Fernanda
Baptista; KNAUSS, Paulo; QUADRAT, Samantha Viz; ROLLEMBERG, Denise. Cultura
Política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009.

RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV.
Rio de Janeiro: Record, 2000.

PÉCAULT, Daniel. Os Intelectuais e a Política no Brasil. São Paulo: Ática, 1990.

ISBN: 978-85-62707-55-1
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A “revolução” não será comemorada: horizonte de expectativa e as políticas de


memória da grande imprensa brasileira frente ao contexto dos 50 anos do golpe

André Bonsanto DIAS


Doutorando em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
andrebonsanto@hotmail.com

A questão da memória e de como o passado nos chega ao presente é questão


extremamente crucial para pensarmos como as práticas comunicacionais se inserem na
sempre conturbada relação que envolve discursos e temporalidades. Somos
contemporâneos de uma fase em que impera uma suposta “cultura da memória”
(HUYSSEN, 2000). Sintoma evidente de um caráter político intrínseco às práticas e
processos comunicacionais que ganham contornos mais claros neste momento atual. A
intensificação desta problemática na sociedade contemporânea se deve ao fato de que,
cada vez mais, há uma grande potencialização de discussão pública e política referente à
questão do lembrar que é perpassado pelo campo midiático. Nesses embates pela
legitimação da memória e do esquecimento as mídias ocupam lugar fundamental e
privilegiado, sendo um dos principais agentes que conferem “memorabilidade” aos fatos. O
presente, como discurso máximo do jornalismo, nunca esteve tão repleto de sentidos
passados.

. Presenciamos recentemente, com as repercussões do trabalho da Comissão


Nacional da Verdade e as efemérides dos 50 anos do golpe militar no Brasil, as
rememorações chegando ao limite da exaustão. Praticamente todos os grandes órgãos de
imprensa editaram edições especiais referentes ao golpe e a ditadura. Pauta, obviamente,
alavancada pelos inúmeros debates em universidades, passeatas e manifestações públicas,
programas de televisão, documentários, lançamentos de livros que recolocaram à cena
pública discussões que já haviam ganhado força latente em nossa sociedade nos últimos
anos. Como bem observou Marly Motta (2014), 1964 nunca esteve tão próximo a nós. Bem
mais perto agora, cinqüenta anos depois, do que em 1974, por exemplo, na época da
primeira comemoração “redonda” do golpe. Evidenciando que não é o distanciamento
temporal o fundamental legitimador das questões de memória, mas sim as suas articulações
políticas no e para o presente.

Partindo dos conceitos de Koselleck (2006) e suas reflexões sobre a “semântica dos
tempos históricos” o que este estudo pretende analisar é, em uma espécie de prelúdio às
comemorações do golpe, como a grande imprensa escrita de nosso país acabou por
instaurar certo “horizonte de expectativa” frente às efemérides. A forma como estas
empresas vêm se utilizando do passado para legitimar acontecimentos no presente são,
infere-se aqui, pensados a partir de estratégias que, muitas vezes, podem acarretar em

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37 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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certo “abuso” e “manipulação” da memória, (Ricoeur, 2007) visando estritamente a objetivos


atuais e particulares. A questão será problematizar de que forma o passado vem sendo
utilizado nos textos da imprensa em um embate em que muitas vezes se confundem
memória e opinião. A forma como a legitimação da Comissão Nacional da Verdade e as
comemorações do golpe de 1964 serão inscritas na imprensa vão ser fundamentais para
entender como determinada forma de passado será (ou gostaria de ser) entendida e
interpretada pela sociedade. Aqui percorreremos um caminho inicial, delineando alguns
horizontes que nos surgem ainda como interrogações, como veremos.

As batalhas de memória sobre o regime militar: uma memória “liberal”?


Apesar de ambígua e extremamente conflituosa, fica cada vez mais evidente como
vem se articulando os espaços por negociação de uma “verdade” histórica referente ao
período da ditadura militar em nosso país. Se, em um primeiro momento, optou-se pelo
esquecimento sobre aqueles anos, o que vemos hoje é algo como, inversamente, uma
espécie de “dever” de lembrança como política de memória. Hoje, a distância parece
confortar, permitindo olhar o passado sob outras perspectivas.

Em um momento de constante revisão política de nosso passado, - impulsionado


pelos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade - ninguém mais se sente,
aparentemente, confortável em defender uma situação já não mais hegemônica em nossas
políticas de memória. Este fato é problematizado há um bom tempo pela historiografia, mas,
segundo o historiador Daniel Aarão Reis (2004), uma “orientação de hostilidade à ditadura”
se torna hegemônica apenas com as comemorações dos 30 anos do golpe militar, em fins
do século passado. Os vencidos de então foram celebrados, condenando os poderosos que
comandavam o país pelos crimes e torturas e revelando uma arquitetura praticamente
simplificada da memória coletiva. A ditadura é então agora vista como um “tempo das
trevas”, um “fantasma do passado”. “Os militares, estigmatizados gorilas, culpados únicos
pela ignomínia do arbítrio. A ditadura, quem apoiou? Muito poucos, raríssimos, nela se
reconhecem ou com ela desejam ainda se identificar. Ao contrário, como se viu, todos
resistiram.” (AARÃO REIS, 2004, p. 50).

Esta versão, um pouco simplificada dos acontecimentos do passado é, para o


historiador, uma “incômoda” memória que serviu, inclusive, como álibi para muitos atores
que passaram a compactuar desta conjuntura e, sob uma espécie de apagamento dos
rastros do passado, afirmá-la no presente. Assim, como ocorre em muitos casos envolvendo
histórias ditas “traumáticas”, empreende-se uma alternativa de demonizar a ditadura,
celebrando incondicionalmente os valores democráticos. A ditadura apareceria como uma
força estranha e externa, como uma “chapa de metal pesado”, sufocando idéias e atitudes

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daqueles que aspiravam liberdade. Escolheu-se desta forma outro caminho, “mais tranqüilo
e seguro, avaliado politicamente mais eficaz, o de valorizar versões memoriais
apaziguadoras onde todos possam encontrar um lugar.” (AARÃO REIS, 2014, p. 7)

Interpretações do passado que se tornam hegemônicas principalmente nos discursos


memorialistas e nas opiniões da grande imprensa. Em suma, estas lembranças acabam por
suprimir aquelas não sintonizadas com a ideia do “apaziguamento” ou “reconciliação” e que,
em certo sentido, buscam necessariamente um esquecimento pelo viés simplificador da
memória. Uma memória que, compactuando com as problematizações de Marcos
Napolitano (2014), poderia ser denominada de memória “liberal”. Aquela que tende a
privilegiar a estabilidade institucional, criticando posições mais radicais. Aquela que condena
o regime, mas relativiza o golpe; que é porta-voz de um discurso de baluarte da democracia
e de repúdio à ditadura. É uma memória que condena os excessos, de ambos os lados,
contrária a punição dos agentes que cometeram crimes na ditadura e à revisão da Lei da
Anistia – o dito “revanchismo” -, para nos atermos a alguns exemplos mais práticos.

Mas a busca de reconciliação pela memória “liberal” não se daria mais a partir do
esquecimento. Pelo contrário, é preciso que se lembre. Que se lembre para que não mais
aconteça. Para que, enfim, os erros do passado possam ser apreendidos e aprendidos por
uma lembrança daquele sombrio regime ditatorial. É preciso que, na balança conciliatória da
memória, a lembrança se dê por uma política que exuma o peso dos rastros conflituosos. No
entanto, por mais que estas memórias sejam hegemônicas, existe uma série de outras,
subterrâneas, que caminham à margem, clamando por legitimação. Vide, por exemplo, as
diversas manifestações desencadeadas em decorrência das efemérides dos 50 anos do
golpe, muitas favoráveis a uma nova intervenção militar, que chegou inclusive a desenterrar
a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, notória manifestação conservadora em
1964. A própria imprensa, em geral, cede espaço para articulistas que defendem este viés
de interpretação do passado, apesar de que, em muitos casos, são contundentemente
criticados e até ridicularizados, como que portadores de uma espécie de memória
anacrônica e desvirtuada.1

Há, portanto, lutas nesta arena da memória e a imprensa não passa ilesa às críticas
enquanto detentora de uma suposta memória “liberal”. Ao mesmo tempo em que entra em
disputa a busca por uma “verdade” histórica, é preciso considerar que este passado é
muitas vezes rememorado de forma seletiva, visando, sobretudo, um caráter conciliador da

1
A volta da Marcha da Família foi amplamente divulgada pela imprensa, muitas vezes de forma
irônica, como na coluna “Marcha a ré” de Ruy Castro, publicada na Folha em 19 de março de 2014.
Disponível em: www1.folha.uol.com.br/colunas/ruycastro/2014/03/1427499-marcha-a-re.shtml Acesso
em: 3 de abril de 2014.

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memória pautado em objetivos particulares. Essas críticas são geralmente partilhadas por
agentes da mídia alternativa, historiadores e pesquisadores que, em vários momentos,
ganham espaço na própria grande imprensa para partilhar suas opiniões, muitas vezes
conflituosas entre si. Este constante embate de memórias conturba o processo de
reconfiguração do passado, uma vez que amplia a complexidade do processo de
apaziguamento dos rastros memoriais, refutando um pouco a tese, muito difundida hoje
pelos grandes órgãos de imprensa, - apesar da mea culpa já assumida por alguns deles,
como veremos adiante, - ao assumirem-se como grandes protagonistas da resistência e da
democracia em um período de trevas em que, quando não agiam, era porque nada poderia
ser feito para enfrentar as garras de um regime truculento e opressor.2
Versão atualmente refutada de forma contundente como podemos observar, por
exemplo, no recente livro publicado pelo jornalista e professor da PUC-RS Juremir Machado
da Silva. Sua obra “1964: o golpe midiático-civil-militar” é enfática em denunciar o apoio de
praticamente toda grande imprensa à deflagração do golpe que depôs Goulart e que,
posteriormente, atuou em um sutil e bem articulado trabalho de apagamento dos rastros:

O conservadorismo e o golpismo estão no DNA da mídia brasileira. Sempre


disfarçados de radical defesa da Constituição, da legalidade e da
democracia. Depois do estrago feito, os jornalistas sempre encontraram um
jeito de saltar do barco, de inverter o jogo e de reassumir os bons papéis.
Na hora do aperto, a leviandade serve de álibi e de provocação. [...] Alguns
arrependimentos viriam logo e serviriam depois para narrativas de
autoglorificação. Outros, contudo, jamais lamentariam. Ninguém, que se
saiba, pediu desculpas. Apostaram no esquecimento. Afinal, o jornal de
ontem só serve para enrolar peixe. O tempo de desencavar o passado, no
entanto, acaba por chegar desenterrando equívocos e expondo vísceras
ideológicas. (SILVA, 2014, p. 54-55)

Em um campo mais estritamente político, temos o notório caso do grupo “A verdade


sufocada” 3, que busca refutar a hegemonia das ditas memórias de esquerda e pela versão
“imposta” pelos meios de comunicação social, principalmente agora, em tempos de
Comissão Nacional da Verdade. O site em questão tem como um dos objetivos divulgar a
obra intitulada “A verdade sufocada: a história que a esquerda não quer que o Brasil
conheça” (2006). Em sua nona edição, o livro, escrito pelo coronel reformado do Exército
brasileiro Carlos Alberto Brilhante Ustra se coloca como uma resposta ao projeto do governo

2
Ver, por exemplo, entrevista recente de Carlos Heitor Cony à revista Veja: “Tem muita mistificação.
Muita gente que ficou dentro do armário, debaixo da cama, e hoje é vendida na televisão como herói
da resistência. Não houve essa resistência toda, pelo contrario. A turma toda aceitou o golpe ou ficou
em cima do muro.” Disponível em: http://veja.abril.com.br/blog/meus-livros/entrevista/muita-gente-
ficou-dentro-do-armario-e-hoje-e-vendida-como-heroi-da-resistencia-diz-carlos-heitor-cony/ Acesso
em: 1 de abril de 2014.
3
www.averdadesufocada.com

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“Memórias Reveladas”4 e ao livro “Direito à Memória e à Verdade” (2007), publicado pela


Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República do governo Lula, que
impulsionou consideravelmente o acesso aos arquivos secretos da ditadura. A sinopse de “A
verdade sufocada” deixa claro como estão postos os embates entre memórias que aqui
estamos procurando problematizar:

A obra desfaz mitos, farsas e mentiras divulgadas pelos derrotados para


manipular a opinião pública e para desacreditar e desmoralizar aqueles que
os venceram. […] Realmente é uma história que muitos não querem que o
Brasil conheça. É verdade que alguns setores não querem difundi-la. Ainda
continuam tentando sufocá-la. Poucas livrarias se dispuseram a vender o
livro. Algumas vendem, mas não o expõem nas vitrines. É um livro que
incomoda, porque traz à luz a verdadeira história dos “heróis” cultuados
hoje, de seus atos terroristas, de seus crimes e das organizações a que
5
pertenciam.

Desta forma, defendemos aqui a posição de que a memória é relacionada sempre a


partir de um contexto, de um presente particular onde, dialogicamente, disputam estratégias
e negociam-se sentidos. Para o sociólogo Nilson Alves de Moraes (2005), toda memória
social se articula na perspectiva de uma disputa “em que algumas idéias, estratégias e
sentidos são permitidos, enquanto outros são omitidos, silenciados, ocultos ou
manipulados.” (MORAES, 2005, p. 96). Assim, a memória se constitui como poder e luta
pela imposição de determinada hegemonia. Já sua eficácia, depende das formas, usos e
apropriações de controle da memória social, papel desempenhado hoje com grande
protagonismo por nossas mídias. Pois, como afirma o pesquisador Roger Silverstone
(2002), a memória é um objeto “para ser fixado e investigado, desafiado e analisado”, é um
lugar de lutas “amargas” em que em um passado pretende “ser reivindicado para o presente
e o presente ser reivindicado para o futuro. Mas que passado, e de quem?”
(SILVERESTONE, 2002, p. 231)

A imprensa e sua “liberal” política de memória: entre lembranças e esquecimentos.


É sob este panorama crítico dos embates pela legitimação das memórias que a
imprensa se posiciona neste momento. Podemos pontuar aqui a título de exemplificação
dois editoriais publicados no momento de implementação da Comissão Nacional da
Verdade, em maio de 2012 e que evidenciam de forma clara o caráter “liberal” assumido por

4
www.memoriasreveladas.arquivonacional.gov.br
5
Disponível em:
www.averdadesufocada.com/index.php?option=com_content&task=view&id=5&Itemid=6 Acesso em
04 Abril 2014.

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dois dos principais órgãos da grande imprensa de nosso país. Em 16 de maio, editorial da
Folha de S. Paulo pede “mais luz” afirmando que a Comissão, ao buscar analisar os crimes
precisa “transcender debate viciado sobre revanchismo e reforçar o valor dos fatos contra
toda forma de obscurantismo.”6 O editorial mostra-se cético, ao afirmar que antes mesmo de
empossada, a Comissão já estava envolta em polêmicas, o que atestava a “impropriedade”
de seu nome. De acordo com o jornal, não será possível excluir da análise os casos de
crimes cometidos pelas esquerdas, que lutando contra o regime, vitimaram inocentes. Ao
final, afirmava: “duvidoso que a comissão consiga produzir grandes revelações. No quarto
de século transcorrido, muita documentação já veio à luz, e o que não veio pode estar
perdido.” 7

Já O Globo, em editorial publicado no mesmo dia, é mais enfático quanto


suas proposições ao discernir sobre “o que se espera da Comissão Nacional da Verdade.”
Para o jornal, a proposta da Comissão, em si, já é um grande avanço parra um regime
democrático aperfeiçoar suas idéias, mas que, salvo observação, esta não se dê sobre uma
visão revanchista, que segundo a empresa, vem contaminando a proposta por alguns
órgãos do governo. Mas, de acordo com o editorial, este não seria problema maior, uma vez
que o revanchismo jamais teve validade jurídica. Defendido pela Leia da Anistia de 1979 e,
mais recentemente, respaldado pela decisão do Supremo Tribunal Federal, “a questão da
punição deixou, de uma vez por todas, de fazer sentido.” 8

É este o teor sob o qual se posiciona a imprensa de nosso país, ao carregar e


propagar um forte caráter “liberal” das memórias: contrária à ditadura, mas ao mesmo tempo
contra todas as formas de radicalizações e revanchismos que poderiam desvirtuar-se no
presente. A Comissão, sintoma da maturidade política de nosso país deverá, segundo os
jornais, ser feita então sem violência e na base da legalidade.9 Discurso muito próximo, vale
lembrar, assumido por estes mesmos órgãos na defesa dos preceitos “democráticos” em
março de 1964. É preciso investigar, portanto, como esse passado nos chega ao presente e
sob quais conjunturas. O forte teor celebrativo do passado, presenciado nos últimos anos
com a proximidade das efemérides máximas dos 50 anos do golpe caminha,
coincidentemente, a políticas particulares de construção de identidades históricas em alguns

6
MAIS LUZ. Folha de S. Paulo, ano 92, nº 30.359, p. A2, 16 de maio de 2012.
7
Idem.
8
O QUE SE ESPERA da Comissão da Verdade. O Globo, ano LXXXVII, n º 28.772, p. 6, 16 de maio
de 2012.
9
Em editorial recente, O Globo posicionou-se mais uma vez de forma contrária à revisão da Lei de
Anistia ao afirmar que esta tem “legitimidade política e histórica”. Para o jornal, a discussão a respeito
de sua revogação “não se sustenta, mas que, infelizmente, ainda alimenta tentativas de uma revisão
tão impossível quanto indesejada. [...] E é indesejada porque o Brasil hoje é uma nação pacificada,
em plena democracia.” (ANISTIA tem legitimidade política e histórica. O Globo, ano LXXXIX, n º
29.45, p. 16, 2 de abril de 2014.

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órgãos de nossa imprensa. Se nos atermos no caso da grande imprensa escrita, foco de
nossa discussão, podemos situar como marco o exemplo pioneiro e aparentemente trivial da
Folha de S. Paulo que, ao completar 90 anos, em 2011, digitalizou todo seu acervo para
consulta10. O Estado de S. Paulo11, em maio de 2012 e O Globo, em 2013, também se
utilizaram da mesma política 12.

Acredita-se que estas ações, muito mais do que realizar um trabalho memorialístico,
tem o evidente interesse de construir uma história particular para os referidos periódicos,
com objetivos estritamente político-identitários levando em conta as situações atuais. Com a
proximidade das “comemorações” dos 50 anos do golpe civil-militar no Brasil e as
investigações da Comissão Nacional da Verdade há, supõe-se aqui, a articulação de uma
política de memória clara desses jornais, buscando um desvencilhamento de seu passado
político de apoio ao regime militar. A disponibilização – por parte das próprias empresas - de
toda sua trajetória em um simples clique, para qualquer leitor interessado, evidencia que
suas histórias e identidades podem ser postas à prova a qualquer momento e já não é mais
possível uma tática de apagamento dos rastros deste passado. A preocupação agora é de
uma apropriação seletiva destas lembranças, visando objetivos atuais e particulares.

Derrida (2001), em suas “impressões freudianas” sobre os arquivos acredita que,


enquanto impressão e local de estocagem e conservação os arquivos não atuariam apenas
como um conteúdo “arquivável” do passado, mas também como penhores do futuro. “O
arquivamento tanto produz quanto registra o evento. É também nossa experiência política
dos meios chamados de informação.” (DERRIDA, 2001, p. 29). Portanto, a implementação e
utilização de um arquivo surge enquanto uma experiência bastante peculiar de “promessa”
de futuro. “Trata-se do futuro, a própria questão do futuro, a questão de uma resposta, de
uma promessa e de uma responsabilidade para amanhã. O arquivo, se queremos saber o
que isto teria querido dizer, nós só o saberemos num tempo por vir.” (DERRIDA, 2001, p.
50-51)

Assim, a forma como estas empresas midiáticas vêm articulando sua relação com o
passado ganha outros contornos, pautadas sob demandas conjunturais. Na Folha, o caso
da ditabranda, polêmico editorial publicado pelo jornal em 2009 e que repercute –
negativamente - até hoje, gerou uma série de manifestações a respeito dos usos políticos do
passado na imprensa e de como este processo de uso e apropriação da memória coletiva
caminha intrínseca e ambiguamente relacionado à construção da identidade de seus

10
http://acervo.folha.com.br/
11
http://acervo.estadao.com.br/
12
http://acervo.oglobo.globo.com/

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13
discursos. No Estado de S. Paulo, a morte de Ruy Mesquita, então diretor da empresa,
em maio de 2013, evidenciou, em vários textos, um exacerbado discurso de autodefesa
pelos princípios da “liberdade democrática” de cunho fortemente político.14 E mais
recentemente presenciou-se o caso emblemático de O Globo que, em uma atitude até então
inédita na grande imprensa de nosso país, procurou efetivar uma autocrítica em relação ao
seu apoio ao golpe militar de 1964.

O editorial de O Globo, publicado no último dia 31 de agosto, afirma que esta


autocrítica surge de uma ampla e antiga discussão interna da empresa, que veio à tona
devido ao “clamor das ruas” das recentes manifestações populares de junho passado.
Momento oportuno, afirmou o jornal, para evidenciar seu “incondicional e perene apego aos
valores democráticos”. A lembrança de apoio ao golpe fora sempre um “incomodo” para o
jornal, mas agora, fazendo parte da “história”, não havia mais como refutá-la. O texto, ao
final, justifica-se:

Contextos históricos são necessários na análise do posicionamento de


pessoas e instituições, mais ainda em rupturas institucionais. A História não
é apenas uma descrição de fatos, que se sucedem uns aos outros. Ela é o
mais poderoso instrumento de que o homem dispõe para seguir com
segurança rumo ao futuro: aprende-se com os erros cometidos e se
enriquece ao reconhecê-los. Os homens e as instituições que viveram 1964
são, há muito, História, e devem ser entendidos nessa perspectiva. O
GLOBO não tem dúvidas de que o apoio a 1964 pareceu aos que dirigiam
o jornal e viveram aquele momento a atitude certa, visando ao bem do
país. À luz da História, contudo, não há por que não reconhecer, hoje,
explicitamente, que o apoio foi um erro, assim como equivocadas foram
outras decisões editoriais do período que decorreram desse desacerto
original. A democracia é um valor absoluto. E, quando em risco, ela só
15
pode ser salva por si mesma.

Esse recente caso ainda repercute amplamente, sendo constantemente reutilizado


pela empresa ao longo das efemérides para reafirmar seu apego aos ideais democráticos.
Em tempos de Comissão da Verdade, fóruns, blogs e publicações alternativas discutem
estarrecidos a atitude da empresa e as intrínsecas relações da imprensa com a ditadura
militar. Uma nota do Clube Militar chegou a causar grande repercussão, ao acusar o jornal e
sua “mudança de posição drástica”: “Equívoco, uma ova! Trata-se de revisionismo,

13
Para uma análise a respeito das “políticas de memória” utilizadas pela Folha ao longo da história e
suas repercussões no caso da ditabranda, consultar Dias (2014).
14
Vale uma consulta à edição imprensa de 22 de maio de 2013, onde o jornal publicou um caderno
especial contendo diversas matérias e artigos, vários de forte tom memorialístico, relembrando
qualidades ímpares do ex-dirigente.
15
APOIO EDITORIAL ao golpe de 64 foi um erro. O Globo. 31 de agosto de 2013. Disponível em:
www.oglobo.globo.com/pais/apoio-editorial-ao-golpe-de-64-foi-um-erro-9771604 Acesso em 10 set
2013.

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16
adesismo e covardia do último grande jornal carioca.” Na Folha, único jornal entre os
grandes que possui um ombudsman ativo, Suzana Singer, responsável pela sessão, chegou
a afirmar que este fora um caso em que, pela primeira vez se viu “tamanho ato de contrição
na imprensa brasileira. Trata-se do principal conglomerado de mídia assumindo um erro
editorial -não de informação- sobre um momento decisivo da história recente do país.”17
Atitude que, segundo a jornalista, a própria Folha “o jornal mais aberto a críticas” não tivera
a coragem de assumir, mesmo durante as polêmicas envolvendo a ditrabranda, em 2009.
Se há interesses ou não, em virtude das vésperas dos 50 anos do golpe, este ato de
“estrondosa mea-culpa” é um importante passo a caminho da transparência, acredita a
jornalista: “Quem sabe “o futuro já começou”, como diz o slogan de fim de ano da
emissora.”18

O horizonte de expectativa da imprensa frente às efemérides dos 50 anos:


considerações preliminares.

Objetivando uma apropriação sutil das conceituações do historiador Reinhart


Koselleck (2006), podemos aferir que a empresa utilizou-se de certo prognóstico para
orientar-se frente a um futuro que estaria evidentemente se descortinando. A “difícil arte do
cálculo político”, segundo o historiador, implica sempre em um diagnóstico que inscreve o
passado no futuro que, por sua vez, associa-se a determinada situação política. Desta
forma, “fazer um prognóstico já significava alterar uma determinada situação. O prognostico
é um momento consciente de ação política. Ele está relacionado a eventos cujo ineditismo
ele próprio libera. O tempo passa a derivar, então, do próprio prognóstico.” (KOSELLECK,
2006, p. 32)

Um prognóstico só pode ser inferido a partir daquilo que Koselleck (2006) denomina
de “espaço de experiência” – o passado “atual, aquele no qual acontecimentos foram
incorporados e podem ser lembrados” (p. 309) - e um “horizonte de expectativa” – que se
“realiza no hoje, é futuro presente, voltado para o ainda-não, para o não experimentado,

16
NOSSA OPINIÂO – equivoco, uma ova! Disponível em: http://clubemilitar.com.br/nossa-opiniao-
equivoco-uma-ova/ Acesso em 10 set 2013.
17
SINGER, Suzana. Fantasmas do passado. Folha de S. Paulo. 08 de setembro de 2013. Disponível
em: www1.folha.uol.com.br/fsp/ombudsman/127978-fantasmas-do-passado.shtml Acesso em 10 set
2013.
18
Idem. Vale ressaltar que no último dia 30 de março a Folha assumiu publicamente, pela primeira
vez, seu erro em editorial. O texto, mantendo o caráter “liberal” sob o qual já problematizamos,
afirmava: “O regime militar (1964-1985) tem sido alvo de merecido e generalizado repúdio. [...] às
vezes se cobra, desta Folha, ter apoiado a ditadura durante a primeira metade de sua vigência,
tornado-se um dos veículos mais críticos na metade seguinte. Não há dúvida de que, aos olhos de
hoje, aquele apoio foi um erro. Este jornal deveria ter rechaçado toda violência, de ambos os lados,
mantendo-se um defensor intransigente da democracia e das liberdades individuais." (1964. Folha de
S. Paulo, ano 94, nº 31.042, p. A2, 30 de março de 2014)

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para o que apenas pode ser previsto.” (p. 310) Desta forma, prognósticos estão
relacionados diretamente ao presente, onde se entrelaçam relações de ação concreta entre
passado e futuro. São as experiências que orientam os prognósticos, mas estes também
são determinados pela necessidade de se esperar algo. “Voltada para um campo de ação
mais amplo ou mais estreito, a previsão libera expectativas, a que se misturam também
temor ou esperanças.” (KOSELLECK, 2006, p. 313) É pensando justamente nesta
confluência temporal dos prognósticos que, acredita-se aqui, políticas de memória estão
sendo articuladas. A ação revisionista de O Globo, decorrente de um amplo projeto de
resgate e preservação de sua história19 foi, antes de tudo, uma tentativa particular de
construção identitária que visa, a partir da resignificação da memória, afirmar seus valores
em um presente particular. Estas questões evidenciam como são constituídos,
politicamente, os embates comunicacionais a respeito da legitimação de uma “verdade”
sobre o passado por parte destas empresas. O que estes grupos almejam é elaborar um
discurso hoje aceito como “verdadeiro”, impedindo outras “verdades” de emergir, em um
constante jogo de disputas e negociação de sentido. 20

As políticas implementadas pela Comissão Nacional da Verdade vêm colocando à


cena pública inúmeras discussões revisionistas sobre período da ditadura, ganhando outros
contornos em nosso presente. A imprensa, obviamente, possui um papel importante na
ampliação deste debate, uma vez que ao noticiá-los e discuti-los auxilia no processo de
consolidação dessas lembranças. Muitas vezes, a imprensa assume-se com certo grau de
protagonismo, divulgando documentos inéditos e novas interpretações – como nos casos do
ex-deputado Rubens Paiva e do atento ao Riocentro, por exemplo. Mas todo jogo de
memória, como bem destacamos, é ambíguo, complexo e conflituoso. Por mais que a
imprensa carregue consigo esta memória “liberal”, uma memória apaziguadora e baseada
na dita legalidade democrática, as mídias trabalham concomitantemente com a memória e a
opinião (LABOIRE, 2009), que muitas vezes se manifesta de forma contrária aos jogos do
passado no presente.

Através da rememoração e dos usos do passado no presente, a mídia noticiosa


acaba por transmitir representações particulares sobre o passado e, desta forma, acaba por
intervir na fabricação da opinião sobre determinado tema. Para o historiador Pierre Laborie
(2009), o problema maior se dá quando a opinião acaba por se apropriar da memória,
transformando opinião em uma verdade sobre o passado, muitas vezes tida como verdade
única e irrefutável. O processo de midiatização da memória aumenta seu poder de
19
Para mais, consultar o site do projeto http://memoria.oglobo.globo.com/
20
Como afirma Silverstone, (2002, p. 235) a pretensão da memória na mídia é a da “retórica da
verdade”: “Lembrar. Definir o passado. Foi assim. Imaginem.”

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recepção e influência, mas também “transforma sua natureza fazendo da verdade sobre o
passado uma questão de opinião [...] O que era uma narrativa, uma representação ou um
ponto de vista sobre o passado torna-se a história desse passado (LABOIRE, 2009, p. 92).
Como portadora de uma opinião em particular e construtora de memórias, a imprensa
deveria estar atenta a estas ambíguas relações. Até que ponto os textos propagados por
esses jornais estão confundindo memória e opinião? Há a busca por uma verdade histórica
sobre este passado? Como vimos, neste embate sempre conflituoso de legitimação das
memórias da ditadura, vários pontos de vista buscam, a partir de suas lembranças, uma
“verdade” sobre os fatos do passado. Esta questão é crucial para se pensar a problemática
política da memória coletiva em um contexto comunicacional.

O objetivo desse texto não foi analisar as efemérides em si. Procurou-se apenas
delinear um horizonte, elucidar expectativas para análises futuras. É pensando estas
questões, aqui problematizadas de forma breve, que se buscará, em análises posteriores,
perceber como os acontecimentos referentes ao passado da ditadura militar no Brasil serão
lembrados, noticiados e enquadrados frente a políticas próprias de articulação e legitimação
de um presente particular que, como vimos, parece ser uma preocupação evidente de certas
empresas. Analisar os “usos” deste passado pela imprensa em relação a uma preocupação
intrinsecamente relacionada à verdade que estas pretendem legitimar sobre o (seu)
passado. O que, para estas empresas, é considerado digno de ser lembrado e como elas
relacionam estas questões à memória do acontecimento? 21

A proposta será perceber como estes acontecimentos, cruciais para a consolidação


de uma memória coletiva de nosso passado, irão repercutir nas páginas da grande imprensa
e, mais, como eles serão pensados em um processo que caminhe à construção de uma
identidade própria de legitimação dos discursos da imprensa frente àqueles anos. As
comemorações do acontecimento estarão condicionadas a um enquadramento particular,
visando objetivos particulares? Qual “verdade” será posta em evidência e como ela será
articulada, em um discurso que buscará se utilizar do passado para legitimar práticas
discursivas do presente? Entender essas práticas e apropriações seletivas do passado nas
narrativas midiáticas é entender de que forma as mídias auxiliam ou às vezes acabam por
conflitar ainda mais a interpretação dos acontecimentos cotidianos.

Referências

21
Reflexões que pretendem ser respondidas pelo autor em sua tese de doutorado a ser defendida no
Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF.

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In: GONDAR, Jô; DODEBEI, Vera (orgs.). O que é memória social? Rio de Janeiro: Contra
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2014.

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SILVERSTONE, Roger. Por que estudar a mídia? São Paulo: Edições Loyola, 2002.

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Entre o consenso e o conflito: Os ministros do Superior Tribunal Militar no processo


de liberalização da ditadura militar brasileira (1974-1979)

Angélica do Carmo COITINHO


Doutoranda em História, Política e Bens Culturais pelo Centro de Pesquisa e Documentação
de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV)
angelicadocarmo1@yahoo.com.br

Este artigo tem como objetivo uma introdução aos resultados das pesquisas que
venho realizando sobre os ministros do Superior Tribunal Militar (STM) no período entre
1974 e 1979, anos do governo Geisel, quando teve início o processo de distensão do regime
militar brasileiro. Tenho como objetivo compreender as flutuações do projeto de
institucionalização da ditadura, da abertura e da redemocratização, através de um estudo
sobre as decisões dos ministros do STM, onde são analisadas suas ambivalências, a
diversidade entre eles e se essas decisões mantinham uma relação harmônica com a
dinâmica do período, exercendo influência nesse projeto de liberalização ou ainda se
deixando influenciar por ele.

Ao STM foi atribuído pelo Ato Institucional nº 2, editado em 27 de outubro de 1965, a


responsabilidade pelo julgamento de civis acusados de crimes políticos. Inicialmente os
crimes estavam previstos na Lei nº 1802 de 1953, que definia os crimes contra o Estado e a
ordem política e social; mais tarde os crimes passaram a ser definidos na Lei de Segurança
Nacional1. Com o AI-2 ficou estabelecida a nova composição do STM, antes composto por
11 ministros, passou a contar com quinze ministros vitalícios, indicados pelo presidente da
República, entre os quais, três oficiais generais da Marinha, três oficiais generais da
Aeronáutica, quatro oficiais generais do Exército e cinco juízes civis. A Justiça Militar teve
papel fundamental na conjuntura política do período, razão pela qual analisá-la significa
compreender um importante espaço de decisões, já que nos julgamentos eram definidos
quais seriam os limites da oposição ao Estado.

A Justiça Militar foi organizada ainda no século XIX, em 1808, ano da chegada da
Família Real. Sua atuação nunca se deteve apenas ao julgamento de crimes cometidos por
militares, “ao longo de sua existência, prevaleceu certa fluidez na definição dos crimes
políticos que ora pertenciam à alçada da justiça comum, ora da militar” (SILVA, 2010, p. 17).
Também não foi nova a atribuição de atuar no julgamento aos opositores de um regime de
exceção. Durante o Estado Novo (1937-1945), o STM atuou como um tribunal de segunda

1
As Leis de Segurança Nacional foram formuladas pelo Executivo através dos Decretos-Leis n° 314
de 13 de março de 1967, n° 510 de 20 de março de 1969, n° 898 de 29 de setembro de 1969 e pela
Lei nº Lei 6.620 de 17 de dezembro de 1978.

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instância, julgando os recursos que advinham do Tribunal de Segurança Nacional, criado em


1936.

Para estudar o STM é necessário que ele não seja visto tão somente como mais um
órgão da repressão a serviço do Executivo. Os ministros atuavam com base nas leis de um
estado de exceção, mas alguns deles tentaram minimizar o autoritarismo desses
instrumentos legais de modo que pudessem julgar como no período anterior ao golpe de
1964, quando vigorou um Estado democrático (1945-1964), garantindo direitos mínimos aos
cidadãos, como pude concluir nas pesquisas feitas nos processos do STM disponíveis no
Fundo Brasil Nunca Mais no Arquivo Edgar Leuenroth (AEL/Unicamp).

A pesquisa que viso realizar é uma ampliação daquela que foi feita durante o
mestrado, na qual analisei a trajetória de um de seus ministros no STM, o General de
Exército Rodrigo Octávio Jordão Ramos, de 1973 a 1979 (COITINHO, 2012). As conclusões
às quais cheguei me fizeram optar por continuar a estudar o mesmo tema, ampliando-o para
o conjunto de ministros desse Tribunal. Naquela ocasião pude concluir que o referido
General foi um exemplo de um projeto de abertura fracassado, já que seus constantes
pedidos para a apuração de denúncias de torturas e as críticas aos procedimentos
realizados durante os Inquéritos Policiais Militares (IPM) e nos julgamentos, em sua maior
parte, não foram considerados pelos outros ministros.

O General Rodrigo Octávio, na maioria dos julgamentos, mas não em todos, esteve
atento aos formalismos jurídicos, considerando fundamental a manutenção do poder
Judiciário, atribuindo um papel de extrema importância a essa instituição tanto na
institucionalização do regime quanto no caminho rumo a um Estado de direito. Apesar de
reconhecer que os juízes atuavam sobre os “escombros da ordem jurídica desmoronada”,
acreditava que cabia a ele e aos seus pares julgar da maneira mais honesta possível, dentro
dos limites de uma legislação excepcional, tentando corrigir os seus possíveis erros e
excessos que causavam uma “violência inútil” (RAMOS, 1975, p. 16).

Analisando os processos, notei que não era somente o General Rodrigo Octávio que
pensava dessa maneira. Outros ministros fizeram declarações de cunho crítico sobre os
procedimentos antijurídicos, como as torturas e as confissões extrajudiciais que muitos
insistiam em usar para confirmar uma condenação, e as conclusões às quais o STM
chegava. Havia também, não podemos esquecer de maneira alguma, aqueles ministros que
destoavam desse conjunto e acreditavam que os limites da oposição ao Estado eram
mínimos. Por isso, considerei necessário ampliar a pesquisa para o conjunto de ministros

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que atuaram no Tribunal castrense durante o governo Geisel, quando teve início o processo
de liberalização do regime.

Uma das principais conclusões a que cheguei é a de que os ministros atuavam


diretamente como definidores dos limites do Estado como cerceador dos direitos de todos
os cidadãos, principalmente aqueles que eram membros da resistência, em um período no
qual muitos desses procuravam maneiras novas de opor-se politicamente ao Estado, não
mais através da luta armada. Ampliando agora a análise para o conjunto de ministros,
pretendo verificar de que maneira os ministros reagiram ao processo de abertura colocado
em prática pelo governo e também como desejavam influenciar nesse processo, já que é
certo que os ministros poderiam interpretar as Leis de Segurança Nacional de modo que as
tornassem mais brandas ou não, como pode ser notado nos acórdãos do STM.

Além das conclusões, há algumas hipóteses às quais cheguei após a análise dos
documentos utilizados durante a pesquisa realizada no mestrado, que servem como ponto
de partida para desenvolver os objetivos desse trabalho. Primeiro, avalio que os ministros
influenciaram diretamente no projeto de abertura política, uma vez que podiam definir os
limites entre o arbítrio do Estado e os direitos dos cidadãos, no tocante à aplicação da
legislação em vigor. Em segundo lugar, considero ainda que muitos ministros ora tendiam
para um lado, ora para outro – atentando sempre para uma pluralidade de posições políticas
e ideológicas e que nenhum permanecia estaticamente em qualquer uma delas - pois havia
a interpretação que podiam fazer do texto jurídico. Por isso, é importante não polarizá-los ou
encaixá-los em quaisquer definições que poderiam empobrecer a análise dessa instituição
durante o período em questão.

Desse modo, é fundamental fugir definitivamente das polarizações rigorosas


atribuídas aos militares, e nesse caso também aos magistrados civis, principalmente aquela
que os divide entre “duros” e liberais. Há, por outro lado, uma multiplicidade de tendências
políticas no Tribunal, isso significa que mudam de pensamento até mesmo em julgamentos
diferentes envolvendo casos muito parecidos, como a validade ou não das confissões
extrajudiciais para condenar um réu. A pesquisa buscará compreender quais eram essas
tendências políticas existentes, lembrando sempre que as opiniões mudam de acordo com
os acontecimentos que eram colocados à frente dos ministros, sujeitos às interpretações
que podiam fazer da lei diante de um determinado fato considerado criminoso e do contexto
que lhes era apresentado.

Após a análise dos acórdãos realizados entre os anos de 1973 a 1979, nos quais
havia justificativas de votos do ministro General Rodrigo Octávio, pude concluir que é

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importante considerar os embates que se travavam entre os ministros até que chegassem a
um veredicto. As decisões eram repletas de nuances ou discordâncias nada sutis que
evidenciavam as disputas existentes no Tribunal e a diversidade entre os ministros no que
diz respeito às interpretações jurídicas e sobretudo aos seus pensamentos sobre a
sociedade e o regime em vigor. Por isso, considerei ser importante dar continuidade ao
trabalho para que pudessem ser analisados não somente os ministros que se
harmonizavam com as decisões de Rodrigo Octávio, mas também aquelas vozes
dissonantes, considerando o processo de liberalização em curso.

Sendo assim, o trabalho a ser realizado pode contribuir com o preenchimento de


algumas lacunas que penso ainda existirem nos estudos sobre o Superior Tribunal Militar
durante o período da ditadura militar. Apesar de já terem sido expostos ao longo do texto, os
itens a serem considerados são os seguintes: tenho a intenção de avaliar o que venho
chamando de vozes dos ministros e verificar o modo como agiram e influenciaram no
processo de liberalização política da ditadura militar, analisando se suas decisões
mantinham uma relação com as incertezas do processo de abertura. A partir daí, será
possível considerar a multiplicidade de pensamentos políticos existentes entre os ministros
militares e magistrados civis, compreendendo ainda como concebiam a sua atuação e a da
Justiça Militar.

O estudo dos militares nas ciências humanas e sociais vem despertando cada vez
mais o interesse daqueles que pesquisam a História do Brasil, desde o Império até a
República, passando pelos tempos de ditadura que o país viveu durante o século XX.
Novas abordagens vêm sendo realizadas a partir de diferentes enfoques metodológicos,
como o uso dos processos criminais e da história oral, dando lugar a trabalhos que analisam
o papel das Forças Armadas, das instituições militares e dos indivíduos que as integraram,
bem como a relação dessas instituições e dos militares com a sociedade civil. Mais
recentemente, um novo tema vem ganhando espaço: a Justiça Militar.

Muitos autores, entre sociólogos, juristas e historiadores, escreveram sobre a Justiça


Militar, levantando questões, hipóteses, afirmando algumas de suas impressões e,
principalmente, abrindo espaço para que novos trabalhos sobre o tema fossem realizados a
partir de uma pesquisa em seus arquivos, quando esses estivessem disponíveis para
consulta. Entre outros temas, verificam o padrão decisório da Justiça Militar, como os
julgamentos eram conduzidos, a repressão judicial e extrajudicial, o papel dos ministros do

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STM e se interrogam sobre em que medida o Tribunal contribuiu para a institucionalização e


legitimação do regime. 2

Apesar de neste artigo ter tratado apenas do período que já venho pesquisando há
algum tempo, referente ao governo Geisel, considero que as tensões pela condução do
projeto de abertura não terminaram em 1979, muito menos houve a finalização desse
processo com a entrada de Figueiredo na presidência. Deste modo, a pesquisa que realizo
é dividida em três períodos Um primeiro de 1974 a 1979; um segundo que compreende
1979, envolvendo especificamente o período posterior à decretação da Lei de Anistia; e um
terceiro de 1980 a 1984. Esses períodos foram divididos com base no contexto político e
jurídico do regime militar, que influenciaram nos julgamentos do STM, ou seja, na maneira
como os juízes julgavam os opositores do regime. Considero, ainda, que essas decisões
influenciavam e mostravam as disputas existentes em torno do projeto de distensão,
institucionalização do regime e de redemocratização, que não foi feito sem tensões. O STM
constituía uma arena de disputa pelo “direito de dizer o direito” (BOURDIEU, 2010, p. 212) e
ainda contribuía para o poder de legitimação do regime, já que dava um aspecto de
normalidade ao julgamento de civis acusados de crime contra o Estado; por outro lado, o
processo constituía uma garantia para os presos políticos de que não mais seriam mortos
nos porões da ditadura militar.

Em 1974 Geisel assume a presidência e enfrenta uma conjuntura internacional


desfavorável, com o presidente norte-americano criticando as violações aos Direitos
Humanos e a Comissão Internacional de Anistia divulgando denúncias sobre a prática de
torturas no Brasil. Internamente o MDB, partido de oposição ao governo, havia alcançado
vitória nas urnas em eleições no final de 1973. A luta armada já havia sido liquidada pelo
aparato repressor, estavam quase todos mortos, presos ou exilados, crescia então a luta
contra o regime, mas dentro da legalidade, a partir do próprio MDB e em movimentos da
sociedade civil, como o Movimento Feminino pela Anistia, criado em 1975. Já em agosto de
1974, Geisel anuncia uma distensão lenta, gradual e segura.

Lenta, sem pressa, devagar; gradativa, por etapas, de modo que se


pudesse avaliar, a cada momento, o caminho percorrido, as novas
circunstâncias, os objetivos alcançados e os desafios a serem
enfrentados; e segura, sob controle, com a máxima segurança
possível (REIS FILHO, 2014, p. 99).

2
Entre os autores que analisam a Justiça Militar, podemos citar: OLIVEIRA (1980, 1994); PEREIRA
(2010); SILVA (2007, 2010, 2012); LEMOS (2004); MACIEL (2003); D’ARAUJO (2006); ALVES (2009);
MATTOS (2002); WANDERLEY (2012).

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Esse processo de liberalização não se deu, no entanto, sem conflitos, até mesmo
entre os ministros do STM havia aqueles, tanto civis quanto militares, que se opunham ao
ritmo desse processo. Essas divergências podem ser sentidas nos processos criminais e
também nos artigos que os ministros escreviam. Alguns acreditavam na eficácia do projeto
de liberalização, outros o consideravam um risco à institucionalização do regime e à
consecução dos objetivos de 1964, como muitos ministros diziam. Tais “contradições
continuariam a se manifestar por longos anos, até início dos anos 1980” (REIS FILHO, 2014,
p. 102).

A Lei de Anistia de 1979 introduz um elemento novo na jurisdição do STM e levanta


opiniões contrárias entre seus ministros quanto ao conteúdo da Lei. Além disso, a Lei de
Segurança Nacional de 1978, já havia introduzido um novo aparato legislativo, sob o qual os
ministros necessitavam se debruçar. Em 1979 é criada uma Comissão, dois dias antes da
promulgação da Lei de Anistia, integrada por dois ministros do STM para decidir sobre o
encaminhamento dos processos à luz da nova lei, que concedia anistia àqueles
processados e julgados por crime político. Depois desse período, a partir de 1980, os
processos referentes a crimes políticos diminuíram consideravelmente, porém, como analisa
a historiadora Angela Moreira Domingues da Silva, as decisões do STM pareciam atuar na
contramão do processo de redemocratização durante o período do governo Figueiredo.

Apesar da concessão da anistia, a manutenção da LSN [Lei de


Segurança Nacional] permitiu que trabalhadores, estudantes,
jornalistas, religiosos e até parlamentares continuassem sendo
perseguidos com cobertura da Justiça Militar. Na visão de Heleno
Fragoso, o STM que havia sido, “nos primeiros tempos, um autêntico
e bravo tribunal, onde o cidadão perseguido encontrava justiça”,
mudou sua postura (SILVA, 2010, p. 154).

No período do governo Figueiredo, ainda podemos perceber entre os ministros do


STM conflitos quanto aos rumos do processo de redemocratização. Uma nova Lei de
Segurança Nacional foi promulgada em 1983. O STM durante o período entre 1980 e 1984,
ano em que consta um último processo contra um civil acusado de crime contra a
Segurança Nacional, ainda esboça tendências contrárias ao processo de redemocratização,
mas também há conflitos para que ele possa ser efetivado, inclusive com a tentativa de
apuração do conhecido caso do Riocentro, onde enquanto acontecia um grande evento de
música, uma bomba explodiu no colo de um militar no estacionamento do local.

Uma instituição não é algo abstrato ou que possa ser analisado como um corpo
homogêneo, pois são os indivíduos que a constroem. É preciso analisar os embates
travados no interior do próprio STM, ou seja, entre os indivíduos que ali exerciam funções

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jurídicas, para que se possa compreender como chegavam a uma decisão, considerando
suas ideias sobre a sociedade e a política naquele contexto. Essas foram as primeiras
observações feitas a partir dos documentos já analisados, servindo para nortear a pesquisa
e estabelecer o quadro teórico para direcionar o trabalho com os documentos, verificar o
funcionamento do Tribunal e a própria dinâmica entre os juízes militares.

Utilizo a caracterização de “militares”, feita pelo antropólogo Celso Castro,


reconhecendo que embora possa ser atribuída uma unidade aos militares, não constituíam
um corpo coeso, razão pela qual esse não deve ser o ponto de partida de uma investigação.
Havia um “campo de possibilidades aberto aos atores sociais” e também “uma considerável
margem de manobra para a formulação de projetos individuais e coletivos” (CASTRO, 1995,
p. 10).

Ao estudar as vozes dos ministros, ou seja, o que falavam nos processos e nas suas
publicações poderemos compreender os militares em sua pluralidade, não os identificando
em grupos fechados nem em um mesmo grupo a todo momento. Nesse sentido, parto do
princípio de que não há como polarizar os militares em composições ideológicas e políticas
bem delimitadas, indo ao encontro das conclusões do cientista social João Roberto Martins
Filho, que procura “trazer à luz as características de heterogeneidade, divisão e fluidez
especificamente militares que caracterizam as práticas políticas castrenses” (MARTINS
FILHO, 1995, p.36).

O primeiro passo ao analisar militares é abandonar a perspectiva que confere


oposição rígida entre “linha-dura” e “castelistas”, pois é sempre possível modificar e ampliar
essa análise, buscando identificar possíveis nuances. Como afirma João Roberto Martins
Filho, “a paisagem das correntes militares nas Forças Armadas brasileiras caracteriza-se por
uma pluralidade de posições e por uma complexidade de fatores de desunião e cizânia que
impede uma análise em termos duais” (MARTINS FILHO, 1995, p. 114).

Podemos concluir, ao ter em vista essa heterogeneidade entre os ministros, que o


conflito esteve presente no STM durante todo o regime militar. Havia divergências quanto à
interpretação da legislação, aos procedimentos jurídicos e, a partir disso, poderemos
identificar de que maneira os ministros do STM atuaram no período de liberalização do
regime militar. Para dar conta desse objetivo trabalharei com os conceitos de campo e
habitus, utilizados pelo sociólogo Pierre Bourdieu.

Entre os juízes há habitus comuns que estão presentes no funcionamento do STM,


como a pretensão de racionalidade na execução dos julgamentos, para que possam manter

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sua legitimidade perante a sociedade, objetivando que essa veja os acórdãos apenas como
resultados das interpretações da legislação, sem qualquer conotação de ordem política. É
correto afirmar, no entanto, que os juízes podiam aproveitar-se de toda a subjetividade
presente na interpretação do corpus legislativo, uma vez que utilizam técnicas que “tendem
a tirar o máximo partido da elasticidade da lei e mesmo das suas contradições, das suas
ambiguidades ou das suas lacunas” (BOURDIEU, 2010, p. 214). Nesse sentido, Bourdieu
mostra que o direito e a prática jurídica são dois processos arbitrários. Essa última porque é
fruto da interpretação dos juízes, dotada de condicionantes sociais e culturais. Mas há
também casos em que os valores dos juízes terão que se sujeitar aos ditames da lei, como
conclui o autor:

As práticas e os discursos jurídicos são, com efeito, produto do


funcionamento de um campo cuja lógica específica está duplamente
determinada: por um lado, pelas relações de força específicas que
lhe conferem a sua estrutura e que orientam as lutas de concorrência
ou, mais precisamente, os conflitos de competência que nele têm
lugar e, por outro lado, pela lógica interna das obras jurídicas que
delimitam em cada momento o espaço dos possíveis e, deste modo,
o universo das soluções propriamente jurídicas (BOURDIEU, 2010,
p. 211).

Há um espaço aberto para as decisões individuais, mas que esbarram na lógica do


que é possível fazer, dos limites estabelecidos pelos próprios pares. O conflito está presente
em qualquer campo, mas o objetivo final é sempre a manutenção da instituição, por isso
qualquer elemento que ameaçasse a existência do STM, no caso em questão, tenderia a ser
excluído. Isso ocorreu com o General Rodrigo Octávio. Em 1979, os outros ministros
consideraram que seus discursos e decisões poderiam comprometer a legitimidade do
Tribunal e acabaram impedindo sua eleição para a presidência do STM (COITINHO, 2012).
O mesmo ocorreu com o General Peri Bevilacqua, aposentado compulsoriamente em 1969,
por motivos semelhantes: a crítica aos procedimentos da Justiça Militar (LEMOS, 2004a).

Compreender o funcionamento do Tribunal no contexto do processo de liberalização


significa perceber de que maneira seus integrantes exerciam suas práticas jurídicas,
proferindo sentenças sob imperativos institucionais limitadores - a farda -, ou fazendo
prevalecer o exercício da liberdade que julgavam ter – a toga. Em outras palavras, os
ministros decidem atendendo a duas lógicas: as relações de força específicas do campo – o
militar e o do direito - e o espaço dos possíveis do próprio texto jurídico. A partir daí, será
possível analisar como os ministros chegavam à determinada decisão. Nesse sentido, torna-
se fundamental a análise desses indivíduos singulares que exerceram um papel importante
no interior de grupos sociais e em determinado processo social, enfatizando sobretudo a

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relação entre os indivíduos e o contexto no qual estão inseridos, pensando quais lógicas
estão atuando sobre as suas decisões.

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A morte do estudante secundarista Edson Luís e seu regime de historicidade

Angélica MÜLLER
Professora do Mestrado de História do Brasil da Universidade Salgado de Oliveira e
pesquisadora-associada ao CHS/Paris 1.
angelicamuller@usp.br

A morte de Edson Luís em 1968 (e as inúmeras manifestações que a partir deste


incidente ocorreram) foi amplamente divulgada pela mídia da época. Suas imagens
puderam ser vistas em filmes, tornou-se poesia em versos cantados e foi exaustivamente
narrada em nossa historiografia. O objetivo deste breve texto é apresentar analiticamente os
elementos que ajudaram a compor a morte do estudante secundarista como um ponto de
memória capaz de gerar um regime de historicidade1 sustentado pelo movimento estudantil
organizado em torno da UNE. Ainda, pretende analisar os desdobramentos deste episódio
no plano memorial e seu uso político pelo movimento quando da comemoração dos 75 anos
da UNE, em 2012.

---

Com a implantação do golpe civil-militar, em 1964, seguido do incêndio do prédio


da União Nacional dos Estudantes (UNE) na Praia do Flamengo, 132 (RJ), o restaurante
estudantil Calabouço (lugar que outrora abrigara uma prisão - e só este ponto já é
carregado de um forte significado), situado na cidade do Rio de Janeiro, local que também
sediava a União Metropolitana de Estudantes (UME), passou a ser o foco de concentrações
e manifestações estudantis. A péssima qualidade da comida, o aumento do seu preço e a
própria instalação física adversa foram motivos para realização de muitos protestos, que
começaram a se intensificar no início do ano de 1968. Em 28 de março, mais uma
manifestação da Frente Unida dos Estudantes do Calabouço (FUEC) estava programada e,
desta vez, a polícia invadiu o restaurante e acabou matando um estudante: Edson Luís, a
“primeira grande vítima” do regime ditatorial. Os estudantes rapidamente se deram conta do
significado potente desta morte e que a mesma poderia se transformar numa arma contra o
regime. Segundo Jean Marc, presidente da UNE eleito em 1969:

1
Entendo como “ordens do tempo” ou “regime de historicidade”, referência empregada por François
Hartog, a “costura” de diferentes regimes de temporalidade que traduz e ordena as experiências do
tempo articulando passado, presente e futuro e dando sentido à relação entre as diferentes
temporalidades. Hartog refere-se a um regime de historicidade entendido como a maneira pela qual
uma sociedade trata seu passado e como se propõe a utilizá-lo. HARTOG, François. Regimes
d’historicité: présentisme et expériences du temps. Paris: Seuil, 2003. p. 19.

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“Mas a reação à morte do Edson Luís foi de uma amplitude, de uma


radicalidade que ninguém imaginava, mesmo os que achavam que o ano
seria de mobilizações. Mas rapidamente a gente percebeu o potencial de
mobilização para além da universidade – até porque o Edson Luís não era
universitário, mas secundarista, comensal do restaurante do Calabouço. Ele
era um menino que estudava à noite e trabalhava durante o dia, [...]. A
mobilização que se fez em torno disso, se fez dirigida para a classe média
da Zona Sul. Fui eu que inventei a fórmula de parar os espetáculos em
todos os teatros da Zona sul para fazer a denúncia do assassinato do
Edson Luís. Parei pessoalmente seis teatros e alguns cinemas. No começo,
fazíamos com certa hesitação, mas depois fomos adquirindo confiança e as
2
pessoas aderiam”.

Com receio de que a polícia sumisse com o corpo, os estudantes levaram-no para a
Assembleia Legislativa (o lugar previsto para o término da manifestação do dia).
Organizaram um “Comando Informal do Calabouço” constituído das entidades
representativas dos estudantes, parlamentares e intelectuais/artistas. Segundo a lembrança
de Vladimir Palmeira, entre os nomes escolhidos estavam José Américo Pessanha,
professor da Faculdade Nacional de Filosofia, pelos professores; Hélio Pellegrino,
psicanalista e escritor, pelos intelectuais e o senador Marcello Alencar, que teve seus
direitos cassados em 1969, pelos políticos3.

Na própria Assembleia foi realizada a necropsia pelos legistas e também o velório


do estudante, que tomou grandes proporções. A bandeira nacional foi colocada sobre o
caixão. A utilização da “Casa do Povo” e dos símbolos nacionais ajudaram na criação de um
funeral digno de um herói nacional. Fato é que milhares de pessoas compareceram ao
velório de Edson Luís e, o suplício da exposição de seu corpo, acabou por tornar-se um
ritual não somente religioso como também político. Um longo cortejo, que entoou várias
vezes o Hino Nacional, foi realizado levando mais de cinquenta mil pessoas da Assembleia
Legislativa até o cemitério São João Batista. Nesse sentido, a fala de Jean Marc corrobora a
impressão de que os estudantes esperavam este momento para reagir – ato que caracteriza
a resistência.

2
Entrevista de Jean Marc von der Weid concedida ao Projeto Memória do Movimento Estudantil. Rio
de Janeiro, 07.10.2004.
3
Entrevista de Vladimir Palmeira concedida ao Projeto Memória do Movimento Estudantil. Rio de
Janeiro, 12.09.05.

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Momento em que caixão com o corpo do estudante sai da Assembleia Legislativa. Foto: Arquivo Nacional.

A comoção pela morte de um estudante acabou não só por abalar a sociedade


como também levou a uma mudança na forma de atuação, tanto dos estudantes, como dos
militares. Maria Ribeiro do Valle, apresenta a tese de que a morte de Edson Luís foi a chave
para utilização da violência, como arma revolucionária, por um lado, e como arma
repressiva, por outro4. No entanto, sabemos que a violência já se fazia presente no cotidiano
do regime. Houve algumas mortes de estudantes por parte da repressão policial e, as ideias
revolucionárias com armas em punho já estavam sendo experimentadas mesmo antes do
golpe. Nesse sentido, por que a morte de Edson Luís toma outra dimensão? Por que ela
passa a ser um ponto de inflexão na história do regime? Acredito que para consolidação do
evento como importante ponto de memória, alguns elementos ajudaram, a saber: o papel da
imprensa; a divulgação da obra de Arthur Poerner, O Poder Jovem; e a própria memória da
chamada “geração 68”.

O papel da imprensa

Toda imprensa deu ampla cobertura ao acontecimento, o que ajudou a consolidá-lo


como evento de caráter nacional. Cabe ressaltar que em 1968 boa parte da mídia que
apoiou o golpe já se encontrava contrária ao regime. E a liberdade que a mesma ainda
usufruía, sem dúvida, contribuiu para o fechamento da ditadura com a instalação do AI-5 no
final daquele ano. Nesse contexto, a mobilização nacional dos estudantes em torno da

4
VALLE, Maria R. do 1968: o diálogo é a violência. Campinas: Editora da Unicamp, 1999.

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morte de Edson Luís encontrou eco nas páginas dos jornais e revistas da Grande Imprensa
liberal (bem como da oposicionista), o que levou o evento a ter uma grande repercussão,
tornando-o um ponto de memória, não somente na história do ME, como também lembrado
pela sociedade em geral.

Revista Manchete, nº 834, 13 abril de 1968. Acervo: ABI

Um dos combatentes mais acirrados, o Correio da Manhã, que em suas páginas


publicou inúmeras reportagens sobre o assunto, apresentou, num suplemento dominical
(normalmente momento de maior circulação) um “dossiê” contendo textos de vários
jornalistas sobre a tragédia da morte do estudante. Um de seus colaboradores, Hélio
Pellegrino, que participou de todo desenrolar dos fatos através da Comissão já citada,
redigiu o texto “Morte e ressurreição de Edson Luís”. Entre outras reflexões, enfatizou:

“Tombou morto um jovem estudante brasileiro, nosso filho – não um porco.


Edson Luís, varado pela bala assassina que o matou, não teve tempo de ter
tempo. O tempo de sua vida ao qual tinha direito, e do qual foi
miseravelmente roubado, ergueu-se de súbito diante da Nação como uma
imensa catedral sagrada, sob cujas abóbodas milhões de vozes
deflagraram sua revolta. O tempo de Edson Luís, dilacerado e destruído
pela bala homicida que o cortou, tornou-se de repente tempo histórico,
tempo brasileiro, tempo de cólera e de consciência – tempo de gritar: Basta!
Há instantes privilegiados em que um destino pessoal se dissolve no
movimento da história. [...] Morto, ele nos comoveu a todos nós, além de

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qualquer palavra. E não só nos comoveu, mas nos moveu. E nos move. Sua
5
morte é herança nossa. De todo o povo brasileiro.”

O primeiro ponto a ser ressaltado é a proximidade, para não dizer familiaridade,


com que o jovem estudante foi apresentado. Foi durante o velório que os estudantes criaram
o slogan: “Mataram um estudante, podia ser seu filho”. A partir de então, a figura de Edson
Luís foi utilizada através desta proximidade com a realidade de muitos outros estudantes.
Edson Luís encarnou os ideais de um pobre jovem nortista que veio para o Rio de Janeiro
estudar em busca de “um lugar” dentro da sociedade, como afirma a brasilianista Victoria
Langland6. Além de representante genuíno das agruras do seu povo, a figura de Edson Luís
passou a representar o silenciamento que parte de uma juventude engajada foi relegada e,
ao mesmo tempo, serviu de motor para ação.

É nesse sentido que Pellegrino utilizou deliberadamente a questão temporal. A


narrativa instaura um vai-e-vem entre, passado, presente e futuro. A morte aqui não aparece
como um peso morto. Aparece como uma força que serve para seguir, para lutar, para agir,
ou melhor, para reagir. Resistir, no presente, significou um caminho de busca para
mudanças futuras. E, como nos afirmou Hannah Arendt, é a busca do futuro que nos impele
de volta ao passado7. Entretanto, contrariando a fórmula proposta pela filósofa alemã, me
parece que aqui o “tesouro foi encontrado”, e seus “herdeiros” souberam transmiti-lo e
preservá-lo. Afinal, como escreveu Pellegrino: “Sua morte é herança nossa”.

O Poder Jovem e a consolidação de uma memória histórica sobre o ME

Quando da morte de Edson Luís, o jovem jornalista Arthur Poerner já estava com
os originais prontos do livro O Poder Jovem (1968), cujo conteúdo apresenta a trajetória do
movimento estudantil no Brasil desde a colônia. Foi quando seu editor Ênio Silveira, da
Civilização Brasileira, pediu à Poerner para escrever uma nota suplementar para ser
anexada ao final do livro. Redigida em cinco páginas, a nota, datada em 03 de abril de 1968,
inicia com a constatação das previsões feitas pelo autor sobre o aumento da violência contra
os estudantes. Poerner descreve os principais momentos do velório, cortejo e enterro de
Edson Luís. Em suas conclusões, o tom militante, que prevalece em toda obra, continua
presente:

5
Correio da Manhã, 07 de abril de 1968, p. 4, 4º Caderno.
6
LANGLAND, Victória. “Neste luto começa a luta”: la muerte de estudiantes y la memória. In: JELIN,
Elizabeth; SEMPOL, Diego (Comps.). El passado en el futuro: los movimientos juveniles. Buenos
Aires: Siglo XXI, 2006. p. 21-62. (Colección Memórias de la Represión). p. 4.
7
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2011. 7ª ed. p. 37.

ISBN: 978-85-62707-55-1
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“Como saldo extraordinariamente positivo e importante, restou, de todos


êsses acontecimentos, a constatação de que a morte de Edson Luís de
Lima Souto levou os estudantes a procurarem, realmente, a total integração
com o povo, sem a qual – conforme observei nos capítulos anteriores – a
rebelião dos jovens se exaurirá por si mesma até que êles cheguem,
naturalmente, aos postos que lhes estão reservados na sociedade brasileira
– à custa dos enfartes e arterioscleroses que dizimarão, inevitàvelmente,
com ou sem baionetas, os velhos que usurparam o poder nacional. (...) É
claro que essa atitude estudantil foi facilitada pelo clima emocional
provocado no País após o assassinato de Edson Luís – que incutiu ânimo
de participação em amplos setores da população – da mesma forma que,
por outro lado, a decisão dos jovens enfrentou enormes dificuldades, como
o nível inferior de organização dêsses setores. Só mesmo a maturidade
demonstrada por alguns líderes estudantis – que não posso elogiar,
nominalmente, por motivos de ordem policial – propiciou a superação de
8
tais problemas.” (Grafia original)

O tom romântico revolucionário da época impresso na passagem (e em toda obra)


apresenta também premissas do próprio partido comunista (PCB) do qual Poerner era
filiado: conforme o autor, o objetivo central d’O Poder Jovem é mostrar a importância da
participação política, um dos princípios da democracia. Participação esta que deveria existir
através da juventude organizada, em franca oposição “aos velhos que usurpam o poder”.
Com a assinatura do Ato-5, O poder jovem foi um dos primeiros livros a ser censurado e, a
partir de então, tornou-se a referência crucial para todas as gerações subsequentes de
militantes, a “Bíblia” do movimento estudantil como muitos afirmam. Não por acaso, o livro já
se encontra na sua 5ª edição (de 2004). Assim, O Poder Jovem pode ser entendido como a
própria memória histórica9 do ME encabeçado pela UNE e, seu escrito, que fornece aos
militantes um “modelo de vida”, cristalizou a imagem da morte Edson Luís como o símbolo
das lutas daquela geração.

O trabalho/dever de memória

Dentre os inúmeros depoimentos da “geração 68”, gostaria de destacar uma


passagem de Bernardo Joffily, que foi vice-presidente da UBES em 1968:
“Os jornais da época contam que eles [a polícia militar] alegaram que
estavam em inferioridade de fogo, que os estudantes começaram a atirar

8
POERNER, Arthur José. O poder jovem: história da participação política dos estudantes brasileiros.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p. 367.
9
LAVABRE, Marie-Claire. Le fil rouge: sociologie de la mémoire communiste. Paris: Presses de
Sciences Po, 1994.

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pedras, e o coronel que comandava a ação mandou atirar, terminando por


matar o Edson, um rapaz pobre que comia no Calabouço e que veio do
Pará para o Rio de Janeiro. Ele tinha um esquema: como não tinha onde
morar, acabou arrumando um lugar para dormir também lá, no Calabouço.
O Edson Luís era uma pessoa meio que adotada pelo movimento. Não era
uma liderança, mas uma pessoa muito querida. Foi morto porque estava
numa passeata contra o fechamento de um restaurante estudantil – essa é
a moral da história. Eu não estava nessa passeata. (...) No dia seguinte, foi
que comecei a ter noção do quanto custa para os opressores do povo
matarem um estudante de 17 anos a tiros porque ele está pedindo que não
10
fechem um restaurante.”

Mais uma vez aparece a questão da proximidade (e a aproximação do depoente


com o objeto). Jofilly se refere ao estudante morto como “o Edson”, mas deixa transparecer
que não conhecia-o. Ainda, como apresentado em outros estudos, Edson Luís era apenas
um comensal do restaurante e não tinha ligação com a militância. Todavia, na lembrança de
Bernardo Joffily ele já aparece como “uma pessoa querida, meio que adotada pelo
movimento”. Ora, o movimento estudantil organizado passa a “adotar” Edson Luís a partir do
momento de sua morte, mas não em vida. Se o jovem secundarista efetivamente não era
um militante, sua morte serviu como catalisador de lutas e marcou, além da sua geração, as
subsequentes através do simbolismo exercido tornando-se, dessa maneira, elemento central
da memória histórica propagada pela UNE. Assim, podemos inferir que essa aproximação
seja menor com a personagem em si com o que a sua morte passou a representar.

Ainda, Joffily, como outros, não estava presente quando aconteceu o crime. Soube
depois, sem saber de quem se tratava. Porém, através de sua lembrança, uma lembrança
compartilhada, pode traçar os acontecimentos do fatídico dia. A memória coletiva sobre a
morte de Edson Luís relembrada, passa fazer parte de um histórico pessoal, remetendo ao
“fenômeno de projeção” defendido por Michel Pollak, gerando, dessa maneira, uma
afirmação ainda maior para seu presente. Toda a “geração 68” relembra dos
acontecimentos mesmo sem os ter vivenciado no ato. É o que Pollak define como
“acontecimentos vividos por tabela”, dos quais a pessoa nem sempre participou, mas que,
no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela
consiga distinguir se participou ou não.11

10
Entrevista de Bernardo Jofilly concedida ao Projeto Memória do Movimento Estudantil. São Paulo,
08.11.2004.
11
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Revista de Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
FGV, v. 5, n. 10, p. 200-215, 1992. p. 2.

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Histórias relatadas, acontecimentos relembrados atravessam um tempo e são


reconstruídos, trazendo a possibilidade de atualização do passado no presente. Afinal, a
memória é a construção do passado pautada por emoções e vivências e os eventos são
lembrados à luz da experiência subsequente e das necessidades do presente12. Presente e
passado se interpenetram. Relembrar a morte de Edson Luís em outros contextos, significou
recuperar um passado de luta que pudesse pautar a luta de então projetando novas
possibilidades para o futuro. E assim, a memória sobre a morte de Edson Luís é
reconstruída passando a servir de “modelo” para orientar, “iluminar" os militantes do
presente.

Em outro período da vida política do país a UNE comemorou seus 75 anos, em


2012, ano em que o governo instituiu a Comissão Nacional da Verdade. Uma solenidade foi
organizada para o dia 11 de agosto (dia do estudante) no terreno da Praia do Flamengo,
132 – o histórico local-sede da entidade. A comemoração teve um mote especial: anunciar o
início das obras da nova sede da entidade, projetada por Oscar Niemeyer. Ao entrar no
terreno, o convidado passava por um túnel em cujo local foi montada uma
exposição/homenagem aos mortos do ME. O texto de abertura da exposição, além de
reforçar o já apresentado no convite, dizia:

“Nesse caso, não poderíamos deixar de homenagear aqueles que, com sua
vida, defenderam nossos ideais na luta por liberdade. Quinze nomes foram
escolhidos para representar as centenas de vítimas deste período negro de
nossa história. Nomes que conferem uma importância suprema para o
movimento estudantil. Nomes de jovens heroicos que foram presos,
torturados e mortos por uma ditadura. O túnel mostra a passagem do
tempo; a ponte une passado e presente. E se no passado vivemos uma
escuridão, a travessia nos leva ao presente de esperanças renovadas e ao
13
futuro desenhado pelos traços de Niemeyer”.

No túnel escuro, apenas viam-se as silhuetas de corpos. No panteão elegido pela


UNE, a primeira imagem remeteu ao corpo de Edson Luís, um dos principais personagens
através do qual a UNE consolidou sua identidade de grupo. Mais uma vez, a interpenetração
dos tempos se mostrou capital. Reforçada, ainda, pela música que se escutava, na
passagem do túnel: Pesadelo, de MPB 4:

“Quando o muro separa uma ponte une

Se a vingança encara o remorso pune

12
DELGADO, Lucília de A. Neves. História oral e narrativa: tempo, memória e identidades. In: História
Oral. Revista da Associação Brasileira de História Oral. nº 6. São Paulo: 2003. p. 9-25.
13
Convite Ato UNE 75 anos. Acervo pessoal.

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...

Você corta um verso, eu escrevo outro


14
Você me prende vivo, eu escapo morto”

Mais que uma homenagem aos mortos, Edson Luís é evocado no discurso do
presidente da UNE, Daniel Iliescu:

“Heróis como aquele de quem falaremos agora, um humilde jovem


paraense, de origem pobre, que veio de Belém para o Rio de Janeiro na
expectativa de um futuro melhor. Um jovem estudante, que chegou do norte
em busca da redenção para sua própria história pessoal, mas que acabou
extraindo a redenção de toda uma geração, que inspirou milhões. Esse
jovem, de quem nos lembramos agora e a quem homenageamos, é o nosso
glorioso e imortal Edson Luís, um mártir, um símbolo, um bravo personagem
da história brasileira covardemente subtraído da vida pelo tiro de um
soldado. Edson Luís sabia o que fazia. Protestava em favor dos estudantes
brasileiros no restaurante calabouço e dessa forma escolheu o destino de
ser herói. O exemplo de Edson Luís preencheu de certeza o coração dos
bons, inundou as ruas e as praças do Brasil, espalhou-se como uma
metástase de esperança e resistência. Era preciso lutar, era preciso confiar,
15
era preciso amanhecer.”

A fala de Iliescu, carrega todos os simbolismos que permeiam a história da entidade


e que moldaram sua memória histórica: instala o maniqueísmo determinando o lado (bom)
que os jovens (sempre) estiveram, demarcado já na leitura de Poerner; utiliza, ainda, as
metáforas da luz e escuridão, muito presente nos discursos de militantes. Nesta
reconstrução realizada 44 anos depois do episódio, Edson Luís aparece como um militante
consciente de seu papel na história, por isso um herói. As falas de Hélio Pellegrino, Arthur
Poerner e de Bernardo Joffily (para citar os três exemplos aqui apresentados) foram
atualizadas, no presente, através do discurso de Iliescu. E a figura de Edson Luís rompe a
barreira dos tempos para se eternizar; aquele cuja lembrança permanece na memória dos
homens. Afinal, é no plano memorial que os homens podem imortalizar a morte.

14
Gravada em 1972 pelo grupo MPB-4, a música Pesadelo driblou a censura e causou grande efeito
por apresentar, sem meias palavras, a realidade vivida nos porões do regime então vigente.
Importante ressaltar que parte da estrofe desta música foi usada no convite das comemorações
organizadas pelos estudantes paulistas nos 10 anos da morte de Edson Luís e 5 anos da morte do
estudante da USP, Alexandre Vannucchi Leme, em 1978. Maiores informações sobre as
comemorações de 1978, ver: MÜLLER, Angélica. "Você me prende vivo, eu escapo morto": a
comemoração da morte de estudantes na resistência contra o regime militar. Rev. Bras. Hist., 2011,
vol.31, no.61, p.167-184.
15
Discurso de Daniel Iliescu, Presidente da UNE, durante o ato de comemoração dos 75 anos da
entidade em 11 de agosto de 2012. Retirado do site da UNE: http://www.une.org.br/2012/08/leia-o-
discurso-de-75-anos-da-une-por-seu-presidente. Acessado em 05/11/2013.

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A morte de Edson Luís exerce a função de símbolo do ME, seu conceito de luta,
peça fundamental de identidade para seus militantes. Lembrando que na Grécia antiga a
representação de símbolo se apresentava através de um objeto cortado em duas partes que
foram separadas (pelo tempo) e que, posteriormente, se encontraram permitindo aos seus
detentores se reconhecerem. E o símbolo de Edson Luís, apresenta, assim, um regime de
historicidade encampado pela UNE.

Trazer a “presença invisível” dos mortos é um modo, ainda, de acentuar a


continuidade do movimento. Movimento este que percebe no passado, um campo de
disputas por um futuro desejado. O que evidencia não só uma das características do ato de
comemorar, mas que também exprime certa “ordem do tempo”: maneira de usar um
“patrimônio” - o passado vivido e reapropriado - seja na resistência contra a ditadura militar,
seja nas lutas pelas quais a UNE empunha sua bandeira nestes últimos anos.

Referências

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2011. 7ª ed.

DELGADO, Lucília de A. Neves. História oral e narrativa: tempo, memória e identidades. In:
História Oral. Revista da Associação Brasileira de História Oral. nº 6. São Paulo: 2003. p. 9-
25.

HARTOG, François. Regimes d’historicité: présentisme et expériences du temps. Paris:


Seuil, 2003.

LANGLAND, Victória. “Neste luto começa a luta”: la muerte de estudiantes y la memória. In:
JELIN, Elizabeth; SEMPOL, Diego (Comps.). El passado en el futuro: los movimientos
juveniles. Buenos Aires: Siglo XXI, 2006. p. 21-62. (Colección Memórias de la Represión).
LAVABRE, Marie-Claire. Le fil rouge: sociologie de la mémoire communiste. Paris: Presses
de Sciences Po, 1994.

MÜLLER, Angélica. 1968: memória dos atores e seus reflexos. História Oral: Revista da
Associação Brasileira de História Oral, Rio de Janeiro, n. 10, p. 51-64, dez. 2008.

________. "Você me prende vivo, eu escapo morto": a comemoração da morte de


estudantes na resistência contra o regime militar. Rev. Bras. Hist., 2011, vol.31, no.61,
p.167-184.

POERNER, Arthur José. O poder jovem: história da participação política dos estudantes
brasileiros. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Revista de Estudos Históricos, Rio de


Janeiro, FGV, v. 5, n. 10, p. 200-215, 1992.

VALLE, Maria R. do 1968: o diálogo é a violência. Campinas: Editora da Unicamp, 1999.

ISBN: 978-85-62707-55-1
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Memórias de histórias de violação dos direitos humanos durante as ditaduras


militares no Brasil e no Cone Sul

Anna Flávia Arruda LANNA Barreto


Professora adjunta do Centro Universitário UNA
annaflav@prof.una.br

Introdução
No final dos anos de 1970, quando a ditadura militar brasileira anunciava as
primeiras medidas de distensão democrática, os regimes militares dos países do Cone Sul
praticavam medidas de recrudescimento do autoritarismo e de intensificação do aparato
repressivo. Prisões arbitrárias, eliminação sumária de militantes políticos, cassações, exílio,
banimentos políticos, invasões de domicílios, sequestros e desaparecimento de crianças
filhas de militantes políticos ou opositores do regime eram práticas que endossavam a
repressão política nos países do Cone Sul e usurparam os direitos humanos de milhares de
brasileiros, chilenos, argentinos, paraguaios e uruguaios. Essas práticas foram denunciadas
por sobreviventes, refugiados e familiares de presos políticos durante os anos de 1970 e
1990, ao Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul (Clamor),
com sede na cidade de São Paulo, Brasil.

O objetivo deste artigo é apresentar uma análise dos casos de sequestro, tortura e
desaparecimento de crianças e adolescentes, filhas de militantes políticos durante as
ditaduras militares no Cone Sul e Brasil, registrados no Fundo Clamor, localizado no Centro
de Documentação e Informação Científica – CEDIC, da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo / SP, entre os anos de 1970-1990 e sua contribuição para o processo de resgate
da memória histórica dos casos de sequestro, prisões e tortura de crianças e adolescentes,
durante as ditaduras militares no Brasil, Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai.

A metodologia empregada na realização desta pesquisa descritiva1 é composta de


pesquisa bibliográfica e a pesquisa descritiva analítica documental. Através da consulta e
análise dos documentos do Fundo Clamor foram selecionados documentos cujas
informações remetam ao desaparecimento, sequestro e tortura de crianças e adolescentes;
à prisão e/ou sequestro de militantes grávidas, procurando descrever a situação da
apreensão e encarceramento, forças repressoras envolvidas na operação de prisão. Além
desse acervo, foi realizada uma pesquisa documental dos Arquivos do Terror, no Centro de
Documentação e Arquivo para a Defesa dos Direitos Humanos (CDyA) da Corte Suprema

1
Esta pesquisa está sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação de História da
Universidade Federal de Minas Gerais, em nível de Pós-Doutorado, com a supervisão da professora
doutora Heloísa Maria Murgel Starling.

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de Justiça do Paraguai, que contém registros dos trinta e cinco anos da ditadura militar de
Alfredo Stroessner no Paraguai.

O argumento central desta pesquisa consiste na afirmação de que os arquivos do


Comitê em Defesa dos Direitos Humanos dos Refugiados dos Países do Cone Sul
(CLAMOR), disponíveis no Fundo Clamor e nos Arquivos do Terror, contribuem, de forma
significativa, para o resgate da memória histórica do período ditatorial e para a conquista da
cidadania plena nesses países, sendo o Brasil protagonista da implantação da Doutrina de
Segurança Nacional na América do Sul.

O fundo Clamor
O fundo Clamor encontra-se distribuído em 106 caixas arquivo, 28 pastas para
periódicos e 1 pasta para arquiteto. Reúne documentos textuais, orais e iconográficos. Os
documentos foram adquiridos através de doação do Centro Ecumênico de Serviços à
Evangelização e Educação Popular (CESEP), em 1993.
Esta documentação foi reunida durante a atuação do Comitê de Defesa dos Direitos
Humanos para os países do Cone Sul2 (CLAMOR), fundado em 1978 por três pessoas
ligadas a defesa dos direitos humanos: Jan Rocha, Luiz Eduardo Greenhalgh e Jaime
Wright. Os três se reuniram em São Paulo para verificar a possibilidade de divulgação das
atrocidades cometidas contra os direitos humanos dos argentinos, uruguaios, paraguaios,
chilenos e brasileiros durante o regime militar desses países. Procuraram o Cardeal
Arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns para comunicar a presença no Brasil de refugiados
políticos que relatavam histórias de desrespeito aos direitos humanos. Dom Paulo acolheu a
ideia e solicitou que o Comitê, por motivos de segurança, permanecesse vinculado a
Comissão Arquidiocesana de Pastoral dos Direitos Humanos e Marginalizados, da
Arquidiocese de São Paulo.

O nome “Clamor” foi o nome dado ao boletim do Comitê de Defesa dos Direitos
Humanos para países do Cone Sul, cujo primeiro volume foi publicado em junho de 1978. O
nome foi inspirado no Salmo 88,2 – “Ó Senhor, deus da minha salvação, diante de ti clamo,
de dia e de noite. Chegue a minha oração perante a tua face; inclina teu ouvido a meu
clamor”. A intenção dos fundadores do Comitê era denunciar as contínuas violações dos
direitos humanos ocorridas na América Latina.

A imagem que marcava o símbolo do Clamor era um desenho de uma chama que
brilha através das grades de uma prisão, criado pelo ex-preso político Manoel Cirilo de

2
Organização civil, informal e clandestina, fundada na cidade de São Paulo em 1978 e encerrada em
1991.

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Oliveira Neto, que foi libertado em 1979. Além do símbolo, o Comitê também possuía um
slogan “Direitos Humanos não tem fronteiras”. Com esse slogan o Comitê percorreu todos
os países do Cone Sul e buscou auxílio financeiro e político junto a organismos
internacionais como o Conselho Mundial das Igrejas, a Anistia Internacional, Nações Unidas
e Banco Mundial.

Segundo correspondências e testemunhos que chegavam ao Clamor, as principais


violências cometidas pelos órgãos da repressão eram assassinatos, torturas,
desaparecimentos e sequestros de familiares de militantes políticos, sobretudo, de crianças,
filhas de militantes grávidas que eram presas pela polícia destes países ou através da ação
conjunta das forças repressoras dos países do Cone Sul, normalmente gerenciada por
integrantes da Operação Condor3. Havia listas de adoções nos presídios para os bebês que
viessem a nascer de mulheres que foram presas grávidas. As mulheres eram torturadas e,
após o parto, eram mortas e suas crianças eram entregues para a adoção, muitas delas
para famílias de militares. Ao todo, o Comitê ajudou a localizar vinte e sete crianças
desaparecidas.

Segundo denúncias realizadas por militantes políticos e pelos integrantes do grupo


Clamor, o Brasil não só exportou conhecimento de violência policial e militar como também
fazia parte de uma conexão com outros órgãos de repressão situados nos países do Cone
Sul. Uma prova disso seria a existência de computadores com terminais ligados nos
principais aeroportos do continente para seguir a movimentação daqueles que eram
considerados subversivos ou inimigos da Pátria.4

Os arquivos do terror
A base de dados dos Arquivos do Terror contém cerca de 60.000 registros dos
documentos localizados no Centro de Documentação e Arquivo para a Defesa dos Direitos
Humanos (CDyA) do Supremo Tribunal de Justiça do Paraguai . Esta base de Base de
dados foi desenvolvida através do Projeto Memória Histórica, Democracia e Direitos
Humanos (MHDDH), acordo firmado entre o Supremo Tribunal de Justiça, da Universidade
Católica de Assunção e da ONG The National Security Archive . Cada registro inclui o
código para imagens de microfilme, data do documento, tipo de documento, linha e nome; e
se for o caso, a origem, as organizações e localização geográfica. São fichas policiais, listas de
3
Ação conjunta das forças repressoras dos países Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai, Uruguai,
criada em 1975. A função principal dessa operação era neutralizar e reprimir os grupos que se
opunham aos regimes militares montados na América do Sul. O nome da operação faz referência a
uma ave andina, símbolo de astúcia na caça às suas presas.
4
Estas informações foram retiradas de documentos encontrados no Fundo Clamor, Arquivo do
Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul, do Centro de Documentação e
Informação Científica – CEDIC – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo / SP.

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entradas e saídas de presos, notas do chefe de investigações, informes confidenciais, controle de


partidos políticos, publicações periódicas, listas de suspeitos, informações sobre agremiações e
grupos considerados subversivos, controle de sindicatos e objetos como livros e cédulas de
identidade.
Durante a Ditadura Militar do general Alfredo Stroessner, milhares de paraguaios
foram detidos, torturados, exilados e muitos desaparecidos. A ditadura paraguaia (1954-
1989) gerou traumas e ressentimentos ainda presentes na população. Como todas as
ditaduras latino-americanas, ela violou os direitos humanos, cerceou liberdades e promoveu
mortes e desaparecimentos de cidadãos em nome da Segurança Nacional.

Uma das vítimas da ditadura paraguaia durante o governo do general Stroessner foi
o advogado Martín Almada que, desejoso de conhecer detalhes das acusações que o
colocara preso entre 1974 a 1977 e da morte de sua esposa, solicitou um habeas data às
autoridades judiciais paraguaias. Em 1992, atendendo ao pedido de habeas data5 do
advogado, as autoridades encontraram em Lambaré, cidade que fica a vinte quilômetros de
Assunção, um acervo composto de cerca de 60.000 registros de documentos contendo
informações sobre a ditadura do general Stroessner. Entre os documentos encontrados
ressaltam-se os documentos relativos ao funcionamento da Operação Condor com a ação
conjunta dos países Brasil, Paraguai, Chile, Uruguai, Argentina. Segundo López (2010),
antes de assumir a presidência Stroessner se reuniu secretamente com membros do
Comando Sul dos Estados Unidos. Nesta reunião foi assinado um pacto com altos oficiais
americanos e brasileiros, como parte do plano dos aliados anticomunistas durante a Guerra
Fria e a Doutrina de Segurança Nacional, implantada na década de 1960, por meio da
ditadura militar brasileira (LÓPEZ, Miguel H, 2010: p. 437-470).

Memórias resgatadas
Y unas de los golpes eran los que me marco que no se ni donde ni cuando
me llevan a arriba con la niña en brazo y también me hacen preguntas, y la
niña se pone mal porque me empiezan a pegar estando la niña en mis
brazos. Entonces yo para calmarla a niña le doy el pecho. Es más me dolió
6
porque para mi más le torturaron a la niña delante de mí.
O texto acima se refere ao depoimento de Maria Felicita Gimenez prestado à
Comision de Verdad y Justicia do Paraguai, no dia 11 de novembro de 2006. Ela foi presa e
torturada durante a ditadura do general Strossner, junto com sua filha. Ações como essas
eram utilizadas em técnicas de interrogatório para obtenção de informações consideradas

5
O habeas data assegura o direito de toda pessoa ter acesso a informação e aos dados sobre si
mesma.
6
Depoimento de Maria Felicita Gimenez prestado à Comision de Verdad y Justicia do Paraguai, no
dia 11 de novembro de 2006.

ISBN: 978-85-62707-55-1
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essenciais para o Estado de Segurança Nacional vigente nos países do Cone Sul e no
Brasil.

O avanço de denúncias e pesquisas nessa área apontou para a prática dessa


modalidade de “terrorismo de estado” em outros países do Cone Sul. Dados do relatório da
Secretaria Especial de Direitos Humanos do Brasil apontam como saldos das ditaduras do
Cone Sul os seguintes números:

no Brasil foram 50 mil pessoas presas, 20 mil torturados, 356 mortos e


desaparecidos, 4 crianças provavelmente sequestradas. No Uruguai foram
166 desaparecidos, 131 mortos, 12 bebês sequestrados, 55 mil detidos.
No Paraguai foram de 1 mil a 2 mil mortos e desaparecidos, 1 milhão de
exilados. No Chile foram 1.185 desaparecidos, 2.011 mortos (embora
estatísticas extraoficiais falem em até 10 mil assassinados), 42.486 presos
políticos apenas em 1976. Na Argentina foram 30 mil mortos e
desaparecidos e 230 crianças seqüestradas (BRASIL, 2009: p. 101).

No caso argentino, a maioria das crianças sequestradas tinha suas identidades


omitidas e eram posteriormente adotadas ilegalmente por famílias ligadas direta ou
indiretamente à repressão. Muitas crianças sequestradas junto com seus pais foram
adotadas por oficiais da repressão. Exemplo dessa situação é o caso da criança Mariana
Zaffaroni, sequestrada quando tinha dezoito meses de idade, junto com seus pais Jorge
Roberto Zaffaroni Castilla e María Emilia Islas de Zaffaroni em Buenos Aires, no dia 27 de
setembro de 1976, por forças da repressão argentina e uruguaia. A partir dessa data os
familiares de Mariana iniciaram uma busca para encontrá-la. No dia 20 de maio de 1983 o
jornal argentino “Clarin” de Buenos Aires publicou um apelo, com a foto da menina,
solicitando a quem tivesse qualquer informação de Mariana, que entrasse em contato com
as Abuelas da Plaza de Mayo7 ou com o grupo Clamor em São Paulo. Vinte dias após o
apelo chegou uma carta anônima da Argentina enviada ao grupo Clamor. A carta informava
que Miguel Angel Furci, membro do Serviço de Inteligência do Estado (SIDE), estaria com
Mariana em um subúrbio de Buenos Aires. A menina havia sido registrada como filha
legítima do casal Furci, sendo registrada dois anos após o seu nascimento. Segundo
Mariana Zaffaroni,

Hasta los 17 años creí que me llamaba Daniela Furci. Después de recuperar
mi identidad el proceso de adaptación fue bastante lento, yo no me quería
hacer cargo de mi historia. Pero cuando nació mi hija, todo empezó a fluir

7
Organização de direitos humanos argentina, fundada em 1977, que tem como finalidade localizar e
restituir às suas famílias legítimas todos os filhos sequestrados e desaparecidos durante a última
ditadura militar argentina (1976-1983).

ISBN: 978-85-62707-55-1
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con mi familia. Ahora, al ver personas parecidas a mí, tengo la sensación de


pertenecer. Esto yo no lo había sentido nunca a pesar de que tuve una
8
infancia feliz.

Segundo Samantha Viz Quadrat (2003: p. 167-181), a tortura de militantes políticas


durante e após a gravidez e, posterior sequestro dos bebês, eram práticas comuns
exercidas por membros da ditadura militar argentina. As militantes grávidas eram
sequestradas e após a ocorrência dos partos, geralmente em centros clandestinos, as
crianças eram retiradas das mães com a falsa informação de que seriam entregues aos
avós. Após a separação, a mães, geralmente, eram executadas. Esta prática tinha como
objetivo difundir o terror entre a população, quebrar o silêncio dos pais, educar as crianças
com uma ideologia contrárias a de seus pais biológicos. Para execução desse plano o
exército argentino difundiu instruções de seis manuais específicos. O manual intitulado
“Instrucciones sobre procedimiento a seguir con menores de edad hijos de dirigentes
políticos o greminales cuando sus progenitores se encuentran detenidos o desaparecidos”
(abril de 1977), ratifica a intenção dos militares de entregar para orfanatos ou famílias de
militares crianças com até quatro anos. Acreditava-se que até essa idade, essas crianças
estariam livres da influência política de seus pais. Várias das crianças nascidas em cativeiro
continuam desaparecidas. Segundo dados da Secretaria Especial de Direitos Humanos
(BRASIL, 2009: p. 101), na Argentina, cerca de 230 crianças, filhas de militantes políticos,
foram sequestradas durante o período da ditadura militar, sobretudo entre os anos de 1976
e 1983. Dessas crianças, 1099 conseguiram recuperar sua identidade biológica, graças ao
trabalho da Abuelas de La Praza de Mayo10. Desde aquela época até a atualidade as
Abuelas mantém um trabalho de busca de informações sobre as crianças desaparecidas
durante o regime militar argentino.

A repressão argentina concentrou-se em Buenos Aires, responsável por quase


metade dos desaparecimentos políticos. Contudo, outras cidades como Córdoba, La Plata e
Mendoza tiveram intensa atuação das forças armadas argentinas nas práticas repressivas.
Os principais alvos da repressão eram os sindicalistas, membros do partido peronista,
intelectuais, estudantes e jornalistas. Diferente do que ocorreu no Brasil e no Chile,

8
Disponível em: http://plansistematico.blogspot.com.br/2011_11_01_archive.html. Acesso em: 18 de
abr. 2014.
9
Abuelas de la Plaza de Mayo. Testemonios de Netos. Disponível em:
http://www.abuelas.org.ar/areas.php?area=testimoniosNietos.php&der1=der1_mat.php&der2=der2_m
at.php. Acesso em 19 de abr. 2014.
10
Associação civil, criada em 1979, por avós de crianças desaparecidas que iniciaram uma luta pela
defesa da vida e pelo direito de manter unidos os membros oriundos do mesmo sangue. Essas avós
ficaram conhecidas no mundo inteiro como símbolo da luta contra a ditadura em defesa dos direitos
humanos e do direito de voltar a ter o convívio com seus netos e netas.

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advogados que defendiam prisioneiros políticos e juízes também eram alvos da repressão
argentina. Segundo Anthony W. Pereira, a ditadura argentina expressou uma “quebra radical
com a legalidade anteriormente vigente e num ataque em grande medida extrajudicial aos
oponentes do regime” (PEREIRA, 2010: p. 44). A nova “constituição” proibia a atividade dos
partidos políticos e cancelava quase todos os direitos civis, sociais e políticos dos cidadãos,
em função de um constante Estado de Sítio.

No Paraguai, umas das principais estratégias utilizadas pelas forças repressivas para
obtenção de informações consideradas relevantes a respeito das ações praticadas pelos
“terroristas”11 era a prisão e tortura de filhos de militantes políticos durante a realização dos
interrogatórios. Tortura psicológica e física era praticada com as crianças, filhas de
militantes políticos, como mecanismo de obtenção de informações. A citação que segue
subsidia essa informação:

… Tenía 11 años, nos subieron llevándonos a todos en el chorro, luego nos


llevaron ahí en donde el agua estaba medio estancada y ahí nos
sumergieron la cabeza y luego sacaban de nuevo así sucesivamente y nos
preguntaban otra vez: “¿en dónde está Victoriano Centurión?”, y le volvimos
a decir de nuevo que no sabíamos nada y nos volvieron a meter en el agua,
ahí casi me ahogué, al no decirle nada me soltaron y le trajo a otra persona,
así sucesivamente a cada alumno le traían allí y les torturaban.(Marciana
Cano, Costa Rosado, 1980) (COMISIÓN DE VERDAD Y JUSTICIA, 2008: p.
91).

A situação dessas crianças estava determinada pelas condições em que se


encontravam suas mães. Três situações são identificadas pela Comisión da Verdad y
Justicia do Paraguai (COMISIÓN DE VERDAD Y JUSTICIA, 2008) mulheres que tinham
bebês e foram detidas junto com eles; mulheres que estavam grávidas durante sua
detenção e que tiveram seus filhos na prisão; mulheres que tiveram que deixar seus filhos
com outros familiares devido a situação de sua prisão, mantendo separadas dos mesmos
durantes anos.

Segundo dados da Comisión da Verdad y Justicia do Paraguai, dos 2059


testemunhos recolhidos, 15,7% correspondem a filhos e filhas de militantes políticos que
sofreram violações de seus direitos humanos. Desses testemunhos 56% correspondem a
homens e 44% a mulheres. Importante destacar a estigmatização dessas meninas, muitas

11
Designação dada pelas militantes aos militantes políticos contrários ao governo de Alfredo
Stroessner.

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vítimas de violência sexual, que até a idade adulta mantiveram um sentimento de culpa e
vergonha pelo que passaram. O testemunho abaixo subsidia essa informação:

...Ya tenía 12 años cuando eso… después a las niñas que sacaron... una es
mi prima, y que dicen que fue violada, yo no sabía cuando eso que le
sucedió, pero vi que sangraba y vinieron a meterla otra vez con el grupo.
C.F., Caaguazú, Costa Rosado, 1980 (COMISIÓN DE VERDAD Y
JUSTICIA, 2008: p. 93).

Durante a ditadura paraguaia, foram detidas 577 crianças e adolescentes. Dessas


289 foram torturadas, 39 exiladas, 7 desaparecidas e 3 executadas (COMISIÓN DE
VERDAD Y JUSTICIA, 2008: p. 93).

No caso brasileiro, as autoridades militares procuraram procurou manter ações


repressivas seletivas, preservando uma “aparente normalidade institucional com focos de
ação violenta” (TELES, 2013: p. 8). Contudo, violações dos direitos humanos de crianças e
adolescentes, filhas de militantes políticos fizeram parte do cotidiano de muitas famílias
brasileiras, ameaçadas pelo medo da tortura e do desaparecimento forçado de seus
familiares. O caso de Maria Auxiliadora, sequestrada no dia 13 de dezembro de 1968, junto
com seus filhos André (3 anos) e a Priscila (2 anos) é exemplo dessa prática. Seus filhos
ficaram quatro meses detidos nas dependências militares e submetidos a situações
degradantes e subumanas.

Há ainda os casos de crianças e adolescentes que foram presos e, algumas vezes,


torturados junto com seus pais, como é o caso do adolescente Ivan Seixas (16 anos) filho do
operário paranaense Joaquim Alencar de Seixas. Ambos foram presos em 16 de abril de
1971 e levados para as dependências da 37ª Delegacia de Polícia e posteriormente para o
Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna de
São Paulo (DOI-CODI/SP). Ambos militavam no Movimento Revolucionário Tiradentes
(MRT) quando foram presos. Pai e filho foram torturados juntos e após o assassinato de
Joaquim Alencar de Seixas, sua residência foi invadida, sua mulher e filhas foram presas.
Ivan passou seis anos preso sem responder a um julgamento.

No dia 30 de setembro de 1969, Virgílio Gomes da Silva Filho foi preso junto com
sua mãe e mais dois irmãos. No dia anterior seu pai Virgílio havia caído nas mãos dos
agentes da repressão e foi assassinado. Sua mãe e irmãos foram presos quando estavam
hospedados em uma casa praiana em São Sebastião / SP. Na época, seu irmão mais velho
Vlademir tinha oito anos, Virgílio seis anos e Isabel, sua irmã mais nova tinha somente
quatro meses. Todos foram detidos na sede da Operação Bandeirantes (OBAN). As três

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crianças foram arrancadas de sua mãe Ilda e levadas para o Juizado de Menores, onde
permaneceram por dois meses. Antes disso passaram por vários interrogatórios. Ilda
permaneceu presa até o ano de 1979, permanecendo incomunicável a maior parte do
tempo. As crianças foram separadas e cada uma delas foi morar com um tio. Às vezes elas
se reuniam e ficavam paradas em frente a um poste onde sua mãe, ainda presa, poderia
avistá-los. Após ser libertada e reunir sua família, Ilda e seus filhos foram morar em Cuba
onde permaneceram até concluírem o curso universitário(PIMENTA e TEIXEIRA, 2009).

Em 19 de fevereiro de 2013 morreu em São Paulo Carlos Alexandre Azevedo,


torturado quando tinha apenas um ano e oito meses de vida no Departamento Estadual de
Ordem Política e Social (Deops), em 1974. Carlos era filho do jornalista Dermi Azevedo,
militante e um dos fundadores do Movimento Nacional dos Direitos Humanos (MDNH). No
dia 14 de janeiro de 1974, Carlos Alexandre e sua mãe foram levados à sede do Deops
paulista, onde seu pai estava preso. Durante o interrogatório de Dermi, os policiais jogaram
Carlos Alexandre no chão e machucaram sua cabeça. A tortura deixou sequelas em Carlos
que viveu toda a sua vida submetido a tratamentos com antidepressivos e antipsicóticos. No
dia 19 de fevereiro deste ano Carlos Alexandre pôs fim à sua vida com uma overdose de
medicamentos12.

Em junho de 1970 quatro crianças - Ernesto (2 anos e 3 meses), Zuleide (4 anos e


10 meses), Luis Carlos (6 anos e 7 meses) e Samuel (9 anos),- presas com a avó e os pais,
foram enquadrados como subversivos e banidos do País por decreto do então presidente
Emílio Garrastazu Médici. Elas foram embarcadas em um voo rumo a Argel, capital da
Argélia. Após presenciarem a tortura de seus pais e avó e de serem torturadas, foram
banidas do Brasil com base no Ato Institucional Nº 13 que permitia “banir do território
nacional o brasileiro que, comprovadamente, se tornar inconveniente, nocivo ou perigoso à
segurança nacional”.

Nenhuma das crianças que tiveram os pais assassinados, clandestinos ou


encarcerados teve o direito de desfrutar da convivência familiar, escolar ou comunitária.
Seus relacionamentos eram marcados por restrições e segredos. Os finais de semana eram
passados em cadeias, únicas ocasiões que podiam visitar seus pais.

12
Morre em São Paulo homem torturado pela ditadura quando tinha um ano. Disponível em: <
http://noticias.terra.com.br/brasil/,ead367d062fec310VgnVCM3000009acceb0aRCRD.html>. Acesso
em 01 mar. 2013.

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Considerações finais
Há um consenso na historiografia sobre o protagonismo do Brasil em ações de apoio
e sustentação das ditaduras que se instalaram no Cone Sul após 1964. Este protagonismo
incluía ações de repressão, sobretudo troca de informações, fornecimento de documentos,
troca de prisioneiros, treinamento em área de inteligência e em técnicas de “interrogatório”
com a colaboração dos serviços secretos norte-americanos e britânicos. A historiografia
analisa que esse processo se expandiu e intensificou ao longo de quase 20 anos e identifica
pelo menos três estágios distintos de colaboração entre as ditaduras, com participação
brasileira. O primeiro estágio começa a partir de 1964; o segundo, após o início da ditadura
chilena, um estágio que passa a incluir troca de prisioneiros sem registro, seqüestros e
assassinatos. O terceiro estágio, a Condor, a partir de 1975. O Acervo Clamor é importante
porque ele permite analisar e perceber essas ações e o protagonismo brasileiro nelas.
O resgate do conteúdo deste Fundo e de outros semelhantes é crucial para
percebermos a política de cooperação adotada entre os países do Cone Sul e Brasil, bem
como o protagonismo brasileiro nas ações de repressão, troca de prisioneiros e treinamento
em áreas de inteligência e técnicas de interrogatórios. Relatar essa história é contar casos
de lutas em defesa dos direitos humanos, mas também de casos de usurpação desses
direitos, com a utilização clandestina, mas explícita, de métodos de barbárie, de violência
física, psicológica e cultural, capaz de gerar uma cultura do medo alimentada pelo terrorismo
de Estado vigente nesses países. Conhecer essa história é garantir o não esquecimento de
fatos que desonraram a humanidade, que alimentaram o silêncio e a inação política e social.
Recordar esses fatos é oferecer à sociedade a chance de conhecer seu passado, aprender
com ele e, a partir disso, desenhar o seu futuro.

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O anticomunismo na imprensa diária de Sorocaba (1964-1968)

Bruno de BARROS
Mestrando pela Universidade de São Paulo (USP)
bruno_de_barros@yahoo.com.br

Introdução

A posição anticomunista, assumida na década de 1960, pelos jornais: Cruzeiro do


Sul, Diário de Sorocaba e Folha Popular, foi analisada como parte importante da
contextualização do golpe de 1964, na cidade de Sorocaba e será brevemente exposta no
texto a seguir.
O jornal Cruzeiro do Sul fundado no ano de 1903, em meio às disputas políticas
locais, ligadas ao Partido Republicano Paulista (PRP), no começo do ano de 1963, seu
proprietário foi persuadido a vendê-lo para alguns membros da loja maçônica da qual
pertencia.
O jornal passou por uma reforma estrutural, em agosto de 1964, tornou-se
propriedade da Fundação Ubaldino do Amaral, também, pertencente a mesma loja e se
empenhou em definir-se como liberal e republicano1.
Vitor Cioffi de Luca, natural do estado do Paraná, formado em jornalismo pela
faculdade Cásper Líbero, em 1951, dirigiu o jornal Folha Popular, até sair e fundar em 1958
o Diário de Sorocaba. Salienta-se, a respeito do dono dessa folha, um forte caráter cristão e
católico, e a crença em um modelo profissional de jornalismo, transferido para a orientação
e direção do jornal (Diário de Sorocaba, 06/07/1963 e 06/07/2011).
Na casa Paroquial de Sorocaba, em 17 de outubro de 1949, se organizou a
estruturação de uma folha de perfil “eminentemente doutrinário” e de cunho “absolutamente
cristão”, formulou-se ai os princípios do jornal Folha Popular. Durante a década 1950 este
jornal pertenceu à diocese de Sorocaba, posteriormente foi adquirido pela família Teixeira
dos Santos, porém, manteve entre seus redatores alguns membros do clero local.
O interesse em debater a história de Sorocaba e a ausência de trabalhos sobre a
história local, na qual sejam estudados os embates sócio-políticos, inerentes às
transformações da sociedade moderna, pautada pela urbanização, industrialização, e
conflituosa, entre os grupos políticos formados em seu interior levou a escolha destes
jornais, como fonte e objeto de pesquisa (LUCA, 2005). A proximidade em relação à disputa

1
Sobre a história dos jornais, muito foi publicado em materiais comemorativos dos mesmos. Alguns
livros – como o de José Aleixo Irmão (1996) - trouxeram informações relevantes sobre um dos jornais
estudados, porém, por estar vinculado ao grupo, ou a direção da folha, acabou por reproduzir o
discurso publicado nos textos comemorativos de fundação do jornal. Em contrapartida, procurou-se
comparar alguns destes textos, escritos em épocas diferentes e por diferentes autores para observar
distinções e contradições entre os mesmos. No mesmo sentido, se fez uma análise da primeira
edição de cada jornal na qual foi expresso o conteúdo programático das folhas estudadas.

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do controle político local é uma das principais características das folhas do interior, outra é
voltar-se para as questões da sociedade em que esta inserida, com a valorização de
notícias sobre município e estado, em maior grau, que as informações sobre o contexto
nacional (LUCA, 2005, CAETANO, 1981).
Em um país onde os jornais tem forte tendência a se autopromoverem como porta
vozes do povo, a força e a expressividade da imprensa se amplifica. Assim, esta se torna
importante instrumento de veiculação de ideias e doutrinas, elaboradas por sujeitos e
agentes políticos (MOTTA, 2002, CAPELATO, 1994, AQUINO, 1990 e 1994).

O anticomunismo e a presença comunista no contexto local

O anticomunismo das folhas locais é compreendido como a oposição, as ideias


leninistas-marxistas, e a revolução de 1917 na Rússia. Rodrigo Motta (2002) destacou o fato
do mesmo ser reivindicado em momentos que resultaram em uma virada autoritária, na vida
política brasileira, com a união dos grupos conservadores da sociedade, que reunidos sob a
mesma bandeira, lutaram pela manutenção de seu status quo.
Entretanto, é importante demonstrar ser este aspecto dos jornais locais fruto
convergente, tanto da situação nacional, como de elementos da história da cidade.
Os ideais libertários e de revolução social, tiveram penetração na classe operária e
levaram, entre o fim do século XIX e inicio do XX, a formação de partidos socialistas e
sociedades mutualistas entre os operários de Sorocaba. Após as greves de 1917 e 1919 o
viés libertário diminuiu drasticamente, devido coação dos industriais e a repressão do
Estado (ARAUJO NETO, 2006).
A partir de 1930 cresceu a influência comunista no movimento operário, foi, também,
desta década, a primeira onda anticomunista a contribuir para levar o país a um regime
ditatorial - o Estado Novo de Getúlio Vargas. É, também, do período o legado do fantasma
da Intentona Comunista, a assombrar as páginas dos jornais liberais, dispostos a abandonar
seus princípios em prol da luta contra o “perigo vermelho” (ARAUJO NETO, 2006, MOTTA,
2002, e CAPELATO, 1980).
Heber Ricardo da Silva (2009) demonstrou que durante 1945 e 1948, foi recorrente a
elaboração de imagens negativas do comunismo, por elementos binários, na grande
imprensa do eixo Rio-São Paulo, levados pela influência da guerra fria e pela breve
legalidade do PCB.
Em Sorocaba, no ano de 1946, ocorreram mobilizações e paralizações operárias na
qual participaram ativamente membros do partido comunista. Na cidade foram criados
“Comitês Democráticos Populares”, abertos a propaganda do PCB. Durante o ano de 1947,
na imprensa local, circularam manchetes como “A Rússia está construindo fábricas de

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bombas atômicas” e “O terrorismo implantado pela nova internacional”. Neste ano a cidade
recebeu as visitas de Luís Carlos Prestes e Jorge Amado, em apoio aos candidatos
comunistas locais. Com a ilegalidade do PCB, a estratégia dos candidatos locais foi de
agremiarem-se no Partido Social Trabalhista (PST). A contrapartida anticomunista veio em
forma de panfleto, na qual, se explorava uma situação pessoal de um deputado do Partido
Comunista e procurava estabelecer relações entre, a filiação ou simpatia, pelo comunismo,
como principio de derrocada e perdição moral (CAVALHEIRO, 2001).
O candidato comunista a prefeito ficou em segundo lugar nas eleições de 09 de
novembro de 1947 e foram eleitos 14 vereadores dessa sigla, para uma Câmara com 31
vereadores, inclusive a primeira mulher eleita como vereadora em Sorocaba (também pelo
PST). Entretanto, todos estes vereadores foram cassados pelo Tribunal Regional Eleitoral
que negou a existência do diretório do partido (Cruzeiro do Sul,15 de nov. de 1947, p. 1).
No início da década de 1960 nota-se que grupos conservadores reivindicavam para
que todos estivessem “De pé e a ordem”, pois, a “nação estaria em perigo”, e, por tal razão,
não se furtariam a intervir na vida política. Por outro lado, sindicatos locais, com lideranças
de esquerda, organizaram longas greves, da qual a principal, em 1963, foi a da E.F.
Sorocabana. Em meio a isso, um dos jornais locais, orientava seus eleitores para os perigos
da vitória do materialismo comunista ateu ou do laicismo maçônico, para o cargo de prefeito
ou vereador. Estes elementos demonstram as circunstâncias político-sociais pela qual
passava a cidade e indicam alguns matizes, da opinião da imprensa local2 (ALEIXO IRMÃO,
1996 e GUARINO, 1987).

O anticomunismo na imprensa diária de Sorocaba


No Brasil a característica de oposição anticomunista teve aspectos próprios, a
oposição religiosa, pelo catolicismo, foi base principal da mobilização anticomunista. Por sua
vez, a oposição norte-americana contra o comunismo, consolidou a imagem ideológica de
perigo contra o mundo livre, sobretudo, após a revolução em Cuba (MOTTA, 2002).
A análise da imprensa sorocabana concentra-se no segundo momento de reviravolta
anticomunista, destacado por Rodrigo Motta, do qual se inclui o contexto do golpe civil
militar de 1964.
Na semana do Comício pelas Reformas de Base, os jornais de Sorocaba, valeram-se
da incitação do temor ao comunismo e sua identificação com o governo, enquanto inimigo
da liberdade democrática, da família, da propriedade e da religião, como se pode ver nos
títulos de suas matérias:

2
Ver as seguintes edições dos jornais - Folha Popular: 30 de nov. de 1963, p. 1, 11 de out. de 1963,
p. 1 e 06 de out. de 1963, p. 1. No Diário de Sorocaba: 11 de out. 1963, p. 1 e 26 de nov. de 1963, p.
1.

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POVO SOROCABANO OROU CONTRA O COMUNISMO. (DS, 15 de mar


de 1964, p.1) / Autonomia da Guanabara corre graves riscos (CS, 10 de
mar. 1964, p.1) / Governador apela aos universitários para que
permaneçam na luta pelas liberdades (CS, 11 de mar. de 1964) / Comício
de hoje: expectativa e protestos (CS, 13 de mar. de 1964, p. 1).
Ameaçadas de invasão as terras da fazenda Ipanema (FP, 10 de mar. de
1964, p. 1 e 2) / Jovens Sorocabanos integrados no movimento anti-
3
comunista de Bauru (FP, 15 de mar. de 1964, p. 3).

Além de jovens envolvidos em atividades anticomunistas, havia senhores da


sociedade local, dispostos a empunhar armas para defenderem-se da “cubanização” do país
e, também, senhoras católicas em “cruzada” contra extinção da religião e da liberdade.
Portanto, não chega a surpreender a divulgação, nos três jornais, no dia 18 de
março, de portaria da delegacia regional, com a convocação de voluntários dispostos a
unirem-se a polícia, para resistir contra a suposta investida de Cuba ou Moscou.
Este fato, pela perspectiva da força e caracterização do discurso, produzido na
imprensa, declarou a destituição da representatividade do governo, pois, o mesmo estaria,
agora, a serviço dos interesses sombrios e externos, e não mais do povo que lhe delegou o
poder. Caberia, assim, oficialmente ao “democrata convicto” e aos “homens de bem” a
“defesa das liberdades constitucionais” e das “instituições democráticas nesta hora
conturbada” contra o governo4.
Na portaria para chamada de voluntários é marcante a especificação do tipo de
individuo almejado para pertencer ao Corpo de Inspetores. Deste seria exigido “Verdadeira
vocação democrática e cristão (sic) comprovada com rigorosa sindicância a ser feita pela
delegacia” (Cruzeiro do Sul, 18 de mar. de 1964, p.1).
Os dias posteriores de campanha contrárias a Goulart – identificado com o
comunismo e a subversão das leis5 - tornou-se embasada pelo fervor religioso da “marcha
da família por deus, pela liberdade”:

Convocado o povo cristão de Sorocaba para Grande concentração


democrática (DS, 25 de mar. de 1964, p. 1) / Povo sorocabano vai à praça
pública: em defesa do regime e da Constituição (CS, 24 de mar. de 1964, p.
1) / “Lutamos por uma Pátria livre”: Sorocaba defende hoje seu lema (CS,

3
Os nome dos jornais Cruzeiro do Sul, Folha Popular e Diário de Sorocaba serão nas citações trados
por suas respectivas iniciais.
4
Para a portaria baixada pelo delegado regional e a integra dos critérios para integrar o grupo de
voluntários, ver as edições dos jornais Cruzeiro do Sul (este disponível on-line), Diário de Sorocaba e
Folha Popular dos dias 18 e 19 de mar. de 1964. A respeito da perda de representatividade do
governo Goulart, produzida por um discurso estratégico para esta finalidade, e seu resultado efetivo
ver Luiz Fiorin (1988).
5
Algumas das notas publicadas na imprensa, antes e depois do golpe, identificaram as ações e
objetivos de João Goulart como uma ação de levar o país ao comunismo. Daí expressões como
“comunização” ou “comunizantes” para fazer referencia a ação de Goulart. Ver: Diário de Sorocaba,
19 de mar. de 1964 e 03 de abr. de 1964.

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25 de mar. de 1964, p. 1) / Marcha “Com Deus, Pela Família” em Sorocaba


(FP, 25 de mar. de 1964, p. 1).

Os jornais, Cruzeiro do Sul e Diário de Sorocaba, assumidamente apoiaram a


marcha em Sorocaba, programada justamente para o dia 25 de março, mesmo dia, de um
comício local em favor das reformas de base. As noticias do Comício em apoio as Reformas
e da “Marcha” foram divulgadas de forma mais equilibrada pela Folha Popular.
O primeiro impulso repressivo do regime, após, efetuado o golpe civil militar, e a
destituição do presidente, foi noticiado com entusiasmo e alivio pelos jornais, por ser a
vitória contra o inimigo comunista:

Represália Anti-Comunista prossegue: DOPS funcionou na E.F.


Sorocabana (FP, 05 de abril de 1964, p. 1) / Propaganda comunista
aprendida em Sorocaba, vinha do palácio do catete (FP, 9 de abril de 1964,
p. 1) / Lancetado o abcesso (ROCHA, Jurandyr, CS, 02 de abr. de 1964,
última página) / Sem um tiro: terminada a maior crise brasileira (CS, 03 de
abr. de 1964, p. 1) / Libertaram Porto Alegre as forças da Democracia,
Jango pediu e obteve asilo / Caminho de Castro derrubou Goulart (DS, 3 de
abr. de 1964, p. 1) / Revistada pela polícia a sede do Partido comunista em
Sorocaba (DS, 04 de abr. 1964, p. 1)

A oposição ao modelo econômico seguido pelo governo militar e a ausente melhora


nas condições econômicas foram ponto em comum de críticas ao regime pelos jornais, entre
1964 e 1968. Entretanto, os jornais, Cruzeiro do Sul e Diário de Sorocaba, foram cautelosos
a respeito do retorno a maior participação da sociedade no debate político. Estiveram
favoráveis a sua ampliação, porém, receosos, pois, desconfiavam da orientação da
crescente oposição política ao regime, de tal maneira que esses jornais mantiveram seu
voto de confiança no regime.
A rejeição da identificação, com os ideais leninistas-marxistas, ou com o comunismo,
no jornal Folha Popular, equilibrou-se com a crítica ao autoritarismo do regime militar, desde
o início de 1965.
Durante esses anos os jornais frequentemente recorreram a dois tipos de
representação dos comunistas ou de países comunistas. Um deles, comum aos três jornais,
foi a publicação de notícias e opiniões comparativas e negativas a respeito de países
comunistas, como China, Cuba, e URSS. A Folha Popular, por sua vez, publicava tirinhas
que aludiam os mesmos elementos negativos mostrados nas notícias e informações
vinculadas sobre esses países.
No ano de 1968, com o crescimento da agitação nacional, se retomou
gradativamente o discurso anticomunista nos jornais Diário de Sorocaba e Cruzeiro do Sul,
como é possível ver no títulos dos editoriais: Hora e vez dos agitadores (DS, 05 de abr. de
1968, p. 3) / Imperialismo e Comunismo (CS, 26 de jan. de 1968, p. 2).

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O jornal Folha Popular publicou, durante o primeiro semestre de 1968, artigos


assinados pelo padre Aldo Vannucchi, a maioria em sua primeira página, de onde se retirou
os trechos a seguir:

O Brasil não merecia essa situação. Sair das comedias políticas de Jango
Goulart para cair nesse regime de terror e estupidez, positivamente não
agrada a ninguém. A não ser aos pescadores de águas turvas. (FP,
04/03/1968)/ Uma das características mais tristes da realidade brasileira
atual é o silencio das classes assalariadas. (...). É o medo da prisão
também, por subversivo... (FP, 20/04/1968, p.1)

As alegações prévias para o golpe de 1964 foram reinvocadas, nos editoriais dos
jornais Cruzeiro do Sul e Diário de Sorocaba - O comunismo como sinônimo de ateu, a
preocupação com a desordem social, o desrespeito à hierarquia - a serviço de Cuba e seu
projeto revolucionário - foram readaptados para momento atual. Já o principal argumento
utilizado pelos jornais como o causador da crise política em 1968 foi a infiltração comunista
no meio estudantil.
O jornal Folha Popular, nos últimos meses do ano, teve sua circulação,
continuamente interrompida, e em dezembro foi anunciada sua venda.
A edição do Ato Institucional nº 5 foi justificada como uma resposta do regime a
reorganização das forças comunistas, infiltradas na oposição, política ou estudantil. Da
mesma maneira, após algum tempo, como em 1964, as justificativas para o AI-5, nos artigos
e editoriais, ou, em forma de charges, voltaram-se para o combate a corrupção.
Por fim, a análise dos três jornais demonstrou a permanência, mesmo em jornais que
publicaram artigos de opinião contrários ao regime militar, de discursos ou alusões
anticomunistas, entre 1964 e 1968. Creditou-se a onda anticomunista local em 1964 não
apenas a conjuntura nacional, com grande polarização política, mas, também, a um histórico
de mobilização e reivindicação ativa de partidários da esquerda na cidade.

Referências

1) Jornais

Cruzeiro do Sul
Diário de Sorocaba
Folha Popular

2) Bibliografia

ALEIXO IRMÃO, José. A Perseverança III e Sorocaba (Do suicídio de Vargas à Sagração do
Templo), Sorocaba-SP, Fundação Ubaldino do Amaral, 1996.

AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-1978). O


exercício cotidiano da dominação e da resistência. O Estado de S. Paulo e Movimento. 166

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f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências


Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1990.

ARAUJO NETO, Adalberto Coutinho de. Entre a revolução e o corporativismo. A experiência


sindical dos ferroviários da E.F. Sorocabana nos anos 1930. 283 f. Dissertação (Mestrado
em História Econômica) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2006.

CAETANO, Kati Eliana. História, sociedade e discurso jornalístico: análise de alguns jornais
veiculados em Corumbá-MS durante o Estado Novo. Dissertação, 192 f., Dissertação de
Mestrado na área de linguística, Faculdade de Filosofia E Ciências Humanas, Universidade
de São Paulo, 1981.

CAPELATO, Maria Helena, PRADO, Maria Lígia. O Bravo Matutino (Imprensa e ideologia no
jornal “O Estado de S. Paulo”), Editora Alfa-Omega, São Paulo,1980.

FICO, Carlos. Versões e Controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 24, nº 47, 2004.

FIORIN, José Luiz. O regime de 1964: discurso e ideologia. São Paulo, Atual, 1988

LUCA, Tania Regina de. História dos nos e por meio dos periódicos, In: PINSKY, Carla
Bassanezi (org). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o “Perigo Vermelho”: o anticomunismo no


Brasil (1917-1964). São Paulo, Perspectiva: FAPESP, 2002.

SANTOS, Guarino Fernandes dos. Nos Bastidores da Luta Sindical. São Paulo, Ícone
editora, 1987.

SILVA, Heber Ricardo. A democracia impressa: transição do campo jornalístico e do político


e a cassação do PCB nas páginas da grande imprensa, 1945-1948 [online]. Editora UNESP;
São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. 240 p. Disponível em <<http://books.scielo.org>>

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Ufanismo, conservadorismo e iconografia política na música popular brasileira: um


estudo de caso sobre o EP Wilson Simonal, novembro de 1970

Bruno Vinícius Leite de MORAIS


Mestrando em História pela UFMG
bruno_viniciusdemorais@hotmail.com

O estudo da História, como sabemos, é constantemente tomado por revisões,


motivadas por alguma descoberta documental, uma nova abordagem ou o deslocamento da
análise a partir de diferentes atores. Assim tem ocorrido com a abordagem da nossa última
ditadura, conforme temos percebido nas diversas mesas e comunicações deste seminário
quanto aos 50 anos do golpe de 1964. A produção historiográfica sobre o período recebeu
um novo e polêmico foco nos últimos anos através de um grupo de historiadores que,
desejosos de combater um aparente “enquadramento da memória” do período ditatorial em
torno da noção de resistência, passaram a enfatizar o apoio recebido pela sociedade civil.
Deste modo, analisam a articulação entre setores civis e militares que resultou no golpe de
Estado de 64, e a ditadura militar dele consequente, enfatizando o papel da sociedade civil
como uma colaboração – termo retirado da forte inspiração na historiografia francesa sobre
o governo de Vichy durante a ocupação nazista.

Assim, num deslocamento de objeto do grupo da resistência, que seria uma parcela
menor da sociedade brasileira ou mesmo algo exógeno a ela (REIS, Daniel Aarão, 2010),
passam a enquadrar as análises, sobretudo, sob as classes médias que teriam se
beneficiando do regime, justificando estudos em torno do que foi chamado de criação de
“consenso” na construção social do nosso regime autoritário, conforme obra organizada por
Denise Rollemberg e Samantha Quadrat (2011). Nesta nova abordagem, que renomeou a
natureza da ditadura como “civil-militar”, destacou-se também estudos sobre o período do
“milagre econômico” que, se era chamado de “anos de chumbo” pela memória de
resistência (por ser o mais repressivo do regime), é recordado como “anos de ouro” para
muitos, inclusive pela forte aprovação ao governo Médici. Embora tal apoio ou respaldo de
setores da sociedade sejam evidentes para se pensar qualquer regime de exceção que dure
tanto tempo (21 anos), tais aspectos aparentemente encontravam-se à margem da memória
e historiografia sobre o período, justificando o destaque das recentes abordagens1. No caso,
faço uma ressalva, “anos de ouro” para os setores que se beneficiaram, já que podemos
relembrar aqui que foi um período de grande arrocho salarial e de enorme aumento da
desigualdade social, com intensa concentração de renda. Tudo isso submetido à forte
controle da circulação de informação, através de censura, e constantes e densas

1
Sobre o respaldo popular ao governo Médici, um interessante artigo é o de Janaína Martins Cordeiro, Anos de
chumbo ou anos de ouro? A memória social sobre o governo Médici. Publicado in: Revista Estudos Históricos,
Vol. 22, No. 43, 2009, p.85-104.

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propagandas apologéticas à realidade nacional. Ressalva importante para se atentar ao


risco de que, ao combater o enquadramento que teria produzido uma memória de
resistência para toda a sociedade, isolando a ditadura como um embate entre militares
golpistas e civis vitimizados, o contraponto pode ser o risco de se produzir uma memória de
uma sociedade adesista (ou, conforme o lugar comum dessa vertente historiográfica,
“colaboracionista”). O que seria igualmente falso e reducionista, mas ainda mais perigoso
quanto a potenciais implicações éticas e morais, visto o impacto dos usos da produção
histórica, sobretudo da história recente, para questões políticas e identitárias da sociedade.

Apesar do forte impacto dessa nova historiografia, a problemática do posicionamento


adesista ao regime (termo que prefiro em detrimento ao “colaboracionismo”) no campo da
música popular, de grande importância para a problematização do campo artístico do
período, ainda foi pouco trabalhada pelos historiadores. Aspecto que motivou o presente
texto, que objetiva refletir sobre o momento no qual o politicamente controverso cantor
Wilson Simonal demonstrou afinidade com o ufanismo conservador da ditadura militar
brasileira em um EP, lançado em novembro de 1970.

O nome de Simonal já havia aparecido com certo destaque em meio às discussões


sobre as situações que buscaram conferir alguma legitimidade ao regime militar, o que uns
chamam de “consenso”. Também pudera! Cantor de enorme sucesso popular nos anos
1960 caiu em desgraça em um momento simultâneo à explosão do escândalo de ter se
envolvido em um processo judicial referente à prisão e tortura de seu contador, no qual
Simonal se declarou um colaborador do DOPS. Tendo desaparecido da memória social,
fonográfica, e da produção acadêmica sobre o período, há pouco mais de 10 anos surgiu
um destacado interesse sobre a vida e obra do artista, o que o jornalista Ricardo Alexandre
chamou de “simonalmania”, retomando uma expressão midiática surgida nos anos 1960
para se referir ao sucesso do artista. Paralelo a esse reestabelecimento da obra do cantor
entre os cânones da canção brasileira, foi defendida em 2007 uma dissertação por Gustavo
Alonso Ferreira, posteriormente publicada em livro (2011), analisando-o como um “bode
expiatório” na construção da memória de resistência por uma sociedade que estaria
negando seu apoio à ditadura. Além desta, outra dissertação, defendida por Adriane Hartwig
em 2008, analisa Simonal enquanto um instrumento descartável do sistema, com toda sua
produção artística voltada para a alienação das massas ante a exploração capitalista.

Embora os trabalhos historiográficos citados enfatizem o caráter politicamente


conservador de Simonal, os autores pouco se debruçaram sobre o momento em que a
produção artística do músico esteve mais diretamente atrelada ao discurso oficial do
governo ditatorial, neste EP (Extended play – uma gravação em vinil intermediária entre o

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Compacto - single - e o Long Play, ou Álbum) de novembro de 1970. Chamadas pelo próprio
Simonal de músicas “nativistas”, as canções presentes no EP – das quais nenhuma
apareceu em um álbum regular do artista – causaram furor na crítica da época, sendo
escorraçadas por veículos de informação. Como a revista Veja que comparou as canções
lançadas no EP com o velho livro Por que me ufano do meu país (ALEXANDRE. 2009: 179).
Das quatro canções presentes, três já haviam aparecido em outros EPs lançados nos dois
meses anteriores, sendo a única inédita a canção “Resposta”.

Para melhor estudarmos o comportamento político expresso no EP, proponho


começar com uma análise desde a capa. As capas de discos, apesar da forte presença em
nosso cotidiano e até da relação afetiva que muitos estabelecem com elas, ainda são
objetos pouco trabalhados pela historiografia. Além da função inicial de serem embalagens,
proteções do disco, também são mecanismos comerciais para sedução do consumidor e, ao
mesmo tempo, um meio de comunicação entre o artista, sua obra, e o seu público através
de um recurso visual. Portanto, são um convite à obra musical ali contida e podem anunciar
ao público, antes mesmo da audição do disco, uma mensagem que o artista queira
transmitir. Assim, mesmo uma capa sem um trabalho aparente estabelece uma
comunicação através de sua simplicidade, como o álbum branco dos Beatles (1968), o do
Caetano Veloso (1969) ou o Back in Black do AC/DC (1980), com sua capa negra, entre
outros.

No que se refere às capas com um trabalho gráfico, essa relação se torna ainda mais
evidente. O uso de um trabalho gráfico pensado para as capas de disco advém da década
de 1930, com inspiração do layout publicitário, conforme as dissertações do historiador Erick
de Oliveira Vidal (2008) e do designer gráfico Jorge Caê Rodrigues (2007). Mas a partir dos
anos 1950 que vemos a presença de um trabalho gráfico mais cuidadoso nas capas de
disco, inclusive com o uso de fotografias, algo de custo elevado no período. No entanto, com
um caráter artístico pouco reconhecido. Ainda assim, a partir dos anos 1960 e a solidificação
do consumismo pela Cultura Jovem, segundo Rodrigues, a arte gráfica dos discos aparece
como um importante mercado de trabalho para vários designers e mesmo artistas plásticos
renomados, como Andy Warhol (que nos anos 1950 já era o principal ilustrador dos discos
de jazz do selo Blue Note) nos EUA ou Cândido Portinari, no Brasil. Neste período também
vemos a elaboração de capas mais complexas, conceituais, embora sempre comerciais.
Afinal, conforme a visão de um destacado design de capas brasileiro do período, César
Villela: “Não se pretende que alguém ‘entenda’ uma capa de LP mas sim que sinta
decisivamente atraído por ela” (Cesar Villela em LAUS, Egeu. Apud. VIDAL. 2008: 87).

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Ainda assim, ao contrário de Villela, aqui é defendida a possibilidade do


entendimento, sim, das capas de disco, para além (mas não eclipsando) do efeito de
atração exercido por elas. As capas, assim como pôsteres e outdoors, também são recursos
imagéticos através dos quais se veiculam mensagens que informam sobre o contexto no
qual foram produzidas e sobre as intenções dos artistas envolvidos naquela obra artística.
Assim, a dissertação de Vidal, inovou, analisando a relação entre a estética dos “silêncios”
da Bossa Nova e a valorização dos “espaços vazios” nas capas produzidas pela gravadora
Elenco. As capas também são interessantes objetos para o estudo da revolução
comportamental vista na segunda metade do século XX, inclusive da agressividade e da
contestação aos costumes atribuída à juventude, como em vários exemplos ligados ao rock
and roll. E da cultura de grupos marginalizados, se pensarmos em diversos gêneros
considerados “popularescos”, como “brega”, rap, vertentes do samba e etc., para citar casos
nacionais.

Além de um objeto para a história social, acredito que as capas também possam
contribuir no trabalho do historiador do político. Casos como o LP Sandinista lançado pelo
grupo The Clash em 1980, é ilustrativo, com o titulo em vermelho sugerindo um apoio ao
governo revolucionário nicaraguense vitorioso no ano anterior sob uma das ditaduras mais
ferozes da América Latina. Doze anos depois, o álbum de estreia da engajada banda
estadunidense Rage Against the Machine também impacta pela famosa capa, com o monge
em chamas, chamando atenção aos problemas tibetanos e já antecipando o ouvinte para o
som pesado, incendiário, e as letras altamente politizadas que caracterizam o grupo.
Seguindo essa linha de raciocínio, diversas capas do músico e ativista nigeriano Fela Kuti
também são representativas de possibilidades de análises políticas.

Para além das possibilidades de leitura referentes às modificações comportamentais


ou de temáticas políticas contestatórias e/ou associadas à esquerda, as capas de disco
também permitem leituras sobre o posicionamento conservador. E aqui retomo da longa
digressão para a análise do EP lançado por Simonal em novembro de 1970. O historiador
Gustavo Alonso Ferreira, quando cita sobre este trabalho menciona brevemente as
similaridades de sua capa com “o famoso cartaz do Tio Sam conclamando os americanos a
aderir ao exército.” (FERREIRA. 2011: 317). Através de um interessante artigo de 2003 do
historiador Carlo Ginzburg, podemos refletir melhor sobre tal aproximação. Nesse artigo,
intitulado Tu país te necessita: un estudio de caso sobre iconografia política, Ginzburg
promove uma elaborada análise do famoso cartaz.

Como sabemos, o cartaz original não é o que retrata o símbolo estadunidense, mas
sim um que apresenta o sisudo e destacado general inglês Lord Kitchener e com os dizeres

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“seu país precisa de você” (fig.1). Lançado em setembro de 1914, antes da adoção do
alistamento obrigatório, com colaboração do efeito do cartaz, contam-se cerca de 35 mil
alistamentos ao dia, chegando à surpreendente cifra total de dois milhões e meio de homens
alistados (GINZBURG. 2003: 15). Tal fenômeno de resultado contribuiu para o que foi
chamado de triunfo da imagem, o cartaz, sobre o personagem real, Kitchener. Como
comprovação do feito, ainda durante a Primeira Guerra Mundial e imediatamente depois,
“versões mais ou menos reelaboradas do pôster de Lord Kitchener foram feitas na Itália,
Hungría e Alemanha. Nos Estados Unidos e na União Soviética, Lord Kitchener reapareceu
representado como Tio Sam (fig. 2) e como Trotsky, respectivamente” (idem. Pg.18). Esse
resultado é interessante para pensarmos no que o historiador Eric Hobsbawm diagnosticou
como o processo de “lealdade e da subordinação voluntária dos cidadãos ao seu governo”,
que não é uma lealdade às elites, “mas ao Estado e à nação”. (HOBSBAWM. 1999: 36).
Uma diferença, ainda seguindo o argumento de Hobsbawm, entre as guerras atuais e as
anteriores à idade contemporânea, na qual o Estado conseguiu o feito (considerado por
Hobbes impossível mesmo para o Leviatã) de convencer o cidadão a “estar pronto para o
ato supremo de abdicar de sua liberdade e de sua vida” em nome do Estado (idem, ibidem).

Tamanho sucesso do cartaz foi relatado já em sua época como efeito do olhar
penetrante de Kitchener e a estratégia de comunicar diretamente com o público alvo. A partir
daí, Ginzburg promove uma sugestiva abordagem sobre as tradições de que seria devedora
a potência narrativa da imagem. Ele conclui que remete a duas tradições interconectadas: a
das figuras com o olhar “de frente”, capazes de aparentemente ver a tudo; e às figuras com
dedos apontando em relevo. Além dessas tradições, existentes desde antes do século XV, o
pôster bebe amplamente da linguagem da publicidade, conforme exemplos da primeira
década do século XX, nos quais já apareciam tanto o dedo indicador apontado para “fora do
quadro”, quanto às recomendações do uso de um invasivo “tu” (ou “você”) para reforçar a
mensagem, através de um caráter pessoal, como em uma carta. Aliás, seguindo no
argumento de Ginzburg, um estudo publicitário publicado em 1910 trazia analogias entre a
publicidade e a guerra. Curiosamente, as técnicas utilizadas para alcançar o objetivo
comercial, foram empregadas para vender a guerra, no pôster e suas apropriações
(GINZBURG. 2003: 29).

O uso de técnicas que remetem a uma sólida tradição artística e também às fórmulas
da publicidade parecem muito propícias para pensar o LP de Simonal. Aliás, inclusive como
metáfora da própria música do cantor, transitando sempre entre a sofisticação nos arranjos
das canções que, segundo o próprio artista, lhe seria uma tendência íntima (ALEXANDRE:
180) e o caráter comunicacional, comerciável, que sempre buscou empregar. A expressão
facial de Simonal na capa (fig. 3), no entanto, não parece transmitir uma convocação sisuda

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como a dos cartazes de guerra citados, mas sim a transmissão de uma mensagem, que
seria essa expressa nas canções.

Fig. 1: Alfred Leete. Lord Kitchener, “Seu país precisa de você”, cartaz de recrutamento, Inglaterra,
1914. Fig. 2: Flagg. J.M. “Eu quero você para o exército dos Estados Unidos”, cartaz de recrutamento,
Estados Unidos, 1917.

Fig. 3: Wilson Simonal, Extended Play, novembro de 1970. ODEON. Arte não creditada.

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Se dividirmos em dois grupos o conteúdo do álbum, encontramos duas canções que


são ligadas à orientação do artista rumo à black music e as duas “nativistas”. Dentre as
black, “Canção nº 21” (Neto/Bittencourt) e a composta pelo próprio Simonal, “Que cada um
cumpra com o seu dever”. Nesta última, como por uma ponte com as músicas nativistas, o
cantor afirma que, em diversos setores da sociedade, numa espécie de mensagem de
ordem, cada um deve cumprir com o seu dever. Embora não cite que dever seja esse, é
possível supor – pensando no contexto e no posicionamento expresso pelo cantor em
entrevistas do período, nas quais ressaltava ser oposto à luta armada, passeatas e outras
“badernas” (ALEXANDRE, 2009: 178 e 345). Defendia ainda que quem não está satisfeito
com esse regime de exceção deveria trabalhar para mudá-lo no futuro, e não ficar
atrapalhando agora (idem: 177-178). Portanto, o “dever” a ser cumprido por cada um parece
ser o da contribuição pacífica para o progresso do “país que vai pra frente”. Tal
posicionamento pode ser comparado aos esforços do governo em propagar a ideia da
ordem a contribuir para o engrandecimento da nação, tão difundidas pelo regime no período.

Mas, escolhendo uma canção para melhor representar a postura de adesão à visão
do regime neste EP, seria a agitada “Brasil, eu fico”, composta, assim como a outra canção
“nativista” do álbum, “Resposta”, por Jorge Ben. Nela, a primeira consideração está no seu
próprio título, dialogando com o famoso slogan do período, “Brasil, ame-o ou deixe-o”, criado
pela Operação Bandeirantes - OBAN (FICO, 2004: 273), e que virou relativa febre nacional,
inclusive como adesivo de carros. A OBAN foi “uma organização paraestatal e extralegal
financiada pelo capital privado nacional e multinacional para colaborar com o Estado na
repressão à esquerda armada” (ALONSO, 2011: 93) – mais uma vez nos remetendo à
participação de setores da sociedade civil, neste caso, em um dos exemplos extremos. A
canção tem por refrão: “esse é o meu Brasil, cheio de riquezas mil. Quem não gostar ou for
do contra que vá pra...” Seguindo um naipe de metais censurando, mas sugerindo, o famoso
palavrão.

Além da referência aos inúmeros exilados e ao grande número de auto exilados,


estava diretamente ligada à euforia ufanista do período, os “anos de ouro” do Governo
Médici que, reforço, também foi o mais repressivo do regime, legitimando a nomenclatura de
“anos de chumbo” pelo qual ficou conhecido, além de podermos sugerir que fossem “anos
de aperto” para aqueles que sofreram com o arrocho salarial e o aumento da desigualdade
social (que, aliás, só viria a ser combatida com políticas federais mais efetivas após o
ingresso no século XXI). Curiosamente, conforme ressalta Gustavo Alonso Ferreira (pg.
317-318) apesar da leitura direta sobre a canção feita inclusive no período, Jorge Ben, o
compositor da música, a regravou no ano seguinte, alterando o nome para “Aleluia, aleluia”,

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citando Simonal e incluindo uma referência ao futebol, sem sofrer aparentemente nenhuma
grande contestação.

A música restante do disco, “Resposta”, também é de Jorge Ben e também traz forte
carga ufanista, contando com versos como “pois eu sou um amante, um amante do meu
país, eu sei onde é meu lugar e sei onde eu ponho o meu nariz”, fechando o bloco de
músicas “nativistas”. E através dela, é propício fazer uma importante ressalva. Embora a
ênfase deste trabalho seja no momento em que a obra de Simonal (sob composição de
Jorge Ben) esteve dialogando com a propaganda do regime, seria reducionista analisa-las
apenas sob essa perspectiva. As duas canções ufanistas não foram compostas
“gratuitamente”, mas fizeram parte de mais um debate musical brasileiro, como houve antes
famosos debates quanto à concepção de “malandragem” entre Noel Rosa e Wilson Batista e
o debate conjugal do casal recém-separado Dalva de Oliveira e Helivelton Martins. Neste
caso, um debate entre Jorge Ben e Simonal contra Juca Chaves.

A canção “País tropical”, maior sucesso da carreira de Simonal e também composta


por Jorge Ben (gravada em 1969 tanto por Simonal, quanto pelo compositor e por Gal
Costa), foi interpretada como direitista na gravação de Simonal. Embora não seja o
interesse deste pequeno texto problematizar sobre a razão pela qual tal gravação foi tida
como direitista na interpretação de Simonal e não nas outras duas lançadas no mesmo ano,
é curioso conjecturar que a recepção da mensagem de uma canção muito se dialoga com a
percepção quanto aquele que a canta. Nesse caso, as opiniões divulgadas de Simonal,
mesmo em um período ainda anterior ao polêmico caso do contador, ajudam a compreender
a impressão que o cantor estava levando para a temática das canções que interpretava o
seu ufanismo e bons olhos quanto ao período. O que difere, sobretudo, da irônica
interpretação da mesma canção feita pelos tropicalistas em disco da Gal Costa.

Juca Chaves, então exilado, compôs uma sátira chamada “Paris Tropical”, citando
nominalmente Simonal (“alô Brasil, alô Simonal, moro e namoro em Paris tropical”) e
ironizando os versos da canção satirizada. Esta foi respondida por Jorge Ben, na voz de
Simonal, com a já citada “Brasil, eu fico”. A contra resposta de Juca Chaves foi uma
divertida canção chamada “Take me back to Piauí”, que contém os versos “Adeus Paris
Tropical, adeus Brigitte Bardot. O champanhe me fez mal, caviar já me enjoou. Simonal
estava certo na razão do patropi, eu também que sou esperto vou viver no Piauí.”.
“Resposta” parece encerrar a disputa, retomando e respondendo, inclusive, aspectos da
canção “Paris tropical” – o que deixa a dúvida se ela teria sido uma reposta composta antes
de “Brasil, eu fico”. Aqui, parto das datas de lançamento das canções para a construção da
hipótese quanto a ordem das respostas.

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A ressalva sobre o “contexto interno” das canções é importante para se pensar os


limites desse comportamento de adesão. É inegável que os artistas, Jorge Ben e Simonal,
poderiam escolher outros termos para se inserir na disputa e defender a ainda hoje
aclamada “País tropical”. A escolha dos termos por Jorge Ben e da gravação por Simonal
devem ser vistos como atitudes conscientes de sujeitos históricos ativos, capazes de
escolhas. Sujeitos, aliás, que tinham consciência de serem artistas com carreiras
consolidadas, sobretudo Simonal que se encontrava no auge da carreira. Portanto, um
artista que devia ter noção do peso social causado pela representação de seu canto,
chegando a superar por cerca do dobro de vendas de discos no ano anterior, 1969, o
tradicional campeão de vendas, Roberto Carlos (ALEXANDRE, 2009: 167). Portanto, um
artista que devia ter noção do peso social causado pela representação de seu canto. A
percepção de outros elementos, como as entrevistas2, permitem afirmar que Simonal,
embora intérprete e não compositor das canções, se identificava com as referências
ufanistas, representativas do ideal de Brasil Grande, professadas pelas letras de Jorge Ben
e em sintonia com o discurso ditatorial.

O cantor Simonal, portanto, se não parece ter demonstrado em outras canções uma
real sintonia com o regime, nesse EP aparece como um difusor de um tipo de “Brasilidade
conservadora” 3, uma visão de nacionalidade e patriotismo compartilhada com vários
brasileiros na época e que era expresso pelo governo em slogans como “esse é um país
que vai pra frente” e “ninguém segura este país”. Seria o caso de comparar uniformemente a
posição adesista de Simonal aqui apresentada com o geral dos artistas e a maioria dos civis
que participaram, por exemplo, das comemorações do sesquicentenário da independência?
Ou os que comemoraram a vitória da seleção brasileira de futebol na Copa do Mundo de
1970 ou a aquisição de uma televisão ou um carro, ainda que em um contexto repressivo e
autoritário, mas demarcado por forte controle de informação e difusão de propagandas
apologéticas ao regime? E destes todos com figuras como a do empresário Henning Albert

2
Ambos os livros sobre Simonal citados trazem referências a entrevistas do cantor nas quais tal
identificação pode ser confirmada. Destaco a concedida à Folha de São Paulo, 22 de agosto de 1982,
p. 176, na qual afirma que o golpe militar era a única saída naquele contexto; e a para a Veja, 25 de
novembro de 1970, p.179, na qual defende sempre ter sido “meio ufanista”, referindo-se às canções
aqui trabalhadas.
3
Marcelo Ridenti, na introdução desta obra, apresenta a “Brasilidade”, termo comum para os
brasileiros, conforme seu sentido corrente, como “’propriedade distintiva do brasileiro e do Brasil’,
fruto de certo imaginário da nacionalidade próprio de um país de dimensões continentais, que não se
reduz a mero nacionalismo ou patriotismo, mas pretende-se fundador de uma verdadeira civilização
tropical. (...) [encontrada] de formas distintas e variadas à direita, à esquerda, conservadoras,
progressistas, ideológicas ou utópicas.” No decorrer da obra o autor, no entanto, debruça-se sobre a
vertente revolucionária, à esquerda do espectro político, dessa proposta de brasilidade. In: RIDENTI,
M. Brasilidade Revolucionária. Editora UNESP, 2010. P. 09.

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4
Boilesen ou das casas de tortura civis? Ou ainda planificar, partindo de todos esses, as
camadas da população que não tomaram uma posição abertamente combatente ao regime
como apoiadoras do governo? Acredito que não. Há diversas gradações de cinza nesta
“zona cinzenta” 5 entre a adesão e a resistência. Os limites e possibilidades da relação entre
a sociedade civil e a ditadura militar brasileira ainda aguardam muitos debates da memória e
da historiografia. 6

Referências

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Paulo. Globo. 2009. 390 p.

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Wilson Simonal e os limites de uma memória tropical. Rio de Janeiro, Record, 2011. P. 477.

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em: http://www.academiadosamba.com.br/memoriasamba/bibliografia/pdf/Livro-Bambas-do-
Samba.pdf. Captado 04/09/2013, 20h10.

4
Henning Albert Boilesen foi um empresário de destaque, presidente do Grupo Ultra e grande
incentivador e financiador da OBAN. Foi assassinado por “justiçamento” em uma ação conjunta de
grupos de guerrilha em 1971. O empresário ficou conhecido por um gosto sádico de assistir
pessoalmente a sessões de torturas no DOPS. Informações sobre ele podem ser vistas no
documentário Cidadão Boilesen, dirigido por Chaim Litewski, 2009.
5
O termo “zona cinzenta” surge inicialmente com Primo Levi, sendo utilizada para descrever os
prisioneiros de campos de concentração colaboradores ou mediadores de nazistas na obra I
sommersi e i salvati. Alonso utiliza a definição de Pierre Laborie, pensando a França sob ocupação
nazista. Laborie define “zona cinzenta” como um “’lugar social’ no qual os indivíduos se portam, ao
mesmo tempo, entre as luzes da resistência e as trevas da colaboração” (ALONSO, 2011: 299-300).
O autor propõe o uso do termo para trabalhar as complexidades de Simonal, momento de sua
argumentação com qual concordo.
6
A relação entre memória e história, enquanto questão basilar do estudo historiográfico é bastante
presente em diversos trabalhos. Deste modo, muitos dos textos nesta bibliográfica abordam o
assunto. Para uma discussão mais direta quanto a memória neste trabalho foram utilizados os textos
Ulpiano Bezerra de Menezes, Maria Inés Mudrovic e os artigos de Michel Pollak de onde foi retirado,
aliás, a expressão “enquadramento da memória” aqui utilizada.

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A verdade que o Brasil suporta: um estudo sobre a Comissão Nacional da Verdade

Carlos Artur GALLO


Doutorando em Ciência Política na UFRGS
Bolsista CAPES
galloadv@gmail.com

Introdução
Entre 1964 e 1985, o Brasil viveu sob uma ditadura civil-militar. Com o final da
ditadura, mas, sobretudo a partir da primeira década dos anos 2000, questões relacionados
ao saldo da repressão política volta e meia têm vindo à tona, chamando à atenção para a
necessidade de se pensar e implementar políticas destinadas ao enfrentamento das marcas
que o autoritarismo deixou na história recente do país. Uma política pública específica
formulada em países que viveram experiências autoritárias diz respeito à criação de uma
Comissão da Verdade. Dito isso, neste trabalho estudamos a Comissão Nacional da
Verdade (CNV) brasileira, seu surgimento, e sua atuação.
Para melhor organizar a exposição, dividimos o estudo em três seções. Na primeira,
fazemos uma breve retrospectiva de alguns pontos da história recente que consideramos
essenciais para compreensão da problemática a ser trabalhada. Na sequência, nos
detivemos na análise do processo de elaboração do 3º Programa Nacional de Direitos
Humanos (PNDH-3) e do Projeto de Lei que criou a CNV. Na terceira e última parte,
analisamos os resultados até agora produzidos pelos trabalhos da Comissão da Verdade,
atentando para os percalços surgidos em sua trajetória.

Antecedentes históricos
O primeiro dos países do Cone Sul a sofrer um Golpe
de Estado no contexto da Guerra Fria e vinculado à Doutrina de Segurança Nacional (DSN)
foi o Brasil, onde, entre os dias 31 de março de 1º de abril de 1964, foi iniciada uma ditadura
civil-militar que se estenderia até 1985. Embora seja complicado afirmar com certeza a
variável que levou ao Golpe, é possível observar que a tomada do poder pelos militares teve
seu acontecimento relacionado à motivações econômicas (MARTINS, 1988) e anti-
comunistas (MOTTA, 2002), sendo a intervenção das Forças Armadas frequentemente
associada, na época, a um cenário político marcado pela instabilidade gerada a partir de
agosto de 1961, quando ocorreu a renúncia do presidente Jânio Quadros (SKIDMORE,
1988).
Em 1964, os mesmos setores das Forças Armadas que em 1961 haviam tentado
impedir a posse do vice-presidente eleito, porque viam nas suas ações uma aproximação
com o comunismo (quando Jânio renunciou, Jango estava em viagem oficial à China

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100 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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comunista), realizam o golpe frustrado anteriormente. Contando agora com o apoio de


integrantes das elites econômicas, que tinham interesse na reorganização do mercado, e
eram contrários à relização das “Reformas de Base” propostas pelo Governo Jango, os
militares ocuparam as estruturas de poder existentes, mas, durante o regime burocrático-
autoritário (O’DONNELL, 1986) por eles encabeçado, algumas instituições políticas
tipicamente democráticas seguiram funcionando.
Bastante aplicada desde o momento da consolidação do Golpe, no Governo Castelo
Branco (1964-1967), a repressão seria aprofundada a partir de 13 de dezembro de 1968,
com a edição do AI-5. Considerado como o “golpe dentro do golpe”, e publicado durante o
Governo Costa e Silva (1967-1969), o AI-5 suspendeu o direito de “habeas corpus”,
possibilitou que os militares fechassem o Congresso Nacional ou aos Poderes Legislativos
Estaduais e Municipais, além de facultar aos integrantes do regime cassar mandatos
políticos em geral e aposentar funcionários públicos.
De 1968 à primeira metade dos anos 70, o país vivia entre os “Anos de Chumbo”,
marcado pela perseguição, a tortura, as mortes, os desaparecimentos e o exílio de
opositores, e o “Milagre Econômico”, resultado do processo de alinhamento do sistema
econômico nacional aos novos padrões de desenvolvimento do capitalismo internacional
(MARTINS, 1988). No ano de 1974, época em que o regime continuava colhendo os frutos
do crescimento econômico e a neutralização dos opositores que atuavam fora do sistema
partidário atingia seu auge, o ditador-presidente Ernesto Geisel (1974-1979) organiza e
começa, a partir do próprio governo, um projeto de transição “lenta, gradual e segura”. Em
seus quase onze anos de duração, o projeto de abertura política se desenvolveu
paralelamente à crise internacional do petróleo e ao esgotamento do “Milagre Econômico”.
Com os avanços do processo de transição, ocorre também o renascimento da
sociedade civil, que se organiza pelo menos em dois momentos: entre 1978 e 1979, na luta
pela anistia; e entre 1983 e 1984, na campanha pelas “Diretas Já”, que reivindicava a
realização de eleições diretas para Presidência da República nas eleições de 1984.
Altamente negociado e controlado ao longo de sua duração, o processo de transição no
Brasil garantiu que os agentes envolvidos com a repressão ficassem impunes (mediante a
publicação da Lei de Anistia – Lei nº 6.683/1979), garantindo ainda, e aos setores da elite
civil diretamente relacionados à ditadura, sua sobrevivência enquanto atores políticos
relevantes no novo cenário político (ARTURI, 2001, p. 11-12).
Em 21 anos de ditadura, o aparato repressivo brasileiro deixou como saldo da
repressão, além de resquícios psicológicos e sociais da aplicação da DSN (PADRÓS, 2008):
aproximadamente 50 mil pessoas presas somente nos primeiros meses depois do Golpe;
pelo menos 426 mortos e desaparecidos políticos; um número até hoje desconhecido de
mortos em protestos; 7.367 indiciados e 10.034 atingidos por inquéritos realizados em 707

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processos que tramitaram na Justiça Militar por crimes contra a Segurança Nacional; 4
sentenças de morte (não consumadas); 130 desterrados; 4.862 cassados; 6.592 militares
atingidos por atos do regime; milhares de exilados políticos; e centenas de camponeses
assassinados (ALMEIDA; et al., 2009, p. 21; ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985).

A criação da Comissão Nacional da Verdade


A eficácia resultante da incorporação, em âmbito interno, das normas e dos
princípios internacionais de proteção aos direitos humanos, pode ser analisada tendo-se por
base as políticas de direitos humanos existentes em cada país (GONZÁLEZ, 2010, p. 108).
No que se refere especificamente ao caso brasileiro, verifica-se que a elaboração de
políticas de direitos humanos avançou significativamente desde a realização da Conferência
de Viena, em 1993.
Isso porque, além de ter reinserido o tema na pauta de discussões, a Conferência
formulou algumas sugestões para que os países preocupados com a proteção dos direitos
humanos pudessem reorganizá-los internamente (KOERNER, 2003). Uma das sugestões da
Conferência, nesse sentido, era a criação de “Programas Nacionais de Direitos Humanos”.
O PNDH foi sugerido e previsto no item 71 da Carta de Viena, em 1993, e sua elaboração,
segundo Rodrigo Stumpf González (2010, p. 113), talvez seja a ação mais concreta
realizada pelo Governo Federal para estabelecer uma agenda nacional com vistas à
formulação de políticas para os direitos humanos, e, além disto, alinhá-la aos parâmetros
internacionais fixados em Viena.
As duas primeiras edições do PNDH, o PNDH-1 e o PNDH-2, foram lançados
respectivamente em 1996 e 2002, durante os Governos de Fernando Henrique Cardoso
(FHC). A nova edição do PNDH, ficou a cargo do sucessor de FHC, o presidente Luís Inácio
Lula da Silva, que governou o país de 2003 a 2010. No tocante ao PNDH-3, é visível que
houve uma significativa ampliação do tratamento da memória da repressão no país, sendo
reservado à temática um Eixo Orientador específico: o Eixo VI, intitulado “Direito à memória
e à verdade” (BRASIL; SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS, 2010).
Além de prever a preservação e promoção da memória da repressão (Diretriz nº 24)
e a revisão da legislação que, produzida durante o período militar, ainda estava em vigor
(Diretriz nº 25), de acordo com a Diretriz nº 23, também estava prevista a criação, em 2010,
de uma Comissão da Verdade (não realizadora da Justiça) a exemplo da “Comissão da
Verdade e Reconciliação” sul-africana, que funcionou na África do Sul na segunda metade
da década de 1990.
Apesar da ampla mobilização obtida durante a formulação do PNDH-3, antes de se
encaminhar o lançamento da nova edição do Programa, em dezembro de 2009, houve uma
tentativa de que suas disposições passassem pelo crivo de todas as pastas ministeriais, no

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102 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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intuito de aferir maior legitimidade ao documento (31 Ministérios aprovaram o texto,


conforme: BRASIL; SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS, 2010, p. 11)1. Passando por
cada um dos ministérios para apreciação, o lançamento do Programa atrasou em quase um
ano devido à apresentação, por parte do Ministério da Defesa, de um posicionamento
contrário à apuração das violações durante o período autoritário (IPEA, 2010, p. 285).
Entre o final de 2009 e o início de 2010, ocorreu uma série de manifestações
públicas e discussões polêmicas em torno do Eixo VI, além de críticas duras a outros
dispositivos do Programa que não tratavam do período autoritário. No final das contas,
integrantes dos mesmos setores das Forças Armadas que, representados pelo Ministério da
Defesa (chefiado por Nelson Jobim), haviam levado ao atraso na finalização do texto do
PNDH-3, terminaram influenciando a opinião pública no momento em que começaria a sua
implementação, classificando o conteúdo sobre a ditadura como “revanchista”2.
Como resultado, o Governo Federal recuou, e, em maio de 2010, foi editado o
Decreto nº 7.177, que alterava dispositivos do Eixo VI. Com as alterações, referências às
“violações aos direitos humanos praticadas no contexto da repressão política” foram
suprimidas, sendo a menção às violações atrelada a conflitos políticos do período
mencionado pelo art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), qual
seja, o período compreendido entre 1946 e 1988. Isso porque, para integrantes das Forças
Armadas, crimes cometidos “no contexto da repressão política” dava a impressão de que
somente violações praticadas por agentes do regime seriam investigadas, algo que, na
visão dos militares, seria revanchismo3.
Após o recuo do Governo Federal, o Projeto de Lei (PL) nº 7.736 responsável por
criar a Comissão da Verdade foi elaborado, começando a tramitar ainda em 2010, último
ano do Governo Lula. As votações na Câmara dos Deputados e no Senado foram
finalizadas respectivamente em setembro e outubro de 2011, primeiro ano do mandato da
presidente Dilma Rousseff. Em novembro, o texto foi sancionado pela Presidência da
República, dando origem à Lei nº 12.528. Antes, durante, e depois de aprovada a Lei,

1
“Retomando a experiência da primeira conferência, realizada em 1996, esta edição teve por objetivo
principal discutir propostas para subsidiar a elaboração do PNDH. Contando com a participação de
1.228 delegados em sua etapa nacional, a conferência foi precedida por etapas em todas as
unidades da Federação (UFs), por sua vez precedidas por 137 conferências municipais, territoriais e
livres” (IPEA, 2010, p. 284).
2
Os meios de comunicação deram ampla cobertura às polêmicas em torno do PNDH-3. No jornal
Zero Hora, por exemplo, no período que vai de 9 a 15 de janeiro de 2010 (referências completas ao
final do trabalho), quando as polêmicas atingiram seu auge, reportagens e editoriais deram destaque
às discussões. No auge das polêmicas, inclusive, Nelson Jobim (Ministro da Defesa) e Paulo
Vannuchi (da Secretaria de Direitos Humanos) ameçaram renunciar aos seus cargos.
3
In: “Lula assina novo decreto sobre Comissão da Verdade”, notícia de 13 de janeiro de 2010
disponível em: <http://www.bbc.co.uk/blogs/portuguese/br/2010/01/lula-assina-novo-decreto-
sobre.html>. Acesso em 09 de março de 2014.

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críticas constantes à Comissão foram apresentadas sobretudo por setores vinculados às


Forças Armadas, questionando sua necessidade e legitimidade (GASPAROTTO, 2013).

A Comissão da Verdade no Brasil: limites, possibilidades e desafios


No Brasil, a CNV iniciou suas atividades em maio de 2012 envolta em uma série de
polêmicas por um lado relacionadas aqueles que questionavam a sua necessidade, e, por
outro, às suas limitações, que de acordo com grupos de defesa dos direitos humanos,
juristas e, também de grupos de vítimas da repressão, prejudicariam o alcance dos seus
trabalhos. No que diz respeito àquelas que seriam suas limitações iniciais, é possível
mencionar pelo menos três: 1ª) o número dos membros da CNV, somente 7, para analisar
crimes cometidos em um país da dimensão do Brasil; 2ª) o tempo de duração dos trabalhos
da Comissão: dois anos (prorrogado por mais 6 meses em dezembro de 2013); 3ª) o
período a ser investigado.
Conforme visto na seção anterior, as polêmicas surgidas no lançamento do
Programa levaram a um recuo do Governo Federal, que alterou a redação de algumas
disposições do PNDH-3, e, no caso das previsões sobre as violações ocorridas durante a
ditadura civil-militar, houve supressão de expressões específicas que faziam alusão ao
período de 1964 a 1985. Assim, ao deslegitimar o uso da expressão “no contexto da
repressão política”, originalmente mencionado no caput do Objetivo Estratégico da Diretriz
23 (BRASIL; SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS, 2010, p. 173), e transpor para o
texto da Lei nº 12.528 que a CNV teria por finalidade esclarecer graves violações aos
direitos humanos ocorridas no período ficado no art. 8º do ADCT, o legislador possibilitou
que crimes cometidos contra opositores políticos na vigência da Segurança Nacional
pudessem ser equiparados a quaisquer violações ocorridas entre 1946 e 1988.
Desse modo, embora seus membros tenham definido como prioridade “[...] o
levantamento de informações relacionadas às mortes e desaparecimentos ocorridos durante
o regime de 64-85 [...]” (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2013, p. 2), não se pode
negar que, pelo menos simbolicamente, o fato de a CNV ter como objetivo geral coletar e
analisar dados sobre violações ocorridas durante períodos democráticos (de 1946 a 64) e,
ao mesmo tempo, sobre aquelas que foram praticadas na vigência do autoritarismo (de
1964 a 85), parece constituir uma subversão da finalidade de um organismo como esse.
Afinal, segundo Simone Rodrigues Pinto (2010, p. 132):

As comissões de verdade têm a responsabilidade de, ao construir a verdade


por meio dos diversos testemunhos, garantir a compreensão dos eventos do
passado, mas não apenas um evento específico e sim de todo um contexto
mais amplo. Representa o resgate da história de um país que, em função
das características próprias de um período de repressão, possui muitos
eventos não esclarecidos.

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Nesse sentido, ainda que graves violações tenham, com efeito, ocorrido no cenário
político imediatamente posterior ao final do Estado Novo no país, não parece acertado
esperar que uma Comissão da Verdade analise fatos do período democrático
concomitantemente aos fatos ocorridos durante a ditadura, já que não se tratam de
situações que fazem parte de um mesmo contexto.
A CNV foi oficialmente instalada em cerimônia realizada em Brasília no dia 16 de
maio de 2012, em um ato que contou com a presença de todos ex-presidentes da Nova
República (José Sarney, Fernando Collor de Melo, Fernando Henrique Cardoso e Luís
Inácio Lula da Silva). A partir de então, outras questões foram despontando como limites ou
possibilidades a serem trabalhadas por seus membros. Nomeados pela Presidência da
República, compuseram originalmente a Comissão: Cláudio Fonteles, ex-Procurador Geral
da República durante o Governo Lula; Gilson Dipp, Ministro do Superior Tribunal de Justiça;
José Carlos Dias, ex-Ministro da Justiça durante o Governo Fernando Henrique Cardoso;
José Paulo Cavalcanti, jurista e escritor; Maria Rita Kehl, psicanalista; Paulo Sérgio Pinheiro,
diplomata; e Rosa Maria Cardoso, advogada de presos políticos.
Em maio de 2013, ao completar 1 ano de funcionamento, a CNV publicou um
relatório resumindo as atividades realizadas no período4. Essa publicação possibilitou, por
um lado, que a Comissão deixasse claros os conceitos-chave que instrumentaliza na análise
dos dados que vem coletando, tendo viabilizado, por outro lado, que os interessados em
geral pudessem entender como seus trabalhos estão sendo realizados, quais suas
principais linhas de atuação, e seus recortes temáticos. Embora seja importante para dar
ideia do que fora feito, e traçar um panorama daquilo que já foi mapeado pelos membros e
funcionários a serviço da Comissão, os dados apresentados no relatório se resumiram, em
sua maioria, à referência a dados numéricos informando a quantidade de arquivos
identificados ou catalogados, além do número de audiências realizadas e de depoimentos
coletados, entre outras informações.
De acordo com Edson Teles e Renan H. Quinalha5:

O relatório lançado [...] mais parece um texto de apresentação institucional


da CNV do que efetivamente um balanço analítico dos trabalhos realizados
e dos resultados atingidos. Após praticamente metade do prazo total de
funcionamento da CNV, foi publicado um texto de apenas 20 páginas e, de
uma perspectiva qualitativa, há pouquíssima – para não dizer nenhuma –
informação nova. O relatório acaba assumindo caráter de carta de
intenções. A maioria dos verbos denota que a CNV “pretende”, “está
empenhada”, “está desenvolvendo”, todos remetendo a ações futuras, o que
ilustra o estágio atual de paralisia.

4
O relatório, “Balanço de Atividades: 1 ano da Comissão Nacional da Verdade”, encontra-se
disponível em: <http://www.cnv.gov.br/>.
5
In: “O trabalho de Sísifo da Comissão Nacional da Verdade”, artigo publicado no periódico Le Monde
Diplomatique, edição de setembro de 2013, e disponibilizado no blog da Boitempo.

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Bastante plural em sua composição, e, num outro sentido, a CNV veio enfrentando,
desde 2012, problemas relacionados à perspectiva que cada um dos seus membros possui
a respeito de questões importantes como: 1) entendimento sobre a possibilidade de punição
dos agentes da repressão; 2) visão sobre divulgação de dados parciais e prestação de
contas dos trabalhos realizados; 3) publicidade de dados coletados; 4) participação da
população. Ainda que possa ser considerada como algo natural, a existência de
divergências internas entre os integrantes da Comissão passou a ganhar destaque nos
meios de comunicação em 20136.
Em junho, a situação se agravou, culminando com a demissão de Cláudio Fonteles
da CNV. O estopim para saída desse membro, foi a veiculação de sua declaração favorável
à revisão da anistia e à punição das pessoas envolvidas com a repressão política (a
declaração foi publicada no site da CNV). Ao manifestar-se publicamente sobre a questão,
Fonteles chamou a atenção do público em geral para os problemas internos enfrentados
pela CNV, demonstrando que, além de divergências internas a respeito de temas
específicos, parecia haver entre seus integrantes uma divisão em torno da figura Paulo
Sérgio Pinheiro, coordenador da Comissão.
Em “Carta Aberta à Comissão Nacional da Verdade”7 redigida e assinada por um
grupo formado por familiares de mortos e desaparecidos, ex-presos políticos, entidades
vinculadas à luta por Memória, Verdade e Justiça, e militantes de direitos humanos, o
relatório foi criticado. No documento, publicado em 15 de julho de 2013, foram realizadas
críticas ao “Balanço de Atividades”, às limitações da CNV, e ao comportamento de alguns
dos seus integrantes.
A partir do segundo semestre de 2013, a atuação da CNV, apesar das limitações
apontadas, ganhou destaque na mídia, possibilitando alguns avanços positivos na árdua
tarefa de recomposição do passado recente do país. Fatos significativos, nesse sentido,
são: a) a exumação, em novembro de 2013, dos restos mortais do ex-presidente João
Goulart, falecido no exílio, na Argentina, em dezembro de 1976; b) a realização de audiência
pública, no dia 27 de fevereiro de 2014, na qual foram prestados esclarecimentos sobre o
caso do desaparecimento do ex-deputado Rubens Beirodt Paiva, ocorrido em janeiro de
1971, após terem-no levado para o DOI-CODI do Rio de Janeiro8.
A realização do traslado, da exumação e da cerimônia fúnebre (com honras de Chefe
de Estado) para o segundo sepultamento dos restos mortais do ex-presidente deposto foi

6
Em notícia veiculada pelo jornal Zero Hora (referência completa no final do trabalho) sobre
dificuldades enfrentadas pela CNV, consta que “o novo coordenador [José Carlos Dias] também
comentou recentes rusgas entre membros da CNV. Ele disse que não há desavenças, mas
‘temperamentos diferentes’”.
7
A Carta Aberta circulou pelas redes sociais, podendo também ser encontrada em diversos sites de
organizações de direitos humanos.
8
Ver “Relatório parcial sobre o caso Rubens Paiva” disponível em: <http://www.cnv.gov.br/>.

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bastante noticiada. Realizada em parceria com a Secretaria de Direitos Humanos da


Presidência da República, a exumação do cadáver busca identificar, mediante testes
científicos, se João Goulart foi ou não envenenado por agentes da repressão. Isso porque,
envolta em mistérios desde que ocorreu, sua morte tem sido frequentemente associada à
ações que teriam sido desenvolvidas através da “Operação Condor”.
Ao comentar a cerimônia realizada em Brasília para receber os restos mortais do ex-
presidente, Danyelle Nilin Gonçalves (2014, p. 212) observa que:

A simbologia de oferecer honras militares ao ex-presidente civil deposto


para a instauração de um regime militar, a concessão de honras de chefe
de Estado, o fato de estarem presentes diversos ministros, quase todos os
ex-presidentes pós-ditadura e a principal autoridade do país demonstra a
relevância dos atos que fazem parte de um conjunto de ações de
“reparação” aos perseguidos pela ditadura militar [...]

No que se relaciona ao caso Rubens Paiva, após terem acesso a documentos que
por mais de 40 anos foram sonegados, e terem ouvido o depoimento de militares da
Reserva, foram finalmente esclarecidas algumas questões importantes a respeito das reais
circunstâncias da morte do ex-deputado. integrantes da Comissão afirmaram ter reunido
prova documental e testemunhal suficiente para declarar: 1) que as versões apresentadas
pelos órgãos da repressão, que negavam resposabilidade pela prisão, tortura, morte e
desaparecimento do ex-Deputado, são falsas; 2) que a identidade de pelo menos dois
agentes da repressão envolvidos no caso haviam sido descobertas. Embora assumir
publicamente que o desaparecimento foi causado pelo aparato repressivo pareça algo que
não era essencial na atual conjuntura9, combinada com a declaração e publicização dos
nomes dos envolvidos no caso, a atitude da Comissão sugere que alguns avanços em
direção à Memória e à Verdade reiteradamente demandadas por vítimas da repressão e por
militantes de direitos humanos em geral podem ser esperados.
Afinal, a divulgação de “novidades” por parte da CNV seja limitada, ela sinaliza uma
ruptura com a estratégia assumida (na prática) em seu primeiro ano de atividades. Ou seja,
em vez de manter em sigilo dados obtidos com a realização de audiências, busca de
documentos e tomada de depoimentos, ou, então, limitar-se à reprodução de dados
disponibilizadas em livros e relatórios organizados por grupos de vítimas da repressão (caso
dos relatórios organizados por familiares de mortos e desaparecidos políticos) e organismos
oficiais (caso dos informes da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
e da Comissão de Anistia / Ministério da Justiça), a CNV potencializa seu papel de

9
Desde a edição da “Lei dos Mortos e Desaparecidos”, a Lei nº 9.140 de 1995, já havia sido
reconhecida a responsabilidade do Estado brasileiro pelo desaparecimento de Rubens B. Paiva, logo,
embora seja importante reafirmar publicamente a responsabilidade do Estado por esse tipo de crime
cometido pelo aparato repressivo, deve-se atentar para o fato de que um dos principais objetivos dos
trabalhos da CNV é o esclarecimento de fatos novos ou que até hoje não foram solucionados.

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realizadora do direito à memória à verdade ao dirigir-se à população para desconstruir


publicamente versões “oficiais” criadas pelo aparato repressivo.
Encaminhando-se para o final das suas atividades (com a prorrogação, o trabalho da
Comissão se estende até dezembro de 2014) e, tendo como dever imediato a publicação de
um relatório final consistente sobre o que foi possível esclarecer na vigência dos seus
trabalhos, a CNV tem pela frente um caminho no qual será necessário vencer alguns
desafios que, a curto prazo, não foram solucionados. Um primeiro desafio que segue se
apresentando à Comissão, é a necessidade de ampliação (ou de estabelecimento?) de um
diálogo entre a CNV e os comitês regionais e locais que foram criados por todo país nos
últimos dois anos.
Como segundo desafio, é possível mencionar a necessidade de que a CNV, e seus
integrantes, se empenhem em dar maior visibilidade a fatos pouco conhecidos ou até
mesmo desconhecidos do período autoritário. Reforçar alguns pontos específicos como a
existência de um aparato repressivo, o vínculo da ditadura com a DSN, o reconhecimento da
existência da “Guerrilha do Araguaia”, dentre outros pontos que por anos foram
obscurecidos por “políticas de silêncio”, certamente é importante. Ocorre, contudo, que a
Comissão não deveria estar dispendendo tanto esforço (e tempo) no levantamento, análise
e/ou catalogação de dados que já foram organizados por outros órgãos oficiais como a
CEMDP ou a Comissão de Anistia.
No que se refere às possibilidades de elucidação de novos casos ou de casos
emblemáticos como a morte do ex-presidente, e à devida recomposição de “partes” até
então desconhecidas ou adulteradas da história do país, tudo depende, em maior ou menor
grau, da própria capacidade de se fazer valer os efeitos jurídicos prometidos com a sanção
da “Lei de Acesso à Informação”, Lei nº 12.527 de 2011. Sancionada junto com a Lei que
criava a CNV, a regra responsável por estabelecer uma nova política nacional de sigilo
documental tem se mostrado limitada. Nesse sentido, de pouco adianta a Comissão da
Verdade ter direito à obter toda documentação que considerar necessária ao pleno
desempenho de suas atividades, se alguns arquivos específicos seguem inacessíveis.
O último desafio que se identifica para a CNV, diz respeito às dificuldades
enfrentadas pelos comissionários para definir uma linha de ação coesa, que forneça os
elementos necessários para lidar com questões que, em algum momento, deverão ser
enfrentadas. Essas questões (dilemas para o futuro) abrangem: 1º) um posicionamento claro
sobre a legitimidade da interpretação da Lei de Anistia que vem garantindo a impunidade de
agentes da repressão, e, se for o caso, encaminhamentos para que se pleiteie sua revisão
ou revogação; 2º) uma definição sobre as informações que, coletadas em arquivos ou
obtidas em depoimentos, serão publicizadas ou não.

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Considerações finais
Enfrentando antes, durante, e depois da aprovação da Lei que a
instituiu, a resistência de setores vinculados ao período autoritário e/ou comprometidos com
o conteúdo dos pactos que possibilitaram uma transição “lenta, gradual e segura”, a
Comissão da Verdade teve que lidar, ainda, com uma série de problemas de ordem técnica,
como o número limitado de integrantes, o prazo exíguo para a investigação das violações, e
a dificuldade de dialogar com a sociedade e com os comitês regionais e locais criados em
todas regiões do Brasil.
Se tem sido possível, por um lado, ampliar a visibilidade sobre aspectos
gerais da ditadura brasileira junto à população em geral, fomentando-se de alguma maneira
o debate e a reflexão sobre o que ocorreu entre 1964 e 1985, são visíveis, por outro lado,
limites na atuação da CNV. Combinada com a existência de divergências internas, que
expuseram para sociedade a “divisão” entre seus poucos integrantes, as limitações
decorrentes de uma complicada aplicação da nova política nacional de sigilo também tem
contribuído negativamente com os trabalhos em busca da verdade.
Fazer previsões a respeito do que se pode esperar até a apresentação do
relatório final da Comissão, é complicado. De qualquer forma, e, tendo em vista o que se
tem assistido a partir de maio de 2012, acredita-se que, embora tímida, até sua extinção a
CNV terá contribuído, sim, para que se lance um olhar menos condescendente e mais
comprometido com o resgate da memória da repressão política, servindo de base, quem
sabe, para a formulação de políticas mais efetivas com vistas à garantia dos postulados da
Memória, da Verdade, e, finalmente, da Justiça.

Referências

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SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

II – Notícias de jornal:

Plano de direitos humanos provoca onda de protestos. Zero Hora, Porto Alegre, 9 jan. 2010, p. 6.

Racha no governo faz presidente rever plano. Zero Hora, Porto Alegre, 11 jan. 2010, p. 6.

Editorial: A construção da verdade histórica (R.Fraga). Zero Hora, Porto Alegre, 11 jan. 2010, p. 12.

Editorial: Plano funesto (P.Brossard). Zero Hora, Porto Alegre, 11 jan. 2010, p. 13.

Lula tende a desidratar programa. Zero Hora, Porto Alegre, 12 jan. 2010, p. 6.

Editorial: Direito à memória e à verdade (D.Galimberti). Zero Hora, Porto Alegre, 12 jan. 2010, p. 15.

Editorial: As “crises” e os direitos humanos (A.Silva). Zero Hora, Porto Alegre, 12 jan. 2010, p. 15.

Lula vai reeditar plano para contornar crise. Zero Hora, Porto Alegre, 13 jan. 2010, p. 12.

Sob pressão, Lula altera plano de direitos humanos. Zero Hora, Porto Alegre, 14 jan. 2010, p. 28.

Grupos de direitos humanos defendem saída de Jobim. Zero Hora, Porto Alegre, 15 jan. 2010, p. 29.

Novo comando: Comissão da Verdade admite dificuldades. Zero Hora, Porto Alegre, 28 agosto 2013,
p. 18.

III – Documentos oficiais e legislação:

BRASIL. Decreto nº 7.177, de 12 de maio de 2010. Altera o Anexo do Decreto nº 7.037, de 21 de


dezembro de 2009, que aprova o Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH-3. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/>. Acesso em 28 de fev. de 2014.

ISBN: 978-85-62707-55-1
110 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014

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<http://portal.mj.gov.br/sedh/pndh/pndh1.pdf>. Acesso em 28 de fev. de 2014.

_____. 2º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-2). Brasília: Secretaria de Estado dos
Direitos Humanos, 2002. Disponível em:
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fev. de 2014.

_____. 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). Brasília: Secretaria Especial de


Direitos Humanos, 2010. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/pndh3/pndh3.pdf>. Acesso em
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âmbito da Casa Civil da Presidência da República. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/>.
Acesso em 28 de fev. de 2014.

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Verdade. Brasília: Comissão Nacional da Verdade, 2013. Disponível em: <http://www.cnv.gov.br/>.
Acesso em 11 de fev. de 2014.

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111 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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Uma cidade apática? O início da ditadura civil-militar no Rio de Janeiro segundo o


Cinema Novo1

Carlos Eduardo Pinto de PINTO


Doutor em História pela UFF e professor da PUC-Rio
dudachacon@yahoo.com.br

A representação da cidade do Rio de Janeiro pelo Cinema Novo durante a década


de 1960 possui aspectos bastante diversificados, desde a exclusão social até o hedonismo
(PINTO, 2013b). Neste trabalho, analiso a forma como dois filmes abordaram as reações
(ou ausência delas) ao Golpe civil-militar de 1964 e à consolidação da ditadura,
especificamente como dados de identificação da urbe. Trata-se de O desafio (Paulo César
Saraceni, 1965) e A grande cidade (Cacá Diegues, 1966).

O primeiro aborda a recepção do Golpe por artistas e intelectuais, sendo considerado


um marco do cinema urbano cinemanovista, por não tratar diretamente da exclusão social,
deixando de focar as favelas cariocas. Um ano mais tarde, A grande cidade também trataria
do Golpe, embora não de forma central. As referências à militarização da cidade são um dos
traços evidenciados pela diegese, focada no contraste entre a migração nordestina para as
favelas (temas caros ao Cinema Novo) e o processo de modernização por que passava o
Rio de Janeiro, convertido em Estado da Guanabara (aspecto que o aproxima de O desafio).

Em ambos, apesar da forte politização das narrativas e das diegeses, o Rio não
aparece como uma cidade particularmente engajada, o que soa como uma ausência
significativa. Afinal, às vésperas do Golpe de 1964, a população carioca apresentava
expressiva polarização política. Em 1960, havia elegido, para o cargo de governador, a
Carlos Lacerda, um dos bastiões do conservadorismo político nacional, mas também lotaria
o Comício da Central, em que o presidente João Goulart receberia apoio às propostas
reformistas, dias antes do Golpe.

Tal perfil se manteria ao longo da segunda metade da década de 1960, enquanto as


feições ditatoriais do governo de Castelo Branco tomavam forma. Entre os sinais de repúdio,
ações da UNE (fechada no mesmo dia do Golpe) e os Oito da Glória, em 1965, protesto de
cineastas e escritores que terminou em prisão.

Nos filmes, a ausência desse aspecto específico da vivência urbana causa


estranheza. Afinal, ambos exibiam comprometimento com a apreensão dos aspectos

1
As reflexões contidas neste trabalho derivam da tese “Imaginar a cidade real: o Cinema Novo e a
representação da modernidade urbana carioca (1955-1970)”, que contou com bolsa CAPES nacional
e sanduíche no exterior.

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cotidianos da cidade, ao mesmo tempo que realizavam críticas ao status quo – o que, a
priori, os deixaria alertas para a dimensão politizada da ex-capital da República.

O trabalho se pauta pela busca de sentidos para esta ausência. Ao longo do


percurso, a proposta é compreender como os pressupostos políticos do Cinema Novo
moldam a cidade que, por sua vez, molda o Cinema Novo. E a partir desta relação entre
cidade e cinema, lançar luz sobre a forma como a ditadura poderia ser vivenciada em seus
momentos iniciais.

O desafio

Os protagonistas de O desafio são Marcelo (Oduvaldo Vianna Filho), um jornalista de


esquerda, e Ada (Isabela), sua amante, socialite casada com um industrial. A trama central
gira em torno da angústia dele diante do Golpe civil-militar e das pressões exercidas por
Ada, que vê nesta angústia sinais de que Marcelo não deseja dar prosseguimento à relação
amorosa. As pressões acabam levando Marcelo a romper o namoro, embora o final da obra
aponte para uma possível reconciliação. A partir das perspectivas de ambos, bem distintas,
a cidade é representada, como demonstro através da análise das sequências a seguir.

Marcelo está na redação da Revista O Cruzeiro, onde trabalha, discutindo o


posicionamento que os intelectuais devem ter diante do Golpe. Em seguida, entabula uma
conversa com Carlos (Joel Barcelos), fotógrafo com quem pretende produzir um livro. Carlos
diz que não devem ficar “conversando muito”, concluindo que, se “eles querem assunto
urbano, nem é preciso sair do Rio”. Bastaria “ficar com a chamada classe privilegiada [e]
sair por aí batendo as fotos pela Zona Sul”. Marcelo diz que só não começa a trabalhar
porque “não está acreditando”. A câmera se move pelo espaço entre eles, possibilitando
perspectivas diferentes, sem haver cortes na montagem. Carlos arremata: “Você acha que
eu estou satisfeito com a ideia do livro? Que era isso que eu queria fazer agora? O livro é
um caminho. É o que podemos fazer agora”. Depois de um longo debate, em que sua
postura inerte é criticada, Marcelo arremata: “Se você descobrir uma solução, uma melhora,
parabéns. Mas eu ainda estou vendo tudo escuro”.

Tal diálogo se mostra bastante instigante frente ao tema da representação da cidade, já


que o livro que vão fazer possui “assunto urbano”. Aqui, o filme parece estar se remetendo a
si mesmo – afinal, a narrativa se replica na diegese, marcando a sua diferença em relação
aos filmes que foram para o Nordeste enfocar o sertão ou subiram os morros para
representar as favelas. Saraceni fala sobre isso numa entrevista a Alex Viany,
contemporânea ao filme, em que lembra uma conversa de botequim que tivera com Nelson
P. dos Santos. Na ocasião, Nelson lhe falara sobre a possibilidade de fazer filmes na

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cidade: “Urbano, lembrava ele, significa também uma pessoa ‘cortês, afável, civilizada’, bem
comportada. Acho que eles querem esse tipo de cinema. Mas vamos ao cinema urbano: a
gente aproveita, faz filme na cidade e manda brasa” (VIANY, 1999, p. 121).

Note-se a utilização do pronome pessoal “eles” para se referir a uma demanda por
filmes urbanos, exatamente como na fala de Carlos, quando diz que, se “eles querem
assunto urbano, nem é preciso sair do Rio”. Em ambas as situações, a construção aponta
para um desejo geral, sem sujeito determinado. Quem quer cinema urbano “comportado”? A
crítica? O público? Os governantes? Todos, talvez. Pelo paralelo que se estabelece entre o
livro que Marcelo pretende escrever e o filme que Saraceni realizou, subentende-se que,
para ambos, o papel do artista deveria ser filmar na cidade, mas sem atender a essa
demanda. Por este motivo Marcelo se lamenta, dizendo não acreditar no projeto, por ainda
ver “tudo escuro”.

Saraceni, por seu turno, em vez de somente filmar a “chamada classe privilegiada” da
Zona Sul, representada por Ada, a contrapõe ao amante de classe média baixa, ativista
político, deprimido por conta da ditadura e da crise em seu relacionamento. Este dualismo
pode ser observado nas duas sequências analisadas abaixo, inseridas no filme após o
rompimento do namoro dos protagonistas.

Na primeira, Ada circula em torno da piscina de sua casa, apresentando uma postura
desolada, que a música extradiegética sublinha. Minha desventura (Carlos Lyra/Vinícius de
Moraes), canção com andamento lento e melodia triste que lembra um acalanto, é
executada por Carlos Lyra, se iniciando com os seguintes versos: “Ah, doce sentimento lindo
e desesperador/ Ah, meu tormento infindo que vai me matar de dor”. Depois de contemplar a
paisagem natural através da grade de segurança que circunda o pátio, segurando-se nela,
Ada é mostrada dirigindo pelas ruas da cidade, à noite. A câmera captura, através da janela
do carro – e sempre tendo o close do rosto de Ada em primeiro plano – o mobiliário urbano,
como placas luminosas, vitrines e painéis de lojas, quase sempre desfocados. Um dado
interessante é a montagem “picotada”, reforçando o sentimento de angústia e agitação
emocional da personagem, que termina escrevendo um bilhete para Marcelo, passado por
baixo da porta de seu apartamento.

No dia seguinte, depois de ler o bilhete, Marcelo caminha por uma feira livre, filmado
num plano-sequência. A câmera segue o personagem por trás, sempre num plano médio, o
que faz com que a visualização do espaço seja interceptada por sua figura. Enquanto ele
caminha, se ouve Arrastão (Edu Lobo/Vinícius de Moraes), na voz de Elis Regina, que
entoa: “Eh! Tem jangada no mar/ Eh, eh, eh! Hoje tem arrastão/ Eh! Todo mundo pescar!”.
Marcelo observa as barracas e as pessoas, principalmente os trabalhadores, sem se deter

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em nenhum lugar, nem parecer interessado em comprar nada. Diferente de Ada, que
permanece protegida por grades e janelas, se poderia afirmar que ele se mistura à
população, mas não de forma evidentemente proativa. Ainda, o fato de Marcelo usar um
terno escuro, que ocupa boa parte do quadro, cria um contraste entre sua figura e o
ambiente diurno – como se ele e o espaço se opusessem mutuamente. Ele caminha quase
até o fim da feira e da música, quando um corte seco (abrupto) leva a outra cena.

A partir dessas sequências é possível afirmar que Ada esteja presa em um arranjo
social do qual gostaria de se desprender, o que é visualmente reforçado pela barreira das
grades e dos vidros e musicalmente tematizado pela canção romântica, vinculada à Bossa
Nova (associada, no imaginário, ao refinamento das classes mais abastadas); Marcelo, por
sua vez, preso em uma capa de racionalidade quase patológica – um jovem
caricaturalmente moderno, se a racionalidade for entendida como elemento basal da
modernidade – não consegue “tocar” nada do que o circunda. A sua relação aparentemente
apática com a feira, espaço popular por excelência na vivência urbana, é rebatida pela
canção – também ela se refere a uma universo popular diferente do que é associado aos
compositores e a sua intérprete (artistas urbanos e de classe média) e não parece conseguir
“tocar” essa realidade de que se aproxima.

No entanto, em ambos os casos, não significa que não haja interação. Afinal, grades e
janelas, funcionando como molduras, “se voltam para a cidade a partir de um padrão de
interação constante” (DEVRIES, 2005, p. 1732), já que apenas se emoldura o que se deseja
exibir. Já no caso de Marcelo, mesmo que não toque com as mãos, o personagem percorre
a materialidade da urbe com o olhar – não se dá o acesso, mas a busca permanece.

Outro dado importante da representação urbana, e que se liga ao anterior, é que a


focalização não está no alto (utilização de gruas, grandes angulares, construção de
establishing shots) e, sim, no nível dos olhares dos citadinos, privilegiando os travelling
(MÜLLER, 2003). Como analisou Mônica B. Campo, mesmo quando a câmera está
localizada no alto “o foco observado é Marcelo e o olhar recai sobre os intelectuais por ele
representados” (CAMPO, 2011, p. 252).

Interessante também é o fato de haver muitas cenas escuras no filme e de que, mesmo
quando filmada de dia, a cidade pareça sombria. Isso é devido, em parte, ao
enquadramento fechado que comentei acima, como no caso de Marcelo andando pela feira.
Ali, o tom escuro de sua roupa, ocupando a maior parte do quadro, também acaba por
aumentar essa impressão. O fato de Marcelo ver “tudo escuro”, como ele mesmo dissera
cenas atrás, está relacionado diretamente à política. A sua reação ao Golpe é de paralisia.

2
Livre tradução de: "renvoient à la ville selon un schéma d’intéraction perpétuelle".

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Nesse sentido, chama atenção um dado que pode ser observado na comparação entre
o filme e um esboço de seu roteiro, que apresenta diferenças flagrantes em relação ao
resultado final3. Inicialmente, existiam muitas cenas em que Marcelo seria enfocado como
um militante. A cidade, por sua vez, apareceria como o espaço propício à política. Um bom
exemplo é uma sequência ambientada nas areias da praia do Leblon, à noite, em que
Marcelo participaria de um interrogatório improvisado, de um possível traidor que teria
facilitado o fechamento da UNE. No filme, não há nada parecido: os personagens
conversam sobre política, mas não se envolvem em militâncias.

Apesar de a política ser um dos temas centrais, ela não aparece, ao menos não em sua
vertente institucional (passeatas, protestos, comícios, greves etc). O que se vê de político
está vinculado às artes e aos meios de comunicação, nas inúmeras referências à cena
cultural carioca dos anos 1960 (CAMPO, 2011; PINTO, 2013b). É evidente que estes
também estão na cidade, mas ao fim a impressão é de que a materialidade das ruas não é
tomada como espaço da política, como poderia ter acontecido a partir do esboço do roteiro.

A grande cidade

Em A grande cidade, a diegese gira em torno de Luzia (Anecy Rocha), personagem


nordestina e migrante que chega ao Rio de Janeiro em busca de seu noivo, Jasão
(Leonardo Villar). Ele chegara anos antes e hoje é um matador de aluguel que mora na
favela da Mangueira (embora não cometa nenhum de seus crimes neste espaço, que
permanece como um local “puro”, de convivência pacífica). Enquanto procura se encontrar
no universo urbano, Luzia recebe ajuda de outros dois migrantes: Inácio (Joel Barcelos),
pedreiro que sonha voltar para o sertão, e Calunga (Antonio Pitanga), bem adaptado ao Rio,
por ter sido criado aqui. A partir dos olhares destes quatro personagens a cidade é
apresentada, sempre em contraponto com o sertão. O final, trágico, apresenta a morte de
Jasão e Luzia pela polícia e a perda de esperanças dos outros dois.

Uma das reações ao universo urbano mais evidente no filme é o temor. A personagem
Luzia se mostra nitidamente amedrontada em seu primeiro dia na cidade. Depois, em
momentos distintos, pergunta a cada um dos outros três se também têm medo. As
respostas variam: para Calunga, o medo é o que permite a ele sobreviver; para Jasão, é
algo a ser evitado, pois representaria sua derrota; para Inácio, é o que o liga a todos os
outros – o medo e a fraqueza diante das agruras da vida. Os comentários deste
personagem em especial formam um panorama interessante da vida no Rio em 1965:

3
Disponível na pasta “O desafio” dos arquivos da FUNARTE no Rio de Janeiro.

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enquanto ouvimos o seu discurso, vemos imagens de tanques de guerra estacionados ao


longo da estrada por onde ele passa de ônibus.

Um pouco antes, ele e Luzia passeiam pelo Monumento aos Pracinhas, no Aterro (e
Parque) do Flamengo, localizado no Centro, à beira da Baía de Guanabara. Embora o
Monumento fosse anterior, o aterro e o parque haviam sido inaugurados um ano antes,
como “coroação” do governo de Carlos Lacerda (1960-65), que tomara posse prometendo
devolver à ex-capital a sua modernidade perdida (PINTO, 2013a). Em seus planos, Lacerda
incluía a erradicação de favelas localizadas em áreas nobres e a consequente expulsão de
seus moradores (muitos deles, migrantes nordestinos). Daí, o posicionamento crítico que o
filme – identificado com o olhar dos excluídos – lança aos novos espaços construídos por
Lacerda.

Uma imagem de Luzia refletida numa das paredes de mármore negro do monumento é
exibida, enquanto ela se contempla. Parte do relevo presente no horizonte da baía está
visível por trás de seu rosto. No som extradiegético, Maria Bethânia canta Anda Luzia (João
de Barro): “a vida dura só um dia, Luzia/ E não se leva nada desse mundo”. Luzia vira-se, se
encostando à parede e perguntando para Inácio se ele seria capaz de dormir com ela. A
câmera, que a enquadrava num plano médio, aproxima-se, oscilando levemente. Corta para
um close dele: “Hein!?” A câmera volta a buscar o rosto de Luzia e ela responde “Nada”,
olhando para outro lado e sorrindo com um toque de malícia. Um conjunto de cinco caças
sobrevoa o Aterro.

Já no final do filme, o Parque do Flamengo é novamente utilizado como cenário. Após


testemunhar o assassinato de Luzia e Jasão, Calunga corre pelo Centro da cidade até
alcançar o Aterro. Em um plano geral muito aberto, Calunga é mostrado de corpo inteiro, um
pouco à direita do quadro, no meio de uma paisagem limpa, com algumas árvores recém-
plantadas. Ele fala olhando direto para a câmera, ao dizer que a valentia não serviu de nada
para eles – Luzia e Jasão – e que, em vez de faca, tiro, amor, traição, ele, que não fez
nenhum ato valente, tem riso e lágrimas e o manto da memória. “A guerra é grande e tá todo
mundo nela. Eu não!!!”. Ele abre os braços num gesto grandiloquente, e olha para o céu. Em
seguida, se dedica a um gestual que expressa angústia, até que, já filmado do alto de uma
grua, corre pelo Aterro, sendo esta a última sequência do filme.

A forma como as sequências analisadas acima estão inseridas na narrativa dá


margem a diversas interpretações. No caso do Monumento aos Pracinhas, há uma
apreensão desta localidade como espaço de lazer, o que está de acordo com a concepção
de seus criadores (MAUAD e NUNES, 1999); por outro lado, o Parque do Flamengo, em que
fica o monumento, também remete à administração de Carlos Lacerda, já comentada acima.

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No entanto, mesmo possibilitando outras leituras, não se pode dizer que as sequências
sejam de todo “inocentes” no que se refere à representação da ditadura. Afinal, os cinco
caças, a referência geral e difusa à “guerra” e o próprio Monumento aos Pracinhas remetem
às Forças Armadas, se configurando em opções no mínimo capciosas. Contudo, assim
como em O desafio, o tom assumido parece querer reforçar as reflexões intimistas diante da
crescente militarização e menos uma resposta explícita a ela – a política também está
ausente do Rio de Janeiro representado aqui.

O Rio, o Cinema Novo e a ditadura

Em depoimento a Silvia Oroz, Cacá Diegues disse que A grande cidade era “uma
tentativa de desmitificar aquela visão de ‘cartão-postal’ e mostrar certos aspectos do Rio de
Janeiro menos preciosos” (OROZ, 1984, p. 36). Ainda, o comparava com o seu filme
anterior, Ganga Zumba (1964), que possuía uma leitura mais “ideológica”, enquanto aqui a
leitura seria “emocional mesmo” (OROZ, 1984, p. 36). Em resumo, tratava-se de fazer um
“acerto de contas” afetivo com a cidade que o recebera quando criança (Cacá migrara com
a família, vindo de Alagoas, com seis anos de idade, sempre morando em bairros de classe
média da Zona Sul carioca).

Essa declaração de princípios, se auxilia na compreensão do interesse do diretor pela


cidade, não determina a leitura que ele fez dela. Aqui, lembro a distinção que Quentin
Skinner faz entre motivo e intencionalidade – enquanto o primeiro se localiza antes da
realização de uma obra, a segunda seria justamente o que se realiza na obra, através da
construção linguística que a compõe (SKINNER, 2012). Assim, nem todo motivo se realiza
como intencionalidade, ainda menos quando envolve uma dimensão emocional, cuja lógica
é mais tortuosa. Afinal, uma rede complexa de fatores está em jogo no processo de
percepção afetiva de uma cidade, sobretudo quando esta é dotada de capitalidade, o que
“contamina” a relação.

Em A grande cidade, o Rio dos cartões-postais ainda está presente, embora filmado a
partir de uma perspectiva crítica, que o associa a elementos negativos da diegese. Do lado
oposto, a favela da Mangueira aparece carregada de valores positivos, identificados, em
alguns momentos, ao sertão (PINTO, 2013a). Logo, o esforço em realizar uma
representação mais realista convive com uma dimensão simbólica, conseguida através da
evocação de leituras pré-estabelecidas. Além da favela como um lugar de pureza, há
também o Centro como espaço de memória (locus do Carnaval, da religião e da cultura
popular) e o Aterro como índice da modernização.

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Em termos narrativos, esta camada simbólica é evidenciada por planos bem estudados
e falas solenes; uso de gruas para filmar a cidade do alto, conferindo um tom mais “clássico”
a seus enquadramentos e certo esquematismo na escolha dos personagens – migrantes
sertanejos, marginais, favelados, burgueses. Contudo, estes mesmos personagens – de
forma a reforçar certa ambiguidade que se configura em traço estilístico do filme – se
retraem diante da política e da violência, buscando se realizar no plano da intimidade, em
sequências menos monumentais, com a câmera na mão. Porém, como já apontado,
acabam destruídos, apesar desta fuga.

O contexto da produção de O desafio é exatamente o mesmo de A grande cidade, ou


seja, coincide com o mandato de Lacerda no governo da Guanabara. Contudo, nada no
filme seria capaz de evocar diretamente tal período, já que não há imagens nem citações
sobre o Aterro4, nem se discute a problemática das favelas, os dois polos de maior atração
desse governo. É evidente, no entanto, o destaque dado aos eventos da política federal,
mas ainda sem reforçar a importância da cidade. É preciso lembrar que, além dos esforços
de Lacerda por manter a capitalidade, o governo Federal deixara aqui “uma enorme
máquina de funcionários públicos e estatais”, continuando a disputar o “poder de conformar
a política carioca” (MOTTA, 2000, p. 19). Como visto no início, a polaridade política da ex-
capital era flagrante, abrigando os adeptos de Lacerda, mas também aqueles que apoiavam
o governo Jango. Em seguida ao Golpe, a cidade ainda seria palco de inúmeras
manifestações, tanto por parte daqueles que apoiavam, como daqueles que rejeitavam o
evento.

Logo, mais que apenas uma mudança de escala – do local para o nacional – as
escolhas narrativas de O desafio também evidenciam a lógica da representação urbana. A
partir do contraste entre a cidade no filme e os traços que a historiografia aponta para ela,
enfatizo que o ponto de vista privilegiado é o dos personagens, e não o dos governos (ou
das ideologias). Marcelo, principalmente, encontra-se descrente de todo movimento popular,
ou dos estilos artísticos que se apoiem neles. O seu olhar rejeita essa porção da urbe,
evidenciando-se uma cidade verticalizada pelo modernismo, escura e fria, mimetizando
seus temores de militante em crise. A mesma focalização funciona para Ada, vivenciando
igualmente um momento crítico em sua busca pela realização pessoal.

Deste modo, apesar de pertencentes a estratos sociais distintos, os personagens de


ambos os filmes parecem se refugiar num universo intimista, mantendo-se afastados das
manifestações políticas cariocas, que sequer são representadas. Enfim, me deparo com a
pergunta do título: “Uma cidade apática?”. Seria mesmo isto que estes dois exemplares do
4
Apesar de ser possível conjecturar que uma pequena parcela de sua paisagem seja visível na cena
final.

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Cinema Novo estariam dizendo da vida urbana carioca no pós-Golpe? Marcelo e Ada
poderiam ser condenados por não fazerem nada diante da nova situação? Luzia e Jasão
teriam sido mortos por conta de sua inação, por terem sentido medo – e apenas medo? E
Calunga e Inácio, seriam corresponsabilizados por estas duas mortes, por se dedicarem
apenas a uma realização pessoal, sem se importar muito com o medo que se espalhava
pala cidade?

Defendo que a resposta seja “não” a todas as perguntas. A partir das análises, percebo
que, menos que apatia, os cineastas (também roteiristas) parecem querer representar a
perplexidade – esta que tomou conta das esquerdas, dos intelectuais e artistas
comprometidos com a lógica nacional-popular. Através de personagens que poderiam
representar a eles mesmos (como Marcelo, o intelectual) ou o Outro, tanto o condenado
(Ada, a burguesa) quanto os admirados (Luzia, Jasão, Calunga e Inácio, os migrantes
nordestinos favelados) – procuram tematizar menos as ruas da cidade mesma, mas as ruas
de suas intimidades tomadas de assalto por um evento sobre o qual ainda sabiam pouco,
mas já lhes causava perplexidade e paralisia.

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120 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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VIANY, Alex. O processo do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999.

ISBN: 978-85-62707-55-1
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A canção e o censurável

Cecília Riquino HEREDIA


Mestranda em História Social na Universidade de São Paulo (USP) e bolsista da FAPESP
cecilia.heredia@uol.com.br

Durante a ditadura militar brasileira, a censura à canção – em virtude da


música ser considerada uma das artes de espetáculo com maior penetração social e aberta
a mudanças de padrões comportamentais e políticos – apresentou particularidades que
acabaram por interferir na própria produção dos pareceres dos censores e potencializar a
variada gama de discursos, relações e processos vivenciados pela Divisão de Censura de
Diversões Públicas (DCDP), órgão ao qual estava atrelada. A pluralidade de dinâmicas
envolvia, sobretudo, as motivações ao veto das obras musicais, que, indo além das
questões morais, políticas e sociais, ocorriam também por conta de críticas estéticas às
obras, erros gramaticais, denúncias de plágio e uma suposta defesa da boa cultura nacional.

Essa heterogeneidade de possibilidades para o censurável relacionava-se, por sua


vez, ao caráter multifacetado presente nas relações estabelecidas entre a atividade
censória, artistas, indústria cultural, sociedade e governo militar e chegou a ser também um
dos fatores responsáveis pelo grande número de discrepâncias entre pareceres relativos a
uma mesma canção, que ocorreram até a primeira metade da década de 1970 e
ressurgiram no início da década de 1980.

Diante do exposto, esta comunicação propõe um mapeamento das diferentes causas


que levaram, durante o período abordado, canções a serem censuradas, lançando luz
também sobre a maneira com a qual a censura musical se inseriu dentro do aparato
repressivo do Estado, respondendo às suas demandas e compartilhando de seu discurso
ideológico. Explorar-se-á, para este fim, as argumentações dos censores utilizadas para
justificar suas decisões; como o aparato legal acerca da censura tratava estes temas
proibidos – provendo ou não a eles fundamentação jurídica –; quais os assuntos que
causavam maiores discordâncias entre as apreciações dos técnicos e quais as diferenças
regionais e temporais observadas nestes procedimentos censórios ao longo do regime
militar.

A partir da análise de uma amostragem aleatória de processos censórios, composta


por 1.805 destes documentos, pertencentes aos anos de 1970 a 1984, observou-se a
existência de um maior equilíbrio e heterogeneidade entre os possíveis motivos que
poderiam levar uma letra musical a ser censurada até 1975. Já o mesmo não ocorreu
durante os anos seguintes, nos quais a pretensa defesa da moral e dos bons costumes

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representou mais de 70% dos vetos contabilizados por esta pesquisa, motivação seguida
apenas pela censura de músicas que contivessem críticas diretas ao regime militar.

A prática de vetar canções contrárias aos bons costumes recaía, principalmente,


sobre letras que abordavam o erotismo, homossexualidade, prostituição, drogas, violação de
leis, expressões maliciosas ou inadequadas e assuntos que ameaçariam a instituição da
família, como traição, filhos fora do casamento, divórcio ou inseminação artificial. Apesar de,
à primeira vista, os temas destas canções não apresentarem semelhanças aos conteúdos
das perseguidas obras de protesto, é importante ressaltar que os técnicos estavam cientes
do valor político em impedir a disseminação de “imoralidades”. Isto porque partiam de um
discurso anticomunista, difundido pela própria legislação censória, segundo o qual o
atentado aos bons costumes obedeceria a um plano subversivo, através do qual o amor livre
e as drogas seriam utilizados para desfibrar as resistências morais da sociedade,
enfraquecendo, assim, a nação e pondo em risco a segurança nacional. Além do mais, a
célula familiar, que pela ótica dos técnicos era posta em risco pelas músicas inseridas nesta
temática, representava um dos pilares de sustentação do discurso moralista do regime, que
buscava, através dele, apoio junto à sociedade.

Sob outra perspectiva, a questão da defesa dos bons costumes estava, ainda,
atrelada à tentativa de manter a ordem pública e, consequentemente, política, através de
vetos a músicas que, por exemplo, influenciassem, na ótica da censura, a prática de crimes.
Dentro deste quadro – no qual, para a censura, as informações veiculadas pelas músicas
passariam a ser consideras normais e cotidianas por parte do público1 – estão presentes
canções censuradas por descreverem carros em alta velocidade – contrariando,
supostamente, as leis de trânsito –, por abordarem o tema do aborto ou por relatarem
crimes passionais.

O ato, portanto, de proibir uma letra em virtude de seu conteúdo imoral estaria
intrinsecamente ligado à defesa da segurança nacional e da ordem vigente, o que
demonstra a mescla que ocorreu na censura musical, deste período, entre uma tradicional
preocupação brasileira com a conservação dos bons costumes da sociedade e os interesses
coercitivos específicos do regime então vigente. As palavras do censor da música “Menino
Jesus” – “defender os valores morais para o curso da Revolução Brasileira”2 – mostram que
os técnicos tinham consciência de que, ao proibirem mensagens contrárias aos bons

1
Parecer da censora Arlete Aparecida Corrêa, 17 de jun. de 1977, São Paulo. In: Processo de
censura da música “Psicologia”, de Ubiratam Mariano. FUNDO “DIVISÃO DE CENSURA DE
DIVERSÕES PÚBLICAS” ARQUIVO NACIONAL, COORDENAÇÃO REGIONAL DO ARQUIVO
NACIONAL, SÉRIE “CENSURA PRÉVIA”, SUBSÉRIE “MÚSICA”, CAIXA 725.
2
Parecer de censor desconhecido, 18 de mar. de 1971, Guanabara. In: Processo de censura da
música “Menino Jesus”, de Chico Buarque. DCDO/CP/MU.

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costumes, tanto as famílias quanto o regime estariam “a salvo” dos “planos subversivos”, o
que fazia desta proibição um ato político.

Mas, se, por um lado, esta preocupação moral está ligada à censura política
realizada durante a ditadura militar, em defesa da ordem vigente, por outro, devemos levar
também em consideração que a censura de costumes, na ótica dos próprios técnicos, era
aquela legitimada pelos setores mais conservadores da sociedade e estava arraigada a uma
tradição missionária presente no histórico da censura brasileira, configurando-se, assim, em
uma prática transparentemente institucionalizada.

O mesmo não pode ser dito, por sua vez, da censura estritamente política realizada
no seio da DCDP. Segundo Miliandre Garcia (2008), esta prática seria a maior amostra da
existência de uma grande conexão entre censores e governos militares. Consequentemente,
muitos técnicos negavam publicamente que faziam esta censura, pois “denunciar tal prática
significava assumir que a entidade, que se projetava como guardiã dos valores éticos-
morais da sociedade, feria tanto os princípios básicos da Constituição como também servia
aos interesses políticos dos governos” (GARCIA, 2008, p. 36). Além do mais, ao defender os
interesses políticos do Estado, os censores encobriam os crimes cometidos e as mentiras
sustentadas pelo regime, traindo também, desta forma, sua suposta missão de tutelar e
proteger a sociedade.

Mas, apesar deste esforço, por parte dos censores, em evitar assumir publicamente
que vetavam temas políticos, negando assim uma aproximação com o autoritarismo vigente,
eles não tinham a preocupação de esconder esta posição de defesa do regime em seus
pareceres, principalmente naqueles que abordavam as “canções de protestos”. Estas obras
mostraram-se, nos documentos analisados, uma categoria musical com características
temáticas, e mesmo estéticas, muito bem delimitadas, que, a todo o momento, eram
“reconhecidas” pelos técnicos durante o exame. Seu conteúdo ideológico estava
relacionado, por exemplo, à utopia, luta armada, conscientização política, inconformismo e
críticas diretas ao regime; sua linguagem seria marcada pela astúcia e pelo simbolismo
(elementos constitutivos da chamada “linguagem da fresta”3) e sua sonoridade estaria
relacionada a uma moderna música brasileira, com sons irreverentes, atrelados a um
público jovem. No parecer da música “Campos”, o censor expõe que

As letras musicais em epígrafe seguem a tendência da moderna música


nacional e internacional, fazendo o gênero da chamada música de protesto,

3
Linguagem oblíqua, utilizada principalmente na imprensa crítica, que, segundo Vasconcellos (1977),
era a única capaz de driblar a censura.

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Pop, muito a gosto dos jovens. São escritas inteligentemente, a linguagem é


4
simbólica, podendo gerar diferentes interpretações.

Este parecer demonstra também, para além da preocupação com a intenção do


autor em criticar o regime através de sua letra, o medo relativo às interpretações que
poderiam ser feitas a partir dela – e que estavam fora do controle da atividade – e o uso
instrumental da mesma por parte da oposição. Isto porque as obras de protestos eram
consideradas um “verdadeiro libelo contra a ordem pública e a organização social”5, capaz
de gerar o incitamento de grupos sociais, conforme pontua o censor da música Victor,
Victória:

Composição sobre lutas, desespero e revolta, incitando ao protesto e ao


combate, que poderá se transformar em hino de protesto e incitamento à
luta armada, razão pela qual sou de parecer, tendo como base o descrito no
decreto 20.493, de 1946, art. 41, letras d, g e h, que não deverá ser
6
liberada.

A citação concomitante destas três letras do artigo 41, por sua vez, – proibindo,
respectivamente, qualquer obra que fosse “capaz de provocar incitamento contra o regime
vigente, a ordem pública, as autoridades constituídas e seus agentes”, ferisse “de qualquer
forma, a dignidade ou interesses nacionais” ou induzisse “ao desprestígio das fôrças
armadas” –, mostra as instituições específicas ameaçadas com a canção de protesto, às
quais a censura demonstrava abertamente salvaguardar.

Ainda sobre o parecer de “Victor, Victória”, a preocupação demonstrada pelos


técnicos com o incitamento de grupos sociais através de críticas contidas em letras musicais
abre caminho para um terceiro grupo de canções que constantemente encontrava-se da
mira do serviço censório: as canções que denunciavam, por exemplo, as dificuldades de
sobrevivência dos trabalhadores, a marginalização social de grupos específicos, a
discriminação racial e, também, abordavam a questão da luta de classes e as reivindicações
de movimentos sociais.

Por um lado, a iniciativa da censura em ocultar evidências segregacionistas e os


problemas econômicos que atingiam grande parte da população brasileira tinha como
objetivo preservar a imagem de uma sociedade desprovida de tensões sociais, promessa de
um regime supostamente comprometido com o “desenvolvimento econômico aliado à justiça
social” (AQUINO, 1990, p. 144). Mas, por outro lado, as denúncias em questão também

4
Parecer de censor desconhecido, 16 nov. 1971, Brasília. In: Processo de censura da música
“Campos”, de Tetê Catalão e Luiz Maranhão. DCDO/CP/MU/CX 714.
5
Parecer da censora Jacira da Costa França, 4 jul. 1973, Brasília. In: Processo de censura da música
“Gozação n° 1”, de autor desconhecido. DCDO/CP/UM/CX 643.
6
Parecer da censora Avelita Barros, 2 set. 1977, Brasília. In: Processo de censura da música “Victor,
Victória”, de autor anônimo. DCDO/CP/UM/CX 725.

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aparecem nos documentos analisados como perigosas formas de incitamento à luta de


classes, como mostra o parecer, de 1977, da canção “Plegaria de labrador”, composta por
Vitor Jara:

Em oração, prega-se a revolta e a necessidade de união para a luta a fim de


se conseguir a liberdade, a justiça e a igualdade, mesmo a custa de se
chegar até a morte. Somos de parecer, tendo como base o decreto 20.493,
art. 41, letra “d” e “g”, que a letra não deverá ser liberada, por agredir aos
interesses nacionais e se constituir um hino de revolta e instigação à luta
armada”.

É interessante notar que, neste caso, a música, apesar da presença da denúncia


social, não aponta diretamente para falhas específicas do regime militar brasileiro, pelo fato
de ser composta por um artista chileno, que escreve sobre a realidade de seu país. Dentro
desta perspectiva, portanto, a preocupação da censura não giraria em torno,
necessariamente, da imagem do governo supostamente distorcida que poderia ser
transmitida às classes populares, mas, sim, do descontrole social que poderia ser gerado
pelo embate de classes, contribuindo, na ótica da atividade, tanto para a opção destes
setores populares pela luta armada – que, conforme podemos observar pela data do parecer
lido, ainda era um fantasma no final da década de 1970 – quanto pelo descontentamento
com o sistema capitalista moderno, que era a base econômica das políticas modernizantes
do regime militar.

Por fim, se os procedimentos e preocupações dos técnicos, apontados até este


momento, durante o exame censório, respondiam de forma direta ou indireta às demandas
do Estado autoritário e refletiam as representações e preocupações contidas na ideologia
adensada pela Doutrina de Segurança Nacional e seus desdobramentos, o mesmo não
pode ser dito dos conteúdos “censuráveis” que serão expostos a seguir.

Analisemos, primeiramente, o processo censório da música “Tiro ao Alvaro”,


resultado de uma parceria entre Adoniran Barbosa e Oswaldo Moles, que integra o conjunto
de obras que a censura considerava “deseducativas”. Embora tenha sido composta na
década de 1950, foi enviada pela primeira vez ao serviço censório somente em 1973,
ocasião em que Adoniran pretendia gravá-la em LP. Na primeira vez em que chegou ao
órgão censório, a música foi vetada por conta de sua “falta de gosto” e as palavras “taubá”,
“artomorve” e “revorve” foram destacadas pelos técnicos. No ano seguinte, a letra foi
novamente enviada para exame e sua liberação, desta vez, ficou sujeita à correção dos
erros gramaticais da letra, o que foi cumprido pelos autores. Apesar de a obra ter sido,
consequentemente, liberada pela censura, Adoniran não gravou, durante anos, esta versão
aprovada.

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Este procedimento, de interditar uma canção em decorrência de erros ortográficos,


foi muito comum nos primeiros anos da década de 1970 e efetuado, principalmente, pelos
técnicos do órgão censório do Distrito Federal – um censor chega a afirmar que vetar letras
em decorrência de erros seria uma diretriz da DCDP de Brasília. O fato de, na maioria
destes casos, a liberação das letras estar atrelada à correção dos erros apontados faz com
que esta motivação ao veto pareça uma interdição banal. Goulart, entretanto, aponta para
um primeiro perigo deste tipo de intervenção da censura nas obras examinadas: ela era
sutil, não perceptível por parte dos leitores (GOULART, 1990, p. 22).

Mas esta temática aborda, também, outras questões problemáticas envolvendo,


principalmente, a concepção do papel da censura por parte dos técnicos. Voltemos ao
exemplo do processo de “Tiro ao Alvaro”. Ele representa um momento no qual a atividade
interferiu diretamente no processo criativo de uma canção, não somente impedindo a
divulgação de trechos, mas com “sugestões”, através das quais a obra poderia ser liberada.
Na letra de Adoniran Barbosa, a correção dos erros ortográficos modificou o seu caráter
popular, já que este era um artifício comum na obra do autor para representar aspectos de
uma linguagem presente nos bairros redutos de imigrantes operários, na São Paulo dos
anos 1950.

Ao solicitarem a correção desta letra, e de outras várias, entretanto, os censores do


processo em questão não buscavam calar esta voz representante dos oprimidos. Em um
parecer de 1972, por exemplo, um técnico afirmou decidir pelo veto a erros gramaticais “sob
a pena de se permitir um trabalho deseducativo na música popular brasileira, fato este,
amplamente explorado e combatido por quase todos os meios de comunicação existentes”7.
Já no caso de Mais beijinhos, a música, que continha erros ortográficos, foi censurada
“considerando que somos obrigados, principalmente, a zelar pela boa educação dos jovens
adolescentes”8. Esta missão tutelar do censor, principalmente em relação aos jovens e ao
povo, era referendada nos pereceres pelo art. 77 do Decreto 20.493/1946, que determinava
proibição de “irradiação de trechos musicais cantados em linguagem imprópria à boa
educação do povo, anedotas ou palavras nas mesmas condições”.

Outro artigo, utilizado com menor frequência, para corroborar esta decisão censória
era o n° 4 do Decreto 5536/1968: “Os órgãos de censura deverão apreciar a obra em seu
contexto geral levando-lhe em conta o valor artístico, cultural e educativo, sem isolar cenas,

7
Parecer do censor Sebastião Minas Brasil Coelho, 13 de julho de 1972, Brasília. In: Processo de
censura da música “Mariza”, de Osvaldo Barbosa da Silva. DCDO/CP/MU/CX 716.
8
Parecer da censora Selma Chaves, 3 de jan. de 1976, Guanabara. In: Processo de censura da
música “Mais beijinhos”, de João Barone. DCDO/CP/MU/CX 736.

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trechos ou frases, ficando-lhe vedadas recomendações críticas sobre as obras censuradas”.


Ele suscita, entretanto, outra perspectiva, além da educação, levada em consideração pelo
censor ao vetar letras pela forma linguística incorreta: a questão da qualidade artística da
música. No parecer da canção Alegria, por exemplo, o censor afirma que a letra oscila
quanto ao nível artístico, pois é uma “criação primária, onde o vernáculo é totalmente
ignorado”9.

Há, ainda, dois outros aspectos considerados pela censura ao vetar letras em
decorrência da questão ortográfica/gramatical. O primeiro era a não compreensão do
sentido e da mensagem transmitidos pela música, o que ocorria, segundo os técnicos,
justamente pelos erros de português da letra. Já o segundo, remetia à construção e
preservação de uma imagem de eficiência da censura perante a sociedade, conforme
explica o parecer da canção Maria das Graças:

A letra em epígrafe constitui um amontoado de frases sem concordância


lógica, com flagrantes erros ortográficos e de concordância verbal, cuja
liberação comprometeria, a nosso ver, a imagem do padrão de trabalho
desta DCDP. Sugerimos, smj [salvo melhor juízo], que se alerte o
10
responsável para uma correção na sua obra” .

Há, portanto, no contexto desta motivação, quatro perspectivas diferentes


relacionadas a quais preocupações o censor deveria ter em mente durante o exame
censório: a educação do povo, o valor artístico da canção, a delimitação da mensagem
conduzida pela mesma e a imagem de eficiência da atividade. Esta heterogeneidade de
posturas, de concepções relativas ao papel da censura, assim como a subjetividade em
definir o valor artístico de uma obra, explica o motivo desta temática ser não somente
delimitado cronológica e regionalmente, mas também representar um dos assuntos que
mais gerou discrepâncias entre pareceres, justamente por estar vinculado ao imaginário
multifacetado do censor musical.

Por fim, uma última temática relativa ao “censurável” será destacada nesta
comunicação, também apontada no primeiro parecer do processo de “Tiro ao Alvaro”. Ao
vetarem canções em decorrência de seu “mau gosto”, por possuírem “linguagem
irreverente”, falta de sentido, ausência de mensagem ou mesmo pelo fato do autor
supostamente não ter conseguido expressar a mensagem que gostaria de transmitir através

9
Parecer dos censores Onofre Ribeiro da Silva e Florialdo de Carvalho Queiroz, 7 de jul. de 1975,
Brasília. In: Processo de censura da música “Alegria”, de Aparecida Graudi. DCDO/CP/MU/CX 653.
10
Parecer da censora Jacira da Costa França, 27 de jun. de 1974, Brasília. In: Processo de censura
da música “Maria das Graças”, de José de Ribamar Oliveira Sousa. DCDO/CP/MU/CX 736.

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da letra, os censores levam em consideração principalmente a estética das canções,


colocando-se como defensores de uma “boa cultura”.

Neste momento, portanto, imbuídos de uma roupagem intelectual, os agentes


mostravam “reconhecer” uma obra de qualidade, cujas características, entretanto, eram
totalmente subjetivas – gerando muitas discordâncias no exame das músicas desta
categoria. Isto porque se, por um lado, esta era uma postura comum na atividade,
principalmente na primeira metade da década de 1970, por outro, ela não era normatizada
nem institucionalizada, uma vez que não se constituía em uma demanda oficial das
diretrizes organizacionais do serviço censório, muito menos do regime militar. Retomando,
inclusive, o art. 4 Decreto-lei 5.536 de 1968 – “Os órgãos de censura deverão apreciar a
obra em seu contexto geral levando-lhe em conta o valor artístico, cultural e educativo, sem
isolar cenas, trechos ou frases, ficando-lhe vedadas recomendações críticas sobre as obras
censuradas” –, está sublinhado que o papel da censura não era julgar esteticamente as
canções em seus pareceres. Consequentemente, estes últimos exemplos de motivações ao
veto estão, também, relacionados à grande parte das ocorrências de discrepância entre
pareceres relativos a uma mesma obra.

Concluindo, uma das principais características da censura à canção, ocorrida


durante a ditadura militar, foi, portanto, esta pluralidade de opções para o que deveria e
poderia ser censurado em uma obra musical. Esta particularidade, por um lado, está
atrelada ao caráter multifacetado do imaginário social dos censores, que atribuía diversos
papéis à atividade, relacionados tanto à vigilância e coerção dos instrumentos da oposição
ao regime, quanto à suposta defesa da sociedade e da cultura nacional. Por outro, a
heterogeneidade do censurável foi também motivada pela grande penetração social da
canção, que possuía os mais diversos públicos, era reproduzida em uma grande variedade
de espaços e meios de comunicação e permitia a divulgação das mais distintas ideias e
representações.

Referências

AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-1978): o


exercício cotidiano da dominação e da resistência: O Estado de São Paulo e Movimento,
São Paulo: EDUSC, 1999.

GARCIA, Miliandre. Ou vocês mudam ou acabam: teatro e censura na ditadura militar. Tese
(Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008.

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GOULART, Silvana. Sob a verdade oficial: ideologia, propaganda e censura no Estado


Novo. São Paulo: Marco Zero, 1990.

VASCONCELLOS, Gilberto. Música Popular: de olho na fresta. Rio de Janeiro: Graal, 1977.

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A legitimação da autoridade e a positivação da democracia: Castelo Branco visita


Blumenal-SC em 1965

Cristina FERREIRA
Doutoranda em História Social pela UNICAMP e professora titular de Pesquisa em História e
História do Brasil do Dep. de História da Universidade Regional de Blumenau – FURB
cris@furb.br

Introdução
Em meio aos eventos de transição e alternância de poder da esfera executiva do
Brasil na década de 1960, chama atenção a importância que as cidades do interior
assumem no cenário político nacional, pois se tornam alvo da presença, em carne e osso,
de autoridades públicas. Diante de tal problemática de pesquisa, este artigo tem o objetivo
de analisar e discutir os propósitos, interesses, jogos de poder e bastidores políticos
atrelados à visita do primeiro Presidente Militar, Humberto de Alencar Castelo Branco, à
cidade de Blumenau-SC, com a finalidade de problematizar sua eventual representatividade
na constituição das Culturas Políticas, elaboradas em sociedade a partir do Golpe Civil-
Militar de 1964.

Castelo Branco esteve na capital, Florianópolis, e cumpriu uma agenda de visitas e


encontros políticos em Blumenau (22/maio/1965). Sua presença na cidade foi articulada
pela Federação da Indústria e Empresários de Santa Catarina (FIESC), situação que
corrobora o interesse do grupo econômico do governo da Ditadura Militar na questão do
desenvolvimento industrial. Na oportunidade, o Presidente optou por conhecer duas das
mais importantes indústrias da região: Eletro Aço Altona S.A e Artex S.A, do ramo
metalúrgico e têxtil, respectivamente. Além das fábricas, Castelo Branco desfilou a pé em
um curto trajeto na Rua 15 de Novembro, principal avenida do centro da cidade,
acompanhado de autoridades militares e civis. Este ato indicou uma quebra de protocolo e
foi presenciado por uma quantidade imensa de expectadores interessados em ver o
General. Tal situação transformou-se em espetáculo público, ato simbólico que dá suporte
às estratégias do Estado autoritário, à procura de um campo gerador de reciprocidade e
identificação entre autoridades e sociedade civil.

Castelo Branco em busca da “Ordem e Progresso”


No interstício de 1963 e 1964, a nação vivia certa instabilidade político-partidária,
agravada pela crise institucional e econômica, responsável por uma espécie de sensação de
descontentamento em uma parcela de civis e militares que, juntamente com políticos rivais,
promoveram a deposição de Jango por meio de um golpe de Estado (31/Março/1964). Era
nítido que os militares receberam o apoio de alguns segmentos da sociedade civil,
manifestado em passeatas que reuniram centenas de pessoas nos espaços públicos de
cidades brasileiras, dotadas de expressiva representatividade na vida política nacional. Na
sequência, os militares assumem o governo brasileiro e, no dia 15 de abril, um Ato

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Institucional nomeou, sem eleições diretas, o novo Presidente do Brasil: General Humberto
de Alencar Castelo Branco.

Em meados de 1963, Castelo Branco, a convite do Ministro da Guerra, Jair Dantas


Ribeiro e do Presidente Jango, foi promovido a Chefe do Estado-Maior do Exército (EME).
Esta circunstância concedeu-lhe um papel de destaque na hierarquia do alto comando
militar, bem como o “respeito de seus subordinados” (DULLES, 1979). Ao assumir a
Presidência da República em 1964, Castelo Branco tornou-se Oficial da Reserva e foi
investido do título de “Marechal” (NETO, 2004: p. 276). De certo modo, o General Castelo
Branco reunia em si qualificações suficientes para assumir o cargo de Presidente da
República e sua escolha envolvia, sobretudo, o “prestígio entre seus pares e conexões com
o IPES” (REIS FILHO, 2002: p. 36) (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), mantido por
empresários e políticos alinhados com a proposta de ajuda financeira dos Estados Unidos
para o Brasil. Portanto, a indicação de Castelo Branco para o cargo esteve envolta em um
processo político de legitimação do poder instaurado no país naquela ocasião. A partir de
então, sua imagem como presidente-militar foi alicerçada sob um viés oficial, constituída
cuidadosamente por “livros como os de Luís Viana Filho, chefe da Casa Civil de Castelo
Branco, e de Daniel Krieger, líder do governo no Senado” (FICO, 204: p. 31-32), que
contribuíram para a consolidação de um perfil “moderado” e “legalista”.

Por outro lado, convém frisar que, logo nos primeiros meses de seu mandato,
Castelo Branco promoveu ações na contramão desses rótulos, em especial a prorrogação
de seu próprio mandato de Presidente, em Julho de 1964 e a imediata criação do Serviço
Nacional de Informação (SNI), responsável pela formulação de um aparato repressivo de
identificação e a ordenação de prisão aos cidadãos considerados contrários ao regime.

A partir de 1965, as determinações políticas de Castelo Branco oscilavam de forma


constante, o que denotava certa fragilidade do governo na tomada de decisões importantes.
Neste período inicial da Ditadura Militar, as políticas autoritárias estavam centradas na
“blindagem” do Estado e “na despolitização dos setores populares (operários e
camponeses)”. De fato, as principais ações do primeiro presidente militar envolveram atos
arbitrários à liberdade política e ao exercício da cidadania, tais como: 1) a instauração do
bipartidarismo; 2) a criação de uma lei limitante da atuação da Imprensa e 3) a Constituição
de 1967, cuja característica principal era o aumento de poder concedido ao Executivo em
detrimento do Judiciário e Legislativo. Os mecanismos punitivos de seu governo atingiram
militantes e “sindicalistas foram depostos e políticos perderam seu mandato e/ou seus
direitos políticos” (QUADRAT, 2006: p. 132), em uma clara demonstração do enrijecimento
das políticas de Estado. Portanto, o primeiro Presidente militar a partir de 1964 exerceu uma
política pautada na censura, com um número considerável de civis punidos: 3.644, de um
total de 5.517, somente durante seu governo. Ainda convém agregar a estes dados a
quantidade de oficiais das Forças Armadas e militares punidos na gestão de Castelo
Branco, cuja representatividade atingiu 90% das sanções realizadas durante a Ditadura
Militar em seus vinte e um anos de vigência (NAPOLITANO, 2014: p. 71-73).

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Diante deste cenário, pairava uma espécie de onda de insatisfação e a


“impopularidade do governo” tomou conta da opinião pública. Esta “atmosfera de
descontentamento” (REIS FILHO, 2002: p. 40) causou aborrecimentos aos políticos
apoiadores do Golpe Civil-militar de 1964, mas também gerou desgosto junto à própria
população, em especial trabalhadores, empresários e donas de casa. Tal situação se
desencadeou a partir das medidas tomadas pela equipe de Castelo Branco para conter a
inflação que, além de prejudiciais, também foram ineficientes e trouxeram à tona uma “série
de ataques ferrenhos à política econômica do governo” (DULLES, 1979: p. 216).

Outro elemento associado a esta questão remetia à própria figura do presidente,


considerado um tanto quanto distante da população no exercício de seu cargo. Com o
propósito de reverter esse quadro e reiterar aos civis a necessidade de compreensão em
relação às atitudes mais contundentes do governo, dentre outras ações, Castelo Branco
iniciou um processo de deslocamento por diversas regiões da nação, sem restringir-se
apenas aos grandes centros urbanos, em busca da conquista, reconhecimento e
identificação do povo com os preceitos democráticos, ideal simbólico do Golpe de Estado
que os militares consideravam como a “Revolução de 1964”. Durante seu mandato, visitou
inúmeras cidades do interior, cuidadosamente escolhidas, tais como: Uberaba, Ipatinga, Boa
Esperança (MG); Caxias e Carolina (MA); Porto Nacional (GO) e Campina Grande (PA). Sua
presença nestas localidades estava relacionada com a participação em eventos de ordem
pública, comemorações cívicas e/ou militares, inauguração de obras ou, até mesmo, no
apaziguamento de questões políticas e/ou militares. As viagens realizadas pelos
governantes apresentavam uma natureza diversa e, além de “implicações políticas”,
estavam eivadas de elementos simbólicos que auxiliavam na “estratégia de constituição e
de legitimação do poder” (REVEL, 1989: p. 106). Esta escolha decisiva prevaleceu nas
viagens de Castelo Branco e demais políticos interessados em constituir uma “identidade
positiva da ditadura militar” (REIS FILHO, 2002).

Nos dias 21 e 22 de maio/1965, Castelo Branco veio pessoalmente a Santa Catarina,


em atendimento ao convite feito pelo Governador Celso Ramos, articulado com a Federação
da Indústria e Empresários de Santa Catarina (FIESC). No primeiro dia, o Presidente visitou
a capital, Florianópolis, sob um esquema de segurança a cargo do Exército Nacional. No
cronograma oficial a cumprir constavam diversas atividades, dentre as quais: honras
militares, almoço no 5º Distrito Naval; homenagem para recebimento do título de “Cidadão
honorário de Florianópolis” e pernoite na Ilha de Santa Catarina.

No dia seguinte, rumou para Itajaí no avião da Força Aérea Brasileira (FAB) e o
percurso até Blumenau foi feito de automóvel oficial. Durante o trajeto, o esquema de
segurança foi reforçado pelo 23º Regimento de Infantaria de Blumenau. As atividades
programadas na visita, de aproximadamente quatro horas, foram as seguintes: 1) Recepção
do Prefeito e demais autoridades em frente à Prefeitura Municipal; 2) Desfile pela Rua 15 de
Novembro até a Matriz São Paulo Apóstolo e passagem pela Igreja; 3) Visita ao parque
industrial, Electro Aço Altona S/A e Artex S/A, dos ramos metalúrgico e têxtil,

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respectivamente; 3) Encontro com autoridades no Grande Hotel e, por fim, 4) Almoço


informal. A programação, no entanto, não pode ser analisada apenas sob a ótica desta
sequência de atividades, pois a ênfase da excursão do presidente recaiu sobre sua visitação
às indústrias. As fontes documentais demonstraram que, parte desta escolha diz respeito ao
fato de que na década de 1960, o setor econômico industrial de Blumenau passava por uma
fase de expansão, sendo o principal centro industrial de Santa Catarina, com 17,5% do total
dos negócios (MAMIGONIAN, 1966: p. 452). As indústrias, predominantes do ramo têxtil,
ocupavam o décimo lugar em relação aos centros têxteis do Brasil e, na área de produção e
transformação de metais, também se destacavam nacionalmente. Esses dados reforçam o
interesse do governo militar na região do Vale do Itajaí, apontada como área dotada de
potencial para contribuição no processo de reversão do quadro de crise econômica vigente.

No entanto, ao mesmo tempo em que as “políticas de modernização” implantadas


pelos militares e seus aliados civis acarretaram em “mudanças importantes na infraestrutura
do país, com repercussões principalmente na economia, comunicações [...]”, o
desenvolvimentismo excluía parte da classe trabalhadora e defendia que a “elite produtiva”
se responsabilizasse pela contenção de movimentos trabalhistas. Portanto, era uma espécie
de “modernização conservadora” e os “projetos de desenvolvimento foram comandados pela
tecnocracia civil e militar” (MOTTA, 2014: p. 8), com a retaguarda de um forte aparato
repressivo de censura, destinada a conter oposições.

Alinhada com as questões de cunho desenvolvimentista, a imprensa catarinense


reservou porcentagem generosa de seus editoriais para noticiar a visita de Castelo Branco a
Santa Catarina. No caso da imprensa de Blumenau, o periódico A Nação editou vinte e dois
artigos e, por sua vez, dois jornais de circulação estadual publicaram juntos um total de
quinze artigos (O Estado, nove e A Gazeta, seis). Curioso foi constatar que, mesmo diante
do fato comprovado de que a passagem de Castelo Branco a Blumenau privilegiou as
indústrias, A Nação tenha optado por mencionar os trabalhadores em apenas dois artigos,
nos quais destacou a disciplina como característica central dos industriários locais.
Conforme o jornal, o presidente teria a oportunidade de fazer uma excursão e entrar em
contato com “a disciplina do operariado e as possibilidades desenvolvimentistas de nosso
parque industrial” (OLIVEIRA, 1965: p. 3). E, a chegada do Presidente à Artex S/A foi
descrita com ênfase no fato de que os “operários [...] se agrupavam disciplinadamente frente
a sua fábrica” (A Nação, Ano XXI, n. 117. Blumenau, 25/Maio/1965, p. 1-2.) para a
tradicional saudação, sem a necessidade do cordão de isolamento, conforme demonstra a
Figura 1.

As questões de ordem eram muito valorizadas na visitação das autoridades, sobretudo


por conta da preservação da figura política em questão, ainda mais em se tratando de um
militar, rodeado de seguranças por todos os lados. Na Figura 1, o ângulo escolhido pelo
fotógrafo (Hans Raun) valorizava as personagens principais da comitiva presidencial e
autoridades locais, por outro lado, em segundo plano aparece claramente o público
aglomerado nas laterais da avenida, precedido de uma numerosa quantia de seguranças

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trajados com seus ternos escuros, designados para assegurar a ordem, em um perfeito
aparato de construção da representação simbólica do poder político vigente.

Acervo: Arquivo Histórico “José Ferreira da Silva” – Blumenau.

Figura 1: Ernesto Geisel, Prefeito em exercício Edgar Müller, Presidente


Castelo Branco, Governador Celso Ramos e militar não identificado.

A simples menção da imprensa sobre o comportamento exemplar dos operários


também estava articulada com a ênfase no ideário de “ordem e progresso”. Tal propósito
não escapou ao pronunciamento do próprio Presidente diante do prédio da Prefeitura
Municipal, no qual ressaltava o “espírito de trabalho”, a “ordem” e o “progresso” (A Nação,
Ano XXI, n. 116. Blumenau, 23/Maio/1965, p. 1-6) da população do Vale do Itajaí, discurso
que reforçava o ideal de “cidade industrial e do trabalho” atribuído pelos meios de
comunicação e empresários locais a Blumenau e, cuja disseminação, criou uma espécie de
bordão para a cidade.

Via de regra, as visitas de autoridades públicas eram dotadas de um caráter


protocolar, responsável pela ritualização de atos simbólicos e ritos consagrados que
envolviam a passagem por “fábricas, portos, oficinas, monumentos” (REVEL, 1989: p. 112),
quase como uma inspeção nos eixos norteadores da vida pública da localidade. Na ocasião
da passagem do Presidente Castelo Branco não foi diferente, no entanto, a tônica da
ritualística também se fez notar por meio de uma peculiaridade importante, o contato com as
crianças. Estes aspectos foram captados pelo fotógrafo em situações diversas e fornecem
“uma pista para se chegar ao que não está aparente ao primeiro olhar, mas que concede
sentido social à foto” (MAUAD, 1996: p. 12).

Na Figura 2, diante de uma imensidão de populares, o esquema de segurança


permitiu a aproximação de uma criança para cumprimentar o Presidente, cuja oportunidade
não escapou também à imprensa local que noticiou: “seus passos [eram] interceptados por

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crianças que se dirigiram a seu encontro abraçando-o demoradamente” (A Nação, Ano XXI, n.
116. Blumenau, 23/Maio/1965, p. 1). Um gesto aparentemente simples, mas com um
significado de apelo à figura da autoridade, não apenas como representante do poder
político da nação, mas também como pai de família e ser humano que, por sinal, viajou ao
Estado acompanhado de sua filha, Antonieta Castelo Branco (A Nação, Ano XXI, n. 115.
Blumenau, 22/Maio/1965, p. 1-6.). Esta situação traduz com evidência a necessidade do
governo autoritário de investir na obtenção do consentimento da população civil, intenção
corroborada por intermédio da aproximação com seu governante máximo.

Acervo: Arquivo Histórico “José Ferreira da Silva” – Blumenau.

Figura 2: Rua XV de Novembro, nas proximidades da Igreja Matriz, em um


encontro entre autoridades militares, civis e eclesiásticas (22/05/1965).

Outra situação peculiar demonstrada pela Figura 2 refere-se ao fato do Presidente


estar a pé, em plena rua principal da cidade, diante de um público numeroso e contíguo à
autoridade. Isto ocorreu à revelia do protocolo oficial inicialmente previsto, no qual o trajeto
pela Rua XV de Novembro seria realizado de automóvel. O próprio Presidente decidiu
alterar a programação oficial e fazer o percurso a pé, gesto que provocou “entusiasmo” e
“admiração” na população (A Nação, Ano XXI, n. 117. Blumenau, 25/Maio/1965, p. 1-2.). Por
outro lado, tal atitude também pode ser pensada enquanto uma espécie de “espetáculo
físico da soberania” (A Nação, Ano XXI, n. 117. Blumenau, 25/Maio/1965, p. 1-2.)
presidencial, articulada juntamente com o ideal de aproximação com a população brasileira.
A imprensa se regozijou com esta atitude e enfatizou: “foi um gesto bonito, muito raro em
chefes de Estado, sempre presos às regras do protocolo” (A Nação, Ano XXI, n. 117.
Blumenau, 25/Maio/1965, p. 1-2). Eis então, uma tentativa de diferenciar a figura de Castelo
Branco dos demais Presidentes, como forma de identificação e constituição de apoio ao
novo soberano da nação. Jacques Revel inspira a análise deste gesto presidencial, pois,
segundo ele, no caso da movimentação de autoridades, “espera-se ainda do povo reunido
que reconheça o regresso da soberania pública encarnada num homem que vem refugiar-se
nele” (REVEL, 1989: p. 117).

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A personificação do homem no presidente e vice-versa aparece demonstrada nas


fotografias, que auxiliam na compreensão das diferentes representações sociais e códigos
de comportamentos em diferentes grupos socioculturais (Cf. CARDOSO, 1997). A
combinação entre imagens e elementos textuais, também inspira uma análise mais
completa dos processos históricos, por isso, é importante indicar que alguns trechos
redigidos nos periódicos se constituem a partir da leitura dos registros fotográficos.

Acervo: Arquivo Histórico “José Ferreira da Silva” – Blumenau

Figura 3: José Ferreira da Silva, ex-prefeito da cidade, ao lado de Castelo


Branco, em desfile na Rua XV de Novembro, com destaque para o
cumprimento à população (22/05/1965).

As Figuras 2 e 3 capturaram e perpetuaram o flagrante de um presidente simpático e


carismático que “manteve um contato mais direto com o povo, [...] manifestando a sua
confiança entre o calor dos aplausos e a chuva de pétalas de flores e papel picado que lhe
era jogado das sacadas de todos os edifícios” (A Nação, Ano XXI, n. 117. Blumenau,
25/Maio/1965, p. 1-2.). O contato físico com o povo que “o cercava para um abraço ou um
simples apertar de mão” (A Nação, Ano XXI, n. 117. Blumenau, 25/Maio/1965, p. 1-2.) era
capaz de transformar a autoridade desconhecida em ser humano de carne e osso frente à
população.

O aceno de Castelo Branco (Figura 3), em uma demonstração de interação e atenção


junto à população, era um flagrante constante, presente na maior parte das séries
fotográficas acerca de sua visita. Raramente o Presidente olhava ou fazia pose diretamente
para as câmeras nas imagens analisadas, opção que remete ao fato de que os próprios
registros fotográficos podem ser utilizados tanto para a “legitimação de uma determinada
escolha quanto, por outro lado, o esquecimento de todas as outras” (MAUAD, 1996: p. 576).
Logo, a imagem também pode ser considerada uma espécie de “memória silenciosa”
construída “na lembrança, mas também no esquecimento” (MOTTA, 2012: p. 27), ou seja, o

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processo de interpretação
ção de eventos históricos pela via imagética deve considerar não
apenas as evidências e destaques óbvios, mas também os pormenores negligenciados e os
silenciamentos intrínsecos às fontes escritas e/ou em formato de imagem.

Por isso, para além de autoridades


autoridades e personagens ilustres, salta aos olhos o número
imenso de expectadores que acompanhou a visita de Castelo Branco, transformada em
evento público. Na Figura 4, novamente aparecia em destaque a presença das crianças
uniformizadas de branco, ladeando a escadaria
escadaria central da Igreja Matriz São Paulo Apóstolo,
ato simbólico que dá suporte às relações que estão em pauta nas estratégias do governo
militar em sua busca pela tão desejada padronização do comportamento da população.

Acervo: Arquivo
Arquiv Histórico “José Ferreira da Silva” – Blumenau.

Figura 4: No centro, o presidente Castelo Branco, acompanhado de


autoridades políticas e religiosas locais. Na segunda fileira, logo atrás do
presidente, o chefe do gabinete militar, Gen. Ernesto Geisel (22/05/1965).

Na ocasião, o jornal A Nação registrou que havia papel picado, foguetes e uma
“ovação popular”, com destaque para senhoras e crianças que burlaram “o “cordão de
isolamento” [e] apressavam-se
apressavam em cumprimentar o presidente daa República, oferecendo
[uma] corbelha de flores” (A
A Nação,
Nação, Ano XXI, n. 116. Blumenau, 23/maio/1965, p. 1-6).
1 Esta
menção da imprensa às crianças e mulheres é uma espécie de referência às saudações
representativas das famílias locais, com o intuito de propor
propor uma suposta identificação dos
habitantes da cidade com as decisões governistas e seu presidente, Castelo Branco, para
gerar aprovação e apoio às ações impositivas do governo autoritário e incutir uma ordem
pública vinculada aos poderes militares.

As autoridades
oridades eclesiásticas, presentes nas Figuras 2 e 4, apareceram alinhadas com
o Presidente neste evento, principalmente, diante do fato do novo governo instaurado

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recorrer a preceitos religiosos para justificar sua proposição de governo pautado na


“democracia cristã”, tão propagada pelos militares a partir de 1964.

É válido mencionar que, independente da agressividade proposta pelos instrumentos


de controle do Estado e a centralização do poder, na fase de transição da forma de governo
e consolidação do regime autoritário existiam pontos convergentes com os ideais nacional-
estatistas, a exemplo da aproximação do Presidente com o público em geral e da permissão
para funcionamento de alguns sindicatos corporativos, considerada “uma das vigas mestras
da democracia populista” (Informativo Hering, Ano I, n. 7. Blumenau, Julho/1965, s/p). A
busca pelo apoio da população nas ações governistas era endossada pelas autoridades,
que tiveram a oportunidade de palestrar diretamente com o presidente, pois “foram
unânimes em afirmar o espírito altamente democrático de S. Excia que, deixou de lado
todos os capítulos do protocolo, confraternizando-se com a maioria” (A Nação, Ano XXI, n.
118. Blumenau, 26/Maio/1965, p. 1-6).

Segundo a imprensa, o presidente “dispensava especial interesse pelos problemas


locais” (A Nação, Ano XXI, n. 118. Blumenau, 26/Maio/1965, p. 1-6) e o fato é que, no
almoço informal realizado no Grande Hotel de Blumenau, autoridades estaduais e
municipais, representantes de diversas entidades sindicais e classes produtoras tiveram a
oportunidade de conversar pessoalmente com Castelo Branco, que recepcionou e ouviu
atentamente a todos. Obviamente, mesmo que o governo lançasse mão de uma série de
artefatos de cerceamento de liberdades aos civis, era fundamental a caracterização de
Castelo Branco como “democrático”, em uma nítida referência ao lema do retorno da
liberdade, propagado pelo novo governo instaurado, sob a justificativa de que não
permitiriam ações políticas semelhantes às praticadas pelo governo de João Goulart.

Portanto, a visita do general-presidente assumiu um cunho de reafirmação


“revolucionária” que, feito “intervenção salvadora” (Cf. REIS FILHO, 2004), visava dar a ler o
Marechal ou, em outras palavras, passar a imagem do militar-cidadão, em especial, no
espaço de poder ligado à economia ou à religião. E “de paragem em paragem, [uniu] um por
todos os pontos do percurso. Constituiu como um todo o espaço que circunscreveu. Em
contrapartida, construiu sobre a sua deambulação a sua própria legitimidade” (REVEL,
1989: p. 269). Por isso, este investimento sobre a figura pessoal do Presidente foi legitimado
pelo próprio Castelo Branco em carne e osso a desfilar pela cidade.

Considerações Finais
As viagens de Castelo Branco imediatamente após assumir a Presidência da
República em abril de 1964 não se restringiram somente aos grandes centros urbanos e
capitais. Essa ação está interligada com estratégias políticas elaboradas no afã de conduzir
a opinião pública a uma visão positiva quanto ao regime instaurado. O interesse na
legitimação do governo dos militares convergia também com as questões ligadas ao
potencial desenvolvimentista do Brasil que, no caso de Blumenau, foi articulado com sua

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presença nas indústrias do setor têxtil e metalúrgico, onde esteve em contato com
autoridades locais, trabalhadores e sindicalistas.

Castelo Branco passou a visitar cidades do interior em busca do reestabelecimento da


ordem, mas também com o intuito de aproximar-se da população em geral, de preferência
para ser identificado como um político dotado de capacidade de liderança e responsável
pela reconstituição da ordem social do país. O intuito das viagens estava relacionado à
demarcação de poderes e à garantia da supremacia territorial do governo ditatorial ainda em
fase de estabelecimento, para evitar ameaças em sua forma de promover e fazer política e
vincular sua imagem aos preceitos da “ordem e progresso”.

Todavia, a análise destes deslocamentos do Presidente não pode ser feita por uma via
reducionista, que se restringe à mera estratégia de autoridade política, com objetivos
puramente oficiais. O cerne das visitas visava a legitimação da autoridade do governo
militar, com um grau de intencionalidade específico em torno do desenvolvimentismo
econômico e da entronização, em território brasileiro, do reconhecimento e aproximação
entre as autoridades e a população.

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A Campanha Operário Padrão: uma iniciativa para a conformação dos trabalhadores


durante a ditadura militar

Daniela de CAMPOS
Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e docente
no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul
dcampos7@hotmail.com

A presente comunicação aborda a construção do operário padrão, por meio de um


concurso nacional, assim denominado, a partir da concepção dos empresários industriais.
Para tal, entende-se, que a Campanha Operário Padrão foi um instrumento que visava
disciplinar os trabalhadores, não somente aqueles que participaram do concurso, mas
especialmente os demais, por meio do exemplo imposto pelo operário modelo. Assim, as
regras criadas pelos patrocinadores da campanha tendiam a escolher e, de certa forma,
“fabricar” um modelo a ser seguido pelos outros, e, por conseguinte, disciplinar a mão de
obra. Este trabalho é resultado de pesquisa realizada para tese de doutoramento em
História, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS, sob orientação
da Profa. Dra. Claudia Musa Fay.
A Campanha Operário Padrão, inicialmente uma iniciativa exclusiva do jornal O
Globo, iniciou ainda na década de 1950, circunscrita ao estado do Rio de Janeiro. Na
década seguinte, já sob a ditadura militar, o Serviço Social da Indústria – SESI aliou-se ao
jornal para tornar o concurso nacional. Segundo Bárbara Weinstein, após 1964, o SESI
pouco inovou em programas e ações voltadas ao trabalhador; sua inserção no concurso
para premiar um operário modelo foi uma das poucas inovações implantadas após o golpe
civil-militar, uma vez que o contexto político favorecia esse tipo de investida. Para a entidade
empresarial essa Campanha se configurava num “veículo conveniente para um discurso que
enfatizava o esforço individual e a cooperação com o patrão como a chave da ascensão
social para os operários” (WEINSTEIN, 2000: p. 351.).
O concurso envolvia várias etapas até se chegar ao vencedor final, na fase nacional.
Primeiramente eram eleitos os operários nas fábricas. As empresas aderiam
espontaneamente à campanha e, percebe-se, pelos documentos analisados na pesquisa,
maior envolvimento de empresas de grande porte. Escolhidos os operários das fábricas,
esses participavam da escolha estadual. Todos os operários padrão estaduais concorriam
na fase nacional. Os candidatos se dirigiam ao Rio de Janeiro, onde era feita a seleção, e de
lá para Brasília, a fim de serem recepcionados pelo Presidente da República.
Para tornar-se operário padrão, ou melhor, para obter o título, uma vez que aqueles
que se inscreviam no concurso muito provavelmente detinham características de

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trabalhadores exemplares, o candidato de antemão deveria obedecer a alguns critérios


(assiduidade, maior tempo de empresa, cursos realizados e outros de cunho moral).
No tocante às empresas, deveriam ser contribuintes do SESI. O operário deveria
estar ligado às atividades produtivas da fábrica, podendo exercer funções de mestre ou
chefe de seção, mas não podia desempenhar atividade administrativa.
Foi possível perceber, ao longo da pesquisa, que o concurso era, acima de tudo, a
exaltação do trabalho, do labor constante e dedicado e isso numa sociedade que necessitou
“reabilitar o valor do trabalho”, especialmente nos anos 30 do século passado. Mas também
era, a partir desse objetivo principal, um modo de adequar a força de trabalho, de discipliná-
la.
A compreensão do disciplinamento da mão de obra, por meio do discurso do bom
operário encarnado pelo OP, não pode se descolar do contexto político vivido pelo Brasil a
partir da segunda metade dos anos 1960, com a implantação de uma ditadura. Como já
enunciado, a COP foi uma das iniciativas voltadas aos trabalhadores mais significativas do
empresariado nacional nesse contexto político.

A campanha Operário Padrão como prática disciplinadora


A COP foi uma ação da classe empresarial, através do SESI, ainda que tenha sido
idealizada pelo O Globo e que tenha contado com sua colaboração durante toda sua
vigência. Com ela se queria demonstrar o perfil do trabalhador ideal e procurava-se, por
meio de uma ação nacional, estender um padrão para todos os trabalhadores vinculados às
empresas que contribuíam com o SESI e, dessa forma, disciplinar a mão de obra. Esse
disciplinamento, parece-nos, nesse contexto, que adquiriu um caráter sutil, pois não era uma
conformação forçada, mas, sim, uma prática que tinha o objetivo de premiar o melhor, o
mais dedicado, aquele que demonstrou, por anos, estar atento à lógica da produção e que
conseguiu relativo sucesso material por meio de seu trabalho, sem, para isso, precisar
entrar em conflito com o empresariado. A COP foi uma importante ação que encontrou um
contexto ideal: um regime ditatorial.

Parece, a partir da análise dos documentos, que o trabalhador que participava do


concurso o fazia, inicialmente, porque a empresa o escolhia, sendo que alguns
desconheciam a campanha antes disso, o que revela que o concurso tinha mais valor para a
empresa, a qual também se beneficiava de ter um operário exemplar, do que para os
próprios trabalhadores. Após participar e, eventualmente, ser escolhido OP, o discurso
sobre o evento se transformava, visto como algo muito positivo para todos os trabalhadores
e inclusive de importância à indústria no progresso nacional (SESI-DN, Opinião de operários
padrão, 1979).

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Nos objetivos da Campanha, dizia-se que, para a empresa, era importante a


participação, pois “é um elo a mais de ligação entre os patrões e operários”, também
porque, “ao exaltar o trabalhador, a campanha valoriza a empresa que ele pertence e que
lhe dá os meios necessários para desenvolver o seu trabalho” (SESI-DN, informações gerais
sobre a Campanha Operário Padrão, 1979).

A principal virtude que o operário deveria demonstrar era sua dedicação ao trabalho.
Para comprová-la, seu depoimento ou documentos funcionais não eram suficientes.
Segundo regulamento do concurso, isso deveria ser atestado pela chefia imediata. Logo, se
não houvesse a concordância dos seus superiores hierárquicos, o trabalhador não
participaria do concurso.

A interpretação desse item era norteada pela comprovação do “esforço e boa


vontade do empregado em bem desempenhar suas funções”. Os avaliadores também
deveriam considerar situações excepcionais em que se atestaria a diligência em relação ao
trabalho como, por exemplo, “um princípio de incêndio em que o empregado tenha ajudado
a apagar, trabalho em horário extra durante prolongado período de tempo para resolver uma
emergência qualquer que atingiu a empresa, etc.” (SESI RS. Interpretação dos Requisitos
Exigidos dos Candidatos, 1974).. Ademais, ser devotado ao trabalho significava ter recebido
promoções, nunca ter sido repreendido ou punido, ser alvo de elogios, e, fundamentalmente,
ter “comportamento disciplinar”. Nesse caso, importavam mais os aspectos
comportamentais que a capacidade técnica.

O discurso sobre os objetivos da campanha estava relacionado à promoção do bem-


estar do trabalhador, tal como se percebe nos documentos analisados. Dessa forma, “a
Campanha Operário-Padrão tem[tinha] como objetivo maior valorizar o trabalhador e a
própria Empresa, aproximando o SESI aos meios empresarial, sindical, autoridades e
Entidades, visando ao bem-estar do trabalhador" (SESI-DN. Objetivos da Campanha
Operário Padrão, 1975).

Para além do que estava aparente, havia um discurso subjacente que desejava
promover a adequação do conjunto do operariado segundo padrões estabelecidos pelo
empresariado nacional: vida exemplar, apego às relações familiares (família de tipo
patriarcal), práticas religiosas cristãs, preferencialmente católicas e valorização do progresso
material obtido através do trabalho. A disciplina inerente ao concurso deveria, conforme
Gaudemar, “construir y dar continuidad a un determinado orden productivo, a un sistema de
autoridad, dominio y jerarquia aplicado a la producción” (MENDOZA, 1991: p. 19).

A coordenadora nacional da Campanha, Sra. Áurea Fialho, afirmava que o objetivo


do SESI, ao dirigir o evento, era “estimular os bons operários que pudessem servir de

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exemplo aos demais trabalhadores, pelo preenchimento de condições sócias e profissionais.


Premiar o aumento da produtividade, méritos e conduta exemplar. Consagrar o trabalho
anônimo dos que constroem a base do desenvolvimento do país” (FIALHO, 2009).
Certamente esse era um discurso disciplinador, mesmo porque a própria palavra “disciplina”
constava no regramento e demais documentos do concurso. Partindo dos conceitos
elaborados por Foucault, a disciplinarização, neste caso, deveria ocorrer identificando e
premiando o “bom exemplo”, e não punindo aqueles que não se enquadravam nos preceitos
estabelecidos.

Assim, também é preciso pensar de que forma a noção de tempo, fabril, maquínico,
disciplinado, relacionava-se com os objetivos da Campanha Operário Padrão. À primeira
vista, estabelece-se uma relação na valorização dos itens “assiduidade” e “pontualidade”
para o trabalhador participante. Como, num primeiro momento, a indicação do OP nas
empresas era realizada pelas chefias, a escolha do trabalhador estaria adequada a essas
normas.

O discurso da Campanha não era eliminar os “maus”, mas sim fazer com que, a
partir de um dado exemplo, também se conformassem a realidade que se pretendia.
Segundo Foucault, “a divisão segundo as classificações ou os graus tem um duplo papel:
marcar os desvios, hierarquizar as qualidades, as competências e as aptidões; mas também
castigar e recompensar. [...] A disciplina recompensa unicamente pelo jogo das promoções
que permitem hierarquias e lugares; pune rebaixando e degradando” (FOUCAULT, 1987: p.
151).

Seguir uma religião era um princípio do concurso. Preferencialmente, o trabalhador


deveria ser ativo na comunidade religiosa e isso era sobremaneira valorizado, como se
depreende da leitura dos currículos. A “vida comunitária” era entendida, basicamente, pelas
atividades de cunho religioso ou vinculadas a uma instituição religiosa, o que pode ser
verificado em documento que instruía sobre os requisitos exigidos pelo concurso, posto que
“o fato de o empregado fazer ou haver feito parte da diretoria de tais entidades [religiosas]
valorizará ainda mais sua atuação” (SESI RS. Interpretação dos requisitos exigidos dos
candidatos. Porto Alegre, 1974) . Até mesmo quando se pensou em revisar as diretrizes da
Campanha, não se discutiu sobre a exclusão ou relativização desse quesito. O
pertencimento a um grupo religioso, preferencialmente católico, tinha um caráter
moralizador, era um comprovante seguro que aquele trabalhador defendia ou era adepto de
valores morais condizentes com aqueles propalados pelo SESI. Ademais, a Igreja é um
importante instrumento de controle social, especialmente quando se pensa em seus setores
mais conservadores. Ser um fiel seguidor das concepções religiosas, durante os anos 60 e

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70 do século passado, também, podia significar indiferença ou aversão ao discurso


comunista, tão combatido nessa época.

A dedicação incondicional à família também era um requisito de grande valor para se


tornar um OP. Uma família geralmente numerosa, como era o caso desses trabalhadores,
constituía mais uma garantia moral. Determinada disciplina fabril toma de empréstimo
elementos familiares, especialmente relacionados à figura do pai. Na sua unidade familiar, o
operário padrão é o chefe, aquele que provê as condições materiais de existência da família.
Na empresa, “el patrón es esa figura social que administra, ‘como buen padre de familia’, un
patrimonio particular constituído por la fabrica pero también por todo aquello que hace
posible da vida de esa ‘familia’ al margen del trabajo” (GAUDEMAR, 1991: p. 76). Não se
prescindia da hierarquia que deveria existir na fábrica e nas relações sociais, defendida pelo
concurso e desvelada de uma forma humanizada.

Para o SESI, a participação do operário no concurso poderia lhe oportunizar algo


único na vida: “ser um trabalhador modelo, um padrão”. Para a entidade social, significava,
ao menos no discurso oficial, ir “ao encontro de seu grande objetivo: a paz social no Brasil”
(SESI – DN. Campanha Operário Padrão, 1982).

A atuação do SESI, além de promover a valorização da atuação do


trabalhador e de contribuir para seu bem-estar social (e de seus
dependentes), o que é óbvio e incontestado, também resulta em especiais
vantagens para as empresas empregadoras, embora de forma indireta, mas
nem por isso menos real e palpável (SESI – DN. Campanha Operário
Padrão, 1982).

Pode-se pensar que a Campanha Operário Padrão, sob a ótica dos mecanismos de
disciplinamento, atuava pedagogicamente sobre os trabalhadores, ao ensiná-los como agir,
dentro e fora da fábrica, a fim de alcançar sucesso, material e social. Assim, a partir do que
foi referido sobre a disciplina, ou poder disciplinar, segundo Foucault, é possível entender os
objetivos dos mecanismos que agem nesse sentido: extrair do corpo o máximo de suas
forças, produzindo ações e comportamentos de ajustamento, submetendo e sujeitando os
corpos, mas também indivíduos capazes e com aptidões determinadas (ARAÚJO, 2012: p.
31). De outra parte, também se compreende que o operário padrão representava um modelo
que atingiu relativa estabilidade material, mesmo porque não se tratava de um simples
operário, mas sim de trabalhadores que desempenhavam algum cargo de chefia. A
perspectiva de melhoria de vida ou padrão social podia ser o maior atrativo para os demais
trabalhadores. A mensagem revelada pelo concurso era a de que, se o trabalhador seguisse

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os preceitos morais e, principalmente, trabalhasse com dedicação e disciplina, poderia


melhorar seu nível de vida.

A COP e o contexto político


Se o concurso que premiava o trabalhador ideal iniciou em meados da década de
1950, foi a partir decênio seguinte e, mais ainda, nos anos de 1970 que teve um
funcionamento pleno e que abrangeu todo o território nacional. Weinstein (1995) indica, em
seu estudo sobre o SESI, que o contexto dos anos de 1960 e 70 tornou favorável o sucesso
da iniciativa. A paz social que se buscava pela integração e harmonia entre as classes
possuía mais sentido num governo ditatorial.

A participação do Estado na Campanha1 se estabelecia pelo envolvimento do


Ministério do Trabalho na fase de julgamento, tanto estadual (através das secretarias)
quanto nacional, pela presença do próprio Ministro. Esse órgão também outorgava uma
medalha (mérito ao trabalho) aos operários vencedores.

O presidente da República recebia os operários ao final de cada edição do concurso


e, com isso, reforçava a ideia de prestígio que se destinava ao exemplo do operariado
nacional, bem como reverenciava aquele trabalhador que estava alinhado à perspectiva de
harmonia entre as classes. Nessa cerimônia, também, estava presente o Ministro do
Trabalho. Segundo o ministro do trabalho, Arnaldo Prieto2, a campanha vinha “ao encontro
dos altos objetivos do governo do Presidente Ernesto Geisel que tem, no homem brasileiro,
a preocupação maior de todo o planejamento nacional” e acrescentava que a iniciativa
deveria servir de “estímulo e inspiração aos trabalhadores brasileiros”, pois, dessa forma,
estariam “consolidando a paz social que desfrutamos em nosso país” (O Globo, 4 de
setembro de 1975. Carta enviada pelo Ministro do Trabalho a Roberto Marinho.).

O presidente militar Emílio Médici participou da entrega do prêmio ao OP nacional


em 19733. Em seu discurso, conclamou a importância da iniciativa do SESI e do jornal O

1
Em 1976, o estado de São Paulo, por meio de decreto, estabeleceu apoio institucional e monetário
ao concurso. Em 1984 publicou novo decreto atualizando o valor do prêmio pago ao OP estadual.
ESTADO DE SÃO PAULO. Decreto 8.660, de 27 de setembro de 1976. Prevê o apoio da
Administração Estadual à “Campanha Operário Padrão” e institui prêmio referente ao certame. No
Rio Grande do Sul, a prefeitura municipal de São Leopoldo, cidade com maior número de operários
eleitos no concurso no estado outorgou títulos de cidadãos leopoldenses a dois operários padrão
daquele município. Como na época pesquisada a sede do Departamento Nacional do SESI se
localizava no Rio de Janeiro, fazia parte da programação do concurso em sua fase final a visita ao
governador daquele estado. O OP RS do ano de 1984, Sr. Antonio Luiz Rodrigues da Silva relatou
em entrevista concedida para esta pesquisa que “apertar a mão do governador Brizola foi a maior
emoção” de sua vida.
2
Arnaldo da Costa Prieto foi Ministro do Trabalho de maio de 1974 a março de 1979.
3
Além do presidente da República estavam presentes na solenidade o Ministro do Trabalho, o Chefe
do Gabinete Civil, Chefe do Gabinete Militar e o Chefe do SNI, o que pode denotar a importância que
o governo atribuía ao concurso. O GLOBO, novembro de 1973.

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Globo e ressaltou a existência da integração entre empregados e empregadores, discurso


que estava alinhado aos ideais dos empresários.

Sinto satisfação e orgulho e dou tanto valor a essa promoção que no ano
passado incluí o Operário Padrão na delegação brasileira que nos
representou na Conferência Internacional do Trabalho, em Genebra. Foi
uma representação brilhante com os melhores homens do trabalho do
Brasil, acrescida ainda do Operário Padrão, mostrando a perfeita integração
que existe hoje em nosso País entre empregados e empregadores. E é
exatamente essa perfeita integração que tem permitido que o Brasil cresça
nas proporções em que está crescendo (O Globo, novembro de 1973, grifo
nosso).

A integração entre as classes desejada pelo governo e pelos empresários era


perseguida exaltando o tipo de trabalhador aclamado pelo concurso, mas também
sufocando possíveis movimentos sindicais, minimizando a participação social dos operários.
Além disso, apesar do crescimento apresentado pelo “milagre econômico”, pouco desse
crescimento chegou de fato aos trabalhadores nacionais, pois conforme Matos esse foi um
período de “arrocho salarial e [de] superexploração da força de trabalho que, garantidos pelo
controle do governo sobre os sindicatos, elevavam em muito a lucratividade do capital”
(MATO, 2009: p. 109). Portanto, apesar do discurso de valorização do trabalhador nacional,
como o produtor de riqueza, não havia uma política econômica de fato voltada para a
melhoria de vida dessas pessoas.

A indústria nacional foi beneficiada pelas políticas econômicas da ditadura,


especialmente no período do “milagre”, mesmo que à custa de endividamento externo. No
âmbito do concurso, também se procurou exaltar o papel da indústria nacional. Em algumas
edições do concurso, particularmente nos anos de 1970, o candidato deveria responder, em
seu currículo qual, ao “papel da indústria no progresso nacional”, mesmo que não tenham
sido localizadas, nos currículos examinados, respostas a esse questionamento.

No início da década de 1980, ainda sob os auspícios de uma ditadura, presenciava-


se uma abertura política controlada pelo governo, desde o final da outra década, e o
ressurgimento do movimento sindical. Ainda assim, o Estado nacional continuou
participando e exaltando o concurso. Em 1981, o presidente João Figueiredo, ao receber os
OPs vencedores daquele ano, associou a seleção daqueles operários operada pelo SESI a
uma prática do exército4.

4
Gaudemar e, especialmente, Foucault indicaram a apropriação de modelos da disciplina militar para
eficácia da disciplina fabril, no início da “era da disciplina”.

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[...]devo ressaltar que a cerimônia de hoje se destaca porque me lembra,


muitas vezes, aquelas em que tomei parte no Exército, em que também era
obrigado a destacar, entre os meus soldados, aquele que por suas virtudes
morais e pela sua dedicação ao serviço e a instrução tinha servido de
exemplo para os seus companheiros (O Globo, 24 de novembro de 1981).

Os organizadores do concurso estavam atentos às transformações sociais que


vinham ocorrendo na política nacional, especialmente no que tangia à maior abertura, aos
movimentos sociais voltando à vida nacional e, em particular, ao movimento operário que
renascia com as greves do Grande ABC paulista. Isso parecia preocupar um pouco os
patrocinadores, porque o operário que se desejava não era aquele reivindicativo, então, era
necessário reafirmar os objetivos do concurso, por conseguinte, enfatizar valores como a
paz social, a manutenção da hierarquia, a disciplina e a participação operária ordeira.

Eu sei perfeitamente que agora nós tivemos, já nessa fase de “abertura”,


esses movimentos operários sindicais. Aí são reivindicações, digamos
materiais e imediatas, enquanto em nosso campo praticamente é de outro
tipo; quer dizer, o Operário-Padrão seria muito bem-vindo se ele estivesse
participando de algum conselho municipal em âmbito menos de
contribuição, com ideias à frente de todos, nos problemas do sindicato
(SESI-DN, Filosofia...).

Assim, ao mencionar o movimento reivindicativo protagonizado pelas entidades


sindicais, procurava desqualificá-las afirmando que estas possuíam um caráter apenas
material e imediatista. Ao passo que promovia a exaltação dos propósitos da Campanha,
que visavam a um bem maior.

[...] trata-se da exaltação do trabalho pelo trabalho, da glorificação do


trabalho, em que não há nenhuma vantagem imediata para o trabalhador
[...] a maior gratificação é o reconhecimento das virtudes do trabalhador e a
gratificação de representar o trabalhador [...] Nós estamos agora, depois de
quinze anos de Revolução, estamos empenhados num esforço muito
grande que se convencionou chamar de “abertura”. Este esforço,
evidentemente, é no sentido de procurar, para a nação brasileira, um
estatuto jurídico, ou um regime, um sistema, ou uma vida jurídica que
propicie o máximo de realização individual, e nisso se considera a pessoa
humana, dentro da ordem e da disciplina. Evidentemente, tivemos um
período de restrições e agora caminhamos para a chamada manifestação
(SESI-DN, Filosofia...).

Em 1985, a propaganda destinada à divulgação da Campanha, transmitida pela


Rede Globo e também veiculada em seu jornal, mencionava a necessidade de eleições
diretas para a escolha do OP. Como vimos na pesquisa, o OP de cada fábrica era indicado

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por setores hierárquicos mais altos da empresa e, depois disso, poderia haver eleição entre
os trabalhadores ou se aclamava o indicado pelas chefias. Com o advento de manifestações
sociais pela aprovação da Emenda Constitucional Dante de Oliveira, concentrada na
Campanha Diretas Já!, em 1983, tornava-se difícil para os meios de comunicação ou outras
instituições a continuidade do apoio antes dado ao regime ditatorial5. A COP mais uma vez
acabou por incorporar o que ocorria na sociedade como tentativa de se modernizar.

Ao findar o período da ditadura, o concurso não teve duração mais prolongada, pois
se questionava a validade desse tipo de iniciativa, inclusive no próprio âmbito empresarial.

Referências

ARAÚJO, Inês Lacerda. Vigiar e punir ou educar? Biblioteca do Professor: Foucault, São
Paulo, n. 3, p. 26-35, 2012.

COLBARI, Antonia L. Ética do Trabalho. A vida familiar na construção da identidade


profissional. 2. ed. São Paulo: Letras & Letras/FCAA/UFES, 1995.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 21. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.

______. Microfísica do Poder. 25. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2012.

GAUDEMAR, Jean-Paul. El orden y la producción. Nacimiento y formas de la disciplina de


fábrica. Madrid: Trotta, 1991.

MATOS, Marcelo Badaró. Trabalhadores e sindicatos no Brasil. São Paulo: Expressão


Popular, 2009.

MENDOZA, Carlos Alberto Castillo. Estudio introductorio. In: GAUDEMAR, Jean-Paul. El


orden y la producción. Nacimiento y formas de la disciplina de fábrica. Madrid: Trotta, 1991.

WEINSTEIN, Barbara. The model worker of the paulista industrialists: The “Operário Padrão”
Campaign. Radical History Review, Durham, NC, p. 92-123, Winter 1995.

______. (RE)Formação da Classe Trabalhadora no Brasil (1920-1964). São Paulo:


Cortez/CDAPH-IPHAN/Universidade São Francisco, 2000.

5
A própria Organizações Globo, em sua página institucional, menciona a necessidade que teve no
período de se adequar à nova realidade brasileira, ainda que, de acordo com o explicitado na página
“a pressão dos militares sobre a Rede Globo atingiu o seu ápice”, tomando “a forma de intimidação
pessoal”. Antes apoiadora e alvo de benefícios do regime, em seguida, adapta seu discurso por ser
repreensível a continuidade do apoio. MEMÓRIA GLOBO. Diretas Já. Disponível em:
<http://memoriaglobo.globo.com/erros/diretas-ja.htm>. Acesso em: 20 dez. 2013.

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Com-paixão: um estudo sobre a resistência feminina em Belo Horizonte na Ação


Popular entre 1964 e 1972

Débora Raiza Carolina Rocha SILVA


Pós-graduanda em História, historiografia e Culturas Políticas pela UFMG
raiza.rocha@hotmail.com

Percebe-se que, passados 50 anos do golpe civil-militar sucedido no Brasil em 1964,


pouco se viu sobre a participação das mulheres na luta contra o regime ditatorial, dando
lugar ao um intenso silenciamento das vozes femininas nesse período. Assim, acredita-se
que investigar a presença feminina nesse contexto político seja de extrema relevância, pois
insere a mulher como sujeito ativo e também protagonista da história de luta contra o
autoritarismo no país.

Diante disso, o presente estudo buscou compreender o processo de inserção e a


atuação das mulheres que militaram na organização de esquerda denominada Ação Popular
(AP) em Belo Horizonte, entre os anos de 1964 – ano do Golpe Militar – e 1972, ano de
desmantelamento da organização na capital mineira. Para este entendimento, utilizou-se
como fonte de pesquisa, entrevistas realizadas com três militantes da organização, a saber:
Gilse Maria Westin Cosenza, Delsy Gonçalves de Paula e Magda Maria Bello de Almeida
Neves e os documentos produzidos pela Polícia Política de Minas Gerais, o DOPS/MG.

Nas pesquisas feitas até o momento, não foram encontrados trabalhos que
tratassem da luta feminina especificamente em Minas Gerais, tampouco em Belo Horizonte.
A partir dessa averiguação, iniciou-se uma busca por fontes documentais – arquivos do
DOPS e entrevistas – que indicaram que a quantidade de mulheres na luta contra a ditadura
na capital mineira foi abundante, principalmente, na Ação Popular. Notou-se ainda, que
escolher a AP como meio de luta foi o resultado de múltiplas circunstâncias, vivências e
sentimentos, entre eles a paixão e a compaixão.

Ação Popular e a presença feminina

Os anos iniciais da década de 60 foram marcados pela efervescência das lutas


populares promovidas por sindicalistas, operários, marxistas, camponeses, profissionais
liberais e estudantes; que lutavam por reformas trabalhistas, por terra, pela reorganização
da educação, emancipação da economia, controle da inflação, melhoramento dos espaços
urbanos, mudanças nos sistemas judiciário, tributário e bancário. Dentre essas
reivindicações, eram solicitados ainda, que o PCB saísse da clandestinidade e que o voto
fosse permitido a toda população, inclusive aos analfabetos e oficiais subalternos das forças
armadas.

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Nesse ínterim desenvolvia-se a Ação Popular, que teve em sua base a ideologia
cristã humanitária. O histórico de formação da organização foi permeado por diversas
transformações e alterações de pensamento, estando intimamente ligado a três processos
de mudanças em diferentes instituições: Igreja Católica, Movimento Estudantil e Esquerda,
neste caso, o Partido Comunista (PC).

Conforme Lima e Arantes (1984, p.19-20) a AP formou-se em 1962, principalmente


no âmbito estudantil, por meio de integrantes da Juventude Universitária Católica (JUC), um
dos componentes da Ação Católica, que por sua vez, constituía-se em um grupo de leigos
da hierarquia da Igreja. Nesse momento a JUC aparecia cada vez mais como força política
organizada no ME, acompanhando mais ativamente os movimentos de massa, lutando
contra a tentativa de golpe das forças militares na tomada de posse de João Goulart,
mobilizando-se expressivamente em favor das reformas de base e posicionando-se contra o
capital estrangeiro.

Em Minas Gerais, a JUC se fortalecia nos Diretórios Acadêmicos (DA), Diretórios


Centrais de Estudantes (DCE), e por consequência, na União Nacional dos Estudantes
(UNE). Minas Gerais teve um dos grupos mais influentes organizados da JUC, composto
principalmente por alunos da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal
de Minas Gerais (Lima e Arantes, 1984, p. 28). Alguns documentos produzidos pela UNE
neste período, refletem a influência do pensamento jucista, que baseado nas ideias de
Mounier, buscava um “novo” socialismo, “mais humanitário”; como é o caso da Declaração
da Bahia, de 1961, e da Carta do Paraná, de 1962 (Arantes e Lima, 1984, p. 20-30; Ridenti,
2007, p. 237).

Para compreender porque os ideais da JUC conseguiram ser difundidos com tanta
amplitude na UNE, é necessário entender que o Partido Comunista Brasileiro (PCB), desde
1958, passava por reformulações políticas, consideradas reacionárias pelos mais radicais. O
pensamento dos estudantes não ia ao encontro do pensamento do PCB, que buscava o
reformismo e o distanciamento da radicalização. Este posicionamento fez com que o
“Partidão” perdesse expressividade, dando espaço para o amplo crescimento da JUC, e por
consequência, criando condições para a formação da AP. A organização crescia, entretanto,
cresciam também as contradições internas, e com a Igreja, que questionava a extrema
aproximação dos jucistas com ideais marxistas. Tais divergências culminaram no
surgimento da Ação Popular, conduzida pela ala mais esquerdista da JUC, que buscava
criar uma organização independente. Assim, os limites impostos pela Igreja Católica, a
expressividade do pensamento marxista humanista no Movimento Estudantil e a

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necessidade de se criar uma “Nova Esquerda”, propiciaram o surgimento da Ação Popular,


como alternativa política (Ciambarella, 2007, p. 105).

Principalmente entre os anos de 1962 e 1964, a história do Brasil foi marcada pela
busca por transformações estruturais, gerando uma grande efervescência dos movimentos
de massa, com caráter nacional-reformista, que reivindicavam a Reforma Agrária, melhores
condições de trabalho e aumento de salário, ampliação de vagas nas escolas e
universidades, principalmente através de sucessivas greves de trabalhadores rurais e
urbanos e de estudantes. Este era também o posicionamento de diversas mulheres
brasileiras e Gilse, Delsy e Magda partilhavam dessa ideia, pois nesse período, ambas já
realizavam trabalhos voltados para a justiça social, tanto nas favelas, quanto em fábricas e
escolas.

Observa-se que, as mulheres aqui estudadas, iniciaram sua militância antes do golpe
e atuavam principalmente na Juventude Estudantil Católica e na Juventude Universitária
Católica, em manifestações nas ruas, na conscientização trabalhista e política nas fábricas,
alfabetizando as favelas, e buscando reformas no âmbito cultural e educacional. Segundo
Gilse, é nesse período que inicia sua luta na JEC, em Belo Horizonte, cidade que a essa
época possuía somente três escolas de ensino secundário gratuito, o Instituto de Educação,
o Colégio de Aplicação e a Escola Estadual Central. Segundo Gilse: “Era o período de
Jango, um período onde estava efervescente a mobilização no Brasil. E os estudantes, a
UNE e a UBES, também puxavam uma luta pela reforma da educação, pelo direito a
educação”1.

Nota-se então, que no período pré-golpe de 64, as militâncias de esquerda tinham


como ponto central de seus discursos a luta em favor das Reformas de Base, e após o
golpe civil militar tomaram a resistência ao novo regime instaurado como foco principal.
Neste ínterim, a participação feminina também começou a trilhar um novo caminho,
inserindo-se na resistência ao militarismo, e também na luta pela liberdade e pela
emancipação da mulher.

A Ação Popular, assim como outras organizações de esquerda, participou


ativamente pelas Reformas de Base, e na luta contra a ditadura, mas, como diferencial,
contou com uma ampla presença de mulheres em seu interior. O sociólogo Marcelo Siqueira
Ridenti (1990) fez um levantamento, a partir da documentação do BNM (Brasil Nunca Mais),
identificando quantas mulheres foram processadas por terem ligação com movimentos

1
COSENZA. Entrevista concedida à autora em 29/08/2013.

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armados de esquerda, e apresenta através de dados estatísticos o percentual de militantes


presentes em cada organização. A partir do exposto por Ridenti, verificou-se que a AP foi
um dos organismos com maior número de mulheres processadas, 127, em âmbito nacional,
representando 27,0% do total de processados. Levando em conta o histórico da condição
feminina ao longo dos anos e a conjuntura do Brasil neste momento, nota-se que este é um
número considerável, e até extenso, para a época.

Nas fontes documentais do DOPS-MG, observa-se que participação feminina em


Belo Horizonte na AP, foi numerosamente significativa. Como exemplo, tem-se a pasta
0044, rolo 004, com uma relação de integrantes da AP, na qual se encontram relacionados
765 nomes, sendo que 230 são nomes de mulheres, representando 30,2% do total.

Verificou-se que tais escolhas se deram por caminhos diferentes, misturando acaso,
entusiasmo, amor, amizade, influências, ideologia política e religião. No caso de Gilse
Cosenza, um dos caminhos que a levou a optar pela AP, partiu de questões ideológicas e
da necessidade de atuação menos passiva e mais ativa. Gilse foi uma das primeiras
mulheres a dirigir um DCE na Universidade Católica de Minas Gerais (UCMG), hoje PUC-
Minas. Inicialmente atuava na Ação Católica (AC), especificamente na Juventude Estudantil
Católica (JEC), e depois na Juventude Universitária Católica (JUC). Posteriormente, no dia
primeiro de abril de 1964, dia do Golpe, fez sua escolha pela AP. Ela afirma que nesse
mesmo dia saiu da faculdade em direção a Praça Sete, no centro da capital, na intenção de
encontrar alguém que a orientasse sobre como agir a partir desse momento. Entretanto,
chegando ao local, encontrou apenas militares armados e estudantes perdidos. Em sua
narrativa diz:

[…] nesse dia eu cheguei a conclusão de que não bastava eu estar na Ação
Católica. Eu sabia que existia a Ação Popular, mas nunca tinha me
interessado em entrar para a Ação Popular. A Ação Católica, a JEC e a
JUC, estavam me bastando. Mas nesse dia eu falei: não, agora a história é
outra. Eu preciso estar organizada, em uma organização independente de
religião, que possa ajudar todos aqueles... e lutar contra a ditadura. Então
nesse dia eu procurei a Helena Paixão e falei: eu quero entrar hoje na Ação
Popular. (COSENZA. Entrevista concedida à autora em 29/08/2013)

No caso de Delsy, a luta pelos problemas sociais já fazia parte da sua vida. Após se
formar no ensino secundário, permaneceu na Ação Católica até ingressar na universidade,
em 1966. Durante este período, a mesma participou de passeatas, manifestações,
panfletagens, pichações durante a madrugada, e atuava como professora de jovens e
adultos em uma Escola Estadual, no bairro São Gabriel. Posteriormente, no final de 1966,
foi dar aulas no Colégio Municipal de Contagem, no bairro Eldorado. É neste momento que

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ingressa na AP, fundando, junto a alguns operários e militantes, uma célula da AP. Neste
sentido, nota-se que sua escolha veio pelo afeto, no sentido literal da palavra, aquilo que a
afetava. Segundo Delsy:

Eu estava na JEC. A JEC era Juventude Estudantil Católica, e cobria até o


Segundo Grau. Eu tinha fechado o Segundo Grau. Mas eu ainda estava
ligada com aquelas pessoas da Ação Católica. E aí, assim que eu fiz o
vestibular e que eu passei, eu tinha contato com essas pessoas, com todos
os meus amigos que estavam aqui. Cada um deles foi por um caminho
político. O meu caminho foi um caminho mais afetivo. Eu estava ligada com
a Ação Católica, as pessoas que estavam mais próximas de mim foram
direto para a Ação Popular e eu fui também para lá. Mas eu tinha uma base
política forte, eu queria transformar o mundo, eu queria fazer revolução. Era
um desejo fundo, fundo. E eu ia fazer isso onde? Com quem? Com os meus
amigos, com aquelas pessoas que eu gostava. Então, nesse sentido eu falo
que foi uma decisão afetiva.

[...] Eu tô te contando essa história pra você entender que eu num entrei na
AP primeiro para depois saber o que que eu ia fazer. Cê entendeu? Eu fui
fazendo as coisas que eu achava que devia fazer. Como eu estava com
uma dificuldade econômica muito grande, porque eu tava dando aula, o
Estado ficou oito meses, sem pagar, a minha situação assim de
sobrevivência era uma situação muito complicada. Então ele (um padre
amigo) me ofereceu no final de 66, pra eu poder trabalhar no colégio,
situado na Cidade Industrial, Colégio Municipal de Contagem, e eu comecei
a dar aula lá. E aí, quando eu comecei a dar aula lá, aí então eu encontrei
um pessoal da AP, que eram também meus amigos e nós nos reunimos. Aí
sim, aí eu comecei a me sentir dentro de uma organização. (DELSY.
Entrevista concedida à autora em 26/10/2013)

Magda Maria Bello de Almeida Neves nasceu no Rio de Janeiro e aos sete anos
mudou-se para Juiz de Fora, cidade em que concluiu seus estudos até a graduação.
Sempre estudando em colégios católicos e em contato com as atividades da Ação Católica,
se aproximou inicialmente a JEC em 1962. Influenciada pelos ideais progressistas de
justiça social dos religiosos dominicanos, começou a trabalhar principalmente na
arrecadação de alimentos e roupas para levar para as favelas da cidade. Em 1964
ingressou no curso de Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), e
como era de praxe, ingressou na JUC e assumiu o Diretório Acadêmico do seu curso. A
direção da entidade a aproximou da Ação Popular, que neste momento já estava atuante na
universidade. Mudou-se para Belo Horizonte em 1969, trabalhou como Assistente Social
durante um ano, e ingressou no Mestrado em Ciência Política na Universidade Federal de
Minas Gerais. Na capital mineira se encontrou com algumas amigas juiz-foranas militantes
da AP.

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Compreende-se por meio das falas das militantes e dos documentos, que existia
nelas um desejo profundo de transformação da realidade social brasileira, o que vai atraí-las
para essa organização, no entanto, o que se verifica, é que outros fatores contribuíram para
essa adesão: a religião, a base de formação da AP – Juventudes Católicas -, o curso
universitário, os ofícios e a ideologia apista.

Considerações finais

Quando se estuda sobre a memória do período militar brasileiro, identifica-se em


muitas obras, de forma sutil, uma história sobre a resistência masculina, em que são
citados, em alguns casos, somente a atuação dos homens que resistiram a esse regime.
Quando não há essa evidência, percebe-se uma história “assexuada”, em que não há
diferenciação entre homens e mulheres. Contudo, nota-se que a atuação feminina possui
especificidades que as diferenciam, necessitando que, em certos casos, se faça uma
“história do feminino”, uma “história de mulher”, uma “história de gênero”. É preciso não
generalizar, é preciso diferenciar e especificar as múltiplas visões possíveis. Para se
entender a história da atuação política da mulher, por exemplo, requer que seja observado o
histórico do papel feminino no âmbito público.

Ser mulher militante nos anos de 1960 demandava o rompimento com múltiplos
padrões, com a família, com sua feminilidade, com sua privacidade. Era preciso reivindicar
para os outros o fim da ditadura, e para si mesmo o direito de ser livre, de ser independente,
de ser considerada ser pensante e capaz de “fazer política”.

Os “anos dourados” ditavam que a mulher dessa época deveria simplesmente ser:
bonita! Essa propaganda de um creme facial, presente na Revista Capricho de 1958 mostra
isso:

“A beleza é obrigação. A mulher tem obrigação de ser bonita. Hoje em dia


só em feio quem quer. Essa é a verdade. Os cremes protetores para a pele
se aperfeiçoam dia a dia. Agora já temos o creme de alface “Brilhante” ultra
concentrado que se caracteriza por sua ação rápida para embranquecer,
afinar e refrescar a cútis. Depois de aplicar esse creme, observe como a
sua cútis ganha um ar de naturalidade encantador à vista. Experimente-o. É
um produto do Laboratório Alvim & Freitas.”

As mudanças culturais, econômicas e políticas ocorridas em fins dos anos de 1950 e


início dos anos de 1960, tais como a modernização das máquinas e o processo de
adaptação ao fim da II Guerra Mundial, trouxeram uma maior “domesticidade” da mulher,
que a essa época, deveria se restringir ao espaço privado. As propagandas de

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eletrodomésticos o lugar de donas-de-casa, mães, esposas, mantenedoras da ordem e do


casamento, sem poderes políticos e condicionadas a um comportamento passivo.

Em Minas Gerais, percebe-se, mais acentuadamente, que as ações femininas deste


período deveriam ser direcionadas ao cuidado da família. À mulher mineira do início da
década de 1960 era atribuído o papel de doméstica, responsável por manter a família como
cerne da sociedade, e reclusa ao privado, sem a possibilidade de contestar e ser inserida no
espaço público. Nesse momento, criou-se em Belo Horizonte a Liga da Mulher Democrata –
LIMDE, formada por mulheres belorizontinas, donas-de-casa, mães, avós e filhas, que
começam a se organizar com a finalidade de reforçar o tradicionalismo mineiro e combater o
comunismo. Segundo Janaína Cordeiro, a inquietação com o futuro das famílias e o medo
do comunismo sempre foi a principal preocupação das organizações femininas de direita,
que não pretendiam em nenhum momento assumir o espaço que era direcionado ao
homem2.

Esse medo com a aproximação do comunismo também estava relacionado ao


simbolismo de mudanças que ele poderia trazer, inclusive sobre o posicionamento da
mulher. Segundo Rodrigo Patto Sá Motta:

Outro golpe sério na família tradicional: os comunistas investiram contra a


hierarquia natural, questionando o poder paterno dentro do núcleo familiar e
o papel do homem na sociedade. Pretendiam “libertar a mulher” da sua
secular submissão e de sua tradicional função doméstica, estimulando-a a
igualar-se ao homem. Ao contrário, de manter-se como esteio do lar,
guardiã dos valores da família, a mulher deveria desvencilhar-se das
atividades domésticas e abraçar o trabalho profissional. (2002, p.70)

Embora esse pensamento permeasse o imaginário social nesse período, muitas


mulheres começaram a ingressar na universidade e a “transgredir” os padrões e modelos
“predestinados” a elas.

Durante a investigação, percebeu-se que Belo Horizonte foi campo de agitações que
modificaram o cenário político e cultural brasileiro, sendo berço, juntamente com outros
estados, do surgimento da Ação Popular, organização que militou ativamente contra a
ditadura. Viu-se ainda que a presença de mulheres que romperam com as “regras” de
gênero de sua época e com a ordem política e legal que estava em vigor, foi intensa nessa
organização, contribuindo na luta para o fim do estado ditatorial militar.

2
CORDEIRO, Janaina Martins. Femininas e formidáveis: o público e o privado na militância política da
Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE). Revista Gênero. v.8. p. 175-208, 2009.

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É importante ressaltar que nesse período, embora muitas mulheres já se


interessassem por escritoras feministas, tais como Simone de Beauvoir, Betty Friedan,
Germaine Greer, Heloneida Studart, entre outras, o feminismo e a luta pela “condição
feminina” só se inseriu nas mulheres brasileiras como foco principal, a partir de meados de
1970, principalmente após a Conferência Mundial sobre as Mulheres, feita na Cidade do
México, em 1975. Antes disso, a condição das mulheres foi sendo colocada em segundo
plano, no início dos anos de 1960, lutando antes de tudo pelas Reformas de Base e
posteriormente, com o golpe civil militar, a luta foi outra vez adiada, tendo que ser nesse
momento, contra a ditadura. Desse modo, muitas mulheres agiam em oposição ao aparato
repressor, em detrimento da luta por melhores condições e por igualdade. Gilse aponta que
lutava diariamente em contra o regime militar e pela valorização da mulher:

A luta contra a ditadura, a luta pelo socialismo, etc. e tal, não abarcava, não
pegava como programa a questão da mulher. Não tinha como programa,
vamos dizer. Era uma luta de todos, homens e mulheres, de pessoas, de
povo. Agora, a gente enfrentava, em qualquer, todos os nossos atos do dia-
a-dia, da vida privada, da vida pública, a gente enfrentava o fato de ser
mulher. E nós tínhamos de não só lutar com a família, como nós tínhamos
de lutar com a sociedade, com os valores da sociedade e tínhamos de lutar
entre os próprios companheiros homens, pra que eles nos respeitassem
como tendo tanta capacidade como eles, entende? Nas mínimas coisas.
Então nós fazíamos essa luta assim, junto. Mas pra fazer essa luta assim,
nós sabíamos que nós tínhamos que diante dos companheiros, ser capazes
de tratar, discutir, opinar, saber, e ser capaz de dirigir, é, a luta. Nós
tínhamos que saber muito mais do que eles pra conseguir ser aceita. Então
nós estudávamos MUITO, nós mulheres estudávamos mais do que os
companheiros. Eles não precisavam provar nada, nós precisávamos.

Por fim, considera-se que todo esse engajamento feminino, essa luta, e por
consequência, esse sofrimento, contribuíram para uma infinidade de mudanças. Duas delas
em especial constituíram-se como decisivas, o fim do governo ditatorial, levando em
consideração que suas ações resultaram pelo menos, na desestabilização do regime militar,
e para a emancipação feminina. No período em que agiam, talvez essas mulheres não
tivessem consciência de que suas práticas, suas vivências e seu comportamento,
contribuiriam para a liberdade feminina. Entende-se que suas atuações estabeleceram-se
como um momento de experiência de conquistar um novo lugar para atuar politicamente,
socialmente e culturalmente.

Referências

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O anticomunismo no A Imprensa: Igreja católica contra as Ligas Camponesas


(1962-1964)

Dmitri da Silva Bichara SOBREIRA


Mestrando em História na Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
dmitri_bichara@hotmail.com

Este trabalho busca discutir o anticomunismo na Paraíba através do jornal A Imprensa,


de responsabilidade da Cúria Metropolitana de João Pessoa, nos anos de 1962 a 1964. O
anticomunismo no Brasil se configura como o medo de que a ideologia comunista, através
de seus simpatizantes, chegue ao poder no país.
O anticomunismo na década de 1960 é fundamental para entender o golpe civil-militar
dado em 31 de março de 1964. Naquele ano, o então presidente João Goulart dava
margens para que os setores mais conservadores da sociedade acreditassem que estava
em execução um plano de tomada de poder pelos comunistas no país. Durante todo seu
governo, os grupos de esquerda tiveram liberdade para agir, criando organizações (ou
fortalecendo as já existentes) e realizando ações como greves, passeatas e comícios,
gerando uma perturbação na ordem social e política existente.
Em todo Brasil os grupos populares e de esquerda ganhavam notoriedade.
Trabalhadores sindicalizados, estudantes, políticos, membros da Igreja Católica, buscavam
mudanças nas estruturas sociais, políticas e econômicas do Brasil. No nordeste, grupos de
trabalhadores rurais ganhavam força política na luta por melhores condições no trabalho do
campo e por uma distribuição democrática das terras produtivas da região. As Ligas
Camponesas será o foco principal deste trabalho.
O impresso A Imprensa, teve papel fundamental para disseminação do anticomunismo,
visto suas publicações, que mesclavam o dia-a-dia da Igreja Católica com a pauta política
da época, a exemplo das reformas de Goulart e o comunismo ao redor do mundo. Além dos
vários textos em que analisava-se política a partir da doutrina cristã. A partir disso,
podemos enxergar o periódico não apenas como fonte histórica confirmadora, mas levantar
problemáticas a partir dele.

O anticomunismo contra as Ligas Camponesas em favor da paz agrária

Conta-se que o rei Alexandre certa vez prendeu um pirata e perguntou-lhe


com que direito vivia infestando os mares. “Com o mesmo direito,
respondeu o prisioneiro, com que V. M. vive devastando o mundo inteiro.
Mas porque faço isso num pequeno navio, sou chamado salteador; V. M.
porque o faz com armada e exército, é considerado imperador”. O dinasta
limitou-se a rir, sentindo-se desarmado para castigar o pirata, e o deixou em
paz. (BARRETO, A Imprensa, João Pessoa, 10 de junho de 1962, p. 1)

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É com essa analogia que o colunista descreve a situação agrária na Paraíba na década
de 1960. Os piratas seriam os proprietários de terra, “Todo o mundo vive com as vistas
sôbre êsses homens. Tôda a acusação de exploradores para eles.” (BARRETO, A
Imprensa, João Pessoa, 10 de junho de 1962, p. 1). E Alexandre, O Grande, representaria
os camponeses, trabalhadores rurais assalariados, que “Ninguém lhes aponta os males.
Ninguém se apercebe do que vivem praticando. O dinheiro lhes chega às mãos (Deus sabe
como), e não há quem diga que são exploradores.” (BARRETO, A Imprensa, João Pessoa,
10 de junho de 1962, p. 1).
Pode parecer sem nexo ilustrar nessa analogia o poderoso conquistador macedônico
representando os camponeses, que lutavam não só por um pequeno pedaço de terra para a
sobrevivência, mas por igualdade e justiça nas relações de trabalho no campo. Porém é
assim que o discurso anticomunista do jornal vai ser pautado. A força que os camponeses
estavam ganhando dentro do estado deixava os grupos latifundiários paraibanos em alerta,
mostrando-se necessária uma desconstrução da luta dos trabalhadores rurais em benefício
da manutenção da estrutura agrária excludente em que vivia nordeste. Assim, no meio da
luta agraria, colocava-se o grande latifundiário como vítima do camponês. Uma forma de
desvirtuar a interpretação do leitor que passou a ver o camponês como um inimigo que o
governo reformista de Goulart estava criando.
O problema agrário no estado é polarizado pelas Ligas Camponesas e pelos
proprietários de terras, mais especificamente no chamado Grupo da Várzea ou bloco
agroindustrial. Esse último era um grupo formado pelos latifundiários e usineiros da
chamada zona da várzea, ou zona da mata. Suas atividades econômicas estavam ligadas à
exportação de produtos como a cana-de-açúcar e seus derivados, abacaxi e à pecuária
extensiva. A principal zona de influência desse grupo eram os municípios de Sapé, Marí,
Mamanguape, Araçagi, Pilar, São Miguel de Taipu, Santa Rita, Cruz do Espírito Santo e
Caldas Brandão. Um grupo bastante fechado, no qual se utilizava de casamento entre
membros das famílias para manter o sistema de hereditariedade das terras.
Sobre a questão agrária na Paraíba, Cesar Benevides (1985) relata que na década de
1960 ocorreram uma série mudanças na estrutura agrária. Houve o início da mecanização
do trabalho rural e o aumento da quantidade de terras destinadas à prática da pecuária
extensiva. O camponês, que antes trabalhava no latifúndio para poder morar e usufruir de
um pequeno pedaço de terra, era, como relata o autor, substituído pelo trabalhador sazonal.
As relações entre trabalhador e empregado no campo não eram semelhantes às dos
centros urbanos, pois a legislação trabalhista não havia chegado ao âmbito rural. Antes do
surgimento das Ligas Camponesas, as discursões políticas não eram pautadas junto aos
trabalhadores rurais. A falta de conhecimento dos trabalhadores rurais era um fator que
contribuía para o atraso do campo em relação às cidades.

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O Grupo da Várzea, controlava a máquina administrativa do Estado em favor da


manutenção de uma ordem no campo que favorecesse seus interesses. A falta de
organização dos trabalhadores rurais dava margem ao controle dos camponeses pelos
latifundiários fazendo deles dependentes econômicos e controlados políticos. Esta
organização social no campo ficou conhecida como paz agrária. Era uma prática:

[...] garantida pelo jogo entre o Grupo da Várzea e o Estado populista,


fundamentava-se na exploração máxima do campesinato, na medida em
que a oligarquia tradicional mantinha o monopólio do estoque de terras
através do coronelismo, que representava a dominação de uma classe
sobre a outra. (BENEVIDES, 1985, p. 32)

A paz agrária englobava os dois principais partidos na Paraíba, o Partido Social


Democrático (PSD) e a União Democrática Nacional (UDN). As duas agremiações sempre
se entendiam quando era necessário manter a ordem vigente no campo, na chamada
“conciliação conservadora”. Porém, de pacifica, essa organização rural não tinha nada. Todo
o aparato repressivo do Estado era utilizado para assegurar ao latifundiário o controle da
terra e a subordinação do camponês. Indivíduos comprometidos com a manutenção da
ordem pública estavam a serviço dos principais grupos oligárquicos da agroindústria. O
camponês se encontrava em uma situação de completo desamparo social por parte do
governo, que ainda agia contra sua integridade física sempre que era considerado
necessário.
Devido essa situação de marginalidade social do trabalhador rural, grupos de
camponeses se organizaram nas Ligas Camponesas1. A tomada de consciência de classe
pelos trabalhadores rurais trouxe para o debate não só as relações de trabalho no mundo
rural, mas toda uma estrutura agrária elitista.
A luta do camponês tomou grande repercussão no meio urbano. Suas reinvindicações
foram incorporadas por estudantes, jornalistas, membros da igreja, trabalhadores sindicais,
profissionais autônomos (advogados, por exemplo) e seguimentos da classe política
(principalmente os membros do extinto PCB). Não só as lutas camponesas foram
incorporadas pelos seguimentos urbanos, as barbaridades cometidas contra os
camponeses, como os assassinatos, também foram motivos de protestos pelos segmentos
engajados nas lutas agrárias.
Toda essa movimentação surgida a partir das Ligas fez com que o Grupo da Várzea
entrasse em estado de alerta. O governador, que estava politicamente localizado entre os

1
As primeiras Ligas Camponesas foram organizadas pelo Partido Comunista Brasileiro em 1947, mas
foram desativadas devido o partido ter sido colocado na ilegalidade. Mais tarde, no final da
década de 1950, as organizações camponesas voltam em Pernambuco, no Engenho da Galiléia,
tomando grandes proporções por todo o nordeste.

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trabalhadores organizados e os grandes latifundiários (UDN)2, precisou se decidir por um


lado, optando pelos conservadores. Isso resultou numa intensificação do aparato repressivo
contra os camponeses.
Mas a violência sobre o camponês não era só física. Muito se falava a respeito da
situação do campo. A imprensa passou a difundir ideias contra os camponeses,
desqualificando a causa agrária como “agitadora” e “baderneira”. O fato dos camponeses
reivindicarem uma nova organização da estrutura agrária, alicerçados pela proposta de
Reforma Social do presidente João Goulart, levou os conservadores, inclusive à alta cúpula
da Igreja Católica, a acreditarem que as Ligas Camponesas eram um dos meios de
infiltração de ideologia subversiva no Brasil, visando uma Revolução Comunista, ou mesmo
porque elas eram uma forma de derrubar a paz agrária.
A desconstrução da luta do camponês começa pela reforma agrária. Ela não era
condenada por completo pela Igreja Católica. Só a partir do momento em que ela se vincula
à ameaça externa comunista o jornal passa a criticá-la. O periódico demonstra em alguns
pontos ser bastante simpático às causas trabalhistas camponesas, apenas criticando o
modo como eles estão agindo.
A Igreja tinha uma ligação com o problema no campo, apoia e mostra meios para a sua
organização. Ela tem apreço pela reinvindicação do trabalhador rural quanto às melhorias
de salário e das condições de trabalho em geral. O grande problema da questão agrária é
quando os camponeses vão reivindicar mudanças através de modos classificados como
“violentos”. A solução cristã que a Igreja propõe (que ela chama de “reforma agrária”) não
pode dar margem a atitudes como a invasão das terras dos latifundiários, que, segundo
eles, é uma ação de violência e desrespeito à ordem pública, que é inspirada nas ações de
violência que instalaram o comunismo em Cuba (A Imprensa, 18 de fevereiro de 1962, p. 2).

A reforma agrária verdadeira seria aquela que modificasse a mentalidade


retrograda de alguns proprietários. E que lhes desse senso de justiça
fundamentado na caridade cristã. Por aí chegaríamos às metas da reforma
satisfatória para as duas classes. (BARRETO, A Imprensa, 2 de junho de
1963, p. 1)

Ou seja, para os católicos, toda a reivindicação camponesa deve ser feita desde que
não modifique a estrutura agrária vigente, que é excludente, elitista e violenta, mas altere o
comportamento e o pensamento do proprietário. Quando as lutas dos trabalhadores do
campo são pautadas para o fim do latifúndio, elas perdem toda a sua legitimidade. As Ligas

2
De acordo com Cittadino (1998), Pedro Gondim foi eleito com o apoio popular que conquistou com o
movimento “queremista” e com o apoio financeiro e político de sua campanha pelos políticos da
UDN

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Camponesas são contra o latifúndio, portanto, o problema não são os trabalhadores rurais,
sim as Ligas, formadas pelos agentes comunistas infiltrados.
Mas o que neste trabalho classifico como um sistema excludente, elitista e violento, o
jornal entende como ordem. As invasões de propriedades na luta pela democratização da
terra, propostas que são direcionadas ao benefício da sociedade como um todo, são
consideradas apenas agitação e desordem:

Já estamos fardos dessas incursões das ligas camponesas, pelas


propriedades alheias. O ideal que o agitador Julião prega, não é de reforma
pacífica. Nada de reinvindicações de direitos por meios legais, como devem
ser as nossas vitórias democráticas. O que o preocupa, em todos os
momentos, são os expedientes violentos. A confusão de quem espera tirar
algum proveito aos seus planos eleitoreiros. Eis o que é o programa das
ligas camponesas no nosso Estado e nos Estados vizinhos. (BARRETO, A
Imprensa, 14 de janeiro de 1962, p. 1)

Julião, ao qual o autor se refere é Francisco Julião, político pernambucano líder das
Ligas Camponesas. Ele é colocado como o personagem que mais incentiva a desordem das
Ligas Camponesas, pregador a ideologia comunista. Para o jornal, “Quer Deus para si e o
diabo para os outros” (A denúncia... 15 de abril de 1962, p. 8), pois defende a divisão das
terras, mas é dono de uma vasta propriedade rural. O interesse de Julião é fazer da classe
camponesa massa de manobra para suas pretensões comunistas.

Que confiança nos pode merecer a massa numerosa, guiada pela bandeira
de um Julião? Certamente ele não falará nessas comemorações de 1º de
maio. Aqui ou ali estará presente, não para mostrar as possibilidades do
nosso progresso, com o trabalho dos operários; mas para pregar as suas
ideias revolucionárias, de agitador maníaco e desorientado para que os que
dele se querem aproveitar. E para dizer que o caminho da salvação
nacional é o da escravização soviética, sob as leis draconianas, ora em
vigor na infeliz república cubana. (MENDONÇA, A Imprensa, 29 abr 1962, p.
1)

Os expedientes violentos, que o jornal aponta, não são via de mão única. A luta do
camponês através das Ligas é uma forma de resistir à violência empregada pelos grupos
latifundiários. Quanto a essas práticas contra o trabalhador rural eu destaco duas ocorridas
na Paraíba. A primeira ocorreu em 1962, foi o assassinato do líder camponês João Pedro
Teixeira, em uma emboscada da estada de Café do Vento, que liga os municípios de Sapé a
João Pessoa. O ocorrido gerou grande revolta dos setores de esquerda que passaram a
protestar contra o ocorrido. Em resposta aos manifestantes, o jornal publica o seguinte
depoimento:

Infelizmente esqueceram um ponto essencial, em suas acusações. Quando


condenaram fortemente (e o fizeram muito bem), o sacrifício de uma vida,

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pelo fato de discrepância ideológica, deixaram de se recordar os fatos mais


horripilantes, da mesma natureza, praticados recentemente, pelo barbado
de Cuba. Lá o monstro pode matar, porque certamente para esses seus
admiradores e partidários meridionais, predomina a mesma convenção dos
antigos batavos, que infestavam as nossas terras: para lá da linha
equinocial não existe crime!... O paredon de Fidel Castro é apenas o
patíbulo da legalidade, para perder a quantos se tenham recusado a ser
“patriotas”... (Clerofobia... 8 de abril de 1962, p. 1)

O jornal tenta desqualificar o protesto dos grupos populares de esquerda, como


trabalhadores sindicalizados, jornalistas, estudantes, políticos e artistas justificando um
crime com uma situação que ocorrera em outro país. A linha antiviolência seguida pela
imprensa católica perde sua sustentação com uma declaração em que, a morte de João
Pedro Teixeira não é nada perto do que acontece no “paredon” de Fidel Castro.
Junto com o aumento da repressão do Estado aos camponeses, o jornal reforça sua
linha editorial favorável aos grupos latifundiários. Ela procura criar uma afinidade política
dentro da classe trabalhadora do campo com o grupo agroindustrial. Criando uma
separação de ideias entre o camponês comum e as Ligas Camponesas.
J. Barreto conta em uma de suas colunas, sobre um depoimento que escutou de um
agricultor da cidade de Guarabira sobre um latifundiário da cidade.

[...] colhi as mais interessantes revelações, da franqueza bem característica


do nosso matuto. Falou ele sobre o dr. Abdon Miranda, respeitável senhor
rural do município de Guarabira. Um cidadão bom e muito compreensivo,
ante as necessidades do pobre. Suas terras sempre estão prontas para os
que desejam trabalhar. Não há restrições para pessoa alguma. Se mais
tivesse mais serviria. Não explora a necessidade de quem quer que seja.
Cobra o arrendamento de conformidade com a produção do ano. Se o
matuto nada fez, essa situação ingrata é levada em conta – cristãmente –
podemos dizer por aquele cidadão de alma larga e sentimentos profundos
de humanidade. (BARRETO, A Imprensa, 5 de agosto de 1962, p. 1)

É enaltecido o espirito de caridade cristã que deve prevalecer nas relações trabalhistas e
políticas. Aquilo que o “matuto” vê como bondade, uma análise mais afastada daquela
relação entre o trabalhador-patrão, é entendida como exploração.
O discurso católico prega o clima de paz entre os indivíduos no campo. Muitos
problemas precisam ser resolvidos na relação entre trabalhador e empregado no meio rural,
mas sem dar margem aos agentes do comunismo, devendo ser vistos de cima para baixo. A
classe dominante tem de reavaliar suas atitudes e reformular sua relação com a classe
trabalhadora. O clima de agitação que os comunistas provocam não vai levar às verdadeiras
mudanças que o campo precisa. Para o jornal, os comunistas não desejam a reforma
agrária:

O que lhes interessa é a confusão. Que o país continue nessa insatisfação,


com as classes agitadas, vivendo a convicção amarga de interesses

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prejudicados. Porque só há proveito para os planos marxistas com a luta de


classes. Num clima de tranquilidade, o comunismo está morto. Sem
qualquer motivo a que se possa pegar, para os avanços premeditados. (O
que eles... A Imprensa, 16 de junho de 1963, p. 3)

A paz agrária, neste momento (1963) já está estava em crise. A atuação das Ligas
Camponesas colocava toda a classe conservadora em estado de alerta. A elite nacional já
começava a flertar com aqueles que sempre que necessário mostravam-se dispostos a frear
o avanço dos progressistas que pautavam mudanças sociais no Brasil: os militares.
Chegado o ano de 1964 na Paraíba, o segundo caso de violência aqui destacado, uma
tragédia ocorrida na cidade de Marí, na zona da mata paraibana, colocou novamente a
violência no campo em discussão. O episódio que ficou conhecido como “chacina de Marí”,
ocorreu no dia 15 de janeiro envolvendo camponeses e jagunços, quando os primeiros
teriam invadido uma propriedade dos Ribeiro Coutinho, importante grupo usineiro do Estado.
Cesar Benevides (1985; 120) narra o ocorrido, mostrando que aqueles camponeses não
haviam invadido a propriedade dos Ribeiro Coutinho, eles estavam fazendo um trabalho na
propriedade do senhor Nezinho de Paula, na estrada que liga Marí à cidade de Guarabira,
quando um grupo invadira a propriedade agindo com agressão contra os camponeses. Entre
as pessoas envolvidas na invasão estavam o chefe de uma companhia agroindustrial de
Sapé e membros da polícia militar do Estado.
Do conflito resultou uma série de mortes que abalou o estado, em sua maioria homens
ligados aos grandes proprietários rurais. Seguindo a linha dos principais jornais, o A
Imprensa, condenou o ocorrido, jogando a culpa da tragédia para o camponês, além de
aproveitar o incidente para renovar o discurso anticomunista no meio rural.

Não sei se estão olhando para essa vanguarda vermelha que se levanta
organizada pelos campos. Trata-se dessa nova forma de organização
comunista segundo o plano geral que deu bons resultados na China. O
plano de aproveitar toda a gente disposta a um movimento de renovação,
para sublevar as massas, em direitura ao ponto final, onde seja possível os
sobas da russificação assumirem as rédeas do governo. É isso mesmo, sem
tirar nem botar, o que estamos vendo nesse movimento de ligas
camponesas.
Reparemos bem na organização que se forma, aqui ou acolá. Os
comunistas de primeira linha – de real confiança para o partido, ou de
gabarito, como se diz – não aparecem. Ficam de fora, na direção geral,
tangendo as massas para ganharem terreno.
Não vamos pensar que Julião ou outros agitadores desse estofo tenham
prestígio para o partido comunista. São apenas elementos de choque que
prestam bons serviços para a causa da russificação, mas sem nenhum
compromisso dos mandões soviéticos para serem aproveitados, depois de
preparado o banquete. É o contrário do que podemos dizer. Serão os
primeiros sacrificados. Irão para a depuração, na certa.
Consideramos esse trabalho das ligas a serem formadas no interior. Nem
um elemento do partido comunista propriamente dito se acha filiado ao
quadro dos novos componentes. Fazem tudo – esses inspiradores
vermelhos – mas nada de figurarem no fim. Isto quer dizer que os nossos

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pobres rurícolas são entregues à sua própria sorte, para todas as


eventualidades da causa que abraçaram. Serão apenas tropas de
ocupação, mas o resultado do fim ficará pra os comandantes colocados na
retaguarda bem distante do fogo.
Não estranhemos isto, porque se trata do novo plano do comunismo, no
mundo. A exemplo do que se passou na China e em Cuba. Trabalho de
sapa muito bem pensado e organizado. Com o uso dos elementos mais
fáceis de ludibriar, que são os camponeses ingênuos ou a estudantada
inexperiente. O nosso Exército – estamos certos – está bem a par deste
expediente de comunização na América Latina. O grande movimento
dirigido pela sagacidade da rapôsa mestra do Kremlin. (BARRETO, A
Imprensa, 26 de janeiro de 1964)

Diante do ocorrido em Marí, dois pontos importantes sobre o texto do autor é passível de
debate. O primeiro é como é colocada a ideia de manipulação dos camponeses por parte
dos supostos “agentes comunistas” através das Ligas Camponesas. O colunista aparenta
não ter noção da consciência de classe que o trabalhador rural tomou nos últimos anos. A
classe camponesa mais uma vez é vista como massa de manobra de alguma força superior,
a dos agentes comunistas, que quer desvirtuar sua luta. E o segundo ponto vem para
reforçar um fato que já era pauta no periódico católico: a necessidade da presença dos
militares para resolver a crise no país.
O ocorrido em Marí repercutiu por meses nos meios de comunicação do Estado. No final
do mês de março o governador Pedro Gondim reforçou o aparato policial na Zona da Mata,
área de grande conflito entre camponeses e jagunços, no intuito de intimidar a atuação das
Ligas. J. Barreto, que se tornou o porta-voz oficial do anticomunismo do A Imprensa, vai
novamente defender a estrutura agrária em favor dos latifundiários, acusando de comunistas
aqueles que subvertem essa ordem:

Diante da gravidade da situação, o governo do Estado tinha de fazer que


lhe ditava a sua consciencia de principal responsável pela ordem pública.
Urgia o cumprimento de um dever sagrado, depois de uma extremada
tolerância que infelizmente resultou em prejuízo do povo. Das partes
letigantes.
De outra maneira seria a caminhada apressada para a anarquia – clima
apetecido pelos agentes comunizantes, que não estão reparando nos meios
a serem usados, para chegarem ao fim de seus planos. Quanto mais
confusão, tanto melhor para eles. A Paraíba – no plano geral, de
sovietização nacional – seria a cabeça da ponte, para a arrancada final por
todo o país. (BARRETO, A Imprensa, 22 de março de 1964).

Com o golpe civil-militar de março de 1964 os membros da Igreja foram comemorar a


tão aguardada intervenção militar que colocaria ordem no Brasil. Nos arquivos da Cúria
Metropolitana não constam exemplares do jornal católico pós-golpe, porém é sabido que na
Paraíba houve as Marcha da Família com Deus pela Liberdade que agregavam todos
aqueles que temiam pelos rumos que o país tomaria com Jango e os comunistas. E restou

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aos camponeses a desarticulação política e a submissão às práticas oligárquicas oriundas


da república velha que existem até hoje.

Considerações finais

Diante de tudo o que foi mostrado e discutido neste texto, podemos perceber alguns
pontos fundamentais no problema agrário paraibano. A alienação do homem do campo é
fundamental para a manutenção da ordem. O clientelismo que sustenta o poder de grupos
da elite local, com as reinvindicações das Ligas Camponesas tende a enfraquecer. A
consciência de classe que se criou no meio camponês é, sem dúvida, favorável para
aqueles que lutam contra a estrutura agrária paraibana. O comunismo e seus supostos
“agentes” tinham o interesse na organização camponesa, mas isso não anula o fato dos
camponeses se colocarem na luta por interesses próprios, não por mera alienação.
A questão do campo foi um dos principais alvos da cassação de políticos paraibanos no
pós-golpe. A importância que os militares deram às Ligas e aqueles que se envolveram com
suas atividades é grande quando analisamos outras fontes como os Inquéritos Policiais
Militares. A luta dos movimentos sociais do campo não era incorporada apenas por
trabalhadores rurais, uma série de profissionais estavam vinculados diretamente às Ligas,
como advogados, professores e funcionários públicos. Esses foram desvinculados de seus
cargos públicos, tiveram seus direitos políticos cassados e foram presos ou exilados do
país.
E no pós-golpe para onde foi o camponês comum? A tão sonhada reforma de
mentalidade do senhor latifundiário mudou? O camponês continuou à margem das mesmas
práticas eleitoreiras, subjugados às práticas de trabalho que vigoravam no século XIX e
vigoram até os dias de hoje.
Diante do exposto, a Igreja Católica, mesmo com o crescimento de grupos progressista
no interior da instituição, serviu como porta-voz dos interesses daqueles que mantinham a
ordem política excludente no nordeste. Ela utilizou-se de um discurso contra a violência para
reforçar o poder daqueles que empregam uma violência não só física e psicológica, mas
conjuntural no meio agrário paraibano. E, por consequência, agregou força no movimento
civil-militar que pôs fim à mais um período democrático brasileiro.

Referências
1) Hemerográficas

A denúncia do tartufo. A Imprensa. João Pessoa, 15 abr 1962, p. 8.

BARRETO, J. Nota do dia. A Imprensa. João Pessoa, 14 jan 1962, p. 1.

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169 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014

BARRETO, J. Nota do dia. A Imprensa. João Pessoa, 10 jun 1962, p. 1.

BARRETO, J. Nota do dia. A Imprensa. João Pessoa, 05 ago 1962, p. 1.

BARRETO, J. Nota do dia. A Imprensa. João Pessoa, 02 jul 1963, p. 1.

BARRETO, J. Nota do dia. A Imprensa. João Pessoa, 26 jan 1964, p. 1

BARRETO, J. Nota do dia. A Imprensa. João Pessoa, 22 mar 1964, p. 1.

Clerofobia vermelha. A Imprensa. 8 abr 1962, p. 1.

O que eles querem. A Imprensa. João Pessoa, 16 jun 1963, p. 3.

MENDONÇA, I. Nota da cidade. A Imprensa. João Pessoa, 29 abr 1962, p. 1.

2) Bibliográficas

BENEVIDES, Cesar. Camponeses em marcha. Brasil: Paz e terra, 1985.

BERNSTEIN, Serge. “A Cultura Política”. In: Jean-Pierre Rioux e Jean-François Sirinelli.


Para uma História Cultural. Lisboa : Editorial Estampa, 1998.

CITTADINO, Monique. Populismo e Golpe de Estado na Paraíba (1945-1964). João


Pessoa: Editora Universitária/Ideia, 1998.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o perigo vermelho. São Paulo: Perspectiva,
2002.

_________. Desafios e possibilidades na apropriação de cultura política pela historiografia.


In: MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Org). Culturas Políticas na História: Novos Estudos, Belo
Horizonte: Argumentum, 2009.

RÉMOND, René. Uma história presente. In: RÉMOND, René. (Org.). Por uma História
Política, Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, 1996a

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“Sempre fui mais de esquerda”: memória e história de uma arenista gaúcha

Eduardo dos Santos CHAVES


Doutorando em História pelo PPGH-UFRGS
educhaves4@hotrmail.com

Introdução

Após o golpe de 1964 e a instauração da ditadura civil-militar, parte significativa de


políticos, militares, intelectuais, sindicalistas e estudantes sofreram com as mais diversas
perseguições políticas implementadas pelos governos dos generais presidentes. Os
resultados da repressão do novo regime foram as cassações de mandatos, as prisões, a
tortura e o exílio, afinal a ditadura deixava claro: "Brasil, ame-o ou deixe-o".

No entanto, nem todos brasileiros estavam situados na resistência ao regime,


contrários às arbitrariedades e à violência imposta pela ditadura. Tanto no golpe quanto na
posterior ditadura havia uma gama de grupos e indivíduos envolvidos com diversas práticas
que o novo regime inaugurava. Muitos estiveram desde 1961 ligados a organizações
femininas, partidos políticos, entidades católicas, instituições empresariais, etc., que
colaboraram de diversas formas com a desestabilização do governo de João Goulart (1961-
1964). Assim, durante a ditadura muitos ainda estiveram comprometidos em apoiar e
trabalhar na legitimidade do novo governo seja através da propaganda ou mesmo de
manifestações públicas que reverenciavam a intervenção de março de 1964.

Contudo, a partir do final dos anos 1970, sobretudo após a Lei de Anistia de 1979,
com o processo de abertura política no país e o retorno de muitos daqueles que haviam sido
exilados, a narrativa sobre o regime ganhava novos contornos. A ditadura que outrora era
sinônimo de prosperidade e segurança, após 1979 foi sendo vista como sinônimo de
repressão e violência sobre uma sociedade que apenas resistia. Era uma memória que
sublinhava as arbitrariedades dos militares que, desde 1964, esmagaram a sociedade
brasileira como uma espécie de "trator".

De acordo com o historiador Daniel Aarão Reis Filho (2010, p. 171) o que
aconteceu foram verdadeiros “deslocamentos de sentidos”, os quais se fixaram na memória
nacional como verdades irrefutáveis. Seriam, esses deslocamentos, marcados por três
silêncios que fundamentaram e se estabeleceram em torno da Lei de Anistia de 1979. O
primeiro diz respeito ao silêncio em torno da tortura e dos torturadores. O segundo silêncio
refere-se às propostas revolucionárias das esquerdas entre 1966 e 1973. O terceiro e último
silêncio, talvez o mais importante para a discussão que pretendo neste texto, refere-se ao
apoio de parcela importante da sociedade brasileira ao regime civil-militar. O que ficou
cristalizado é que a sociedade brasileira, sempre prezando pela democracia, viveu a

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ditadura como um “pesadelo que é preciso exorcizar, ou seja, a sociedade não tem, e nunca
teve, nada a ver com a ditadura” (2010, p. 178). Tal abordagem esquece as diversas
manifestações de adesão e simpatia que floresceram durante o regime, como as Marchas
da Família com Deus pela Liberdade, ocorridas antes e após o 31 de março de 1964, a
popularidade do general Garrastazu Médici e as expressivas votações obtidas pela Aliança
Renovadora Nacional (ARENA).

No entanto, os apoios, como afirma Reis Filho (2010, p. 174), desmancharam-se no


ar naquele verão quente de 1979, sendo propagado pela sociedade o termo “Ditadura
Militar”, na tentativa de absolver-se de quaisquer cumplicidades com um regime considerado
abominável. São incômodas lembranças “[...] frequentemente colocadas entre parênteses, à
espera, para que possam ser analisadas [...]” (REIS FILHO, 2010, p. 174).

Esse triplo silêncio, ao viabilizar a anistia como um pacto de sociedade, solidificou


uma memória em que o regime e a sociedade não aparecem como cúmplices, mas como
inimigos de longa data. A ditadura, assim, ficou sendo vista como obra única e exclusiva de
uns poucos militares exaltados, os chamados “bolsões sinceros, mas radicais” que, após
assombrosa história, foi derrotada pelo povo.

Mas como explicar essas metamorfoses, esses deslocamentos de memória? Como


ficaram, após o final do regime, aqueles políticos que militaram na Aliança Renovadora
Nacional, ARENA, ao lado dos "gorilas", expressão que a esquerda utilizava para denominar
os militares? Como reconstruíram suas memórias como arenistas? Por que e como
silenciam sobre as cumplicidades com a ditadura?

A ARENA gaúcha

A ARENA embora tenha sido um partido que colaborava com a ditadura, dando
sustentação e legitimidade a vários atos dos governos dos cinco generais-presidentes, sua
trajetória não deve ser resumida a de um partido que servia aos interesses do regime. Pelo
contrário, é importante pensar, antes de tudo, que na ARENA ocorreram disputas e
discordâncias em relação a diversas medidas adotadas pelo governo federal, além de
cisões e discussões acaloradas que permearam os partidos nas esferas estaduais e
municipais, como é caso da ARENA gaúcha.

Após a decretação do AI-2, haviam especulações, espalhadas pela imprensa, sobre


a possibilidade de formar até três partidos: um que apoiasse a “Revolução de março de
1964”, um segundo de oposição e um terceiro, que congregaria políticos considerados de

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“centro”. A nova legislação impedia grandes possibilidades de arranjos partidários. Além


disso, para se somar a essa situação de desarticulação partidária foi decretado em 20 de
novembro de 1965 o Ato Complementar nº4 (AC-4), determinando que as novas
organizações partidárias deveriam possuir no mínimo 120 deputados federais e 20
senadores. Nesse sentido, só seria possível a criação de três partidos políticos, visto que o
Congresso comportava naquele contexto 409 deputados e 66 senadores.

Diante das novas regras estabelecidas, um grupo se organizou e aglutinou em um


único partido políticos que fariam a defesa do regime estabelecido, o que repercutia na
articulação e, posterior criação, de apenas mais uma agremiação partidária. Com
dificuldades de recrutar o número mínimo de membros, sobretudo de senadores, foi criado o
Movimento Democrático Brasileiro (MDB), em 4 de dezembro de 1965. Já a ARENA não
enfrentou problemas para atingir o número mínimo de membros, porém encontrou grandes
dificuldades na sua organização, em função de aglutinar diversas correntes políticas, que
tinham praticamente como único objetivo à defesa da ditadura.

No Rio Grande do Sul a ARENA congregou os membros da Ação Democrática


Popular (ADP), um bloco partidário criado antes das eleições estaduais de 1962 que reunia
PSD, PL, PDC, PRP e UDN. Este grupo de partidos além de eleger Ildo Meneghetti ao
governo do Estado no pleito de 1962, também colaborou nas eleições municipais de 1963,
elegendo prefeitos e vereadores em diversas cidades do Rio Grande do Sul. Tal
constatação nos leva a pensar que o surgimento ADP, nas vésperas das eleições estaduais
de 1962, facilitou, de certa forma, os contatos entre os membros de partidos políticos
diversos na organização da ARENA gaúcha. No entanto, essas mesmas tratativas não
minimizaram as disputas envolvendo os nomes que deveriam compor as Comissões
Diretoras Municipais, bem como os órgãos das esferas estaduais e federais. Para isso, o
meio encontrado pelo governo para apaziguar essas disputas foi a formação de
sublegendas, que possibilitava que diferentes grupos, agora atuantes no mesmo partido,
concorressem ao mesmo cargo nas disputas eleitorais.

Entre o final dos anos 60 e início dos anos 70 a ARENA demonstrava ser um
partido de peso no cenário político do Rio Grande do Sul. Em Porto Alegre, por exemplo,
com nove vereadores eleitos em 1972, a ARENA figurava como um partido que disputava
eleitores e conquistava parcela importante da capital. Dos vereadores arenistas eleitos no
pleito de 1972, nos chama atenção a expressiva votação de Dercy Furtado, com mais de
dez mil votos. Da mesma forma que muitos dos políticos arenistas da época, Furtado atuava
em áreas que, de certa forma, seriam estratégicas para os êxitos do partido na capital.
Como ela aponta em uma entrevista concedida quarenta anos depois,

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Eu pertencia ao clube de mães e à escola de pais. Fazia palestras por todo


o Rio Grande do Sul, por todo o Brasil, sem política, entendes? Eu era mais
ligada à Igreja. O Sesi me contratou para fazer palestras, e eu fazia muitas,
por isso fiquei conhecida. É importante ter um lastro de conhecimento
1
quando se quer concorrer .
Porém, Dercy Furtado não pode ser vista como uma "inocente dona de casa" usada
pela ARENA para angariar votos. As aproximações entre Furtado e os setores católicos
conservadores, assim como a estreita relação estabelecida entre a ex-deputada e arenistas
como o ex-prefeito de Porto Alegre, Telmo Thompson Flores, indicam a adoção de uma
posição política próxima aos ideais da "revolução de 1964" anteriores a sua candidatura em
1972. Deve-se ainda destacar que os vínculos de seu marido, Jorge Furtado, com o
empresariado e com políticos tradicionais gaúchos tenham, da mesma maneira, contribuído
para a eleição de Dercy, afinal entre 1974 e 1979 o administrador público Jorge Furtado foi
secretário geral do Ministério do Trabalho e ministro interino de Arnaldo Prieto, durante o
governo de Ernesto Geisel.

Quem era Dercy Furtado?

Passo agora a discorrer sobre a trajetória política da deputada arenista. Dercy


Furtado nasceu em Morungava, na época distrito de Gravataí, em 22 de setembro de 1924.
Filha de Melíbio Fernandes Vieira, um pequeno agricultor, e Etelvina Silveira Vieira, uma
professora, Dercy Furtado mudou-se com a família para Porto Alegre em 1936, aos 12 anos
de idade. A mudança ocorreu através do convite de seu irmão mais velho que já residia na
capital. A transferência para Porto Alegre possibilitou que Dercy concluísse os estudos
primários, embora tivesse dificuldades financeiras ao comparar-se com as colegas da sua
escola, pois teve que parar de estudar para ajudar nas despesas da casa. De acordo com
suas memórias, aos 14 anos foi “trabalhar no laboratório Geyer, onde assoprava com (seus)
fracos pulmões (pesava 48 quilos) entre quatro a cinco mil ampolas” (FURTADO, 1984).

Dercy Furtado retoma os estudos quando ingressa no Serviço Nacional de


Aprendizagem Industrial no Brasil (SENAI), completando o curso na Escola Visconde de
Mauá, em Porto Alegre. Nessa escola, conheceu seu futuro marido Jorge Alberto Jacobus
Furtado, na época seu professor de língua portuguesa, que segundo Dercy, “era bondoso.
Inteligente. Meio desajeitado. Mãos de intelectual. Religioso. Para mim ‘perfeito’”
(FURTADO, 1984). Dercy Furtado casou com Jorge Furtado em 1942, aos 18 anos de
idade, e teve seis filhos.

1
Entrevista concedida ao autor em 09 de novembro de 2012, na cidade de Porto Alegre.

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Ao longo de sua trajetória, Dercy participou de diversos movimentos assistenciais e


comunitários, principalmente os vinculados à Igreja, juntamente com o marido. Atuou no
Movimento Familiar Cristão, onde foi delegada do Sínodo Arquidiocesano de Porto Alegre e
fez parte da equipe da CNBB organizadora do Centro de Promoção da Doméstica. Eram
movimentos católicos espalhados pelo Brasil com fortes traços anticomunistas. Defensores
da família cristã, ocidental, católica, tais movimentos alcançavam diversos setores sociais,
além de atuar fortemente na propaganda anticomunista.

Por sua ligação com a Igreja e, especialmente pela assistência dada às domésticas,
Furtado ganhou notoriedade e foi convidada para participar de programas de rádio e
televisão. Segundo Furtado, “graças a todo este trabalho, em torno da família é que
lembraram (seu) nome para a Câmara de Vereadores” (FURTADO, 1984). Em 1972,
segundo Furtando, a convite do então prefeito de Porto Alegre, Telmo Thompson Flores se
filiou à Aliança Renovadora Nacional (ARENA) e se candidatou à vereança, sendo eleita em
1972 com mais de dez mil votos, a mais votada do partido. A expressiva votação de Dercy
Furtado não foi apenas o resultado de uma campanha voltada para as mulheres,
especialmente para as domésticas e donas de casa. Além do que já foi exposto acima, o
resultado nas urnas de 1972 demonstra também o peso que o partido havia adquirido na
capital gaúcha desde o seu surgimento, elegendo inúmeros vereadores.

Sua atuação política foi também acompanhada pela defesa de seus ideais relativos
à promoção da mulher e a valorização da família cristã em programas de rádio e televisão,
além de uma coluna no jornal Zero Hora, denominada Opinião e a publicação de livros de
memórias2. Nesses espaços, mostrava-se ligada fortemente pelos ideais da "Revolução" de
1964, as iniciativas do partido e as realizações da ditadura.

Em agosto de 1976, na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, a então


deputada estadual deixava clara sua afinidade política com os líderes militares que estavam
governando o país. Na tribuna afirmou o seguinte:

Antes de encerrar, quero deixar aqui meus cumprimentos ao Presidente


Geisel, que deve ser elogiado e estimulado pelas medidas que vem
tomando. Não podemos esquecer esse fato. Portanto, ao Presidente Geisel,
que com toda a razão vem coibindo alguns abusos, todo o nosso apoio
(Anais da ALRS, agosto de 1976).
Dercy Furtado teve uma atuação marcante dentro partido, assumindo o comando
da organização, atuando em grupos específicos, como na ARENA feminina. Em 1976,
quando era deputada estadual, foi eleita Presidente do Diretório Municipal de Porto Alegre.
Emocionada, fez um pronunciamento na Assembleia Legislativa demonstrando a maneira
2
Dercy Furtado também publicou as seguintes obras: Opinião, em 1974; Cortando as Amarras, em
1978; Orações que mamãe me ensinou, em 1984; e Construindo Catedrais: ideias para viver bem,
em 2009.

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pela qual sentiu-se uma arenista convicta, alinhada aos propósitos do partido e ao governo
"revolucionário".

Ontem, em Porto Alegre, no Diretório Municipal da ARENA, desenrolou-se


uma cerimônia que poderia ter sido simples, comum, normal, se não fosse o
fato inédito de uma mulher, pela primeira vez, assumir um Diretório e uma
campanha política no Rio Grande do Sul. Por esse fato, por esse
acontecimento, é que aquela cerimônia se tornou original, tornou-se uma
solenidade cheia de entusiasmo com a presença de inúmeras pessoas no
Diretório Municipal da ARENA.
Venho a Tribuna hoje para dizer [...] da minha alegria e do meu entusiasmo.
Várias vezes recebi grandes alegrias: as duas vitórias em campanhas
políticas tanto para a Câmara de Vereadores como para a Assembleia
Legislativa. Esses fatos encheram-se de ânimo e foram marcos na minha
vida toda. Entretanto, posso dizer que, ontem à noite foi, para mim, algo
inédito o que aconteceu. Foi de maior relevância e de maior importância
para mim assumir o Diretório Municipal da ARENA. Afirmo que foi um
acontecimento importante por confiança que a ARENA depositou em uma
mulher, porque assumir, ontem, foi um fato não imposto por regimentos,
pois o Vereador Carlos Rafael dos Santos poderia continuar à frente do
Diretório Municipal. (Anais da ALRS, 10 de setembro de 1976, p. 154)
Embora tenha um discurso voltado para a importância da presença feminina no
cenário político partidário, Furtado não deixa de apontar em seus discursos a importância
que o partido, a ARENA, tivera em sua carreira política. Se Dercy Furtado ingressou no
partido somente em 1972, como ressalta em seus livros de memórias e nos
pronunciamentos como deputada, é importante considerar que em pouco tempo, em apenas
quatro anos, assumiu um posto de comando na ARENA em uma capital da federação.
Políticos com carreiras mais longas que a de Dercy Furtado ainda não haviam ocupado o
cargo que a "defensora das mulheres" ocupava em poucos anos como vereadora e
deputada, o que demonstra também os espaços conquistados por ela dentro de um partido
composto majoritariamente por homens.

Quando era presidente do Diretório Municipal da ARENA da Porto Alegre, Furtado


utilizava seu espaço como deputada estadual para divulgar as atividades da agremiação,
assim como para convidar os demais deputados a colaborar com a ARENA, visitando as
dependências da sede da agremiação no centro da cidade de Porto Alegre.

O Diretório Municipal da ARENA está de portas abertas para receber todos


os amigos que desejam colaborar conosco. Desta tribuna faço um convite
especial aos Srs. Deputados e à imprensa, que em muitos podem nos
ajudar, apontando os nossos erros e nos estimulando nos acertos. Renovo
o convite: visitem-nos, sugiram-nos novas ideias, apoiem-nos nos acertos,
critiquem-nos e corrijam-nos nos erros. O endereço do nosso Diretório é
Rua Marechal Floriano nº 32, telefone é 21.87.10. Como é uma rua muito
movimentada e a sede do Diretório estava um pouco escondida, mandei
colocar oito grandes bandeiras; bandeiras com as cores da ARENA e que
estarão lá tremulando para a nossa alegria e para a alegria de todo o povo
de Porto Alegre. Então, essas bandeiras marcarão o local do Diretório
Municipal da ARENA. Lá encontrarão os Srs. Deputados e a imprensa, nove
funcionários dispostos a dar-lhes o melhor atendimento, desde o cafezinho

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até a rosa, que estará à mesa de todos os funcionários para dar aquela
acolhida fraterna e amiga de todos nós que lá estamos para servir.
Como "slogan" para todos os cartazes, painéis e carros, adotando o
seguinte - vou lançá-lo hoje, aqui, pela primeira vez -: "A ARENA É POVO
SEMPRE". Além deste "slogan", teremos ainda sub-"slogan", como outros
que poderão ser usados, "A ARENA CRESCE EM PORTO ALEGRE". Este
"slogan" se baseia no fato real e verídico que desde a eleição passada a
ARENA vem crescendo em Porto Alegre, tanto que, já na gestão do Prefeito
Dr. Telmo Thompson Flores, passamos de oito para nove Vereadores na
Câmara, com o que demos aos Sr. Prefeito a oportunidade de ter o seu veto
assegurado. [...]. Temos ainda outro "slogan", para reavivar a mente de
muitas pessoas que estavam esquecendo: "A ARENA É MAIORIA NO
BRASIL". Estes são os "slogans" da ARENA para esta campanha.
O fato de Dercy Furtado ter assumindo posições de comando no partido não
significava que era obediente a tudo o que o Diretório Nacional definia, nem mesmo um
apoio irrestrito aos mandos do executivo.

Porém, ao assumir uma posição de liderança na ARENA demonstrava afinidade


com o partido, com os políticos que compunham a agremiação e com aspectos relacionados
ao pensamento que, de certa forma, norteava a ditadura brasileira. Ou seja, no espectro
político daquele contexto Dercy Furtado se encontrava entre as direitas, os conservadores,
que tinham repulsa as transformações sociais, ao pensamento socialista e/ou mesmo
nacional-reformista. Além disso, estava ao lado de muitos homens e mulheres que
defendiam, em muitos casos, a cassação de mandatos políticos, os expurgos do
funcionalismo público, a censura, o banimento e até mesmo a tortura.

Na metade do seu último mandato, em agosto de 1985, quando se encontrava no


PDS, ingressou no PDT, segundo Dercy Furtado, a partir do convite de Leonel Brizola.
Segundo a ex-deputada,

Quem ouvia sempre os meus discursos? Leonel de Moura Brizola. Ele vivia
me ouvindo, e um dia o que fez? Chamou-me ao Palácio da Guanabara. Eu
fui, pois o admirava muito. Aliás, fomos eu e o Jorge.
– Deputada, eu a estou convidando a entrar no PDT.
– No PDT? Mas eu sou da Arena!
– Mas o seu discurso é de oposição. A senhora está mal. A senhora tem de
entrar é no PDT.
– Olha, eu entro com uma condição: se o senhor for lá em casa me buscar e
me levar até a Assembleia para eu entrar no PDT.
– Não há problema nenhum.
Um dia ele marcou, foi lá em casa me buscar – eu tenho todas as fotos em
que nós aparecemos juntos –, e eu vim de carro com ele. (Entrevista
concedida ao autor em 09 de novembro de 2012, na cidade de Porto
Alegre).
Em 1986 tentou reeleger-se deputada estadual pelo novo partido, mas não obteve
sucesso. Talvez, a nova sigla partidária, o PDT, não tenha oferecido base política suficiente
para a sua mais nova candidata. Provavelmente as antigas alianças políticas tecidas anos
atrás, quando militava na ARENA, tenham se afastado da candidata que aproximava-se do

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trabalhismo de Leonel Brizola, um dos grandes inimigos dos golpistas de 1964. Mas o
contexto político era outro, era de abertura política, era o momento propicio para se
esquecer antigas desavenças e seguir a vida.

Memórias da trajetória como arenista

Em 09 de novembro de 2012, nas dependências do Memorial da Assembleia


Legislativa do Rio Grande do Sul, foi realizada uma entrevista com a ex-deputada Dercy
Furtado. Aos 84 anos de idade, Dercy sentia-se entusiasmada em falar da sua vida pessoal
e familiar e da carreira política que tivera. No decorrer da entrevista, enfatizava a luta que
travou em defesa dos direitos das mulheres, destacando sua trajetória como parlamentar.
No entanto, Dercy não tinha mais as mesmas convicções políticas que tivera nos anos 1970.
Quando foi questionada sobre sua postura durante o golpe civil-militar, não negou sua
posição política no período, mas achou difícil responder a pergunta: "Nos anos 60, houve o
movimento de março de 64. Gostaria de saber da sua posição e da posição do seu marido,
Jorge Furtado, em relação ao movimento? - Ah, isso foi muito complicado, porque
estávamos pela Arena"3. Respostas como "puxa, agora não vou lembrar"4, foram
recorrentes e representam a maneira pela qual a ex-deputada sentia-se desconfortável em
falar de sua atuação política ao lado de militares e políticos conservadores.

Durante a entrevista a ex-deputada não se sentiu à vontade em falar que militou na


ARENA como fizera orgulhosamente nos anos 1970. Na entrevista afirmou o seguinte:

Sempre fui mais de esquerda. Entrei na Arena por causa do Dr. Telmo
Thompson Flores, mas eu me sentia mal, às vezes, junto com coronéis e
outras pessoas do partido. Eu queria um partido formado mais por
operários, por trabalhadores sem-terra. Meus discursos eram muito de
oposição. (Entrevista concedida ao autor em 09 de novembro de 2012, na
cidade de Porto Alegre).
Furtado narra sua trajetória como arenista descolada do partido. Ou seja, ela
pretende imprimir a imagem de que o partido utilizava estrategicamente do potencial
eleitoral de seus candidatos, sem que esses tivessem necessariamente vinculações
ideológicas e políticas com as ideias da "Revolução" de 1964 e consequentemente com a
ditadura civil-militar. Cito para exemplificar dois trecho da entrevista, em que Furtado
superdimensionou sua luta pelos direitos das mulheres e donas de casa, que, por sua vez,
servira a interesses de partidos e políticos:

O Pedro Simon, que era meu vizinho, ou melhor, que é meu vizinho [...] me
dizia: Meu Deus, como é que eu nunca te enxerguei, Dercy? Como é que tu

3
Entrevista concedida ao autor em 09 de novembro de 2012, na cidade de Porto Alegre.
4
Idem.

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estavas ali? Depois fomos deputados juntos. Isso do Dr. Telmo foi muito
interessante. Ele teve visão. Foi ele quem me disse: Tu vais lutar pela
mulher. Eu concordei: Ah, ótimo! Mas eles eram muito bons. Não tenho
queixa. O Marchezan foi uma pessoa maravilhosa, assim como o Faccioni.
Foram todos muito bons, mas eu não me sentia assim tão bem. (Entrevista
concedida ao autor em 09 de novembro de 2012, na cidade de Porto
Alegre).
Foram poucas as falas em que Furtado destaca sua participação na organização do
partido, na montagem de congressos femininos, na sua atuação frente à presidência do
diretório municipal do partido em Porto Alegre. Sobre os congressos femininos lembra que:

Sim. Eu organizei o maior congresso feminino da Arena. Veio gente de


todos os Estados do Brasil. Aquele auditório grande, o Dante Barone, ficou
totalmente lotado. Veio gente até do Amazonas. A família Collor, todinha,
também veio. O Collor, bem mocinho, estava na plateia. Convidei a mãe
dele, assim como outras mulheres muito importantes. A dona Leda Collor de
Mello era uma mulher importantíssima. (Entrevista concedida ao autor em
09 de novembro de 2012, na cidade de Porto Alegre).
A fuga em aparecer como cúmplice de um regime de exceção e a tentativa de frisar
que lutou pela democracia do país foi constante na entrevista. Isso se deve, em parte, ao
que foi apontado no início de texto: a partir da Lei de Anistia de 1979, uma memória se
consolidou e todos agora estão ao lado da resistência, distante de qualquer aproximação
com a ditadura dos militares, únicos responsáveis pelas arbitrariedades do período. Sendo
assim, afirmou que os membros do partido "[...] eram muito bons. Não tenho queixa. O
Marchezan foi uma pessoa maravilhosa, assim como o Faccioni. Foram todos muito bons,
mas eu não me sentia assim tão bem"5.

Nesse sentido, a autoconstrução de sua imagem como democrata que sentia-se


mal ao lado de "tiranos" e "algozes" parece corresponder a memória social do regime,
somadas a elementos que correspondem a história do Rio Grande do Sul. Ou seja, talvez a
narrativa de Dercy Furtado sobre sua trajetória política encontra assento mais confortável no
que chamo de "memória da legalidade". Uma construção de memória que se desenvolveu
particularmente no Rio Grande do Sul e que considera a sociedade gaúcha resistente à
ditadura civil-militar. Desde 1961, segundo essa perspectiva, os gaúchos partiram para a
resistência, para a oposição, sem nenhuma aproximação com o golpe e com o regime.
Apagaram-se as cumplicidades, as ambivalências e os paradoxos entre os "aguerridos"
gaúchos e a ditadura.

Mas como pensar esse esquecimento, esse distanciamento, de Dercy Furtado em


relação ao seu passado como arenista, suas aproximações com a ditadura? Uma das
explicações, como já foi em parte apontada no texto, se deve, em parte, a “invasão” das
memórias das esquerdas no campo historiográfico, a partir dos inúmeros relatos daqueles

5
Entrevista concedida ao autor em 09 de novembro de 2012, na cidade de Porto Alegre.

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que sofreram com cassações, banimentos, expurgos, torturas e exílios. Da mesma maneira,
é compreensível que, diante das “investigações” da Comissão da Verdade, sintam-se
também constrangidos a expor suas trajetórias políticas durante os “anos de chumbo”.
Penso que esse uso pragmático da memória não significa maquiavelismo ou oportunismo,
mas está relacionado a um cenário de luta entre diferentes atores que atribuem diferentes
sentidos ao passado. O objetivo do texto, dentro dos limites apresentados, não foi o de
"desmentir" as memórias de Dercy Furtado, mas mostrar, em certa medida que essas
construções de memória estão inseridas no tempo presente, momento no qual aparecer
como arenista torna-se constrangedor. Da mesma forma, a finalidade aqui não foi o de
"compreender" a postura de Dercy Furtado como ex-arenista sem inseri-la num contexto
político atual que condena a ditadura e seus agentes.

Interessante observar que Furtado vem realizando tal construção de memória, na


qual aparece como político de esquerda, desde os anos 1970, quando começou a publicar
livros sobre sua trajetória de vida e sua atuação como parlamentar. Nas obras aparecem
uma série de lembranças que se repetem ao longo da entrevista realizada em 2012,
colaborando para a ideia de uma parlamentar combativa, que sentia-se incomodada ao lado
dos "algozes". Isto significa que a edificação de uma memória distante da ditadura, dos
tempos de militância na ARENA, das relações de amizade e companheirismo com políticos
conservadores, já tem uma história que precisa ser investigada.

Referências

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GRINBERG, Lucia. Partido Político ou bode expiatório: um estudo sobre a Aliança


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Filhos de hoje, homens de amanhã: 1964 aconteceu em abril1

Enzio Gercione Soares de ANDRADE


Professor do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte,
balbec@uol.com.br

Em 1964, Natal, capital do Estado do Rio Grande do Norte contava com cerca de
200 mil habitantes; uma cidade que pela distância dos grandes centros urbanos nacionais,
sofria com os precários serviços de comunicação, acesso à cultura acadêmica ou diversão
de melhor qualidade. Ao mesmo tempo em que guardava ares ainda interioranos e
costumes provincianos, a cidade do Natal mesmo ao longe, acompanhava o ritmo de
mudanças que se processavam no Brasil desde meados da década de 50, do século
passado sob a égide e influência do “Desenvolvimentismo” capitaneado pelo Governo
Juscelino Kubitschek.

A este respeito à Historiadora Isa Ribeiro comenta:

“Após a morte de Vargas e a eleição de Juscelino Kubitschek, as mudanças


tornaram-se mais abrangentes. A política nacional desenvolvimentista,
adotada pelo novo presidente, fez emergir a necessidade de modernizar a
cidade como subsídio ao processo de industrialização. A noção de
desenvolvimento estava na possível reordenação da economia, apoiada na
ação efetiva do Estado. E o nacionalismo forneceria o referencial político para
um projeto que seria sustentado pelo governo, conhecido sobre o lema “50
anos em 5” (RIBEIRO, 2008).

O Brasil ia lentamente deixando de ser um país agrário-exportador para se tornar


uma economia industrializada periférica, o que se coadunava com as inflexões desejadas
pelo capitalismo globalizado que se encontrava em processo acelerado de formação.

É importante lembrar que a industrialização nacional já era um processo em curso


desde os anos cinquentas e suscitara uma ideologia de desenvolvimentismo, que como um
tornado, varrera o país, criando um misto de euforia e mudança; que era chegada a hora do
Brasil ser uma nação desenvolvida e também resolver seus graves e profundos disparates
sociais. Entretanto, tais mudanças não seriam suficientes para solucionar tantos
descalabros sociais do país, e as contradições econômicas catapultadas a primeiro plano,
tornavam nossos problemas mais evidentes; o otimismo que campeava pela nação foi
sendo substituído pela frustração dos setores mais pobres, embora a intelectualidade de
esquerda ainda acreditasse que seria possível uma transformação mais radical no Brasil.
Era a possibilidade de uma mudança que beneficiasse os setores sociais desprovidos da
nação, que atemorizava a classe proprietária.

1
O título remete as últimas palavras do “Relatório Veras” resultado das investigações feitas no Rio
Grande do Norte a respeito de supostas atividades subversivas, por ordem do governador potiguar
Aluízio Alves à época e simultaneamente ao livro de memórias de Mailde Pinto Galvão, que foi
indiciada neste mesmo relatório tendo por base o Ato Institucional nº1(AI-1) de 09 de abril de 1964.

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Todavia a década de 60 do século passado também foi marcada de forma acentuada


no plano internacional e interno por transformações profundas que afetariam o mundo e
suas relações geopolíticas, a política interna nacional, tendo impacto sobre a citadina
sociedade da cidade do Natal em maior ou menor escala. Entre estas transformações que
afetariam o continente sul-americano estava a chamada “Guerra Fria” e a crise do
“Populismo” no cenário político brasileiro. A respeito do primeiro acontecimento histórico, o
historiador britânico Eric Hobsbawm relata:

“Os 45 anos que vão do lançamento das bombas atômicas até o fim da União
Soviética não formam um período homogêneo único na história do mundo.
[...]. A Segunda Guerra Mundial mal terminara quando a humanidade
mergulhou no que se pode encarar, razoavelmente, como uma Terceira
Guerra Mundial, embora uma guerra muito peculiar. [...] A Guerra Fria entre
EUA e URSS, que dominou o cenário internacional na segunda metade do
Breve Século XX, foi sem dúvida um desses períodos. Gerações inteiras se
criaram à sombra de batalhas nucleares globais que, podiam estourar a
qualquer momento, e devastar a humanidade” (HOBSBAWN, 1995: p. 223-
234).

Se a “Guerra Fria” trazia em seu bojo o perigo de um holocausto nuclear real,


também trazia consigo devido à ação norte-americana uma ideologia anticomunista que
seria usada como base para a atuação de grupos políticos no Brasil no contexto do golpe de
estado em 1964. O historiador Rodrigo Motta nos aponta:

“Na crise de 1964, o argumento mais forte apresentado nos discursos


favoráveis à derrubada do governo fora o anticomunismo, mesclado às
acusações de que Jango pretenderia implantar um regime autoritário de
esquerda. Foi à percepção desse risco e seu alardeamento via imprensa a,
televisão, manifestações, marchas etc. Que permitiu a formação da grande
coalizão pró-golpe, bem como a desmobilização ou conquista de setores que
antes viam com simpatia os projetos governamentais” (MOTTA, 2006: p. 9-
26)

Este mesmo contexto teria outro elemento como protagonista, que seria a crise do
modelo político ou prática política que se convencionou na historiografia brasileira a se
denominar como “Populismo”. O termo foi e é alvo de inúmeras controvérsias (Cf.
FERREIRA, 2013), mas de uma forma geral adotaremos a perspectiva que este fenômeno
brasileiro foi contemporâneo e associado à emergência do trabalhismo e das suas
reivindicações no campo social nacional a partir da industrialização brasileira, num cenário
de políticos de carisma, de demagogia, do assistencialismo, principalmente em relação aos
trabalhadores e às camadas médias. Podemos também acrescentar as ideias de
“personalização do poder, a imagem, meio real e mística da soberania do estado sobre o
conjunto da sociedade e a necessidade da participação das massas urbanas” como
assinala o cientista político Francisco Weffort.

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O Populismo entra em crise quando não consegue equacionar as demandas das


classes trabalhadoras dentro do contexto democrático sem a possibilidade de uma mudança
que beneficiasse os setores sociais desprovidos da nação, o que assustava a classe
proprietária, que foi instada por sua vez a buscar o rompimento do Estado democrático de
direito, para preservar seus interesses e não permitir nenhuma descontinuidade naqueles. A
ruptura institucional se daria entre março e abril de 1964.

A prática populista no Estado do Rio Grande do Norte teve como expressão máxima
a figura do governador Aluízio Alves que tinha sido eleito em 1960 em uma coligação
denominada “Cruzada da Esperança” que contava com o apoio dos partidos PSD, PTB,
PTN e PDC, derrotando a oligarquia Bezerra de Medeiros, da qual fazia parte o Governador
Dinarte Mariz, assim como seu candidato ao governo estadual Djalma Marinho; ambos eram
membros da UDN. Segundo Wesley Garcia Ribeiro Silva (2011), em sua campanha:

“Aluizio Alves construiu um discurso em que se apresentava como


liderança política que romperia com o atraso econômico e com as
velhas oligarquias políticas conservadoras, que seriam patrocinadoras
desse atraso. Atento a importância do eleitorado das camadas
populares, fomentou estratégias de grande poder de persuasão junto
às massas. [...] o então Senador Dinarte Mariz, possuía uma antipatia
pela população comum, transformando Aluizio Alves no paladino das
camadas populares. [...] ofensas feitas aos correligionários de Aluízio
Alves apelidando-os de “gentinha”, por exemplo, foram capitalizadas
pelos coordenadores da campanha, e transformada em bordão,
associando a imagem do oponente a um representante dos ricos e
poderosos que mandavam e desmandavam no estado, sendo os
responsáveis pela corrupção política e a pobreza. Sua vitória
encarnaria, portanto, a própria conquista das camadas populares.”

Aluízio Alves realizou uma gestão de prestígio e que teve força no seio da
população, a quem ele chamava de “minha gentinha2“, todavia muito de seu sucesso se
deveu a realizações de caráter estrutural no Estado do Rio Grande do Norte como
eletrificação, melhorias em telecomunicações, habitação popular com verbas oriundas da
“Aliança para o Progresso”, programa norte americano instituído pelo Governo John
Kennedy que tinha como pano de fundo o combate ao comunismo e que também serviu
como força contrária ao avanço de movimentos populares apoiados pela esquerda política
nacional.

No plano municipal a Prefeitura do Natal na administração Djalma Maranhão,


realizava obras em colaboração com a população como, por exemplo, o calçamento de
2
Esta expressão adotada pelo governador Aluízio Alves se deve ao fato que na campanha eleitoral
de 1960 para o governo do estado do RN, o governador de então Dinarte Mariz afirmou que os
eleitores de Aluízio Alves eram de baixa extração social, querendo de forma preconceituosa e
classista, desqualificar a oposição que tinha a preferência do eleitorado. Num golpe de mestre, Aluízio
passou a adotar esta expressão em seus comícios, de forma paternalista o que lhe granjeava enorme
simpatia junto à população.

ISBN: 978-85-62707-55-1
184 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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ruas, a transformação de praças em pontos de acesso à cultura com a instalação de


bibliotecas móveis, mas notadamente a implantação de um plano de alfabetização de jovens
e adultos que se intitulava “De pé no chão também se aprende a ler”, inspirado nas práticas
do MPC (COELHO, 2013) que se realizava em Pernambuco na administração Miguel
Arraes. Em suas memórias sobre o período entre 1961 e 1964, a escritora Mailde Galvão
(2004: p. 29-30) relata:

“O prefeito, com bastante dificuldade econômica, realizava a sua


administração priorizando os programas de alfabetização popular,
conscientização política e democratização da cultura. [...] Enquanto o
governo do Estado usava dólares americanos em seus programas de
educação, a Prefeitura com recurso próprios oferecia escolas para a
alfabetização de crianças carentes em Natal e divulgava o slogan
ESCOLA BRASILEIRA COM DINHEIRO BRASILEIRO. [...] As
divergências políticas radicalizaram-se, trazendo para o ambiente do
Estado as mesmas lutas que, no início dos anos 60, dividiam o país
entre forças de direita e esquerda.”

Quando o movimento golpista foi deflagrado e as primeiras notícias desencontradas


chagavam a Natal, o Prefeito Djalma Maranhão assumiu de imediato a defesa da legalidade
democrática, comunicando ao comando militar local o seu posicionamento e publicou nos
meios de comunicação natalenses uma nota de apoio ao governo João Goulart; Na já
referida nota, o Prefeito Djalma Maranhão declarou que a prefeitura do Natal tornava-se
naquele momento o quartel general da legalidade e da resistência. Mailde Galvão (2004: p.
29-30) nos conta:

“A ênfase da nota com a designação da prefeitura como “QG da legalidade”,


num momento em que as tropas já se encontravam mobilizadas, irritou os
militares e foi interpretada como uma ameaça de mobilização para a
resistência popular”.

O Governador Aluízio Alves na madrugada de 01/04/1964 publicou uma nota, que se


caracterizava pelo senso de oportunismo, procurando verificar para onde penderia a vitória
do embate entre as forças retrógradas e progressistas no contexto do Golpe de Estado; no
dia seguinte o Governador divulgou outra nota dando apoio ao golpe militar e às forças
armadas.Segundo o jornalista Dermi Azevedo (2012: p. 9-10):

“Os políticos norte-rio-grandenses que haviam participado da conspiração


pré-golpe estavam eufóricos. Entre eles Dinarte Mariz, um cacique da região
do Seridó, em cujo currículo constavam discursos e atitudes sempre
marcadas pelo anticomunismo rudimentar. Outros, mais novos buscavam
freneticamente adaptar-se à nova situação. Um deles era Aluízio Alves, um
carismático jornalista de Angicos[...]Muito se esperava de Aluízio Alves, em
termos de renovação da classe política estadual, no entanto, logo após o
golpe, iria tornar-se o único governador de Estado, na federação brasileira, a
decretar a punição em massa de servidores públicos acusados de
“subversão”.

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185 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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Antes que as comissões investigativas fossem instaladas, Natal viu sua prefeitura ser
invadida por tropas do Exército, seu prefeito eleito Djalma Maranhão ser aprisionado e sofrer
um processo ilegal de impeachment, além da câmara de vereadores eleger um novo prefeito
sob coação militar.
Aluízio Alves apoiando-se no Ato Institucional Nº 1, instituiu uma comissão de
inquérito estadual paralela às que que haviam sido criadas pelos militares em todo o Brasil.
No Estado do Rio Grande Do Norte, ao lado da Comissão Geral de Investigação criada
pelos militares, havia duas comissões ditas de “alto nível” chefiadas pelos policiais
pernambucanos José Domingos da Silva e Carlos Moura Morais Veras, além das outras
implantadas nas diversas repartições públicas nas esferas federal, estadual ou municipal.
Desta forma foi armada a maior rede de investigação policial e militar em terras potiguares e
aí teve início o cabedal de arbítrios contra trabalhadores, intelectuais e estudantes. O
historiador Marcos Silva (2007: p. 183) relata que naquele contexto houve:

“O interesse de civis natalenses pela ditadura e as surpreendentes nuanças


entre certos intelectuais, que “esqueceram” seus compromissos anteriores
com a política cultural do deposto Prefeito Djalma Maranhão, ou alguns
militares, que se sentiam constrangidos com os acontecimentos e
arbitrariedades por eles protagonizados desde aquele abril.”

Na continuidade do processo “revolucionário” a Cidade do Natal ainda testemunharia


inúmeras atrocidades e perversidades; De imediato ocorreram como em tantas capitais
brasileiras, comemorações cívicas pelo golpe, com atos religiosos e passeatas. Os dois
principais jornais de Natal à época, a Tribuna do Norte e o Diário de Natal divulgaram em
manchetes tais eventos, como os que ocorreram no dia 07/04/1964.Este último periódico
estampava em sua 1ª página no dia posterior:

“CHUVA NÃO PREJUDICOU TRIBUTO DO POVO ÀS FORÇAS ARMADAS,


NA MARCHA DA FAMÍLIA COM DEUS. Foi talvez a maior concentração
cívica e popular que a nossa cidade já assistiu, a que todas as classes sociais
realizaram em homenagem às forças armadas vitoriosas no movimento de
redemocratização do país.” (Diário de Natal, 08/04/1964. Natal-RN.)

Além das efusivas e reacionárias comemorações, Natal seria palco de inúmeras


prisões de lideranças políticas e intelectuais, acompanhadas de denúncias de torturas
físicas; De mesma forma foi elaborada uma exposição de livros considerados subversivos
na antiga “Galeria de Arte 3Popular” na Praça André de Albuquerque; ressaltando-se que em

3
Esta galeria seria demolida em 1977, na administração do prefeito Vauban Bezerra. Ver em SOUZA.
Bernadete de Lourdes Queiroga. A Praça André de Albuquerque/Natal-RN, na Visão de Seus
Frequentadores. Natal, RN:2004. Encontrado em:

ISBN: 978-85-62707-55-1
186 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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sua maioria eram livros doados pelo Exército Brasileiro às bibliotecas volantes, da Diretoria
de Documentação e Cultura. Argumentavam os novos donos do poder que aqueles livros
eram provas incontestes de preparação de guerrilha urbana e rural por parte da prefeitura
natalense; esse argumento demonstra que os novos mandatários também eram donos de
uma ignorância sem par.
Ao fim e após cinco longos meses, em 15/09/1964 os inquéritos estaduais de
suposta subversão foram entregue ao governador Aluízio Alves, resultando de imediato em
demissão do serviço público, aposentadoria compulsória, dentre outras medidas. O
governador potiguar publicou no Diário Oficial um decreto com a demissão sumária de “82
funcionários públicos.” As personalidades mais proeminentes que tinham sido presas como
o ex-prefeito Djalma Maranhão, seu irmão o ex-deputado Luís Maranhão Filho, os também
ex-deputados Aldo Tinoco e Floriano Bezerra foram encarcerados em Fernando de
Noronha; posteriormente Djalma e Luiz Maranhão teriam destinos trágicos. O 1º morreria no
exílio no Uruguai sem jamais retornar a Natal, e o 2º caiu na clandestinidade da luta armada
e foi trucidado pela repressão da década de 70, sendo um desaparecido político até o
presente momento.
Os outros envolvidos no “Inquérito Veras”, sem emprego deixaram o país ou
mudaram de Estado procurando reconstruir suas vidas interrompidas pelo golpe militar; O
educador Marcos Guerra, que coordenava a aplicação do método Paulo Freire no interior do
RN, se refugiou em Paris, assim como Maria Laly Carneiro que militava na Juventude
Universitária Católica. Nei Leandro de Castro, que se tornaria célebre posteriormente com o
livro “As pelejas de Ojuara”, e que havia sido detido por conta de um texto poético chamado
“Canto Geral” foi trabalhar com jornalismo e publicidade no Rio de Janeiro, seguindo o
Advogado e Jurista Hélio Vasconcelos. São alguns exemplos de pessoas que foram
duramente atingidas pelo arbítrio das primeiras horas de 1964.
Entre 1965 e 1966, os implicados no “Relatório Veras” seriam julgados pela Justiça
Militar; contudo, as implausíveis acusações, a falta de provas, associadas a falhas jurídicas
processuais, permitiu que uma grande parte daqueles fossem excluídos dos processos em
que estavam inseridos através de Habeas-Corpus.
Com a implantação da ditadura, os projetos educacionais e culturais da Prefeitura do
Natal, como o “De pé no chão também se aprende a ler” e “As Praças de Cultura” foram
extintos; a Galeria de Arte Popular sobreviveria mais alguns anos, mas foi sendo lentamente
obliterada em suas funções, tendo até mesmo exposições censuradas pela ação repressiva.
As bibliotecas volantes foram desmanteladas nos bairros periféricos da capital potiguar.

ftp://ftp.ufrn.br/pub/biblioteca/ext/bdtd/BernardeteLQS.pdf, acesso em 23/11/2013.

ISBN: 978-85-62707-55-1
187 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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Estas experiências ficaram guardadas na memória daqueles que as vivenciaram e até


mesmo na geografia da cidade do Natal, por conta de sua desaparição. O Historiador
Ulpiano de Meneses (1992: p. 22) afirma que:

“A memória, como construção social, é a formação de imagem necessária


para os processos de constituição e reforço da identidade. [...] A memória é
operação ideológica, processo psicossocial de representação de si próprio,
que reorganiza simbolicamente o universo das pessoas, das coisas, imagens
e relações, pelas legitimações que produz”.

50 anos decorridos e estas memórias em sua maioria trágicas nos permitem


reconstituir em parte aquele universo, onde as palavras de justiça e paz não eram meras
figuras de retórica, onde havia uma embriaguez de generosidade e disponibilidade humana
na busca de uma sociedade mais justa e por que não dizer mais fraterna. Todavia, “ficaram,
porém e definitivamente, as marcas do sofrimento” devido à ação daqueles que encetaram a
face da destruição naquele momento singular da História brasileira, como relata Mailde
Galvão em suas memórias. Ela, que como tantos outros filhos daquele hoje, e que se tornou
parte dos homens do amanhã, testemunhou o fim de uma era e assim 1964, aconteceu em
abril. Era só o começo de uma longa jornada noite adentro.

Referências

AZEVEDO, Dermi. Dos anos 60 a Ditadura: Memórias Preliminares. In Subversão no Rio


Grande do Norte/Relatório Veras. Natal, RN: Comitê pela Verdade RN, 2012, p.09-10.

BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O Governo João Goulart: As Lutas Sociais no Brasil, 1961-
1964. São Paulo: Editora UNESP, 2010.

COELHO, Germano. MCP: História do Movimento de Cultura Popular. Recife,


PE:CEPE,2013

FERREIRA, Jorge (org.). O Populismo e sua História, Debate e Crítica. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2013.

GALVÃO, Mailde Pinto. 1964: Aconteceu em Abril. Natal, RN: EDUFRN, 2004, p. 29-30 e
213.

HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos. O Breve Século XX (1914-1991). São Paulo:
Companhia das Letras, 1995, p. 223-234.

MENESES, Ulpiano. A História, Cativa da Memória? Para um Mapeamento da Memória no


Campo das Ciências Sociais. Revista Inst.Est.Bras. 34, 1992, página 22.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O Anticomunismo Militar in O Golpe de 1964 e o Regime Militar:
Novas Perspectivas (Organização de João Roberto Martins Filho). São Carlos: Edufscar,
2006, p.09-26.

ISBN: 978-85-62707-55-1
188 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014

RIBEIRO, Isa Paula Zacarias. As Praças de Cultura no Governo Djalma Maranhão.


Dissertação (Mestrado em História): Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal,
2008.

SILVA, Marcos. 1964 e Outras Correntezas (Um Coração nas Trevas) in Câmara Cascudo,
Dona Nazaré de Souza & Cia. Natal: EDUFRN, 2007, p.183.

SILVA, Wesley Garcia Ribeiro. A Cidade como Arena Política: Cultura Política e Espaços
Urbanos na Cidade do Natal (década de 1960). Encontrado em:
http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/srh/article/view/12446, acesso em 22/11/2013.

SOUZA. Bernadete de Lourdes Queiroga. A Praça André de Albuquerque/Natal-RN, na


Visão de Seus Frequentadores. Dissertação (Mestrado em Psicologia): Universidade
Federal do Rio Grande Do Norte Natal, 2004.

WEFFORT, Francisco Correia. O Populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1978.

ISBN: 978-85-62707-55-1
189 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014

O Movimento de Cultura Popular do Recife (MCP) nos autos dos Inquéritos


Policiais Militares (IPMs) produzidos pelo Regime Militar Brasileiro (1964-
1985)

Fábio Silva de SOUZA


Mestrando em História Social na FFLCH-USP. Pesquisa financiada pela FAPESP
fabiosilvads@yahoo.com.br

Os caminhos da repressão
Para abordar a abrupta interrupção das atividades do Movimento de Cultura Popular
do Recife, é pertinente alagarmos o escopo e contemplarmos outros olhares sobre os
motivos que levaram os militares, quando da instauração do Golpe Civil-Militar, a
interromper aquela experiência cultural no dia 31 de março de 1964. Sem nenhuma
pretensão de realizar, stricto sensu, uma exegese da lógica do ethos conservador da
sociedade pernambucana de meados do século XX, cabe realizarmos nossas reflexões
buscando responder uma questão. Por que os empreendimentos educacionais e culturais do
MCP se configuravam em ameaça aos promotores do Golpe de 1964?

Embora possa parecer acaciana, uma assertiva precisa ser retomada: o conflito entre
grupos sociais com projetos distintos de sociedade e de cultura era o maior problema do
Brasil nos idos dos anos 1960. Desse modo, a resposta para a nossa pergunta deve ser
buscada naquilo que mais refletia o estado de espírito daqueles anos. Ou seja, como a
cultura anticomunista dos militares procurava criminalizar os projetos que colocavam em
xeque um sistema de artes, de leis e costumes e de ordem social que privilegiava um
pequeno nicho abastado da sociedade, característica ainda mais forte em regiões
empobrecidas do Brasil, como o Nordeste.

Nesse sentido, a partir dos IPMs instaurados após o Golpe para investigar a atuação
política e cultural do MCP, buscaremos destacar o ponto de vista dos militares no que tange
àquela experiência. Esse caminho vai nos conduzir a melhor compreender quais eram as
preocupações das elites conservadoras acerca daquela nova forma de conceber a
sociedade brasileira levada a cabo pelos militantes em cultura do MCP.

A produção da culpa
Em 1967, foi publicado pela editora do Exército brasileiro (BibliEx) o terceiro volume
da coleção de livros que apresentava de forma didática as conclusões do inquérito policial
militar (IPM) sobre as atividades comunistas no Brasil. Tratava-se de mais um livro da
coleção organizada pelo coronel Ferdinando de Carvalho, cujo objetivo era levar ao grande

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190 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014

público a visão dos militares acerca da efervescência política e cultural do período anterior
ao golpe de 31 de março de 1964.1

Nesse volume, foram abordados os seguintes temas: os meios de propaganda


comunista; a imprensa comunista; o Jornal Novos Rumos; a movimentação de rua; greves;
A Tática da Frente Única; O Partido Operário Revolucionário Trotskista (PORT); A Política
Operária (POLOP); A Ação Popular (AP); O Movimento Unificado da Revolução Brasileira
(MURB) e o Movimento de Cultura Popular do Recife. Esse estudo apresentava as
representações realizadas pelo Exército brasileiro sobre a “subversão” em cada uma dessas
organizações, com especial destaque ao MCP.

O intuito de vincular todos os movimentos de esquerda, independente de sua matriz


ideológica, ao termo genérico “comunismo”, contribuiu para que o MCP fosse alvo de outras
investigações desencadeadas pelos militares. Em 1967, portanto, mesmo ano em que foi
publicado o terceiro volume do relatório geral do IPM-709, o Conselho Permanente de
Justiça Militar aceitou denúncia contra dezoito pessoas arroladas em inquérito sobre as
atividades do movimento estudantil em Pernambuco no pré-golpe. Também nesse IPM, cujo
objetivo era investigar as “atividades prejudiciais e perigosas à segurança nacional, dentro
das normas, princípios e técnicas do Partido Comunista” (IPM – UNE – UBES /
Pernambuco. Op. Cit. p. 02), o MCP foi alvo de investigações.

Com base no IPM 709-3, bem como no IPM da UNE-UBES/Pernambuco, como


também eram conhecidos os referidos inquéritos, desenvolveremos algumas reflexões
acerca do lugar histórico legado ao MCP pelos militares golpistas que puseram fim ao

1
“Ferdinando de Carvalho, nascido em 21/08/1918. Formado em 1962 no curso de Estado Maior e
Comando das Forças Armadas (CEMCFA) da Escola Superior de Guerra (ESG), integrava o corpo
permanente da ESG por ocasião do movimento político-militar de 1964. A sua permanência como
coronel responsável pelo IPM do PCB causou uma série de problemas. Ele era identificado com a
“linha dura” e estava interessado em comprovar as ligações de Negrão de Lima (governador recém-
eleito pelo Estado da Guanabara no ano de 1965) com o comunismo. Por conta disso, houve conflito
entre setores militares que defendiam a permanência de Negrão de Lima, criando impasses entre a
Presidência da República e a comissão de investigação militar. Finalmente, depois de inúmeras
discussões entre a cúpula militar, Ferdinando de Carvalho solicitou a prisão do governador ao STM,
em resposta à ordem que recebera do governo de concluir as investigações. Com essa ordem, o
governo pretendia encerrar o IPM nº 709 como um instrumento de opressão contínua nas mãos da
“linha dura”. Ao pedir a prisão preventiva do governador eleito, Carvalho também ignorou a
advertência de Costa e Silva (então ministro da Guerra) aos encarregados de inquéritos no sentido de
que não tomassem medidas isoladas capazes de retardar as providências a serem tomadas até o
desfecho das investigações. O pedido de prisão foi julgado improcedente. Posteriormente, a
tendência que se impôs para resolver as dificuldades que o governo enfrentava com a “linha dura” foi
a do apaziguamento, sendo mantidos os comandos de unidades na Guanabara e confirmando o
coronel Ferdinando na chefia do IPM do PCB. Desse modo, o coronel foi considerado um
“especialista” na repressão ao comunismo, sendo promovido a general de brigada em 1973.” Cf.
verbete do Dicionário histórico brasileiro pós-1930, 2. Ed., Rio de Janeiro, FGV, 2001 apud CZAJKA,
2013: p. 247.

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regime democrático brasileiro, ao depor o presidente João Goulart (1961-1964).2 Essa tarefa
propõe trazer à tona como os militares viam aquela ebulição política e cultural, além de
identificar os elementos que os militares elegiam como “subversivos”, bem como discutir
como os militares lidaram com esses projetos e atores político-culturais após o golpe. Ao
considerarmos os IPMs uma investigação cujo resultado é buscado intencionalmente e com
clara consciência dos seus fins, nossas análises partirão das acusações que os militares
imputaram ao movimento pernambucano, bem como do argumento que fundamentava
essas inculpações.3 Esse procedimento nos conduzirá a compreender a cultura militar
anticomunista e de que forma o MCP se apresentava como uma ameaça ao projeto
encampado pelos militares em 31 de março de 1964.4 Dito isso, passemos a analisar o
conceito e a finalidade dos IPMs.

O IPM era um instrumento de investigação criminal, cuja finalidade era apurar a


existência e autoria de um delito militar. Ou seja, seu objetivo versava em criar um conjunto
probatório de elementos à propositura penal ou tão somente indícios que possibilitassem o
Ministério Público Militar apresentar denúncia, ou arquivamento da ação penal à autoridade
judiciária. Esses procedimentos foram estabelecidos pelo decreto-lei 6.227 de 24 de janeiro
de 1944. De acordo com o referido decreto, as imputações eram essencialmente
direcionadas aos militares das Forças Armadas que cometessem crimes definidos em lei, no
entanto, havia dispositivos legais em que civis poderiam ser investigados e indiciados por
IPMs.

À época do golpe, esses dispositivos eram fundamentados partir do art. 82 do


Código da Justiça Militar; do art. 108, § 1º da Constituição de 1946; bem como pela Lei de
Segurança Nacional, em vigor desde 1935. Nessas leis, qualquer cidadão, militar ou não,
comprovada sua culpa em crimes contra a segurança externa do país e/ou contra as
instituições militares era passível de ser investigado e indiciado em foro especial de
competência militar. Fora com base nessas prerrogativas que, a partir de 1964, os IPMs
foram utilizados de forma indiscriminada pelos militares golpistas para investigar, prender e
indiciar qualquer cidadão que se indispusesse contra a ordem ditatorial estabelecida.

Dito de outra forma, essas normas caracterizaram-se como uma espécie de “sinal
verde” para que os militares instaurassem, em qualquer tempo, contra qualquer pessoa e/ou
instituição, um IPM. Desse modo, embora a lei não previsse, os inquéritos foram utilizados
2
Ver, a respeito do Golpe de 1964, os trabalhos de RIBEIRO, 2013; BARRETO, 2004.
3
Os argumentos que desenvolvemos neste capítulo, intenciona destacar como o mecanismo da
“repressão preventiva”, foi utilizado pelo Regime Militar para criminalizar o MCP. Essa perspectiva se
fundamenta nas ideias elaboradas por Marionilde Dias Brepohl acerca da lógica da suspeição no pós-
golpe. Ver, a respeito da lógica da suspeição durante o Regime Militar brasileiro, BREPOHL, 1997.
4
A respeito da cultura anticomunista dos militares, trabalhamos a partir das definições elaboradas por
MOTTA, 2002.

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durante o Regime Militar como um instrumento de tutela da sociedade e de repressão


política sobre cidadãos e movimentos sociais. Isso significava que, no contexto da Guerra
Fria em que os militares cerraram as fileiras ideológica e política ao lado dos EUA, os
grupos que não comungassem com essas opções deveriam ser vigiados, criminalizados e
expurgados do convívio social.

Se no transcurso normal de uma investigação criminal a figura do indiciado, pessoa


sobre a qual recaem as investigações, só passava à condição de réu quando concluso os
autos e comprovada sua culpa em algum delito, na dinâmica constituída pelos militares a
partir de 1964, os indiciados já respondiam aos IPMs na condição de réus, cuja culpa só
precisava ser formalizada em documento, conforme deixava claro o Ten. Cel. Manoel Costa
Cavalcanti, presidente do IPM UNE-UBES/Pernambuco: “na realização do IPM que me é
atribuído, não abrirei mão de nenhuma prerrogativa que o CJM me faculta, inclusive as
possíveis prisões preventivas que julgar necessárias” (IPM – UNE – UBES / Pernambuco.
Op. Cit. p. 03).

Não estando presos a nenhuma espécie de normatização quanto à elaboração dos


inquéritos, os encarregados dos IPMs não faziam distinção entre discricionariedade e
arbitrariedade, dirigindo suas investigações como bem lhes conviessem. Nossa
argumentação se fundamenta no fato da convicção da culpa dos investigados serem
elaboradas antes mesmo das investigações começarem, conforme esse excerto de texto do
IPM 709-3:

A agitação e a propaganda são tarefas consideradas como permanentes e


fundamentais na vida partidária dos comunistas. Todo militante é sempre
um agitador, um propagandista ou ambas as coisas. Essa obrigação é
incutida de modo tão sistemático na mentalidade dos comunistas que se
torna um encargo natural, uma tendência constante e indefectível. É através
dessas atividades que os membros do Partido Comunista praticam o
proselitismo, angariam simpatizantes, mobilizam grupos para a ação e
aperfeiçoam suas convicções e capacidade de liderança (Inquérito Policial
Militar nº 709-3. O comunismo no Brasil: a agitação e a propaganda. Rio de
Janeiro: 3.v. Biblioteca do Exército Editora, 1967.)

Nesses termos, uma assertiva nos parece sintomática: o IPM não tinha o mero
caráter de uma instrução provisório à ação penal. O conjunto de provas obtido pelos
militares, independente de sua natureza, era considerado isoladamente e como sendo
idôneo para a elucidação de possíveis crimes. Sendo assim, suficiente para produzir a
convicção de culpa perante o juiz. Isso significava que as provas produzidas pelos inquéritos
embasavam de forma exclusiva as sentenças condenatórias levadas a cabo pela justiça
militar. Portanto, não havendo espaço para o contraditório, para a ampla defesa dos

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indiciados, depreende-se que os IPMs instaurados durante o Regime Militar brasileiro


excediam seus objetivos de busca da existência e autoria do delito militar prescrito em lei.
Suas investigações, bem como a produção de provas serviam, fundamentalmente, à
criminalização dos indiciados.5 No caso do IPM, um movimento de ação cultural, o crime
estava ligado ao conceito de “agitação”, condição para a subversão da ordem e inerente ao
militante, conforme denota o trecho acima.

A “subversão” do MCP nos IPMs: 709-3 e UNE-UBES/Pernambuco


Na visão construída pelos militares acerca do MCP, o movimento pernambucano
tinha como objetivo: “empreender uma impregnação ideológica coletiva de elementos
ignorantes, de frações incultas do povo, criando grandes possibilidades para mobilização
dessa gente, moralmente preparada para a aceitação de motivações subversivas” (Inquérito
Policial Militar nº 709-3. O comunismo no Brasil: a agitação e a propaganda. Op. Cit. p. 565).
Em torno dessa tese, os militares fundamentaram todo o conjunto de suas argumentações
no sentido de criminalizar a aliança governo municipal-intelectual-povo proposta pelos
intelectuais do MCP. Desse modo, dedicaremos esta parte do nosso estudo à análise dos
argumentos que fundamentaram essa tese nos respectivos IPMs.

A caracterização realizada do MCP nos referidos inquéritos era permeada por


concepções anticomunistas. Para os militares, as práticas culturais e educativas
desenvolvidas pelos militantes daquele movimento visavam, por um lado, à propaganda dos
ideais marxistas, de outro, à agitação revolucionária. Esse esforço empreendido pelos
militares em vincular o método e a finalidade do processo educativo do movimento
pernambucano à propaganda e à agitação partia da associação dessas práticas à definição
do teórico marxista Vladimir Lênin sobre esses dois conceitos.

Por propaganda entenderíamos a explicação revolucionária de todo o


regime atual ou de suas manifestações parciais, prescindindo de sabermos
se isto se faz em forma acessível sòmente a algumas pessoas ou para as
grandes massas. Por agitação, no sentido estrito da palavra (sic!)
entenderíamos o apelo dirigido às massas para a intervenção revolucionária
direta do proletariado na vida social (LÊNIN, Vladimir. Que Fazer? Apud
Inquérito Policial Militar nº 709-3. O comunismo no Brasil: a agitação e a
propaganda. Op. Cit. pp. 03-04).

Desse modo, a agitação e a propaganda foram apresentadas nos IPMs como sendo
a sensibilização dos setores populares em torno de uma determinada ideia. Uma espécie de

5
Para um detalhamento mais acurado sobre diretrizes formais da instauração dos IPMs durante o
Regime Militar, sugerimos a leitura de CZAJKA, 2010.

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194 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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convite ao levante das paixões as mais calorosas das massas urbanas e camponesas.
Embora possa parecer que não haja nenhum tipo de nuança interpretativa nessa
argumentação, frisamos por um lado que, na ótica dos militares, o perigo não estava só em
despertar as paixões das massas, mas também, nos motivos da mobilização e de sua
decorrente ação social, e por outro, o latente desejo de criminalizar as ações do MCP pelas
suas possíveis vinculações ao comunismo internacional.

Analisemos de que forma essa argumentação embasava a criminalização do MCP:

A aliança estudantil-operária-camponesa foi incentada, através de métodos


de alfabetização nitidamente subversivos, onde se fazia incutir no homem
do campo o ódio de classe, inspirados na desigualdade social. Foi, dêsse
modo, promovido o incitamento da classe operária-camponesa, por meio de
campanha de alfabetização popular, cuja finalidade precípua era a
doutrinação dos princípios Markxistas-Leninistas (sic), com a incitação
constante do ódio de classe e pregação da violência, conforme se observa
pelos ensinamentos contidos na "Cartilha Proibida"[...], no "Livro de Leitura
para Adultos"[...] entre outros meios de ensinamentos subversivos
abordados no presente inquérito (IPM – UNE – UBES / Pernambuco. Op.
Cit. p. 05).

O teor da citação nos informa que para os militares, os métodos utilizados pelo MCP
fundamentavam-se, essencialmente, na sobreposição da ideologia de fundo marxista aos
processos de ensino. Para eles, os procedimentos de ensino-aprendizagem eram utilizados
como uma corrente de transmissão para a doutrinação política dos setores populares de
Pernambuco. Em matéria de agitação e propaganda, não existia nada comparável no
território brasileiro, no entendimento dos militares exposto a partir dos IPMs.

Para demonstrar concretamente o que o regime militar localizava como “subversivo”


na obra do MCP, passemos a examinar um trecho de uma “sondagem” para seleção do
corpo de professores das escolas do Movimento:

1. Assinale ao lado o que achar conveniente:


Quando você alfabetiza adultos prefere partir de:
– palavras
– sílabas
– letras, ABC. etc.
– sentenças ou frases
Por que essa preferência?
Porque acha?
mais rápido
mais interessante para os alunos

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mais fácil de ser usado pelo professor


2. Você acha que num programa de educação de
Adultos é suficiente apenas ensinar
a ler
a escrever
a cantar
ou que outras coisas acha que deve ensinar?
3. Para que você acha que serve realmente ao homem
adulto, operário, camponês, etc., saber ler e escrever?
4. Você sabe que em cada 10 brasileiros, há 6 que não sabem ler. Parece
urgente educar e alfabetizar essa grande quantidade que é a maioria do
povo.
Talvez seja difícil. Talvez seja impossível. Talvez seja desnecessário.
Talvez não seja preciso tanta pressa. Talvez não compense gastar tanto
dinheiro do país em alfabetizar adultos.
Que acha você?
5. Você acha que na maioria dos casos os operários camponeses, etc., estão
desejando alfabetizar-se?
Se desejam, por que e para que?
Se não desejam como despertar o interesse deles para isso.
6. Que acha você do andamento das coisas no Brasil?
Uns dizem que êle caminha para o desenvolvimento.
Outros: que só com a ajuda do estrangeiro poderá melhorar;
Que tudo vai bem e algo precisa mudar VOCÊ
a) que acha?
b) algo deve mudar? O que? Como?
c) Algo deve permanecer? O que? Por que?
7. Você acha que a educação de um povo ajuda a ele
Se desenvolver e a enriquecer? Por que?
8. Diga alguma das crendices ou superstições mais encontradas no pessoal
do seu lugar.
Você crê em alguma delas?
Quais?
9. Você acha que a natureza surgiu espontâneamente
ou que seu 1.º material foi criado por alguma fôrça?
Esclareça seu pensamento a esse respeito.
10. Você acredita que o homem pode modificar a natureza ou que esta é
inalterável?
11. Você acha que o homem pode desenvolver satisfatòriamente a sua própria
natureza (inteligência, sensibilidade, vontade)
– inteiramente entregue a si, sozinho?
– ou melhor quando em contato com outras pessoas?

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196 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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Por que?
12. Você acha que, havendo possibilidade, seria melhor educar ou ensinar às
pessoas.
– individualmente (uma por uma) Por que?
– em grupos. Por que?
13. Você acha necessário criar um programa de educação de adultos para
Pernambuco especialmente, ou acha mais prático trazer um, já em uso
noutro Estado e aplicá-lo aqui?
Por que?
14. Se lhe coubesse sugerir aos Pôderes Públicos medidas indispensáveis à
proteção da saúde dos habitantes de sua localidade, que sugeriria de mais
6
urgente?

Arrolada nos IPMs como único processo de seleção do professorado do MCP, os


militares utilizaram esse material para indicar que ali estava montado um sistema de
perguntas que contribuía para determinar a filiação ideológica, as convicções políticas e
suas tendências em relação ao socialismo dos futuros professores. Essa estratégia visava
demonstrar a subserviência do movimento pernambucano aos preceitos do PCB, bem como
do PCUS (Partido Comunista da União Soviética). Mas não como formuladores teóricos que
recrutavam novos militantes. Os militares entendiam o MCP, dos principais dirigentes aos
estagiários, como divulgadores das formulações teóricas definidas pelo Comitê Central do
Partido Comunista Brasileiro. Como vimos, o MCP era plural, mas essa pluralidade não foi
levada em conta na hora de nomear todo o leque da esquerda que atuava no Movimento,
como “comunista”, o que, por si, era indicativo de culpa e subversão.

Nessa perspectiva dos militares, entretanto, não existia liberdade ideológica nas
fileiras do movimento pernambucano. Todos os seus empreendimentos estavam
subordinados às necessidades e aos interesses do comunismo, cujo objetivo, segundo
argumentos constantes nos IPMs, versava em depreciar a ordem estabelecida por meio da
manipulação da alfabetização dos setores populares. No cerne dessa ideia estava a
intenção de caracterizar o processo de educação desenvolvido pelos militantes do MCP,
como uma estratégia, uma espécie de técnica criada, tão somente, para ampliar o campo de
ação da propaganda e da agitação daqueles que eram tidos como comunistas.

Cumpre-se destacar que embora esses argumentos pautados pelo anticomunismo


não fossem uma exclusividade legada ao MCP, conforme exposto pelo Cel. Ferdinando de
Carvalho na introdução ao primeiro volume do IPM-709:

6
Trecho de sondagem Apud Inquérito Policial Militar nº 709-3. O comunismo no Brasil: a agitação e a
propaganda. Op. Cit. pp. 573-575

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197 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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Não quisemos que essa investigação tivesse apenas um sentido punitivo,


uma expressão coatora, em benefício da integridade institucional do País. A
ação judicial contra elementos isolados no quadro amplo do movimento
esquerdista no País tem menos importância do que o conhecimento
acurado da técnica de ação, das bases do proseletismo, das formas sub-
reptícias das alianças criminosas que se realizam nas brechas da
legalidade, na sombra da corrupção protetora.
Estamos convencidos de que a melhor defesa contra o comunismo está na
consciência esclarecida de cada pessoa, na percepção realista das
possibilidades nacionais, no pratriotismo indeclinável que não se submete
(...) (IPM-709, vol. 1, p. 2 Apud SOUZA, 2009.)

Essa argumentação ganhou mais força nas inculpações direcionadas àquele


movimento porque as atividades por ele desenvolvidas foram encaradas pelos militares
como fruto de uma “frente-única” das esquerdas pernambucanas. Isso significava que todos
os temas trabalhados na alfabetização de crianças e adultos eram tidos como “subversivos”,
uma vez que os militares conseguiam ligar até o tema mais despretensioso a alguma
organização de esquerda, o que por sua vez eles entendiam como sendo “comunista”. De
todos os modos, os militares buscavam construir uma imagem de que o MCP tinha como
principal propósito a destruição antipatriótica, pela criação e desenvolvimento do complexo
da insatisfação, do ódio e da revolta dos setores populares.

Como prova evidente da intensa propaganda e agitação “subversiva” promovida pelo


MCP, os inquéritos arrolavam uma expressiva amostra das atividades desenvolvidas pelo
movimento pernambucano. Nelas, tentou-se demonstrar os pormenores do trabalho que
visava, na ótica expressa pelos inquéritos, o persistente e inflexível intuito de moldar as
mentes dos trabalhadores rurais e urbanos analfabetos da sociedade pernambucana.
Vejamos uma dessas atividades, bem como os argumentos utilizados para criminalizá-la:

1 Risque o que você achar certo.


a) Povo é tôda a população de um país.
b) Povo são apenas aquelas pessoas produtoras de bens materiais.
c) Povo é a classe social econômicamente elevada.
d) Povo é o conjunto de classes, camadas e grupos sociais empenhados na
solução objetiva das tarefas de desenvolvimento progressista do país em
que vive.
2. Assinale o que achar correto:
O Brasil é um país:
( ) Desenvolvido
( ) Independente
( ) Socialista
( ) Agrícola
( ) Dependente econômicamente
( ) Subdesenvolvido
( ) Capitalista

1. Que significam essas iniciais:


SESP

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198 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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CONSINTRA
EEUU
SUPRA
SUDENE
URSS
IAA
IAPI
UNE
CODEPE
SAI
2. Numere a segunda coluna de acôrdo com a primeira
(01) Democracia ( ) Govêrno de uma classe
(02) Reforma de Base ( ) Grupo de pressão popular
(03) Revolução ( ) Forma de governo
(04) CGT ( ) Govêrno do Povo
(05) IBAD ( ) Partido político
(06) PTB ( ) Mudança lenta de estrutura
(07) Presidencialismo ( ) Grupo de pressão internacional
(08) Ditadura ( ) Transformação parcial da estrutura
(09) Evolução ( ) Obstáculo ao desenvolvimento do país
(10) Imperialismo ( ) Transformação rápida da estrutura (...)

Vale a pena destacarmos mais uma vez essa atividade dentre todas as que foram
arroladas pelos IPMs. A partir dela, observamos com mais nitidez o distinto caminho trilhado
pelas interpretações que os militares desenvolviam acerca do comunismo e seus objetivos
nas obras do MCP. Analisemos as inculpações:
Essa prova, demonstra em seu texto claro, o sentido político subversivo do
Movimento de Cultura Popular, em virtude da base esquerdista e comunista
do seu material e dos seus processos de ensino.
A terminologia usada, as definições sugeridas, as idéias que procura
desenvolver, os assuntos encarados, todos os aspectos, em suma, que
podemos encontrar nesse documento significativo demonstra a sua
vinculação comunista (...) (Atividade do programa educacional do MCP
Apud IPM 709-3. Op. Cit., p.570 -572).

Conforme indica essa citação, não havia nenhum tipo de tergiversações. Todos os
argumentos procuravam associar as atividades do MCP ao comunismo, sinônimo de traição,
crime de lesa-pátria e subversão da ordem social e das tradições “cristãs”. O documento
analisado pelos militares mudava, mas a interpretação, como algo já viciada, era a mesma –
o MCP era um instrumento da propaganda ideológica comunista. E foi nesse sentido que as
resoluções dos inquéritos caminhavam. Na ótica dos militares, as condições de atraso e
pauperismo da Região Nordeste contribuíam para a infiltração das ideias bolchevistas no
território brasileiro. Sendo necessário barrar toda e qualquer experiência que contribuísse
para “insuflar um ideal revolucionário” nos setores menos abastados daquela sociedade.
Desse modo, cortar os laços de uma determinada intelectualidade de esquerda com os
setores populares fazia-se imprescindível ao projeto levado a cabo pelo Golpe Civil-Militar
em 31 de março de 1964. No próximo item, analisaremos, pormenorizadamente, a

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199 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014

estratégia encampada pelos militares no sentido de associar os projetos e as atividades do


MCP àquilo que eles entendiam como “frente única das esquerdas pernambucanas”.

Os militares e o temor do “Zé Ninguém”


Para os militares, uma coisa lhes parecia certa, o “processo de comunização”
dependia de um pressuposto básico: a organização das camadas populares. Desse modo,
não cabia entender os projetos do MCP em termos lógico-formais. O que lhes interessava,
ao fim e ao cabo, era barrar os projetos cuja finalidade era fortalecer os anseios de mudança
das camadas oprimidas política e socialmente pela ordem vigente à época.

Como consequência da perspectiva de que a organização das massas era a


premissa básica para a “comunização”, os empreendimentos do MCP eram pensados e
interpretados a partir de uma ideia central. Os projetos educativos eram tidos como
exemplos de atividades que visavam à implantação de uma sociedade “comunista”. Nessa
chave de interpretação, o MCP teria como ponto de partida organizar sistemas e
sistematizar ideias, cuja finalidade seria colocar as camadas populares nas mãos dos
“emissários dos interesses do comunismo internacional”, sejam eles instituições, partidos
políticos ou qualquer outra organização de esquerda. Ou seja, os militantes em cultura
daquele movimento trabalhavam como agentes de controle ideológico, como reguladores de
valores e conhecimentos, cuja função era ratificar tudo aquilo que servisse ao ideário de
dominação política, econômica e social daqueles que eram entendidos como “comunistas”.

Dito isso, vale a pena entendermos essa leitura realizada pelos militares a partir dos
próprios empreendimentos do MCP. Para esse fim, vejamos o que versava seu hino,
simbólica fonte das principais diretrizes seguidas pelo movimento.

Onde homens houver que não saibam


O que a todos se deve ensinar,
um punhado de luz lavaremos
porque a Pátria nos manda levar.
Luta vã não será nossa luta,
oh! Humildes obreiros da paz,
pois, se a infância de luz não tivestes,
mesmo tarde uma infância se faz.

Côro Desde os cerros longínquos ao mangue,


vêde um povo aprendendo, de pé,
uma língua de heróis, esta língua
com seus cantos de luta e de fé

Este canto é de quantos desejam


uma Pátria celeiro de luz.
Uma terra sem campos de fome,
mas, de fortes à sombra da cruz.
É um grito de fé aos que dormem,

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200 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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esquecidos de um povo que sua


ao encontro de pão, que não acha,
e à procura de um lar pelas ruas.

Côro Desde os cerros longínquos ao mangue, etc...

Mas, se um dia, as falanges do mal


Contra nós suas armas mover,
Por maior que se faça em perfídia
Não nos pode um covarde vencer.
Somos raios na luta e na paz,
- homens de aço de luzes na mão -,
Ao marchar a cultura levamos,
Popular e sublime à Nação. [...]

Ao desdobrar concretamente as questões implícitas a essa poética, observamos tudo


quanto, ironicamente, os militares condenavam como “inspiração comunista” nas atividades
desenvolvidas pelo MCP. O principal ponto a se destacar seria o esforço de repor uma
educação verdadeiramente democrática no circuito normal da vida dos setores menos
abastados da sociedade pernambucana, cujo objetivo seria a melhoria das condições de
vida das camadas populares em detrimento dos privilégios da ordem estabelecida. Ou seja,
pensar a educação como a principal engrenagem para solucionar os problemas com que se
defrontava a subdesenvolvida sociedade pernambucana de meados do século XX.

Desse modo, ao considerar o relevante papel desempenhado pelos


empreendimentos do MCP no sentido de organizar as camadas populares criticamente, os
militares o elevaram a categoria de peça fundamental no processo de preparação da mais
ampla unidade de todas as forças que desejavam lutar por uma sociedade que refletisse as
aspirações de mudança do povo. Neste sentido, ajudaram, involuntariamente, a consolidar a
memória de um movimento cultural orgânico, coeso e convergente ideologicamente, sem
divisões internas, ideia esta que procuramos matizar ao longo desse artigo. Dessa forma, o
caráter “subversivo” que levou o MCP a ser temido e incriminado pelos militares
conservadores foi a sua orgânica ligação com as camadas populares encaradas como uma
notável potencia revolucionária no contexto político e social pernambucano. Na visão da
repressão, extinguindo-se a ação cultural sobre as massas, os conflitos e desníveis sociais
deixariam de ser percebidos como foco de instabilidade política e social. Neste sentido, os
militares também não teriam supervalorizado a cultura como produtora da ação política, tal
como os “esquerdistas” que tanto temiam?

Referências

1) Fontes

Autos do IPM UNE – UBES/PERNAMBUCO. V. Iº/5. 1965.

ISBN: 978-85-62707-55-1
201 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014

Inquérito Policial Militar nº 709-3. O comunismo no Brasil: a agitação e a propoganda. Rio de


janeiro: 3.v. Biblioteca do Exército editora, 1967.

2) Bibliografia

BARRETO, Túlio Velho; FERREIRA, Laurindo. (Orgs.). Na trilha do golpe: 1964 revisitado.
Recife: Massangana, 2004.

CZAJKA, Rodrigo. Os IPMs e a construção da subversão nos meios intelectuais no Brasil.


In: REIS FILHO, Daniel Aarão; ROLLAND, Denis (Orgs.). Intelectuais e modernidades. Rio
de Janeiro: FGV, 2010, p. 223-246.

Dicionário histórico brasileiro pós-1930, 2. Ed., Rio de Janeiro, FGV, 2001 apud CZAJKA,
Rodrigo. “A LUTA PELA CULTURA”: Intelectuais comunistas e o IPM do PCB. In:
Napolitano, Marcos; CZAJKA, Rodrigo;

Marionilde Dias Brepohl. A lógica da suspeição: sobre os aparelhos repressivos à época da


ditadura militar no Brasil. Revista Brasileira de História, vol. 17, nº 34, São Paulo, 1997.

MOTA, Rodrigo Patto Sá. (Orgs.). Comunistas brasileiros: cultura política e produção
cultural. Belo Horizonte: EDUFMG, 2013, v. 1, p. 247.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o “Perigo Vermelho”: o anticomunismo no


Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva, FAPESP, 2002.

RIBEIRO, David. Da crise política ao golpe de estado: conflitos entre o poder executivo e o
poder legislativo durante o governo João Goulart. 2013. 231 f. Dissertação (Mestrado em
História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, São Paulo. 2013.

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A disputa pelo significado de guerrilha durante os governos militares brasileiros


(1964-1985): considerações preliminares

Fabrício TREVISAN
Mestre em História pela UNESP-Franca
fabricio_trevisan@yahoo.com.br

O presente texto tem por objetivo contribuir com estudos e pesquisas acerca da
reconstrução do passado recente do Brasil, especialmente no que condiz ao período dos
governos militares brasileiros (1964-1985). A temática de assuntos relacionados com Estado
autoritário que vigorou no país por mais de vinte anos, especificamente em relação à
preservação da memória de indivíduos que foram alvos da repressão e sofreram com a
tortura, bem como, aos familiares que reivindicam os desaparecimentos e/ou mortes de
entes queridos, está em voga atualmente. Podemos elencar diversos fatores que
contribuíram para tornar esta discussão sempre presente: a ascensão à presidência da
República de Dilma Rousseff, ex-guerrilheira da Vanguarda Armada Revolucionária-
Palmares (VAR-Palmares); a constituição de núcleo de preservação da memória dos que
lutaram contra os militares, em parceria com o Arquivo Nacional, denominado Centro de
Referência das Lutas Políticas no Brasil – “Memórias Reveladas”; a instituição da Comissão
Nacional da Verdade (CNV) que irá trabalhar no sentido de elucidar (e não punir) violações
dos Direitos Humanos por órgãos governamentais de 1946 a 1988, com ênfase no períodos
dos governos militares brasileiros; e a reestruturação dos prazos de disponibilização de
documentos considerados “secretos” oriundos dos órgãos de repressão e informação
durante o regime militar.

Acrescentamos a questão da popularização de Carlos Marighella, um dos principais


líderes da guerrilha, por meio de filmes e canções, tais como um documentário sobre a vida
do ex-guerrilheiro lançado em agosto de 2012, bem como o rap “Mil Faces de Um Homem
Leal – Marighella” do grupo Racionais Mc’s. Com a democratização da Internet, a
divulgação de materiais como este se tornou mais abrangente, portanto contribuindo para
um maior acesso de informações, geralmente não transmitidas por veículos de comunicação
tradicionais. Por outro lado, em relação à disponibilização dos arquivos, há uma
determinada resistência por parte de setores das Forças Armadas no sentido de emperrar a
abertura de arquivos específicos, provavelmente, os que contém informações que podem
apontar aspectos que desagradariam os militares, no sentido de expor nomes de oficiais
ainda vivos envolvidos em crimes considerados como violação dos Direitos Humanos.
Ainda, notamos que determinados segmentos da sociedade civil procuram relativizar os
crimes cometidos durante a ditadura, como, por exemplo, o texto da “ditabranda” publicado

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203 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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no editorial1 do jornal Folha de São Paulo, em fevereiro de 2009. O tema era sobre Hugo
Chávez e seu poder no controle do Estado venezuelano, o qual foi comparado com os
governos militares no Brasil, classificando-os e equivalendo-os como “ditabrandas”,
expondo, de certa maneira, a versão oficial dos militares em relação às atitudes tomadas
pelo regime.

Mais recentemente, uma estudante de Direito, ex-militante do partido Democratas


2
(DEM) , pretendeu (re)fundar a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) com intuito de elevar
a moral da política brasileira e criar um espaço de união para eleitores “nacionalistas e
conservadores”3, os quais, atualmente, não conseguem se identificar ideologicamente com
outros partidos. De qualquer forma, a divulgação de tais documentos proporcionariam uma
possível investigação (objetivo da CNV) e punição de prováveis culpados e, no âmbito
acadêmico, novas abordagens nos estudos inéditos e circunstanciais sobre o período. Como
historiadores, compreendemos a importância de debater e discutir um “passado que não
passa” como indagou Hugo Vezzetti (2009) devido a assuntos considerados “pendentes”
relacionados a história recente de nosso país, como por exemplo a temática levantada por
nossa pesquisa.

Neste sentido, a disputa pelo significado de guerrilha inflama debates na sociedade.


A discussão gira em torno no sentido de caracterizar se os indivíduos que lançaram mão da
luta armada contra a ditadura eram guerrilheiros ou terroristas. Convém notar que, nos anos
dos governos autoritários militares, o termo guerrilheiro comportava significados diferentes.
Para os adeptos da esquerda, ser guerrilheiro era bom; tinha conotação de pessoa
comprometida com a democracia, alguém disposto a se sacrificar pelo país. Já o governo
instituído tentava associar guerrilha à violência, ao terror. Atualmente, a dita direita venceu a
disputa pelo imaginário do termo, já que a opinião pública agora equipara guerrilheiros a
terroristas. Sendo assim, de nada adianta os membros das Forças Armadas Revolucionárias
da Colômbia, as FARCs, por exemplo, insistirem em afirmar que são guerrilheiros e não
terroristas, uma vez que a sociedade em geral equivale os termos. Salientamos que não
estamos, de modo algum, julgando e/ou defendendo a atuação das FARCs, apenas
enfatizamos esse exemplo para explicitar a atualidade do tema do qual tratamos e, mais
uma vez, demonstrar como as questões do historiador partem de seu presente.

1
O editorial da Folha de São Paulo não leva a assinatura de nenhum jornalista específico, portanto a
opinião é oriunda de toda a redação, ou melhor, da cúpula política-administrativa do jornal.
2
Torna-se necessário frisarmos que a essência político-partidário do DEM é oriundo da própria
ARENA. Este último foi o partido de sustentação do regime militar.
3
O “nacionalismo conservador” foi representado pelo Partido de Reedificação da Ordem Nacional
(PRONA) de caráter fascista por volta de 20 anos no Brasil.

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Os governos militares brasileiros tiveram início em 1964, por um golpe de Estado (o


então presidente civil e eleito democraticamente João Goulart foi deposto) conduzido por
militares com respaldo de setores civis, como empresários e tecnocratas (DREIFUSS,
1981). O Estado brasileiro foi dominado pelas Forças Armadas (ao todo foram cinco
governos presididos por generais do Exército) até 1985. Para compreendermos a
problemática que envolve o golpe de Estado de 1964, devemos nos remeter à conjuntura
sociopolítica de instabilidade que o Brasil atravessava no início do decênio de 1960. A
tensão sociopolítica que pairava sobre a nação era alimentada pela influência externa,
disputas estratégicas e conflitos indiretos exercidos pela União Soviética e pelos Estados
Unidos na chamada Guerra Fria; e, principalmente, pelas transformações ocorridas na
mentalidade das Forças Armadas englobando o seu próprio modus operandi perante a
política, bem como a sociedade civil. Tais transformações foram inspiradas a partir do
convívio do Exército brasileiro com o Exército estadunidense durante a II Guerra Mundial.

Assim, podemos transpor a teoria em nosso contexto do golpe de Estado


comandado pelas Forças Armadas e, consequentemente, a institucionalização ocorrida no
decorrer dos governos militares brasileiros. O aperfeiçoamento jurídico do regime para
incluí-lo na legalidade, garantindo assim, legitimidade perante a sociedade civil foi,
basicamente, realizado por meio de Atos Institucionais - AI(s) e Atos Complementares -
AC(s) na Constituição vigente. No entanto, os que tentassem suplantar as fronteiras
jurídicas eram transportados para um espaço “inconscientemente” institucionalizado pelas
mesmas – a tortura física e mental dos considerados subversivos4.

Retomando à temática do golpe de Estado em si, faz-se necessário abordarmos as


principais causas de seu acontecimento e, consequentemente, versar sobre a confluência
entre militares e segmentos da sociedade civil na participação do ato ocorrido em 1964. Tais
características estão intrinsecamente conectadas com o profissionalismo da “nova carreira
militar”.

Sobre o assunto, a cientista política Maria Helena Moreira Alves (1984), em sua obra
intitulada Estado e Oposição no Brasil (1964-1984), revela-nos que a composição de
recursos para a constituição do Estado militar estava sendo desenvolvida há tempos no
âmago das Forças Armadas nacionais. No exórdio do decênio de 1960 foi organizada uma
complexa estrutura de coleta de informações, tanto por instituições civis, tais como o
Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática

4
Qualquer ação oriunda de apenas um único indivíduo ou um grupo que pudesse se tornar pública a
fim de descaracterizar o governo, na concepção do mesmo, era considerado como um ato
subversivo, uma subversão. Dessa forma, portanto, após o golpe de Estado em 1964, toda e
qualquer pessoa poderia ser considerada como um “subversivo em potencial”, sendo sujeito à prisão
e, se necessário, à tortura e à coerção.

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205 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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(IBAD); como por organizações militares, tal como a Escola Superior de Guerra (ESG). Este
esquema tinha o intuito de aperfeiçoar, cada vez mais, a Doutrina de Segurança Nacional
(DSN).

A DSN possibilitou subsídios para a sustentação do Estado militar, tendo como maior
expressão nacional o general Golbery do Couto e Silva, coordenador responsável pela
principal tarefa atribuída ao complexo ESG/IPES/IBAD: a de criar e implantar eficazes redes
de informação consideradas imprescindíveis para a instalação de um Estado centralizado e
que estivesse de acordo com os novos preceitos militares. Golbery foi apontado por Alves
(1984: 35-46) como o mais influente teórico brasileiro do Exército. Em suas obras,
grandemente utilizadas pela ESG, o general desenvolveu o conceito de vários tipos de
guerras, preocupando-se em compor estratégias que informassem a melhor maneira de
lutar contra os “inimigos internos” e a “pressão psicológica” (SILVA, 2001, p.105).

O golpe civil-militar de 1964 teve considerável oposição, materializada e ramificada no


movimento estudantil, sindicatos, partidos clandestinos e organizações guerrilheiras. No
entanto, toda oposição aos governos militares é considerada, neste trabalho, como parte da
esquerda nacional, independente das concepções políticas dos grupos que as tenham
efetuado. Explica-se: por mais que uma seção da oposição não estivesse conectada com o
ideário de valores tipicamente comunistas ou com ideologia similar, a conjuntura global, que
obviamente influenciava o contexto brasileiro das décadas de 60, 70 e 80 do século XX, era
bipolarizada entre a União Soviética e os Estados Unidos. Em vista disso, para a
participação efetiva do processo político, era necessário escolher um caminho: ou de
esquerda, ou de direita. Levando em consideração essa bipolarização para a sociedade
nessa época de controle militar do Estado brasileiro, a oposição ao regime era de esquerda,
e os que o apoiavam eram de direita. Não pretendemos, nem vamos apresentar um longo
debate acerca dos conceitos direita e esquerda, entretanto consideramos necessário tecer
algumas considerações que vão ao encontro de Norberto Bobbio (1995, p.31):

“Direita” e “esquerda” são termos antitéticos, reciprocamente excludentes e


conjuntamente exaustivos. São excludentes no sentido de que nenhuma
doutrina ou nenhum movimento pode ser simultaneamente de direita e de
esquerda. E são exaustivos no sentido de que, ao menos na acepção mais
forte da dupla, uma doutrina ou um movimento podem ser apenas ou de direita
ou de esquerda.

Consideramos que o significado de uma palavra ultrapassa o conjunto de um simples


conceito, sendo assim visualizamos a temática guerrilha além da definição linguística do
termo. Em nossa opinião, a guerrilha deve ser estudada enquanto discurso, ou seja, como

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parte de uma construção histórica na qual diferentes grupos disputaram a propagação de


suas opiniões como verdadeiras. Foi a partir dessa disputa de significados entre oposição e
governo que queremos compreender o imaginário político da época em questão.

No tocante ao arco temporal, a disputa pelo significado de guerrilha na esfera do


imaginário político, pois é neste momento, de 1964 a 1969, durante os governos dos
marechais Humberto de Alencar Castello Branco e Arthur da Costa e Silva, que o governo
civil-militar promoveu uma série de procedimentos (contra atos ditos subversivos), tais como
prisões arbitrárias de importantes líderes políticos, estudantes e sindicais; censura entre os
meios de comunicação; proibição de manifestações contra o governo; dentre outros, a fim
de não permitir que a sociedade pudesse obter conhecimento da existência de uma
quantidade considerável da população brasileira que era contrária aos rumos que o governo
conduzia o país. Em contrapartida, a oposição (os que não foram presos nos primeiros
momentos após o golpe) tentava se rearticular após serem tomados “de surpresa” pelo
movimento civil-militar golpista.

A disputa pelo significado de guerrilha pode ser percebida, em nossa opinião, por meio
do embate discursivo entre a direita e a esquerda, não apenas durante os governos de
Castello Branco (1964-1967) e Costa e Silva (1967-1969), mas durante todo o período em
que o militarismo esteve no controle do Estado brasileiro. No entanto, faz-se essencial
endossar que ambos os grupos políticos carregaram uma densa pluralidade de aspectos,
elementos e sentidos que não nos permitem, como já apontado acima, categorizá-los
apenas como ideológicos. Logo, o objetivo de nossa pesquisa é analisar a incompatibilidade
de identidade entre a tradição rural representada pela teoria da guerrilha no campo e as
práticas urbanas dos guerrilheiros no Brasil pós-64.

A documentação selecionada e investigada, visando atender nossos objetivos, foi


composta por três grandes partes organizadas: 1) o corpus documental que nos permite
analisar os significados de guerrilha difundidos pela esquerda (organizações armadas de
oposição ao governo); 2) o testemunho que revela as concepções de guerrilha propagados
pela direita (governos militares instituídos em 1964); e 3) as fontes que informam sobre as
ideias de ambos os grupos.

Em relação às concepções da esquerda, temos acesso a diversos textos compostos


pelo conhecido militante Carlos Marighella. Dentre eles, há o Manual do Guerrilheiro
Urbano, escrito e “publicado” (mimeografado) clandestinamente em 1969. Nesse manual,
Marighella propõe diretrizes a serem seguidas por guerrilheiros essencialmente urbanos,
principalmente àquelas relacionadas à ideologia, ao modo de vida citadino, à subsistência, à
preparação técnica dos membros, bem como da utilização das armas. Por meio das

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207 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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diversas informações contidas nesse manual é que acreditamos poder compreender a


identidade própria da guerrilha em manifestações urbanas. Além disso, podemos inferir
sobre a dicotomia entre o discurso teórico e a prática política da esquerda armada nacional
que possuía o intuito de derrubar os militares do governo do país.

Outro livro que demonstra as concepções da esquerda sobre a conjuntura da época


são os Escritos de Carlos Marighella, publicado em 1979 pelo extinto Editorial Livramento,
que reúne uma compilação de textos do mesmo autor. Este livro tem em seu conteúdo
textos de temáticas diversas, mas com um mesmo propósito: denunciar os malefícios
(segundo o autor) da ditadura – em sua esfera interna e externa – explicitando suas causas
e quem, supostamente, estaria dando sustentação para o regime. Outra temática abordada
neste livro pelo ex-militante da ALN também demonstra quais os meios e métodos (luta
armada e guerrilha) eram necessários para derrubar a “gorilada” – termo usado por
Marighella ao se referir aos militares governistas.

Não temos conhecimento do critério para a escolha de determinados escritos nessa


compilação, entretanto, em nossa interpretação, afirmamos que o mais importante em 1979
não era escolher a temática “X” ou “Y”, mas sim divulgar a maior quantidade de material da
esquerda possível, uma vez que esses estudantes não obtinham em mãos uma gama
espessa de textos devido à repressão e a censura impostas pelo governo.

Sendo assim, percebemos que Marighella faz considerações acerca do momento


político e socioeconômico que o Brasil atravessava nas décadas do militarismo e sugeriu
soluções para o que ele entendia como “crise” por meio da luta armada contra o Estado
militar. Em síntese, em toda a sua obra, Carlos Marighella afirma que o sistema capitalista
era o “grande mal” e deveria ser substituído pelo socialismo sendo que, naquele momento, a
derrubada da ditadura era imprescindível para alcançar o êxito proposto por meio de ações
armadas via guerrilha.

Quanto à documentação proveniente da direita, selecionamos os discursos,


pronunciamentos e entrevistas dos cinco presidentes militares, a saber: o marechal
Humberto de Alencar Castello Branco (1964-1967), o marechal Arthur da Costa e Silva
(1967-1969), o general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), o general Ernesto Beckmann
Geisel (1974-1979) e o general João Batista de Oliveira Figueiredo (1979-1985) – todos
procedentes do Exército Brasileiro.

Ainda como hipótese-investigativa desse estudo, pretendemos demonstrar um aspecto


específico por meio de uma branda comparação. Apesar dos documentos oriundos da
direita serem do mesmo contexto histórico da esquerda, os militantes oposicionistas tinham
pela frente inúmeros obstáculos devido a censura e repressão do governo; sendo assim, o

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material proveniente da esquerda não tinha a mesma divulgação e disseminação dos


discursos presidenciais. Em nossa interpretação, o poder de fogo da esquerda em relação à
divulgação e propagação de sua ideologia era ínfimo. A diferença em relação à direita (o
governo civil-militar e seus aliados e simpatizantes) era gritante, como já mencionado acima.

Assim, trabalhar com os escritos oriundos da esquerda, os quais foram compostos


pelos seus próprios militantes (no nosso caso Carlos Marighella), impõe um cuidado maior –
uma preocupação cautelosa e extremamente específica com essa singularidade que o
documento traz em relação a sua origem (quando foi escrito), sua impressão (a obtenção de
um local seguro em que haja uma máquina que se possa utilizar, de preferência sem custos
ou de baixo custo) e, posteriormente, a divulgação, propagação e recepção desse material –
justamente no sentido de tentar divulgar ao máximo, visando ampliar seu poder de alcance.

Dessa forma, temos consciência de que se trata de documentos carregados de


ideologia – assim como todos os são; entretanto, somente o discurso da esquerda ficou
conhecido por seu alto teor panfletário. Faz-se necessário apontar que também
classificamos os discursos dos “generais-presidentes” como panfletagem, no entanto, este
termo é mais comumente utilizado quando se trata da propaganda procedente da esquerda.
Acreditamos que todos os documentos históricos devam ser analisados com cautela, visto
que são imbuídos de opiniões e ideias de seus autores. A propaganda de determinada
concepção e a estratégia de convencimento de um discurso é perceptível em vários
documentos e não somente daqueles produzidos pela esquerda.

Interpretamos nossa documentação como discurso, pois se trata de um conteúdo de


carga ideológica de cada grupo (direita e esquerda). Os grupos são formados por indivíduos
que carregam um complexo de ideias, opiniões, valores e que, enquanto confraria,
concretizam as relações que fortalecem a convergência a um determinado grupo
sociopolítico e cultural. Portanto, o conteúdo ideológico presente em discursos por nós
utilizados, manifestando-se no ideário de cada agremiação, assume uma função de tentativa
de subjugação simbólica. Neste sentido, Helena Hathsue Nagamine Brandão (2004, p.28-
29) reforça nossa concepção ao ponderar sobre a legitimidade almejada para consolidar o
exercício de autoridade de cada grupo. Sobre esta correlação de forças, destacamos:

A linguagem enquanto discurso não constitui um universo de signos que


serve apenas como instrumento de comunicação ou suporte de
pensamento; a linguagem enquanto discurso é interação, e um modo de
produção; ela não é neutra, inocente e nem natural, por isso o lugar
privilegiado de manifestação da ideologia. [...] a linguagem é lugar de
conflito, de confronto ideológico, não podendo ser estudada fora da
sociedade, uma vez que os processos que a constituem são histórico-
sociais (Brandão, 2004, p.11).

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Todavia, apesar de nos referirmos ao termo discurso, convém informar que não
pretendemos fazer análise do discurso propriamente dita. Consideramos algumas de suas
abordagens oriundas do alongamento do debate sobre análise do discurso e atualmente
consideradas com a denominação genérica de análise de conteúdo, expressão que
incorpora elementos para além da Linguística.

Com o intuito de atingir o objetivo proposto consideramos que a análise da


documentação necessita de um suporte metodológico. O respectivo apoio é proveniente da
análise de conteúdo, pois esta proposta desenvolve um conjunto de instrumentos
metodológicos e possibilidades de técnicas, em constante aperfeiçoamento, que se aplicam
a discursos extremamente diversificados, como no presente estudo. Dessa forma, nossa
documentação concebe uma multiplicidade de discursos, pois, como apontado, trabalhamos
com os discursos oficiais dos presidentes, textos oriundos da esquerda e um processo-crime
que abarca distintas concepções por um viés absolutamente singular. Segundo Laurence
Bardin (2002: 10) a Análise de Conteúdo auxilia o investigador, em nosso caso historiador,
no esforço de interpretação de qualquer mensagem, pois “qualquer comunicação, isto é,
qualquer transporte de significações de um emissor para um receptor, controlado ou não por
este, deveria poder ser escrito, decifrado pelas técnicas de análise de conteúdo” (Bardin,
2002: 32. Grifo nosso).

Ressaltamos no excerto supracitado a possibilidade de influência na transmissão de


uma mensagem. Sobre essa intenção de controle discursivo, duas são as preocupações
gerais: “o número de pessoas implicadas na comunicação e a natureza do código e do
suporte da mensagem” (Bardin, 2002, p.33). Dessa maneira, deferindo ao sugerido pelos
estudos da análise de conteúdo, dividimos os discursos presidenciais em quatro tipos,
atendendo às categorias propostas por uma das técnicas dessa metodologia: a análise
categorial.

A técnica consiste em classificar os diferentes elementos nas diversas


gavetas segundo critérios suscetíveis de fazer surgir sentido capaz de
introduzir uma certa ordem na confusão inicial. É evidente que tudo
depende, no momento da escolha dos critérios de classificação, daquilo que
se procura ou que se espera encontrar (Bardin, 2002, p.37).

Como “critério de classificação”, propomos as seguintes categorias de conformidade


com o público alvo: 1) a nação, ou seja, a sociedade em geral; 2) aos militares, ou seja,
qualquer grupo de oficiais das Forças Armadas; 3) a administração, ou quaisquer grupos

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ligados ao governo federal, estadual ou municipal, tais como o Congresso Nacional e as


assembleias legislativas estaduais; e 4) a um público específico, tal como a população de
algum determinado município, um discurso em alguma ocasião festiva (como o aniversário
de uma empresa) ou a fala destinada aos funcionários de certa instituição.

Compreender para quem se fala é importante para analisarmos as concepções de


guerrilha, uma vez que, parece-nos óbvio, aquele que fala pretende estabelecer certa
comunidade de sentido em nome da compreensão. Assim, um “general-presidente” não
falará da mesma forma em um pronunciamento a nação e em um discurso em um clube
militar, por exemplo.

O espaço de disputa entre a direta e a esquerda (via discurso) se dá pelo imaginário.


O imaginário se caracteriza como um conceito plural (podendo haver diversos
“imaginários”), cujas representações políticas disputam a supremacia ou soberania
simbólica, pois as representações tendem a ser “universais”. Neste sentido, Bronislaw
Baczko (1985, p.310) afirma que “o imaginário social é, pois, uma peça efetiva e eficaz do
dispositivo de controle da vida coletiva e, em especial, do exercício da autoridade e do
poder. Ao mesmo tempo, ele torna-se o lugar e o objeto dos conflitos sociais”.

Dessa forma, encontramos um ponto crucial na questão do imaginário: a legitimidade


do poder. Como mencionamos acima, para exercer domínio sobre um determinado grupo
social (através dos discursos), é imprescindível ter um posicionamento respaldado pela
sociedade, pois

O poder tem necessariamente de enfrentar o seu arbitrário e controlá-lo


reivindicando uma legitimidade [...] O poder estabelecido protege a sua
legitimidade contra aqueles que a atacam, quanto mais não seja pondo-a
em dúvida. Imaginar uma contra-legitimidade, um poder fundado numa
legitimidade diferente daquela que se reclama a dominação estabelecida, é
um elemento essencial do acto de pôr em causa a legitimidade do poder.
Estes conflitos só são “imaginários” no sentido em que tem por objecto o
imaginário social, ou seja, as relações de força no domínio do imaginário
colectivo, e em que exigem a elaboração de estratégias adaptadas as
modalidades específicas desses conflitos (Baczko, 1985, p.310).

Diante do exposto, podemos compreender que o imaginário cria espaços de disputas


por um determinado significado (conceito) o que, em nosso trabalho, corresponde ao
conceito de guerrilha que tanto a esquerda como a direita defrontaram-se através dos
discursos e por confrontos diretos, a fim de exercer influência perante a sociedade. Portanto,
essa disputa pelo imaginário acarreta a formação de específicas culturas políticas, as quais
são perceptíveis a partir de atores sociais e políticos (individuais e coletivos) que vivem em

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constante estado de correlação de forças. Tal embate almeja a imposição de sua vontade a
outras pessoas e grupos políticos.

Em contextos e fenômenos políticos particulares, a soma dessa correlação de forças –


expressas nas mais diversas formas de representações verbais, discursivas, iconográficas,
gestuais, etc. – formariam, assim, a cultura política de uma determinada época e contexto
histórico. Em outros termos, a Cultura Política passou a ser entendida, segundo Ângela de
Castro Gomes (2005, p.29), como uma

[...] compreensão dos sentidos que um determinado grupo (cujo tamanho


pode variar) atribui a uma dada realidade social, em determinado momento
do tempo. Um conceito capaz de possibilitar a aproximação com uma certa
visão de mundo, orientando as condutas dos atores sociais em um tempo
mais longo, e redimensionando o acontecimento político para além da curta
duração.

Gomes (2005, p.28) acredita que o conceito de cultura política concebe uma
considerável abrangência de interpretações e explicações das concepções políticas de
“atores individuais e coletivos, privilegiando suas percepções, suas lógicas cognitivas, suas
vivências, suas sensibilidades”.

Dessa forma, portanto, a Cultura Política pode se manifestar de maneira concreta por
meio de projetos de sociedade, projetos de Estado, pela leitura compartilhada de um
passado comum ou pelo posicionamento em relação às culturas políticas estrangeiras.
Metodologicamente, o documento passa a ser visto como outro acontecimento, uma
materialidade construída por camadas sedimentares de interpretações, tornando-se um
objeto histórico discursivamente construído, influenciado pela intervenção subjetiva de seu
narrador.

O conceito de Cultura Política ganhou novos horizontes, abarcando de forma mais


complexa as relações sociais e as relações de poder, próprias da dinâmica social, sendo a
cultura política definida genericamente como um sistema de representações que permite ao
pesquisador a compreensão dos sentidos que um determinado grupo atribui ou atribuiu à
sua realidade social.

Este sistema de representações é concebido como um elemento construído ao longo


do tempo, com especificidades cronológicas próprias e únicas, e que não exclui a
possibilidade de mudanças em sua sistêmica, dada as transformações materiais, relacionais
e até tecnológicas que podem ocorrer na realidade social vivida.

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Enfim, apontamos neste trabalho concepções preliminares do que pretendemos


desenvolver em nossa pesquisa, o que é caracterizada pela disputa de significados de
guerrilha entre a direita e a esquerda, disputa esta caracterizada, mais especificamente pela
construção dos significados, e não propriamente um confronto prático.

Referências

1) Documentação

Discursos, pronunciamentos e entrevistas dos presidentes Humberto de Alencar Castello


Branco (1964-1967), Arthur da Costa e Silva (1967-1969), Emílio Garrastazu Médici (1969-
1974), Ernesto Beckmann Geisel (1974-1979) e João Batista de Oliveira Figueiredo (1979-
1985). – Arquivo da Biblioteca do Planalto (Brasília/DF).

MARIGHELLA, Carlos. Escritos de Carlos Marighella, São Paulo: Editorial Livramento, 1979.

MARIGHELLA, Carlos. Manual do Guerrilheiro Urbano, São Paulo, 1969 (Documento


digital).

2) Bibliografia

ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984), Petrópolis: Vozes,
1984.

BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social. Enciclopédia Einaudi (Anthropos-Homem), Lisboa:


Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985.

BARDIN, Laurence. Análise do Conteúdo, Lisboa: Edições 70, 2002.

BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política, São
Paulo: Editora UNESP, 1995.

BRANDÃO, Helena Hathsue Nagamine. Introdução à análise do discurso, Campinas:


Unicamp, 2004.

DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de
classe, Petrópolis: Vozes, 1981.

GOMES, Ângela de Castro. História, historiografia e cultura política no Brasil: algumas


reflexões. In: BICALHO, Maria Fernanda Baptista, GOUVÊA, Maria de Fátima Silva;
SOIHET, Rachel. Culturas Políticas. Ensaios de história cultura, história política e ensino de
história, Rio de Janeiro: MAUAD, 2005.

SILVA, Márcia Pereira da. Em busca do sonho: História, Juventude e Repressão. Franca,
1960-1970, Montes Claros: Unimontes, 2001.

VEZZETTI, Hugo. Sobre la violencia revolucionaria: memórias y olvidos, Buenos Aires: Siglo
Veintiuno, 2009.

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Memória de segunda geração no documentário brasileiro recente

Fernando SELIPRANDY
Doutorando em História social pela USP
seliprandy@usp.br

Estas análises partem da constatação de que, desde 2010, começam a surgir no


Brasil alguns documentários que trazem um olhar de segunda geração para a memória da
ditadura. Filmes dirigidos por filhas ou sobrinhas de ex-militantes, ou que contam com sua
participação direta na abordagem do passado autoritário.
A hipótese é que hoje esses documentários de “segunda geração” aos poucos
começam a constituir um corpus no Brasil. A pergunta que se coloca é se haveria alguma
especificidade intrínseca ao fato de esses filmes serem realizados por diretores de “segunda
geração”, que não protagonizaram os episódios do passado narrado.
É verdade que, em 1996, o pioneiro curta-metragem 15 filhos (Maria Oliveira e Marta
Nehring) já trazia as vozes de filhos de militantes torturados, desaparecidos e assassinados.
Mas apenas nos anos mais recentes essas vozes de segunda geração adensaram sua
presença no documentarismo brasileiro, a princípio dando mais espaço ao foco íntimo e
familiar na abordagem da história.
Em Diário de uma busca (Flavia Castro, 2010), a diretora-filha tenta desvendar as
condições da morte do pai, Celso Castro, ex-militante de esquerda, refazendo ao mesmo
tempo a trajetória de exílio da família.
Em Marighella (Isa Grinspun Ferraz, 2011), a diretora, sobrinha do líder guerrilheiro,
reúne os testemunhos que reconstituem a vida do tio.
Repare bem (Maria de Medeiros, 2012) traz o depoimento de Eduarda Ditta Crispim
Leite, filha de Eduardo Collen Leite, o “Bacuri”, em sua tentativa de construir uma imagem
do pai assassinado pela ditadura.
A diretora de Os dias com ele (Maria Clara Escobar, 2013) é filha do intelectual
Carlos Henrique Escobar, de quem tenta extrair, em um jogo de perguntas e esquivas, o
testemunho sobre a experiência passada do pai.
No filme Em busca de Iara (Flavio Frederico, 2013), Mariana Pamplona, sobrinha de
Iara Iavelberg, conduz as entrevistas acerca da vida e da morte da tia militante.
É claro que essa vertente atual do documentarismo brasileiro não está isolada das
cinematografias de outras partes. De fato, há hoje uma tendência global do documentário
contemporâneo à intimidade. No contexto sul-americano, é forte a produção documental
dedicada às ditaduras realizada por filhos ou familiares próximos de vítimas do
autoritarismo, notadamente na Argentina e no Chile, mas também no Uruguai e no Paraguai.

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Nesse campo, muitas análises evocam a noção de pós-memória para caracterizar


esses documentários. A noção foi proposta por Marianne Hirsch no contexto estadunidense
de rememoração do Holocausto pela geração posterior àquela que foi vítima do horror.
A apropriação da noção de pós-memória gerou polêmicas na Argentina. Beatriz Sarlo
criticou frontalmente a própria necessidade teórica dessa noção. Segundo a autora, a
fórmula da pós-memória não seria mais do que o resultado da “inflação teórica”
contemporânea, fruto de um gesto teórico “mais amplo que necessário” (SARLO, 2007, p.
95). Afinal, conforme argumenta:

Mas mesmo caso se admita a necessidade da noção de pós-memória para


descrever a forma como um passado não vivido, embora muito próximo,
chega ao presente, é preciso admitir também que toda experiência do
passado é vicária, pois implica sujeitos que procuram entender alguma
coisa colocando-se, pela imaginação ou pelo conhecimento, no lugar dos
que a viveram de fato. Toda narração do passado é uma representação,
algo dito no lugar de um fato. O vicário não é específico da pós-memória.
(SARLO, 2007, p. 93, grifos da autora).

Todavia, para além das apropriações locais e da crítica teórica à noção, o que diz
Marianne Hirsch sobre a pós-memória? Em artigo de 2008 intitulado “The generation of
postmemory”,1 a autora dedica-se de modo mais metódico a definir o termo. Hirsch – ela
mesma filha de sobreviventes do Holocausto – reconhece de saída que o debate está
pontuado por controvérsias. Afinal, ela escreve: “O que está em questão é precisamente a
‘salvaguarda’ de um passado traumático pessoal e geracional com o qual alguns de nós
possuímos uma ‘conexão viva’, bem como o deslocamento desse passado para o campo da
história.” (HIRSCH, 2008, p. 104, tradução nossa). Para Hirsch, as polêmicas e mesmo a
profusão de termos voltados à definição do fenômeno da memória de segunda geração de
algum modo estão ligadas à contradição que lhe é inerente:

[…] que descendentes de sobreviventes (de vítimas, assim como de


perpetradores) de eventos traumáticos massivos conectam-se tão
profundamente com as lembranças do passado da geração anterior que
eles necessitam chamar tal conexão de memória e que, portanto, em certas
circunstâncias extremas, a memória pode ser transmitida para aqueles que
não estavam de fato lá para viver um evento. Ao mesmo tempo – e isto está
pressuposto –, essa memória recebida é distinta da lembrança das
testemunhas e dos participantes contemporâneos aos fatos. Daí a
insistência no “pós” ou “posterior”, além dos muitos adjetivos qualificativos
que tentam definir, de um lado, um ato de transferência especificamente
inter e transgeracional e, de outro, as duradouras sequelas do trauma.
(2008, p. 105-106, grifos da autora, tradução nossa).

1
Uma versão ligeiramente reformulada desse artigo foi posteriormente publicada em HIRSCH, 2012.

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A autora esclarece ainda que o prefixo “pós” não sugere meramente uma
posterioridade temporal. No fundo, ela afirma, a pós-memória compartilha as complexas
sobreposições da “era dos pós” que caracteriza a virada do século XX para o XXI, “refletindo
uma complicada oscilação entre continuidade e ruptura” (2008, p. 106, tradução nossa).
Enfim, após as ressalvas, Hirsch define o termo com as seguintes palavras:

Pós-memória descreve a relação que a geração posterior àquela que


testemunhou traumas culturais e coletivos carrega acerca da experiência
daqueles que vieram antes, experiências que eles “lembram” apenas por
meio das histórias, imagens e comportamentos em meio aos quais
cresceram. Mas essas experiências lhes foram transmitidas de modo tão
profundo e afetivo que parecem constituírem memórias de próprio direito. A
conexão da pós-memória com o passado não é, portanto, de fato mediada
pela lembrança, mas pelo investimento imaginativo, pela projeção e criação.
(2008, p. 106-107, grifo da autora, tradução nossa).

Até aqui, ressalvas e definições. Mas a autora se propõe em seguida a examinar os


três pressupostos que estruturam a formulação da categoria: memória, família e fotografia. É
justamente nesse ponto que os limites da noção de pós-memória começam a se esboçar.
Em sua defesa da manutenção do termo memória no contexto do fenômeno de
segunda geração, Hirsch reconhece que a “pós-memória não é idêntica à memória: ela é
“pós”, mas, ao mesmo tempo, aproxima-se da memória em sua força afetiva” (2008, p. 109,
tradução nossa). Para a autora, “a quebra na transmissão resultante de eventos históricos
traumáticos necessita de formas de rememoração que reconectem e reencarnem
(reembody) um tecido de memória intergeracional que foi rompido pela catástrofe” (2008, p.
110, tradução nossa). No fundo, tal é o papel da pós-memória:

O trabalho da pós-memória, eu quero sugerir – e esse é o ponto central de


meu argumento nesse ensaio – luta para reativar e reencarnar (reembody)
as estruturas de memória mais distantes (social/nacional e
arquivística/cultural) ao reinvesti-las com potentes (resonant) formas
individuais e familiares de mediação e expressão estética. (2008, p. 111,
grifos da autora, tradução nossa).

Hirsch insiste que aquilo que é “pós” é ainda memória justamente porque fica assim
destacada “essa presença da experiência corporificada (embodied) no processo de
transmissão”, sinalizando “um laço afetivo com o passado, precisamente o sentido de uma
‘conexão viva’ corporificada (embodied ‘living connection’)” (2008, p. 111, tradução nossa).
Quando se dedica ao pressuposto familiar da noção de pós-memória, Hirsch segue
ancorando seus argumentos em ideias ligadas ao corpo e à corporificação. Ela escreve: “A
linguagem da família, a linguagem do corpo: atos de transferência não verbais e não
cognitivos ocorrem mais claramente dentro de um espaço familiar, frequentemente na forma
de sintomas.” (2008, p. 112, tradução nossa). Mas agora essa memória corpórea, somática,

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216 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014

tem também um sangue: “A perda da família, do lar, de um sentimento de pertencimento e


segurança no mundo ‘sangra’ de uma geração para a outra […].” (2008, p. 112, tradução
nossa). No fundo, para Hirsch, trata-se sempre de transmissão: “O idioma da família pode
se tornar uma lingua franca, facilitando a identificação e a projeção através da distância e da
diferença.” (2008, p. 115, tradução nossa).
Mas é na argumentação dedicada à fotografia que Hirsch deixa transparecer com
mais clareza sua confiança nas possibilidades de transmissão de uma memória palpável
entre as gerações. Pois nesse item, para além da conexão viva da memória e dos laços de
sangue, opera o nexo indicial da fotografia. Ela escreve:

Mas é a tecnologia da fotografia em si, e a crença na referência que ela


engendra, que conecta a geração do Holocausto com a geração posterior. A
promessa da fotografia de oferecer um acesso ao próprio evento, junto com
sua fácil suposição de poder icônico e simbólico, faz dela um meio
inigualavelmente poderoso para a transmissão de eventos que permanecem
inimagináveis. (2008, p. 107-108, tradução nossa).

Ou ainda:

Através do nexo indicial que une a fotografia a seu objeto (subject) – aquilo
que Roland Barthes chama o “cordão umbilical” feito de luz –, a fotografia
[…] pode aparecer para solidificar os tênues laços que são moldados pela
necessidade, pelo desejo e pela projeção narrativa. (2008, p. 111, tradução
nossa).

A fotografia, para Hirsch, é o ingrediente que traz à tona de maneira mais direta a
materialidade da pós-memória: “Ela nos permite, no presente, não apenas ver e tocar o
passado, mas também tentar reavivá-lo ao desfazer o caráter definitivo da ‘tomada’
fotográfica.” (2008, p. 115, tradução nossa). Tanto mais ao se tratar de uma fotografia de
família: “Diferentemente das imagens públicas ou das imagens da atrocidade, contudo, as
fotografias de família, bem como os aspectos familiares da pós-memória, tenderiam a
diminuir a distância, a recobrir a separação, além de facilitar a identificação e a afiliação.”
(2008, p. 116, tradução nossa). A fotografia, enfim:

[…] conserva uma dimensão ‘incorporativa’ (corporificada): como


documentos de arquivo que inscrevem aspectos do passado, as fotografias
suscitam certos atos corpóreos (bodily) do olhar e certas convenções do ver
e compreender que acabamos por tomar como dados, mas que moldam e
aparentemente reincorporam (reembody), tornam material o passado o qual
estamos buscando entender e receber. (2008, p. 117, tradução nossa).

A insistência nas citações de Marianne Hirsch até este ponto é proposital. Trata-se
aqui de prestar atenção aos pressupostos da noção de pós-memória, e não apenas de

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217 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014

evocar o termo, como comumente ocorre nas análises dedicadas às obras de “segunda
geração”. Levando em conta a descrição que faz Hirsch das três premissas centrais de sua
proposição, chega-se a algumas conclusões. Quanto à defesa de que a pós-memória é
ainda uma memória, nota-se que o cerne do argumento é a capacidade da memória de
estabelecer uma “conexão viva” com o passado. No que toca ao aspecto familiar da pós-
memória, o foco da autora está nos laços carnais, consanguíneos. No que diz respeito à
função da fotografia nesse processo, evoca-se abertamente a força do nexo indicial da
imagem com o passado fotografado. Juntos, a conexão viva da memória, os laços
consanguíneos e o nexo indicial da fotografia seriam como que os elos da transmissão da
memória de geração a geração. Esses três elos, porém, estão fundados em uma concepção
demasiadamente objetiva da memória, uma espécie de reificação que faz daquilo que se
lembra algo com corpo, carne, sangue, matéria, uma coisa que pode ser vista, sentida,
tocada. Na pós-memória de Hirsch, a memória que se transmite é como uma herança
palpável que avança no tempo, sempre adiante, obturando a cisão do trauma, um dom ou
um fardo que, apesar dos pesares, as gerações seguintes recebem em suas mãos.
É claro que Marianne Hirsch não ignora a problemática da representação do trauma,
muito menos a da representação de um trauma vicário. Ela menciona os impasses e
encruzilhadas desse terreno, evocando os autores já clássicos, mas as balizas de sua
proposição seguem firmes até o fim. A fórmula que Hirsch apresenta para essa
problemática, os três elos da pós-memória, parece dar uma resposta demasiadamente
simples – e talvez por isso mesmo tão sedutora – sobre as possibilidades de transmissão de
uma memória que, a despeito de tudo, está atada a um referente bem concreto. Diante da
aporia da representação do trauma, Hirsch busca encontrar uma solução de objetividade,
descrevendo aquilo que seria palpável na transmissão geracional da memória.
Frente a esse limite conceitual, é importante voltar agora a atenção para as imagens
dos documentários. Dois exemplos servem aqui para se pensar o fenômeno da memória de
segunda geração no Brasil: Diário de uma busca (Flavia Castro, 2010) e Marighella (Isa
Grinspun Ferraz, 2011).
A princípio, pode-se ter a impressão de que se trata de dois filmes análogos. De um
lado, a filha que busca resgatar a memória da militância, do exílio, do retorno e da estranha
morte do pai. De outro, a sobrinha que reconstrói a história de vida, engajamento e
assassinato do tio líder guerrilheiro.
Os minutos iniciais de cada um desses filmes pode reforçar essa sensação. Afinal,
há um paralelismo evidente na primeira sequência dos documentários: as vozes em off das
diretoras que dizem em primeira pessoa “meu pai” ou “meu tio”; a alusão a um mistério em
torno dos personagens centrais; as inserções de fotografias e de notícias de jornal.

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Entretanto, apesar desses paralelismos iniciais, o desfecho de cada um dos filmes toma
rumos opostos.
Nos últimos minutos de Diário de uma busca, a diretora se expõe em sua fragilidade,
quando não consegue ler a carta do pai e chora diante da câmera e de seu entrevistado. No
fim, a voz off de seu irmão termina a leitura da carta, na qual o pai escreve sobre suas
dificuldades de adaptação no retorno do exílio, suas neuroses e sua angústia, sua
transformação em um “cara amargo”, cético, que reconhece sua fraqueza. No plano final, o
irmão e a irmã, que durante todo o filme discordaram sobre os rumos da narrativa, seguem
para lados distintos. Flavia fica só no quadro, os sinos tocam, escurece. Restam as
inquietações, as suspeitas, as incongruências.
No documentário Marighella, o desfecho tem um tom oposto, beirando o apoteótico.
Em um registro bem convencional das entrevistas, ilustradas por imagens de arquivo, as
testemunhas afirmam o heroísmo do “santo do socialismo”, “um dos melhores quadros
políticos do Brasil no século XX”, aquele que cometeu erros, sim, tal como os Inconfidentes,
os alfaiates negros da Bahia, como Frei Caneca, os camponeses de Canudos ou de Santa
Catarina. Erraram, mas o Brasil seria muito mais pobre sem eles. Os artifícios estilísticos da
busca e da intimidade, tímidos e esparsos ao longo do filme, não passam de recursos
ornamentais, um esforço de inserir-se no documentarismo contemporâneo empreendido por
uma diretora ainda aferrada às convenções do documentário convencional de entrevista. No
fundo, o “tio Carlos” nunca deixa de ser Marighella, o herói guerrilheiro.
A diferença de tom no desfecho desses filmes indica que a distância geracional é
cruzada de maneiras distintas em cada obra. A introspecção de Diário de uma busca em
alguma medida conota um distanciamento com relação ao horizonte épico que pautava o
engajamento político da primeira geração. Mas, como em Marighella, a segunda geração
pode buscar também uma aproximação, uma adesão à perspectiva épica, adotando um
olhar monumentalizante para o passado.
Concluindo, a dinâmica que atravessa a distância geracional é complexa. Há
diferenças entre o olhar de uma filha e de uma sobrinha, mas tais diferenças dizem respeito
também às opções estéticas e narrativas de cada obra. Vê-se que a “guinada subjetiva” no
documentário brasileiro contemporâneo sobre a ditadura não implica necessariamente o
abandono das convenções da monumentalização. O foco introspectivo e o olhar
monumental são observáveis ao mesmo tempo no interior da tendência brasileira atual dos
documentários de segunda geração.
É difícil identificar, portanto, uma característica intrínseca à memória de segunda
geração no documentário, uma qualidade “pós” que estaria na essência dessa memória, um
traço palpável que garantiria a transmissão em nova chave. Enfim, não há uma substituição

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em bloco do épico pelo íntimo. O que existe são distintas perspectivas, ou, antes, as
tensões de memórias que ainda seguem em aberto, 50 anos após o golpe.

Referências

HIRSCH, Marianne. The generation of postmemory. Poetics Today, Durham: Duke


University Press, 29:1, 2008. p. 103-128.

______. The generation of postmemory: writing and visual culture after the Holocaust. New
York: Columbia University Press, 2012.

SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Cia.
das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.

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Jornais e jornalistas mineiros: a censura na vigência do AI-5 (1968-1978)1

Flávio de ALMEIDA
Jornalista e pós-graduado em Culturas Políticas, História e Historiografia pela UFMG
flavioalmeida.bh@gmail.com

Introdução

O objetivo deste trabalho é estudar a censura política em jornais de Belo Horizonte


logo após a instauração do Ato Institucional nº5, o AI-5, e seus efeitos sobre a prática
profissional dos jornalistas mineiros. A censura política em São Paulo e no Rio de Janeiro
vem sendo investigada desde o final dos anos 1970 e já conta com conjunto de trabalhos
densos, caracterizados por análises sobre o papel de jornalistas e censores, os conflitos, as
capitulações, as negociações e concessões que marcaram as complexas relações entre
Estado e Imprensa durante o regime militar.

Entre esses estudos, destacam-se o de AQUINO (1999), KUSHNIR (2004) e SMITH


(2000). São Paulo e Rio de Janeiro são os estados de imprensa mais influente, o que, por si
só, explica o fato de que lá os embates tenham sido mais intensos. No eixo Rio-São Paulo
estavam estruturadas as redações dos veículos de maior penetração, tanto os da grande
imprensa quanto os da imprensa alternativa, submetidos com maior regularidade à censura
prévia – O Estado de São Paulo/Jornal da Tarde, Pasquim, Movimento, Opinião, O São
Paulo, Tribuna da Imprensa e Veja.

Entretanto, há poucos estudos específicos sobre a censura à imprensa de Belo


Horizonte. Um deles é o de RABELO (2007), que analisa como o jornal alternativo De Fato,
nascido na capital mineira em 1976, enfrentou a censura e a pressão do regime. Em suas
pesquisas sobre a imprensa mineira da época, CARRATO (1996) e CASTRO (1997)
abordam o tema de forma tangencial. Também merece menção o estudo de caso
desenvolvido por SILVA (2011) sobre a censura aos dois principais jornais de Montes
Claros, no Norte de Minas, feita por oficiais da Polícia Militar de Minas Gerais.

Este trabalho procurou identificar como a censura se incorporou ao cotidiano das


redações a partir da visão de profissionais que trabalharam na época em alguns dos
principais veículos da capital mineira. Foram entrevistados os jornalistas Acílio Lara
Resende (Jornal do Brasil), Adval Coelho (O Diário), Afonso Celso Raso (O Diário), Aloísio
Morais (Jornal de Minas e De Fato), Carlos Lindenberg (Estado de Minas e Veja), Dídimo
Paiva (Estado de Minas), Fábio Doyle (Diário da Tarde), José Mendonça (O Diário e O

1
Este trabalho é uma síntese de monografia defendida no curso de Especialização em Culturas
Políticas, História e Historiografia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG em
fevereiro de 2014.

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UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014

Globo), Luiz Fernando Perez (TV Itacolomi e O Estado de São Paulo), Manoel Hygino dos
Santos (O Diário), Roberto Elísio (Estado de Minas) e Washington Melo (Diário da Tarde),
além do empresário Afonso Paulino.2

A história oral foi o principal recurso metodológico e seu emprego está associado a
duas motivações. De um lado, a escassez de documentos escritos sobre a censura em Belo
Horizonte. Uma das poucas fontes materiais é uma pasta do Dops guardada pelo Arquivo
Público Mineiro, que contém as primeiras instruções para aplicação do AI-5 e da censura na
imprensa mineira. Por outro lado, a história oral não pode ser vista como recurso
sobressalente ao qual se recorre apenas porque faltam referências escritas mais robustas..
Conforme argumenta LOZANO (1996, p.24), trata-se de ferramenta fundamental para
construir a experiência humana, principalmente quando esta tem a memória como elemento
essencial.

Manual de instruções

Pouco depois de baixar o Ato Institucional 5, em 13 de dezembro de 1968, o regime


militar estabeleceu os primeiros critérios para a sua aplicação em todo o país. Em Belo
Horizonte, a Infantaria Divisionária da 4ª Região Militar (ID-4) logo se encarregou de
distribuir instruções para a execução da censura. Um documento “reservado” de 16 de
dezembro de 1968 assinado pelo general Alvaro Cardoso, comandante da unidade militar, e
pelo coronel Gentil Marcondes Filho, chefe do Estado Maior de Coordenação, estabelece
regras básicas para o controle da imprensa na área de jurisdição da ID-4. No documento
(ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO, pasta 4153, rolo 055), encontrado no acervo do Dops, os
oficiais deixam explícitos os dois principais objetivos da empreitada: “Obter da imprensa total
respeito à Revolução de 64, que é irreversível e que visa à consolidação da democracia, e
evitar a divulgação de notícias tendenciosas, vagas ou falsas”.

Esse manual abrangia três campos: político, econômico e psicossocial. No primeiro


caso, as proibições envolviam “noticiário que incite a luta de classes e a desmoralização do
governo e das instituições”; notícias e declarações de cassados por meio de porta-vozes;
críticas aos atos institucionais e divulgação de notícias para o exterior, “capazes de
comprometer a imagem democrática do país”.

2
Por limitações de espaço, nem todos os entrevistados tiveram depoimentos registrados nesta
síntese. Pelo mesmo motivo, a análise está concentrada em Estado de Minas e O Diário, ficando de
fora os outros veículos que integram o trabalho original: Jornal de Minas, De Fato e as sucursais que
atuavam em Belo Horizonte na época.

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No campo econômico, a preocupação dos militares recaía sobre notícias capazes de


“tumultuar” os setores financeiros, comerciais e de produção e sobre o noticiário que
pudesse “comprometer a imagem econômica do país”. Já no que chama de “campo
psicossocial”, as instruções da ID-4 vedavam informações referentes a prisões ou a atos
decorrentes da censura, com exceção das fornecidas ou autorizadas pelas fontes oficiais;
proibiam a divulgação de notícias ou comentários que provocassem a “desarmonia” entre as
Forças Armadas e destas com os poderes da República ou com a opinião pública; impediam
a divulgação de notícias sobre atividades estudantis de natureza política, sobre subversão,
movimentos operários e greves; além de recomendar que fossem evitadas “manchetes
escandalosas” sobre subversões e greves e sobre filmes que retratassem movimentos
revolucionários em outros países.

As entrevistas feitas para este trabalho indicam dois caminhos que permitiram a esse
conjunto de normas chegar aos jornais belo-horizontinos. Um deles foi a distribuição pura e
simples nas redações, como se recorda Carlos Lindenberg, que trabalhou como repórter de
polícia e redator de primeira página do Estado de Minas.

Quando baixaram o AI-5, veio para as redações um telex de um metro de


comprimento, dizendo o que era o AI-5 em relação à imprensa. Tinha esse
documento e esse documento ficava pregado no quadro da redação do
Estado de Minas. Quase uma regulamentação do AI-5 para a imprensa. Eu
me lembro claramente. Era grande, quase um metro de telex. Estavam lá as
3
implicações, o que poderia o que não poderia.
Outra via de repasse dessas instruções foram as reuniões mantidas entre o comando
da ID-4 e os principais dirigentes dos jornais de Belo Horizonte, como se pode inferir dos
relatos dos entrevistados somados a pelo menos um registro feito por um jornal belo-
horizontino. Eles confirmam que unidades militares baseadas na capital mineira também
abrigaram encontros do gênero. Em sua edição de 14 de dezembro de 1968, O Diário, da
Arquidiocese de Belo Horizonte, informava que o presidente do jornal, Wilson Chaves,
estivera na sede da ID-4, junto com dirigentes de órgãos de imprensa da capital mineira,
para tomar “conhecimento das recomendações relativas à publicação e circulação dos
veículos de divulgação em nosso Estado”. (O DIÁRIO, 14/12/68, p.1)

A partir dali, reuniões como aquela se tornariam relativamente frequentes. O


jornalista Manoel Hygino dos Santos, à época diretor de redação e assistente da diretoria de
O Diário, não participou do encontro convocado logo após a deflagração do AI-5. No
entanto, foi escalado pela direção do jornal para representá-la nas outras reuniões, que ele
estima em “dez ou mais”, ocorridas em um período de dois anos, sempre na sede do

3
Entrevista com Carlos Lindenberg concedida em 18/04/2013.

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CPOR.4 O confronto de testemunhos dos jornalistas entrevistados para este trabalho com a
documentação reunida pelo APM sobre a censura permite supor que inicialmente o controle
da imprensa em Belo Horizonte foi feito pela ID-4 ou por unidades por ela designadas. O
jornalista Adval Coelho recorda-se, por exemplo, da presença de professores e instrutores
do CPOR na redação de O Diário5, enquanto seu colega Afonso Celso Raso informa que
nas primeiras edições logo após o AI-5 os originais do jornal eram levados à sede da ID-4,
onde havia um censor à espera do material. Posteriormente, diz ele, os censores, ligados ao
exército, passaram a frequentar a redação.6

O “grande jornal dos mineiros”: censor de si mesmo

Principal veículo de Minas Gerais, o Estado de Minas publicou, em sua edição de 14


de dezembro de 1968 editorial em que tentava justificar o ato mais extremo adotado pelo
regime, qualificando-o como uma medida fundamental para restabelecer a ordem instituída
em 1964.

(...) Os acontecimentos das últimas horas só serão compreendidos se


colocados no contexto do processo revolucionário de 31 de março; nos
aspectos afirmativos como nas deficiências desse processo (ESTADO DE
MINAS. Testemunho necessário. 14/12/1968)
Se criou transtornos econômicos, operacionais e até conflitos éticos para alguns
jornais brasileiros, a censura estabelecida pelo AI-5 não representou qualquer problema
para o autointitulado “grande jornal dos mineiros”. Na visão de CARRATO (1996, p.96-99), a
censura acabou se convertendo em álibi para o veículo não publicar assuntos considerados
inconvenientes aos seus interesses. A tese do colaboracionismo é corroborada por relatos
de jornalistas que trabalharam no veículo durante o regime militar. O testemunho de Roberto
Elísio, por exemplo, é indicativo de que o censor – um coronel, segundo suas lembranças –
teve pouco trabalho no curto período em que cumpriu expediente na redação.

Ele nunca mexeu em nada. Até porque o Estado de Minas foi muito
favorável ao golpe militar. Era quase porta-voz (...) O Estado de São Paulo
depois começou com uns ‘furinhos’ de independência e eles começaram a
censurar. O Estado de Minas, pelo menos enquanto eu fui editor de política,
7
nunca foi censurado [grifo meu].
Se a censura prévia ou presencial praticamente não deu o ar de sua graça no
principal jornal de Minas Gerais, como explicar a adesão quase incondicional às diretrizes
do regime militar? Além da vocação governista do jornal – historicamente o veículo sempre
se alinhou com o Palácio da Liberdade –, o Estado de Minas também foi alvo de um

4
Entrevista com Manoel Hygino dos Santos concedida em 17/06/2013
5
Entrevista com Adval Coelho concedida em 13/05/2013
6
Entrevista com Afonso Celso Raso concedida em 03/05/2013
7
Entrevista com Roberto Elísio. 18/04/2013

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fenômeno que impactou profundamente a noção de liberdade de pensamento e de imprensa


entre veículos e profissionais brasileiros: a autocensura.8 E se praticamente não houve
censura direta, in loco, dos agentes do regime, sobrou autocensura na redação do EM-DT,
principalmente a de natureza empresarial. Portanto, não é de se estranhar que jornalistas
como Roberto Elísio, editor de uma área estratégica para os interesses do regime, tenham
passado incólume pelo jugo da censura.

Eu acho até que desenvolvi uma espécie de autocensura. Eu sabia o que


agradava e o que não agradava os militares. Você não ia escrever: “o país
está dominado pela ditadura”. Isso, claro, não ia sair. Então, você não
9
escrevia mesmo.
Editorialista do jornal durante 45 anos, presidente do Sindicato dos Jornalistas de
Minas Gerais no triênio 1975-1978 e figura constantemente associada ao sindicalismo
renovado que varreu o país na segunda metade da década de 1970, Dídimo Paiva relata a
atenção que os diretores da publicação dispensavam aos editoriais que redigia. “Tínhamos
um cuidado danado. Diziam: ‘Cuidado com o editorial’. E eu respondia: ‘Mas o senhor vai
ler, uai’”.10

O senhor em questão, na verdade, eram três: Geraldo Teixeira da Costa, Paulo


Cabral e Pedro Aguinaldo Fulgêncio, três dos principais dirigentes do jornal nas décadas de
1960 e 1970. Talvez por ter se cristalizado na dinâmica diária da redação, a interferência
dos diretores sobre o teor dos editoriais é minimizada por Dídimo. “Mas isso não era bem
censura. Alguém podia falar que não gostou daquela palavra lá e cortou”.11

O Diário e a crônica de uma censura anunciada

Em Belo Horizonte, às duas horas da madrugada, um oficial do exército


acompanhado de cinco soldados armados de metralhadoras chegava às
oficinas de O Diário, da arquidiocese de Belo Horizonte.
Esse breve relato feito por VENTURA (2008, p.251) aborda a visita que oficiais do
Exército teriam feito à sede do jornal O Diário, da Arquidiocese de Belo Horizonte, poucas
horas depois da deflagração do Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro de 1968. O Diário

8
O conceito de autocensura tem caráter polissêmico. Para AQUINO (1999, p.222), trata-se de uma
capitulação, já que o papel de censurar teria sido transferido do Estado para a direção do jornal.
SMITH (2000, p.136) considera imprópria a expressão autocensura, pois não se tratava de uma
sanção imposta pelos jornalistas a si mesmos, mas pelo regime às empresas de comunicação e a
seus profissionais. Já SOARES (1989, p.38) classifica a autocensura em duas modalidades: a
institucional, em que as empresas de comunicação acatavam as proibições recebidas, livrando-se da
presença de censores nas redações e do ônus de submeterem sua produção aos órgãos de Estado,
e a individual, que alcança, em maior ou menor grau, todas as pessoas que lidavam com a produção
de bens culturais, já que poderia desencadear demissões e atos de repressão.
9
Entrevista com Roberto Elísio. 5/4/2013
10
Entrevista concedida por Dídimo Paiva em 22/3/2013
11
Entrevista com Dídimo Paiva. 22/03/2013

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foi, durante décadas, um dos mais tradicionais veículos do Estado, rivalizando em alguns
momentos com o Estado de Minas na preferência dos leitores. Começou a circular em 1935
e foi controlado pela Cúria da capital mineira até outubro de 1969, quando em grave
situação financeira acabou vendido a um grupo empresarial.

O relato sucinto de Ventura sobre a presença de militares na sede de O Diário é


confirmado pelo jornal, que publicou na edição do dia seguinte, 14 de dezembro, uma nota
sem título no canto alto direito da primeira página (O DIÁRIO. 14/12/1968, p.1):

O Diário recebeu a visita de militares, na madrugada de ontem, que


examinaram matérias contidas em nossa edição de 13 de dezembro. No
mesmo dia, em atendimento à solicitação do general Álvaro Cardoso, o
Prof. Wilson Chaves, diretor-presidente deste jornal, a exemplo dos demais
dirigentes de órgãos de imprensa da capital mineira, esteve na ID-4,
tomando conhecimento das recomendações relativas à publicação e
circulação dos veículos de divulgação em nosso Estado. Assim, a partir de
hoje, nossas edições serão distribuídas após prévio exame das autoridades
militares de Minas Gerais [grifo meu].
Em poucas linhas, a nota traz duas informações-chave. Uma diz respeito à reunião
entre a cúpula do regime militar e dirigentes de jornais de Belo Horizonte. O redator do
jornal, mais cauteloso, chamou de “visita” o que, pelo relato de Ventura, pode ser
interpretado como invasão, considerando o forte aparato envolvido na operação. A outra
informação é o anúncio de que as edições seguintes de O Diário seriam submetidas ao
“prévio exame das autoridades militares”, eufemismo para “censura”.

Aqui cabe uma reflexão sobre a decisão de se publicar uma nota com esse teor.
Apesar de censurados, alguns dos principais jornais do Brasil não costumavam se
manifestar explicitamente. Receitas de bolos, versos de Camões e previsões meteorológicas
sombrias introduzidos no lugar de material interditado funcionavam como mensagens
cifradas que os jornais emitiam na expectativa – vã em muitos casos – de que seus leitores
desconfiassem de que algo anormal estava acontecendo.12

O Diário fugiu do padrão e trouxe a informação cristalina com o cuidado apenas de


evitar o termo “censura”. E a repetiu, de forma mais lacônica, na edição seguinte (O DIÁRIO.
15/12/1968): “Atendendo determinações dos altos escalões militares, esta edição de O
DIÁRIO circula após prévio exame de autoridades por eles designados”. Mesmo não se
lembrando dos detalhes que envolveram a publicação da nota, Manoel Hygino acredita que
o objetivo era deixar claro que o jornal vivia um momento de exceção e que o conteúdo

12
A publicação de receitas de bolo e do poema épico Os Lusíadas, de Camões, foram expedientes
adotados, respectivamente, pelo Jornal da Tarde e pelo Estado de São Paulo, pertencentes à família
Mesquita. Já o Jornal do Brasil publicou, em sua edição de 14 de dezembro de 1968, uma previsão
meteorológica alegórica, que fazia alusão aos tempos sombrios que se avizinhavam com o AI-5:
“Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes
ventos. Máx.:38, em Brasília. Min.:5, nas Laranjeiras”

ISBN: 978-85-62707-55-1
226 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014

publicado não traduzia necessariamente a sua linha editorial. A decisão de anunciar a


censura que à primeira vista poderia soar como submissão ao autoritarismo recebe, do
então diretor de redação, uma interpretação oposta. “Poderia ser uma demonstração de
independência diante da situação, do quadro de coação que a imprensa vivia naquele
momento”.13

Um fato ocorrido dias antes da edição do AI-5 e que pôs O Diário no fogo cruzado de
uma crise entre o regime e a Igreja é indício de que a censura ao jornal talvez tenha
ganhado contornos próprios. A Arquidiocese da capital mineira era comandada na época por
Dom João Resende Costa e Dom Serafim Fernandes de Araújo, acabaram se chocando
com o regime por conta da prisão de quatro religiosos. No dia 28 de novembro de 1968, três
padres franceses – Michel Marie Le Ven, Francisco Xavier Berthou e Hervé Crogrense –,
além do diácono brasileiro José Geraldo da Cruz, que atuavam na paróquia do Horto, foram
presos pelas forças de repressão, acusados de práticas subversivas.

O jornal deu ampla cobertura ao episódio e já no dia 30 de novembro estampava


editorial de protesto (O DIÁRIO. Prisão de padres. 30/11/68) e matéria de teor informativo
sobre a prisão (O DIÁRIO. Exército detém 3 padres a pretexto de subversão. 30/11/68). Na
edição seguinte, o veículo começa a assumir uma posição de enfrentamento, denunciando,
em editorial, suposta “perseguição à Igreja” (O DIÁRIO. Perseguição à Igreja. 01/12/68). No
mesmo número, circulou íntegra da homilia lida em missas celebradas nas igrejas da
Arquidiocese (O DIÁRIO. Igreja de BH toma posição. 01/12/1968)

A partir daí, o assunto ganhou destaque crescente nas páginas do jornal, com
matérias e editoriais publicados diariamente, culminando com reportagem de tom mais
crítico em 12 de dezembro, dia do aniversário da capital mineira. Na ocasião, o então
presidente Costa e Silva visitou Belo Horizonte para paraninfar uma turma de economistas e
para a inauguração do Centro de Processamento de Dados do Governo de Minas. (O
DIÁRIO. Costa chega hoje, mas não falará da prisão de padres. 12/12/1968, p.1)

Em outra matéria de primeira página, o jornal católico falava abertamente em uma


crise entre o clero e o regime (O DIÁRIO. Dom João não vai ao almôço de hoje a CS.
12/12/1968). O arcebispo Dom João Resende Costa se negou a participar de almoço com o
presidente dentro das festividades de 71 anos de fundação da capital mineira. O arcebispo
enviou telegrama declinando do convite, o que foi interpretado “como agravamento da crise
entre o clero e o governo”. Em seguida, o jornal, que ouviu fontes em off the record,
informava:

13
Entrevista com Manoel Hygino dos Santos. 17/06/2013

ISBN: 978-85-62707-55-1
227 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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Fontes do Palácio Cristo Rei, extraoficialmente, comentam que o Arcebispo


Metropolitano se sentiria constrangido em comparecer ao almoço. Seria
como se o pai de filhos aprisionados fôsse participar da mesa de refeições
daqueles que os haviam prendido.
Mesmo sem partir para o confronto direto, nota-se que O Diário assumira o papel de
porta-voz da Igreja de Belo Horizonte na crise com o regime militar. Esse processo, no
entanto, sofre uma inflexão exatamente com a adoção do AI-5 e com o início da censura nas
redações brasileiras. O assunto só voltaria à tona duas vezes, já no ano de 1969. Em nota
publicada no início de janeiro, o Diário informava que o ministro da Justiça, Gama e Silva,
estudava a soltura dos padres presos como forma de evitar um conflito diplomático com a
França. (O DIÁRIO. Padres franceses poderão ser libertados em breve. 4/01/1969). E a
última notícia sobre o episódio circularia apenas em fevereiro (O DIÁRIO. Padres em
liberdade. 6/02/1969).

Ao cruzarmos as implicações envolvendo a prisão dos padres e o endurecimento da


repressão com a implantação do AI-5 é possível inferir, com razoável grau de segurança,
que a censura foi diretamente responsável pela mudança de tom na cobertura do episódio
feita pelo O Diário. Com o jornal admitindo publicamente que estava sob censura, o
noticiário da detenção dos religiosos foi sumindo de suas páginas. O episódio da prisão e a
consequente crise entre Estado e Igreja parecem ter se encerrado no dia 6 de fevereiro com
uma nota seca e equidistante. Nada mais foi publicado desde então, nem mesmo um
comunicado saudando a decisão da justiça militar ou depoimentos dos padres relatando os
dois meses de cárcere.

O que se vê é um jornal cada vez mais atrelado ao noticiário oficial, veiculando


quase que diariamente informações sobre cassações e expurgos perpetrados à luz do AI-5
(O DIÁRIO. AI-5 puniu 96 elementos: novas cassações virão. 14/03/1969). Tensa nos idos
de dezembro de 1968, a relação entre o regime e O Diário foi se amainando e evoluindo
para a cooperação tão sonhada pelos militares. Tanto que na edição de 28 de setembro de
1969 o jornal publicava um ofício de agradecimento assinado pelo general Gentil Marcondes
Filho (O DIÁRIO. Comandante grato à nossa imprensa. O Diário. 28/09/1969).

Comandante grato à nossa imprensa


Assinado pelo General de Brigada Gentil Marcondes Filho, comandante da
ID-4 e da Guarnição Federal de Belo Horizonte, o Diário recebeu
correspondência de agradecimento pela colaboração prestada às atividades
das Forças Armadas em nossa capital.
O AGRADECIMENTO
Com o nº 326-RP, o ofício do general Gentil Marcondes diz:
“1. Venho à presença de V.S. expressar em nome do comando da ID/4 e
Guarnição Federal de Belo Horizonte, os nossos sinceros agradecimentos
pela inestimável cooperação prestada por esse órgão de divulgação, nas
mais diversas oportunidades, a nosso pedido. [grifo meu]

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2. Expressando o nosso reconhecimento e esperamos continuar contando


com o vosso permanente apoio.
3. Aproveito o ensejo para apresentar a V.S. os protestos de estima e
consideração”.

Considerações finais

Este trabalho representa uma incursão inicial pelo tema da censura aos jornais
baseados em Minas Gerais a partir da visão de profissionais que aqui atuaram durante a
vigência do AI-5 (1968-1978). Em certos aspectos, o presente estudo sobre o cerceamento
à imprensa mineira no período constatou práticas, desdobramentos e relações entre
jornalistas e censores que se aproximam daqueles identificados por trabalhos já canônicos
no país. Um dos pontos convergentes é a mistura de acomodação e constrangimento que
tende a marcar a complexa relação entre censores e produtores de bens simbólicos,
incluindo aí jornalistas e jornais, naquilo que DARNTON (1992) define como um sistema
cultural em que “o censor se torna um colaborador do autor e o autor um cúmplice do
censor”.

Gestos de resistência – ainda que estéreis – também caracterizam a relação entre


censura e imprensa. Este, aliás, é um tipo de representação com o qual o jornalista prefere
se identificar. É muito mais nobre se insubordinar contra o censor do que negociar com ele.
No imaginário dos homens e mulheres de imprensa, as receitas de bolo do Jornal da Tarde,
os versos de Camões do Estado de São Paulo ou a altivez do Opinião, que recorreu ao STF
para denunciar a censura imposta pelo regime, eclipsaram a cumplicidade cotidiana.

Sob a perspectiva da resistência, tudo indica que a imprensa mineira não teve muito
do que se orgulhar. Aqui, em vez de publicar receitas ou poesias, o jornal católico O Diário
preferiu informar que estava sendo censurado nas duas edições seguintes ao AI-5,
outorgado em 13 de dezembro de 1968. No entanto, tal gesto não pode ser interpretado
apenas como pura submissão. Como argumentou seu então diretor de redação, Manoel
Hygino dos Santos, a decisão de estampar em primeira página os dois avisos de censura
pode ter sido uma forma de sinalizar ao leitor que o jornal vivia um estado de exceção e que
o que seria publicado a partir dali talvez não refletisse a política editorial do veículo.

O Diário, por sinal, é exemplo de como resistência e cooperação coexistiram no


embate entre Estado autoritário e imprensa. Pouco antes do AI-5, em novembro de 1968, o
jornal posicionou-se como porta-voz da Igreja em seus protestos contra o regime que
prendera quatro de seus representantes acusados de práticas subversivas. Muito
provavelmente essa atitude custou ao jornal a invasão e a censura anunciada em primeira
página logo após o AI-5. Aos poucos, premido pelo ato mais radical do regime militar, o

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229 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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jornal assume uma postura de franca cooperação com os interesses da ditadura, a ponto de
reproduzir, em setembro daquele ano, um ofício em que a cúpula militar de Belo Horizonte
registrava sua gratidão pela colaboração prestada por O Diário.

Em outro veículo analisado, o Estado de Minas, a postura observada foi menos


contraditória. O jornal não chegou a ter problemas com a censura, já que tratou de se render
a outro tipo de controle, a autocensura, que em muitos casos chega a ser mais eficiente do
que a censura explícita, porque se instala silenciosamente nas mentes e não deixa vestígios
materiais.

A censura é um fenômeno histórico que tende a marcar profundamente aqueles que


produzem bens simbólicos, porque, como registra DARNTON (1992), ocorre em áreas
“nebulosas e obscuras, onde a ortodoxia se esbate em heresia e rascunhos fixam-se como
textos impressos”. Permanece, portanto, o desafio de se iluminar área tão cinzenta.

Referências

1) Bibliográficas

AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, imprensa, estado autoritário (1968-1978): o


exercício cotidiano da dominação e da resistência. O Estado de São Paulo e Movimento.
Bauru: Edusc, 1999, 269p.

CARRATO Ângela. A “amena” casa de Assis. Papel e atuação do jornal Estado de Minas
na década de 60. Dissertação de mestrado. Universidade de Brasília, 1996, 144 p.

CASTRO, Maria Ceres Pimenta Spínola. Na tessitura da cena, a vida. Comunicação,


sociabilidade e política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997, 308p.

DARNTON, Robert. O significado cultural da censura: A França de 1789 e a Alemanha


Oriental de 1989. Revista Brasileira de Ciências Sociais, ano 7, nº 18, 1992, p 5-17

KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988.


São Paulo. Boitempo Editorial, 2004, 408p.

LOZANO, Jorge Eduardo Aceves. Prática e estilos de pesquisa na história oral


contemporânea. IN: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. Usos & abusos da
história oral (orgs). Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1996, p.15-31.

RABELO, Ernane C. De fato: o jornal que enfrentou a censura em Minas Gerais. In: MELO,
José Marques de (org). Síndrome da mordaça: mídia e censura no Brasil. São Paulo:
Editora Metodista Digital, 2007, p.237-250

SILVA, Camila Gonçalves. A censura veste farda: elites conservadoras, policiais militares e
o consentimento da imprensa escrita à censura, durante o governo militar em Montes Claros
de 1964-1985 (dissertação de mestrado em História). Juiz de Fora: UFJF, 2011, 215p.

SMITH, Ane-Marie. Um acordo forçado. O consentimento da imprensa à censura no Brasil.


Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, 206p.

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SOARES, Gláucio Ary Dillon. A censura durante o regime autoritário. Revista Brasileira de
Ciências Sociais, São Paulo, v. 4, n. 10, jun. 1989, p. 21-43

VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não terminou (edição revisada). São Paulo: Editora
Planeta, 2008, 284p.

2) Arquivos
Arquivo Público Mineiro: Arquivo da Polícia Política (Dops). Disponível em
http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/dops_docs/photo.php?numero=4153.

3) Jornais
Estado Minas
O Diário

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Integrar o Brasil, combater a “subversão”: universitários e militares na criação do


Projeto Rondon (1967-1969)

Gabriel AMATO Bruno de Lima


Mestrando em História pela UFMG e bolsista do CNPq.
amatolgabriel@gmail.com

O deputado federal Bernardo Cabral, filiado ao MDB do Amazonas, não poderia


prever, mas aquela seria uma das últimas vezes em que ele discursaria no plenário da
Câmara Federal antes de ter seu mandato cassado pelo AI-5. O dia era uma terça-feira, oito
de outubro de 1968. Assim como em várias conjunturas desde a sua posse em 1967, Cabral
sentia, naquela oportunidade, a necessidade de falar para seus colegas deputados sobre o
Projeto Rondon. Desta vez, no entanto, o motivo que o levava a discursar era diferente. Em
suas palavras, “a minha presença nesta tribuna é para formular um veemente protesto.” O
alvo de seu desagravo eram as informações, em sua opinião mentirosas, transmitidas pela
rádio soviética Paz e Progresso acerca do programa de extensão universitária oficializado
pelo governo brasileiro naquele mesmo ano. Segundo Cabral,

notícia captada em 6 de agôsto [sic] e 3 de setembro, dizia, [sic] que a Operação


Rondon fora um fracasso, porque mercenários armados até os dentes, a serviço de
imperialistas norte-americanos, protegem grandes emprêsas [sic] industriais e
numerosos aérodromos, capazes de receber gigantescos aviões de transporte (Diário do
Congresso Nacional, Seção I, ano XXIII, nº 175, 8 de outubro de 1968, p. 6.929).

O deputado emedebista acrescentava ainda que a mesma rádio havia difundido


outra denúncia infundada sobre o Projeto Rondon. Segundo Cabral, a Paz e Progresso
divulgara que o rondonista Augusto Tortolero de Araújo, morto quando foi tomar um banho
no rio Acre durante a operação nacional do Projeto Rondon de janeiro de 1968, havia sido,
na verdade, assassinado por guardas de uma empresa norte-americana. Concluindo a sua
intervenção, o deputado lamentou o fato de os brasileiros desconheceram a região Norte do
Brasil e reafirmou a ideia de que o Projeto Rondon atuava justamente para integrar o país e
ocupar as regiões geográficas, em sua visão, “vazias” de nacionalidade brasileira. As
declarações da rádio soviética eram, na perspectiva de Bernardo Cabral, injustificadas e
frutos do desconhecimento estrangeiro acerca da realidade brasileira.

O espanto do deputado que o levara a formular esse protesto explica-se, na minha


perspectiva, por dois motivos. Primeiro, pelo fato de uma rádio estrangeira e – pior –
originária de um país comunista estar transmitindo notícias “mentirosas” sobre um programa
de extensão universitária nacional, muito elogiado por ele, por outros deputados, pela
grande imprensa e por professores universitários. Segundo, porque, ao elaborar tais
“inverdades”, a mesma rádio ainda dava a entender que o governo brasileiro estaria

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“entregando” a Amazônia para empresas norte-americanas, o que feria a soberania do


Estado nacional brasileiro – tópica muito cara aos setores nacionalistas daquele período,
seja à direita ou à esquerda.

Bernardo Cabral foi o primeiro parlamentar a falar sobre o Projeto Rondon na


Câmara dos Deputados, pouco mais de um ano antes. Seus discursos eram, em geral,
muito elogiosos tanto ao programa de extensão universitária como ao governo que o
organizava. No “ano quente” de 19681, ele foi uma das vozes parlamentares que engrossou
o coro de que o governo militar, sim, mantinha diálogos com aqueles que denominavam os
“verdadeiros estudantes” brasileiros, em detrimento dos estudantes tidos como
“subversivos”. Também em consonância com as representações dos deputados que
discursaram sobre o Projeto Rondon em fins dos anos 1960, Cabral construía uma
representação nacionalista sobre a ação empreendida pelo Ministério do Interior. Nela, as
operações em que se engajavam os estudantes universitários eram identificadas com ações
de patriotismo e de integração entre as partes da nação brasileira, na perspectiva
funcionalista da Doutrina de Segurança Nacional. Já em seu primeiro discurso sobre o tema,
em oito de agosto de 1967, Cabral defendeu, com os aplausos de seus colegas, que

ou a conquistamos [a Amazônia] de maneira positiva, patriótica e povoamos os seus


incomensuráveis espaços vazios ou continuaremos sob a ameaça constante e perigosa
da cobiça daqueles que querem povoá-la e explorá-la, apesar de serem estranhos à
nossa tradição, à nossa cultura e à nossa língua (Diário do Congresso Nacional, Seção I,
ano XXII, nº 89, 4 de agosto de 1967, p. 4.160).

A rádio Paz e Progresso, alvo do protesto de Bernardo Cabral, era uma das
emissoras de ondas curtas do chamado “mundo socialista” que mantinha uma frequência
radiofônica em português nas décadas de 1960 e 70. Sob a vigilância e censura da Polícia
Federal, os ouvintes brasileiros chegavam até a enviar cartas para a sua sede em Moscou,
solicitando boletins de programação e revistas especializadas, mas nunca recebiam
respostas dos soviéticos.2 Ao menos na memória social, as rádios estrangeiras que
transmitiam em português ou espanhol durante o período são lembradas por terem
denunciado as prisões arbitrárias e a violência política do Brasil da ditadura militar. Para os
objetivos deste trabalho, entretanto, cabe muito mais a reflexão acerca dos
entrecruzamentos entre os imaginários nacionalista e anticomunista no bojo do Projeto

1
Na historiografia brasileira sobre o período, o ano de 1968 é, em geral, recordado pela variedade de
movimentos contrários à ditadura militar que tomaram as ruas das principais capitais do país entre
março (morte do estudante Edson Luís) e junho (passeata dos Cem Mil) daquele ano. A juventude
universitária tem um lugar de proeminência nestas narrativas, já que, segunda esta perspectiva, “o
tufão estudantil varreu democraticamente todos os quadrantes da geografia mundial.” (MARTINS
FILHO 1996: p. 14).
2
Cf. o depoimento de José Marcos Lorente, disponível em
<http://www.sarmento.eng.br/Saudosismo.htm>. Acesso em 16 mar. de 2014.

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Rondon em situações como o protesto de Cabral do que a verificação da efetiva


transmissão ou não de notícias contrárias ao programa de extensão pela rádio soviética Paz
e Progresso. Afinal, pode-se afirmar que a narrativa de que uma estação de rádio comunista
difundia representações negativas acerca das ações do Projeto circulou em diferentes
espaços do Brasil em fins dos anos 1960, provocando um debate que nos fornece indícios
para analisar como esses imaginários – o anticomunista e o nacionalista – instituíam as
experiências de rondonistas no Brasil dos anos 1960.3

Em declaração ao jornal carioca Correio da Manhã do dia cinco de outubro de 1968,


o tenente-coronel Mauro da Costa Rodrigues, coordenador-geral do Projeto Rondon naquele
momento, também procurou desmentir as acusações supostamente difundidas pela rádio
soviética. Em concordância com o deputado Bernardo Cabral, Rodrigues classificou de
“levianas” e “caluniosas” as acusações direcionadas ao Rondon. Compartilhando e
construindo um imaginário nacionalista que constituía o Projeto Rondon, o tenente-coronel
também afirmou ao jornal que

as leviandades, divulgadas por alguns, além de mesquinhas, carecem de racionalidade,


quando tentam depreciar o trabalho do Projeto Rondon. Afinal, não somos tão ignorantes
e subdesenvolvidos para entregar a estrangeiros a solução de problemas brasileiros, da
magnitude da questão amazônica (Correio da Manhã, 5/10/1968, 1º Caderno, p. 3).

Também a revista Veja publicou matéria sobre o assunto no mesmo tom, alguns
meses depois do discurso de Cabral e da declaração de Rodrigues ao Correio da Manhã.
Em sua edição de primeiro de janeiro de 1969, os repórteres da publicação semanal
descreviam a atividade extensionista como sendo

apoiada pelos jornais americanos e combatida pela rádio Paz e Progresso, de Moscou,
que acusou as Operações Rondon anteriores de desviarem os estudantes da Amazônia,
‘com receio de que êles [sic] descobrissem lá as jazidas e aeroportos clandestinos
explorados pelos trustes americanos’... (Veja, edição nº 17, 1/1/1969, p. 15)

Este trecho é indício de como o imaginário anticomunista compartilhado por setores


da sociedade brasileira na década de 1960 procurava posicionar o Brasil ao lado do tão
aclamado “mundo livre” liderado pelos EUA no contexto da Guerra Fria, ao mesmo tempo
em que buscava distanciar o Brasil da URSS. Segundo a mesma matéria, o sucesso do
Projeto Rondon era tal que a iniciativa brasileira já havia se tornado “matéria de exportação”.
Em tom triunfalista e orgulhoso próprio do imaginário nacionalista de fins da década de
1960, a revista anunciava que o governo argentino teria manifestado o interesse em

3
O entendimento de imaginário aqui empregado aproxima-se daquele defendido por Cornelius
Castoriadis, para quem “é de maneira imanente, no seu ser em si e para si, que ele [o “real humano”]
é categorizado pela estruturação social e o imaginário que este significa; relações entre indivíduos e
grupos, comportamentos, motivações, não são somente incompreensíveis para nós, são impossíveis
em si mesmos fora deste imaginário.” CASTORIADIS, 1982: p. 193. Grifado no original.

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promover, na região da Patagônia, atividades semelhantes àquelas desenvolvidas pelos


rondonistas no Brasil.4

Os imaginários anticomunista e nacionalista no Projeto Rondon não se limitavam aos


espaços da Câmara dos Deputados e da grande imprensa brasileira do período. Por serem
constituintes das práticas dos rondonistas, eles também estavam presentes nas ações de
vigilância que o sistema de informações da ditadura militar empreendia com relação ao
programa de extensão. Com o assunto “Infiltração comunista no Projeto Rondon”, o informe
nº 618 da Divisão de Segurança e Informação do MEC, datado de treze de dezembro de
1968, alertava para o fato de que “elementos comprometidos com a situação anterior à
Revolução [sic] estariam sendo encarregados de coordenar os assuntos atinentes ao
‘Projeto Rondon’.” Para aquela divisão de informações, estudantes subversivos estariam se
“infiltrando” no programa de extensão, com o objetivo de provocar o “torpedeamento do
Projeto Rondon” (Arquivo ASI/UFMG, caixa 07/68, maço 34, folha 166). As formas de
nomear e classificar essas ações são características do imaginário anticomunista em
tempos de ditadura militar. A utilização da ideia de “infiltração” é indicativa da representação
do comunismo como uma doença, um vírus que penetra na nacionalidade brasileira a partir
do exterior. A ideia de atacar com um torpedo o Projeto Rondon, por sua vez, remete à
representação do “inimigo comunista” como alguém que se utiliza de táticas pouco
honradas, como o lançamento de torpedos à distância visando minar o programa de
extensão.

Enquanto o MEC se esforçava para repassar orientações de teor anticomunista para


as reitorias, o coordenador do Projeto Rondon vinha a público para negar a existência de
qualquer tipo de triagem ideológica na seleção de estudantes que iriam participar do
programa. Em longa entrevista publicada nas páginas amarelas da revista Veja em treze de
agosto de 1969, o tenente-coronel Mauro da Costa Rodrigues afirmava que o Projeto
Rondon também não fazia propaganda do governo, nem objetivava mudar o comportamento
dos universitários. Segundo ele, as ações do Rondon intencionavam

lembrar ao jovem que êle [sic] é responsável por tudo contra o que protestava; que não
deve ter medo de conquistar o País; que não adianta gritar que a Amazônia está sendo
vendida, se a condição que exige para ir para lá é de lhe pagarem 3.000 cruzeiros novos
por mês (Veja, edição nº 49, 13/08/1969, p. 5.)

4
Ação semelhante mas voltada para estudantes entre 16 e 18 anos foi, de fato, promovida pelos
militares argentinos anos depois, já no período da ditadura instaurada com o golpe de 1976. O projeto
foi criado em 1979, chamava-se ¡Argentinos! Marchemos hacia las fronteras e era organizado em
conjunto pelo Ministerio de Cultura y Educación e pela Gendarmería Nacional. Se no Projeto Rondon
as áreas a serem “integradas” eram o interior e as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil;
no caso do programa argentino a preocupação central se voltava para as regiões de fronteira em que
as distinções entre argentinos e estrangeiros eram mais fluídas. Sobre o tema, cf. RODRIGUEZ,
2010: p. 1.257-1.264.

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Esse desencontro de narrativas demonstra bem como os organizadores do Projeto Rondon


procuravam criar uma representação conciliatória e positiva do programa ao classificarem-
no como uma atividade nacionalista, ao mesmo tempo em que o imaginário anticomunista
também fundava as práticas rondonistas.

Mas, afinal, qual lugar ocupava o Projeto Rondon na conjuntura brasileira de fins dos
anos 1960? Como tem sido afirmado pela historiografia contemporânea sobre o período, as
relações entre a ditadura militar e as comunidades universitárias brasileiras nesses anos
foram caracterizadas pela ambivalência. Se, por um lado, o regime ampliou o número de
vagas nas instituições de ensino superior e modernizou as estruturas de ensino, pesquisa e
extensão; por outro, os militares buscaram vigiar e censurar o cotidiano universitário com o
objetivo de calar as vozes dissonantes. Se o movimento estudantil protestou contra a
ditadura em momentos como as manifestações de rua em 1968, houve estudantes que
procuravam levar as suas vidas apesar da ditadura ou mesmo nela se inserir. Para além da
dicotomia entre resistência e repressão, recorrente em certa memória social sobre o
período5, uma grande variedade de práticas foi acionada por universitários, militares e
professores. Com o slogan “Integrar para não entregar”, o Projeto Rondon foi um campo
profícuo para essas práticas. O programa de extensão foi criado entre os anos de 1967 e 68
e funcionou sob a coordenação do Ministério do Interior até 1989. Cerca de 130.000
estudantes-voluntários de diversas áreas do conhecimento e de diferentes Estados da
federação participaram de suas atividades, que envolviam principalmente ações realizadas
em regiões do interior do país durante as férias escolares.

O Projeto Rondon foi criado, dessa forma, em consonância com as preocupações de


alguns setores do governo com a integração nacional e com o desenvolvimento da
“consciência cívica” da juventude universitária. A própria escolha do nome do programa de
extensão é indicativa dessas demandas, na medida em que se apropriava da figura do
Marechal Cândido Rondon com o objetivo de alçá-lo ao posto de “bandeirante do século
XX”. Essa temática, própria de um imaginário nacionalista, encontrava ressonância entre
militares autoritários como o primeiro ministro do Interior da ditadura, general Afonso de
Albuquerque Lima; professores universitários como Wilson Choeri, um dos idealizadores do
Rondon; e parcelas dos membros das comunidades universitárias. Esta preocupação,

5
Segundo as pesquisas que tomam a memória social sobre o período como objeto de estudo,
constituiu-se, a partir de fins dos anos 1970, uma memória segundo a qual “a sociedade brasileira
viveu a ditadura como um pesadelo que é preciso exorcizar, ou seja, a sociedade não tem, e nunca
teve, nada a ver com a ditadura” (REIS, 2002: p. 9). No caso específico do Projeto Rondon, a quase
ausência de estudos historiográficos sobre o tema talvez seja explicada pela predominância desta
memória. Cabe ressaltar, todavia, que as memórias sobre as ações dos rondonistas são mais
complexas, como evidencia a nova edição do Projeto realizada desde 2005 e iniciativas como o
Memorial Projeto Rondon da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

ISBN: 978-85-62707-55-1
236 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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entretanto, não era compartilhada por todos os atores que, de uma forma ou de outra,
faziam parte do governo brasileiro durante a ditadura. A “nova forma de ocupação do
Estado” (NAPOLITANO, 2011: p. 215) instaurada com o golpe de 1964 abarcava também
grupos como liberais-conservadores, parcelas das classes médias, setores da Igreja
católica, dentre outros. A unificá-los, estava o outro imaginário que instituía o Projeto
Rondon: o anticomunista (MOTTA, 2002: p. 231-278). No caso do programa de extensão,
este imaginário expressava-se por meio da preocupação com o combate às atividades de
oposição ao regime ditatorial entre os estudantes universitários.

As ações de estudantes em torno do Projeto Rondon são representativas do “leque


de possibilidades intermediárias” (MOTTA, 2014: p. 310) entre a resistência ativa ao regime
e a adesão aos seus valores, tais como o nacionalismo ufanista de fins da década de 1960.
Houve desde boicotes ao programa de extensão universitária, como o realizado em 1968
pelo DCE da Universidade Federal de Minas Gerais (ROSENBAUM, 1971: p. 295-196), até
a participação a longo prazo de estudantes que, posteriormente, tornaram-se gestores do
Projeto Rondon, passando a coordenar as atividades dos novos rondonistas entre as
décadas de 1970 e 80. Essa variedade de comportamentos dos universitários diante de uma
atividade promovida pelo governo militar é indicativa da própria diversidade dos estudantes
do período, que não se restringiam àqueles que participavam dos movimentos estudantis.
Para alguns desses jovens, ser um rondonista supria demandas materiais ou simbólicas tão
diferentes como viajar para o interior do Brasil, ajudar pessoas mais pobres por meio da
construção de equipamentos públicos em pequenas cidades, obter uma experiência
profissional ou engajar-se em uma atividade cívica e nacionalista.

As políticas educacionais do regime, além disso, eram convergentes com a criação


do Projeto Rondon na medida em que buscavam empreender uma modernização
conservadora no ensino superior tendo como referência as instituições universitárias norte-
americanas. Essas políticas eram modernizadoras porque buscavam flexibilizar a estrutura
das universidades e atender a demanda crescente das classes médias por mais vagas no
ensino superior, mas eram também autoritárias porque perseguiam, vigiando e
aposentando, os professores universitários, e objetivavam enquadrar os movimentos
estudantis para minar seu potencial contestatório (CUNHA, 2007: p. 68-69 e p. 287-288). O
Projeto Rondon, nesse sentido, possuía tanto uma faceta ligada à política social de
diminuição das desigualdades regionais no Brasil como um aspecto educacional ligado à
instrução para o trabalho e ao que os gestores educacionais denominavam de
“despolitização do ensino” (MATHIAS, 2004: p. 167-171).
Envolvendo milhares de brasileiros especialmente entre os meses de janeiro,
fevereiro e julho, as operações do Projeto Rondon mobilizavam os estudantes do país para

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a atuação em atividades assistencialistas no interior do Brasil com o auxílio de militares e


professores universitários. Por um lado, o Projeto Rondon foi uma forma encontrada por
setores do governo militar de lidar com o que denominavam de “questão estudantil” em fins
da década de 1960. Uma prática que ia além da simples repressão às entidades estudantis,
também largamente utilizada. Para esses atores políticos, representações do imaginário
anticomunista significavam e constituíam as ações dos rondonistas, já que era preciso
afastar a “subversão” dos meios universitários. Por outro lado, o Projeto Rondon aparecia
como uma “aula prática de Brasil”. O imaginário nacionalista, nesse sentido, também
instituía o programa de extensão, na medida em que alguns dos objetivos centrais do
Projeto Rondon eram integrar o Brasil e dar a conhecer o interior do país aos estudantes
universitários. Essa representação do interior a ser experimentada, no entanto, era bem
delimitada e dizia respeito, na perspectiva dos gestores do Projeto, à unidade nacional, às
riquezas naturais do país e ao destino de grandeza do Brasil. Enfim, nas palavras do
tenente-coronel Mauro da Costa Rodrigues, em sua entrevista à revista Veja, o Projeto
Rondon “estará criando uma consciência nacional e tornado realidade o nosso sonho de
integração que, ainda hoje, existe apenas nos mapas” (Veja, edição nº 22, 5/2/1969, p. 46).

Referências

1) Acervos pesquisados

Biblioteca Central da UFMG – Fundo ASI/UFMG – Belo Horizonte, Minas Gerais.

Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional – Online.

Acervo digital da revista Veja – Online.

2) Fontes

AULA de Brasil desconhecido, Veja, edição nº 17, 1/1/1969, p. 14-15.

AULA prática de Brasil, Veja, edição nº 22, 5/2/1969, p. 44-46.

CORONEL Rodrigues desmente acusação ao Projeto Rondon, Correio da Manhã,


5/10/1968, 1º Caderno, p. 3.

Diário do Congresso Nacional, Seção I, ano XXII, nº 89, 4 de agosto de 1967.

Diário do Congresso Nacional, Seção I, ano XXIII, nº 175, 8 de outubro de 1968.

FILHO, Gastão Patusco. “Entrevista: Mauro Costa Rodrigues. ‘Não queremos moços
conformados’”. Veja, São Paulo, Edição 49, 13 de agosto de 1969, p. 3-6.

3) Bibliografia

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CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e


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CUNHA, Luiz Antônio. A universidade reformanda: o golpe de 1964 e a modernização do


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MARTINS FILHO, João Roberto. A rebelião estudantil: 1968 – México, França e Brasil.
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MATHIAS, Suzeley Kalil. A militarização da burocracia: a participação militar na


administração federal das comunicações e da educação, 1963-1990. São Paulo: Editora
UNESP, 2004.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil.
São Paulo: Perspectiva, 2002

_______________________. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e


modernização autoritária. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

NAPOLITANO, Marcos. O golpe de 64 e o regime militar brasileiro: apontamentos para uma


revisão bibliográfica. Contemporanea – História y problemas Del siglo XX.
Montevidéu/Uruguai, v. 2, 2011, p. 209-217.

REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. 2. Ed. Rio de Janeiro: Zahar,
2002.

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ROSENBAUM, J. Jon. Project Rondon, a Brazilian Experiment in Economic and Political


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2, vol. 30, abril/1971, p. 187-201.

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A Polícia Militar do Estado de São Paulo durante a ditadura civil-militar (1970-


1982): notas de uma pesquisa

Gabriel dos Santos NASCIMENTO


Mestrando na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
gabrielsn87@gmail.com

A repressão é um dos temas mais abordados pela bibliografia sobre a ditadura. No


entanto, a maior parte dos trabalhos concentra-se nos órgãos de repressão política,
deixando de lado as demais corporações. A esfera da segurança pública como um todo
sofreu grande processo de reestruturação, sendo militarizada e instrumentalizada sob a
lógica de combate à subversão. Visando fazer apontamentos neste campo pouco explorado,
este trabalho fará uma discussão sobre o caso da Polícia Militar do Estado de São Paulo,
entre 1970, ano de sua fundação, após a unificação da Força Pública e da Guarda Civil, e
1982, ano da primeira eleição direta para Governador. Tentando superar a notória
dificuldade de acesso às fontes policiais do período, são utilizados o acervo do DEOPS/SP,
livros do jornalismo policial da época, livros de policiais, além da documentação disponível
no Museu de Polícia.
A polícia é tema recente na historiografia brasileira, sendo objeto de estudo apenas a
partir dos anos 1980. Trabalhos importantíssimo sobre a polícia no final do Império e na
Primeira República, incorporaram dicussões que estavam sendo feitas já na Europa e nos
EUA (BRETAS, 1997a, 1997b e ROSEMBERG, 2010).A polícia não deveria mais ser vista
como um simples instrumento do Estado, mas uma organização "complexa" (MONJARDET,
2006, p.23) tensionada sempre entre os objetivos do Estado e os interesses e perspectivas
dos individuos que a compõe. Esse campo de estudos continua em expansão, porém, ainda
limitado principalmente ao período pré-30. Alguns poucos trabalhos abordaram a polícia na
Era Vargas e no período democrático posterior (BATTIBUGLI, 2010), enquanto, por outro
lado, as ciências sociais também produziram extenso material sobre a polícia após a
redemocratização (ALVAREZ et al., 2004). O período da ditadura militar, no que diz respeito
à polícia, permanece um campo praticamente inexplorado pela academia.
Para melhor compreender melhor o papel da polícia nesse período, se mostra
bastante útil o conceito de “utopia autoritária” utilizado por Carlos Fico (2001, pp. 41-42 e
2004, p. 75).1 Segundo o autor, ao chegar ao poder, os militares não constituíam um grupo
coeso com um projeto político definido. O que os motivou ao golpe foi, basicamente, o temor
de que a subversão e o comunismo se instaurassem no país. A adesão total à “Doutrina de
Segurança Nacional”, enquanto projeto estruturado de sociedade e concepção de realidade
1
A expressão aparece pela primeira vez na Introdução da obra conjunta Visões do Golpe de Maria
Celina D'Araújo, Gláucio Ary Dillon Soares e Celso Castro (1994, p.9), mas é melhor desenvolvida
posteriormente por Carlos Fico (2001, pp.41-42 e 2004, p.75).

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política, aplica-se apenas a uma pequena parcela de oficiais. No cotidiano do regime, os


pontos da doutrina efetivamente se mesclam entre si e com concepções externas, dando
origem às mais variadas posturas diante dos fatos. O que permanece como constante é a
busca por uma progressiva institucionalização do aparato repressivo, sob o comando das
Forças Armadas, o que garantiria a supressão da subversão permanentemente.
Dessa maneira, ocorreu um intercâmbio entre as práticas repressivas destinadas aos
criminosos de diferentes classes, e a violência aplicada anteriormente como “necessária”
contra os pobres, passa a ser vista igualmente como “necessária” contra a classe média.
Em contrapartida, ocorre uma sofisticação na aplicação da violência, com o
desenvolvimento de diversas técnicas de tortura física e psicológica. Essas técnicas seriam
utilizadas também contra os criminosos comuns (PINHEIRO, 1981, pp.33 e 1985, pp. 83-
84).
Os textos que de alguma forma discutem a polícia no período da ditadura podem ser,
grosso modo, divididos em três grupos: jornalistas, alguns poucos cientistas políticos e
policiais. Entre os jornalistas, o trabalho mais conhecido é o livro-reportagem ROTA 66:
a história da polícia que mata, do jornalista Caco Barcellos (1992). Neste livro, o autor
analisa a atuação da PMESP, se detendo especialmente nas Rondas Ostensivas Tobias de
Aguiar (ROTA), grupo de elite da Polícia Militar. O grande número de mortos em
circunstâncias suspeitas e a absoluta impunidade dos membros do Batalhão levam o autor à
tese de que a ROTA seria um “esquadrão da morte oficial” (BARCELLOS, 1992, p.119).
Percival de Souza, importante jornalista policial atuante já nos anos 70, possui
diversos livros onde relata episódios envolvendo criminalidade e violência policial (SOUZA,
1978 e 1981, por exemplo). Devido ao bom trânsito que possuia entre os policiais, seus
livros são repletos de relatos internos, na maior parte anônimos, formando cenários do
cotidiano policial, mostrando muito de suas regras e valores internos, que mutas vezes
passam ao largo da lei. É perceptível um tom fortemente moralista, onde os abusos de
poder e a corrupção são tributados à falhas de caráter de alguns indivíduos.
No campo da ciencia política, a atuação da polícia militar neste período só é
comentada de maneira periférica, como introdução à sua atuação em outros contextos (por
exemplo, NEME, 1999; ZAVERUCHA, 2010). A principal exceção é o artigo de Paulo Sérgio
Pinheiro intitulado Polícia e Crise Política: o caso das polícias militares, publicado em 1982,
portanto, ainda durante a ditadura. Nele, o autor argumenta que a extrema violência que
tomou conta da polícia militar principalmente a partir do fim dos anos 1960 é consequência
da crise política instaurada a partir do “golpe da junta militar em 1969”. Esta crise, resultado
da disputa de poder entre os diferentes setores das classes dominantes e dos setores do
aparelho de Estado, culminou no predomínio da concepção de que o poder deveria ser

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mantido principalmente pela coerção física. É nesse contexto que ocorre a reestruturação
das forças policiais, que origina a PMESP (PINHEIRO, 1982, p. 74).
Por fim, existem ainda alguns livros escritos por policiais. Assumindo um discurso
abertamente conservador, há as obras de Conte Lopes (1994) e Paulo Telhada (2011)
ambos oficiais da ROTA, conhecidos por possuir um extenso número de cadáveres em seus
currículos. O livro de Conte Lopes, Matar ou Morrer, foi escrito como forma de defesa contra
as acusações de Caco Barcellos (1992) de que ele não passaria de um "matador de
inocentes". O livro está repleto de histórias de sua carreira, envolvendo, em geral,
dramáticas cenas de tiroteios contra bandidos inescrupulosos que ameaçavam vítimas
indefesas. Já o livro do Coronel Telhada, apesar de conter vários casos de "heroísmos" de
policiais mortos em serviço, concentra-se em traçar uma cronologia do 1° Batalhão da PM,
de forma bem convencional, narrando mudanas organizacionais e burocráticas. Em ambos,
é bem perceptível a ideia, muito forte na PM, de que o policial é uma reserva moral em
guerra permanente contra o crime e contra detratores (de esquerda).
No campo político oposto, há o livro do Coronel Vicente Silvestre (1985). Silvestre
era parte do "setor militar" do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que se articulava dentro da
Guarda Civil e da Força Pública desde os anos 50. O grupo conseguiu maner a articulação
mesmo após o golpe, sendo desmantelado apenas em 1975.2 O livro de Silvestre, apesar de
não abordar a sua militância, mas sim narrar uma história da Guarda Civil, deixa bastante
evidente uma diferença de visão do trabalho policial para com Telhada e Conte Lopes. Não
há violentos confrontos heróicos, tiroteios ou perseguições. O trabalho da Guarda Civil é
descrito muito mais como um serviço à população do que como uma "guerra contra o crime".
Há também uma ênfase nos clubes e associações de policiais (ausentes nos outros
trabalhos) onde se reforça o papel do nacionalismo de esquerda na sua constituição.
O sistema de segurança pública brasileiro tem suas principais corporações no âmbito
estadual. Até 1970, o sistema de segurança pública do estado de São Paulo era composto
basicamente por três corporações: a Força Pública, a Polícia Civil e a Guarda Civil.
A Polícia Civil exercia funções de polícia administrativa e judiciária, ou seja, era
responsável por instaurar inquéritos, realizar o cadastro e identificação de pessoas e
organizações, fiscalizar hotéis e pensões, licenciamento de veículos, realizar investigações,
além de diversas tarefas de assistência social. O delegado, bacharel em Direito, era a
principal autoridade a coordenar as tarefas de policiamento, realizado pelas outras
corporações. A Polícia Civil possuía ainda diversas delegacias especializadas, voltadas a
questões de costumes, menores, jogos, etc, das quais a mais importante era, sem dúvida, o
Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) (Battibugli, 2010, pp. 43-48)
2
Dossiê 50-D-18-2458 ao 2431 "Subversão na PM". DEOPS/SP. Arquivo Público do Estado de São
Paulo.

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A Força Pública (FP) era a maior corporação do estado, com um efetivo três ou
quatro vezes superior ao da Polícia Civil, dependendo do ano, e em média duas vezes maior
que o da Guarda Civil. Era a corporação responsável pela maior parte das tarefas de
policiamento, executando-o nas áreas onde a Guarda Civil não atuava, além de fazer
escoltas, controle do tráfego, serviço de guarda de edifícios públicos e incluía ainda o Corpo
de Bombeiros. Era uma corporação com forte caráter militar, com uma hierarquia
estruturada nos moldes do Exército, dividida entre praças e oficiais. Apesar disso, até a
segunda metade dos anos 60, não havia nenhuma subordinação de fato da Força Pública
às Forças Armadas.
A Guarda Civil (GC) era uma corporação civil fardada, com função de fazer
policiamento de rua e guarda de trânsito. Diferente da Força Pública, a Guarda Civil possuia
uma estrutura de carreira única, não tendo sendo sbordinados a nenhum código militar. Nos
anos 60, a sua atuação restringia-se ao centro da capital e a algumas das principais cidades
do interior, ficando as demais localidades com policiamento exclusivo da Força Pública
(BATTIBUGLI, 2010, p.55).
Em Abril de 1964, tanto a Guarda Civil quanto a Força Pública colaboraram com o
golpe. Os boletins de ambas as corporações trazem notas dede celebração do golpe,
indicando o total apoio da cúpula.3 No caso da Guarda Civil, o apoio não partiu somente da
instituição, mas de parte dos policiais, através do Centro Social dos Classes Distintas, que
lançou um Manifesto.4 No documento, os guardas apresentam a visão de 31 de março não
como um golpe ou uma revolução, mas como um ato de defesa da legalidade e da
liberdade. Ao fim conclamam todas as pessoas a colaborarem, principalmente os demais
guardas, pois “a luta pela Lei e Pela Ordem está inciada. Os Classes Distintas estão nas
trincheiras da Legalidade”.5
Por outro lado, se o comando das corporações estava totalmente alinhado ao golpe,
o mesmo não ocorreu com a totalidade dos soldados. O Boletim da Força Pública de 23 de
Abril de 1964 informa que, na noite do dia 1 de abril, foi distribuído em algumas unidades da
corporação, um manifesto do Centro Social dos Cabos e Soldados (CSCS), assinado pelo
seu presidente, Oirasil Werneck, incitando “as praças da Corporação à desordem e à
indisciplina”, opondo-se ao golpe. Foi aberto Inquérito Policial Militar (IPM) para investigar o
caso, chegando ao nome de seis soldados, inclusive do diretor do CSCS, que foram

3
Boletim Geral da Força Pública do Estado de São Paulo nº 68, 10 de abril de 1964, Anexo. Museu
de Polícia Militar; Boletim Geral da Guarda Civil de São Paulo nº 62, 3 de abril de 1964, Anexo.
Museu de Polícia Militar.
4
O equivalente militar do cargo Guarda Civil de Classe Distinta seria, a patente de Sargento, um dos
maiores postos entre os praças. Eram a classe mais alta da Guarda Civil a fazer policiamento de rua,
fiscalizando os demais guardas.
5
Boletim Geral da Guarda Civil de São Paulo, nº 60, 1º de abril de 1964, Museu de Polícia. página
sem número

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enquadrados no art. 7 do Ato Institucional nº1, que prevê demissão de funcionários públicos
vitalícios ou estáveis, caso atentem contra o regime. Diante disso, o Comandante Geral da
Força Pública decidiu encaminhar o caso, em primeiro lugar ao Governador do Estado, em
segundo lugar à Justiça Militar do Estado, e, por último, encaminha cópia ao comandante de
um quartel da aeronáutica citado na investigação. Estando sujeitos ao Código de Justiça
Militar, os seis policiais tiveram prisão decretada por 30 dias, a partir de 20 de abril.6
Até 1967, não houve nenhuma grande mudança na estrutura policial. A “eleição” de
Costa e Silva marca a chegada da “linha-dura” ao poder, que possibilita uma radicalização
do projeto repressivo. É promulgada uma nova Constituição, uma nova Lei de Segurança
Nacional (LSN), uma nova Lei de Imprensa e se inicia uma reforma administrativa. É
promulgada também a nova Lei Orgânica da Polícia (Decreto-lei nº 317, de 13 de Março de
1967) que institui a Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGPM), ligada ao Ministério da
Guerra (HUGGINS, 1998: 151). A retomada das manifestações de rua, principalmente na
primeira metade de 1968, coloca a Força Pública e a Guarda Civil em confroto direto com
setores da classe média nos grandes centros urbanos. A guerrilha urbana inicia suas
primeiras ações, se tornando mais ativa após a promulgação do AI-5, em dezembro de
1968. Diante dessa crise, em 1969, são elaborados um novo Código Penal e um novo
Código de Processo Penal Militar, mais rigorosos e é alterada a LSN. Em São Paulo, é
criada a Operação Bandeirantes (Oban), um novo órgão da repressão, que unia membros
das Forças Armadas e das polícias. A sua estrutura unificada e centralizada, pensada para
um combate mais eficiente à guerrilha, foi depois transportado para o resto do país sob a
forma do DOI/CODI (FICO, 2001, p. 118).
Em Julho desse mesmo ano, ao mesmo tempo em que se cria a Oban, seria
promulgado mais um decreto (Decreto-lei nº 667), que atribuiu exclusividade do policiamento
de rua às policias militares. Avança o processo de centralização das forças policiais, com a
unificação da Guarda Civil com a Força Pública, o que, após mais algumas leis reguladoras,
culmina com a criação da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP), em abril de
1970. Esse processo não foi bem recebido pelo conjunto das duas corporações. Relatórios
do DOPS apontam que oficiais da Força Pública de São Paulo e de Minas Gerais estariam
fazendo reuniões secretas para se articular contra a nova Lei Orgânica da Polícia, pela
extinção da IGPM e pela volta do comando às mãos de um integrante da corporação e não
mais do Exército. Um relatório do Serviço Secreto do Estado Maior da PM de Minas Gerais
mostra grande preocupação diante da possibilidade de levante armado da polícias militares
paulista e mineira, porém, ressalta que o movimento não tem um caráter “esquerdista”, mas

6
Boletim Geral da Força Pública do Estado de São Paulo, nº 74, 20 de abril de 1964, Museu de
Polícia. pp. 1012-1013

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que os policiais apenas temem que o Exército tire suas armas.7 O próprio Comandante
Geral da Força Pública, José Antônio Barbosa de Moraes, chegou a encaminhar um ofício
ao Secretário de Segurança Pública se posicionando contra o ante-projeto de lei orgânica da
polícia.8
Na Guarda Civil a situação era ainda mais tensa, pois a perspectiva de seus
membros era de que a corporação estava sendo dissolvida. Vicente Silvestre relata uma
sensação de humilhação perante o descaso geral do governo do Estado com as demandas
da GC ao longo de 1969 (SILVESTRE, 1985, p. 103). O debate sobre a unificação das
polícias precede em muito o golpe. No entanto, ele apontava para a unificação em torno de
um único corpo policial civil (BATTIBUGLI, 2010, pp. 179-188). A unificação de 1969
representou, na prática, a dissolução da Guarda Civil, tendo como resultado o aumento do
poder da Polícia Militar, em detrimento da Polícia Civil, particularmente nas operações de
rádio-patrulha, o que, inclusive, causou desconfortos e protestos entre estes (HUGGINS,
1998, p. 153).
A nova corporação é fortemente subordinada ao Exército, tendo seu comandante
como obrigatoriamente um oficial da ativa do Exército e não mais da própria corporação. O
Secretário de Segurança Pública passa a um militar nomeado somente com autorização do
Governo Federal. Segundo Cristina Neme, “se até 1967 as polícias estaduais eram
empregadas na repressão física através da Secretaria Estadual de Segurança Pública, com
a reorganização das forças policiais, em 1969, as polícias militares foram diretamente
envolvidas na repressão à dissensão popular, sob controle operacional do Exército” (NEME,
1999, p. 53).
Assim, o policiamento foi colocado sob a lógica da Doutrina de Segurança Nacional.
A Polícia Militar, teria como uma de suas funções o combate à guerrilha urbana, evitando
assim o desgaste da presença do Exército nas ruas (HUGGINS, 1998, p. 201-202). No
entanto, alguns autores ressaltam que não se deve superestimar a influência da Doutrina de
Segurança Nacional na polícia. Paulo Sérgio Pinheiro afirma que a Doutrina não alterou o
caráter da antiga Força Pública, que continuou violenta, mas serviu como uma nova
justificativa para os abusos (PINHEIRO, 1982, pp. 60-61). No livro Operários da Violência, a
socióloga Martha Huggins e os psicólogos Mika Haritos-Fatouros e Phillip Zimbardo (2006),
analisando o treinamento a que eram submetidos os ingressantes na PM, concluem que a
Doutrina de Segurança Nacional era “culturalmente difusa”, não sendo abraçada
automaticamente por todos e não implicando necessariamente na generalização da prática
de atrocidades contra criminosos. Muitos policiais, inclusive, se lembram com desdém

7
DEOPS. Relatório. 50-D-18-1020, Arquivo Público do Estado de São Paulo, 28/01/1968
8
DEOPS, 50-D-1018, Arquivo Público do Estado de São Paulo. O ofício original não tem data, mas foi
arquivado pelo DEOPS em 8 de Abril de 1968.

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desses ensinamentos. No geral, não há uma reflexão sobre ameaças a segurança nacional
por parte dos policiais, somente a ideia de que bandidos devem ser combatidos.
A guerrilha urbana, no fim dos anos 60 e início dos 70, fazia parte do cotidiano
policial, misturando-se com as operações contra o crime comum. O Boletim da Força
Pública de 9 de abril de 1970 apresenta três pedidos da Comissão de Promoção de Praças
(CPP) ao Comandante Geral. O Soldado PM Djalma Oliveira da Silva, do 1º Batalhão
“Tobias de Aguiar” recebeu uma proposta de promoção a cabo por ter colaborado na ação
que culminou na morte de Carlos Marighela, no dia 4 de novembro de 1969. O soldado
tornou-se um “exemplo vivo a ser seguido” quando, “agindo com desassombro e bravura”
utilizou seu cachorro adestrado para impedir a fuga de Frei Ivo, um frade dominicano que,
após ter sido torturado no DOPS, serviu de isca para Marighela. Já o Cabo PM Jorcelino
Santos da Silva e o Soldado PM Edwin Obst, ambos do 9º Batalhão Policial, foram
contemplados com pedidos de promoção após captura de “uma quadrilha de perigosos
assaltantes” liderados pelo bandido “Caveirinha”. A prisão envolveu perseguição e tiroteio,
onde o Cabo foi ferido. O terceiro caso também diz respeito à prisão de guerrilheiros.9 A PM
se envolveu diretamente no combate à guerrilha e seus soldados também eram alvo dos
ataques dos guerrilheiros. Um acontecimento pouco comentado pela bibliografia, mas que
teve grande impacto sobre a polícia militar foi a morte do Tenente Alberto Mendes, do 1º
Batalhão “Tobias de Aguiar”, em abril de 1970. O Tenente foi morto a coronhadas pela
Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), grupo de Carlos Lamarca, após ter sido
capturado em um conflito entre os guerrilheiros e a PM. A sua morte causou grande
comoção, e o Tenente foi nomeado “Herói Símbolo da Polícia Militar”. Essa fato, no entanto,
só é comentado em algumas memórias de policiais e de outros agentes da repressão.10
Ao longo dos anos 70, diversos oficiais vão realizar treinamentos com as Forças
Armadas, além dos currículos de formação passarem a incluir disciplinas sobre Segurança
Nacional e Guerra Revolucionária.11 As Tropas de Choque, que antes permaneciam
aquarteladas, aguindo apenas em casos de "distúrbios civis" são colocadas para realizar o
policiamento. Algumas delas, com função primordial de combate à guerrilha. Em 1970, o 1º

9
Boletim Geral da Força Pública do Estado de São Paulo, nº 66, 9 de abril de 1970, pp. 19-22
10
O seu cortejo foi seguido por mais de 10 mil pessoas, de acordo com o Jornal do Brasil, contando,
inclusive com a presença do Governador. Ver, Ulstra, 1987, p. 84 e Memorial do Cap. Alberto Mendes
Júnior situado no Museu de Polícia. Ustra ressalta bastante o impacto público de sua morte na época.
O autor, tenente-coronel do Exército e integrante do DOI/CODI paulista no início dos anos 70,
escreveu o livro numa tentativa de se defender das acusações de torturador que pesam contra ele.
Argumentando que todo o trabalho da repressão foi com o sentido de combater o “terrorismo”, ele
mostra diversos casos de vítimas dos grupos guerrilheiros, em geral militares ou policiais. São
apresentados como “Vítimas do Terror”, em oposição às “Vítimas da Tortura”, e mártires da
democracia. O caso também é comentado no livro do ex-policial da ROTA , Conte Lopes (1994)
11
Por exemplo, Boletim Geral da Polícia Militar do Estado de São Paulo, n° 11, 16 de Janeiro de
1973; n° 122, 4 de Julho de 1973; n° 14, 21 de Janeiro de 1974; n° 62, 3 de abril de 1974;

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Batalhão “Tobias de Aguiar”, foi convertido nas Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA),
para cumprir função de Ronda Bancária contra os assaltos a banco da guerrilha. Era
constituído por equipes motorizadas de quatro homens com armamento pesado. Com a
derrota da guerrilha, ainda no início dos anos 70, as Tropas de Choque foram mantidas no
policiamento e na repressão ao crime comum. Já existiam rondas semelhantes desde o fim
dos anos 50, mas elas ficavam a cargo da Polícia Civil. Muitos autores consideram que foi a
partir dessas Rondas que surgiu o Esquadrão da Morte (PINHEIRO, 1982, p. 70; HUGGINS,
1998, pp. 158-159).12 A ROTA se tornou célebre devido à sua grande violência e número de
mortos, tudo sob a conivência do Estado, que garante a impunidade. Isso levaria alguns
autores a classificá-la como a “institucionalização” do Esquadrão da Morte (PINHEIRO,
1982, p. 72; BARCELLOS, 1992, p. 119).
O discurso de Segurança Nacional é utilizado para legitimar a violência policial contra
grupos que não tem nenhuma relação com a subversão. Através da documkentação é
possível observar como a lógica da Doutrina de Segurança Nacional é absorvida e
instrumentalizada pela PM.
No fim dos anos 70, os jornais mostram uma grande preocupação com os
“trombadinhas” no centro de São Paulo. A solução posta em prática pela PM é utilização de
caratecas – policiais à paisana com treinamento em caratê – que farão patrulhas a pé pelas
ruas, em busca dos bandidos (em geral menores de idade). O que chama atenção (além da
heterodoxia da proposta) é a associação permanente feita com o combate à guerrilha do
início da década de 70. O idealizador da ação é o delegado Mitsuyuki Taniguchi, faixa preta
em caratê e ex-membro do Batalhão de Choque da PM, que promete usar a sua experiência
no combate à subversão nesta nova empreitada13. A relação de fato entre essa operação e o
combate à guerrilha não é explicada nos recortes existentes no Dossiê. A “contraguerrilha”
parece ter muito mais sentido como legitimação da prática, para policiais e para o público,
do que modelo de repressão neste caso. A relação que de fato ocorre com frequência é a
utilização do problema dos trombadinhas para reivindicar um endurecimento na legislação e
no sistema de segurança pública.14
Outro caso emblemático abordado pela imprensa aconteceu em março de 1973
quando, durante um jogo de futebol, o torcedor José da Silva cruzou a linha do campo e foi

12
Antes de ser promovido ao DOPS, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, conhecido por seu
envolvimento no Esquadrão da Morte paulista, era membro de uma dessas Rondas, as Rondas
Noturnas Especiais da Polícia Civil (RONE). Martha Huggins mostra indícios de que, em algum
momento, no início dos anos 60, Fleury foi estimulado por seus superiores a montar o Esquadrão da
Morte.
13
JORNAL DA REPÚBLICA 20/12/79. DEOPS. OP 1161 Trombadinhas. APESP.
14
JORNAL DA TARDE 09/09/77. DEOPS. OP 1161 Trombadinhas. APESP. O artigo, entre outras
coisas, acusa a esquerda internacional de fazer uma campanha para desarmar as polícias, deixando-
as indefesas.

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atacado por oito soldados da PM, que o espancaram até a morte. A indignação popular foi
tamanha que os PMs foram cercados pelos torcedores, tendo que que solicitar reforços para
conseguirem sair do estádio. Questionado posteriormente sobre o ocorrido, o comando da
PM alegou, inicialmente e sem apresentar nenhuma prova, que José da Silva era um
subversivo.15 Desta forma, o suposto crime político, visto como principal ameaça no início
dos anos 70, é utilizado na tentativa de legitimar o arbítrio policial.
O projeto repressivo e conservador, no entanto, não era aceito sem resistências
dentro da corporação. O caso mais notável foi a denúncia, em 1974, contra um grupo de
policiais militares de integrar o PCB. Foi aberto um processo na Comissão Estadual de
Investigações (CEI)16 que apontava para a atuação dos antigos membros da já extinta
Guarda Civil, liderados pelo Ten. Cel. Vicente Sylvestre, que, através do Centro Social dos
Guardas Civis de São Paulo e da Polícia Militar, fariam “política classista”.17 Um ano depois,
o “setor militar” do PCB seria desmantelado com a prisão preventiva de 24 policiais militares,
incluindo Vicente Sylvestre, além de vários outros indiciados, totalizando 76 envolvidos,
inclusive no 1º Batalhão “Tobias de Aguiar”.18 No relatório do DEOPS sobre a questão nota-
se a grande preocupação com a possibilidade de perda de controle da Polícia Militar.
Sylvestre, “Doutrinador do PC”, é acusado de, desde de seus tempos na Guarda Civil, tentar
montar um “poderoso exército paralelo às Forças Armadas”, conspurcando “ (…) os
sagrados solos das casernas, onde se cultua precipuamente o amor à Pátria e às
19
Instituições”.
O caso atraiu atenção da imprensa nacional e internacional, que questionou o
tratamento dado aos policiais e a validade das confissões obtidas através de interrogatórios
com suspeita de violência. Um dos policiais presos, o Tenente José Ferreira de Almeida, 63
anos, morreu na prisão, supostamente por suicídio, de acordo com a versão oficial.20 No
Jornal do Brasil de 26 de maio de 1976, Vicente Sylvestre relata que foi torturado no DOI-
CODI, confessando a sua relação com o PCB.21 Em seguida foi expulso da PM, condenado
a dois anos de prisão e relegado à condição de “morto-vivo, proibido de exercer quaisquer
atividades públicas ou privadas e sua mulher foi conduzida à condição de viúva de marido

15
O GLOBO. 20/03/73. DEOPS. 50-D-18-2342. APESP
16
A CEI foi instituída através do Decreto-lei nº 6, de 6 de março de 1969, do Governador Abreu
Sodré. Estava sobre a responsabilidade da Secretaria de Segurança Pública e tinha a função de
investigar denúncias contra servidores públicos estaduais, civis e militares, incluindo denúncias de
subversão.
17
DEOPS. Relatório: Militares envolvidos em processos na CEI. 1974. 50-D-18-2318. APESP
18
DEOPS. Inquérito do PCB (PMs). 1975. 50-D-18-2476
19
DEOPS. Inquérito do PCB (PMs). 1975. 50-D-18-2458
20
DEOPS. Relatório: Jornal 'Los Angeles Times” publica prisão de comunistas. 1975. 50-D-18-2408.
APESP
21
JORNAL DO BRASIL 26/5/76 DEOPS. 50-D-18-2480

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vivo para receber uma pensão do Estado”.22 A utopia autoritária não poderia tolerar
subversão dentro do aparato repressor.
Além disso, as divergências entre os policiais, principalmente nas disputas de poder
entre a Polícia Civil e a Polícia Militar, indicam a dificuldade de se realizar plenamente o
projeto repressor. Os relatórios do DEOPS trazem registros dos conflitos entre as
corporações policiais. Brigas entre PMs e investigadores civis eram comuns.23 Chama
atenção o caso ocorrido em 16 de março de 1973, quando o investigador do DEOPS José
Roberto de Arruda parou o seu carro próximo ao DETRAN porque estava passando mal,
quando foi abordado por uma Ronda da PM. Ao descobrirem que se tratava de um agente
do DEOPS, os PMs o levaram até o pátio do DETRAN e chamando “reforços”. Arruda foi,
então, espancado por nove policiais militares. No mesmo dia o investigador se queixou ao
DEOPS e foi aberto um inquérito para apurar os fatos.24 O DEOPS era o Departamento da
Polícia Civil que gozava de maior prestígio durante a ditadura. Portanto, é provável que a
punição pela agressão fosse algo esperado. Mesmo assim, a oportunidade de espancar um
investigador pareceu compensar o risco para os PMs.
Apesar disso, a violência policial mostra um recrudescimento ao longo do período. A
sua impunidade era facilitada pelo fato dos PMs gozarem de foro militar. Assim, crimes
cometidos durante o serviço eram julgados pela Justiça Militar Estadual (JME), órgão
acusado várias vezes de corporativista, que, em geral, inocentava policiais de crimes
cometidos contra civis. Neme mostra que havia grande controvérsia sobre este ponto, pois
havia divergência de jurisprudência, o que permitia que PMs fossem também processados
na Justiça Comum.25 Essa divergência só foi “resolvida” em 1977, quando o general
presidente Geisel editou a Emenda Constitucional nº 7, conhecido como “Pacote de Abril”.
Editado após a derrota do Arena nas eleições, o “Pacote” declarou o fechamento do
Congresso por 14 dias, instituiu os senadores “biônicos” (nomeados pelo Governo Federal)
e também introduziu pela primeira vez de forma explícita na Constituição a competência da
JME para julgar crimes cometidos por policiais militares. A partir daí o STF passou

22
Battibugli 269. Sylvestre relata ainda que seu processo foi revisto em 1984 e anulado. Voltou ao
serviço da ativa, foi promovido a coronel, mas não teve disposição de continuar, solicitando
passagem à reserva (aposentadoria para militares).
23
Ver, por exemplo, DEOPS. Mensagem nº 5644/74. 50-D-18-2321. APESP. Trata-se de uma
briga entre um policial militar e um policial civil.
24
DEOPS. Mensagem 567. 1973. 50-D-18-2310. Ao informe seguem diversos recortes de jornal,
indicando a grande repercussão na imprensa.
25
A lei federal nº 192/36 e a lei estadual nº 2.856/37 já definiam a competência da JME para julgar
“crimes militares definidos em lei”. No entanto, a Súmula 297, editada pelo Supremo Tribunal Federal
(STF) em 1963 considerava policiamento uma atividade civil, estando os seus crimes sujeitos à
Justiça Comum. Depois do golpe foram editados os decretos nº 317/67, nº 667/69, nº 1072/69 e nº
66. 862/70, que definiam os crimes praticados durante o policiamento como sob jurisdição da JME. O
STF, no entanto, mantinha o seu entendimento de que se tratava de assunto civil (NEME, 1999, p. 70-
72).

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reconhecer a sua competência, anulando processos da Justiça Comum contra policiais.26


Paradoxalmente, a abertura democrática “lenta, gradual e segura” coincide com um
período de grande violência policial, principalmente no início dos anos 80. Ao lado das
discussões sobre Direitos Humanos e Anistia, surgem demandas de aumento da repressão,
como pela institucionalização da “prisão para averiguação”27, redução da maioridade penal e
instauração da pena de morte. Com a bandeira de defesa dos Direitos Humanos, Franco
Montoro (PMDB) assume o governo de São Paulo, em março de 1983, como o primeiro
governador eleito por voto direto desde 1966. Seu governo será marcado pela tentativa
(fracassada) de instituir uma “Nova Polícia”, através da reforma do sistema de segurança
pública de São Paulo, afetando diretamente as Polícias Civil e Militar. A gestão Montoro
apresenta uma complexidade própria, bastante discutida por Guaracy Mingardi, estando
portanto, excluída do escopo deste artigo (MINGARDI, 1992, pp. 63-127).

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26
Um exemplo é o caso ROTA 66, onde processo na Justiça Comum, que apontava para a
condenação de uma equipe da ROTA pelo assassinato de três jovens da classe média paulistana. O
caso aconteceu em 1975, mas se estendeu por anos. Em abril de 1979, os acusados tiveram seu
recurso extraordinário, alegando incompetência da Justiça Comum, negado pelo STF. Em outubro do
mesmo ano, o foi impetrado um pedido de habeas corpus sob o mesmo argumento, sendo que dessa
vez foi aceito, com base na Emenda nº 7, e o processo civil foi anulado. (NEME, 1999, p. 74-75;
BARCELLOS, 1992, p. 77-92).
27
Prisão sem flagrante ou mandato, ilegal, mas praticada abertamente pela polícia até meados
dos anos 80.

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Mulheres e militância: um estudo sobre os padrões de representação simbólica


durante a ditadura militar no Brasil

Gabriella Nunes de GOUVÊA


Mestranda em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB)
gabriellagou@gmail.com

Entre os anos de 1964 e 1979, estima-se que 600 mulheres estiveram distribuídas
entre quase todas as organizações de esquerda no Brasil (LIMA, 2000, p. 206), sendo que,
nos grupos armados, elas representaram cerca de 18% do número total de militantes
(RIDENTI, 1990, p.1). Em geral jovens, solteiras e integrantes das camadas mais
intelectualizadas do país (LIMA, 2000, p. 209), essas mulheres foram, sem dúvidas, sujeitos
importantes no cenário de reivindicação política durante a realidade instaurada a partir de
1964, assim como peças-chave para chacoalhar os estranhamentos e limitações que se
impunham à atuação feminina na sociedade. Uma notícia publicada no jornal Folha de São
Paulo em 13 de outubro de 1968, sobre o desfecho do 30º Congresso da União Nacional
dos Estudantes (UNE) em Ibiúna, destaca a presença de mulheres no grupo: “os presos são
estudantes de várias regiões do país. Todos jovens. Um terço, pelo menos, é constituído de
moças”.

A transgressão comportamental cometida por essas mulheres - para além da


transgressão política que a organização partidária, por si só, daqueles grupos representava,
considerando as imposições do regime - é discutida por diversos autores que se dedicam ao
assunto: integrar as organizações de esquerda significava romper com a construção social e
cultural que atribuía papéis específicos para homens e mulheres na sociedade. Em “1968, o
ano que não terminou”, Zuenir Ventura (2008, p. 204) narra um episódio que exemplifica a
construção social da época sobre o espaço e o papel destinado às mulheres: quando a atriz
Beth Gasper - que então se apresentava com a peça Roda viva em Porto Alegre - foi detida
pela polícia em uma tentativa de amendrontar o elenco e impedir que o espetáculo
continuasse em cartaz, um dos policiais, ao descer a atriz do carro e começar a ofensiva
contra ela, disse logo de início: “Esse espetáculo é ofensivo para as nossas esposas”. Em
“Revolução e Democracia” (FERREIRA; REIS, 2007, p. 363) uma militante identificada como
Maria do Carmo resumiu: “A guerra é para os homens; a mulher é o repouso do guerreiro”.

Considerando assim o cenário duplamente transgressor no qual as militantes


estavam inseridas, o presente estudo tem como objetivo analisar as representações1

1
O conceito de representação é aqui entendido com base nos estudos desenvolvidos por Moscovici
(2003) e Jodelet (1989) e, portanto, entendido como processo de constituição e construção de
percepções, ideias, imagens e paradigmas por parte dos indivíduos, as quais irão guiá-los na maneira
de nomear e definir os aspectos da realidade. Segundo Moscovici (2003, p. 32), “essas
representações são tudo o que nós temos, aquilo a que nossos sistemas perceptivos, como

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recorrentes sobre as mulheres militantes durante a ditadura no Brasil. Por meio de um


estudo bibliográfico e histórico-documental verificamos quais as imagens, e os sentidos a
elas ligados, que permearam o entendimento social naquele período sobre as mulheres
integrantes de grupos de resistência. Para tanto, nossa análise se centra em três espaços
principais de construção simbólica, ou seja, espaços relevantes no processo de construção
de representações sobre a militância, sendo eles: o governo, que para garantir legitimidade
para exercer o poder desejava inculcar na população a ideia do “perigo vermelho”, de tal
forma que muitas vezes esse perigo era apresentado à sociedade em proporções muito
maiores do que as que de fato ele poderia significar (MOTTA, 2010, p. 20); a imprensa, pois
não há como desconsiderarmos a construção dos sentidos sociais que se dava pelos mais
diversos veículos de comunicação acerca dos acontecimentos do período; e os próprios
grupos de resistência, afinal, essas organizações de esquerda também buscavam o apoio e
a adesão popular na luta de resistência contra a ditadura.

A partir, portanto, do estudo documental e bibliográfico centrado nos três espaços


acima citados, observamos que, em geral, as representações simbólicas sobre as mulheres
militantes estavam diretamente relacionadas ao menos a um dos seguintes padrões: afetivo-
sexuais; físicos/de beleza; e de personalidade.

E para dar início à discussão sobre o primeiro desses padrões, trazemos aqui as
palavras de Ana Maria Colling (2004): ao afirmar que “a repressão caracteriza a mulher
militante como Puta Comunista”, a autora exemplifica claramente a associação difundida
pelo regime militar entre as mulheres que integravam partidos de esquerda e a libertinagem.
Ou seja, tais mulheres representavam um contraponto à virgindade e ao recato que marcava
os tradicionais padrões afetivo-sexuais femininos, das “moças de família". Uma “possível
associação com a prostituição” (GIANORDOLI-NASCIMENTO et al., 2012, p. 19) era, assim,
muito comum quando tratava de referir-se às militantes.

Zuenir Ventura traz importante relato de como, em determinado momento do ano de 1968, o
governo “comprovou” a vida desregrada das militantes:

Contra a pílula havia resistências que iam do terror natural dos seus efeitos, não
de todo conhecidos, até o preconceito que via nela um instrumento de promoção
da promiscuidade. Em outubro, ao desmantelar o congresso da UNE em Ibiúna,
as forças policiais exibiram como troféu de guerra uma razoável quantidade de
caixas de pílulas apreendidas. Como se a pílula fosse um preservativo de uso
imediato como a camisinha, a polícia acreditava que a exibição provaria à opinião
pública que as moças tinham ido ao encontro preparadas para algo mais do que
discutir as questões estudantis (VENTURA, 2008, p. 38).

cognitivos, estão ajustados”, sendo, portanto, formas de conhecimento.

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Para João Batista de Abreu (2000, p. 133), confundir a censura política com a
censura de costumes - definindo comportamentos comprometedores do modelo
conservador - era uma estratégia do governo para enfraquecer os valores da sociedade.
Assim, seria muito maior o número de “opositores” ao regime e muito menores as
explicações a serem dadas em razão das prisões feitas pela repressão, já que as ameaças
ao bem-estar social estariam sempre onipresentes.

E a construção que se fazia em torno de uma alegada falta de moral das mulheres
militantes era tão intensa que, muitas vezes, elas próprias tinham problemas em se
reconhecer como tal em razão justamente do medo da exclusão moral e social que lhes
poderia ser imposta por fazerem parte de um grupo de esquerda. Era esse o caso de
Rosane2, que conta a opinião que tinha a respeito das mulheres militantes antes de
ingressar no movimento: “outra coisa também que eu não gostava [...] era que as mulheres
eram muito liberais. Pra mim, eram muito galinhas, muito piranhas” (GIANORDOLI-
NASCIMENTO et al., 2007, p. 368).

Já Suzana faz questão de ressaltar que a militância não se vinculava


necessariamente à recusa de determinados padrões de comportamento, tidos como
adequados às mulheres: “nós éramos meninas direitas. A gente passava a noite, por
exemplo, fora de casa, mas trabalhando, ali. Mas ninguém saia dali pra fazer um programa,
pra dormir com um cara, pra isso e aquilo” (idem, 2012, p. 287).

Exemplo das restrições a que estavam sujeitas, Sônia conta que quando ingressou na
universidade não ia a nenhum bar - considerado um “reduto masculino” - porque as colegas,
por proibição familiar, não podiam frequentá-los. Até que um dia ela resolveu deixar aquela
restrição de lado: “Eu falei: ‘Suzana, isso não tem cabimento não. Nós vamos lá’”
(GIANORDOLI-NASCIMENTO et al., 2012, p. 131).

Além das dificuldades enfrentadas no âmbito da família e da sociedade como um


todo, as militantes viviam ainda muitas disputas internas com os colegas de militância,
dentro das organizações. Zuenir Ventura (2008, p. 40) narra um exemplo de discriminação
de homens, militantes, contra suas colegas de partido em razão dos mencionados padrões
afetivos e sexuais: “Em 63, a hoje economista Liana Aureliano foi eleita delegada a um
congresso do PC e em seguida vetada por duas bases do Recife porque não era virgem”.

Mas, dentro da militância, não era só entre os homens que predominavam o preconceito e
os estereótipos: é interessante pensar ainda que, na luta para se mostrar como uma
militante “direita”, como apontou um dos depoimentos citado há pouco, muitas mulheres

2
Os nomes utilizados pelas autoras em questão para nomear as militantes são todos fictícios
(GIANORDOLI-NASCIMENTO et al., 2007; 2012).

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255 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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desvalorizavam suas próprias colegas. Ou seja: para se afirmar, elas utilizavam os mesmos
argumentos a partir dos quais eram desvalorizadas e, portanto, desejavam se manter
afastadas. Suzana explica que havia um grupo “tradicional” - “havia um certo preconceito em
relação a nós, era...o grupo, por exemplo, de mulheres que seguiam o modelo tradicional.
Elas percebiam que nós éramos diferentes” - e outro, das “radicais” - “esse outro grupo já
era um grupo muito mais avançado, mais livre. Então, eram outros valores do ponto de vista,
é... da sexualidade” (GIANORDOLI-NASCIMENTO et al., 2012, p. 287). O exemplo
evidencia como os processos identitários são complexos e se constituem a partir da
oposição inclusão versus exclusão, ou seja, o desejo de pertencer a um determinado grupo
faz com que os indivíduos busquem se diferenciar, excluir os demais grupos e transformá-
los naquilo que lhe é exterior3.

Além da associação entre mulher militante e padrões comportamentais afetivos, os


padrões físicos, ou seja, estereótipos quanto à beleza e feminilidade também faziam parte
das representações que permeavam o entendimento social da época sobre as militantes.
Maria do Carmo Brito, que por ocasião do seu depoimento vivia exilada na Argélia, afirmou:
“eu já tinha trinta anos quando fui aceitar que a gente podia ser militante e não precisava ser
necessariamente feia, horrorosa” (COSTA et al., 1980, p. 75). Nas próprias organizações de
esquerda, essas ideias eram compartilhadas por muitos colegas de militância, como mostra
trecho citado por Marcelo Ridenti do romance A fuga, de Reinaldo Guarany:

As mulheres na esquerda sempre seguiam uma linha bem definida. [...] elas em
geral se dividiam da seguinte maneira: quanto mais barra-pesada fosse uma
organização, mais feias eram as mulheres e menos havia; e quanto mais de
proselitismo fossem, mais mulheres havia e mais jeitosinhas eram. [...] Naquela
época não se falava de feminismo, e as mulheres da esquerda, que estavam
rompendo com montões de dogmas e tabus ao mesmo tempo, precisavam de um
braço peludo paras as horas de desamparo (GUARANY, 1984 apud RIDENTI,
1990).

Outro exemplo é dado por Zuenir Ventura, mas pode ser facilmente encontrado em
diversos trabalhos e estudos que tragam referências à militância feminina durante o regime
militar no Brasil: a personagem é Iara Iavelberg. “Iara não tinha muito a ver com suas
colegas de militância. Além de bonita, loura, alta, olhos claros e um sorriso aberto, era muito
vaidosa. Cuidava do corpo talvez com o mesmo zelo com que cuidava do fuzil” (VENTURA,
2008, p. 40). Iara, que integrou a Organização Revolucionária Marxista - Política Operária, a
Polop, é apresentada, assim, como uma exceção diante das demais mulheres militantes,
aquela que fugia à regra: “Bonita, charmosa, atrevida, prestes a completar 25 anos, Iara

3
Sobre este assunto, para mais detalhes ver HALL, 2000, p. 103-133.

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Iavelberg era uma lenda na esquerda. [...] Estava desquitada de um casamento precoce
quando entrou na Faculdade de Psicologia da USP” (AMARAL, 2011, p. 59).

Sinônimo da falta de vaidade, da ausência de feminilidade, desprovida de beleza: o


trabalho de ridicularizar as militantes passava ainda por um jornal da época, O Pasquim, que
além de se opor ao regime “voltava sua mordacidade igualmente para as mulheres que
haviam se decidido pela luta por seus direitos, ou àquelas que assumiam atitudes
consideradas inadequadas à feminilidade e às relações estabelecidas entre os gêneros”
(SOIHET, 2008, p. 3). Em uma charge de autoria de Ziraldo, publicada pelo jornal no final da
década de 19704, um homem repassa informações, provavelmente à polícia, sobre os
responsáveis por uma pichação dizendo: “Eram três, doutor... num fusca branco, de
madrugada, sorrateiros... Duas mulheres feias e uma pessoa do sexo masculino ao volante
[...]”. A charge expõe, assim, para além das representações sobre as militantes, que o
machismo expresso no jornal não era só um tema usado para alimentar as piadas e críticas,
mas configurava as relações dentro do próprio veículo, como evidencia o depoimento da
jornalista Marta Alencar ao documentário “O Pasquim: a subversão do humor” produzido
pela TV Câmara:

Eu era secretária de redação. Uma vez eu fiz um artigo para um almanaque


desses do Pasquim dizendo que no Pasquim lugar de mulher era na cozinha. E na
verdade eu fazia cozinha no jornal que, aliás, era uma atividade nada feminina na
época. Eu praticamente tinha que fumar charuto, cuspir no chão, falar palavrão
sem parar para ser respeitada. Eu não era realmente uma mulher, eu não tinha
um comportamento feminino, uma cabeça feminina. Eu tinha uma cabeça muito
masculina.

Em entrevista a Luiz Maklouf Carvalho (1998, p. 196), Lúcia Murat Maria


Vasconcelos afirmou: “na luta armada a gente perde um pouco da feminilidade”. E a
necessidade de valorização e reconhecimento, especialmente pelos colegas de militância, é
um ponto fundamental nessa espécie de descaracterização dos atributos femininos nas
mulheres que integravam os grupos de esquerda, já que elas queriam, por exemplo, assumir
posições de liderança no movimento. Era muito comum, como destaca Goldenberg (1997, p.
5), que as funções femininas nessas organizações ficassem restritas a atividades
consideradas “menores”: “as militantes deixavam de ser as ‘esposas-mães’ tradicionais para
cumprirem, dentro do partido, as funções domésticas (de limpeza, cozinha, proteção,
secretaria, etc.)”. Distanciar-se da concepção de mulher frágil, submissa, dependente, era,
portanto, uma forma de se mostrar capaz de estar à frente das atividades, das decisões dos

4
Disponível em SOIHET, 2008, p. 13.

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grupos e, inclusive, das ações armadas. Por isso Lúcia Murat completa: “salto alto não
combina com assalto”.

Na verdade, as militantes viviam com base em uma forte contradição: ao mesmo


tempo em que cobravam dessas mulheres dedicação total ao movimento e queriam contar
com elas no que fosse preciso, os homens militantes também as criticavam porque julgavam
suas atitudes e comportamentos muito masculinizados, como evidenciou o trecho do livro de
Reinaldo Guarany citado anteriormente. Em depoimento concedido em 2011 ao projeto
“Resistir é Preciso...”, desenvolvido pelo Instituto Vladimir Herzog, Adélia Borges conta que
as mulheres que lutavam por mais igualdade com relação aos colegas, homens, nas
organizações de esquerda eram acusadas de estarem se desviando do assunto principal,
que era a luta de classes. Os militantes então lhes diziam: “quando a gente conseguir o
socialismo, aí vocês vêm com essa conversinha de vocês, mas primeiro vamos garantir
isso”. Fica evidente, portanto, que não havia interesse e empenho desses homens em
integrar às discussões dos grupos as questões de gênero. Militante que atuou na Guerrilha
do Araguaia, Criméia Alice conta sobre a resistência do partido em permitir que mulheres
fossem a campo, lutar, e diz que “havia muitos militantes que eram contra. Na realidade,
havia os abertamente contra e os omissos, porque a favor não havia ninguém (LIMA, 2000,
p. 212).

Para Maria Lygia Quartim de Moraes, também em depoimento ao projeto “Resistir é


Preciso...”, “quando você está na esquerda você precisa provar, antes de mais nada, sua
seriedade para os seus próprios companheiros. E isso é muito desgastante”. Em seguida ela
completa: “como tudo relacionado à mulher, é sempre uma dupla jornada: a gente
enfrentava a ditadura e tinha de enfrentar ou a oposição ou uma certa complacência da
esquerda”.

Pensar em atributos femininos, por sua vez, nos remete a outro ponto importante do
nosso debate: a maternidade. E, para começar, citemos o documentário “Que bom te ver
viva” (1989), protagonizado por Irene Ravache e com roteiro e direção de Lúcia Murat - a
mesma citada anteriormente -, onde o assunto é recorrente nos depoimentos das
entrevistadas. O que vemos é que se o fato de ser mulher em diversos momentos foi o que
mais trouxe adversidades para a vida das militantes, foi ao mesmo tempo o que as fez
sobreviver e continuar lutando em várias ocasiões.

Em um depoimento emocionante, Maria do Carmo Brito, ao se referir à sua primeira


gravidez, diz: “descobri que a melhor coisa do mundo era ser mulher”. Também Rosalinda
Santa Cruz afirmou: “durante a cadeia toda o que realmente me segurou era a vontade de
ter um filho, a certeza que eu ia ter um filho [...] Ter um filho simboliza que a coisa continua,

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que a vida tá aí”. No caso de Criméia de Almeida, embora a experiência não tenha se
mostrado fácil, foi também uma forma de sobrevivência: “a gravidez marcou muito [...]. Foi
uma situação difícil ter um filho na prisão, mas foi uma sensação gostosa. [...] Uma segunda
gravidez jamais”.

Ter um filho representou ainda, para algumas militantes, um afastamento, de certa


forma, da série de atividades que desenvolvia. Raquel, por exemplo, conta que quando teve
seu segundo filho não conseguiu mais conciliar a vida doméstica com as atividades de
militante; começou a se sentir culpada - “me sentia a última das mães, porque eu achava
que os filhos precisavam...eu tinha que estar mais junto” - e fez uma escolha: “não
abandonei de vez a militância [...], tanto que acompanhei a reunião do sindicato, mas não
com o mesmo envolvimento”. É aí que, segundo ela, ficou evidente como a sua situação era
diferente da do marido: “Aí veio o que é a diferença para homem e para mulher. Ele (o
marido) não se sentiu culpado, nunca se cobrou nada [...] mas não precisava, então ele
conseguiu levar a trajetória dele. Só que eu cobrava de mim mesma” (GIANORDOLLI-
NASCIMENTO et al., 2012, p. 165).

Acerca das transformações no cotidiano feminino trazidas pela maternidade, Zuleika


Alambert, em “Memórias das mulheres do exílio”, complementa afirmando que “duas coisas
dificultam muito a vida de uma mulher na política, dentro do contexto da sociedade
brasileira: um é o problema dos filhos e o outro é o problema do marido, do casamento”
(COSTA et al., 1980, p. 57). Nesse contexto, é preciso destacar a sobrecarga emocional e
afetiva que a maternidade traz às mulheres, para além da óbvia sobrecarga de trabalho:
tem-se que são elas especialmente responsáveis pela socialização dos filhos, por gerir os
conflitos do lar e por oferecer carinho e afeto a todos da família.

Por fim, comentaremos sobre os padrões de personalidade aos quais as militantes


eram comumente associadas: em depoimento ao livro “Os anos de chumbo” (1994), Adyr
Fiúza de Castro - que, como coronel do Exército, atuou junto ao gabinete do ministro da
Guerra de 1965 a 1969, foi um dos criadores do Centro de Informações do Exército (CIE) e,
em 1972, assumiu a chefia do Centro de Operações de Defesa Interna (Codi) - comentou
que

as mulheres são muito mais ferozes do que os homens. É a minha experiência.


São muito mais cruéis [...]. Muitas delas, enquanto estavam no terrorismo, tinham
que ser postas de castigo pela própria chefia - pode perguntar a eles -, porque se
excediam (CASTRO; D´ARAÚJO; SOARES, 1994, p. 77).

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Leônidas Pires Gonçalves, militar oriundo do Rio Grande do Sul, mas que também atuou em
São Paulo, Mato Grosso e Minas Gerais, diz que “as mulheres são de uma violência incrível.
E outra coisa: elas não perdoam. Os nossos agentes sempre tinham muito cuidado para
tratar com as mulheres. Mais cuidado do que com os homens. Eram brabas, sabe?” (ibidem,
p. 245).

Assim, as militantes eram caracterizadas pela bravura, pela coragem, mas em uma
referência ao perigo que representavam. Na verdade, não havia valorização deste destemor
das militantes: ao invés disso o que havia era uma oposição a um ideal de fragilidade e
delicadeza femininas, de tal forma que as características da personalidade se associam
diretamente aos já comentados padrões físicos - tamanha bravura correspondia à falta de
feminilidade, à masculinização.

Acerca desta visão castrense sobre as militantes vale comentar brevemente sobre
como atuou a ditadura contra as mulheres que integraram os grupos de resistência, pois os
depoimentos e entrevistas de ex-militantes evidenciam que a repressão utilizou-se o tempo
todo das diferenças biológicas entre homens e mulheres para praticar os atos mais
repugnantes e desumanos como forma de “punição” às militantes. Aqui vem à tona,
novamente, a ideia de dupla transgressão cometida pelas mulheres que faziam parte dos
grupos de resistência. De acordo com Zuenir Ventura, nas fotos que mostram a atuação da
polícia militar em junho de 1968, quando cerca de 400 estudantes foram presos no Rio de
Janeiro depois de uma assembleia no Teatro de Arena da Faculdade de Economia, é
possível ver “soldados urinando sobre corpos indefesos ou passeando o cassetete entre as
pernas das moças” e “fotografias de moças de quatro” (VENTURA, 2008, p. 126, 133).
Naquela ocasião, os estudantes haviam sido levados para o campo do Botafogo. Esse
exemplo nos traduz em imagens as palavras de Rosalinda Santa Cruz, no seu depoimento
ao documentário “Que bom te ver viva”: “o nosso corpo era um objeto de tortura”.

Em “A dominação masculina”, Bourdieu (2012, p. 33) afirma que a construção


arbitrária do biológico dá “um fundamento aparentemente natural à visão androcêntrica da
divisão de trabalho sexual e da divisão sexual do trabalho”. Assim, as diferenças biológicas
serviriam como pressuposto para afirmar a distinção entre homens e mulheres com relação
ao trabalho doméstico e fora dele, bem como uma pretensa superioridade masculina.

Renata (GIANORDOLI-NASCIMENTO et al., 2012, p. 202-203) conta que, certa vez,


foi levada para um grande anfiteatro, com ‘plásticos pretos nas janelas’, e ficou sendo
observada por quatros oficiais. Um a um, eles foram ordenando, ao pé do ouvido, que ela
retirasse a roupa com que estava vestida. Em seguida, um grupo de soldados entrou no
anfiteatro e ficou a observá-la nua. “A ameaça e o terror psicológico vieram através de

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palavras sussurradas em torno dela: ‘a cada momento que a gente pedir pra tirar a roupa
vamos chegar mais e mais perto...’”. Rita também contou que durante os interrogatórios os
militares sempre faziam insinuações que deixavam claro para ela a ameaça de violência
sexual: “Porque é tudo um jogo, né? Você, uma menina..., mulher bonitinha” (ibidem, p.
171).

A militante Sônia contou que “mulher era espancada muito no peito”, (GIANORDOLI-
NASCIMENTO et al., 2012, p. 121). Dilma Rousseff, em trechos de entrevista concedida a
Luiz Maklouf Carvalho e publicados pelo jornal Folha de São Paulo em 2005, falou sobre a
tortura que viveu na prisão e revelou onde os choques eram dados: “Em tudo quanto é
lugar. Nos pés, nas mãos, na parte interna das coxas, na orelha. Na cabeça é um horror. No
bico do seio. Botavam uma coisa assim, no bico do seio, uma coisa que prendia, segurava”
(AMARAL, 2011, p. 73).

Os depoimentos evidenciam, assim, que havia por parte da repressão a intenção de


mostrar àquelas mulheres que elas não deveriam estar ali e, por isso, a tortura de certa
forma se vinculava não só às diferenças biológicas entre homens e mulheres, como também
às especificidades construídas socialmente acerca das questões de gênero. E aí, retomando
os padrões de personalidade, essa era uma forma que a polícia encontrava de demonstrar
desprezo por aquelas mulheres e dizer que se elas se mostravam tão corajosas e capazes,
a ponto de integrar uma organização de esquerda e se opor ao governo, elas também
suportariam tamanha violência.

Ao final, portanto, da análise de cada um dos padrões identificados por nós com
relação às imagens que circulavam durante a ditadura sobre as mulheres militantes, fica
evidente que não havia referências, por exemplo, à capacidade intelectual delas ou mesmo
ao potencial que tinham para atuar estrategicamente nas organizações. Ou seja, não havia
valorização dos atributos que as militantes possuíam, mas apenas um reforço das noções
que se vinculavam à transgressão, como comentamos no início deste estudo, dos
comportamentos tidos como adequados às mulheres. E a reiteração de todos esses
padrões, os quais circulavam não só entre os militares, mas também entre as próprias
militantes e seus colegas da esquerda, dava a muitas mulheres a ideia de uma atuação
“desviante”, assim como acontecia no caso da luta por mais igualdade em relação aos
homens e do feminismo:

A reiteração dessas imagens das feministas como masculinizadas, pesadas como


elefantes, perigosas, feias, bruxas, que se contrapõem ao ideal feminino,
constantemente reatualizado, de beleza, meiguice, delicadeza, paciência,
resignação, não poucas vezes levava mulheres a rejeitar sua inserção no
feminismo e até a combatê-lo (ESTEVES; SOIHET, 2007, p. 362).

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O depoimento de Zuleika Alambert no livro “Memórias das mulheres do exílio” (1980)


demonstra, pois, a assimilação que muitas militantes faziam da concepção recorrente que
via a presença delas na militância como um desvio: ao comentar sobre um comício que ela
realizou no litoral sul de São Paulo, junto com outros dois companheiros de partido, Zuleika
afirmou: “Eles foram os guarda-costas e os protetores dos meus vinte e dois anos. Afinal, eu
era jovem e bonita, e política não era um bom papel para uma mulher” (COSTA et al., 1980,
p. 52, grifo nosso).

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Cinefilia e militância política: enquadramentos e cortes em tempos de golpe

Geovano Moreira CHAVES


Doutorando em História e Culturas Políticas pela UFMG e bolsista Capes
geovanochaves@gmail.com

O Centro de Estudos Cinematográficos (CEC) pode ser considerado o mais


importante cineclube já existente em Belo Horizonte. Ele inicia suas atividades em 1951, e
continua ativo até a presente data. Responsável por editar a “Revista de Cinema”,
considerada uma das mais importantes em sua área no país e também por fomentar uma
cultura cinéfila na capital mineira das décadas de 1950 e 1960, o que culminou na formação
de profissionais do cinema em variadas áreas, o CEC de fato, no quesito cineclubismo, é um
marco na história das atividades cinematográficas no Brasil.

No entanto, existe uma lacuna na história deste cineclube, que vai de 1968 a 1979,
justamente e curiosamente no período em que vigorou o Regime Ditatorial no país. Neste
período, o CEC interrompeu suas atividades, ficando este espaço em sua trajetória.

Neste trabalho, procuraremos abordar, a princípio, como se deu a criação e


consolidação do CEC, para que possamos a partir daí compreender sua dimensão. Em
seguida, destacaremos algumas situações que podem evidenciar os motivos de seu
fechamento precoce em 1968 e a relação com a situação política em que o país se
encontrava na época, com base em depoimentos de alguns dos seus ex-integrantes que
entrevistamos, e outras informações que recolhemos do livro “A presença do CEC, 50 anos
de cinema em Belo Horizonte” (COUTINHO & GOMES, 2001).

Origens do CEC

No que se refere ao surgimento do CEC, Fernando Pires Fonseca, integrante do


cineclube na primeira metade da década de 1980, cita um artigo de Geraldo Fonseca,
publicado no jornal Estado de Minas, em que nos é apresentado uma descrição sobre a
origem deste cineclube. Neste artigo, o CEC é apresentado como um cineclube proveniente
do CCMG – Clube de Cinema de Minas Gerais – que surgiu em 30 de outubro de 1948. A
respeito disso, Fernando Pires Fonseca descreve que,

“no auditório da Associação Franco-brasileira, aproximadamente 50


pessoas reuniram-se para ouvir a palestra do paulista Lourival
Gomes Machado sobre “Clubes de cinema e a cultura
cinematográfica”, e logo após a palestra, foi feita então uma
convocatória para a fundação do CCMG. O número de interessados
foi bastante significativo, vários intelectuais da cidade se
interessaram pela novidade, e assim foi então criado o CCMG”
(COUTINHO & GOMES, 2001: p. 24).

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Há também um outro caminho sobre o surgimento do CCMG, com algumas


informações diferentes, que nos é apresentado por Carlos Armando. Segundo ele,

“a primeira união de cinéfilos que daria origem ao CEC foi o Clube


dos Cinco, fundado em 5 de maio de 1947 e composto pelos irmãos
Paulo Arbex Dinamarco e Luís Arbex Dinamarco, além de Ivan
Casassanta Dantas, Dalmo Jeunon e José Maurício Pena, todos eles
jovens migrantes do interior para completarem seus estudos na
capital mineira. Esta turma assistia aos filmes nos cinemas da cidade
e depois iam debatê-los na Praça da Liberdade (ARMANDO, 2004: p.
27).

Após uma referência a este clube pelo crítico Jacques do Prado Brandão, na Folha
de Minas, Carlos Armando informa que “a turma o procurou e assim tomou conhecimento de
um outro grupo de rapazes, também aficionados por cinema em Belo Horizonte, que
planejavam criar um clube de cinema” (ARMANDO, 2004: p. 27). O autor indica os
integrantes do clube, que era composto por “José Morais, Sílvio Vasconcelos, Oscar
Mendes, Edmar Fonseca, Cephas Siqueira e Wilson Figueiredo. Os dois grupos se
aproximaram e assim no dia 21 de novembro de 1947 foi criado o ‘Clube de Cinema de
Minas Gerais’” (ARMANDO, 2004: p. 27-8).

Foram então promovidas várias sessões pelo Clube de Cinema de Minas Gerais em
cinemas da cidade, como o Cine Guarani e o Cine Paissandu. Além disso, segundo Carlos
Armando, o Clube começa a ganhar espaço, e, no dia 31 de outubro de 1948, nas páginas
do jornal Estado de Minas, o Clube de Cinema de Minas Gerais publica então uma
“Declaração de Princípios”, que reproduzimos:

“– O CCMG é uma entidade que pretende congregar todos os que se


interessam pelo estudo sério e aprofundado do cinema, totalizando
como importantíssima expressão das tendências estéticas da nossa
época. Julgamos de dever firmar uma “Declaração de Princípios” do
que o clube visa ser e alcançar.
– O CCMG é uma entidade cultural, entendida essa palavra em seu
sentido largo e total.
– O CCMG não adota nenhuma preferência meramente política como
sociedade civil de estudo e divulgação de assuntos cinematográficos.
– O CCMG abrirá suas portas a todas as pessoas, sem distinção de
classe, que se interessarem pela cinematografia e que desejem se
aprofundar no estudo dos métodos e das características dos grandes
criadores e suas obras.” (ARMANDO, 2004: p. 30).

A partir de então, o CCMG, de acordo com Armando, ganha espaço nos jornais da
cidade (Folha de Minas, O Diário e o Estado de Minas), com direito a colunas para
publicação de críticas. No entanto, devido ao alto preço dos aluguéis dos filmes e os

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impostos das empresas distribuidoras, o autor ressalta que o CCMG tem suas atividades
paralisadas por mais de um ano, retomando em 1949, com sessões no auditório da sede da
Cultura Inglesa (ARMANDO, 2004: p. 30).

Nesta mesma época, o CCMG, ainda de acordo com Carlos Armando, ganha um
concorrente em Belo Horizonte, “trata-se do Cineclube da Cultura Francesa, que lançou em
sua programação uma série de filmes franceses inéditos na cidade, que passaram a atrair a
atenção dos próprios integrantes do CCMG” (ARMANDO, 2004: p. 31).

Não tardou e logo começaram a surgir propostas de núcleos de estudos e exibições


conjuntas destes cineclubes, como o Círculo de Estudos Cinematográficos, proposto por
José Renato Santos Pereira, como destaca Armando (ARMANDO, 2004: p. 34). “Eles
chegaram a realizar uma única sessão em conjunto, no auditório do Conservatório Mineiro
de Música, no entanto, o CCMG novamente interrompe suas atividades por conta de vários
obstáculos” (ARMANDO, 2004: p. 34).

No que se refere ao fim do CCMG, este não tem explicações muito claras, como
afirma Mário Alves Coutinho (COUTINHO & GOMES, 2001: p. 24). As mais plausíveis são
as dificuldades financeiras e o êxodo de intelectuais mineiros para Rio de Janeiro e São
Paulo (ARMANDO, 2004: p. 25). Elysabeth Senra de Oliveira também compartilha desta
opinião (OLIVEIRA, 2003).

No entanto, é sabido que na região central de Belo Horizonte nesta época,


principalmente na Rua da Bahia fervilhavam núcleos e associações culturais ligadas à
literatura, artes plásticas, música e dança. Neste fértil ambiente cultural, circulavam também
os futuros membros do Centro de Estudos Cinematográficos.

De uma destas associações, a chamada “Amigos de Debussy”, faziam parte os


irmãos Geraldo e Renato Santos Pereira. Estes dois, ainda segundo Fernando Pires da
Fonseca, inauguraram a crítica de cinema nas páginas do jornal Estado de Minas
(COUTINHO & GOMES, 2001: p. 24).

Fernando Pires da Fonseca nos informa também que Cyro Siqueira, recém chegado
do interior e estudante de medicina, começa então a frequentar este grupo, estando aí o
início da mobilização que culminaria no cineclube. Os irmãos Santos Pereira foram estudar
cinema em Paris, no conceituado IDHEC (Institute Des Hautes Études
Cinematographiques), e a vaga por eles deixada na crítica do jornal Estado de Minas foi

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então ocupada por Cyro Siqueira, com apenas 19 anos (COUTINHO & GOMES, 2001: p.
24).

A ideia de reativar o extinto CCMG, de acordo com Fernando Pires da Fonseca,


surge dos encontros de Cyro Siqueira com Fritz Teixeira Salles e Jacques do Prado
Brandão, três dos futuros integrantes mais importantes do CEC. E foi nas páginas do jornal
mineiro que Cyro Siqueira assume a função de crítico de cinema, no qual passa a noticiar o
possível ressurgimento do CCMG (COUTINHO & GOMES, 2001: p. 24-5).

No dia 15 de setembro de 1951, acontece então a reunião que visava reativar o


cineclube. Após a sessão de um filme de Jhon Berry – Esse encanto irresistível –, conforme
o desejo de alguns, inclusive dos irmãos Santos Pereira, que haviam retornado de Paris, o
CCMG, da forma como concebe Fernando Pires da Fonseca, não foi reinaugurado, mas sim
foi refundado como um novo cineclube: o CEC – Centro de Estudos Cinematográficos
(COUTINHO & GOMES, 2001: p. 24-5).

O CEC foi então criado em 1951, como prolongamento do Clube de Cinema de


Minas Gerais, e manteve suas atividades até 1968, voltando a exercer suas funções em
1979, como nos informa Elysabeth Senra de Oliveira (OLIVEIRA, 2003: p. 42-50). O público
do CEC, segundo a autora, era constituído por artistas, intelectuais e jornalistas da capital
mineira, transformando-se num polo catalisador de interesses, em especial a partir da
segunda metade da década de 50 (OLIVEIRA, 2003: p. 42-50).

Embora o seu estatuto o definisse como uma instituição sem filiação político-
partidária ou religiosa – o que implica uma posição neutra diante desses assuntos –,
Elysabeth Senra de Oliveira considera que “o CEC foi palco de memoráveis polêmicas e
discussões que iriam contrapor católicos e ateus, formalistas e esteticistas, marxistas e
liberais” (OLIVEIRA, 2003: p. 42-50).

O CEC, no decorrer de sua existência, segundo Elysabeth Senra, foi mantido pela
taxa de manutenção de seus aproximadamente 2.000 sócios, que possuíam uma carteirinha
e pagavam a cada mês uma mensalidade (OLIVEIRA, 2003: p. 46). Eram esses mesmos
sócios que, de acordo com o estudo da autora, elegiam a diretoria de 2 em 2 anos
(OLIVEIRA, 2003: p. 46). A respeito da hierarquia no CEC, Senra nos informa que esta “era
composta de um presidente (o primeiro foi Jacques do Prado Brandão), um vice-presidente
(o primeiro foi Cyro Siqueira), um primeiro secretário e um tesoureiro. Nas eleições,
geralmente, havia duas chapas, oposição e situação” (OLIVEIRA, 2003: p. 46).

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O interesse do público foi crescente, e a popularidade do CEC atrelava-se ao fato de


“o centro possuir uma coluna aos domingos no Suplemento Literário do Diário de Minas,
onde eram feitas resenhas dos filmes em cartaz, que, além disso, eram lidas nas rádios da
capital mineira” (OLIVEIRA, 2003: p. 46). Sua programação, de acordo com a autora, “era
publicada em dois jornais: no Diário de Minas e no Estado de Minas. A entrada para as suas
sessões eram francas. Aos sábados e domingos eram exibidos filmes, sempre às 20 horas”
(OLIVEIRA, 2003: p. 46).

A partir de então, o CEC manteve uma atividade intensa no que se refere à


movimentação cinematográfica na capital mineira, em sintonia com outras regiões do país e
do exterior, até que, em 1968, o cineclube encerra suas atividades.1

O corte em tempos de golpe

Nos dizeres de Carlos Armando, o CEC sempre teve como objetivo a difusão da
cultura cinematográfica propriamente dita, fazendo com que o espectador nunca ficasse
passivo diante do filme ao qual estava assistindo. Este autor aponta inclusive a meta do
CEC: “formar cinéfilos lúcidos e conscientes, gerar espectadores ativos, criar um público
instruído. O CEC foi um cineclube na verdadeira acepção da palavra, uma escola onde se
aprendia a ver um filme” (ARMANDO, 2004: p. 21).

Este autor nos apresenta um terreno fértil para que possamos compreender qual era
a proposta de educação cinematográfica difundida pelo CEC, uma vez que, nos seus
dizeres:

Nascido em 1895, o cinema, de início considerado como simples


divertimento, acabou por se impor definitivamente como forma de
arte e a se constituir como meio prodigioso da cultura. Quem passou
pelo CEC aprendeu isto e adquiriu um gosto pessoal pelo cinema
mediante a formação sobre o plano intelectual e estético,
conquistando um conhecimento vivo do mundo, dos países, das
cidades, dos homens. Na verdade, o CEC construiu uma
comunidade que aprendeu a viver diante de uma tela. (ARMANDO,
2004: p. 21, grifo nosso).

O CEC manteve suas atividades até 1968, voltando a funcionar em 1979, sendo este
período de inatividade intrinsecamente associado à situação política do país, quando
atividades culturais não eram aceitas nem toleradas pelo novo regime militar que subiu ao
poder em 1º de abril de 1964.

1
Para maiores informações sobre as atividades do CEC desde sua fundação até seu fechamento em
1968, consultar: CHAVES, 2010.

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268 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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A respeito do fechamento do CEC, Ronaldo de Noronha, em uma entrevista a nós


concedida no ano de 2010, nos informa o seguinte, quando questionado se a
implementação do Regime Militar contribuiu para o fechamento do CEC:

O CEC foi fechado pela polícia federal. Nesta época o CEC


praticamente inexistia do ponto de vista do cineclubismo. É uma
longa estória que vai desde 64 até 68, que é justamente a estória de
como o governo militar se encaminha muito mais para a direita. Mas
no caso do cineclubismo é o seguinte: Uma boa parte dos membros
do CEC, os membros mais ativos, foram embora de Belo Horizonte,
então o CEC foi esvaziado de substância pessoal, a partir de 65, por
aí. Ao mesmo tempo, uma porção de cineclubistas passaram a
produzir filmes, trabalhar na realização de filmes, o que contribuiu
ainda mais para o esvaziamento. Nós perdemos a nossa sede que
funcionava no segundo andar do cine Art Palácio, e o CEC passou a
viver de auditórios ocasionais. Como por exemplo, na sede da
Imprensa Oficial.
Em 65, eu estava ocupado com estudar, produzir minha dissertação
e tal, e isto chegou até mesmo a prejudicar meu trabalho como
crítico, já que também a partir de 65 eu tinha me tornado crítico do
“Estado de Minas”, junto com o Ricardo Gomes Leite, fui levado pra
lá pelo Jacques do Prado Brandão e pelo Cyro Siqueira, mas nem
isso eu estava conseguindo fazer direito, cineclubismo então era
impossível, mas eu ouvia dizer muito sobre o que estava
acontecendo no CEC em 67 e 68, eu soube por relatos que me foram
feitos que estavam abrigando lá pessoas escondidas da polícia, que
tinha material dito subversivo lá dentro, e por isso o CEC foi fechado.
E só foi reaberto, reinaugurado, no final dos anos 70, porque aí já
havia mais liberdade política, e a gente conseguiu fazer alguma
2
coisa.

No ano de 2014, realizamos uma nova entrevista com o professor Ronaldo de


Noronha, onde ele reafirma as situações que levaram ao fechamento do CEC dentro de sua
ótica:

“Os membros do CEC (os fundadores, os que assumiram o cineclube


no início dos anos 60, e os muito jovens que nos sucederam) que
tocavam o barco com grandes dificuldades desde os meados dos
anos 60 se afastaram dele por diversas razões pessoais. Muitos se
mudaram da cidade, muitos foram fazer filmes, especialmente no Rio,
outros perderam o interesse. Não tínhamos espaços onde exibir
filmes, nem dinheiro para alugá-los. O público associado não
pagavam mais as mensalidades. O CEC se tornou inviável
economicamente e o cineclubismo praticamente desapareceu no
ambiente de caça às bruxas que se disseminou pelo país.
A participação de membros do CEC em movimentos políticos ajudou
a criar má vontade e falta de apoio por parte de antigos parceiros
(com peso econômico e político) na viabilização das atividades do
CEC, mas isso não foi decisivo. Dizem que o CEC foi fechado pela
polícia, mas ele já não existia mais, de fato, como agente de difusão
da cultura cinematográfica. A “situação política”, depois do AI-5,
tornou irrespirável o ar da cultura livre em todo o país, não só para o
3
cineclubismo.”

2
NORONHA, Ronaldo. Entrevista concedida no dia 10/08/2010.
3
NORONHA, Ronaldo. Entrevista concedida no dia 14/03/2014.

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Outro ex-integrante do CEC que nos concedeu gentilmente seu depoimento foi
Geraldo Veloso:

Não foi a política que fechou o CEC. A política fechou o país. A


situação ficou insuportável, irrespirável. Consequentemente, o CEC
foi de roldão nesta história. Mas não houve nenhum fechamento
oficial. (...) Não houve nenhum ato, a polícia chegar lá e “pastelar” e
tal. Houve outros episódios. O que houve foi um desgaste, de todo
mundo que lidava com processo político, que estava cada vez mais
radicalizado naquele momento, sobretudo a partir do AI-5 e que
simplesmente ficou irrespirável, né, quer dizer, todo mundo
perseguido, todo mundo fugindo, todo mundo caindo fora, né, o CEC
foi murchando. A partir de um certo momento o Ronaldo Brandão,
que foi aquele que fechou a porta, digamos assim, ficou sozinho, não
há ninguém que aguente uma entidade sozinho. Alugar filme, manter
biblioteca, etc... etc... Existia uma sala no Maleta, eles fecharam a
sala, acabaram com a relação com a Imprensa Oficial. Agora, eu, eu
estou te falando de coisas que eu não ouvi nada deste tipo, agora, se
você conversar com alguns dos personagens deste processo pode
ser que eles te contem coisas factuais e específicas de determinados,
sei lá, de prender, ficar em cana e tomar umas porradas, eu não me
lembro disso, agora, pode ter acontecido, (porque) o que acontecia
era um clima de irrespirabilidade. Entre o golpe de 64, e novembro de
68, a coisa foi ficando cada vez mais irrespirável, mais insuportável,
4
até que o AI-5 bota isso explicitamente (...)

No livro “Presença do CEC, 50 anos de cinema em Belo Horizonte”, encontramos


algumas passagens que fazem referência ao fechamento do CEC. No capítulo sobre
colaboradores, na parte que descreve a participação de Ronaldo Brandão, consta o
seguinte: “Chegou no CEC em 1956 e tornou-se seu presidente em 1968, quando teve as
portas fechadas pela ditadura” (COUTINHO & GOMES, 2001: p. 246). Na apresentação de
Mário Alves Coutinho, encontramos: “Durante dez anos (1968-1979) o CEC esteve
realmente fechado (a ditadura militar tem alguma coisa a ver com isso)” (COUTINHO &
GOMES, 2001: p. 8). E também no capítulo escrito por Paulo Vilara, temos o seguinte
trecho:

“Curtas-metragens mineiros e filmes de Godard, Antonioni, Glauber


Rocha e muitos outros mestres do cinema mundial são exibidos pelo
CEC até 1968, quando o clima de terror implantado pelo Ato
Institucional N 5, que oficializa a censura à imprensa e reforça a
perseguição a todos aqueles (“comunistas”) que se insurgem contra a
ditadura, faz com que o cineclube cerre as portas” (COUTINHO &
GOMES, 2001: p. 14).

4
VELOSO, Geraldo. Entrevista concedida em 17/03/2014.

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Salientamos que, durante este período, vários associados do CEC foram presos e
cassados (RIBEIRO, 1997: p. 46). Neste trabalho, não é o nosso intuito discutir
especificamente as situações em que estes cineclubistas se encontraram diante do Regime
Militar estabelecido no Brasil pós 1964, talvez isto seja analisado em uma próxima pesquisa.
No entanto, dos cineclubistas e críticos colaboradores do CEC, citados neste texto ou não,
todos estes que seguem, possuem referências nos arquivos do DOPS de Minas Gerais, que
podem ser acessadas no Arquivo Público Mineiro. Foi um período onde a militância política
e a cinefilia se complementavam para muitos destes cineclubistas. São eles:

- Afonso de Souza (pasta 3977, comunismo – documento 24).

- Alex Viany (pasta 5358, boletim policial – documento 193).

- Cyro Siqueira (pasta 0011 (2) movimento estudantil – documento 25) e (pasta 0106 –
comunismo – documento 7).

- Dalmo Jeunon - (pasta 4341 / investigações policiais – documento 30).

- Edmar Fonseca (pasta 0098 / investigações policiais – documento 122).

- Fábio Lucas (pasta 0066, investigações a suspeitos, documento 285).

- Flávio Pinto Vieira (pasta 0120, congressos, conferências e atos públicos – documento
127).

- Fritz Teixeira de Salles (pasta 106, comunismo - documento 42), (pasta 0068, movimento
estudantil e operário – documento 112) e (pasta 0067, investigações e suspeitos –
documento 231).

- Geraldo Veloso (pasta 011 (2), movimento estudantil, documento 123) e (pasta 0088,
Jornal Novos Rumos e Partido Comunista – documento 8).

- Guy de Almeida (pasta 0120, congressos, conferências e atos públicos – documento 127)
e (pasta 0088, Jornal Novos Rumos e Partido Comunista – documento 8).

- Haroldo Pereira (pasta 5291, relações de presos políticos - documento 169) e (pasta 0106,
comunismo – documento 7).

- Jacques do Prado Brandão (pasta 4084, pedidos de busca – documento 83).

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271 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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- José Maurício Pena - (pasta 3981 / juntas administrativas de recursos e infrações –


documento 5).

- Oscar Mendes (pasta 0291 / imprensa e associações civis – documento 24).

- Ronaldo de Noronha (pasta 4180, movimento estudantil,- documento 39).

- Silvio Vasconcelos – (pasta 5291 / relação de presos políticos – documento 44, 46 e 49).

- Victor de Almeida (pasta 0247, antecedentes políticos e sociais, documento 40).

- Wilson Figueiredo (pasta 4180 / movimento estudantil – documento 52).

Referências

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BUTRUCE, Débora. Cineclubismo no Brasil: esboço de uma história. IN: Acervo:


revista do Arquivo Nacional. v. 16, n. 1 (jan/jun.2003). Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 2003.
CHAVES, Geovano. Para além do cinema, o cineclubismo em Belo Horizonte (1947-
1964). (Dissertação de Mestrado). Belo Horizonte: UFMG, 2010.

COUTINHO, Mário Alves; GOMES, Paulo Augusto (orgs.) Presença do CEC – 50


anos de cinema em Belo Horizonte. Belo Horizonte: Crisálida, 2001

DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História oral: memória, tempo, identidades.


Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

FERRO, Marc. Cinema e História. Trad. de Flávia Nascimento. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1992.

FURHAMMAR, Leif; ISAKSSON, Folke. Cinema e Política. Trad. de Júlio Cezar


Montenegro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

GUSMÃO, Milene Silveira. O desenvolvimento do cinema: algumas considerações


sobre o papel dos cineclubes para a formação cultural. IV ENECULT – Encontro de
Estudos Multidisciplinares em Cultura. Faculdade de Comunicação, UFBA, Salvador,
BA. 28 a 30 de maio 2008.

HEFFNER, Hernani. Contribuições a uma história da crítica cinematográfica no


Brasil. IN: Acervo: revista do Arquivo Nacional. v. 16, n. 1 (jan/jun.2003). Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.

OLIVEIRA, Elysabeth Senra de. Uma geração cinematográfica: intelectuais mineiros


da década de 50. São Paulo: Anablume, 2003.

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RIBEIRO, José Américo. O cinema em Belo Horizonte: do cineclubismo a produção


cinematográfica nos anos 60. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997.

XAVIER, Ismail. Sétima arte: um culto moderno. O idealismo estético e o cinema.


São Paulo: Editora Perspectiva, 1978.

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Leonel Brizola: rumo a Guanabara (1962)∗

Graziane Ortiz RIGHI


Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS) e bolsista FAPERGS/CAPES.
grazi.ortiz@gmail.com.

Introdução

Em 2014 fez 10 anos da morte do político Leonel de Moura Brizola, personagem


emblemático do início dos anos 1960. Um momento marcante para a história brasileira,
quando foi deflagrado o golpe civil-militar, que neste mesmo ano completou 50 anos. Brizola
tinha uma atuação importante no cenário político nacional deste período, pois, embora fosse
deputado federal pelo extinto estado da Guanabara, gozava de um prestígio nacional
conquistado a partir da Campanha da Legalidade, em 1961, e da sua atuação frente ao
governo rio-grandense. O deputado era visto pelas forças golpistas como um inimigo. A
história do golpe e a história de Leonel Brizola dentro desse contexto se interligam, dessa
forma, estudar o período imediato ao pré-golpe de 1964 através da trajetória do político
gaúcho é fundamental para compreender os motivos que levaram ao episódio da
madrugada de 1° de abril.

O golpe de 1964 inaugurou uma ditadura civil-militar instruída pela Doutrina de


Segurança Nacional, dentro do contexto de Guerra Fria, que se valeu do Terrorismo de
Estado como prática repressiva1. O golpe e a consequente instauração da ditadura no Brasil
devem ser compreendidos também sobre a ótica dos regimes semelhantes que assolaram o
Cone Sul latino-americano2. Muitos fatores devem ser considerados para a efetivação do
golpe, dentre eles, a radicalização política das forças partidárias dos idos de 1960. Os
setores conservadores e reformistas não aceitavam mais medidas conciliadoras e
pressionavam o presidente João Goulart, que administrava um país em crise econômica e
social, a ceder às suas propostas. O que presenciamos neste contexto é um aumento da
consciência política dos segmentos sociais desfavorecidos levando-os a reivindicarem

*
Este texto é o resultado dos primeiros levantamentos realizados para a minha dissertação. Assim,
aqui apresentamos resultados parciais, pois se trata de uma pesquisa em andamento.
1
Sobre as características da ditadura brasileira ver: BAUER, Caroline Silveira. Avenida João Pessoa,
2050 – 3° andar: Terrorismo de Estado e ação política do Departamento de Ordem Política e Social
do Rio Grande do Sul (1964-1982). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.
2
Sobre as semelhanças entre as ditaduras do Cone Sul e a revisão conceitual desses regimes ver:
PÁDROS, Enrique Serra. Como el Uruguay no hay... Terror de Estado e Segurança Nacional, Uruguai
(1968-1985): do Pachecato à Ditadura civil-militar. Tese (Doutorado em História). Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.

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antigas demandas sociais e políticas, ativadas em especial pelo Partido Trabalhista


Brasileiro (PTB) e pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), ainda que na ilegalidade.

Neste momento Brizola representava força política importante dentro da sua


agremiação política, o PTB, que apresentava um processo de radicalização política sob a
ótica do reformismo social discutido na época. Além disso, ele tornou-se gradativamente um
dos líderes da esquerda nacionalista – especialmente após a Campanha da Legalidade -
que pressionava o presidente João Goulart, seu cunhado, a aprovar as Reformas de Base.
Podemos afirmar que o golpe de 1964 foi dado para frear esse movimento, e, por esse
motivo, pesquisar as atitudes dos envolvidos neste contexto se torna fundamental para
contribuir na compreensão das razões que levaram à efetivação do golpe e, nesse sentido,
a figura do então deputado Leonel Brizola ganha destaque, especialmente por suas atitudes
radicais e de enfrentamento, mesmo que em sua maior parte verbais, contra as forças
golpistas, civis ou militares. Um dos momentos da vida do político gaúcho pouco abordado
pela historiografia é da época em que fora deputado federal pelo extinto estado da
Guanabara, portanto esse texto visa apresentar a campanha eleitoral de Leonel Brizola em
1962 através de alguns jornais. Desde essa perspectiva é importante compreender que sua
campanha ao Congresso pelo estado da Guanabara, ao que tudo indica almejando
concorrer à presidência em 1965, foi um fato político que amedrontou, ainda mais, os
setores conservadores mobilizados contra as reformas e o governo Goulart.

Em termos metodológicos a pesquisa buscou fontes que poderiam contribuir para a


solução do tema proposto. Especialmente para este artigo foram utilizados jornais, como o
Jornal do Brasil e Correio da Manhã de circulação na Guanabara3 e Correio do Povo e
Última Hora, jornais de destaque no Rio Grande do Sul4. Consultamos precisamente os
meses anteriores às eleições de outubro de 1962, quais sejam: julho a outubro de 1962.
Optamos por esses periódicos por serem de grande circulação e aceitação dos leitores na
época5. A pesquisa não tem como objetivo direto analisar o posicionamento dos jornais
frente às ideias de Leonel Brizola, apesar de termos conhecimento de que cada órgão de
imprensa, em geral, só exerce uma opinião, até porque isso já é de conhecimento

3
Estes jornais estão digitalizados e disponíveis no sítio da Fundação da Biblioteca Nacional, setor
Hemeroteca Digital Brasileira, no seguinte link: http://hemerotecadigital.bn.br/.
4
Estes jornais estão disponíveis no acervo de imprensa do Museu da Comunicação Hipólito José da
Costa, localizado em Porto Alegre.
5
É importante destacar que os jornais analisados até o momento não trataram exclusivamente da
campanha de Leonel Brizola com suas estratégias políticas ou suas propostas eleitorais, pois,
obviamente não era este o objetivo das publicações. Não cabia a eles fazer propaganda política dos
candidatos. O que foi possível encontrar foram notícias sobre os atos de Brizola que de forma indireta
estavam relacionados à sua campanha eleitoral. A falta de divulgação da campanha nos jornais
selecionados, com panfletos apresentando propostas, por exemplo, foi uma opção do governador
gaúcho que priorizou o rádio como veículo propulsor de suas ideias.

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historiográfico6, assim o texto apresenta um estudo sobre a história na imprensa, ou seja, os


jornais como fonte e não como objeto.

A escolha pela Guanabara

Em 1962, conforme definido na Constituição de 1946, os governadores só poderiam


candidatar-se a cargos parlamentares, sem se desincompatibilizar-se das funções do
executivo estadual, se a candidatura ocorresse em outros estados que não aquele no qual
exercia a chefia do governo (VERSIANI, 2007, p. 81). Brizola visualizou uma boa estratégia
para a continuidade de sua carreira política, então a partir de um convite decidiu que iria
concorrer pelo PTB do Paraná ao cargo de deputado federal. A legenda estadual lhe
garantiu a possibilidade de cem mil votos, já que no estado havia uma expressiva colônia
gaúcha7. Entretanto, havia outra possibilidade.
Em entrevista concedida ao CPDOC, José Gomes Talarico, então secretário da comissão
executiva do PTB carioca, contou que o partido já vinha a algum tempo buscando
alternativas para enfrentar Carlos Lacerda, da UDN. Mesmo antes da formação do estado
da Guanabara, o partido buscava se “caracterizar como força antagônica à UDN e anti-
Lacerda”8.
Cabe esclarecermos algumas premissas sobre o PTB carioca. O partido era
controlado por Lutero Vargas, filho de Getúlio Vargas, desde os anos 1950 quando se
empreendeu que a agremiação deveria ser comandada por alguém da família ou ligado a
ela por afinidades pessoais, objetivando, assim, o personalismo característico do partido
desde a sua fundação. A ascensão de Lutero como primeiro nome do PTB carioca
acompanhou a escalada nacionalista e reformista da agremiação na década de 1950. Para
Maria Celina D’Araújo o PTB, de forma geral, firmou-se como um partido controlado por
pequenos grupos que davam liberdade de atuação parlamentar para seus correligionários
desde que estes se ativessem às questões nacionais. Nesta perspectiva, Lutero Vargas era
um dos nomes que controlavam o partido, juntamente com João Goulart, Leonel Brizola e
Ivete Vargas (D’ARAÚJO, 1996, p.74).
Ainda segundo a autora, desde a fundação do PTB no Rio de Janeiro a principal
bandeira do partido era o anticomunismo. Contudo, após a cassação do PCB e o
fortalecimento da UDN, caracterizado como antigetulista, o “comunismo e udenismo foram
as principais forças que mobilizaram a competição dentro do PTB carioca, uma seguindo a

6
Os jornais Correio do Povo, Jornal do Brasil e Correio da Manhã, se posicionavam contrários às
ideias de Leonel Brizola, enquanto a Última Hora apoiava o trabalhista.
7
TALARICO, José Gomes. José Gomes Talarico I (depoimento, 1978/1979). Rio de Janeiro, CPDOC,
1982. p. 112.
8
Idem, p. 111.

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276 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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outra, e depois as duas em conjunto, a partir de fins da década de 50” (D’ARAÚJO, 1996,
p.62). Em síntese, o Partido Trabalhista Brasileiro da Guanabara na eleição de 1962 era
marcado pela luta nacionalista e antilacerdista.
Diante do cenário eleitoral os dirigentes do PTB guanabarino perceberam a
necessidade de convidar alguém de fora do estado com forte cacife político para tentar
quebrar a supremacia udenista. A ideia era trazer algum governador petebista em final de
mandato, situação em que se enquadrava Leonel Brizola. Inicialmente, o primeiro nome
pensando tinha sido o governador do Ceará, José Parsifal Barroso; entretanto, o partido
considerou que ele tinha assumido um comportamento pouco coerente com as diretrizes do
PTB, com uma postura conservadora após chegar ao governo, fato que provocou seu
descarte.
Talarico, então, propôs o nome de Brizola e veio até o Rio Grande do Sul convidar o
governador gaúcho, mas este, como citado acima, estava comprometido com o PTB
paranaense. O secretário insistiu e apresentou uma proposta de apoio à campanha de
Leonel Brizola onde ele próprio abriria mão da sua candidatura a deputado federal e
oferecia, também, o apoio de dez a quinze deputados estaduais petebistas em torno do
nome do político rio-grandense e apoio de alguns candidatos de outros partidos, como o
Partido Socialista Brasileiro (PSB) que viria coligar-se ao PTB nas eleições. Ao final, Brizola
contou com o apoio de cerca de 25 deputados estaduais, realmente uma campanha bem
elaborada, ou nas palavras de Talarico: uma “candidatura praticamente concretizada”9.
No que se refere à projeção nacional de Leonel Brizola, embora se argumente que
ele teria decidido concorrer pela Guanabara para ganhar maior destaque nacional e
futuramente concorrer à eleição presidencial, José Talarico defende outra hipótese: “ele
(Leonel Brizola) já estava projetado, desde a hora em que assumiu a liderança do
10
movimento pela posse do Jango, ele tinha se tornado a grande figura do PTB” . Marly
Motta (2004), quando analisa o sucesso da votação de Brizola também afirmou que o
candidato vindo de fora do estado já possuía expressão no quadro político nacional.
Todavia, não deve ser menosprezado o fato de a Guanabara ser, em grande parte,
ressonância da política brasileira. Por mais que tenha perdido destaque com a mudança da
capital federal, suas decisões políticas ainda eram repercutidas em todo o país. Brizola estar
situado naquela região o fortalecia politicamente.
Sobre a motivação de Leonel Brizola concorrer pela Guanabara, Motta defende que
isso se devia ao intuito pessoal de medir forças com Carlos Lacerda - considerado o maior

9
TALARICO, José Gomes. José Gomes Talarico I (depoimento, 1978/1979). Rio de Janeiro, CPDOC,
1982. p. 113.
10
TALARICO, José Gomes. José Gomes Talarico I (depoimento, 1978/1979). Rio de Janeiro,
CPDOC, 1982. p. 115.

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opositor das chamadas forças progressistas e nacionalistas. Os embates entre eles


ocorriam desde quando ambos estavam na Câmara dos Deputados, em 1955, Brizola pelo
Rio Grande do Sul e Lacerda pelo Distrito Federal. Acreditamos que a escolha feita pelo
governador rio-grandense de concorrer pela Guanabara foi tomada diante de todas as
circunstâncias apresentadas, pois uma decisão política de tal importância é avaliada por
vários aspectos e decidida em consonância com o partido e o político.

A Campanha Eleitoral

O pleito eleitoral na Guanabara em 1962 ficou centrado na disputa entre o PTB, que
apresentou uma estratégia mais audaciosa com a incorporação de Leonel Brizola, e a UDN,
encabeçada por Carlos Lacerda que pretendia concorrer à presidência em 1965 e que por
esse motivo partiu para uma manobra política de diálogo, contrariando sua postura de pouca
afeição a negociações. Novamente o cenário político carioca se desenhava para os
tradicionais componentes: nacionalização, polarização e a personalização (MOTTA, 2001, p.
190). Para Versiani essa disputa se desenrolava pela rivalidade entre as correntes políticas
comprometidas com o Governo Jango e as de oposição. As correntes estavam dividas entre
os identificados com as forças de apoio ao trabalhismo e as Reformas de Base, que tinham
como símbolo Brizola e os correligionários das forças liberais e de oposição aos herdeiros
políticos de Getúlio Vargas, que encontravam no governador da Guanabara, Carlos
Lacerda, seu representante (VERSIANI, 2007, p. 70).
Ao longo do ano de 1962 o nome de Leonel de Moura Brizola foi repetidamente
comentado nas páginas dos jornais cariocas Jornal do Brasil e Correio da Manhã: seja por
sua função à frente do governo rio-grandense, quando nesse ano desapropriou terras para a
uma incipiente reforma agrária; por suas atitudes de relevo nacional, como na influência da
escolha de Francisco Brochado da Rocha como primeiro ministro11; pela pressão que
exerceu para realização do plebiscito para a escolha do novo regime governamental12 e por
fim, pela sua campanha a deputado federal pela Guanabara.
O grau de parentesco entre o governador gaúcho e o presidente da República foi
várias vezes motivos de críticas por parte dos opositores que, em algumas situações,
tentaram impugnar a candidatura de Brizola. É desse período a famosa frase “cunhado não
é parente, Brizola presidente” 13.

11
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1° de julho de 1962, p. 3.
12
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 07 de julho de 1962, p. 3.
13
O advogado Vitor do Espírito Santo entrou com um requerimento no Tribunal Regional Eleitoral
impugnando a candidatura de Leonel Brizola, segundo o Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 27 de julho
de 1962, p. 3. O mesmo advogado, em 25 de setembro, entrou novamente com pedido no Tribunal
Superior Eleitoral, mesmo o TRE já tendo registrado a candidatura. O também advogado Luiz Mendes

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Em linhas gerais, a plataforma de campanha de Brizola se pautava por questões nacionais


como as Reformas de Base, a realização do plebiscito para a confirmação do
parlamentarismo ou a escolha pelo presidencialismo14 e a aprovação da Lei de Remessa de
Lucros que controlaria o envio excessivo de altas quantias para o exterior. A realização do
plebiscito foi ponto recorrente durante a campanha eleitoral de Leonel Brizola sempre com o
objetivo de pressionar o Congresso Nacional para realizar a votação do plebiscito no mesmo
dia do pleito eleitoral, por vezes de forma muito radical, o que deixava a imprensa
conservadora mais preocupada.
Um exemplo é o destaque do pronunciamento de Brizola realizado em 1° de
setembro que mereceu chamada de capa no Jornal do Brasil com o seguinte título: “Brizola
prega plebiscito em outubro ou a subversão”, segundo o jornal esse pronunciamento foi
transmitido pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Na edição do Correio da Manhã a
chamada referente ao pronunciamento foi mais enfática: “Brizola prega a violência e diz que
o Congresso deveria estar fechado”, segundo o jornal, o candidato a deputado federal
convocou as forças armadas a lutar contra aqueles que não desejam a volta do
presidencialismo, apresentando um discurso radical.

Neste mesmo pronunciamento Brizola fez críticas a Carlos Lacerda alegando que o
governador da Guanabara pregava abertamente a guerra civil e criticou o embaixador
americano, Lincoln Gordon. Além disso, ele convocou os trabalhadores a fazerem greve
geral caso tivesse golpe15. Cabe aqui destacar que a expressão golpe era frequentemente
utilizada tanto pela mídia quanto pelo próprio Leonel Brizola, com a diferença do viés político
do “golpe”: a imprensa conservadora noticiava a possibilidade de um golpe tanto da direita,
quanto da esquerda; por outro lado, Brizola afirmava o risco de um golpe da direita.

Após a repercussão negativa de suas declarações o chefe do executivo gaúcho


alegou que suas palavras foram deturpadas e acusou a grande mídia de querer prejudicá-lo.
Disse que nunca tinha preconizado golpes e que lutava por uma causa justa e democrática

de Morais Neto (candidato a deputado federal pelo PDC) entrou com pedido de impugnação alegando
o parentesco de Brizola com o presidente João Goulart. No pedido ele afirma: “antes de tudo o Sr.
Leonel Brizola, protegido pelo seu cunhado, presidente João Goulart, é uma ameaça ao regime e
inimigo declarado das instituições”. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 28 de agosto de 1962, p. 14.
Esses dois últimos pedidos de impugnação também foram divulgados em Porto Alegre: “Impugnada a
candidatura Brizola na Guanabara”, Correio do Povo. Porto Alegre, 28 de agosto de 1962, p. 7. Outro
pedido veio do ex-interventor do Rio de Janeiro, na época de Getúlio Vargas, o Sr. Asdrubal Geyer
quem deu entrada a um pedido de impugnação à candidatura de Leonel Brizola. Jornal do Brasil. Rio
de Janeiro, 29 de agosto de 1962, p. 3. Também divulgado no Correio do Povo, Porto Alegre, 30 de
agosto de 1962, p. 14. Em setembro ocorreram novos pedidos de impugnação com a justificativa que
Leonel Brizola era comunista. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 27 de setembro de 1962, p. 4. Esses
casos também foram noticiados no Correio da Manhã.
14
Brizola queria a volta do presidencialismo, pois a creditava que a solução parlamentarista adotada
em 1961 tratava-se de um “golpe branco”.
15
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 02 e 03 de setembro de 1962, p. 3.

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que era a realização do plebiscito para o dia 07 de outubro para solucionar a grave crise
institucional que o país enfrentava desde o golpe branco de 196116.
O candidato rio-grandense correspondeu às expectativas do seu partido no que
tangia sobre a dualidade de força com Carlos Lacerda. O chefe do executivo gaúcho por
várias vezes acusou Lacerda de interferir na campanha da Guanabara, apoiando seus
correligionários, com recursos do estado e pronunciamentos, subindo em palanques, por
exemplo. Brizola apresentou representação contra Lacerda no Tribunal Regional Eleitoral
(TRE) sob a alegação de que a conduta do governador guanabarino interferia na campanha,
viciando o processo eleitoral17.
Ao longo de sua campanha, Brizola fez denúncias de que poderes econômicos
estariam influenciando a campanha dos candidatos. A partir dessa denúncia o Ministro da
Justiça anunciou que iria divulgar os valores investidos nas campanhas eleitorais18. Na
contramão da informação, o deputado estadual da Guanabara, Amaral Neto, denunciou que
Leonel Brizola roubou dinheiro do Rio Grande do Sul para financiar sua campanha19.
Entretanto, o governador gaúcho continuou com as acusações em seu pronunciamento pela
rádio, ocorrido no dia 02 de setembro, também divulgado pelo jornal Correio da Manhã. Na
mesma publicação, a coluna Mundo Político, crítica Brizola por esquecer-se de comentar
sobre os gastos da campanha do PTB e da sua própria campanha que, segundo o
periódico, é bem cara20.
Essas denúncias de influência econômica na campanha não eram infundadas. Em
trabalho clássico sobre o golpe de 1964, René Dreifuss (1981) constatou o investimento de
recursos nas campanhas de políticos identificados com a ideologia liberal por parte do
complexo IPÊS/IBAD. O Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) era uma
organização que reunia a elite empresarial nacional e também internacional, criada em
1959. O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPÊS), criado em 1962, também reunia
empresários, inicialmente do Rio de Janeiro e São Paulo, mas logo em seguida agregou as
classes produtoras de outros estados. O autor referido informou que foi justamente durante
a campanha para as eleições de 1962 que o complexo influenciou mais incisivamente,
especialmente com recursos financeiros, sendo que a maior parte deles advinha de
empresários e do governo norte americano.

16
Última Hora. Porto Alegre, 11 de setembro, p.4.
17
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 20 de setembro de 1962, p. 4 e Correio do Povo. Porto Alegre, 19
de setembro de 1962, p. 16.
18
Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 30 de agosto de 1962, p. 6.
19
Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 31 de agosto de 1962, p. 7.
20
Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 02 de setembro de 1962, p. 6.

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Verificou-se que o método de comunicação mais utilizado pelo petebista foi o rádio,
especialmente a Mayrink Veiga21, de onde se pronunciava com muita frequência. Esses
áudios não existem no acervo da rádio que está localizado no Arquivo Nacional. Seus
pronunciamentos nessa rádio eram constantes e constituía uma prática recorrente em sua
trajetória política desde seu governo no Rio Grande do Sul e que permaneceu durante sua
campanha para a Guanabara e durante seu mandato como parlamentar. O uso do rádio lhe
possibilitava um alcance maior entre as classes populares, que era a maioria do seu
eleitorado22, pois nem todos sabiam ler. Além do fato de Brizola utilizar melhor sua
capacidade de oratória e seu carisma que ficavam mais evidentes nos pronunciamentos
orais.
Segundo Lopes, outra estratégia de campanha de Leonel Brizola foram os comícios,
embora em menor quantidade. Alguns deles ocorreram antes mesmo da oficialização da sua
candidatura. Os comícios de maior destaque foram os realizados dias 07 de setembro no
Largo do Machado, zona sul da Guanabara e o do dia 05 de outubro, em Bangu, zona
oeste. Para o autor

Os comícios foram um grande instrumento da AST na promoção da


candidatura de Brizola, pois, mesmo impossibilitado de ir à Guanabara fazer
campanha, os candidatos da coligação falavam em seu nome e a ele
sempre faziam referências. Além disso, os jornais conservadores faziam
questão de sempre manter o nome de Brizola de forma negativa nos
noticiários, o que acabou gerando efeito contrário (LOPES, 2013, p. 42)

No dia das eleições, o Jornal do Brasil em uma análise sobre as eleições afirma que a
disputa na Guanabara será entre PTB e UDN. Afirma, também, que Leonel Brizola seria o
mais votado no seu partido23. Durante reportagem sobre os novos governadores o jornal
considera que o governador gaúcho “deixa o governo com amplo prestígio no plano

21
Fundada no Rio de Janeiro em 1926 e fechada em 1965 pela ditadura civil-militar, justamente por
ter participado da Cadeia da Legalidade em 1961. Foi líder de audiência na década de 1930 e reduto
de grandes nomes do rádio, como Carmem Miranda e Noel Rosa. A rua onde a rádio foi instalada
recebeu o nome de Mayrink Veiga. Foi ao lado da Rádio Nacional uma das duas mais importantes
emissoras do período que ficaria conhecido como a "Era do Rádio".
22
Uma evidência dessa afirmação são os dados de uma pesquisa realizada pelo Jornal do Brasil para
intenção de votos à presidência da República no pleito eleitoral de 1965. A publicação em questão
apresentou, hipoteticamente, os candidatos, eram eles: Leonel Brizola, Juscelino Kubistchek, Carlos
Lacerda, Jânio Quadros e Carvalho Pinto. Nesta pesquisa, Leonel Brizola obteve os melhores
resultados entre os pobres: “embora com ínfima penetração na classe rica (4%), o governador do Rio
Grande do Sul elimina essa desvantagem com os votos da classe pobre, na qual obtém sozinho
quase tanto (37%) quanto os Srs. Juscelino Kubistchek (23%) e Carlos Lacerda (16%) reunidos”.
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 15 e 16 de julho de 1962, p. 59.
23
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 07 de outubro de 1962, p. 4.

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nacional, em consequência da sua atitude durante os acontecimentos de agôsto-setembro


(sic) de 61”24.

A vitória

A partir do dia 09 de outubro já começam as primeiras prévias das eleições


apontando Brizola como um dos mais votados25. Durante a apuração ocorrem fatos
curiosos: alguns eleitores trocaram o nome de Leonel por Manoel na hora de escrever na
cédula, no entanto, os presidentes das juntas apuradoras consideraram o voto, pois
colocavam o número de Brizola, 512. Teve até um caso onde o eleitor escreveu Mané26.
Essa troca de nomes pode sugerir que, embora Leonel Brizola fosse conhecido
nacionalmente, o fato de ele estar participando pela primeira vez de um pleito eleitoral na
Guanabara o tornava, em algumas situações, menos próximo dos eleitores. No dia 11 do
mesmo mês, Leonel Brizola, segundo estatísticas, já era considerado eleito27.

Num panorama geral acerca da situação do PTB na Guanabara, pode-se afirmar que
foi justamente com a eleição e a vinda de Leonel Brizola para o estado que o partido
começou a adquirir certa autonomia. O partido saiu forte das eleições: teve grande vitória
para a Câmara dos Deputados com a votação recorde de Brizola (269.383 votos ou 26,4%) -
o deputado mais votado do país – e a eleição de poucas cadeiras para a UDN.

Sobre a expressiva votação de Brizola, José Talarico, secretário da comissão


executiva do PTB, afirmou que passou por situações constrangedoras dentro do partido,
pois algumas lideranças estaduais do PTB na Guanabara ficaram desconfortáveis ao
obterem votação bem menor do que Brizola, oriundo de outro estado. Para Talarico a
votação recorde de Leonel deveu-se às bandeiras levantadas pelo candidato, que iam muito
além das fronteiras estaduais, mas que visavam medidas de âmbito federal:

Estava em pauta no Congresso, por exemplo, a Lei de Remessa de Lucros,


estava em pauta a reforma agrária (...) e ele enfocou, dentro dos princípios
que defendia, dentro de princípios nacionalistas, a usurpação das empresas
estrangeiras no Brasil, a exploração que o Brasil sofria. Aquelas suas
palestras na Mayrink Veiga a respeito desses aspectos todos, tudo isso
28
motivou muito o eleitorado .

24
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 07 de outubro de 1962, p. 5.
25
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 09 de outubro de 1962, p. 1.
26
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 10 de outubro de 1962, p. 4.
27
Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 11 de outubro 1962, p. 14.
28
TALARICO, José Gomes. José Gomes Talarico I (depoimento, 1978/1979). Rio de Janeiro,
CPDOC, 1982. p. 114.

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O quadro eleitoral na Câmara dos Deputados ficou assim: dez cadeiras do PTB, seis da
UDN, duas do PSD, uma do PSB, uma do Partido Democrata Cristão (PDC) e uma do
Partido Social Trabalhista (PST), (VERSIANI, 2007, p. 76).
Sobre a configuração da bancada federal guanabarina, Motta analisa:

Dos 21 deputados eleitos, apenas sete não tinham um mandato anterior na


cidade. Em termos gerais, pode-se identificar uma dupla origem da votação
desses novatos na vida parlamentar carioca: a expressão que possuíam no
quadro político nacional, como Brizola, ou a conquista do eleitorado de
esquerda, como o deputado Marco Antônio, da Frente Popular, que recebeu
apoio explícito do líder comunista Luiz Carlos Prestes. Já em relação aos
outros 14 deputados, pode-se observar que tinham, em comum uma sólida
carreira política anterior, a maior parte deles com atuação no antigo Distrito
Federal (MOTTA, 2001, p. 193).

No Senado, Juracy Magalhães (UDN) ficou apenas com o terceiro lugar, perdendo para
Aurélio Viana, da coligação Aliança Socialista Trabalhista, sendo o mais votado, e para
Gilberto Marinho (PSD), que foi reeleito. No âmbito estadual o vice-governador escolhido foi
o petebista Eloy Dutra (47%), que derrotou o pessedista Lopo Coelho (39%), o candidato de
Lacerda; o terceiro candidato Mário Martins (PL) fez 4% dos votos (MOTTA, 2004, p. 160).
No legislativo estadual, onde o partido de Brizola apresentava maus resultados, também
obteve vitória: José Talarico candidatou-se a deputado estadual para fortalecer a legenda e
com o apoio do PSB, que conquistou 3 cadeiras, conseguiram maioria na Assembleia
Legislativa, dificultando a administração lacerdista. Embora a UDN tivesse elegido 14
deputados contra 13 do PTB, a oposição a Lacerda estava mais organizada. O legislativo da
Guanabara em 1962 ficou marcado pela fragmentação partidária, pois abrigava 11 partidos.

Conclusões Parciais

Enfim, a partir das análises apresentadas até o momento chegamos a algumas


conclusões que poderão ser completadas com o desenvolvimento da pesquisa. Podemos
observar que o veículo utilizado, prioritariamente, por Leonel Brizola para apresentar suas
propostas não foram os jornais, pois encontramos poucas notas publicadas a pedido do
candidato ou do seu comitê. O que presenciamos foi a cobertura por parte dos periódicos
sobre os atos de campanha de Brizola, que na verdade se pronunciava mais sobre assuntos
de interesse nacional do que exclusivamente estadual. Assim, é possível concluir que a
campanha e o consequente mandato visava consolidar a projeção nacional do governador
gaúcho e de fato a campanha também ganhou a tônica do discurso nacionalista de Leonel
Brizola em contraposição à Carlos Lacerda e a UDN. Observamos também que sua

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campanha eleitoral se mostrou bem estrutura, com uma base forte de apoio fruto do
sucesso da aliança com o Partido Socialista Brasileiro.
Como se utilizou exclusivamente de jornais como fontes, ainda que tivesse havido
uma busca com o intuito de diversificá-las e contrapô-las, a análise dos jornais foi pertinente
para compreender o papel que a imprensa teve no período imediatamente anterior ao golpe
de 1964. Ficou evidente que os jornais utilizados na pesquisa, a exceção da Última Hora,
não eram apoiadores de Brizola e, dessa forma, suas publicações eram tendenciosas,
sempre privilegiando as criticas ao candidato e ressaltando seu discurso radical que
amedrontava as classes conservadores. Entretanto, perceber essa falta de imparcialidade
nos jornais estudados não pode nos levar a afirmar que eles “manipulavam as massas” sem
essas questionarem o que estavam lendo, claro que a imprensa exerce influencia nas
decisões dos leitores, mas não é o único fator determinante na escolha de um candidato.
Um exemplo claro foi o fato de mesmo a imprensa guanabarina analisada tecer duras
críticas a Leonel Brizola sua votação foi a maior da época, com a ressalva de que o público
leitor do Jornal do Brasil e Correio da Manhã não serem os principais eleitores de Brizola.

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286 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014

O Conselho de Segurança Nacional e a Ditadura (1964-1969)

Guilherme BACHA de Almeida


Doutorando em História e Culturas Políticas na Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG).
gba.pessoal@gmail.com

Esta pesquisa trata da atuação do Conselho de Segurança Nacional (CSN) após o


golpe de 1964. Embora o Conselho, em suas reuniões plenárias, incorporasse todos os
ministros civis e militares e os chefes de Estado-Maior das três forças, sua Secretaria-Geral
era composta eminentemente por militares. Assim sendo, este trabalho pretende contribuir
para a compreensão do papel dos militares na gestão do Estado durante o regime pós-1964.

O Conselho de Segurança Nacional foi organizado pelo presidente Getúlio Vargas


em 1934. Vargas afirmou, na primeira sessão do CSN, que “(...) o Conselho não era um
órgão técnico militar e sim um complemento da organização política do país, para facilitar o
exercício do poder civil e estabelecer a indispensável coordenação entre as atividades dos
diferentes ministérios, tendo em vista a Segurança Nacional” (ATA da 1ª Sessão do
Conselho Superior de Segurança Nacional, em 28 de dezembro de 1934, p. 1.). Ao não
definir o que seria exatamente esse conceito de “segurança nacional”, Vargas abria um
leque amplo de possibilidades para a atuação do Conselho, que viria a marcar-lhe toda a
existência.

Apesar do cuidado de Getúlio em qualificar o CSN como um facilitador do “exercício


do poder civil”, esse órgão do Estado acabaria por tornar-se emblemático da ditadura erigida
após o golpe de 1964. Uma primeira avaliação sobre a trajetória do Conselho, portanto,
permite dividi-la em dois momentos: antes e depois da deposição de João Goulart. O CSN
foi um foro central da política repressiva da ditadura, atuando decisivamente no
encaminhamento da cassação de mandatos e da suspensão de direitos políticos de
opositores do regime e de suspeitos de corrupção. Não por acaso, a reunião mais lembrada
do Conselho é aquela em que foi lançado o Ato Institucional n. 5, em 13 de dezembro de
1968. O golpe de 1964 foi, portanto, um “ponto de virada” sobre a atuação do Conselho.

É possível afirmar, a partir da escassa bibliografia existente sobre o CSN e,


principalmente, pel a leitura de documentos do próprio órgão, que as reuniões plenárias do
CSN funcionaram como um elemento central de apresentação e discussão, dentro do
governo, de políticas públicas as mais diversas. Mas o eixo de minha pesquisa é identificar
até que ponto a Secretaria-Geral do CSN envolveu-se diretamente na produção de
propostas importantes para a discussão nas reuniões interministeriais e a deliberação
presidencial. Um dado importante é que a posição de Secretário-Geral foi sistematicamente

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287 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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ocupada por um general do Exército, mesmo antes da ditadura de 1964. Nesta


apresentação em particular, o foco é o papel repressivo do Conselho entre 1964 e 1969.

Um dos alvos de repressão pelo CSN foi o movimento estudantil. O Conselho atuou
decisivamente na edição do Decreto-Lei 477 em fevereiro de 1969, tema das próximas
páginas.1

A secretaria-geral do Conseelho de Segurança Nacional e a repressão ao movimento


estudantil

A Secretaria-Geral do CSN praticamente não produziu documentos sobre o


movimento estudantil durante o governo Castelo Branco, quando era ocupada por Ernesto
Geisel. Encontrei apenas dois relatórios semanais “sobre a opinião pública” do SFICI em
junho e julho de 1964, lembrando que neste momento o órgão transitava da subordinação
ao CSN para a autonomia como Serviço Nacional de Informações, sob o comando de
Golbery do Couto e Silva. No primeiro relatório, afirmava-se que “a máquina da
comunização do país não foi ainda desmontada. As classes menos favorecidas e,
principalmente, os meios estudantis, não foram desintoxicados”
(BR_AN_BSB_N8_0_PSN_EST_705, p. 137.). No segundo relatório concluía-se que “nos
meios operários, estudantis, em órgãos de governo etc, foram apenas afastados os comuno-
brizolistas mais exaltados e inconsequentes, mas os comunistas conscientes e influentes no
partido e muitos elementos coniventes e comprometidos com a comunização e com a
corrupção continuam em seus postos” (BR_AN_BSB_N8_0_PSN_EST_705, p. 149).

Ainda no governo de Castelo foram editadas duas normas legais sobre os órgãos de
representação estudantil: a Lei Suplicy (N. 4.464, de 9 de novembro de 1964) e o Decreto-
Lei 228, de 28 de fevereiro de 1967, que levaram ao fechamento formal da UNE, UME,
UBES, AMES e assemelhadas. Não encontrei evidências de participação do CSN na
elaboração dessa legislação e, portanto, não a abordarei neste trabalho. Vale registrar,
apenas, a insatisfação de uma Comissão formada para tratar da política estudantil durante a
presidência de Costa e Silva, com a “flagrante desobediência às exigências contidas nesses
diplomas legais” (BR_AN_BSB_N8_0_PSN_EST_326, p. 597). Ou seja, as entidades
estudantis extintas insistiam em funcionar, mesmo na clandestinidade.

Mas se o acompanhamento do movimento estudantil não parece ter sido uma


prioridade para o CSN no governo Castelo Branco, o mesmo não se pode dizer do governo

1
O estudo da participação do CSN na preparação do Decreto-lei 477 me foi sugerido pelo professor
Rodrigo Motta, orientador de minha pesquisa de doutorado em andamento. Ele trata do assunto em
Motta (2014).

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Costa e Silva. A preocupação com a “agitação estudantil” como uma ameaça ao regime
aparece constantemente em documentos da Secretaria-Geral do Conselho de Segurança
Nacional desde abril de 1967, um mês após a posse do novo presidente. Um ponto
fundamental desta parte da apresentação é que a SG/CSN, mais do que o Ministério da
Educação e Cultura, teria sido o organismo central do governo no acompanhamento do
tema estudantil e nas propostas para lidar com ele desde então. Afinal, naquele momento
tratava-se progressivamente do estudante como uma ameaça à segurança nacional, não
apenas como um objeto de políticas públicas.

O gabinete da SG preparou um “estudo sobre atividades estudantis” remetido em 9


de junho de 1967 a Portella de Mello. Nele, ressaltava três pontos: (i) movimentos
estudantis recentemente realizados não são “esporádicos, isolados e sem continuidade e
sim movimentos de caráter permanente, cotidiano, todos obedecendo a um rigoroso
planejamento de “luta””; (ii) a partir de março de 1967, “com a superação da fase de
desorganização dos movimentos estudantis, foram estes intensificados e coordenados,
prevendo-se, de acordo com o que estabeleceu a UNE, uma intensificação sempre
crescente”; (iii) “esses movimentos têm procurado insistentemente a aproximação com a
massa trabalhista numa tentativa de estabelecer uma ligação operário-estudante-
camponês”. O estudo concluía com a recomendação de que “sejam abertos IPMs
(inquéritos policiais-militares) simultaneamente em todas as cidades em que se vem
verificando maior agitação estudantil” e ainda acrescentava que “seria interessante que tais
IPMs tivessem uma assessoria jurídica competente, com o propósito de evitar a
desmoralização desses inquéritos, quando na Justiça” (BR_AN_BSB_N8_0_PSN_EST_301,
p. 1077).

O restaurante estudantil “Calabouço”, onde seria assassinado o estudante Edson


Luis em 28 de março de 1968, seria o tema de quatro ofícios da SG entre 20 de julho e 30
de agosto de 1967. “O restaurante foi criado com o intuito de fornecer alimentação aos
estudantes de outros Estados, que vinham ao Rio de Janeiro cursar Escolas e Faculdades”,
afirmava a SG/CSN, mas atendia “a algumas centenas de rapazes, nem sempre
necessitados e muitos deles mal agradecidos e irresponsáveis”. A antipatia da SG pela
existência do serviço parece clara e, diante de questões administrativas a serem resolvidas
sobre o órgão mais adequado para gerir o restaurante (o MEC ou a COBAL, Companhia
Brasileira de Alimentos) após a extinção do antigo gestor (o SAPS, Serviço de Alimentação
da Previdência Social)2 em 1967, a SG sugeria seis opções, deixando clara qual era a sua
favorita: “extingui-lo é uma solução que consideramos mais adequada, praticável e

2
Criado por Getúlio Vargas em 1940.

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aceitável” (BR_AN_BSB_N8_0_PSN_EST_302, pp. 1744 e 1745). A SG se queixaria,


ainda, do fato de a Frente Unida dos Estudantes do Calabouço (FUEC) ser reconhecida
como interlocutora pelos administradores do restaurante, pois “tem como presidente e vice-
presidente elementos ali colocados para subverter a ordem, visto que são estudantes
profissionais”, sendo “uma associação ilegal, com finalidade subversiva, ligada à extinta
UNE, e com o único objetivo de congregar os estudantes para agitações políticas”. O
restaurante seria efetivamente extinto, mas o processo se prolongaria até a morte de Edson
Luis, em março de 1968.

O único ofício da SG/CSN produzido no restante de 1967, após o Congresso da UNE


e as manifestações sobre o restaurante Calabouço, é de 19 de outubro e trata-se de uma
consulta ao SNI sobre “o resultado das últimas eleições para o DCE da UFRJ e qual a
posição ideológica dos membros que compõe (sic) a chapa vitoriosa”
(BR_AN_BSB_N8_0_PSN_EST_302, p. 1494).

Uma “Comissão Especial para propor medidas relacionadas com os problemas


estudantis” funcionaria entre janeiro e abril de 1968. Era uma iniciativa formal do presidente
Costa e Silva e do Ministro da Educação, Tarso Dutra, presidida por um militar, o coronel
Meira Mattos, da ESG, e contava com a participação de um militar da SG/CSN entre seus
cinco membros. Alguns dos temas tratados pela Comissão foram a crise de autoridade nas
universidades, as entidades estudantis e o restaurante Calabouço. A comissão também
sugeriria o fechamento do restaurante estudantil, como já o havia feito a própria SG/CSN.
Sobre a crise de autoridade, entendia que uma das razões seria a Lei de Diretrizes e Bases
de 1961 (Lei 4.024), que concedia excessiva “autonomia administrativa e disciplinar” às
autoridades universitárias. Estas, em vários casos, não exerceriam seu papel junto aos
estudantes com o rigor necessário. A LDB, portanto, deveria ser reformada.

Sobre o movimento estudantil, os membros da Comissão concluíam que a Lei Suplicy e sua
sucedânea (ambas do governo Castelo Branco), que reorganizavam os órgãos de
representação dos estudantes, não haviam sido obedecidas em várias unidades do ensino
superior e sugeria (i) formar uma liderança estudantil democrática (através de cursos) e (ii) à
base dessa liderança, atuar decisivamente nas disputas eleitorais a fim de conquistar os
diretórios de representatividade da classe.

A Comissão encerraria seus trabalhos em abril de 1968 e, em 26 de junho, ocorreria


a “Passeata dos 100 mil”, convocada pelo movimento estudantil e seguida de uma reunião
mal sucedida de Costa e Silva com lideranças civis (o estudante Franklin Martins entre elas),
em 2 de julho, que certamente lhe valeu críticas por parte dos elementos mais duros do
regime e o levou a proibir a realização de novas passeatas, “a qualquer título”.

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290 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014

O tema da 41a. reunião interministerial do CSN, em 11 de julho de 1968, foi


apresentado por Costa e Silva como “a apreciação da atual conjuntura nacional, sob o
aspecto da Segurança”. Um dos objetivos do presidente era ouvir a opinião de cada
membro do Conselho sobre a necessidade de se adotar novas medidas de exceção para
enfrentar a subversão. As palavras “estudante”, “estudantil” ou assemelhadas aparecem
119 vezes nas 79 páginas da ata dessa reunião, citadas por ministros militares e civis, o que
demonstra como a “subversão” do setor estudantil impunha-se na pauta de preocupações
do governo naquele momento.

E quem apresentou o primeiro documento para a análise dos membros do CSN


nessa reunião de 11 de julho foi, sintomaticamente, o Secretário-Geral, Portella de Mello,
que separou sua avaliação em tópicos. Um deles, o de maior interesse nesta apresentação,
intitulava-se “No campo psicossocial: área estudantil”. O tópico contemplava os itens
“motivação”, “fatores que dificultam a ação subversiva”, “fatores que favorecem a ação
subversiva” e “fatos mais recentes que caracterizam a ação subversiva”, concluindo que “as
lideranças extremistas estudantis vêm se firmando dia a dia, sendo que, progressivamente,
aumenta o número de jovens que as aceitam, agora, também, apoiadas por grande parcela
da opinião pública”. Aliás, em vários documentos da SG/CSN nesse período a imprensa
aparecia como um dos maiores problemas para o regime, por repercutir favoravelmente a
subversão estudantil e influenciar negativamente a opinião pública.

Antes de chegar à edição do Decreto-lei 477, ponto culminante da atuação da


SG/CSN contra a “subversão” estudantil, é importante lembrar dois eventos: (i) a realização
do XXX Congresso da UNE em Ibiúna, em 12 de outubro de 1968, com a prisão de grande
número de líderes estudantis, e (ii) a edição do 5o. Ato Institucional (AI-5) em 13 de
dezembro de 1968, debatido na 43a. reunião interministerial do CSN, na qual, parafraseando
Élio Gáspari: “quando as portas da sala se abriram, era noite. Duraria dez anos e dezoito
dias” (GASPARI, 2002: p. 340).

Chega-se, assim, ao coroamento da atuação da SG/CSN contra o movimento


estudantil, com a edição do Decreto-lei 477. O general Portella de Mello, Secretário-Geral
do CSN, enviou Exposição de Motivos ao presidente Costa e Silva em 24 de janeiro de 1969
propondo um decreto-lei que definisse “as infrações contra a segurança nacional, no setor
escolar” e estabelecesse “as sanções obrigatórias”. Afinal, “o quadro brasileiro, no decorrer
do ano de 1968, mostrou claramente que o problema estudantil, além de seus aspectos
educacionais, apresentou também fortes conotações político-subversivas (...) gerando,
mesmo, um forte sentimento de apreensão no seio das Forças Armadas”
(BR_AN_BSB_N8_0_PSN_EST_567, p. 188, 189). A SG/CSN teria indicações sobre o

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futuro recrudescimento das agitações estudantis após os exames vestibulares e o período


de férias daquele início de 1969, razão pela qual sugeria a Costa e Silva que solicitasse a
“necessária urgência” no pronunciamento dos Ministros da Justiça (Gama e Silva) e da
Educação (deputado Tarso Dutra), ambos civis, sobre a proposta de decreto-lei criada pela
SG/CSN.

Ambos responderam com rapidez. O Ministro da Educação o fez em 5 de fevereiro,


comunicando seu “pleno acordo” com a proposta feita. Já o Ministro da Justiça respondeu
em 11 de fevereiro levantando diversos questionamentos jurídicos ao projeto da SG/CSN e
procurando incorporar a rede particular de ensino também, o que incomodava Portella, que
queria concentrar-se na tese de o governo “não financiar a subversão”, ou seja, restringir-se
à rede pública. O ministro Gama e Silva aproveitou, ainda, “para nuançar um pouco o tom
de ameaça aos dirigentes universitários que não punissem adequadamente os infratores”
(MOTTA: 2014). Nessa “queda de braço” entre Portella e Gama e Silva, Costa e Silva
acabou optando pelo segundo, ao definir o substitutivo que este propôs como texto final do
decreto. Mas, para os propósitos desta apresentação, ressalto que a mobilização inicial e
toda a condução do processo que levou à edição desse duro ato contra o movimento
estudantil coube à Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional.

A partir do “477”, qualquer atitude de aluno, professor, funcionário ou empregado de


estabelecimento de ensino público ou particular que fosse julgada uma “infração disciplinar”
implicaria demissão e proibição de nova nomeação para cargo público por 5 anos ou, no
caso dos alunos, desligamento e proibição de matrícula em qualquer outro estabelecimento
de ensino por 3 anos. Após a citação do suposto infrator, sua defesa deveria ser
apresentada em 48 horas; o primeiro responsável pela investigação teria mais 48 horas para
se manifestar e o dirigente do estabelecimento de ensino contaria com mais dois dias para
proferir sua decisão, ou seja, em 6 dias poderia ter-se uma definição. Por via das dúvidas, o
decreto estabeleceu que o processo “sumário” não poderia durar mais de vinte dias,
incorporando alguns dias para as diligências anteriores à citação do suposto infrator.

O objetivo claro era o de promover um expurgo dos universitários e secundaristas


“subversivos”, constrangendo os reitores e diretores de faculdades e escolas secundárias
que vinham sendo “lenientes” no cumprimento de suas obrigações para com a segurança
nacional. Há evidências de que os estudantes foram “praticamente os únicos punidos com
base no 477” (MOTTA: 2014). O AI-5 talvez fosse suficiente para promover essa “limpeza”
no meio estudantil, seria preciso estudar mais o assunto, mas a Secretaria-Geral do
Conselho de Segurança Nacional fez questão de propor uma legislação específica para
tratar dessa objetivo em particular. Coroou, assim, um processo que, como procurei

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mostrar, prolongou-se por quase dois anos, desde a primeira manifestação mais vigorosa da
SG/CSN sobre o movimento estudantil até a edição do “477”.

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A literatura brasileira contemporânea e a (re)construção do passado: o papel dos


narradores nos romances de Milton Hatoum

Juliane Vargas WELTER


Doutoranda em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS).
julianewelter@gmail.com

Entendendo a literatura como um palco de (re)elaboração de memória e de


exposição de fraturas e impasses sociais, ao lermos os romances Dois irmãos e Cinzas do
Norte, de Milton Hatoum, publicados respectivamente em 2000 e 2005, nos deparamos com
uma história social do Brasil no século XX vista e vivida em Manaus/AM. Uma espécie de
“historiografia do inconsciente”, segundo Theodor Adorno em Teoria Estética. Para termos
uma noção cronológica, perpassamos, somando os dois romances, a história do país de
1914 até, provavelmente, final dos anos 80, mesclando memórias e vivências dos
narradores e de outros personagens centrais para a construção romanesca. Falamos então
de romances que abarcam a formação do Brasil moderno e contemporâneo, o golpe militar,
a ditadura e o início do processo de democratização, mas que têm como núcleo central
sobretudo os anos 60 e 70. Somos conduzidos pela escrita desses narradores em primeira
pessoa, Nael e Lavo (o primeiro, narrador de Dois irmãos, e o segundo, de Cinzas do
Norte), que utilizam da verve intelectual para contar a sua história: ao final da narrativa
descobrimos que eles estão escrevendo um romance, o romance que lemos.

Para analisarmos essas obras articulando processo social e histórico à questão


estética utilizo de algumas categorias que nos ajudam a iluminar essas reflexões. São elas a
posição dos narradores, que nos dois casos são em primeira pessoa, logo “pouco
confiáveis” (Adorno, 1983; Benjamin, 1994); a memória, central para Nael e Lavo e
entendidas como plurais, exercitadas e construídas a partir do presente, somada à a
dicotomia testemunho-trauma, categorias que podem ser aplicadas aos nossos narradores,
de maneira geral, pela vivência da violência do regime militar (Ricoeur, 2007; Seligmann-
Silva, 1998; 2005); o conceito de romantismo revolucionário, romântico por que busca no
passado a solução para o futuro e revolucionário porque modernizador, pensando nos
processos de idealização dos personagens de esquerda/desajustados nos romances
(Ridenti, 2000); e, por fim, guiando a nossa leitura, as reflexões de Roberto Schwarz (1978;
1999) acerca da relação entre a forma literária e as questões sociais.

Dito isso, passemos aos romances. Em Dois irmãos, Nael, filho da índia Domingas,
empregada de Zana e Halim, busca a identidade paterna, um dos irmãos, Yaqub, o mais
velho, e Omar, o Caçula. À família soma-se Rânia, a irmã mais nova. Para escrever a sua
história, nosso narrador utilizará das histórias de Halim, Domingas, dos escritos do professor

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Laval e de sua própria vivência, perpassando assim boa parte de história do Brasil no século
XX, tendo como foco principal as disputas dos irmãos, inimigos desde a infância. Os dois
irmãos, inimigos e díspares, representam dois modos de vida: Yaqub, engenheiro, militar da
reserva, vai embora para São Paulo nos anos 50, vivendo uma era de progressos; já Omar
opta pela boemia manauara, e pelos mimos da mãe e da irmã. De um lado, a São Paulo
progressista; de outro, a Manaus atrasada. Desde o princípio da narrativa Nael é simpático
ao irmão mais velho, sendo a recíproca verdadeira. Já Omar é mal visto pelo narrador pelos
comportamentos boêmios e despreocupados, mas também pela forma como é tratado e
trata as mulheres das casa, mantendo uma relação de tensão com o Caçula, enquanto com
Yaqub o que se percebe é uma relação afetiva. Mas um acontecimento irá desequilibrar a
balança dos sentimentos de Nael em relação aos gêmeos: a morte do professor de francês
Antenor Laval pelos militares em abril de 1964:

Ele acabara de sair do Café Mocambo, atravessava lentamente a praça das


Acácias na direção do Galinheiro dos Vândalos. Carregava a pasta surrada
em que guardava livros e papéis, a mesma pasta, os mesmos livros; os
papéis é que poderiam ser diferentes, porque continham as garatujas dele.
Laval sempre carregava uma pasta com seus poemas e rabiscos, não
guardava o que escrevia, dava aos alunos. Dizia: “Um verso de um grande
simbolista ou romântico vale mais do que uma tonelada de retórica - dessa
minha inútil e miserável retórica”, acentuava.

Foi humilhado no centro da praça das Acácias, esbofeteado como se


fosse um cão vadio à mercê da sanha de uma gangue feroz. Seu paletó
branco explodiu de vermelho e ele rodopiou no centro do coreto, as mãos
cegas procurando um apoio, o rosto inchado voltado para o sol, o corpo
girando sem rumo, cambaleando, tropeçando nos degraus da escada até
tombar na beira do lago da praça. Os pássaros, os jaburus e as seriemas
fugiram. A vaia e os protestos de estudantes e professores do liceu não
intimidaram os policiais. Laval foi arrastado para um veículo do Exército, e
logo depois as portas do Café Mocambo foram fechadas. Muitas portas
foram fechadas quando dois dias depois soubemos que Antenor Laval
estava morto. Tudo isso em abril, nos primeiros dias de abril (HATOUM,
2006, p. 141-42).

Até então secundário na narrativa, o professor ganha um capítulo à parte quando é


espancado e preso em abril de 1964 na praça da cidade, acontecimento que foi presenciado
por muitos de seus alunos. Descrito como um dândi perdido na província, com um passado
cheio de mistérios, mulherengo, excêntrico, diziam que era um militante vermelho, o
professor não negava nem concordava. Ao mesmo tempo, é adorado por seus alunos pelos
seus comportamentos libertários, sendo um professor diferenciado e provocativo, que dizia
que política não era assunto de aula, espaço para falar de algo mais importante: a poesia.

A partir da morte de Laval e da instauração do regime militar, Nael, traumatizado por


presenciar a prisão e o espancamento do professor em praça pública passa por um

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295 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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processo de mudanças: ao perceber a proximidade de Omar com o Mestre (até então não
bem esclarecida), perdoa o Caçula, mesmo que por um instante:

Por uma vez, só, não hostilizei o Caçula, não pude odiá-lo naquela tarde
chuvosa, nossos rostos iluminados por tochas, nossos ouvidos atentos às
palavras de um morto, nosso olhar na fachada do liceu, na tarja preta que
descia do beiral à soleira da porta. Um liceu enlutado, um mestre
assassinado: assim começou aquele abril para mim, para muitos de nós.

Não pude odiar o Caçula. Pensei: se toda a nossa vida se resumisse


àquela tarde, então estaríamos quites (HATOUM, 2006, p.143).

Ao mesmo tempo, é surpreendido com um Yaqub calmo em meios às ocupações


feitas pelos militares, dizendo que Manaus está pronta para crescer, não se intimidando com
os militares nas ruas. Ao perder o professor e identificar em Yaqub um suposto apoiador do
regime, nosso narrador se afasta do irmão mais velho, acabando por desistir da busca
paterna. Ao final, espécie de sobrevivente daquela família (os irmãos continuam vivos, mas
separados) escreve seu romance tendo na mãe (em menor grau), no suposto avô e nos
escritos de Laval suas origens, utilizando desses relatos para escrever a sua história. Mas,
ao mesmo tempo em que relembra o passado, em um jogo de memórias e esquecimentos,
aponta seu ressentimento para o processo de modernização de Manaus e para com o
futuro, segundo ele uma “falácia que persiste” (HATOUM, 2006, p. 196).

Já Cinzas do Norte, com enredo muito similar a Dois irmãos, será escrito por Lavo
agregando a sua própria vivência a manuscritos de seu tio Ranulfo e aos pertences de
Mundo, incluindo aqui cartas de ambos. Diferentemente de Nael, que narra a sua própria
busca, Lavo narra a vida do amigo Mundo, um artista incompreendido pela família e
insatisfeito com seu tempo: “Medo...” (...) “Só se fala nisso... Toda frase começa com essa
palavra. Tanto medo assim, melhor morrer” (HATOUM, 2005, p.165). A narrativa centra-se
na amizade entre os dois meninos, que inicia em 64, até o presente, no qual Mundo não
está mais vivo: falece no final dos anos 70, de uma doença misteriosa. Ao contar essa
história, concentra-se sobretudo nos 60/70 e na difícil relação entre o amigo e seu pai
autoritário Jano, um admirador dos militares. Soma-se a Mundo como personagem com
verve libertária tio Ran, um representante do que poderíamos chamar da “esquerda festiva”:
sem filiações políticas e um boêmio, mas repleto de ideias libertárias:

nas manhãs de domingo acordávamos com os discursos de um e outro, que


defendiam idéias amalucadas sobre uma revolução no Brasil. Os assuntos
eram variados e cruzados: reforma agrária, pesca de tambaqui, festa a
bordo de um navio o mais novo prostíbulo de Manaus, o Varandas da Eva.
Brindavam ao Varandas, e Corel, com a bagana apagada na boca, gritava,
animado: “O Rosa de Maio ainda é o melhor!”. Tinham esquecido a
revolução e a reforma agrária, e recordavam as noites da juventude no
Rosa de Maio, Lá Hoje, Shangri-lá (HATOUM, 2005, p.22-3).

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296 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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Encarna também a figura do intelectual ao ser um devorador de livros que “vinham


de muito longe, do Sul” (HATOUM, 2005, p. 24) e ao tentar escrever a sua história com seu
grande amor: Alícia, mãe de Mundo. Escritos esses que serão legados a Lavo, que narrará
essa e outras histórias, revelando os processos de modernização de Manaus e as relações
mantidas pela elite com os militares já em uma ditadura assentada.

Pelas vozes dos narradores e pelas construções feitas sobre Laval, Mundo e tio Ran
podemos levantar algumas hipóteses sobre a construção do passado feita nos romances e
sobre a visão trazida sobre uma certa intelectualidade. Para isso, centraremos
primeiramente na posição desses narradores. Nael, sem nome até quase o final do
romance, constitui-se, como todo narrador, em um mediador entre os leitores e a
experiência estética, falando em primeira pessoa, mas ao mesmo tempo de um lugar
periférico, já que a mãe é uma agregada da casa e ele um filho não reconhecido. Ao mesmo
tempo, sua narrativa é terceirizada, pois a constrói também com a ajuda de Domingas,
Halim e Laval, em um jogo de memória/esquecimento, vivência e poesias:

Eu tinha começado a reunir, pela primeira vez, os escritos de Antenor Laval,


e a anotar minhas conversas com Halim. Passei parte da tarde com as
palavras do poeta inédito e a voz do amante de Zana. Ia de um para o
outro, e essa alternância – o jogo de lembranças e esquecimentos – me
dava prazer (HATOUM, 2006, p.197).

Falamos então de uma posição maleável pelas aproximações e distanciamentos que


o narrador mostra ao longo da trama, sejam eles temporais ou afetivas. Lavo mostra-se
muito parecido com o narrador de Dois irmãos, mas com uma diferença: sua posição é
ainda mais periférica, pois está fora da família central do romance. Nos dois casos tratamos
de histórias de famílias pela via memorialística e nos dois casos lidamos com a figura
paterna: Nael não sabe quem é seu pai e Mundo mantém uma relação muito conflituosa
com o seu, vindo a saber no final da vida quem era seu verdadeiro pai. Adiciona-se a isso o
fato de Lavo ser órfão de pai e mãe. Lidamos então com narradores e protagonistas
freudianamente entre o pai ausente e castrador.

Esses mediadores, ao contarem essa história(s), revelam sobretudo a maneira como


se constituem, funcionando ora como ouvinte ora como participante, utilizando da sua
própria memória e das memórias alheias, em um jogo de ter lembranças ou ir em busca
delas caracterizado pelo exercício da memória. Tratando eles como romances
memorialísticos, são narradores que acabam por não criar ilusões de verdade,
demonstrando para o leitor suas idas e vindas afetivas: os sentimentos de Nael com os

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297 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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irmãos, o medo que Lavo sentia de Jano, etc., nuances que acabam por se revelar na voz
da primeira pessoa narrativa.

No caso de Nael, a sua posição ainda é mais suspeita e ao mesmo tempo válida pelo
alto envolvimento com a história narrada, a busca paterna. Ao mesmo tempo, funciona como
uma espécie de fusão de narradores: ao recontar as histórias de Halim e Domingas,
podemos encontrar vestígios da narrativa oral, calcada na experiência e na sabedoria. Ao
mesmo tempo, conta a sua vivência e se utiliza dos escritos do professor Laval, transmitido
a nós pela escrita solitária do romance. Já Lavo participa de processo semelhante ao
construir a narração via cartas de tio Ran, a carta de Mundo, a sua vivência e os relatos dos
tios sobre o passado. Podemos perceber, assim, que Milton Hatoum arquiteta um colcha de
retalhos ao trazer para o romance, de fato, muitos narradores: oficialmente Nael e Lavo,
mas que se valem de outros narradores traduzidos por eles via forma romanesca,
permitindo que tenhamos acesso a ângulos diferenciados, principalmente no caso de Cinzas
do Norte, no qual as cartas de tio Ran e Mundo estão inseridas no corpo do texto, sem
mediação direta de Lavo.

Ao refletirmos sobre essa posição memorialística, somos levados a pensar também a


noção de testemunho, entendido com a visão de algo excepcional que não é passível de
tradução no momento em que ocorre. Seguindo assim a lógica benjaminiana que
“testemunha-se – sempre, diria Walter Benjamin – uma cena traumática” (SELIGMANN-
SILVA, 1998, p.10), somos levados também a noção de trauma, do grego traûma (ferida),
visto nessas construções literárias como constitutivo de suas estruturas, considerando-as
palco de elaboração de uma memória traumática (repressão, no sentido lato) de um evento-
limite (a ditadura militar)1. Podemos, então, problematizar essa memória pela ótica do
testemunho e do trauma, pois nossos narradores vivenciam/testemunham situações limites,
tornando-se o trauma constitutivo de sua construção literária.

Destarte, podemos ler a construção narrativa de Nael como um processo de


resolução de seus traumas: do testemunho da violência, da derrocada da família e também
da derrocada do país. Resolução de trauma que passa por Lavo, mas em menor grau já que
seu relato é sobre outrem, sendo seu trauma de âmbito mais generalizado e menos

1
Ampliando o espectro podemos inserir nessa discussão a posteriori romances da literatura brasileira
contemporânea (entendendo contemporânea como a partir da abertura política) que problematizam a
ditadura brasileira seja como presente ficcional, seja como memória, em maior ou menor grau. Ver:
BUARQUE, Chico. Benjamim. São Paulo: Companhia das Letras, 2004; BRACHER, Beatriz. Não
falei. São Paulo: Editora 34, 2004 (2004). ______. Antonio. São Paulo: Editora 34, 2007; HATOUM,
Milton. Um solitário à espreita. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. KUCINSKI, Bernardo. K.
Relato de uma busca. São Paulo: Cosac Naify, 2014. LEVI, Tatiana Salem. A chave da casa. Rio de
Janeiro: Editora Record, 2007; LISBOA, Adriana. Azul-corvo. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2010;
OLIVEIRA NETO, Godofredo de. Amores exilados. Rio de Janeiro: Editora Record, 2011.

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298 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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presente. Ainda assim, os narradores são testemunhas observadoras de uma época,


construindo suas narrativas no tempo presente, como uma espécie de resolução daquele
passado, não traduzido até então pela linguagem. Ao mesmo tempo, escrevem essas
histórias em um momento de poucas esperanças, já que para Nael o futuro é uma falácia e
para Lavo uma incógnita: “O mais idoso desabafou: ‘Os militares vão cair fora!’. Uma voz
rouca levantou a dúvida: ‘E o que vem por aí?’” (HATOUM, 2005, p.286).

No que concerne às figuras narradas como desajustadas, libertárias, ou


simplesmente “de esquerda”, Laval, Mundo e Ranulfo, somos remetidos a certa ideia de
intelectualidade representada nos romances, tratadas aqui de maneira bastante carinhosa e
idealizada, nos levando ao clássico texto de Roberto Schwarz (1978), “Cultura e Política”, e
também ao conceito de romantismo revolucionário, trabalhado por Marcelo Ridenti em Em
busca do povo brasileiro (2000). Segundo Schwarz (1978), nos anos 60, houve certa crise
na intelectualidade que não participava mais do debate político, referindo-a aqui aos
intelectuais atrelados ao fazer literário, já que a ponta do debate nos anos 60 é via canção e
teatro. Essa crise será apreendida no romance pela tematização da conversão do intelectual
à militância, o que pode ser visto em quatro obras: nos romances Quarup, de Antonio
Callado, e Pessach, de Carlos Heitor Cony, ambos de 1967; e nos filmes O desafio, de
Paulo César Saraceni (1965), e Terra em Transe, de Glauber Rocha (1967). As mesmas
produções foram tratadas por Marcelo Ridenti como portadoras da cisão faústica do
intelectual, dilacerados pela experiência de serem portadores de uma alta cultura de caráter
transformador e progressista em um país subdesenvolvido, formando assim uma identidade
romântica e revolucionária ao mesmo tempo.

Da conversão do intelectual ao guerrilheiro, passamos à idealização do intelectual:


em Laval, personagem ilusoriamente secundário, considerado um Mestre, com M maiúsculo;
Mundo, a motivação da construção romanesca, exaltado na narrativa como alguém
poderoso: “logo percebemos que seu poder, além de emanar das mãos, vinha também do
olhar” (HATOUM, 2005, p. 16); e Ranulfo, que segundo Lavo ganhava “a grandeza de um
ser revoltado” com as palavras de crítica e revolta que proferia dando “uma certa dignidade
para o tio Ran” (HATOUM, 2005, p. 223). Em contrapartida, quem está do lado de lá –
Yaqub e Jano, para sintetizarmos – é retratado de maneira negativa, seja pela sede de
progresso ou pela personalidade autoritária.

Nenhum dos três intelectuais aparece em cena como militante, mas são condenados
via regime militar e via sociedade opressora provinciana. O primeiro, professor; o segundo,
artista; o terceiro, um leitor e um escritor deflagrador de ideais libertários. Não há mais
problematização de conversão do intelectual à militância, o tempo já passou e a avaliação

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agora é outra: os problemas vividos por esses “desajustados” é trazido à tona com um olhar
entre complacente e admirador de nossos narradores que não se posicionam abertamente
sobre política em nenhum momento. Podemos ler essas estratégias como uma retomada
daquele romantismo revolucionário pela idealização desses intelectuais, injustiçados em seu
tempo e/ou como uma forma de prestar homenagens ao mesmo tempo em que serve como
uma oferta de luto e acerto de contas com um passado marcado pela violência física e
simbólica da repressão.

Soma-se ainda à discussão a análise feita por Schwarz (1999) no texto “Fim de
Século”, que avaliaria o impacto das mudanças socioculturais brasileiras na década de
1990. Segundo ele, a “falência do desenvolvimentismo, o qual havia resolvido a sociedade
de alto a baixo, abre um período específico, essencialmente moderno, cuja dinâmica é a
desagregação” (p.160). Desagregada, engolida pelos grandes da economia, fetichizada no
consumo de mercadorias, chega-se ao final do século com a pertinente pergunta de
Schwarz (1999, p.162):

o que é, o que significa uma cultura nacional que já não articule nenhum
projeto coletivo de vida material, e que tenha passado a flutuar
publicitariamente no mercado por sua vez, agora como casca vistosa, como
um estilo de vida simpático a consumir entre outros?

Seguindo essas conjecturas, os narradores mudariam suas perspectivas – em Milton


Hatoum, o romance é narrado em 1ª pessoa, mas com relativo distanciamento, numa
perspectiva mediadora. As promessas de integração nacional aparecem pela via
memorialística: Nael e Lavo repassam a história do país acusando o passado, mas sem a
perspectiva de uma nova integração presente, de um novo projeto nacional. Reconstroem
esse passado passando pelo luto do processo ditatorial, da falta de um projeto nacional ao
mesmo tempo em que prestam essa homenagem a esses intelectuais. A esses processos
soma-se a perspectiva do labor literário como sopro de otimismo: seus narradores e
personagens sobrevivem às tragédias, mortes e separações através desses relatos escritos.
Mesmo que as memórias sejam ruins, ou só reste ruínas, o processo escritural dará um
sopro de otimismo ao fim das narrativas, como uma espécie de fé no trabalho da literatura
enquanto forma de superação e rememoração do passado.

Considerações finais

Ao tratarmos de uma categoria como memória, temos que perceber que ela é
individual. Segundo Seligmann-Silva (2012, p.64):

toda memória é o resultado de conflitos e negociações que se iniciam dentro das


pessoas que vivenciaram aquele evento e depois se desdobram nas relações entre os
indivíduos, grupos e classes, que se embatem na esfera pública. Daí não estarmos

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autorizados a falar sobre uma memória do período da ditadura, mas antes sobre várias e
conflitantes memórias.

Essa memória única e exercitada nos permite pensar no jogo de esquecimento


trazido pelo próprio Nael, esquecimento esse considerado também uma forma de memória
que contém uma capacidade de (re)significação das coisas e de si mesmo. Trata-se de uma
representação das coisas já apresentadas anteriormente para si, uma possível
reconfiguração de tais dados guardados na memória que são despertados pela
rememoração. Assim, o ato de esquecer é acompanhado do constante rememorar e
ressignificar produzido pelos narradores ao longo das obras, traduzidos para o presente de
maneira única.

Se o futuro é uma falácia, via Nael, e não sabemos o que vem aí depois dos
militares, via Lavo, o trabalho intelectual parece uma saída. A escrita sobre Mundo parece
ser um alento na medida em que permite a expurgação de velhos fantasmas e a
transmissão do relato da vivência através da literatura. Consciente de seu papel de escritor
e propagador daquelas trajetórias, esse narrador contemporâneo percebe a cisão a que fora
exposto e faz da escrita uma forma de resolução de impasses. Assim como Nael, que
resolve o seu passado individual levado ao plano coletivo: pela escrita daquelas memórias
dá vida aos narradores orais Halim e Domingas e ao professor morto pelos militares Laval.
Pela via intelectual, a escrita, (re)elabora a memória e o trauma, e, concomitantemente,
presta uma espécie de homenagem àqueles intelectuais derrotados pela ditadura.

Referências

ADORNO, Theodor W. A posição do narrador no romance contemporâneo. In: BENJMAMIN,


Walter, HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W., HABERMAS, Jürgen. Textos
escolhidos. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

______. ADORNO, Theodor W. Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 1988.

BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura
e histórica da cultura. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

HATOUM, Milton. Cinzas do Norte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

_____. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras (Companhia de bolso), 2006

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da


Unicamp, 2007.

RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da Revolução, do CPC à era da


TV. Rio de Janeiro: Record, 2000.

SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política: 1964-69. In: O pai de família e outros estudos. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

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301 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014

______. Fim de século. In: Seqüências Brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Literatura de testemunho: os limites entre a construção e a
ficção. Revista de Mestrado em Letras UFSM (RS) janeiro/junho/1998. Disponível em
http://w3.ufsm.br/revistaletras/artigos_r16/1_marcio_silva.pdf Acesso em 18 de fevereiro de
2014.

______. Literatura e Trauma: um novo paradigma. In: O local da diferença: ensaios sobre
memória, arte, literatura e tradução. São Paulo: Editora 34, 2005.

______. Narrativas contra o silêncio: cinema e ditadura no Brasil. In: SELIGMANN-SILVA,


M. et al. Escritas da violência. Vol II. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012.

ISBN: 978-85-62707-55-1
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O chamado “caso Diaféria”: o desenrolar do processo contra o cronista acusado de


violar a Lei de Segurança Nacional

Kelly YSHIDA
Mestranda do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Santa
Catarina, bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
kellyshida@gmail.com

Sou um artesão de variedades, um falso cômico de entreato, mas levo uma


desvantagem em relação aos palhaços. Não tenho direito de usar a
máscara da pintura. Não posso esconder o meu riso, e não posso esconder
o meu choro.
Tenho de aparecer aqui – franqueado, aberto, inteiro.
Em cada linha, em cada letra, em cada sinal, eu me traio e eu me entrego e
eu me jogo, como se lança no ar o trapezista no seu salto triplo cotidiano.
1
Sem rede.

Lourenço Diaféria foi cronista da Folha de S. Paulo nos anos da ditadura militar
instaurada com o golpe de 1964. No dia primeiro de setembro de 1977 publicou uma crônica
intitulada Herói. Morto. Nós, em vias do processo de reabertura politica manejada pelo
presidente Ernesto Geisel. Neste texto, enquanto elogiava um sargento capaz de pular num
fosso de ariranhas para salvar uma criança, criticava a figura de herói de Duque de Caxias –
patrono do Exército e, consequentemente, símbolo caro aos militares - enquanto um objeto
estático e sem aparente função social. O texto que é o cerne da disputa é uma crônica
jornalística: ficcional, efêmera e de poucas linhas. Contudo, mesmo parecendo uma
narrativa de improviso, este gênero conta, por vezes, com críticas bem elaboradas de
quadros políticos e sociais. Assim, permite também a compreensão do cotidiano: pautado
por relações entre atores sociais, seus sentimentos, entendimentos do mundo e manejos
com as dificuldades e benefícios do dia-a-dia, em geral, urbano.

Tais características estabelecem diálogos com o leitor e tornam as palavras de


Diaféria ainda mais preocupantes na leitura daqueles que estavam no poder. Uma vez que,
ao se aproximar do público, tem a possibilidade de fazer com que suas reivindicações sejam
facilmente compreendidas e apreendidas a partir de um “sentimento de verdade”
(CANDIDO, 2005, p.55), estabelecido pela verossimilhança. As crônicas jornalísticas,
compostas pela perspectiva do “simples rés-do-chão” ou das “cousas miúdas”, direcionadas
para leitores do jornal, buscam proximidade com os acontecimentos, muitas vezes, banais, o
que não as torna pouco relevantes. Afinal, como afirmou o próprio Diaféria, “as coisas

1
DIAFÉRIA, Lourenço. Duas ou três palavras de saudade. Folha de São Paulo, 10 de maio de 1975.
Folha Ilustrada, p.29

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banais não significam coisas desimportantes. São apenas coisas que nunca chegam às
manchetes da imprensa e ao horário nobre da televisão”2.

Na fatídica crônica, publicada justamente na Semana da Pátria, estava em debate o


caso de um sargento que pulou no fosso de ariranhas. A situação descrita numa obra
ficcional não teria, necessariamente, um correspondente direto na realidade. Entretanto, em
31 de agosto do mesmo ano, na capa da Folha de S. Paulo esteve estampada a notícia da
morte do militar com as fotos dele e do menino ferido, junto com a chamada “Um drama no
zoo de Brasília”3. O menino de treze anos, Adilson Florêncio da Costa, havia sido puxado
por uma ariranha quando brincava perto do fosso dos animais e foi salvo pelo sargento
Silvio Delmar Hollembach que não estava a serviço, mas passeando com a esposa e com
os filhos. O militar faleceu tragicamente, de acordo com o texto do jornal: “o sargento sofreu
mais de 100 dentadas e sua morte decorreu de infecção dos ferimentos (levou ponto em
quase todo o corpo)” 4.

O acontecimento excepcional com pessoas comuns tornou-se o mote para a crítica


do cronista, que o considerou mais herói que o patrono do Exército, este representado pela
sua estátua que pouco corresponderia às necessidades do povo. O sargento Silvio estava,
no texto ficcional, posto como um verdadeiro herói. Constava na crônica que:

O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela


espada que o duque ergue sobre o ar aqui na Praça Princesa Isabel – onde
se reúnem os ciganos e as pombas ao entardecer – oxidou-se no coração
do povo. O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos
heróis de pedestal.
[...] O povo quer o herói sargento que seja como ele: povo. Um sargento
que dê as mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e desfardado,
5
sem divisas entre seus irmãos.

Foi a publicação desta crônica o estopim de um processo que mobilizou, além da


empresa de comunicação, militares que estavam no governo e outras instituições civis. A
Folha, compreendida como “grande imprensa”, teve a atenção, neste caso, não
primariamente de um determinado órgão de censura ou dos próprios censores, mas do
Ministro do Exército, General Sylvio Frota, pretendente sucessor do presidente Ernesto
Geisel. Por pedido de Frota foi aberto o inquérito para o enquadramento de Diaféria na Lei
de Segurança Nacional (LSN).

2
DIAFÉRIA, Lourenço. A longa busca da comodidade. 1988, p.12
3
Folha de S. Paulo, 31 de agosto de 1977, p.01
4
Folha de S. Paulo, 31 de agosto de 1977, p.01
5
DIAFÉRIA, Lourenço. Herói. Morto. Nós. Folha de S. Paulo, 1 de setembro de 1977, Folha
Ilustrada, p. 44

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Cabe atentar que no momento do golpe a Folha havia compactuado com o ato, o que
correspondia a determinados interesses e negociações, especialmente em relação à
manutenção do mercado. Por outro lado, a tentativa de posturas críticas em relação ao
regime era dificultada pela ação da censura política onde, em determinados momentos e
empresas, contava com censores dentro das próprias redações. De acordo com Maria
Aparecida Aquino (1999), a censura política, diferente da censura empresarial, é aquela
“exercida pelo Estado que, para proteger seus interesses, interfere na divulgação de
informações, determinando o que pode ou não ser veiculado.” (p.222). Contudo, na
produção de Mota e Capelato (1981, p.207) afirma-se que não havia censores na Folha , a
relação dos temas proibidos era recebida por telefone, vinda da Polícia Federal. Convivia-
se, assim, com ameaças.

Na autobiografia do general Frota (2006) há em anexo o documento enviado pelo


mesmo no dia 6 de setembro de 1977 ao Ministro da Justiça, Armando Falcão, sobre a
incômoda publicação. Nele, diz que o texto trata “com maior desrespeito e ironia o vulto
insigne do Duque de Caxias e conclamando a opinião pública a menosprezar os heróis
nacionais e as forças armadas”. Demonstra seus receios em relação ao texto publicado no
jornal que, mesmo sendo ficcional, é capaz de mobilizar um grande numero de leitores pela
circularidade e pelo seu formato, como dito anteriormente. Continua sua crítica afirmando
que “tais fatos, julgo, configuram uma solerte campanha de desmoralização do regime, cujos
atos, passados e presentes, são deformados ao talante dos seus disseminadores, a maioria
comprometidos com o processo, em curso, de descrédito da Revolução.”.

O texto é usado como alvo de um caso maior, a mobilização em torno da crítica


negativa ao regime já é corrente naqueles anos, bem como a preocupação do mesmo em
manter uma margem mínima de legitimidade. Além disso, na segunda metade da década de
1970, movimentos de origens diversas ganham visibilidade no quadro de resistência
nacional e formam um espaço público de debate e de crítica6. O Sargento Silvio torna-se
uma figura em disputa. Ainda no mesmo mês ganha promoção póstuma com um processo
defendido pelo próprio general Frota, uma tentativa de aproximá-lo dos militares no poder e
não de um grupo de dissidentes.

6
Alguns exemplos são: o Movimento Democrático Brasileiro, a Igreja Católica, o Movimento
Estudantil e as Greves no ABC. A Igreja Católica, principalmente através das Comunidades Eclesiais
de Base (CEB), ganhou destaque na luta pelos direitos humanos e o Movimento Estudantil se
rearticulou na retomada de suas mobilizações políticas realizando, em 1977, as primeiras passeatas
em oposição ao regime após 1968. Em 1978, 1979 e 1980, foi a vez de os trabalhadores ocuparem a
cena pública com a volta atuante do sindicalismo, nas greves do ABC paulista e, de certo modo, na
greve dos jornalistas de 1979.

ISBN: 978-85-62707-55-1
305 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014

No dia 15 de setembro, o jornalista foi detido em sua residência na rua Piauí, em São
Paulo, por volta das 17 horas, como noticiou o próprio jornal em que trabalhava7.
Referências sobre o ocorrido com Diaféria estão presentes nos acompanhamentos dos
relatórios do Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops/SP) mesmo
antes de sua prisão. O caso já havia repercutido também na imprensa e ganhava
notoriedade na medida em que, também devido ao momento político em que a ditadura
passava, a situação do jornalista tornava-se cada vez mais exposta e menos aceita.
Diminuindo, de certa forma, as manobras do governo que tinha cada vez menos respaldo
em um momento de aparente esgotamento das possibilidades de forjar o “otimismo”8.

Em 16 de setembro, o jornal publicava a coluna do cronista em branco, como forma


de protesto. Nela havia apenas uma nota sobre a prisão. Cabe lembrar que não foi apenas a
Folha de S. Paulo que reagiu à censura, por exemplo, o jornal O Estado de São Paulo
publicou trechos da obra de Camões, Os Lusíadas, no lugar de matérias censuradas a partir
de 1973; e receitas culinárias foram impressas, pelo mesmo motivo, no Jornal da Tarde. O
próprio processo foi acompanhado pela imprensa. O inquérito tramitou sob a atenção
pública, enquanto as mudanças de perspectiva sobre o regime ocorriam mesmo dentro do
jornal em questão.

Neste período, com os problemas econômicos, as dificuldades sociais e sem o


brilho de outrora, outra narrativa do processo político brasileiro encontrava ênfase. A
repercussão do caso visto nos próprios documentos do Deops/SP apresentam o texto
publicado na Folha como uma afronta ao governo, com o intuito de desmoralização do poder
instaurado. Demonstram também que foi visto como uma ameaça que deveria ser
acompanhada de perto, especialmente pelo fácil acesso de larga escala da sociedade civil.

No impresso mensal da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), o caso é relatado


ocupando uma página completa, com destaque. Diaféria é visto enquanto vítima, mas
também como um “bode expiatório” de algo mais amplo que sua própria atitude naquele
primeiro de setembro. Esta é uma leitura recorrente. Uma penalização exemplar de uma
ação que se inseria em um espectro maior de descontentamentos impressos e outras ações
civis. O caso de Diaféria é considerado, neste âmbito, uma demonstração da vigilância e
risco que a imprensa esteve submetida. E, além disso, uma amostra de um cenário mais
abrangente e que, por ser pego como demonstrativo para o órgão de repressão se tornou
emblemático durante a mudança editorial do jornal paulista.

7
Folha de S. Paulo, 16 setembro de 1977, p.1
8
Otimismo que o historiador Carlos Fico apresenta em seu livro: Reinventando o otimismo: ditadura,
propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997

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306 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014

O artigo no qual foi enquadrado, o 39 da Lei de Segurança Nacional9, consta que é


crime incitar: guerra ou subversão da ordem político-social, desobediência coletiva às leis,
incitar também paralisação do serviço público ou demais atividades essenciais e o ódio ou
discriminação racial. O caso da publicação de Herói.Morto.Nós estaria ligado à incitação de
animosidade entre Forças Armadas e civis, item III do citado artigo, cuja reclusão prevista é
de 10 a 20 anos. Entretanto, há na lei que “se os crimes previstos nos itens I a IV forem
praticados por meio de imprensa, rádio difusão ou televisão”, como de fato ocorreu, a
reclusão seria de 15 a 30 anos. A preocupação com a difusão destas informações seria algo
tão preocupante diante da Segurança Nacional que ainda consta no mesmo artigo da
legislação que se a responsabilidade fosse do “diretor ou responsável de jornal, periódico,
estação de rádio ou de televisão, além da pena, privativa da liberdade será imposta a multa
de 50 a 100 vêzes o valor do maior salário-mínimo vigente à época do delito.”. Ou seja,
havia uma vigilância expressiva diante destes meios devido à capacidade de difusão de
ideias e de atuação na formação da opinião pública.

Junto àquelas informações, o impresso da ABI trazia um quadro anteriormente


publicado no jornal Notícias Populares, de São Paulo, no dia 17 de setembro de 1977, com
as notas do advogado criminalistas Heleno Cláudio Fragoso que analisou aspectos jurídicos
do “caso Diaféria”. O jurista considerava a prisão “abusiva e ilegal” e o processo um “abuso
de poder”, cuja condenação seria impossível se feita de acordo com a legalidade. Além
disso, interpretando o artigo 39, o advogado afirma que a forma como o Duque de Caxias é
desrespeitosamente aludido não constitui incitação subversiva, pois compreende que
“incitação constitui forma dinâmica da manifestação de pensamento, através da qual se
procura conduzir os destinatários da mensagem a empreenderem uma ação”. Diz que não
houve incitação uma vez que não há como perceber no texto escrito nada capaz de
provocar animosidade entre militares e civis. E, por fim, relata não ser crime já que faltaria o
propósito elementar aos crimes políticos: o de atentar contra a segurança do Estado.

A mudança na postura da Folha de S. Paulo acaba por ter duas faces: enquanto
agradava um determinado público leitor que percebia, nas vias da redemocratização,
maiores chances e necessidades de questionamentos e uma emergência de
descontentamentos e reclames por novas estruturas políticas, encontrava um embate com
as Forças Armadas e seus órgãos de repressão, que outrora estiveram lado a lado. Dentro
da redação não apenas o cronista foi afetado, as mudanças foram significativas para além

9
Presente no Decreto-Lei nº 898, de 29 de Setembro de 1969.

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da página da Ilustrada em que publicava. Inclusive o responsável pela reformulação do


jornal10, Claudio Abramo, foi afastado.

No dossiê feito no Deops/SP, há recortes de diversas imprensas sobre o caso,


transcrições de programas de rádios e notificações sobre as referências, captadas pelo
governo, ao cronista em agremiações civis. Certas instituições como a Associação Brasileira
de Imprensa, centros acadêmicos, agrupamentos religiosos, demonstraram publicamente
apoio ao jornalista e, assim, estiveram sob a atenção do órgão de informações dos militares.
Seu advogado, Leonardo Frankenthal, torna-se figura recorrente na mediação do caso com
a imprensa. O advogado paulista era um renomado criminalista, conhecido como “o leão dos
tribunais”. Curiosamente, além da defesa de Lourenço Diaféria pela sua crítica aos militares,
Frankenthal também foi advogado de defesa do delegado Sérgio Fleury, conhecido por
perseguir opositores ao regime.

Para notar a abrangência do processo, podemos elencar a quantidade razoável de


referências ao jornalista nos encaminhamentos do Deops/SP, nos quais o nome de Diaféria
aparece desde antes do processo ocorrido, podendo, a partir disto, percebermos que já era
participante de um cenário ao qual o órgão do governo estava atento. Ou seja, não era um
personagem sem conhecimentos ou sem atuação no quadro político quando da publicação
de Herói.Morto.Nós.. Antes e depois do ocorrido teve participação, mesmo que
aparentemente tímida, no sindicato e em imprensas que não se enquadravam na “grande”
ou empresarial11. Seu aparecimento por estes caminhos demonstram que sua atuação ia
para além dos muros da Folha de S. Paulo.

Entre outros recortes, está em anexo ao relatório do Departamento do dia 16 de


setembro do mesmo ano, uma “Nota à imprensa” feita pelo Centro Acadêmico 22 de Agosto,
da Faculdade Paulista de Direito (PUC/SP):

O canto direito da última página de um conhecido jornal da capital, onde


muitos de nós estamos acostumados a ler diariamente as crônicas de
Lourenço Diaféria, estava hoje em branco.
Ao pé da página uma nota da redação explicava: “A crônica diária de
Lourenço Diaféria deixa de ser publicada em virtude de o cronista ter sido
detido às 17 hs de ontem, pela polícia federal...”
O jornalista se transformou, assim, em mais uma vítima de uma aberração
jurídica intitulada “Lei de Segurança Nacional”, um dos instrumentos de uso
e abuso do Regime Militar, destinado a perseguir os importunos, aqueles
que insistiam em defender um regime democrático para a nação.

10
Nesse momento, foram criadas, por exemplo, as páginas 2 e 3 como espaço para opiniões e
críticas, com artigos de posições políticas contrárias entre si, incluindo textos de oposicionistas, além
de colunas vindas de São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro, Porto Alegre e outras capitais e frases de
figuras públicas acerca da política.
11
Em sua ficha no Deops/SP, por exemplo, está que em 1975 estava como Repórter Convidado da
Revista Repórter Três, publicação mensal da Editora Três, sob o comando do Diretor de Redação
Paulo Patarra, conhecido criador da Revista Realidade.

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De uma elasticidade incrível, a LSN é suficientemente obscura a ponto de o


mais abalizado dos juristas não conseguir nos definir quais atos humanos
constituem crime contra a Segurança Nacional, ou mesmo o que vem a ser
Segurança Nacional.
Repudiamos a prisão arbitrária do jornalista e nos solidarizamos a todos
que, como Diaféria, foram vítimas daqueles que não contando com o apoio
popular, necessitam de Leis de Segurança Nacional, Atos Institucionais e
Complementares, Leis falcão, Decretos Tipo 477 e a força das armas, para
se manterem no poder.

Aparecia, neste momento, não apenas como alguém injustiçado, mas como um
caso demonstrativo do perigo da livre interpretação possível na LSN. Incluindo nisso a
crítica aos aparatos legais elaborados durante o período para subsidiar as ações de
repressão. Tornava-se uma figura a ser utilizada como bandeira em um momento de euforia.
A Pontifícia Universidade Católica (PUC), onde se locava o Centro Acadêmico, foi invadida
no dia 22 do mesmo mês pelos militares, chefiados pelo Secretário de Segurança Erasmo
Dias. No dia seguinte à invasão, a Folha trazia em sua capa “Presos 1.000 na PUC”12, onde
estudantes festejavam a reorganização da União Nacional dos Estudantes. A reitora Nadir
Kfouri se demonstrava contra a ação violenta e o vice-reitor, Edênio Vale, questionava que
em uma instituição onde “vários alunos estavam assistindo aula. Como é que vocês querem
que eu me sinta com a Polícia invadindo assim o campus? Como é que pode?”. Contudo, o
Secretário afirmava que a dissolução da manifestação que ocorria era legal pois “o ato
público está proibido” e todos seriam enquadrados na criticável LSN. Diaféria era uma parte
de um cenário maior de questionamentos e embates.

O processo contra o cronista prossegue. Em 18 de fevereiro de 1978, o caso ainda


está em trânsito. A Folha informa seus leitores que o juiz da Justiça Militar Federal – 2ª
Auditoria da 2ª C.J.M – de São Paulo, Nelson da Silva Machado Guimarães, rejeita a
denúncia de enquadramento no artigo 21913 do Código Penal Militar, que trata de crimes de
ofensa às Forças Armadas e cujo texto é muito semelhante ao do artigo 39 da Lei de
Segurança Nacional, descrito anteriormente. Tem, inclusive, o aumento semelhante da pena
para aqueles que praticarem a ofensa ou promoverem o descrédito por meio da imprensa,
rádio ou televisão.

No processo presente no acervo do Deops/SP14, listado em cinco itens, o relator


descreve o que o representante do Ministério Público, nos primeiros encaminhamentos
judiciários, havia acusado sobre a atitude de Lourenço Diaféria diante seu texto, posto que

12
Folha de S. Paulo, 23 de setembro de 1977, p.1
13
Art. 219. Propalar fatos, que sabe inverídicos, capazes de ofender a dignidade ou abalar o crédito
das fôrças armadas ou a confiança que estas merecem do público.
14
Processo de 17 de janeiro de 1978, da Justiça Militar Federal. Presente no acervo do Deops/SP,
número: 50Z-9-42152

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a) com maldosa ironia, empregado expressões chulas e grosseiras e


OFENDIDO A DIGNIDADE DAS FÔRÇAS ARMADAS, ATINGINDO EM
SUA HONRA O EXÉRCITO BRASILEIRO, que as integra, simbolizado no
texto mendaz pela figura histórica do seu patrono, o Duque de Caxias.
b) teria, igualmente, ofendido a cada um dos integrantes do Exército, de
modo a desacreditá-los perante a opinião pública (sic)
c) teria, também, propalado fatos inverídicos (sic)
d) teria, comparando a figura do Duque de Caxias com o Sargento Silvio
(que morreu, vítima do feras do Zoológico de Brasília, quando penetrou no
viveiro delas para salvar uma criança que lá caira), apresentado a figura do
Patrono do Exército “de forma insignificante e desprezível, como um homem
a cavalo reduzido a uma estátua de praça pública, como um herói de
pedestal no qual o povo urina.”
e) teria menosprezado o Exército, com as insinuações deixadas claras
no artigo, de que a instituição não é formada do homens de porte do
referido sargento, capazes de atos tão meritórios, identificados com o povo,
que, como o Sargento Silvio, “não fizeram revoluções de bar, na base de
uísque e da farolagem, não pertencem ao grupo do cambalacho, do qual
fazem parte os omissos, prevaricadores, os que falcatruam, os covardes, os
traficantes, os que corrompem, segundo o próprio acusado esclareceu à
fl.85 (sic)

Naquele momento, o representante do Ministério, considerando apenas a prova


documental suficiente para embasar seu veredicto e não necessária a interrogação de
testemunhas, diz que o inquérito policial tramitado anteriormente teria concluído a autoria
de crimes previstos nos artigos 16, 39 inciso III e 45 inciso V do Decreto Lei 898/69 e,
assim, concedendo a pena privativa de liberdade.

As expressões “chulas” eram realmente notórias no texto, como quando Diaféria


afirmava que o povo “urina nos heróis de pedestal”. Porém, ironizar o quadro militar
parece ter sido o mais afrontoso. Deslegitimá-los e desacreditá-los a partir do ato de
torná-los menores do que o sargento seria, assim, o cerne de todo a crítica. Entende, em
sua leitura, que o texto literário “menosprezava” o Exército e isso, num veículo de grande
circulação, seria um caminho para o descrédito público. A tentativa de incriminação do
cronista vai, exatamente, no sentido do pedido de enquadramento feito pelo General
Sylvio Frota a Armando Falcão.

No item seis no mesmo documento da Justiça Militar, afirma-se que o acusado


confirma a autoria da crônica e, sabendo da importância do Duque de Caxias,
reconhece-o “como militar, tribuno, estadista, pacificador, exemplo de bravura, e que
dedicou cerca de setenta anos de sua vida a honrar as Forças Armadas”. O cronista da
Folha de S. Paulo teria se defendido dizendo que não escolheu o primeiro de setembro
por ser a Semana do Exército, mas pelo corpo do Sargento Silvio estar sendo sepultado
naquela data, em Porto Alegre. Sobre o uso da palavra “herói”, defende-se: “‘o excesso

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de uso desgasta e deteriora as palavras, e essa palavra é usada para certos indivíduos
que nada têm de heróis, tal como heróis das pistas e herói do futebol’”. Respostas que
pareciam mais uma continuação da ironia que levou a crônica a desencadear todo o
processo.

Além disso, afirmava que sua preferencia pelo Sargento ao Duque era porque
aquele estava mais perto de sua própria emoção e escreveu impulsionado pelo
sentimento daquela tragédia. Diz também ter posto em seu texto sobre o cansaço do
povo em relação a cavalos e espadas, pois “o povo não mais se emociona ou se
sensibiliza tanto com estátuas” e sobre a frase que “o povo urina nos heróis de pedestal”.
Afirma ter pensado sobre a falta de respeito e sensibilização com monumentos e bustos,
até mesmo por falta de formação ou informação sobre os heróis representados. Quanto
a referencia à “revolução de bar”, usa de argumentos que parece não levar a sério,
dizendo que se referia aos que queriam melhorar os problemas no conforto das mesas
de bar e em conversas fiadas. E que, por fim, sua crônica “teve o objetivo de,
ressaltando o feito dêsse soldado, lançar uma ponte de compreensão, afetividade e
ternura entre civis e militares e todos os brasileiros”.

O juiz conclui que ao examinar a crônica e o processo é possível que o jornalista


tenha sido “muito infeliz” no propósito que diz ter almejado, ou seja, sem a intenção de
ofensa, mas, de acordo com a própria defesa, tendo apenas errado na forma como se
expressou, abrindo margem para diferentes interpretações. Embora seja nítido que, se
isto funcionou durante uma tentativa de absolvição, a trajetória política do cronista não
deixava dúvidas que de não suas palavras não tinham sido inocentemente escritas.
Compreendendo da forma dita pelo juiz, este não vê “como possa tipificar-se um crime,
militar ou comum, eis que, para que se afirme praticado um crime, é mister que se julgue
segundo critérios jurídicos, com base nas leis vigentes.”. E, nesta perspectiva, “o artigo
219 do Código Penal Militar, invocado pelo Ministério Público, não está, nem em tese,
tipificado em tudo o que foi apurado pelo inquérito policial e narrado na vestibular”. Além
disso, como visto, o crime de incitação presente na LSN também tinha argumentos para
ser contestado.

De acordo com o Juiz Nelson da Silva Machado Guimarães não houve delito, pois
teria que ocorrer propalação dos fatos, que o agente saiba que sua fala é inverídica e
que estas inverdades “sejam capazes – objetivamente – de ofender a dignidade ou
abalar o crédito ou a confiança que as forças armadas merecem do público”. Isto não se
concretiza para o mesmo, uma vez que

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o único fato propalado na crônica incriminada foi o que se refere à morte


heroica do Sargento Silvio, no viveiro das ariranhas, no Zoológico de
Brasília, e esse fato é verdadeiro (...) O mais, que consta na crônica, são
comentários, juízos subjetivos, opiniões pessoais do autor, imagens
literárias, expressões dúbias, presumidas insinuações, tudo, entretanto,
devendo, por força da lei, ser entendido segundo as posteriores explicações
do acusado, que as prestou livremente.

Assim, com base no artigo 22115 do Código Penal Militar, estabelece-se que no
caso previsto no artigo 219, se o acusado fosse chamado para dar explicações e estas
fossem satisfatórias, a questão tornar-se-ia encerrada e sem instauração de ação penal.
Por fim questiona para defender sua posição, “como, pois, pretender-se a instauração de
uma ação penal e a inflição de pena privativa de liberdade ao acusado, com base,
exclusivamente, nas pelas que constituem esse inquérito?”. Rejeita a denúncia
confirmando que o fato não constitui “evidentemente, crime de espécie alguma”.

Embora tenha sido absolvido em 1978 em primeira instância, o processo contra


Diaféria prosseguiu e o procurador José Garcia de Freitas Júnior recorreu ao Superior
Tribunal Militar, onde o cronista foi condenado a oito meses de prisão. O advogado de
defesa foi a diante ao Superior Tribunal Federal e, em 13 de fevereiro de 1980, a primeira
página da Folha estampou que o cronista havia sido absolvido. Na avaliação do jornal, “a
absolvição de Lourenço Diaféria encerra um espinhoso processo jurídico marcado pela
contradição de tribunais militares julgarem um civil, escritor e homem não ligado a qualquer
agremiação política, pela acusação de ofensa às Forças Armadas.”16.

O processo do cronista Lourenço Diaféria é ilustrativo para visualizarmos que as


palavras escritas reverberam no vivido e que a literatura exprime a realidade em que é
tecida e retorna a ela. Contudo, não é reflexo, na medida em que a compreensão que o
autor tem do momento que a elabora se constitui a partir de suas vivências próprias, das
relações que estabelece e como compreende o mundo. Questões também pautadas pelo
seu entorno, portanto referenciadas. Iniciativas do autor e processo histórico estão sempre,
necessariamente, imbricados. Um texto literário, mesmo contando com a efemeridade de
seu suporte, estando em um meio de fácil circulação, tem notório espraiamento na esfera
pública e, por isso, passa a ser observado com cuidados por aqueles que são criticados.
Com isso, encontramos o desencadeamento do chamado “caso Diaféria”, onde se percebe
um evento utilizado como demonstrativo de descontentamentos e causa de mudanças que
ocorrem em paralelo.

15
Art. 221. Se a ofensa é irrogada de forma imprecisa ou equívoca, quem se julga atingido pode pedir
explicações em juízo. Se o interpelado se recusa a dá-las ou, a critério do juiz, não as dá
satisfatórias, responde pela ofensa.
16
Folha de S. Paulo, 13 de fevereiro de 1980, p.6

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Referências

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sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP; Rio de
Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa 1992

CANDIDO, Antônio. “O personagem do romance” In:______. A personagem de ficção. São


Paulo. Perspectiva, 2005

CAPELATO, Maria Helena; MOTA, Carlos Guilherme. História da Folha de S. Paulo (1921-
1981). São Paulo: IMPRES, 1981

DIMAS, Antônio. “Ambiguidade da crônica: literatura ou jornalismo?”. Revista Littera. RJ, n.


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REIS, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de


1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

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Os Clubes 4-S de jovens rurais durante os anos iniciais da Ditadura Militar no Brasil
(1964-1970)

Leonardo Ribeiro GOMES


Mestre em Educação - FAE/UFMG
leorigomes@hotmail.com
Introdução

Os Clubes 4-S (Saber, Sentir, Saúde, Servir) constituíam-se de jovens do meio rural
que tinham idade entre 8 e 25 anos de idade e que eram filhos de mutuários da Associação
de Crédito e Assistência Rural – ACAR-MG1. O primeiro clube do Brasil foi fundado em 15
de julho de 1952 no município de Rio Pomba, zona da mata mineira. A partir da experiência
dos clubes de Minas Gerais o movimento quatroessista se espalhou por várias partes do
interior do país. Nos clubes os jovens desenvolviam projetos visando à melhoria da
produção agrícola, pecuária e das condições de vida das suas comunidades. Deviam ter em
torno de 10 a 20 sócios e apresentavam em sua organização básica uma diretoria composta
por presidente, vice-presidente, secretário e tesoureiro. Os meninos desenvolviam projetos
relacionados à introdução de técnicas agrícolas como uso de sementeiras, plantio de milho
híbrido e soja, horticultura, técnicas para a criação e desenvolvimento de aves, cabras, gado
leiteiro e suíno. Já as meninas recebiam instruções referentes à administração e
melhoramento do lar, alimentação, vestuário, higiene e saúde. A partir dos conhecimentos
transmitidos pelos extensionistas, os quatroessistas2 deveriam convencer os adultos que a
modernização das formas de produção, bem como de práticas culturais diversas era o
caminho a ser seguido para o pleno desenvolvimento das relações sociais e econômicas do
meio rural. A década de 1960 foi a da consolidação desse trabalho, bem como do seu
apogeu. Com o Golpe Civil-Militar de 1964, o trabalho com a juventude rural também sofreu
interferências, seja de desconfianças do que realmente se tratava os tais clubes, seja de
apoios explícitos ou não tanto do Governo quanto de políticos e empresários
comprometidos com o regime instaurado. Neste artigo procuramos demonstrar um pouco da
trajetória dos clubes durante os anos iniciais da Ditadura Militar no Brasil, principalmente na
relação entre os objetivos dos clubes para os jovens e os valores morais e cívicos
defendidos pelos promotores do regime político instaurado em 1964.

1
A ACAR-MG foi criada em 06 de dezembro de 1948 por meio de convênio celebrado entre o
Governo de Minas Gerais e American International Association – AIA, entidade ligada aos interesses
do empresário e político norte-americano Nelson Aldrich Rockefeller. A ACAR-MG foi a entidade
responsável por desenvolver o Serviço de Extensão Rural no estado. Buscava-se por meio de suas
ações garantir a melhoria das condições de produção e de vida do meio rural mineiro.
2
Expressão pela qual os integrantes dos clubes eram chamados e que adotaremos também neste
texto.

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1 – O Comitê Nacional de Clubes 4-S – CNC 4-S e a promoção do trabalho com a


juventude rural

Em 13 de novembro de 1964 foi fundado no Rio de Janeiro o CNC 4-S. O comitê


nacional reunia tanto organizações particulares quanto públicas que se prestavam a
colaborar com o desenvolvimento do trabalho com a juventude rural.3 Acreditamos que essa
entidade tenha sido um dos principais responsáveis pelo maior apelo observado em relação
aos Clubes 4-S nos anos de 1964 a 1970. Foi justamente nesse período que ocorreram os
principais eventos quatroessistas em âmbito nacional. Referimo-nos, por exemplo, as
Convenções Nacionais realizadas no Rio de Janeiro, mas também aos outros
acontecimentos que tentavam dar maior publicidade ao movimento de Clubes 4-S no país,
como encontros com autoridades para entrega de premiação ou assinaturas de convênios
para apoios financeiros aos diversos projetos quatroessistas. No horizonte do CNC 4-S
estavam a promoção e a organização de ocasiões que congregassem os jovens rurais do
Brasil a fim de divulgar seus trabalhos e assim promover os clubes perante a opinião pública
nacional. Não temos condições de afirmar que a fundação do CNC 4-S tenha alguma
relação imediata com o novo regime. Na verdade, desconfiamos que essa fundação foi uma
conseqüência da própria dinâmica dos 4-S no Brasil que demandava uma organização com
tais propósitos4. Porém, não temos dúvida que o CNC 4-S foi um fator fundamental para que
os 4-S no Brasil tivessem maior repercussão e apoio governamental a partir de então. Os
integrantes do CNC 4-S souberam utilizar um contexto favorável ideologicamente para a
difusão do movimento quatroessista no país. Na medida em que havia uma maior
divulgação dos clubes, mais próximos estes ficavam dos promotores do novo regime. Um
exemplo deste fato é a clara manifestação de apoio e expectativa demonstrada pelo General
Emílio Garrastazu Médici5 em relação ao homem do campo no desenvolvimento do meio
rural. Na ocasião de sua posse na presidência da República disse:

3
Seu primeiro presidente foi Antônio Secundino de São José, Diretor Presidente das Sementes
Agroceres S.A./ São Paulo e o vice-presidente foi Francisco de Castro Neves da Confederação
Nacional da Indústria/ Guanabara. Algumas das entidades que colaboravam com o CNC 4-S foram:
Agência norte-americana para o desenvolvimento Internacional USAID/ Brasil; AIA; Banco Agrícola
Mercantil S.A; Banco da Lavoura de Minas Gerais S.A; Banco do Nordeste do Brasil S.A; Companhia
Industrial e Comercial Brasileira de Produtos Alimentares – NESTLÉ; Esso Brasileira de Petróleo
S.A.; Federação das Indústrias do Estado de São Paulo; Ford Brasil S.A; Produtos Alimentícios
Fleischmann Royal Ltda; Seares Roebuck S.A. Comércio e Indústria; Singer do Brasil S.A.; Unior
Carbide do Brasil S.A. Indústria e Comércio; Viação Aérea Riograndense – Varig S.A. dentre outras.
4
Minas Gerais tinha um Comitê Estadual de Clubes 4-S desde 1959.
5
Em 25 de julho de 1972 o Presidente Médici assinou no Palácio do Planalto o Decreto nº70874 que
declarou como utilidade pública o CNC 4-S. Tal fato ocorreu diante de empresários e jovens rurais
que participaram do V Encontro Nacional de Clubes 4-S (EXTENSÃO EM MINAS GERAIS, jul/ Ago/
1972, p.4).

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315 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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Homem do campo, creio no homem e no campo. E creio em que o dever


desta hora é a integração do homem do interior ao processo de
desenvolvimento nacional. E, porque assim o creio, é que tudo darei de mim
para fazer a revolução no campo, revolução na agricultura, no
abastecimento, na alimentação. E sinto que isto não se faz somente dando
terra a quem não tem, e quer, e pode ter. Mas se faz, levando ao campo a
escola, ali plantando assistência médica e a previdência rural,
mecanização, o crédito e a semente, o fertilizante e o corretivo, a pesquisa
genética e a perspectiva de comercialização. E tenho a diversificação e o
aumento da produção agrícola, a ampliação das áreas cultivadas e a
elevação da renda rural como essenciais à expansão de nosso mercado
interno, sem o qual jamais chegaremos a ter uma poupança nossa, que nos
torne menos dependentes e acione, com o nosso esforço, aliada à ajuda
externa, um grande projeto nacional de desenvolvimento. (RELATÓRIO
CNC 4-S, 1971, p.4)

Naquele período, não obstante a violenta repressão aos movimentos contrários à


Ditadura, havia focos guerrilheiros no interior do país que buscavam capitanear a
população campesina para a luta contra os militares. Os discursos governamentais da
época silenciavam-se em relação às tensões e contradições sociais brasileiras e
apresentavam a ideia de “um grande esforço de todos os verdadeiros brasileiros” para o
desenvolvimento da nação. No mesmo relatório citado anteriormente constava um texto
intitulado Mensagens aos jovens quatroessistas, assinada pelo então Ministro da
Agricultura, Luiz Fernando Cirne Lima nos quais as ideias de Brasil Potência e o
desenvolvimento do meio rural com destaque ao papel da juventude em consonância
com o que dizia o presidente da República se fizeram presentes:

O Governo Federal já manifestou que considera altamente prioritário o


objetivo de valorização do homem brasileiro e que, dando prioridade ao
campo, está dando prioridade a essa valorização, cujo caminho
primeiro é a integração de todos ao esforço nacional.
É nesse sentido, o da integração de todos ao esforço em prol do
desenvolvimento do País, que vejo o trabalho realizado pela
juventude rural, através dos Clubes 4-S, face aos excelentes serviços
que prestam à comunidade rural, especialmente pela valorização do
trabalho no campo, este que é um dos objetivos maiores de minha
administração à frente do Ministério da Agricultura.
Meus votos são no sentido de que esta juventude possa, agora e
sempre, com o mesmo esforço que a caracteriza no momento,
prosseguir colaborando na formação dos futuros líderes das
comunidades rurais e dos futuros agricultores brasileiros, que
certamente irão viver em um Brasil mais forte e mais rico do que o
País que recebemos das gerações passadas e, se tenho a certeza
de que este estágio superior será alcançado, é exatamente porque a
Nação conta, hoje, com a participação de todos, no esforço em busca
de um Brasil maior. (RELATÓRIO CNC 4-S, 1971, p.6).

Outros momentos de aproximação entre o trabalho da juventude rural dos Clubes 4-


S via o CNC 4-S e o Governo Federal ganharam destaque nas publicações oficiais sobre
este tema. Na véspera do dia 15 de julho (Dia Nacional dos Clubes 4-S) de 1967 foi lançado
no Palácio do Planalto em Brasília o selo alusivo à efeméride. Na cerimônia, o Presidente da

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316 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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República, o general Arthur da Costa e Silva teceu elogios ao trabalho quatroessista ao


dizer:
é muito importante para este País e mais, talvez, do que a própria
alfabetização. (...) Tive ocasião de ver como há um ensino prático,
objetivo de que se beneficia principalmente o povo do interior, quer
promovendo a higienização das habitações, quer estabelecendo hábitos
de utilização de processos adiantados até a própria moradia do homem
do campo. (...) Eu dou uma especial atenção a esse movimento porque
ele se dirige justamente à juventude. Todos sabem que grande parte
da nossa população é de jovens o que impõe uma atenção especial
para que essa mocidade, amanhã, possa gozar de um país muito
melhor do que o que nos legaram os nossos antepassados. (O TREVO,
jul/ 1967, p.10).

Antes disso, o CNC 4-S organizou no Rio de Janeiro a Primeira Convenção Nacional
de Clubes 4-S do Brasil entre 12 e 15 de julho de 1965. Teve como coordenadora Terezinha
Mariz6, que exercia o cargo de secretária da Diretoria do CNC 4-S. Contou com a
cooperação da Associação Brasileira de Crédito e Assistência Rural - ABCAR, do Programa
Interamericano para a Juventude Rural - PIJR, além de outras entidades. Participaram cerca
de cento e cinquenta pessoas entre sócios de Clubes 4-S, líderes e extensionistas de onze
estados brasileiros, além de representantes de clubes de cinco países americanos: Uruguai
(Movimiento de La Juventud Agrária), Paraguai (Clubes 4-C), Chile (Clubes 4-C), Argentina
(Clubes 4-A) e Estados Unidos, pelos Voluntários da Paz, EFYE´s (International Farm Youth
Exchange) e sócios de Clubes 4-H.
A Convenção teve como objetivo comemorar o Dia Nacional de Clubes
4-S (Dia 15 de julho), oferecer aos participantes oportunidades
educacionais nos aspectos técnico, social e cívico, dar oportunidade de
confraternização entre os sócios e líderes de vários Estados e países.
Ofereceu ainda oportunidades de contato direto dos patrocinadores
com jovens rurais, além da divulgação da ideia e das atividades de
Clubes 4-S. (O TREVO, ago/1965, p.1-5).

O tema central da Convenção foi Saber mais para melhor Servir o Brasil. As sessões
solenes de abertura e encerramento ocorreram no salão do Ministério da Educação e
Cultura e contaram com a presença de várias autoridades, inclusive Ministros de Estado.
Houve hasteamento das bandeiras do Brasil e dos Clubes 4-S, horas recreativas, jantar de
confraternização entre os participantes e patrocinadores. Foi realizada uma excursão cívica
e recreativa pelos principais pontos turísticos do Rio de Janeiro. Encerrando a excursão, os
sócios dos 4-S, representados pela Presidente da Convenção, depositaram uma coroa de

6
Segundo a edição 94 de O Trevo, Terezinha Mariz foi fundamental para que a Comissão Filatélica
do Departamento dos Correios e Telégrafos aprovasse a emissão selo oficial comemorativo ao Dia
Nacional de Clubes 4-S em 1967. Ela era casada com o diplomata Vasco Mariz e ambos, segundo
essa edição iriam passar longa temporada nos Estados Unidos, pois seu marido iria representar o
Governo Brasileiro na Organização dos Estados Americanos – OEA. (O TREVO, abr/1967, p.1 e 2).

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flores no monumento aos brasileiros mortos durante a Segunda Guerra Mundial. Presentes
em outros momentos da nossa história, incluindo períodos democráticos e ditatoriais, esse
tipo de prática fazia parte de uma tradição que buscava valorizar e propagar o sentimento
cívico e nacionalista.7
Segundo Auckje Mary Werkema, uma das principais extensionistas no trabalho com
a juventude rural, a relação entre funcionários da ACAR-MG e da ABCAR, bem como das
outras filiadas do Sistema de Extensão Rural, foi marcada por tensões com os membros do
governo durante os períodos iniciais da Ditadura Militar no país. Sobre isso ela nos disse em
entrevista:
Quando planejamos a atividade cívica, porque toda Convenção deveria
ter uma atividade cívica, eu sugeri: “Nós vamos fazer uma visita ao
Túmulo do Soldado Desconhecido no Aterro do Flamengo. [riso] Vamos
colocar umas coroas lá no monumento. Vamos convidar as
autoridades, que muitas serão militares, mas esta vai ser a atividade
cívica da Convenção”. Foi uma saída, não foi? Porque ninguém naquela
convenção ia dar medalha para nenhuma daquelas autoridades militares.
Eu falei: “Por cima do meu cadáver, ninguém põe medalha no peito
deles não”. Estavam lá, tanto que a abertura foi lá no Ministério da
Educação e o Ministro da Educação naquela época era o Ney Braga, que
já foi militar e está muito ligado aos militares, então ele não vai receber
medalha não. Só vamos agradecer demais. Vai haver todo tipo de
agradecimento e tudo mais, mas o Trevo de Ouro dos 4-S não vai ficar
no peito desses militares. (WERKEMA, 2012).

Consideramos que há uma nítida ancoragem entre a Extensão Rural em Minas


Gerais com a doutrina norte-americana em prática a partir do final da década de 1940,
principalmente no tocante ao trabalho com os Clubes 4-S no Brasil e o modelo dos Estados
Unidos onde o trabalho com a juventude rural foi organizado em torno do 4-H (Head, Heart,
Hands, Health). Mas o que estava em jogo não era uma simples inspiração e sim um
modelo de desenvolvimento para o meio rural sintonizado com a visão de mundo capitalista
defendida e propagada pelos Estados Unidos no contexto do pós Segunda Guerra. Apesar
da entrevistada rebater veementemente as críticas de uma suposta cópia aos 4-H, ela
mesma afirmou que usou desse artifício para convencer os militares sobre a importância do
trabalho com a juventude rural. Sobre este aspecto ela nos disse:
Acabei de falar que eu não acreditava nesta ideia de “cópia”, mas usei
este argumento para não deixar que uma repressão militar viesse a

7
Um exemplo desse tipo de prática foi destacado por MOTTA (2002), ao tratar do combate ao
comunismo no Brasil, principalmente após a tentativa de levante em 1935. O autor salientou que em
1938 foi encomendado pelo governo e inaugurado em 1940 no cemitério São João Batista no Rio de
Janeiro um memorial aos mortos pelo lado oficial. “Era ao pé do monumento que as autoridades se
reuniam para discursar, prantear os mortos e fazer as regulares profissões de fé anticomunista. (...).
Entre os anos de 1940 e 1970, quando foi mais intenso o empenho anticomunista das autoridades e
dos grandes veículos de comunicação (em comparação com o período posterior), o monumento
certamente era bem conhecido do público instruído”. (MOTTA, 2002, p.116-117).

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prejudicar nosso trabalho com os jovens rurais. “Ah! É baseado num


programa dos EUA?” Falei: “É. Lá existe um programa de Extensão
Rural com assistência aos Clubes 4-H”. - Olha só que golpe para
defender o programa. - Essa foi a única vez na minha vida que eu falei
que nosso trabalho com a juventude rural era “cópia” do programa dos
EUA. Ele ficou todo “aceso”, e eu falei: “O senhor não conhece nosso
programa com os jovens rurais? Seria interessante o senhor, que é das
Forças Armadas conhecer e visitar este programa de grande importância
para o Brasil, pois o apoio de vocês seria uma grande ajuda”. “Claro, nós
vamos apoiar”. Então ele me convidou para dar aula para os oficiais do
exército em cursos intensivos no Forte do Leme, no Rio de Janeiro.
(WERKEMA, 2012).

Pareceu-nos que a entrevistada pretendia firmar uma posição defensiva em


relação à postura dos Clubes 4-S durante os anos iniciais da Ditadura. Obviamente que isso
é parte do exercício em selecionar aquilo que lhe interessa ou que lhe tem significado no
momento em que refaz um caminho para a retomada da memória. Após o fim da Ditadura,
as críticas às torturas, à censura e à falta de liberdade daqueles anos, foram mais incisivas.
Consideramos que muitos daqueles que viveram os chamados “anos de chumbo”, mesmo
quando favoráveis ao governo principalmente acerca do seu ideário desenvolvimentista e
“mantenedor da ordem”, foram tocados de alguma maneira por essa “revisão da história”.
Assim, hoje negam ou minimizam a influência sobre suas vidas pessoais e profissionais8. O
discurso extensionista sobre os Clubes 4-S se valeu de argumentos “pró-militares” para dar
continuidade ao trabalho que como já observamos, mantinha desde suas origens uma
conotação moral e cívica que o chamado Regime de 1964 veio reforçar.
Entre 9 e 15 de julho de 1966 aconteceram a Segunda Convenção Nacional de
Clubes 4-S e o Primeiro Congresso Interamericano de Clubes Juvenis Rurais
simultaneamente. Entre 13 a 24 de julho aconteceu a Conferência Interamericana de
Líderes de Juventude Rural. Os eventos foram realizados nas instalações do Colégio Batista
e no Hotel Glória, ambos na cidade do Rio de Janeiro. A sessão de abertura da Segunda
Convenção Nacional de Clubes 4-S aconteceu no auditório do Palácio da Cultura – MEC e
contou com a presença do Ministro da Agricultura, o general Ney Braga, representando o
Presidente da República, o marechal Castelo Branco. No texto de apresentação do jornal O
Ruralista do mês de junho daquele ano, o presidente do CNC 4-S, Francisco de Castro

8
Sobre esse argumento ver GOMES, 2013. Na dissertação entrevistamos outra extensionista -
Marisa Dulce Pereira - que teve estreita ligação com o trabalho com a juventude quatroessista. As
duas entrevistadas concordaram que houve “suspeitas” dos militares do que se tratava realmente os
Clubes 4-S. Entretanto, depois que foram “esclarecidos” não teria havido interferências que chegaram
a influenciar negativamente o trabalho com os jovens. Mas, se por um lado, os militares
supostamente não interferiram e prejudicaram o trabalho com os Clubes 4-S, conforme defenderam
as entrevistadas, por outro isso não excluiu a presença de membros do Governo em eventos,
cerimônias e outras estratégias para divulgação das atividades da juventude rural. Nossa pesquisa de
Mestrado demonstrou que os 4-S não foram uma “ilha isolada” em meio ao contexto político social
brasileiro do período estudado.

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Neves, destacava o trabalho associativo da juventude rural e afirmava que este visava “dar à
mocidade do campo um sentido novo de coletivismo” (O RURALISTA, 2ª quinzena
jun/1966, p.2). Tendo em vista o contexto político brasileiro podemos dizer que o
“coletivismo” presente na fala do presidente do CNC ia ao encontro da ideia de uma
juventude unida em prol do desenvolvimento da Pátria. O “coletivismo” não teria nenhuma
ligação a movimentos de transformação da estrutura agrária e sim a um sentimento de união
dos jovens rurais formados em uma mentalidade pacífica, ordeira e obediente para o “bem
do País9”.
Os anos de 1967 e 1968 foram, em termos de movimentos juvenis espalhados pelo
mundo, bastante frutíferos, devido às questões estudantis sobre o acesso e democratização
do ensino e aos relacionados às transformações culturais daquele período. Um novo jeito de
ser e agir dos jovens frente às sociedades passava a incomodar cada vez mais o status quo
e nesse cenário essa faixa etária foi considerada potencialmente revolucionária. Cinema,
teatro, moda e principalmente a música apresentavam um outro modelo de jovem do que
até então era observado, principalmente a partir da emergência de uma chamada “cultura
jovem” consubstanciada em produtos destinados a essa faixa etária. HOBSBAWM (1998)
escreveu, inclusive, que esta
tornou-se a matriz da revolução cultural no sentido mais amplo de uma
revolução nos modos e costumes, nos meios de gozar o lazer e nas
artes comerciais, que formavam cada vez mais a atmosfera
respirada por homens e mulheres urbanos. Duas de suas características
são portanto relevantes. Foi ao mesmo tempo informal e antinômica,
sobretudo em questões de conduta pessoal. Todo mundo tinha de “estar
na sua”, com o mínimo de restrição externa, embora na prática a pressão
dos pares e a moda impusessem tanta uniformidade quanto antes,
pelo menos dentro dos grupos de pares e subculturas. (HOBSBAWM,
1998, p.323).

Tanto HOBSBAWM (1998) quanto BRANDÃO e DUARTE (2004) sinalizaram para a


ideia de que os jovens, principalmente urbanos e escolarizados, a partir da emergência de
uma “cultura jovem” materializada principalmente na década de 1960, teriam cada vez mais
se manifestado abertamente com uma visão de mundo diferente dos adultos. Foi dessa
época, sobretudo, que os jovens, no geral, foram caracterizados como contestadores dos
costumes e da tradição. Também passaram a ser vistos, quase que de forma natural, como
elementos favoráveis às inovações nas áreas sexual, comportamental e cultural. Nesse
sentido o “cuidar” dos jovens como garantia do futuro da Pátria e para que não fossem
envolvidos por questões consideradas potencialmente explosivas tornaram-se marcas dos
discursos tomados por setores conservadores na década de 1960. Um exemplo de um tipo

9
A edição 87 de O Trevo (set/1966) também deu ampla cobertura aos eventos realizados no Rio de
Janeiro que congregou jovens e técnicos rurais de vinte países latino-americanos.

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de jovem preconizado por esses setores pode ser aferido a partir da tese de doutorado de
BRAGHINI (2010). Nele a autora demonstrou como os artigos presentes na Revista da
Editora do Brasil S.A. apresentavam um modelo a ser seguido, no qual o jovem estudioso,
trabalhador, ordeiro, seriam responsáveis pelo engrandecimento do país, pois
comprometidos com o futuro da pátria. Naquele período ocorreram movimentos
relacionados aos jovens e, claro, cada um com suas características próprias, incomodavam
os mais velhos, principalmente aqueles que se intitulavam detentores dos “bons costumes”.
Poderíamos incluir, movimentos de conotação artística, como também outros de cunho
político. No caso latino-americano o melhor exemplo foi a Revolução Cubana de 1959.
Tendo como suas principais lideranças, jovens militantes em sua maioria na casa dos 30
anos de idade, serviu de exemplo para movimentos políticos que questionavam a ordem
estabelecida nos diversos cantos do continente. A experiência de Sierra Maestra10 teria
influenciado muitos jovens brasileiros que passaram após 1964 a lutar contra a ditadura
instaurada pelos militares. Para RIDENTI (2000) no imaginário contestador nos anos
sessenta
havia exemplos vivos de povos subdesenvolvidos que se rebelavam
contras as potências mundiais, construindo pela ação as circunstâncias
históricas das quais deveria brotar o homem novo. Especialmente a
vitória da revolução cubana, no quintal dos Estados Unidos, era uma
esperança para os revolucionários na América Latina, inclusive no
Brasil. (RIDENTI, 2000, p.34).

Entre 1966 e 1968 ocorreram manifestações estudantis contra a ditadura militar


brasileira, apesar da repressão presente nas ruas contra qualquer tipo de contestação à
ordem política. No campo cultural e político a década de 1960 representou um período de
grande efervescência. No Brasil, desde 1965, ocorreu uma série de festivais da canção
organizados por emissoras de televisão e que tiveram grande apelo popular. Com os
festivais, novos compositores, músicas, estilos de roupa e comportamento, foram
apresentados à população e influenciaram quase que imediatamente a vida dos jovens
daquele período11. O ano de 1968 talvez tenha sido o momento mais significativo daquela
década, seja em termos políticos, seja em termos estéticos e comportamentais12 . Além das
manifestações estudantis ocorridas no Brasil, o ano de 1968 foi profícuo nesse sentido em
vários países como Estados Unidos, Inglaterra, Polônia, França e outros. A partir da
10
O grupo comandado por Fidel e Raul Castro, Ernesto Che Guevara, Camilo Cienfuegos, dentre
outros conseguiram tomar a cidade de Havana e depor a Ditadura cubana de Fulgêncio Batista no
início de 1959. No ano seguinte Cuba se aproximou da União Soviética e iniciou a tentativa de
implantação da primeira experiência socialista no continente americano. Sobre a mitificação em torno
da figura de Guevara ver CASTAÑEDA (2005).
11
Sobre os festivais da canção da década de 1960 ver: NAPOLITANO (2004). Especificamente sobre
as canções que se destacaram naquele período ver HOMEM DE MELLO e SEVERIANO (2006).
12
Acerca das interpretações e memórias sobre o ano de 1968 ver AARÃO REIS F. e MORAES
(1998) e VENTURA, 2008 (a) e (b).

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Universidade de Nanterre, nos arredores de Paris, os estudantes franceses questionavam o


poder instituído e as formas de ensino consideradas arcaicas e tradicionais. O slogan: “É
proibido proibir” sintetizava o sentimento do que ficou conhecido como o maio francês.
Barricadas foram construídas e confrontos com a polícia ocorreram durante esses eventos
que acabaram por se integrar a outros movimentos contestatórios e reivindicatórios como
dos trabalhadores franceses por aumento salarial e melhores condições de trabalho. Existe
uma vasta publicação sobre a década de 1960 em textos jornalísticos, de memórias e
estudos acadêmicos sobre esse período13 . Entretanto, nas fontes que consultamos sobre os
Clubes 4-S e Extensão Rural, observamos um completo silêncio sobre os movimentos
estudantis, as greves operárias, as Ligas Camponesas, o Golpe Militar de 1964, o Ato
Institucional número 5, o movimento hippie e a contracultura, a contestação dos jovens
norte-americanos à Guerra do Vietnã, dentre outros temas daquela década. A razão para
isso mereceria ainda maior aprofundamento. Porém, deduzimos que esteja em consonância
com a proposta inicial da Extensão Rural de valorização da ciência, da técnica em
detrimento de questões políticas, como foi anunciado desde o fim da década de 1940,
quando da fundação da ACAR-MG. Obviamente que essa escolha é um ato político por si
só. Ao silenciarem sobre determinadas questões, os promotores da Extensão Rural se
expressavam por meio das publicações oficiais e nelas apresentavam a visão de mundo que
defendiam, ou seja, uma sociedade coesa, harmônica e organizada a partir de valores
considerados científicos e neutros. Além disso, os movimentos culturais da década de 1960
seriam, para os princípios extensionistas, considerados “perigosos”, pois desvirtuariam os
jovens do “bom caminho” proposto pela filosofia quatroessista. Mas é provável também que
no contexto estudado, publicações relacionadas diretamente à Extensão Rural e ao trabalho
com os jovens rurais como os jornais, O Ruralista e O Trevo tenham de alguma maneira
sofrido algum tipo de impacto em suas rotinas. O jornal O Ruralista, por exemplo, teve a sua
edição de número 6 publicada com a data de primeiro a 15 de janeiro de 1964. Já a edição
seguinte só foi publicada em 15 de julho de 1964, com um intervalo, portanto, de cinco
meses sem nenhuma edição, fato que não foi observado em outros períodos da nossa
pesquisa. Por sua vez, referências à Aliança para o Progresso e ao órgão responsável pela
sua operacionalização na América Latina, a USAID, tiveram destaques nas páginas de O
Ruralista e de O Trevo. A edição de O Ruralista de número 68 apresentou em duas páginas
matéria intitulada “Aliança para o Progresso: seis anos de trabalho profícuo pelo
desenvolvimento do continente”. Na matéria, além de constar um quadro e mapa com

13
Algumas dessas publicações são os trabalhos de STARLING (1986), FURTADO (1997 e 2004),
TOLEDO (1997), GASPARI (2002, 2003 e 2004), FERREIRA (2003), VENTURA (2008). São estudos
que abordaram o contexto do golpe de 1964 no Brasil do ponto de vista político ou que remeteram às
discussões artísticas e culturais da década de 1960 com destaque ao ano de 1968.

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setores e público-alvo da “colaboração” da USAID para o Brasil, afirmava que “a Aliança


vem trabalhando para conquistar as fronteiras de vinte e uma nações. Tenta transformar a
maneira de pensar e, às vezes, as próprias tradições de 250 milhões de pessoas, a maioria
jovens ávidos de ideias” (O RURALISTA, 2ª quinzena ago/1967, p.4-5). Mas se nessa
edição não houve referência direta aos jovens rurais dos Clubes 4-S, a de número 73
destacava que o CNC 4-S recebeu um auxílio da USAID (Aliança para o Progresso) de cem
mil Cruzeiros Novos para a criação de Fundos Rotativos Estaduais para os Programas de
14
Crédito Rural Juvenil. (O RURALISTA, 1ª quinzena nov/1967, p.8) . Não encontramos
nenhuma referência às críticas aos acordos que o governo brasileiro tinha com a USAID,
inclusive anterior ao Golpe Militar de 1964. Pelo contrário, as fontes consultadas (O Trevo e
O Ruralista) apontaram para uma adesão completa ao projeto da Aliança para o Progresso.
O mesmo fato foi comprovado em se tratando da assinatura dos acordos MEC-USAID para
a modernização do Ensino Médio brasileiro. As manifestações estudantis contrárias aos
acordos não foram sequer mencionadas nas linhas desses dois periódicos15.
Por fim consideramos que muitas das ações extensionistas já desenvolvidas antes
de 1964 ganharam impulso durante os anos iniciais da Ditadura Militar no Brasil. Para isso
contribuiu a similitude de objetivos em relação aos jovens, ou seja, a formação de cidadãos
comprometidos com o futuro da Pátria. A fundação do CNC 4-S e seus mecanismos
de divulgação dos clubes como elaboração de convênios com empresas que financiavam
viagens, cursos e forneciam bolsas de estudos, além de patrocinarem concursos de
produtividade, bem como a aproximação com órgãos e burocratas estatais, também teriam
sido fundamentais para a maior publicidades que tiveram os Clubes 4-S nesse período. A
presença de militares e de ministros em eventos quatroessistas, bem como de outros
políticos, inclusive dos presidentes Costa e Silva e Médici, que receberam no Palácio do
Planalto em Brasília comitivas de jovens, reforçaram os elementos de uma educação moral
e cívica para os meninos e meninas dos Clubes 4-S de Minas Gerais e do Brasil como
elementos fundamentais para a construção do futuro da Pátria, a partir da motivação
quatroessista: “progredir sempre”.

Referências

1) Fontes

COMITÊ NACIONAL DE CLUBES 4-S. Relatório dos Clubes 4-S à Nação – 1970. Rio de
Janeiro, 1971.

14
Essa mesma informação consta na edição 88 de O Trevo publicado em outubro de 1966.
15
Para aprofundamento em relação a influência da USAID na educação brasileira consultar
ARAPIRACA (1982).

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EXTENSÃO EM MINAS GERAIS. Belo Horizonte. Associação de Crédito e Assistência


Rural – ACAR, Ano I, nº3, julho/agosto/1972.

O TREVO. Belo Horizonte, Ano IX, nº74, agosto de 1965. O TREVO. Belo Horizonte, Ano X,
nº 88, outubro de 1966. O TREVO. Belo Horizonte, Ano XI, nº94, abril de 1967.

O TREVO. Belo Horizonte, Ano XI, nº 97, julho de 1967.

O RURALISTA. Juiz de Fora, Ano I, nº6, 15 de janeiro de 1964.

O RURALISTA. Juiz de Fora, Ano I, nº7, 15 de julho de 1964.

O RURALISTA. Juiz de Fora, Ano III, nº40, 2ª quinzena de junho de 1966.

O RURALISTA. Juiz de Fora, Ano V, nº68, 2ª quinzena de agosto de 1967.

O RURALISTA. Juiz de Fora, Ano V, nº73, 1ª quinzena de novembro de 1967.

WERKEMA, Auckje Mary. Entrevista concedida a Leonardo Ribeiro Gomes. Belo Horizonte,
17 de outubro de 2012.

2) Bibliografia

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Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.

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325 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014

Cerceando liberdades: a AESI universitária e a ingerência do regime militar na UFMG

Luan Aiuá Vasconcelos FERNANDES


Mestrando em História e Culturas Políticas pela UFMG.
aiuavasconcelos@gmail.com

Introdução

O presente trabalho é parte da pesquisa de mestrado do autor e busca analisar as


possibilidades de pesquisa sobre a repressão da ditadura militar brasileira nas universidades
a partir da documentação das extintas Assessorias Especiais de Segurança e Informações
(AESI) criadas pelo governo Médici em 1971. Especificamente o enfoque se debruça sobre
a AESI da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e na repressão sofrida contra os
professores da referida instituição. A documentação da AESI da UFMG é uma das mais bem
preservadas do país, juntamente com a da Universidade de Brasília (UNB) (MOTTA: 2008,
p. 32), o que facilitou a pesquisa. Apesar do objeto principal do trabalho ser a repressão do
regime militar brasileiro, em todos os seus ambitos, contra os professores, a análise dos
documentos da AESI da UFMG permitiu se ter uma consciência geral das possibilidades de
pesquisa do arquivo, o que também irá ser tratado neste trabalho.

Ditadura e universidades: as AESI como agências de controle

Ao assumirem o poder em 1964, contando com significativo apoio civil, os militares


passaram a estruturar o serviço de inteligência, criando, no mesmo ano, o Serviço Nacional
de Informações (SNI). As AESI foram criadas como agências das Divisões de Segurança e
Informações (DSI), órgãos estabelecidos em 1967 pelo regime militar e ligados aos
ministérios civis. Elas faziam parte de um plano de fortalecimento e reestruturação do
controle de informações do governo e também eram uma tentativa de combater os
considerados inimigos do regime militar. Elas deveriam funcionar em instituições públicas
que fossem subordinadas aos ministérios.

As AESI universitárias eram ligadas ao DSI do Ministério de Educação e Cultura que,


por sua vez, respondiam ao SNI, formando uma rede de inteligência governamental pautada
pela doutrina da Segurança Nacional. Oficialmente, elas foram criadas em 1971, após a
aprovação do Plano Setorial de Informações. Um dos principais focos de preocupação do
regime ditatorial brasileiro eram as universidades. Elas eram vistas como centros de
formação de “subversivos”, palavra que caracterizava grande parte dos que eram contra o
governo militar, principalmente os que se declaravam ser de esquerda. A principal
preocupação do regime militar no âmbito universitário era com o movimento estudantil, que
atuava com greves, protestos e manifestações que reuniam um grande número de pessoas.

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Havia também uma ampla inspiração no exemplo da Revolução Cubana (SADER: 1991), o
que acalorava ainda mais os conflitos com o governo. No entanto, alguns professores
também eram vistos como perigosas influências para os estudantes, incluindo aqueles que
não eram ligados à esquerda, mas que eram contra a ditadura e a censura. Desta maneira,
“no seu eixo conservador, a política do regime militar para as Universidades implicou o
combate e a censura às idéias de esquerda e tudo o mais considerado perigoso e
desviante.” (MOTTA: 2008, p. 32) Isso, obviamente, incluía os professores, ainda que de
uma maneira menos intensa se comparada ao movimento estudantil.

Existiram 35 AESI universitárias, que foram sendo criadas e implementadas ao longo


dos anos 70. A lei previa a criação das AESI apenas em órgãos federais. Entretanto,
algumas universidades estaduais, como a Universidade de São Paulo, a Universidade
Estadual de Londrina e a Universidade Estadual de Maringá criaram de maneira espontânea
AESIs, com o objetivo de auxiliar o regime e aumentar a vigilância no campus, o que revela
certa simpatia com o tipo de governo vigente por parte dos reitores. Na teoria, as AESI
também deveriam ser subordinadas às reitorias e encarregadas de aconselhar os reitores
sobre assuntos de Segurança Nacional no meio acadêmico. No entanto, elas serviram para
outros propósitos, como: fazer contrapropaganda e contrainformação, buscando atacar e
desarticular os grupos de esquerda nos campi; fazer controle, triagem e monitoramento de
pessoal; controlar a produção científica; censurar jornais e revistas estudantis, livros e
eventos; combater as ideias de esquerda e o comunismo nas universidades, que eram
vistas como um dos principais focos de propagação das ideias esquerdistas.1 Toda essa
atividade gerou uma documentação rica para análise e que possibilita várias possibilidades
de pesquisa.

As possibilidades de pesquisa das AESI universitárias

A partir da análise da documentação da AESI/UFMG foi possível estabelecer


algumas possibilidades de pesquisa que este tipo de documentação fornece:

- É possível analisar nos arquivos da AESI o discurso, ideias e a cultura política


compartilhada pelo movimento estudantil, as diferentes correntes existentes no interior das
organizações de estudantes, as perspectivas do movimento e suas principais
bandeiras/reivindicações.

1
Para uma análise completa sobre a relação entre o regime militar e as universidades públicas em
todo país Cf. MOTTA: 2014.

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- Através de imagens, charges e desenhos encontradas nos panfletos recolhidos


pelos órgãos de informação e reunidos na AESI é possível fazer um estudo da identidade
visual e da utilização de recursos gráficos na disseminação de valores e ideias estudantis,
interpretar seus significados e compreender os subterfúgios utilizados pelo movimento
estudantil ou mesmo o posicionamento direto deles nas questões políticos-culturais
(obviamente sempre com o apoio de outras fontes).

- Outra possibilidade é perceber e estudar a atuação e esquemas de repressão do


aparato repressivo. Quais eram as desconfianças do regime, como se dava parte das
investigações no meio do universitário, o que era demandado pelos órgãos de segurança,
quais os valores propagados pelo regime que clarificavam uma cultura política autoritária,
conservadora ou modernizadora.

- Em contrapartida, podemos estudar como se dava a resposta da comunidade


acadêmica e de seus responsáveis a essa repressão, principalmente docentes. Haveria uma
resistência maior, apoio ou consenso? Pergunta, enfim, que deve ser analisada em um
contexto complexo, em que os valores de determinados grupos influenciavam nas diretrizes
de cada faculdade e dos próprios estudantes. É possível perceber redes de sociabilidade no
mundo acadêmico, que iam desde denúncias até proteções, dependendo da cultura política
compartilhada pelos docentes.

- De uma maneira mais reduzida, até o que era reproduzido na mídia em relação às
universidades faz parte do acervo de algumas AESI, o que proporciona uma pequena visão
do posicionamento da imprensa (sob censura em vários casos) sobre o trâmites na
universidade.

A AESI UFMG

Como já explicitado, a documentação da AESI da UFMG é uma das mais bem


preservadas no que se refere às universidades. Os documentos dessa agência se
encontram no Acervo de Obras Raras e Especiais no quarto andar da Biblioteca Central da
UFMG. O acervo da UFMG se torna bastante relevante se tivermos em conta que esta
universidade sempre foi uma das mais dinâmicas e atuantes no contexto universitário
brasileiro. Ela era bastante visada pelo aparato repressivo por possuir um significativo
número de intelectuais e estudantes mineiros que atuavam em organizações de esquerda,
como a Ação Popular, conhecida como AP, e o Colina. Logo após o Golpe já ocorreram
intervenções e perseguições no meio acadêmico. As situações eram várias: iam desde uma

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lista de comunistas que deveriam ser procurados e presos, feita por integrantes de grupos
conservadores2 - às vezes da própria universidade – passando pela proibição de certos
paraninfos, como ocorreu no caso do impedimento de Carlos Heitor Cony, chamado para
ser paraninfo de uma turma de formandos em jornalismo, justamente por ser considerado
inimigo do regime, até casos mais sérios e de intervenções mais diretas como as que
ocorreram em junho de 1964 na FAFI3 e em julho do mesmo ano na reitoria. Em relação a
FAFI a intervenção durou 5 dias, enquanto a da reitoria, que afastou o reitor Aluísio Pimenta,
durou 48 horas. No mesmo ano vários professores da UMG4 foram presos, como Simon
Schwartzman, Marcos Rubinger, Sylvio de Vasconcellos, Henrique de Lima Vaz, Celson
Diniz, entre outros. Inquéritos foram abertos e comissões de sindicâncias foram requisitadas
aos reitores das universidades em todo o Brasil. Havia muitas vezes um despreparo das
forças repressivas em identificar quem eram as verdadeiras "ameaças", como mostra o
próprio professor e ex-reitor cassado, Aluísio Pimenta:

Comecei nesse período a receber, dos serviços de informação então existentes,


uma avalanche de fichas em que estavam anotadas as ações, atitudes e
iniciativas de professores, alunos e funcionários da Universidade, consideradas
subversivas. Desejavam que eu, apoiado nelas, abrisse inquéritos ou realizasse
sindicâncias. Nunca vi tanta desinformação junta, tanta inutilidade catalogada.
Acusavam, por exemplo, a um professor de Física de ter comparecido, em uma
determinada ocasião, ao Aeroporto da Pampulha para receber uma comissão da
Euraton. Ora, a Euraton era considerada por muitos pesquisadores e professores
como uma organização comprometida com o “capitalismo internacional” e outras
avaliações do mesmo teor. Outros eram acusados de terem participado de um
churrasco oferecido a Jorge Amado etc. (PIMENTA: 1985, p. 36)

Apesar da AESI na UFMG somente ter surgido em 1971, o acervo reunido pela
agência contém documentação desde 1964. Muitas das situações iniciais de repressão
citadas anteriormente aparecem nos documentos do acervo. Como já apresentado, a partir
da análise feita na AESI/UFMG foi possível perceber algumas possibilidades de pesquisa
passíveis de serem realizadas em todas as AESI universitárias. Concentrando-se na
AESI/UFMG foi feito um rápido levantamento dos assuntos que poderiam ser abordados e
pesquisados partindo das possibilidades já mencionadas. No entanto, o foco maior estará no
objeto de pesquisa realizada pelo autor, que são os professores da referida universidade.

Sobre o movimento estudantil é possível encontrar uma variedade muito grande de


boletins informativos e de cunho mais ideológico do DCE e de vários D.As da UFMG, além
do documentos da própria UNE. O discurso é majoritariamente de esquerda, com jargões
marxistas, e critica o regime militar e o imperialismo dos Estados Unidos. Inúmeros pontos

2
Para saber mais sobre os grupos de esquerda e de direita no contexto do Golpe de 64 em Minas
Gerais cf.: STARLING: 1986.
3
Antiga Faculdade de Filosofia, hoje atual FAFICH, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
4
Só foi acrescentado a palavra “Federal” no nome da Universidade em 1965.

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são discutidos e criticados, como a Guerra do Vietnã e os massacres cometidos pelos


estadunidenses no país asiático; o imperialismo na América Latina e no mundo; a admiração
de figuras como Fidel Castro e Che Guevara, as políticas educacionais feitas com os EUA,
principalmente os acordos ME/USAID; a lei Suplicy de controle dos movimentos estudantil,
entre outros.

Figura 1 - Jornal Estudantil do DCE "Manifesto"

As imagens e fotografias revelam a visão dos estudantes a respeito de um estado


autoritário e que muitas vezes são acompanhados de textos irônicos. Assim como as
charges, que criticam abertamente os EUA, a violência policial, a igreja católica, entre
outros. Na UFMG se destaca a figura do cartunista Henfil, que estudou na instituição e
colaborou com os jornais do DCE e do D.A da FACE.

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Figura 2 - Charge do Cartunista Henfil em Jornal Estudantil. Arquivo AESI, Caixa 68.

Figura 3 - Charge do cartunista Henfil em jornal estudantil. Arquivo AESI, Caixa 68.

Muitos documentos da AESI/UFMG apresentam o caráter repressivo da ditadura. O


ministro Jarbas Passarinho, que tentava fazer com que a censura não parecesse evidente,
sondou os reitores sobre a restrição da escolha de paraninfos, argumentando sobre a
delicada conjuntura brasileira. Não obteve muito apoio e os estudantes continuaram a “bater
de frente” com o regime. Um caso conhecido é o veto ao jornalista Carlos Heitor Cony como

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paraninfo da turma de jornalismo em outubro de 1964. Nem sempre a censura e coerção do


regime gerava resultados. Em 1971, durante a reitoria de Marcelo de Vasconcelos Coelho,
os estudantes conseguiram como paraninfos dois punidos pelo AI-5: Aluísio Pimenta e
Amílcar Martins. Os dois, no entanto, não fizeram discurso político. Em 1974 também existiu
a proibição, por meio de outro reitor da UFMG, Eduardo Osório Cisalpino, do convite dos
formandos de Economia, pois o mesmo fazia alusão aos 25 anos da edição de Declaração
dos Direitos Humanos. Nesse ano, dois oposicionistas ao governo (Francisco de Oliveira e
bispo D. Waldyr Calheiros) foram paraninfos da turma de Economia, o que causou
preocupação ao reitor. Ainda em 74, o DCE fez evento com a presença do músico Sergio
Ricardo e de Lysaneas Maciel (Deputado do MDB). O reitor Eduardo Cisalpino também
tentou impedir a realização de evento que discutiria os contratos de risco da Petrobrás e
contaria com a presença de Moniz Bandeira, entre outros, que preferiram não comparecer.
O DCE manteve a atividade, apesar da pressão da reitoria, mas o evento foi esvaziado
devido a uma ameaça de bomba. Já em 1976, os estudantes da FAFICH desafiaram as
ordens do diretor da unidade, realizando um encontro de estudantes de Ciências Humanas
e criticando o diretor como cúmplice da ditadura. Em 1973, Maria Augusto Cesarina,
professora da Biblioteconomia, teve sua saída negada do país quando estava prestes a
fazer seu mestrado nos EUA. Já o professor João Batista Mares Guia, em 1976, teve sua
contratação impedida, apesar de já estar dando aula. Apesar da pressão de colegas do
Ciclo Básico da FAFICH e da Sociologia, a reitoria de Cisalpino manteve o veto ao
professor, que não foi efetivado. O mesmo não havia ocorrido em 1972, na gestão de
Marcelo Coelho, que conseguiu impedir o afastamento de professores como Valmir José
Resende, Aldeysio Duarte e Hélio Pontes, este último diretor de planejamento da UFMG. O
mesmo reitor que permitiu o afastamento de Mares Guias, conseguiu que o mesmo não
ocorresse com outros professores: Michel Le Vem, João Machado Borges Neto e Ronaldo
Noronha, todos acusados de terem passado esquerdista. Nos documentos também
aparecem as ingerências dos militares e suas justificativas de invasão da UMG, como o
caso da ocupação da FAFI e da Reitoria em 64 (Cf. MOTTA: 2014).

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Figura 4 -Documentação
interna da UFMG. Arquivo AESI, Caixa 67. O documento mostra o interesse do SNI em saber as atividades
realizadas pelos professores em nome da Segurança Nacional.

A atuação de três reitores, que são evidenciadas nos documentos da AESI, ajuda a
compreender outro ponto de pesquisa destacado, que é a atuação dos professores e de
como foi dada a resposta às demandas do regime. Gerson Boson foi cassado pelo AI-5
justamente por não coibir ações estudantis, diferentemente do que fez algumas vezes o
reitor Osório Cisalpino. Marcelo Coelho, por sua vez, já manteve uma postura mais crítica e
de negociação frente a reitoria. Os documentos da AESI revelam a postura de muitos
professores frente ao Golpe. No conservatório de música da UMG foi proposta uma moção
de aplausos. Pouco tempo depois, o seu diretor seria presidente de uma comissão que
investigaria possíveis subversivos dentro da UMG. Outros professores optaram por não
apoiarem o regime, apesar de a maioria não ter entrado em confronto direto com os
militares. O diretor da FAFI, Pedro Parafita de Bessa, foi cassado pelo AI-5 por defender a
liberdade de expressão dos estudantes, apesar de não possuir nenhum passado ligado a
esquerda. Já Amilcar Martins, professor da Medicina, é apresentado como tendo um
passado de esquerda, tendo participado de comícios do Partido Comunista e da reunião que
implantou o PCB em Minas Gerais, segundo o DOPS.5 No entanto, o motivo de sua
cassação parece ser a proximidade e o bom diálogo que mantém com os estudantes,
principalmente aqueles que ocuparam a Faculdade de Medicina em 1968. Na
5
Pasta 4905, Rolo 073, imagem 202; Pasta 0514, Rolo 023, imagens 2 a 21; e Pasta 0022, Rolo 002,
imagem 115 a 122. Arquivo DOPS. Arquivo Público Mineiro.

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documentação da AESI é possível ver pedidos de informações das atuações de vários


professores, que incomodavam o governo militar com suas ações.

Figura 5 - Documentação interna da UFMG.


Arquivo AESI, Caixa 64. Instauração da Comissão de Sindicância para apurar "crimes políticos" dentro da Universidade.

Por fim, há recortes de notícias sobre a universidade em inúmeros jornais. Sem se


esquecer dos jornais estudantis que também lotam os maços da AESI da UFMG. Apesar de
os grandes jornais estarem sempre a favor do regime, muitas vezes eles apresentavam uma
postura de defesa da Universidade, buscando ressaltar os valores tradicionais da instituição
ligados a família e a moral, como foi no caso do afastamento do reitor Aluísio Pimenta em
1964 da reitoria.

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Figura 6 - Notícia do Estado de Minas sobre intervenção na UMG.

Conclusão

Os arquivos da AESI são fontes importantes para se compreender como se deu a


ingerência e também a modernização do regime militar as universidades. Compreender as
particularidades do autoritarismo da época no meio universitário no ajuda não só a buscar
evitar acontecimentos semelhantes, mas também a entender como a universidade se
consolidou e se encontra hoje, com legados que são provenientes do regime militar. As
universidades enquanto importantes setores de formação do país não podem ser
negligenciadas em sua história no regime militar, pois as ações realizadas nelas e para elas
ajudam a entender o funcionamento de toda a engrenagem da ditadura militar no Brasil.

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Reparação e afeto: a luta pela memória no documentário feito por parentes de presos
políticos no Brasil

Luciana Carla de ALMEIDA


Doutoranda no Programa de Pós-Graduação na Escola de Comunicação da UFRJ.
lualmeida.se@gmail.com

Introdução
A memória social sobre a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985) é um rastro
tenebroso e ainda entreaberto. O projeto de pesquisa, aqui apresentado em formato de
artigo, pretende discutir como se travaram as batalhas de memória da segunda geração
narra a experiência sobre a ditadura civil-militar, no campo documentário, consolidando
determinados mitos e constituindo inúmeros silêncios. Entre ditos e não ditos prevaleceu o
Estado de Exceção apoiado pelo setor empresarial e sistemáticos auxílios dos Estados
Unidos com a Operação Condor (DREIFUSS, 1964). A sociedade civil teve sua convivência
nem sempre conflituosa com a ditadura e com seus arbítrios.

Pretendo pensar o legado da experiência militante, suas relações de afectos e suas


reminiscências a partir da representação e imaginários pelos filhos e parentes de presos
políticos. A segunda geração também negocia as instâncias do pós-trauma e a chamada
“transição” democrática. Para tanto, utilizo o cinema como espaço privilegiado de
observação, a partir da análise do documentário brasileiro sobre a ditadura civil-militar.
Arrisco-me em pensar as experiências da ditadura civil-militar em perspectiva ao histórico
colonizado, a modernidade conservadora e democraticamente imerso em lutas sociais e
embates políticos contraditórios.

O discurso de transfiguração da sociedade como um todo, inclui-se aqui o cinema,


envolveu um projeto contrário ao Estado autoritário e cerceador das liberdades. Era o
momento de apologia aos valores de caráter universalista, pelos direitos civis, pela crítica do
imperialismo e na defesa pelo popular-nacional. A modificação por um quadro político e
comportamental no campo da vida e da produção artística foi emblemática no audiovisual.
Captar o espírito geracional e a produção de um dado momento histórico é negociar com
instâncias tais como a sua gênese, o desenvolvimento e suas heranças.

Ora, entre 1964-1985 o Brasil vivenciou uma situação-momento de devir político. A


ditadura civil-militar promoveu estrategicamente planos burocráticos e administrativos contra
os direitos humanos ou aquilo que poderíamos chamar de tática de terrorismo de Estado.
Quem se opôs ao poder hegemônico foi decretado como subversivo, cassado, exilado,
assassinado ou encarcerado em manicômios judiciais. Foi necessário criar alternativas para

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criar e sobreviver. Esta produção audiovisual em consequência dos processos de


engajamento foi condição sine qua non para o engajamento do corpus desta proposta de
pesquisa. Tal amplitude dialética conjuga-se dentro de um regime de imagens estético-
políticas: na força da permanência, na memória social (JELIN, 2002), na transformação, na
vivência militante e o pós-trauma. O pessoal é político, o afeto é potência e o estético sua
iminência.

Os filmes aqui selecionados vão além do registro historiográfico, eles são evidências
de discursos, reflexões, perspectivas íntimas, subjetividades sobre os presentes-futuros.
Para o documentário ligado ao realismo, seus autores trataram a estética como fato e uma
política da imagem como abordagem sobre a barbárie. Aliás, reiterou-se a reunião das
imagens de arquivo, permitiu-se um retorno do acontecimento passado para evidências de
um debate que o torna presente. No que diz respeito ao estudo da voz off e do comentário
reflete-se também sobre as diferenças entre os gestos de apropriação, de citação ou de
reconfiguração. O que ocasiona uma leitura crítica da literatura referente ao cinema visto
como imenso arquivo audiovisual, o problema anacrônico das imagens, bem como a
sobrevivência das mesmas (DIDI-HUBERMAN, 2013).

A própria organização da narrativa histórica como negociação entre jogo e tensão


trouxe elaborações claras sobre um desejo de memória política. O que, coletivamente, ficou
imprimido: um ato de memória como uma espécie de memorial histórico. O acúmulo das
experiências militantes condensou uma estética urgente e de confronto direto com o real.
Essas imagens, essas palavras (temporalmente densas) trazem o presente como retenção
de uma vontade de passado no qual ainda não se encerrou. Talvez, projetá-las como futuro
torna-se, de certa maneira, prova dos crimes contra a humanidade - como evidência da
violência e declínio das utopias revolucionárias.

Memória e documentário no Brasil

Jean-Claude Bernardet (2003), ao tratar das imagens do povo no cinema brasileiro,


afirma que é principalmente pós-1964 que se apresenta “documentários inquietos tanto com
os problemas sociais como com os da linguagem”. A crise intensa do cinema documentário
teve seu apogeu ao destronar o “modelo sociológico” e questionar o relativo papel dos
intelectuais nas questões do outro como centralidade no discurso. Quanto à perda da
hegemonia ideológica frente à estética, interessa para Bernardet o realismo e sua
metalinguagem no cinema documentário não como reprodução do real, mas como
discursividade. Alguns aspectos que coadunaram para este painel remissivo: evolução dos

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338 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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movimentos operários e o deslocamento social da classe média, as contradições das


esquerdas internacionalmente, a rejeição dos critérios coletivos que escamoteavam as
individualidades, a valorização do subjetivo, o fortalecimento dos imaginários urbanos e seu
poder simbólico. A forma, nesse momento de crise criativa, modula posteriormente um
documentário sem filiação na reprodução do real – aquilo que chamo da cinematografia de
filhos dos presos políticos ou a segunda geração do pós-trauma. A quebra do fluxo na
montagem, o fragmento e a justaposição transformaram o saber cinemático, antes unívoco
ao cinema como imagem-denúncia, em diegese sobre os afetos compartilhados via geração
pós-crise.

Portanto, considero que os filmes feito por filhos e ou parentes de presos políticos
refletem um mundo de afeto, melancolia e distopia que almejam, através do documentário,
um pertencimento com o ideário de passado. É com essa intenção, por vezes perseverança,
que os filmes inicialmente recolhidos para tal pesquisa foram elencados. Neles estão
capturados fatos, ideias, sentimentos, isto é, o momento onde se manifestaram a
abordagem entre trajetórias geracionais. Tal cinematografia documental foi determinada, por
agora, como percurso de encontro e reconstituições de narrativas ocultadas, seja como
denúncia e/ou seja, como reminiscência das violações até hoje impetradas.

Dentre os filmes levantados pretendo levantar minha análise neste corpus: “15
filhos”, Dir. Maria Oliveira e Marta Nehring (Brasil, 1996); “Projeto 68”, Dir. Júlia Mariano
(Brasil, 2008), “Diário de uma busca”, Dir. Flávia Castro (Brasil-França, 2011), “Vou contar
para os meus filhos” (2010) e “Mesa Vermelha” (2013), Dir. Tuca Siqueira (Brasil);
“Marighella”, Dir. Isa Grinspum Ferraz (Brasil, 2012), “Em busca de Iara” Dir. Flávio
Frederico (Brasil, 2013), “O dia que durou 21 anos”, Dir. Camilo Tavares (Brasil, 2013).

Ao aproximar o documentário para tratar da memória políticas no Brasil remete-se


como exercício ante a prolixidade do real. Por causalidade, lembro-me da assertiva onde se
diz que “sem sermos perdoados [...], liberados das consequências do que fizemos, nossa
capacidade de agir estaria confinada a um único feito do qual nunca poderíamos nos
recuperar, permaneceríamos sempre vítimas de suas consequências [...]. A alternativa ao
perdão, e de modo algum sua antítese, é a punição. Ambos têm em comum o fato de
tentarem por fim a algo que se arrastaria indefinidamente [...]. Os homens são incapazes de
perdoar o que não podem punir” (ARENDT, 2004).

A questão da punição e perdão, intimamente ligada à reflexão sobre Nazismo e o


trauma do Holocausto, faz paralelo com a raiz violenta herdada das ditadura de 1964-1985.

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A massiva violação de direitos humanos é fenômeno típico da repressão, uma herança


amarga que o regime democrático carrega. Também é característica do regime democrático
pós-ditadura a sistemática tentativa de prevenir que seus atos autoritários sejam
investigados ou punidos, mesmo com o retorno ao Estado de Direito. E, de fato, em quase
todos os países em processo de enfraquecimento do regime de exceção são aprovadas leis
de impunidade, no caso do Brasil torna-se emblemático a luta pela Lei da Anistia. O que
diferencia o Estado de Direito é o reconhecimento da validade dessas reconstituições após
o retorno à democracia, sobretudo, em pulsão pela vontade política de esclarecer e punir as
violências perpetradas pelos ditadores e suas polícias políticas. O prolongamento da
concepção de quem são os atingidos pela ditadura civil-militar amplia-se na medida em que
os arquivos são revelados e a informação assegurada. Não foram somente os militantes
considerados como “vítimas” (termo bastante restritivo), mas também os indígenas, os
camponeses e trabalhadores urbanos e demais familiares. Até que se chegue a uma
compreensão de que grande parte da sociedade sofreu as consequências do regime de
terrorismo imposto pelo Estado, as variações sobre o cinismo e mitigação das ofensas se
tornaram verdadeiras práticas diárias (legitimada significativamente pelos meios massivos
de comunicação). Assim, os relatos feitos pelo discurso fílmico no documentário colocaram
a fala, a palavra como força de disputa contra hegemônica em vontade da potência pela
imagem. Eis aqui um método de embate contra o esquecimento ou
reinvenções/ressignificações da memória. No caso específico do Brasil, país que lentamente
tenta desenvolver uma comissão sobre as práticas autoritárias durante a ditadura civil-
militar, tal cinematografia torna-se mais arquetípica.

O cinema brasileiro tematizou a ditadura civil-militar com negociações e concessões.


Pesquisar a cinematográfica crítica ao regime de exceção é parte da justificativa do projeto
apresentado, principalmente, porque se observa, paulatinamente, a liberação de arquivos
ocultados desde recente implantação da Comissão da Verdade no país. Os filmes
produzidos nos anos de ditadura, e mesmo depois, a partir da Anistia e do fim do regime de
exceção tratam das violações dos direitos humanos. Eles são contrainformação e evidências
que fortalecem uma frente ampla de averiguação dos nossas reminiscências históricas.
Averiguar tal cinematografia contribuirá para os futuros processos de reparação que
começam ser encaminhados na esfera jurisdicional. Desde instituição da CNV, nota-se
aumento da quantidade de pesquisas acadêmicas, projetos pedagógicos voltados para
reparação histórica, exposições artísticas, dezenas de títulos lançados no mercado editorial
e de cinema dedicados à temática. A sedução (HUYSSEN, 2000) e seu mercado de
memória sobre o tempo presente (SARLO, 2007) pode ser, também, parte de uma
dimensão e tarefa da pedagogia pelas imagens (LEANDRO, 2001). Ou seja, as narrativas

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sobre a verdade no Brasil devem começar a ser fomentadas até como enfrentamento e
estímulo a políticas públicas em defesa aos direitos humanos. Há um sentimento pós-
ditadura de combater o que nos restou dela em termos éticos. Portanto, se valida o estudo
da produção audiovisual feita por artistas, cineastas e familiares sobre um momento político
de extrema mitificação da barbárie. Pensar, refletir, denunciar os atos de violência da
ditadura civil-militar estimula uma consciência ética por justiça. Cabe, também, aos
estudiosos na área de Comunicação a responsabilidade de criar espaços na pesquisa
acadêmica como novas formas de narração da trajetória política dos sujeitos afectivos.

A luta pela memória política reside em uma produção interessada na reconstituição e


na ficcionalização da história do país (um cinema e uma visão da história mais canônica,
como em “Jango” (1983) de Silvio Tendler), até um cinema que coloca em crise o valor da
verdade e da questão da memória como “Diário de uma busca”, Dir. Flávia Castro (Brasil-
França, 2011). Tal guinada subjetiva está atrelada ao que Beatriz Sarlo (2007) critica
conceitualmente de “pós-memória”, pois “há formas da memória que não podem ser
atribuídas diretamente a uma divisão simples entre memória dos que viveram os fatos e a
memória dos que são seus filhos”. Isto é, os relatos com reconstituições precárias não é um
efeito da memória da segunda geração (filhos), “e sim uma consequência do modo como a
ditadura administrou o assassinato”. Conhecer as narrativas sobre as ditaduras no Brasil é
também reconhecer o tamanho dos danos causados e, por consequência, desnaturalizar as
atuais instâncias de violência, tortura e censura. O dano cultural, político e social, todo
legado que o regime militar trouxe é cotidiano e cínico. A verdade é nossa herança
incômoda. É preciso estudar a construção da memória política, pois ao expor torna-se
melhor a compreensão da trajetória de barbárie e da construção de outra possibilidade
crítica de vivência. O Brasil ainda não concluiu sua transição à democracia após a ditadura
civil-militar instaurada com o Golpe de Estado de 1964. Em especial, carece o Estado
brasileiro de apurar as graves violações aos direitos humanos perpetrados por agentes do
poder público, muitas vezes com a cumplicidade do setor empresarial. Este déficit produz
consequências na vida atual, sobretudo por estimular o hábito da falta de informação e da
impunidade, debilitando o espírito crítico da sociedade e, por outro lado, estimulando órgãos
públicos a se manterem como enclaves contrários a alguns dos valores democráticos.

A hipótese de pesquisa é que a urgência em construir arquivos sobre a experiência


política vivenciada (perdida) forneceu uma experiência condensada de imagem com caráter
próprio, um registro visível intenso sobre o momento político-participativo retido nas
instâncias daquilo que se sujeitou como reminiscência (como cacos da história). As relações
estreitas entre Cinema e História atingem um alcance político, as relações tornam-se locais

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de narração, gesto político da imagem, escrita da História. Para Giorgio Agamben (2008) “o
gesto abre a esfera do éthos como a esfera mais própria do homem”. A raiz do éthos, tanto
em termos de “caráter” como no de “modo de vida habitual”, propõe uma vocação
“ethográfica” do cinema, que exprime melhor que quaisquer outros meios a variedade de
modos de ser e modus de fazer (CERTEAU, 1994) para o julgamento ético. Ou seja, o
cinema e sua experiência cinematográfica condensa no corpo social um local privilegiado da
enunciação do seu próprio discurso. Toma seu corpo, contudo, “não como corpo individual,
mas como corpo coletivo, corpo global”. E no caso das gerações que foram filhos da
censura ou ausentes das reparações, o cinema e sua experiência espaço-temporal infere
uma instância sobre uma nova memória que se recria, reinaugura, gera novas narrações e
sensibilidades sobre a imagem ausente e pregressa.

O sentido da imagem torna-se nova instância do sensível, na medida em que


também é a experiência do outro e torna-se índice de um desconforto difuso e amplo
(AGAMBEN, 2008). O pessoal é político. O corpo representaria nesse cinema documental
do encontro o suporte da obra e de onde se faz novos foros de legitimação do afeto. O
instante fílmico carrega, portanto, a atemporalidade apresentando um acolhimento sobre um
desejo e um imaginário de choque intermitente. Afinal, o documentário fez com que os
relatos resistissem ao esquecimento, não necessariamente por ser uma plataforma política
dos seus autores, mas por constituírem uma das formas de dar continuidade às existências
e subjetividades das emoções. E, retomando Hannah Arendt (1993), o impacto de rupturas
provocadas pelo totalitarismo ajuda promover o empobrecimento da experiência e a
debilidade da memória em uma sociedade herdeira de regime de exceção. Entre a memória
e o esquecimento, a narrativa capacita o rastro como (re)colher e o (re)criar de reflexões
críticas alternativas a continuidade programada das instituições. Claudine Haroche trata do
ressentimento sob as vistas de uma análise política: o ritmo, o tempo dos sentimentos
individuais, a maneira de sentir, de reconhecer os próprios sentimentos, de manifestá-los e,
talvez ainda mais, de sufocá-los, negá-los, calá-los e recalcá-los são essenciais para a
elucidação dos mecanismos políticos (HAROCHE, 2001).

Resistência como forma estética

O desejo de memória é factível, mas para tanto, se faz necessário reenquadrar as


heranças e o passado político de 1964. Uma das hipóteses é verificar se o cinema nacional
torna-se um instrumento para negociar as relações de poder em uma sociedade que
conjuga legado histórico de parca cultura democrática e uma esfera pública imersa no
campo da visualidade. Os filhos e parentes de presos e mortos pelo regime de exceção se

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utilizariam, portanto, do documentário como linha de fuga e responsabilidade política de


ação. Trata-se de um processo de invenção de nova forma de luta?

Todo ato de resistência não é uma obra de arte, embora de uma certa
maneira ela faça parte dele. Toda obra de arte não é um ato de resistência,
e no entanto, de uma certa maneira, ela acaba sendo [...].O ato de
resistência possui duas faces. Ele é humano e é também um ato de arte.
Somente o ato de resistência resiste à morte, seja sob a forma de uma obra
de arte, seja sob a forma de uma luta entre os homens (DELEUZE, 1999).

Deleuze nos mostra como a arte em sua relação privilegiada com o tempo permite ao
artista/pensador/sujeito reconstituir sua trajetória, isto é, atingir os diversos mundos e
pontos-de-vista que o constituem, mostrando assim que a obra de arte revela um processo
ou processos de subjetivação que, ao menos inicialmente, são imperceptíveis àqueles que
os vivenciam. A obra de arte é ato de resistência no sentido em que desobedece sempre,
ignora palavras de ordem, não pretende transmitir nada e ainda dilui as informações que a
envolvem. Por outro lado, é importante lembrar que nem todo ato de resistência é uma obra
de arte. Pensar esteticamente as micropolíticas de resistência implica em pensar o “estado
de exceção como regra” no Brasil. Agamben (2004) credita que o estatuto da resistência
política no cenário contemporâneo passa pelo estado de exceção na modernidade através
dos óculos da normalidade. E, onde há poder há resistência. O documentário feito por
aqueles que sobreviveram as atrocidades da ditadura é um método de profanação
(AGAMBEN, 2007).

O estudo sobre a memória política e o processo de combate ao esquecimento


estabeleceu novas possibilidades de debate na área das humanidades. “Nunca houve um
monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a
cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura”
(BENJAMIN, 1994). A partir das teses sobre o conceito de história, Walter Benjamin (1994),
descreveu a relação crítica e viva da cultura em oposição a uma concepção reificante e
fetichista da propriedade. Na modernidade, a cultura implica o bem cultural (propriedade
privada). As obras do passado não são substâncias imutáveis, mas reserva de valores
encobertos e esquecidos. Cabe ao presente e ao materialista histórico a tarefa de escovar a
história a contrapelo dos vencedores (dominadores). O sujeito do conhecimento histórico é a
própria classe combatente e oprimida. O narrador torna-se possibilidade de resistência e
transformação pelo encontro. O que inicialmente pareceria uma condenação do processo
cultural é antes um emblemático momento de reflexão sobre quanto se paga pela cultura
como forma de manutenção. E no caso dessa proposta de pesquisa, enfrentar a barbárie é
colocar a narrativa da história como reminiscência por uma nova casualidade dos fatos
operados.

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Teoricamente a proposta de pesquisa orienta-se ao conceito de história e narração


em Walter Benjamin, especificamente quando o filósofo alemão trata sobre uma escritura da
história e de sua ligação com uma prática transformadora, ao mesmo tempo redentora e
revolucionária. Nas suas teses a crítica ao historicismo combate uma ideologia progressiva,
burguesa que considera o tempo como algo homogêneo, vazio, cronológico e linear. Uma
máxima brechtiana: “nunca começar a partir dos bons, velhos tempos, e sim a partir destes,
miseráveis”. O gesto é de interrupção do tempo, de quebra da continuidade histórica por um
tempo de surgimento do descontínuo. O historiador deve provocar um abalo, um choque
que imobilize o desenvolvimento falsamente natural da narrativa (GAGNEBIN, 1994).

O cinema durante e depois à Segunda Guerra experimentou, segundo Walter


Benjamin, um grande horror face ao totalitarismo, fascismo e stalinismo. O cinema moderno,
pós-guerra, se funda sobre outras bases políticas. Dentro dessa perspectiva, os modos de
abordagem sobre o esquecimento, o indulto, a reconciliação nacional entre o Estado, a
igreja e a classe média e sua amnésia histórica se constitui como afronta a presentificação
viva da memória. O cinema documental proposto aqui em pesquisa apresenta uma narração
que constrói a estranheza, portanto o filme constituiria um movimento prospectivo.
Parafraseando Beatriz Sarlo (1997): ver para esquecer e também ver para não esquecer.
Filma para esquecer, e o efeito da filmagem é fazer com que os outros não esqueçam. Filma
para lembrar, e amanhã outros vão ver essa lembrança. Esquecimento e lembrança, essa
oscilação permanentemente produzida por impulsos contrários. A ambiguidade radical que o
ato de filmar carrega pendula entre saber/apagar marcas, sinais, rastros, disfarces, pessoas
e sentimentos. É bem verdade que a sociedade não pode viver em uma lembrança
permanente e igualmente nítida, infinita e perfeita em sua repetição.

Pode-se imaginar uma negociação entre o esquecimento e lembrança, na


qual fatos, discursos, práticas, nomes, datas não estão ao mesmo tempo na
consciência, nem são iluminados por inteiro. Mas por outro lado, parece
quase impossível eliminar o objeto da lembrança, impedir que essa
lembrança continue a se reconstruir, repetir, alterar. É impossível esquecer
por completo. (SARLO, 1997, pág. 34)

A história, portanto, seria esse levante contrário ao esquecimento. Aceitando-se


“saber menos”, se aceita a possibilidade de esquecer. E aceitando-se a possibilidade de
esquecer, o passo seguinte não é a repetição (pode até ser, ou não), mas o ato de renunciar
valores presentificados do passado para tornar presente os valores que certa vez foram
atacados. Não se afirma apenas “isto foi feito”, mas “isto pode ser feito” (SARLO, 1997). O
dilema do sobrevivente reside no caráter incomensurável e irresolúvel dessa mediação entre
experiência e narrativa: a organização diegética própria do horror vivido é percebida não só

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como uma intensificação do próprio sofrimento, mas, o que é pior, como uma traição ao
sofrimento dos demais (AVELAR, 2003).

O pesquisador, Idelber Avelar, apresenta em “Alegorias da derrota” um criterioso


estudo sobre a escrita de testemunho na literatura durante o pós-ditadura na América
Latina. A impossibilidade de substituir o objeto perdido, agudiza a sensação de que a
experiência da perda não pode ser traduzida à linguagem. Dessa impossibilidade, Avelar
afirma que ao regressar ao país pós-exílio, na narrativa de Tununa Mercado, percebe-se
que a condição de “redemocratização” é o apagamento e o esquecimento da experiência
das vítimas da ditadura (AVELAR, 2003). Reelaborar o passado e a crise em transmitir a
experiência sobre o trauma vivido opera também na cinematografia pós-ditatorial. Assim o
luto passa do esquecimento ativo para o esquecimento passivo da barbárie. Eis a imagem
irrecuperável do passado que ameaça desaparecer.

De certa maneira, esse projeto de pesquisa pretende dar uma leitura sobre essa
produção documental política. Não como tentativa de generalizar uma interpretação,
tampouco um método de análise, mas na procura de ler o filme como uma fala, uma
narração, um rastro de memória. Aquilo que Marc Ferro (1992) trata das vinculações entre o
cinema e a história como um agente, uma contra análise da sociedade, em uma instância
entre o visível e o não visível.

O filme tem essa capacidade de desestruturar aquilo que diversas gerações


de homens de Estado e pensadores conseguiram ordenar num belo
equilíbrio. Ele destrói a imagem do duplo que cada instituição, cada
indivíduo conseguiu construir diante da sociedade. A câmera revela seu
funcionamento real, diz mais sobre cada um do que seria desejável de se
mostrar. Ela desvela o segredo, apresenta o avesso de uma sociedade,
seus lapsos. Ela atinge suas estruturas. (FERRO, 1992, pág. 86)

E o que seria este olhar político? É o preparo para disputar a hegemonia das
grandes linhas culturais, para questionar a legitimidade de sua imposição, embora talvez
nunca chegue a completar essa batalha simbólica (SARLO, 1997). Este jogo de
dissidências, nessa espécie de descoberta das fissuras no consolidado, as rupturas indicam
mudanças estético-políticas. A memória opera também com seu saber construindo
hipóteses narrativas que, de maneira silente, criticam o presente e opinam sobre as noções
narradas, sobre o passado e suas utopias. O que vale, nesta proposta de pesquisa, é o
impulso ético e estético do cinema documental. Afinal, como afirma Beatriz Sarlo (1997), “a
arte não tem que ser otimista e sim oferecer uma perspectiva de verdade”.

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Para tanto o pesquisa demanda aproximação com a área de teoria do cinema e


análise fílmica, historiografia e crítica do cinema, bem como, encara os desafios e
problemas teóricos de análise na produção audiovisual contemporânea. Ou seja,
desenvolverá uma investigação dos métodos de entrevista e montagem contidos na
realização do documentário político. A partir desse quadro remissivo, a análise descritiva
dos filmes se faz necessária para compreender a significação da palavra e a observação do
discurso. Investigarei esteticamente como documentário foi o porta-voz nesse processo de
contaminação de re/escrita dos sujeitos pelo espaço e temporalidade, pois os mesmos se
inflamam em uma prosa individual e coletiva - no encontro entre o político e o poético no
cinema. A cultura visual e suas formas de representação em imagem-movimento
(DELEUZE,1985) possibilitam estudos balizados nas relações entre Ditadura e Cinema,
através das práticas e imagens documentais na cultura audiovisual contemporânea. Essas
instâncias em conflito, suas realidades em jogo produzem ensaios fílmicos com apropriação
de imagens e subjetividades do que resta da ditadura (TELES e SAFATLE, 2010). Pois,
estudar como a memória política se deu como narrativa é uma tentativa de elaborar onde
está localizado um pensamento estético-político dentro do seu regime próprio de
visibilidades.

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O Território do Terror: agitações, prisões e repressões no alvorecer do golpe civil-


militar no Amapá

Maura LEAL da Silva


Professora da Universidade Federal do Amapá. Doutoranda em História Social pela
Universidade de Brasília.
mauraleal.ap@gmail.com

Essa comunicação fruto de estudos preliminares, decorrente da pesquisa de


doutorado em andamento sobre a política territorial e aposição no Amapá (1946-1988), que
estamos desenvolvendo pela Universidade de Brasília, objetiva contribuir, ainda que
timidamente, com esse árduo processo de alargamento e revisionismo dos estudos
relacionados a Ditadura Civil- Militar no Brasil. É consenso, entre um tímido grupo de
estudiosos, que o Amapá não vivenciou a intensidade de prisões e torturas das demais
cidades brasileiras. Contudo, ainda que a realidade dos amapaenses das vésperas do golpe
de 1964 apresente configurações que se distanciam do nacional, não se pode ignorar os
reflexos que foram sentidos na política daquele Território Federal durante esse
período.Nessa breve texto, pretendemos evidenciar a política territorial repressiva que
antecede o golpe civil-militar no Amapá e a repressão que se abateu a alguns setores da
sociedade civil no imediato pós-golpe.

Para ser compreender o Amapá nesse cenário nacional ditatorial, acredito que é de
suma importância fazer um breve histórico sobre sua origem enquanto entidade política-
administrativa. Deve-se considerar que a convivência com práticas autoritárias, privações de
liberdades, subordinação, coerção, censura à liberdade de expressão, faziam partes das
políticas institucionais do Território muito anterior ao ano de 1964. As explicações para esse
cenário podem ser encontradas no processo que o originou.

Até início da década de 40, o Amapá ainda estava vinculado ao Estado do Pará. Sua
criação, como Território Federal, ocorreu através do Decreto-Lei nº. 5.8121, de 13 de
setembro de 1943, com partes desmembradas do Estado do Pará, como justificativa para
garantir a proteção e a ocupação de regiões fronteiriças que apresentavam grandes “vazios
demográficos”.

Mapa- Os Cinco Territórios Federais criados pelo Decreto Lei Nº 5.812

1
RIO DE JANEIRO (Capital Federal). Decreto-Lei nº 5.812, de 13 de setembro de 1943. Dispõe
sobre a criação dos Territórios Federais do Amapá, do Rio Branco, do Guaporé, de Ponta Porã e
do Iguaçu, com partes desmembradas dos Estados do Pará, do Amazonas, de Mato Grosso, do
Paraná e de Santa Catarina, respectivamente.

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Fora o caso do Acre que nasceu, em 1904, da anexação de território estrangeiro, os


demais Território Federais foram experiências dentro da república brasileira, que ocorreram
através do desmembramentos de território durante o Estado Novo,
Novo, em pleno período
ditatorial. Naquele momento, pouco se levou em consideração a autonomia dos Estados que
tiveram seus territórios desmembrados, como também, não foi realizada nenhuma consulta
prévia à população dessas regiões. A medida foi motivada com base no sexto artigo da
Constituição de 1937, “A União poderá criar, no interesse da defesa nacional, com partes
desmembradas dos Estados, Territórios Federais, cuja administração será regulada em lei
especial”2. Também discorria que esses “territórios” seriam
seriam compostos de áreas
incorporadas à União, provenientes da perda de autonomia dos Estados que revelassem
incapacidade financeira para administrar-se,
administrar se, ou de áreas que representassem interesse de
defesa nacional.

Os Territórios Federais foram, no caso brasileiro3,


br experiências políticas
políticas-
administrativas, com claros contornos autoritários. Tanto que, em 1946, durante os

2
BRASIL (Capital Federal). Constituição dos Estados Unidos do Brasil(1937).
Brasil(1937) Casa Civil da
Presidência da República. Arquivo Nacional. In: Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados.
Disponível em: http://bd.camara.gov.br.
http://bd.camara.gov.br Acesso em: 25 abr. 2014.
3
A criação de Territórios Federais no Brasil
Brasil foi inspirada no direito americano. Como o Governo
Federal não sabia ao certo o que fazer com o Acre, quando da sua incorporação, resolveu
transformá-lo
lo em Território copiando o modelo dos Estados Unidos. Pedro Calmon (apud (
MEDEIROS, 1944, p.87), esclarece
esclarece que “A figura do Território nacional é norte-americana.
norte De
começo, os Estados eram apenas 13. À medida que os pioneiros ganharam o oeste, ou que o
governo da União adquiriu por compra ou conquista, faixas territoriais que arredondaram a área
geográfica da nação, foram sendo instituídos os “Territórios”, e em seguida, tanto que se povoaram e
enriqueceram, erigidos em Estado”. Segundo Michel Temer (1974, p. 124), “Os Territórios norte- norte
americanos tiveram sempre poder acentuado de auto-administração”.
auto

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exaltados debates da Assembleia Constituinte, embalados pelo ambiente democrático


recém restaurado, a permanência ou não dessas entidades administrativas foi posta em
discussão. Entre os muitos discursos, o do deputado federal amazonense Manuel Severiano
Nunes (UDN) alertava para a contrariedade de atos como os que criaram os Territórios
Federais para a plena vivência democrática; na ocasião discursou eloquentemente "o
Decreto-lei 5.812 foi exclusivamente de acordo com o clima ditatorial"4

Apesar, de ter sido abordado na Constituinte de 1946 uma série de problemas


decorrentes das permanências dessas entidades administrativas, continuou a vigorar as
mesmas diretrizes organizacionais administrativas estabelecidas pelo Decreto- Lei nº 5.839,
de 21 de setembro de 1943. Permaneceram como entidades “integradas” ao Estado Federal
brasileiro, com elevada concentração do poder central nas decisões administrativas e
econômicas locais, e seus “administradores” continuaram a serem indicados pelo presidente
da república e submetidos diretamente ao controle do Ministério da Justiça e dos Negócios
Interiores5, além de contaram também com uma unidade de tropa do exército em seu
território, como partícipes administrativos. O único ganho substantivo, estabelecido pela
Constituição de 1946 para os Territórios, foi o direito de um representante na Câmara
Federal.

Esse breve relato, exemplifica, que o tratamento dispensado aos Territórios Federais
pelo Estado brasileiro seguiram um direcionamento muito aproximado ao longo de suas
existências. Mesmo em momentos de grande abertura política, ainda eram vistos com os
mesmo fundamento de sua origem, como lugares em que a “defesa do território” imperava
sobre ás necessidades da população. Por outro lado, a ausência de uma política
governamental mais efetiva para essas regiões, tomando como exemplo a experiência do
Amapá, favoreceu a prática do improviso, da exacerbação da autoridade e centralização
política, a ponto de ampliar o grau de atuação das representações administrativas territoriais
para muito além de suas funcionalidades, bem como nos lembra René Remond, quando o

4
REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL (Capital Federal). Anais da Assembleia
Constituinte (1946). Vol. V. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1947. In: Biblioteca Digital da
Câmara dos Deputados. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/deputados/discursos-e-notas-
taquigraficas. Acesso em: 08 abr. 2014.
5
Pelo alvará de 28 de setembro de 1736 D. João V cria a Secretaria de Estado dos Negócios
Interiores do Reino, que com o advento do Império e da República, passou a denominar-se,
sucessivamente, Secretaria de Estado dos Negócios do Império e Ministério da Justiça e
Negócios Interior. Em 25 de fevereiro de 1967, pelo Decreto-lei nº 200, de 25.02.1967 esse
Ministério é desmembrado em Ministério da Justiça e Ministério do Interior. A Lei nº 8.028, de 12
de abril de 1990, extingue o Ministério do Interior.

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político “se dilata até incluir toda e qualquer realidade e absorver a esfera do privado: este é
um dos traços das sociedades totalitárias”6

No Amapá, no recorte que se inicia com o pós 45, a administração pública muito se
assemelhava a política estado-novista, assumindo características muito aproximada às
apontadas pela historiadora Lucília Almeida Neves Delgado para o Brasil do período pós-30,
de “um paternalismo autoritário, implantado em consonância com a concepção tutelar, que
se orientava por objetivos simultaneamente modernizantes e conservadores”7. Esse período,
que conforme recorte da história política, encerrar-se-ia em 1964, ainda é predominante
pesquisado pela ótica do Estado Novo na historiografia amapaense, assim como os que se
seguiriam a Ditadura Militar são pouco ou quase nada pesquisado, corroborando com a uma
memória que reforça que no Amapá Território a mudança de “regime” transcorreu sem
grandes abalos.

Daniel Arão Reis, vem chamando atenção a bastante tempo para uma cultura
autoritária que permeiam as relações políticas do presente no Brasil, herdada em grande
parte da dicotomia entre o Estado de Direito regido pela Constituição de 1946, em contraste
com a herança ditatorial aberta do Estado Novo; um regime democrático, mas limitado,
marcado pela tradições autoritárias da ditadura que o antecedera, nos parâmetros da cultura
política nacional- estatista. Mesmo concordando, que a "A instauração da ditadura, em 1964,
destruiu tudo isso: o estado de direito, a democracia limitada e a versão trabalhista do
nacional-estatismo"8, o autor destaca, que esse momento de ruptura do regime não pode
ser entendido somente como um marco divisor, pois segundo Reis“ A Ditadura resultou de
uma conjunção complexa de condições, de processos e de ações, cuja a compreensão
permite elucidar o que deixou surpresos e complexos os contemporâneos vencidos e
vencedores".9

Não há como ignorar que o efervescente movimento de atualidade da ditadura se deve


em grande parte, aos impactos duradouros, ainda visíveis entre nós, de uma cultura
autoritária que ainda insisti em impregnar as relações sociais, traduzida na democratização
incompleta do Estado e Sociedade. Se por um lado, as políticas modernizantes daqueles
anos, deflagrados pelos militares e os civis apoiadores da ditadura, implicou em mudanças
infra estruturais significativas em algumas cidades do país, principalmente em setores como
economia, comunicação e tecnologia, por outro, sustentou-se em pilares de
6
RÉMOND, René (org.). Por uma história política. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003,
p.442.
7
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. “Cidadania: Dilemas e perspectiva na República brasileira”.
Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 4, 1997, p. 95.
8
REIS, Daniel Arão. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988. Rio
de Janeiro: Editora Zahar, 2014, p.17.
9
Ibid, p.18.

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desenvolvimento conservadores e acima de tudo autoritário, mantendo e elevando a


exclusão de grande parte da população brasileira, aumentando consequentemente as
desigualdades sociais. Igualmente, podemos afirmar categoricamente, que essa
modernização conservadora acentuou ainda mais as desigualdades regionais existentes, e
os Territórios Federais não foram poupados dessa dinâmica, com a permanência e a
consolidação de um modelo assentado na dependência política e econômica e no
extrativismo das riquezas minerais e naturais.

Vale lembrar, que o cenário amapaense das vésperas de 1964, em pouco se


diferenciava dos primeiros anos da implantação do Território. Ainda que a população de
aproximadamente 22.000 habitantes tenha triplicado em pouco mais de 20 (vinte) anos de
sua criação, a sociedade era predominantemente rural, sobrevivendo em grande maioria de
uma economia extrativista de subsistência. Das 17 (dezessetes) cidades e vilas (zonas
urbanas) que havia em todo Território, somente duas, apresentavam um número maior que
1000 (mil) habitantes. Dessas localidades, a capital Macapá (zona urbana) concentrava
27.585 dos 68.520 habitantes de todo o Território. Porém, muito distante de acompanhar os
padrões modernos dos grandes centros urbanos do país, apresentava graves problemas de
infraestrutura básica. Dos 7. 658 domicílios de toda a capital (zona urbana e rural), apenas
875 possuíam abastecimento de água tratada, somente 3.280 casas tinham sistema de
fornecimento de energia elétrica e só 371 tinham fossa séptica.10

Os Territórios, como já defendido, são exemplos de administrações com grande


concentração de poder nas mãos de quem “governava”. No Amapá, a maioria dos
governadores, mesmo depois de 1945 foram militares. Portanto, o ano de 1964 no Amapá,
não ocasionou grandes abalos na estrutura de poder já existente, mas um reordenamento
da “ordem política” estabelecida. Atores políticos, alguns deles que engrossavam o grupo da
"oposição", aglutinados em grande maioria no PTB, viram o novo momento político que o
país atravessava, como oportuno para o enfraquecimento do grupo político adversário,
ligado ao ex-governador e Deputado Janary Nunes, que vinham comandando o governo do
Amapá desde sua criação, quando foi designado pelo presidente Getúlio Vargas, para
primeiro governador desse Território.11

Assim, o processo político que desencadeou a ascensão e permanência de Jango no


poder, no ano de 1961 até o golpe civil/militar de 1964, apresentou configurações distintas
no Amapá Território. Enquanto que no resto do Brasil, as forças políticas se aglutinavam em

10
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Censo Demográfico de 1960: Rondônia,
Roraima e Amapá. VII Recenseamento Geral do Brasil. Série Regional. Vol. I, TOMO I, 1ª Parte,
p. 227.
11
SANTOS, Fernando Rodrigues. Da autonomia Territorial ao fim do janarismo (1943-1970). Macapá:
Editora Gráfica O DIA S.A., 1998.

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torno dos que defendiam ou não as “reformas de base” em um momento, em que segundo
Daniel Arão Reis, “acumularam as forças que se enfrentaram num grande embate, o mais
complexo e violento, e de maiores dimensões sociais, que até então conhecera a república
brasileira”12, na leitura do historiador Dorival Santos, o “janguismo” não enfrentava
resistência entre os amapaenses, “No Amapá, as forças políticas, agrupadas em torno do
Partido Socialista Democrático – PSD e do Partido Trabalhista Brasileiro – PTB alinhavam-
se incondicionalmente às “reformas de base”. Digladiavam-se para definir quem era mais
“janguista”.13

Em 26 de janeiro de 1964, o PTB, partido da oposição, publicou um artigo, no jornal


local petebista Folha do Povo, no qual criticava o grupo adversário, liderado pelo ex-
governador deputado Janary Nunes do PSP, de se utilizar do prestígio de João Goulart
como manobra política duvidosa e reivindicava o direito partidário do uso da imagem do
presidente. A matéria se referia a possível candidatura de João Goulart ao Senado do
Amapá.

(...) o sr, Janary Nunes pretende lançar o nome do Presidente João Goulart,
como candidato a senador pelo Amapá em 1966.
A ideia do sr. Janary seria a mais louvável possível, se não fôra as
intenções maquiavélicas que se esconde atrás dêsse véu de ingenuidade.
O presidente João Goulart tem o seu partido, o PTB e não precisará do sr.
Janary Nunes nem do PSP a quem está vinculado o deputado, para ser
14
candidato a senador pelo Amapá.

Conforme Delgado, “João Goulart atuou com firmeza, no escopo da democracia


política, pela efetivação de uma democracia social nacionalista e reformista, trouxe real
desconforto aos conservadores que com ela não concordavam”15. Na avaliação dos
petebistas, no Amapá, o governo de João Goulart teria atuado no sentido inverso, ao indicar,
em dezembro de 1962, para governador desse Território o Tenente Coronel Terêncio
Furtado de Mendonça Porto, com apoio de setores conservadores da política local. Sua
administração, nos anos que antecede ao Golpe foi marcado por um período de
endurecimento político, repressões, perseguições e até mesmo prisões aos seus
adversários. Nos trechos a seguir, o petebista Elfredo Távora, em suas memórias intitulada
Folhas Soltas do Meu Alfarrábio: um livro para os meus filhos (2010), narra esses
acontecimentos.

12
REIS, Daniel Aarão. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. In: D. A. Reis, M. Ridenti
e R. P. Sá Motta (orgs.). O golpe e a ditadura militar 40 anos depois (1964-2004). Bauru: Edusc,
2004, p.30-31.
13
SANTOS, Dorival da Costa. “O regime ditatorial militar no Amapá: terror, resistência e subordinação
1964-1974” (Dissertação de Mestrado). Campinas: Unicamp, 2001, p. 43.
14
"A chantagem do coronel" In: Folha do Povo, edição de 26 de janeiro de 1964.
15
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. “Cidadania: Dilemas e perspectiva na República brasileira”.
Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 4, 1997, p.128.

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O governador Terêncio Porto continuo as perseguições. Em 19 de maio,


antes da viagem da comitiva, havia praticado inusitada violência contra o Sr.
José Porpino da Silva, funcionário do Território há mais de 10 anos,
mandando prendê-lo e despejando-o da casa do governo, que ele ainda
ocupava como ex-diretor da Administração Geral, secretário geral e até
governador interino.
João Wilson de Carvalho, membro do PTB que havia estado com o
presidente João Goulart para denunciar certas perseguições, foi preso umas
três vezes, a última em 19 de agosto de 1963, sob a alegação de ter
criticado a administração.
Em 13 de outubro do mesmo ano, novas violências. Desta vez, a prisão
incomunicável do ex-secretário geral de Terêncio (...) “por perturbar a ordem
pública”. A acusação era a suspeita de existência de um relatório pedindo a
substituição do governador, quando se tratava de uma mensagem dos
16
comerciantes e do povo em favor da transformação do Amapá em Estado.

Talvez em razão da distância geográfica, mas sobretudo pela representação política


amapaense na cenário nacional, a primeira reação ao golpe foi de apoio ao presidente João
Goulart. O deputado Janary Nunes enviou, nas vésperas do dia 31 de março, um telegrama
ao seu aliado no território, o governador Terêncio Porto, instruindo-o para que organizasse
um movimento nas ruas da capital manifestando solidariedade ao presidente Jango. Assim
Terêncio Porto o fez. Redigiu nota oficial, que foi divulgada para conhecimento público no
dia 01 de abril, através da Rádio Difusora de Macapá, meio de comunicação porta voz do
governo no Território, na qual manifestava,

(...) sua decisão de manter está unidade da federação dentro da legalidade,


fiel à constituição Federal e aos poderes constituidos sob a autoridade
legítima do Presidente da República. A ordem pública e a normalidade da
vida em todo o Território estão asseguradas e serão mantidas de qualquer
17
forma, serenamente e dentro dos quadros legais vigentes.

Em 1966, as correspondências trocadas entre o deputado Janary Nunes e o


governador Terêncio Porto, entre os dias 30 março a 01 de abril de 1964, serão peças
centrais na instalação do inquérito policial pela Delegacia de Ordem Política e Social,
referente ao crime de subversão, contra o deputado Janary Nunes, Mário Luiz Barata e o
Tenente Jose Alves Pessoa, esse último preso e enviado para presídio paraense, onde foi
mantido incomunicável por 28 dias, recebendo como represália a demissão do Exército
brasileiro.18

16
GONSALVES, Elfredo Távora. Folhas Soltas do Meu Alfarrábio: um livro para os meus filhos.
(Memória). Impressão Gráfica Papers Brasília, 2010, p. 72-73.
17
PORTO, Terêncio Porto. NOTA OFICIAL."Armas da República". GOVERNO DO TERRITÓRIO
FEDERAL DO AMAPÁ. Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Gabinete do Governador.
Macapá, 01 de abril de 1964. (Rádio Difusora de Macapá).
18
TERRITÓRIO FEDERAL DO AMAPÁ. Inquérito Policial referente ao crime de subversão.
Indiciados: José Alves Pessoa, Janary Gentil Nunes e Mário Luiz Barata. DIVISÃO DA
SEGURANÇA E GUARDA. Macapá, 16 de maio de 1966.

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Os fatos narrados são ilustrativos de que, os rumos dos acontecimentos no Amapá


Território estiveram bastantes atrelados às conjunturas nacionais, em razão do grau de
dependência econômica e política que essas unidades administrativas estavam submetidas.
Porém, ao mesmo tempo, revelam os arranjos políticos locais, estabelecidos a partir de
interesses diferenciados dos defendidos no âmbito nacional. De acordo com historiador
Dorival Santos, quando, em 03 e 04 de abril, a notícia do golpe veio a ser confirmada, os
primeiros a ficarem em polvorosos com a confirmação da vitória do movimento militar foram
as lideranças políticas que, desnorteadas, não sabiam como agir. Daí em diante, começa a
ser travada uma luta pela prevalência de uma memória que negasse qualquer ligação com a
política desenvolvimentista de Jango.19

Uma das primeiras atitudes do governador Terêncio Porto foi desqualificar a


desocupação de João Goulart da presidência. Mandou divulgar uma matéria no jornal
Amapá, órgão oficial da imprensa do Território, no qual repudiava a atitude de Jango,
classificando-a como de um homem fraco, medroso e covarde. A matéria se diferenciava de
outra, de uma semana anterior, divulgada no mesmo jornal, que definia João Goulart como
“dotado de uma vocação extraordinariamente inata para dirigir homens e povos”20. Não é
difícil compreender a posição ambígua do Tenente-Coronel Terêncio Porto, com relação ao
rumo que o Amapá deveria seguir no novo cenário nacional. Sua formação militar se
adequava mais a conjuntura que estava sendo instalada do que a anterior. Porém, sua
indicação para o cargo de governador ocorrera por intermédio do Deputado Janary Nunes e
acatada pelo presidente Goulart, conforme já exposto. Nos primeiros dias que se seguiram
ao golpe, quando Goulart já se encontrava no exílio no Uruguaia, o governador militar
aproveitou do momento político conturbado que país passava e visando mascarar sua
relação com a política janguista, ordenou uma série de prisões, que teve como alvo
expiatório membros do PTB, sindicalistas e líderes do movimento estudantil, que passaram
a ser taxados de comunistas. Elfredo Távora narra esse momento, no trecho a seguir.

O governador Terêncio, depois da vitória do movimentou aproveitou a deixa


para mandar fechar a Folha do Povo, recolher todo o seu arquivo e prender
incomunicáveis na Fortaleza Amaury e Araguarino, sob o pretexto de que a
21
Folha do Povo era um órgão de propaganda comunista.

O governador Terêncio Porto, também se utilizou do aparelho repressivo do governo


para reprimir e copitar o movimento sindical. No Amapá, os anos 60, assim como nas

19
SANTOS, Dorival da Costa. “O regime ditatorial militar no Amapá: terror, resistência e subordinação
1964-1974” (Dissertação de Mestrado). Campinas: Unicamp, 2001.
20
Amapá, edição de abril de 1964.
21
GONSALVES, Elfredo Távora. Folhas Soltas do Meu Alfarrábio: um livro para os meus filhos.
(Memória). Impressão Gráfica Papers Brasília, 2010, p.75.

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principais cidades do país, assinalam o momento de crescimento das organizações sociais e


culturais, mas em razão do centralismo administrativo, essa autonomia não fora
impulsionado por uma maior abertura entre o Estado e sociedade, pelo contrário. Desde de
meados dos anos 50, que o movimento sindical vinha registrando um grande poder de
organização entre trabalhadores em todo Território, sobretudo os vinculados às atividades
de mineração , “impulsionados por diversas frentes de trabalho da ICOMI, como o Sindicato
dos Estivadores e Trabalhadores em Estivas de Minérios do Território Federal do Amapá”.22
Esse amadurecimento levou diversos sindicatos de trabalhadores ligados as atividades
industriais a fundarem a Federação dos Trabalhadores nas Indústrias do Território do
Amapá (FTIA), no início dos anos 60.

Em junho de 1963, o empreiteiro amapaense Walter Pereira de Carmo vai a Brasília


denunciar o governo territorial. A repercussão nacional é imediata. Além da circulação da
notícia em jornais nacionais, o protesto ainda ocasiona a abertura de um inquérito por parte
do próprio governador Terêncio Porto, para investigar a denúncia. O resultado da
investigação, não surpreende, e confirma que “as declarações de Walter Pereira – que era
filiado do PTB – visavam unicamente criar um clima de desprestígio do atual governo junto à
sua Excelência o senhor presidente da República e atuais ministros com fins escusos”. 23

No dia 04 de abril, logo após o golpe, a Folha do Povo, fez uma breve reportagem
sobre o clima político instável e repressivo que a pacata capital do extremo norte do país
vivenciava, com o seguinte título "Prisão de líderes".

A informação que nos chegou à redação, deu-nos conta de que as 17


horas, o Ten. Uadih Charone, dando cumprimento às determinações 8ª
R.M. teria determinado a prisão de vários líderes sindicais e estudantes
tido como suspeitos de serem comunistas (grifo nosso), que prestaram
depoimentos na Divisão de Segurança e Guarda, sendo após colocados em
liberdade.
Segundo consta, outras prisões serão ainda efetuadas dentro das
24
próximas horas (grifo nosso).

A imprensa amapaense também foi atingida pela ações repressivas do governo


territorial nos dias seguintes ao golpe. Tanto a Folha do Povo, quanto A Voz Católica, o
segundo jornal de propriedade da Prelazia de Macapá, sofreram intervenções, suspeitas de
noticiar ideias subversivas e comunistas em suas edições. Para a A Voz Católica foi
designado o sensor Antônio Munhoz Lopes. A partir daí o Jornal passou a circular pelo
Território com uma tarja preta ao lado do título, onde se lia "Edição Censurada"25. Na edição

22
PAZ JR., Adalberto Júnior Ferreira. Os minérios da floresta: sociedade e trabalho em uma fronteira
da mineração industrial amazônica. Dissertação de Mestrado. Campinas: Unicamp, 2011, p.152.
23
PAZ JR, Op. Cit, p. 154.
24
" Prisão de líderes. In: Folha do Povo, 04 de abril, 1964.
25
Fatos narrados pelo jornalista Hélio Pennafort no livro Amapaisagens, Macapá, 1992.

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do dia 26 de abril de 1964, o jornal já apresentava na formatação essa determinação, e


trazia uma publicação na primeira página com o seguinte título " Ato do govêrno que
determina a censura A VOZ CATÓLICA".

A Fortaleza de São de José de Macapá, construída durante a política pombalina para


a Amazônia, em meados do século XVIII, com propósito de ocupação e defesa das
fronteiras brasileiras contra as ameaças estrangeiras, passou a ser durante todo regime
civil- militar, símbolo e ícone de medo, servindo de cárcere privado para os que eram
taxados de agitadores da ordem pública, elementos perniciosos e comunistas. Daí em
diante, a sociedade amapaense, que vivia uma aparente tranquilidade, típica de cidades
provincianas e pacatas, passou a conviver com um ambiente de tensão e medo constante.
O governo de Tenente- Coronel Terêncio Porto foi deposto 24 dias após o golpe de 1964,
mas o clima de insegurança e o medo, não tombou junto com ele, as repreensões e prisões
aos desafetos do regime continuaram ocorrendo no Amapá Território durante toda a
permanência do regime ditatorial no Brasil.

Referências

Amapá, edição de abril de 1964.


BRASIL (Capital Federal). Constituição dos Estados Unidos do Brasil(1937). Casa
Civil da Presidência da República. Arquivo Nacional. In: Biblioteca Digital da Câmara
dos Deputados. Disponível em: http://bd.camara.gov.br. Acesso em: 25 abr. 2014.
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. “Cidadania: Dilemas e perspectiva na
República brasileira”. Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 4, 1997, p.80-102.
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Censo Demográfico de 1960:
Rondônia, Roraima e Amapá. VII Recenseamento Geral do Brasil. Série
Regional. Vol. I, TOMO I, 1ª Parte, p. 227.
GONSALVES, Elfredo Távora. Folhas Soltas do Meu Alfarrábio: um livro para os
meus filhos. (Memória). Impressão Gráfica Papers Brasília, 2010, p. 72-73.
Folha do Povo, edição de 26 janeiro,1964.
____________, edição de 04 abril,1964.
MEDEIROS, Océlio de. Territórios Federais. Rio de Janeiro: Editora Nacional de
Direito Ltda, 1944.
_________________________ Administração Territorial (Comentários, subsídios e
novas leis). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1946.
PAZ JR., Adalberto Júnior Ferreira. Os minérios da floresta: sociedade e trabalho em uma
fronteira da mineração industrial amazônica. Dissertação de Mestrado. Campinas: Unicamp,
2011.
PENNAFORT, Hélio. Amapaisagens. Macapá, 1992.

ISBN: 978-85-62707-55-1
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Testemunho e esquecimento durante a transição brasileira: as denúncias de Inês


Etienne Romeu e suas repercussões (1981)

Mauro Eustáquio Costa TEIXEIRA


Doutorando em História pela UFOP, com bolsa CAPES/CNPq
mauroteixeirabh@gmail.com

Introdução
No contexto da chamada “transição democrática” brasileira (1979-1988)1, verifica-se
um embate entre duas formas opostas de se lidar com a violência política que ocorrera no
país desde 19642. De um lado, a ditadura, as forças armadas e boa parte da sociedade
civil, ancoradas na lei de anistia de 19793, pregavam que era o momento de se esquecer
aqueles episódios e “recomeçar tudo como se nada houvera antes”4. De outro, militantes de
esquerda e organizações de defesa dos direitos humanos lutavam pela apuração das
responsabilidades pelas torturas e execuções sumárias, como forma de inibir a
possibilidade de repetição daquelas práticas.
As denúncias de Inês Etienne Romeu, formuladas em 1981, bem como as reações
que se verificaram contra elas, ajudam-nos a compreender os embates políticos do início da
transição brasileira. Nesta comunicação, procuraremos entender aquele embate a partir das
noções de testemunho e de esquecimento, conforme formuladas por Paul Ricoeur.

1 – O testemunho de Inês Etienne

Inês Etienne Romeu, guerrilheira da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), foi


presa em 1971, aos 29 anos, em São Paulo, e logo entregue ao Centro de Informações do
Exército (CIE), que mantinha clandestinamente uma casa na cidade de Petrópolis (RJ),
para fins de interrogatório sob tortura e execução de prisioneiros políticos. Naquele local,
ficou encarcerada e foi torturada durante 96 dias. Tornou-se a única sobrevivente da
chamada “Casa da Morte” por ter conseguido convencer a seus captores de que
colaboraria com eles, atuando como agente infiltrada em sua organização, e também por
ter frustrado o que acreditava ser um planejamento para matá-la. Após ter seu
encarceramento legalizado, em novembro daquele ano, foi condenada à prisão perpétua
por sua participação no sequestro do cônsul suíço no Rio de Janeiro, ocorrido em

1 Acompanhamos, aqui, a periodização proposta por Daniel Aarão Reis Filho (2014, pp. 125-8).
2 Referimo-nos, principalmente, aos movimentos guerrilheiros de esquerda e à brutal repressão
desencadeada contra eles. Ver Gorender, 2003.
3 Sobre a anistia, ver Greco (2005) e Fico (2011).
4 “Respeito à anistia”. Folha de S. Paulo, 11 de fevereiro de 1981, p. 2.

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dezembro de 1970. Sua pena foi mais tarde revista, à luz da nova Lei de Segurança
Nacional, sendo reduzida para oito anos. Foi libertada em agosto de 19795.
No período entre o término de seu sequestro e a formalização de sua prisão, Inês esteve
internada em uma casa de saúde de Belo Horizonte. Ali, escreveu um relato denunciando o
sequestro e as torturas que havia sofrido, bem como as ameaças de morte que continuava
a sofrer, para ser anexado a seu processo judicial. Neste relato, advertia que um
depoimento contendo nomes e feitos de seus torturadores havia sido encaminhado a
diversas pessoas no Brasil e no exterior. Fazia isso por temer ser objeto de “queima de
arquivo” por parte de seus captores, mas também “para que se esclareçam fatos obscuros
e se registre na história do Brasil os nomes e as patentes dos torturadores que se
escondem sob a proteção do governo”6.
Quase dez anos depois, o depoimento prometido em 1971 foi publicado na íntegra por O
Pasquim7. É este relato que pretendemos tratar em sua dimensão testemunhal. A
publicação do texto nos remete a algumas considerações de Paul Ricoeur, que chama a
atenção para o “momento do testemunho recebido por outrem; este é o momento no qual
as coisas ditas oscilam do campo da oralidade para o da escrita, que a história não mais
deixará8.” Ao ser impresso nas páginas do semanário carioca, o “Relatório Inês” ganhava
um potencial que ultrapassava em muito o campo da mera denúncia, chegando a colocar
em questão o próprio modelo político da transição, como demonstraremos.
Para Ricoeur, a operação testemunhal se desdobra em seis componentes. Este esquema
analítico se revela útil para que melhor compreendamos a amplitude do impacto do
depoimento de Inês.
O testemunho, em primeiro lugar, narra uma realidade, uma coisa vivida, distinta da
ficção; este primeiro componente nos leva ao segundo: o que atesta esta veracidade é
justamente a presença do depoente no cenário daquilo que ele narra: “Deste acoplamento
[entre a asserção da realidade e a autodesignação da testemunha] procede a fórmula típica
do testemunho: eu estava lá. O que se atesta é indivisamente a realidade da coisa passada
e a presença e a presença do narrador nos locais da ocorrência.9”.
No caso em questão, o depoimento de Inês é estritamente limitado ao que ela viveu
e presenciou entre sua captura e a formalização de sua condição de presa política. Outro
aspecto que nos chama à atenção é que não há, no depoimento, os “enunciados

5 “Ex-presa política narra como escapou da morte”. Folha de S. Paulo, 09 de fevereiro de 1981, p. 5;
ROMEU, 1981, p. 26.
6 Processo “Brasil Nunca Mais” nº 047, fl. 594. Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/.
7 ROMEU, 1981.
8 RICOEUR, 2007, p. 155.
9 Ibidem, p. 172.

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introdutórios” que, em muitos testemunhos, “ligam o testemunho pontual a toda a história de


uma vida”10. Inês não “contextualiza” sua experiência porque, supomos, esta parecia, a ela
própria, desprovida de contexto. A condição de sequestrada, torturada, incomunicável e à
espera da execução se afigura como pura excepcionalidade, o que ajuda a entender a
ausência de “antes” e “depois” em seu relato. Além disso, Inês mantém um tom direto,
minucioso na medida do necessário, com poucos adjetivos.
O texto não faz considerações de ordem político-ideológica. A palavra “ditadura”, por
exemplo, não aparece sequer uma vez. Sentimentos e opiniões se fazem ausentes, assim
como especulações sobre os motivos de ser tratada com tamanha brutalidade. Trata-se de
um testemunho em estado puro, rigorosamente limitado às ações de seus captores e dela
própria. Nada que ela não tenha visto ou ouvido é relatado.
Um terceiro componente da operação testemunhal, para Ricoeur, seria a “situação dialogal.
É diante de alguém que a testemunha atesta a realidade de uma cena à qual diz ter
assistido, eventualmente como ator ou como vítima, mas, no momento do testemunho, na
posição de um terceiro em relação a todos os protagonistas da ação.11” Esta situação
dialogal se cumpriu, no caso de Inês, através da atuação da imprensa. Antes da publicação
do relato no Pasquim, Inês esteve em Petrópolis, acompanhada de repórteres e advogados,
identificou a casa onde ficara aprisionada e seu proprietário, em uma ação amplamente
coberta pela imprensa12. Em linhas gerais, estas matérias não questionavam a veracidade
das denúncias da ex-presa política. Mesmo os editoriais que censuravam sua atitude, aos
quais daremos atenção detalhada na última seção, não negavam a autenticidade do relato.
Isto nos leva ao quarto componente levantado por Ricoeur, que é a aceitação, por
parte da testemunha, da controvérsia no espaço público: “A testemunha é então a pessoa
que aceita ser convocada e responder a um chamado eventualmente contraditório.13” No
caso em escrutínio, Inês não se furtou ao debate: ao contrário, deu início a ele ao
confrontar, durante a ida a Petrópolis, o proprietário do da “Casa da Morte”, Mário Lodders,
que acabou reconhecendo tê-lo emprestado, em 1971, “para atividades de um grupo
paramilitar”14. Dois dias depois, Inês esteve no consultório de Amílcar Lobo, que, na
condição de médico do Exército, havia atendido a ela e a outros presos na “Casa da Morte”.

10 Ibidem, p. 173.
11 Ibidem, p. 173.
12 A título de exemplo, ver “A casa dos horrores e o médico da tortura”. IstoÉ, 11 de fevereiro de
1981 (disponível em: http://ditacasa.wordpress.com/about/ - acesso em 24/08/2013); “Tortura era feita
em Petrópolis”. Folha de S. Paulo, 04 de fevereiro de 1981, p. 4; “Presos políticos apontam médico
que os atendia”. Jornal do Brasil, 07 de fevereiro de 1981, p. 5; “Elas lembravam”. Veja, nº 649, 11 de
fevereiro de 1981, pp. 20-1.
13 RICOEUR, 2007, p. 174.
14 “Tortura era feita em Petrópolis”. Folha de S. Paulo, 04 de fevereiro de 1981, p. 7.

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Lobo também confirmou, em linhas gerais, o relato de ex-presa política15. Ela ainda
concedeu depoimento formal à Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados
do Brasil e ajuizou ação declaratória contra Lodders e os demais envolvidos em seu
sequestro16.
Para Ricoeur, o quinto componente da operação testemunhal é a disposição do
depoente para reiterar seu relato: “A testemunha confiável é aquela que pode manter o seu
testemunho no tempo. Essa manutenção aproxima o testemunho da promessa, mais
precisamente da promessa anterior a todas as promessas, a de manter sua promessa, de
manter a palavra.17” No caso de Inês, esta reiteração se fez várias vezes ao longo dos anos
1980, e mesmo nas décadas seguintes. Foi o que fez, por exemplo, ao ser entrevistada
pela Folha de S. Paulo por ocasião da comemoração dos vinte anos da anistia, em 199918.
Mais recentemente, em 2012, anunciou sua disposição em colaborar com a Comissão
Nacional da Verdade, criada para apurar as violações de direitos humanos cometidas pela
ditadura19.
Por fim, a operação testemunhal possui, para Ricoeur, um sexto componente, que é
a institucionalização: “O que faz a instituição é inicialmente a estabilidade do testemunho
pronto a ser reiterado, em seguida a contribuição da confiabilidade de cada testemunho à
segurança do vínculo social na medida em que este repousa na confiança na palavra de
outrem.20” No caso em questão, os testemunhos de vítimas de atrocidades políticas têm o
potencial de reforçar os vínculos sociais, na medida em que são o primeiro passo que para
que este tipo de experiência possa superar as pressões pelo esquecimento e acessar a
história “oficial”.
Ao firmar-se como um depoimento verídico, fruto de um testemunho ocular, respaldado
pelos receptores, debatido no espaço público e reiterado em diversos momentos, o relato
de Inês alcançou esta institucionalização, transformando-se em evidência de aspectos da
repressão que, embora conhecidos, poderiam, sem ele, ter permanecido carentes de
comprovação.
Além disso, o relatório punha em xeque a imagem de heroísmo com a qual o regime
buscava envolver os agentes da repressão. A tentativa de construção desta imagem pode

15 “Psiquiatra afirma que trabalhou em casa de tortura”. Folha de S. Paulo, 06 de fevereiro de 1981,
p. 6.
16 “Advogados respondem”. O Globo, 11 de abril de 1981, p. 4.
17 RICOEUR, 2007, p. 174.
18 “Na prisão, historiadora tentou quatro vezes cometer suicídio”. Folha de S. Paulo, 28 de agosto de
1999, p. 8.
19 “Única sobrevivente da Casa da Morte relata tortura, estupro e humilhação”. O Globo, 24 de junho
de 2012, p. 4.
20 RICOEUR, 2007, p. 174.

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ser demonstrada pelo discurso do General Walter Pires de Carvalho ao assumir o Ministério
do Exército, cerca de dois anos antes, quando já havia algumas denúncias de torturas
circulando:

Ao receber o Ministério do Exército do General Fernando Belfort Bethlem, numa clara alusão ao noticiário sobre torturas em dependências militares, o
general Valter [sic] Pires de Carvalho de Albuquerque afirmou: “Estaremos sempre solidários com aqueles que, na hora da agressão e da adversidade,

cumpriram o duro dever de se oporem a agitadores e terroristas, de armas na mão, para que a Nação não fosse levada à anarquia.”21

A realidade que aparece nos depoimentos de Inês é bem diferente da que a retórica do
ministro buscava construir. Ela identifica os responsáveis pelas atrocidades que sofreu em
dois níveis. O primeiro deles é o institucional: em mais de um momento, fica bastante claro
que sua captura fazia parte de uma política de Estado, não podendo ser creditada a
“excessos” ou “abusos”, explicações então correntes para a brutalidade da repressão. O
segundo é pessoal:
dos vinte indivíduos que estiveram na casa durante sua permanência ali, oito estão
identificados no relatório, havendo ainda elementos para a identificação de vários outros.
A revelação da existência de locais clandestinos de tortura evidenciava a atuação da
comunidade de segurança ao arrepio da lei. Embora não fosse a primeira vez que se
denunciava a existência deste tipo de “aparelho” clandestino22, a autoria da denúncia cabia
agora a uma testemunha ocular, sobrevivente de um daqueles locais e capaz de dar
detalhes irrefutáveis, a tal ponto que seu depoimento foi corroborado, como já colocamos,
pelo dono da casa e pelo médico que a atendeu dentro dela. Este nível de denúncia gerava
perturbação nas Forças Armadas em virtude da exposição a um público amplo de
características indefensáveis na atuação dos órgãos de segurança.
Porém, não eram só os meios militares que ficariam melindrados com a publicação do
depoimento de Inês. A identificação de Mário Lodders expunha a participação de setores
civis no apoio à repressão, o que danificava o mito, repetido até hoje, de uma ditadura
univocamente militar que exerceria um poder incontrastável contra uma sociedade indefesa.
Além disso, ao perturbar o arranjo de memória que o regime buscava forçar desde a
promulgação da anistia, punha em guarda a grande imprensa e os políticos civis que
funcionavam como garantias da transição conservadora.

21 “Valter Pires se solidariza com os órgãos de segurança”. Folha de S. Paulo,


16 de março de 1979, p. 7; “Começa a quinta etapa”. Veja, 21 de março de 1979, p. 19.
22 Sobre o “Sítio 31 de Março”, em São Paulo, ver FON, 1979, p. 62; sobre a
“Casa de São Conrado”, no Rio de Janeiro, ver “Na pista dos desaparecidos, surge uma casa de
torturas clandestinas”. Movimento, n.º 172, 16 de outubro de 1978, p. 16.

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3 – Reagem os militares

As denúncias de Inês geraram algo próximo a uma crise institucional. Na mesma semana
em que O Pasquim trazia o depoimento, os três ministros militares, em duras notas oficiais,
reagiram à publicação, a começar por Walter Pires, que não se furtou à promessa feita em
1979. Após exaltar a “insuperável dignidade” da repressão, colocava:

O Exército repele energicamente, portanto, as malévolas insinuações suscitadas por contumazes sublevadores da ordem, que procuram agora lançar à

execração pública aqueles que se bateram, em verdadeiras operações de guerra, pela preservação da paz e da tranquilidade da família brasileira.23

A narrativa da ex-presa política precisava ser repelida justamente porque, envolvendo não
só a tortura, mas também sequestro, estupro e execuções, comprometia a legitimidade das
instituições castrenses para conduzir o processo de democratização.
Na nota da força terrestre, pode-se observar uma disposição de se garantir um
esquecimento seletivo do passado, em função das conveniências políticas do presente.
Para Ricoeur, o esquecimento aparece, nesta modalidade, como manipulação da memória:
“O recurso à narrativa torna-se assim a armadilha, quando potências superiores passam a
direcionar a composição da intriga e impõem uma narrativa canônica por meio de
intimidação ou de sedução, de medo ou de lisonja.”24
Um movimento convergente, porém distinto, pode ser observado na nota oficial divulgada
pelo Ministro da Aeronáutica, brigadeiro Délio Jardim de Matos. Em primeiro lugar, tratava
de deixar bem claro seu entendimento acerca da lei de anistia de 1979: "Se terroristas
anistiados podem hoje, com a tranquilidade de homens livres, reescrever a história
dos vencidos, é porque aos vencedores mais importava o reencontro histórico que
hoje vivemos que a lembrança estéril e sem futuro"25
Note-se que a tranquilidade dos vencidos – os guerrilheiros, ou os “terroristas anistiados” –
se devia a uma aparente magnanimidade dos vencedores, a quem importava – é
fundamental o uso do verbo no passado – mais a reconciliação do que uma lembrança que,
para o ministro, nada poderia trazer de bom.
Importava sugere que talvez, no presente da nota (1981), esta hierarquia de importância
pudesse ter se alterado, de acordo com o comportamento da esquerda. A fala do Brigadeiro
contém um aviso: a "tranquilidade de homens livres" – a anistia – e o "reencontro histórico"
– a abertura – não se faziam de forma incondicional. Dependiam, entre outros fatores, da

23 “Exército: deturpações”. O Estado de S. Paulo, 11 de fevereiro de 1981, p. 8.


24 RICOEUR, 2007, p. 455.
25 “Délio apóia abertura e repele revanche”. O Estado de S. Paulo, 12 de
fevereiro de 1981, p. 12.

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prevalência da visão de anistia do regime, centrada em fatores de esquecimento,


conciliação e impunidade, sobre a visão dos movimentos que se opunham a ele, embasada
em noções de verdade, memória e reparação26: “A anistia deve representar um
esquecimento total”27.
A reação dos ministros militares às denúncias de Inês são, em nosso entendimento, uma
clara manifestação dos limites do processo de transição política. A impunidade dos agentes
do aparelho repressivo era brandida como condição inquestionável para a lenta retomada
do Estado de Direito, que então se vivia. E, no sentido de se garantir esta impunidade,
impunha-se um controle do manejo do passado violento.
Assim, a anistia aos torturadores, peça-chave da transição conservadora, afirmava-se como
iniciativa de esquecimento – o que ficava explícito na fala do brigadeiro Délio, citada acima.
Afinal, como demonstrava a repercussão do “Relatório Inês”, a memória dos sobreviventes
continha um considerável potencial “subversivo”.

3 – Reagem os civis

Esse entendimento da anistia como esquecimento, conforme frisamos na seção 1, não era
apenas das Forças Armadas. Por isso, a reação às denúncias de Inês não esteve apenas
nas instituições militares, mas também em setores expressivos da sociedade, como se
evidencia em parte da grande imprensa. Ao noticiar o desagrado dos ministros militares
com aquela questão, Veja teceu suas próprias considerações a respeito:

Inês (...) participou de um grupo que cometeu crimes de sangue. A anistia, que tirou da cadeia os
vencidos,foi conseguida ao preço do esquecimento. (…)
É improvável que o país, depois de virar a página de horrores nos anos 70, deseje sua releitura, até
porque, na reprise, o filme é o mesmo.
28

A revista semanal da Editora Abril chegava mesmo a repetir, por outras palavras, a fala do
ministro da Aeronáutica, ao erguer o esquecimento ao status de condição de possibilidade
para a anistia. O texto de Veja continha um tom de ameaça, como se a insistência na
punição dos culpados acarretasse, automaticamente, um novo fechamento e a repetição
dos horrores: “na reprise, o filme é o mesmo”.
Por sua vez, a Folha de S. Paulo, em editorial, ia pelo mesmo caminho:

26 Ver GRECO, 2005, p. 90.


27 “Para Délio, a anistia não pode ser unilateral”. Folha de S. Paulo, 11 de
fevereiro de 1981, p. 5.
28 “Com o pé no freio”. Veja, 18 de fevereiro de 1981, p. 19. Itálicos nossos.

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Anistia é o esquecimento do passado, a borracha sobre o tempo, é recomeçar como se nada


houvera antes O caso Etienne reabriu uma ferida que a anistia, do ponto de vista político, apagou.
(...) Humanamente é impossível esquecer o passado; politicamente, é necessário esquecê-lo, se
queremos construir entre nós uma democracia sólida onde tais fatos jamais voltem a ocorrer.
29

Ambas as publicações afirmavam o esquecimento como condição necessária para que o


país se reconciliasse com a democracia e não voltasse a viver aquele período de
atrocidades.
A adoção deste discurso pelos principais órgãos de imprensa do país mostra que a visão
dos militares sobre a inconveniência da rememoração das violações de direitos humanos
não se encontrava isolada na caserna. Não só este setor da imprensa, como também
líderes políticos governistas e oposicionistas moderados ansiavam por aquele arquivamento
definitivo.30
Segundo O Estado de S. Paulo, o senador mineiro Tancredo Neves, um oposicionista
moderado, havia se mostrado preocupado com o registro daquilo que considerava “um
período negro da nossa história”. O senador temia que “grupos de pressão” (que ele não
identificava) pudessem “se valer do pretexto para investir contra as aberturas democráticas
em curso.”31
Por sua vez, o governador da Bahia, Antônio Carlos Magalhães, considerava que a reação
dos ministros militares às denúncias de Inês haviam sido “um serviço” prestado pelo
governo à oposição, e repetia, em termos menos elegantes, as ameaças do Brigadeiro
Délio.: “havia muita gente querendo ver se havia gasolina no tanque acendendo um fósforo.
Na semana passada [quando saíram as notas oficiais dos ministros], foram avisados de que
há gasolina. Melhor assim porque, se fossem ver, explodiam”32.
Pouco há a acrescentar ao que já foi dito acima acerca da construção de narrativas
canônicas adaptadas a conveniências políticas momentâneas. O que fazem a imprensa e
as lideranças civis, neste sentido, é uma reafirmação do que diziam os ministros castrenses
em suas notas oficiais. Porém, o lugar de onde parte a fala é outro. Para as Forças
Armadas, responsáveis pelas violações denunciadas por Inês e por tantos outros, tratava-
se de proteger-se de ações penais e de manter o status de tutoras do processo político-
institucional do país; para os políticos civis e os proprietários de órgãos de imprensa,

29 “Respeito à anistia”. Folha de S. Paulo, quarta-feira, 11 de fevereiro de 1981,


p. 2. Itálicos nossos.
30 “Com o pé no freio”. Veja, n.º 650, 18 de fevereiro de 1981, p. 19. São os
casos de Jarbas Passarinho, pelo governo, e Tancredo Neves, pela oposição.
31 “Tancredo adverte”. O Estado de S. Paulo, 10 de fevereiro de 1981, p. 10.
32 “Com o pé no freio”. Veja, n.º 650, 18 de fevereiro de 1981, p. 19.

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contudo, havia a opção de aderir ou não a esta “narrativa canônica” e ao projeto político ao
qual ela subjaz. A opção pela adesão nos parece, pelo descrito acima, evidente.
Ao tratar da construção deste tipo de narrativa, Ricoeur adverte que

Está em ação aqui uma forma ardilosa de esquecimento, resultante do desapossamento dos
atores sociais de seu poder originário de narrar a si mesmos. Mas esse desapossamento não
existe sem uma cumplicidade secreta, que faz do esquecimento um comportamento
semipassivo e semi-ativo, como se vê no esquecimento de fuga, expressão da má-fé, e sua
estratégia de evitação motivada por uma obscura vontade de não se informar, de não
investigar o mal cometido pelo meio que cerca o cidadão, em suma por um querer não
saber.
33

Esse esquecimento semi-ativo, esta obstinação por não saber, por esquecer o passado
violento, pode estar vinculada, como insinuam editorialistas e políticos, ao temor do retorno
do fechamento ditatorial. Entretanto, esta explicação não basta para entender a postura
destes agrupamentos. É preciso levar em consideração também a posição que uns e outros
pretendiam manter no regime que viria a se seguir à transição.
É bastante conhecido o apoio da maior parte da imprensa não só ao golpe de 1964, mas
também, de forma nuançada e não linear, ao regime autoritário que ele instalou. Na
verdade, alguns desses órgãos, como a Folha de S. Paulo34 e O Globo35 já reconheceram
publicamente este apoio, inclusive com laivos de autocrítica. Segundo nosso entendimento,
a transição pautada no esquecimento das atrocidades, se este fosse efetivado, era
altamente conveniente para a manutenção da credibilidade daqueles veículos em um futuro
Estado de Direito. Depoimentos como o de Inês perturbavam um arranjo que pretendia (e
conseguiu, em larga medida) manter um alto grau de controle da opinião pública por umas
poucas empresas de comunicação.
Quanto aos políticos civis acima citados, isso se faz ainda mais evidente: ou foram próceres
do próprio regime responsável por graves violações de direitos humanos, como Sarney,
Passarinho e Antônio Carlos Magalhães, ou foram líderes oposicionistas que patrocinavam
a transição calcada no silenciamento da violência, como era o caso de Tancredo Neves.
É justo lembrar que não houve unanimidade na defesa do esquecimento por parte de
lideranças parlamentares. Modesto da Silveira e Marcelo Cerqueira, deputados federais do
PMDB, acompanharam Inês desde o início de suas denúncias36. Ralph Biasi e Freitas

33 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento, p. 455.


34 PILAGALLO, 2011, p. 8.
35 “Apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro”. O Globo, 01 de setembro de
2013, p. 15.
36 “Tortura era feita em Petrópolis”. Folha de S. Paulo, 04 de fevereiro de 1981,
p. 7.

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Nobre, também peemedebistas, rebateram a acusação de revanchismo imputada a Inês e


outros depoentes, e defenderam a responsabilização dos torturadores37. Mas era pouco
para mudar a maré dominante da política brasileira em relação aos rumos da transição
amnésica.

Considerações Finais

As denúncias de Inês Etienne e a reação que elas provocaram fotografam um momento


especialmente tenso do embate entre o testemunho das vítimas de violações de direitos
humanos praticadas pela ditadura e a imposição do esquecimento por parte do Estado e de
elites a ele associadas. Um embate que permaneceu, viveu momentos diversos, ora
exposto na grande mídia, ora relegado a instâncias subterrâneas, mas que ainda hoje
acontece, explícita e implicitamente, no interior da sociedade brasileira.
O depoimento de Inês manteve, durante todo esse tempo, sua força enquanto testemunho.
Isso se materializa tanto na forma, na revelação bruta e detalhada do terror, quanto no
conteúdo informativo de suas memórias. Retomado em livros38 e matérias jornalísticas39, ele
continua desempenhando a função de trazer ao presente um passado doloroso e não
resolvido.
Conforme nos lembra Ricoeur, a tentativa de transmissão do passado guarda, no mínimo, a
positividade da “impugnação factual do negacionismo”. De fato, o “Relatório Inês” foi uma
peça fundamental para que as atrocidades cometidas pela ditadura não mais pudessem ser
simplesmente negadas, ao menos por quem esperasse um mínimo de credibilidade. A
experiência extrema, como diz Ricoeur, é intransmissível, mas “quem diz intransmissível,
não fala indizível.40”
Porém, as iniciativas no sentido da imposição do esquecimento também não deixaram de
se mostrar no período da transição e da “Nova República”. Em nossa visão, o
esquecimento forçado condena ao subterrâneo não só as “memórias concorrentes”, mas
também a possibilidade de se construir uma sociedade fundada em pilares diferentes do
autoritarismo, do esquecimento obrigatório e da violência de Estado. Não devemos nos
enganar: a violência no presente da sociedade brasileira – a tortura rotinizada nas
delegacias, as execuções sumárias de supostos marginais e mesmo os linchamentos

37 “Senador teme retrocesso político”. O Estado de S. Paulo, 12 de fevereiro de


1981, p. 12.
38 CHACEL, 2013, p. 20.
39 “O susto era sempre a morte”. O Globo, 24 de junho de 2012, p. 3.
40 RICOEUR, 2007, p. 459.

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promovidos por particulares – guarda uma relação íntima com nossa disposição de silenciar
a violência política do passado.

Referências

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2014.

CARVALHO, Luiz Maaklouf. Mulheres que foram à luta armada. Rio de Janeiro: Globo,
1993

CHACEL, Cristina. Seu amigo esteve aqui. A história do desaparecido político Carlos
Alberto Soares de Freitas, assassinado na Casa da Morte. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

FICO, Carlos. A negociação parlamentar da anistia de 1979 e o chamado “perdão aos


torturadores”. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição / Ministério da Justiça. – N.
4. (jul. / dez. 2010). – Brasília : Ministério da Justiça , 2011, pp. 318-333.
FON, Antônio Carlos. “Descendo aos porões”. Veja, nº 546, 21 de fevereiro de 1979, pp.
60-8.
GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. São Paulo: Ática, 2003.

GRECO, Heloísa Bizoca. A dimensão trágica da luta pela anistia. In: Cadernos da Escola
do Legislativo. Belo Horizonte, v. 8, n. 13, jan/dez de 2005, pp. 85-111.

PILAGALLO, Oscar. “Os 90 anos da Folha em 9 atos”. Folha de S. Paulo, 19 de fevereiro


de 2011, cad. especial, p. 8

ROMEU, Inês Etienne. “Relatório Inês: dossiê da tortura”. O Pasquim, nº 608, 12 a 18 de


fevereiro de 1981, pp. 4-5 e 26.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007.

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O humor gráfico, um instrumento de resistência cultural e política à ditadura?


Reflexões sobre a ação dos chargistas do jornal Pasquim,
frente à censura do regime autoritário brasileiro

Mélanie TOULHOAT
Doutoranda em História pela Universidade de Paris 3/Universidade de São Paulo.
melanie.toulhoat@wanadoo.fr

Algumas considerações iniciais

Entre os atores das oposições políticas e culturais ao regime militar brasileiro, a imprensa
independente, dita alternativa, destacou-se como um núcleo de crítica do autoritarismo : “[...]
os jornais alternativos cobravam com veemência a restauração da democracia e do respeito
aos direitos humanos e faziam a crítica do modelo econômico.” (KUCINSKI, 1991: p.5). O
jornais Pasquim ou Pif-Paf, por exemplo, são considerados ainda hoje como alguns
símbolos de resistência ao regime militar. Essas visões elogiosas são frequentemente
alimentadas pelas declarações e depoimentos de varios ex-jornalistas ou pela publicação de
antologias e livros autobiográficos.

Cabe lembrar as dificuldades e sutilezas de definição da noção chave no presente trabalho :


a resistência. Diversa, múltipla e dependendo muito dos sistemas de representações
vigentes, ela é subjetiva. Mais ainda quando o trabalho histórico se alimenta de depoimentos
pessoais, numa perspectiva de história oral: “Affirmer les droits de l'histoire, c'est-à-dire
d'une démarche scientifique distanciée et argumentée en vue d'une construction raisonnée,
n'aboutit nullement à récuser l'expérience vécue, mais à la situer à sa place (BEDARIDA,
1995: p.50). Devidamente à importância do entendimento das representações e das
subjetividades atuando na esfera das convicções e dos engajamentos políticos, os
depoimentos e fontes orais podem parecer fundamentais na condução de nossa pesquisa.
Entre 2011 e 2013, os cartunistas e jornalistas entrevistados reivindicam formas e
conceições de resistência ao regime distintas, alimentadas por engajamentos pessoais,
valores, formações e vontades particulares. As tentativas de síntese e sistematização
devem, então, ser desenvolvidas com os maiores cuidados, e com a “critique fondamentale
du témoignage” desejada por Jean-Pierre Vernant.

O qualificativo “alternativa” define uma postura de enfrentamento com um segundo modelo,


supostamente criticado e recusado : o outro (alter). Esse posicionamento pode ser analisado
no âmbito de um contexto de apoio majoritário da grande imprensa ao regime militar, pois
“decerto, toda a grande mídia (salvo Última Hora) apoiou a intervenção militar, contribuindo

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para configurar o notável apoio civil conferido ao Golpe de 1964.” (PATTO SA MOTTA,
2013: p.63). O historiador francés François Bédarida, numa tentativa de aplicação da noção
weberiana de “idéaltype” à analise da resistência francesa durante a ocupação nazista,
mencionava esse primeiro elemento fundamental, o aspecto de recusa voluntária e
assumida de uma postura de colaboração e apoio ao regime : “Au point de départ, on trouve
un geste de base : dire non. Un non symbolique à la soumission et à l’asservissement. Un
non qui témoigne d’une volonté de principe. Là est l’essence de la résistance.” (BEDARIDA,
1995 : p.47).

Caraterísticas da resistência e representações do jornal Pasquim

Destacaremos no presente trabalho algumas caraterísticas da ação dos desenhistas


no jornal Pasquim durante o regime militar brasileiro, seguindo um modelo de análise
estabelecido pelo historiador Harry Roderick Kedward e construído a partir de estudos de
movimentos de resistência rural e campesina em áreas geográficas e contextos histórico-
sociais diversos. Participante do colóquio “Mémoire et Histoire : la Résistance” organizado
em Toulouse (França) em 1993, Kedward pretendia propor à análise da resistência francesa
um modelo que retomaremos e do qual questionaremos a eficiência como ferramenta
conceitual. A partir de entrevistas de chargistas e de apontamentos teóricos sobre a
imprensa alternativa, o poder das imagens e o papel do próprio Pasquim, analisaremos a
pertinência dos quatro pontos definidos por Kedward : a “consciência de resistência”, a
“herança de um sistema de valores”, a “transmissão” e a “inversão”. Esse tentativa de
criação de um modelo de análise da resistência francesa –tema central do livro Mémoire et
Histoire- nos pareçeu pertinente no âmbito de uma reflexão sobre as formas de resistência
permitidas pelos usos do humor gráfico.

O primeiro aspecto relevante sería a existência de uma “conscience de résistance”,


“à la fois une conséquence et une condition préalable des actes de résistance” (KEDWARD,
1995: p.113). Kedward insiste no necessário trabalho de entendimento da médida em que
os atores de um determinado movimento de resistência são conscientes da própria ação :

Dans la mesure où je tente de comprendre la résistance d’êtres sociaux


rationnels, je ne puis que tenir compte de leur conscience, de la signification
dont ils revêtent leurs actes. Ce sont les symboles, les normes, les formes
idéologiques qu’ils créent qui constituent l’arrière-plan indispensable de leur
comportement. Aussi fragmentaire, aussi imparfaite que soit leur
compréhension de la situation dans laquelle ils se trouvent, ils sont dotés

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d’intentions, de valeurs et d’une résolution qui conditionnent leurs actes.


(KEDWARD, 1995 : p.113)

Essa reflexão é de flagrante relevância no âmbito de nosso trabalho : torna-se indispensável


questionar os símbolos, as normas, os sistemas de representação e pensamento que
interferem na formulação do depoimento dos entrevistados. Essa consciência da ação
sendo feita sobressai claramente nos depoimentos dos cartunistas e ela parece tem
ligações firmes com o humor gráfico em si, qualquer que seja o contexto. O cartunista Nani,
que começou a mandar desenhos ao Pasquim a partir de 1972 e chegou ao Rio de Janeiro
em 1973, insiste sobre esse aspecto reivindicado e consciente que seria inerente à natureza
do humor gráfico :

Não existe humor a favor. O humor sempre tem que ser contra. O próprio
Freud falava uma coisa do tipo “o humor não se resigna, ele enfrenta”. Ele
desafia. O humor gráfico tem que ser sempre desafiante, nunca se resigna.
[...] O caricaturista nasce com um pouco dessa verve e esse espírito de
denúncia e oposição. [...] Uma charge “a favor” perde o caráter resistente,
.
vira uma cartilha institucional, não é mais uma charge (NANI, 2013).

Nesse caso, o desenhista consegue justificar o próprio engajamento político com a


necessária “carga” contestatária que o humor teria de forma geral e que, segundo ele, tem
que ser exercitada pelos desenhistas. Aliás, poderíamos questionar essa consciência de
resistência na escala do grupo formado pelos integrantes da redação. Sendo um elemento
flexível construído com a acumulação de experiências, essa consciência poderia ser
atribuída a um conjunto de pessoas que tinham trabalhado em outras publicações, cujos
fracassos deixaram clara a necessidade de criar um novo jornal de humor:

Para os humoristas ficou demostrada, [...] a necessidade de uma publicação


própria, independente, a ideia de voltar a publicar uma revista, como Pif-Paf,
só de humoristas, uma revista porta-voz de todos os humoristas brasileiros.
Os veteranos precisavam de espaços mais livres; para a nova geração
tratava-se de conseguir aparecer [...]. (KUCINSKI, 1991: p.106).

É justamente a existência de um ponto de fuga juntando as individualidades e a ação


coletiva do núcleo básico de jornalistas, que nos levou a questionar o segundo ponto
definido por Kedward : a possível compartilha de um “héritage de valeurs” (KEDWARD,
1995: p.114). Mais problemático que o primeiro, ele remete a uma suposta filiação em
comum da cual emergiriam consequentemente certos valores atuando na ação como

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justificativas, motivações e referências. A composição heterogênea da redação do Pasquim


evoluiu no tempo : coexistiram perfis e posicionamentos políticos diferentes, assim como
oposições relacionadas à forma de gestão e de administração do jornal. Entretanto, não
pode-se negar a existência de convicções, de representações e referências compartilhadas.
Ricky Goodwin, ex-jornalista e cronista musical, interpreta com seu próprio campo lexical o
momento da criação da publicação como o do encontro desses percursos, experiências,
carreiras e valores próprios a cada um dos integrantes : “Era como se tivesse vários
músicos de rock conhecidos juntando-se para fazer esse supergrupo, levando suas
experiências, suas ideias, suas origens, suas crenças, seus caminhos...” (GOODWIN,
2011). Segundo Bernardo Kucinski, essa análise poderia ser estendida ao conjunto de
jornalistas e desenhistas da imprensa alternativa, que “compartilhavam, em grande parte,
um mesmo imaginário social, ou seja, um mesmo conjunto de crenças, significações e
desejos, alguns conscientes e até expressos na forma de uma ideologia, outros ocultos, na
forma de um inconsciente coletivo.” (KUCINSKI, 1991: p.7).

Trataria se então do encontro de valores diferentes e não de uma herança de valores.


Entretanto, aparecem nos discursos e nas produções gráficas os rasgos e marcas de uma
inserção do jornal na linguagem do humor gráfico brasileiro iniciada a partir do siglo XIX,
atestando de referências em comum e da existência de alguns valores compartilhados.
Poderíamos afirmar que, em vez de uma herança de valores, trataria se de um consenso e
uma vontade de lidar com as divergências, num objetivo comum compartilhado.

O terceiro elemento desenvolvido por Kedward nos resultou particularmente


importante, quando aplicado ao caso dos chargistas e jornalistas. Trata-se da necessária
“transmission” : “Dans les agents professionnels de la transmission, dans la France de 1940-
1942, étaient compris les journalistes, les éducateurs à tous les niveaux de l’enseignement,
les pasteurs, prêtres et prêcheurs de toutes sortes, les écrivains, les poètes, et ainsi de
suite.” (KEDWARD, 1995: p.114). Os chargistas do Pasquim faziam parte dos agentes de
transmissão e de difusão dos movimentos de oposição contra a ditadura e ajudaram na
divulgação das grandes campanhas das esquerdas, baseando-se no forte poder
comunicativo das imagens. O humor gráfico, desenvolvido como um instrumento das lutas
ideológicas e políticas conduzidas pelo jornal, se articula em várias formas e manifestações
que, além de apresentar semelhanças no discurso veiculado, possuem especifidades
enquanto ferramentas dessa transmissão. Essa “atividade discursiva” (PETRINI, 2012: p.44)
das diferentes formas de humor gráfico, descrita e analisada pelos própios cartunistas
conscientes do seu poder comunicativo e de transmissão, é indissociável de um ator
fundamental na lógica de resistência, o público : “As pessoas entendem um desenho. Você

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lê primeiro o manchete, depois as noticias, o editorial e emfim vem a charge. De repente, a


charge é uma leitura mais fácil do que tudo […]. A charge tem esse poder de síntese e ao
mesmo tempo é opinativa.” (NANI, 2013). O chargista Nani achou útil, no começo da
entrevista, relembrar as definições e especificidades de diferentes formas de humor gráfico -
os canais da transmissão :

Temos o costume de definir a caricatura como o retrato de uma pessoa


deformada. [...] A charge normalmente é feita em cima de um fato político:
isso abrange não somente a vida política mais clássica, os partidos
políticos, mas também os costumes, as situações no país, a maneira de agir
das pessoas dentro daquele contexto político. O cartum visa mais o humor,
as vezes é só uma ilustração gráfica feita para provocar o riso, a
curiosidade... [...] O cartum é aberto, um pouco mais geral mas as vezes
também contem comentários políticos. Então, o termo “cartunista” abrange
essa variedade: chargista, caricaturista, desenhista de quadrinhos... o
cartunista faz tudo (NANI, 2013).

Além das diferenças entre os tipos de desenhos, o entrevistado faz um amálgama


sintomático da conceição do próprio papel : um termo só - “cartunista”- permite resumir a
prática. A função de transmissão de mensagens predomina. Dentro das páginas do
Pasquim, os desenhistas utilizavam com muita frequência a charge para expressar-se e
“apresentar, de forma crítica, um personagem, fato ou acontecimento político atual que
esteja em evidência”, sendo ela “um recurso jornalístico com caráter crítico e temporal […]
inserida num determinado contexto de atualidades.” (PETRINI, 2012: p.58). Eles permitiram
às imagens publicadas adquirir um poder de significação, num contexto autoritário marcado
pela grande limitação das formas de representação oficialmente permitidas e aceitas. A
charge permitia contornar os limites impostos à liberdade de expressão, pensados para
quebrar os canais de transmissão de informações. “Os Hippies”, uma charge do Jaguar, é
um exemplo da operação de dessacralização permitida pelo uso da charge dentro de um
determinado contexto. Ela se referi a um episodio comum no cotidiano do regime militar : a
detenção de jovens pelas forças policias. As aparências físicas e as características são
exageradas e o texto se insere na imagem, fornecendo novas chaves de leitura. Um
personagem, de cabelos cumpridos, vestido largo e pés descalços, destaca-se: ele intervém
diretamente e pergunta ao delegado: “O senhor sabe com quem está falando?”. Esta charge
procura ressaltar a pressuposta ignorância de militares que confundem Deus –identificável
com a auréola- com a massa de militantes estudantes frequentemente presos, os “Hippies”.

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“Os Hippies”, Jaguar

Tentando definir a censura estabelecida pelo regime autoritário brasileiro, Beatriz Kushnir
questiona a violência incluída no “ato de coibir unilateralmente a expressão livre de ideias e
ações políticas, sonegar informações comprometedoras, calar tudo e todos que não
comungassem as posições das forças vencedoras.” (KUSHNIR, 2004: p.11). Se a censura
desenvolvida pelo regime militar escolheu como uns dos seus principais alvos as várias
publicações alternativas, era sem dúvida com o fim de dificultar a transmissão de
mensagens opostas às normas ideológicas, culturais ou estéticas estabelecidas.

Os jornalistas do Pasquim foram atingidos pela censura de muitas formas e tiveram


que aprender a desenvolver estratégias para contornar os cortes. Uma das técnicas
solicitadas, um processo intimamente ligado ao uso do humor gráfico, corresponde ao
quarto elemento descrito por Kedward no seu modelo de análise da resistência, “l’inversion”
:
[...] ce n’est pas forcément dans l’immédiat que cette sorte de transgression
renversera les structures du pouvoir ; mais elle « brise le contrôle
hégémonique qui rend les gens esclaves au niveau des idées », ce qui était

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précisément l’objectif de la presse clandestine (donc illégale) des deux


premières années de l’occupation […] La lutte pour la Résistance en 1940-
1942 fut, elle aussi, un combat de position, et notamment un combat pour
les « mots qui font vivre ». Vichy s’était approprié les mots –« des mots
innocents (Éluard »- qu’il fallait récupérer par une série d’actes symboliques
d’inversion.

Definindo os pilares de uma forma de resistência cultural ao autoritarismo, Kedward destaca


a necessária “recuperação” de símbolos como um dos objetivos principais dos movimentos
estudados. Questionando-se sobre as condições necessárias para que o riso e o humor se
tornassem instrumentos de resistência e protesto, o jornalista francês Pierre Rimbert,
redator chefe do Monde Diplomatique, fornecia no artigo “Eloge du rire sardonique. De
l’exutoire à la résistance” certas chaves de leitura muito parecidas aos conceitos colocados
por Kedward : “À quelles conditions le rire offre-t-il aux opprimés un instrument de
résistance ? S’il dispose d’une assise populaire ; si son éclat libère une vision globale du
monde ; si enfin il entretient avec l’ordre social un rapport de renversement » (RIMBERT,
2010 : p.28). Recuperação dos símbolos e inversão da ordem, dois elementos constitutivos
da resistência?

À escala do jornal Pasquim, a própria escolha do nome poderia ser considerada como o
primeiro passo desta inversão de valores, necessária condição à recuperação de sistemas
de representações e de significações. A palavra “pasquim” tinha, nos anos 60, uma
conotação negativa e definia um tipo de publicação sem análise nem qualidade no
tratamento da informação. Assumindo plenamente esse nome, os jornalistas operaram uma
recuperação do termo e acabaram se protegendo, escondendo o conteúdo publicado atrás
da marca “Pasquim”. Juan Sasturain, jornalista argentino que trabalhou na revista satírica
Humor –nascida em junho de 1978 no auge da ditadura militar dirigida por Jorge Rafael
Videla- propõe uma análise muito semelhante : “Es síntomatico el nombre de la publicación.
Es casí una salvedad, una marca que avisa, abre el paraguas sobre su contenido, se cura
en salud: esto es humor (no otra cosa).” Numa escala maior e segundo Kucinski, é na
própria existência de tal possibilidade de expressão num contexto repressivo, que existe a
primeira inversão permitindo a emergência de experiências coletivas :

“Nos períodos de maior depressão das esquerdas e dos intelectuais, cada


jornal funcionava como ponto de encontro espiritual, como pólo virtual de
agregação no ambiente hostil e desagregador da ditadura. […] a imprensa
alternativa pode até mesmo ser definida como uma forma de enfrentar a

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solidão, a atomização e o isolamento em ambiente autoritário.” (KUCINSKI,


1991: p.10)

Num nível mais interno, as próprias técnicas solicitadas pelos desenhistas do jornal
participavam desta inversão. Os chargistas mencionam nos depoimentos as possibilidades
pensadas para driblar a censura e inverter, de fato, as regras do “jogo”: “Aprendemos a
burlar as proibições, usávamos muitas metáforas [...]. O nosso jogo era driblar a censura,
fazíamos charge de militância para derrubar a ditadura.” Mobilizando um núcleo de
referências comum ao leitor, necessário à transmissão, e exagerando certas caraterísticas
físicas ou comportamentais, o desenhista é um perigo pelas pessoas que representa: elas
se tornam ridículas e consequentemente, risíveis. No desenho abaixo, o lápis irônico do
Millôr Fernandes representa os próprios censores se precipitando para ver as matérias,
como num espetáculo. A inversão satírica é visível na hipocrisia e na atitude dos censores
que manifestam um forte interesse pelas produções normalmente cortadas.

“Censura lendo o material do Pasquim”,


Millôr Fernandes

Para lograr seu maior objetivo -a crítica da política governamental- mesmo com as
limitações impostas à liberdade de criação e expressão, a redação do Pasquim atacava
principalmente os pontos nevrálgicos do poder, carregados de autoridade :

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Os jornalistas, geralmente, procuravam ridiculizar as campanhas do


governo, atacando seu ponto vital: os slogans e símbolos. Como estes
seriam empregados de forma a sintetizar as ideias defendidas pela
propaganda, bastava desmoralizar a síntese para comprometer as
concepções que ela representava. Para zombar de um dos slogans mais
discutidos, Ziraldo, em uma página completamente preta, escreveu em
letras brancas: 'Brasil, ame-o ou deixe-o'. Enquanto isso, entre a população,
corria uma resposta irônica: 'O último apague a luz do aeroporto'.

Algumas conclusões

Os próprios desenhistas, nos depoimentos realizados a posteriori assim como nas matérias
publicadas durante o regime militar, definem as diferentes formas de humor gráfico
solicitadas como os instrumentos ao serviço da expressão de uma postura de oposição ao
autoritarismo. Nosso proposito, além de propor uma reflexão sobre o trabalho dos
cartunistas no jornal Pasquim, foi também de questionar a universalidade de um esquema
de análise pensado em outro contexto.

Apoiando-se em pesquisas como a de Ranajit Guha, sobre as formas de resistência dos


trabalhadores rurais frente à ocupação colonial na Índia, ou a de James Scott sobre as
formas de resistências rurais na Malásia, e reconhecendo as diferencias entre as situações
apresentadas, o historiador Harry Roderick Kedward estabeleceu um modelo de análise
apoiado em quatro temas centrais que discutimos. O debate criado pelo estudo desses
temas, quando aplicados ao caso da imprensa alternativa durante o regime militar brasileiro,
nos pareceu muito pertinente. Tentamos, porém, entender o lugar dos depoimentos no seio
de um estudo das possibilidades de uso político de diferentes formas de humor gráfico e
dentro do cual as sensibilidades, as representações e as interpretações podem ter um
impacto relevante.

Bernardo Kucinski evocou no livro Jornalistas e revolucionários a existência de um


inconsciente coletivo ligando o conjunto de publicações alternativas ao contexto político no
qual elas se desenvolveram, explicando de fato um rápido desaparecimento. Entretanto, o
jornalista procurou definir una maior variedade de fatores (pressões econômicas, repressão,
divisões internas...) e abriu o caminho para uma reflexão sobre a própria noção de
resistência, talvez muito mais ampla e universal, intelectual e visionária, que a oposição a
determinado regime social, econômico ou político :

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“Nem a ditadura podia sozinha explicar a riqueza do fenômeno alternativo, a


diversidade de suas manifestações ou a tentativa, conforme Ana Maria
Nethol, de criar todo um “modelo ético-político”, com formas e estratégias
próprias, que se confrontaria com o sistema dominante muito mais no
campo permanente da tentativa de construção de uma contra hegemonia
ideológica do que no campo conjuntural da resistência à ditadura.”

Referências

- PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. SECRETARIA ESPECIAL DE


COMUNICAÇÃO SOCIAL. Imprensa alternativa: apogeu, queda e novos caminhos.
Cadernos da Comunicação : Série Memória, Rio de Janeiro, v.13, 2005;
- O Pasquim. Antologia. Volume I. 1969-1971. Rio de Janeiro: Ed. Desiderata, 2006;
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Pierre (Org.). Mémoire et Histoire : la Résistance. Toulouse: Éditions Privat, 1995. p.45-50;
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1988. São Paulo: Boitempo, 2004;
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O golpe em cena: história e memória no quintal do “Teatro CPC-UNE”

Natália Cristina BATISTA


Mestre em História e Culturas Políticas pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Professora do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais. Pesquisadora do Grupo História e Culturas Políticas e do Núcleo de História Oral
(NHO), ambos da UFMG.
nataliabarud@yahoo.com.br

O artigo em questão apresenta resultados parciais de um projeto em andamento


intitulado “Um homem de teatro “enduendado”: a trajetória política e artística de João das
Neves", realizado no âmbito do Núcleo de História Oral da UFMG. Nesse projeto, objetiva-
se construir uma História de Vida do sujeito, analisando os entrecruzamentos entre a
trajetória artística e política ao longo de seus oitenta anos completados em janeiro de 2014.

Diante desta vasta trajetória, optamos por analisar nesse ensaio um pequeno
fragmento de sua produção, que pudesse se explicitar a relação entre arte, política em sua
produção artística. O fragmento teatral ao qual nos referimos trata-se da peça curta O
quintal, escrita por João das Neves em 1977.

João das Neves nasceu no Rio de Janeiro, em 1934. Durante sua longa trajetória
profissional, o artista exerceu praticamente todas as funções do campo teatral: direção,
dramaturgia, cenografia, iluminação, atuação, produção, entre outras. No decorrer de sua
trajetória profissional, o autor esteve vinculado a importantes manifestações artísticas da
História do Teatro Brasileiro. Participou do CPC da UNE, foi integrante do Grupo Opinião,
além de dirigir diversas encenações em vários estados brasileiros. Atualmente tem feito
muitas direções relacionadas à temática da exploração do negro, como Besouro Cordão de
Ouro (2008), Galanga, Chico Rei (2011) e Zumbi (2012). Durante toda sua trajetória é
possível perceber que sua produção contempla a questão política, mas o refinamento
estético também pode ser notado. Entendemos que seus espetáculos visavam tanto à
questão estética, quanto o engajamento político.

Um bom exemplo desse engajamento pode ser percebido na peça analisada nessa
comunicação. O texto teatral O quintal foi escrito em 1977 e publicado no livro Feira
Brasileira de Opinião: a feira censurada1, editado pela Editora Global em 1978, compondo a
coleção Teatro Urgente. A peça foi solicitada por Ruth Escobar (coordenadora da coleção
Teatro Urgente) e integraria a montagem teatral Feira Brasileira de Opinião, proibida pela

1
O livro conta com uma apresentação de Ruth Escobar, um prefácio em forma de peça intitulado A
censura e a auto-censura ou o que não se pode dizer, não se deve dizer, escrito por Décio de
Almeida Prado, além de dez cenas curtas de proeminentes dramaturgos brasileiros: Carlos Henrique
Escobar, Carlos Queiroz Teles, Dias Gomes, Gianfrancesco Guarnieri, Jorge Andrade, Lauro César
Muniz, Leilah Assunção, Márcio Souza, Maria Adelaide Amaral, além do próprio João das Neves.

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censura antes da estreia. De acordo com Ruth Escobar, “A Feira Brasileira de Opinião
cumpre um papel importante no teatro no Brasil de hoje, acendendo a questão: “Quem
somos, a que vimos, quem é nosso povo?”. (ESCOBAR, 1978:7). Pensando em tais
perspectivas, todos os autores que participaram no projeto tentaram responder ou
problematizar os aspectos propostos pela produtora cultural.

Para discutir tais questões, João das Neves escreveu O quintal, peça de apenas um
ato que buscou discutir o golpe civil-militar de 1964 e a atuação de três importantes
entidades da esquerda nesse período: o Partido Comunista Brasileiro (PCB), a União
Nacional dos Estudantes (UNE) e o Centro Popular de Cultura (CPC). Nessa análise, nos
ateremos principalmente ao Centro Popular de Cultura, por entendermos que se trata de uns
dos principais eixos de compreensão da peça em questão.

O CPC atuou de 1961 a 1964 como movimento cultural, vinculado à esquerda


nacionalista e divulgado principalmente por artistas vinculados ao Partido Comunista
Brasileiro. Em seu curto período de atividades, realizou um trabalho que visava ajudar na
construção de uma autêntica cultura nacional, que permitisse a “conscientização” do povo
brasileiro. Os cepecistas acreditavam que somente através dessa nova consciência, o
homem poderia lutar por uma nova organização da sociedade no sentido de instituir uma
sociedade mais justa. Assim sendo, teatro, música, literatura, cinema e outros meios de
expressão artística foram mobilizados para realizar intervenções sociais, visando o
engajamento revolucionário dos espectadores. Os artistas e intelectuais que estiveram
envolvidos nos diversos projetos da entidade cepecista, passaram a atuar politicamente no
cenário brasileiro, propondo mudanças estéticas nos meios artísticos e no público a ser
alcançado.

Diante do conturbado contexto político do início da década de sessenta, o CPC


buscou produzir obras que dialogassem com esse momento histórico, lançando importantes
produtos culturais, que ainda hoje nos permitem construir o imaginário dos artistas
vinculados ao projeto. O Teatro CPC, com sede na UNE, seria a matéria física e
permanente da gênese iniciada em 1961. No entanto, no dia primeiro de abril de 1964, o
Teatro CPC, assim como a sede da UNE, foi invadido por grupos de direita, principalmente
lacerdistas, que saquearam e incendiaram o espaço. Importante lembrar que nos meses
anteriores ao golpe civil-militar entraram em confronto diversas forças políticas. Os
“apoiadores” do governo de João Goulart sofreram grandes represálias dos golpistas que
saíram vitoriosos com a intervenção militar.

Ainda que a imagem construída pela direita tentasse mostrar tais instituições (CPC,
UNE e PCB) como blocos homogêneos ideologicamente, é importante reiterar que se

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tratavam de instituições distintas e com diferentes polos de atuação, ainda que alguns
artistas e militantes de esquerda estivessem vinculados a mais de uma instituição.

No que tange o autor da peça analisada, essa associação é claramente perceptível,


sendo o autor militante do PCB e integrante do CPC da UNE. A cena teatral retrata o
momento em que a UNE foi invadida pelos grupos civis, no momento posterior ao golpe civil
militar de 1964. Como nos lembra a o autor:

No momento que a UNE foi invadida, na hora que a UNE foi invadida, nós
havíamos passado a noite anterior lá, a UNE estava cheia de gente,
inclusive alguns soldadinhos da aeronáutica estavam lá na UNE para nos
proteger (de grupos civis), porque o golpe estava em andamento, a gente
não sabia o que ia acontecer. A UNE estava cheia de gente, gente de
esquerda, intelectuais, jornalistas, gente de teatro, de cinema. O Teatro
CPC que ia ser inaugurado na semana seguinte, com uma peça do
Vianinha, chamada Os Azeredos Mais Os Benevides que estava sendo
dirigido pelo Nelson Xavier, eu fazia assistência de direção. (DAS NEVES.
2
Entrevista concedida à autora em 22/06/2013 ).

O autor se encontrava na sede da instituição e procurou registrar, através da obra,


suas impressões sobre o evento. Podemos perceber que se trata de uma obra ficcional, mas
dotada de reflexões autobiográficas e históricas. De 1961 a 1964, o CPC do Rio de Janeiro
realizava seus trabalhos na sede da UNE, no Flamengo. No mês de abril de 1964, o Centro
Popular de Cultura realizaria um sonho antigo: a inauguração do Teatro CPC-UNE, com
sede na mesmo instituição. A inauguração seria “comemorada” com a estreia da peça Os
Azeredos Mais Os Benevides”, de Vianinha. A espetáculo tinha a direção de Nelson Xavier e
assistência de direção de João das Neves. Sua estreia estava prevista para o dia 28 de abril
de 1964.

Um dado interessante sobre o Teatro do CPC-UNE é que durante todo o mês de


março foi feito no Jornal Correio da Manhã uma divulgação sobre o teatro que seria
inaugurado no mês seguinte. Em reportagem do jornal Correio da Manhã do dia 14/03/1964,
um comunicado assinado por Armando Costa, Carlos Miranda, Denoy de Oliveira, Edson
Batista, João das Neves, Nelson Xavier e Oduvaldo Vianna Filho trazia informações sobre a
nova empreitada. “Temos agora, então, a possibilidade de realizar um teatro de nível mais
alto, apoiado nas particularidades imediatas de nosso povo.[...] No Teatro CPC, além de

2
Para uma maior compreensão dos dias finais do CPC, encontramos informações valiosas no livro:
BARCELOS, Jalusa. CPC: uma História de Paixão e Consciência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1994. O livro conta com mais de trinta depoimentos sobre o CPC da UNE e permite-nos entender (a
partir de depoimentos pessoais) os poucos e intensos anos que o Centro Popular de Cultura exerceu
suas atividades.

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espetáculos teatrais, apresentaremos filmes de 16mm e programação de debates e cursos”.


(Correio da Manhã, 25/08/1965). Como exposto anteriormente, o teatro foi destruído antes
da estreia da peça de Vianinha, mas tal reflexão nos possibilita compreender a euforia
vivenciada pelos artistas e estudantes vinculados ao CPC até o desfecho da intervenção
militar. A própria divulgação do Teatro na imprensa, deixava evidentes os preparativos para
a inauguração do teatro, principalmente através da frase “Esperado há 1964 anos”.

Figura 1: Divulgação do Teatro CPC. In: Correio da Manhã. 22/03/1964.

Buscando fazer a articulação de múltiplas temáticas e diversas temporalidades,


trabalharemos nesta análise com diferentes suportes documentais: o texto teatral da peça
analisada, anúncios, reportagens, programas, entrevistas orais concedidas à autora e
entrevistas realizadas por terceiros, além da bibliografia referente ao assunto. Tentaremos
entrecruzar fontes orais e documentais, pressupostos teóricos, contexto histórico e diversos
marcos temporais, visando à construção de uma análise histórica. Diante desse
pressuposto, discutiremos a partir de Ricoeur, uma vez que ele afirma que “o tempo torna-se
humano na medida em que é articulado de um modo narrativo, é que a narrativa atinge seu
pleno significado quando se torna uma condição da existência temporal” (RICOEUR,1994:
85). É isso que tentaremos fazer no decorrer dessa explanação, construir uma narrativa
histórica que nos permita articular a experiência dos sujeitos no tempo como condição
básica para a escrita do conhecimento histórico.

Visando apreender a multiplicidade de entrecruzamentos e fontes, optou-se por


investigar múltiplas temporalidades: 1964, 1977 e 2013. Estes eixos temporais permitem
compreender o próprio texto, o contexto de produção e ressignificação da obra no fluir do
tempo. A primeira temporalidade proposta refere-se ao espaço-tempo contextual em que a
pela se passa. Interessa perceber as relações entre o movimento estudantil e o campo
artístico, as aproximações entre o PCB, UNE e CPC, a posição dessas instituições diante do
golpe civil-militar de 1964 e a desilusão da esquerda diante de uma grande modificação de

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seu horizonte de expectativa3. A segunda temporalidade trata do contexto de produção da


peça, no momento que o autor escreveu a cena curta, em 1977. Objetiva-se discutir o
revisionismo da esquerda nos anos setenta, a necessidade de encontrar os “responsáveis”
pelo golpe civil-militar de 1964, a contestação da tese do “vazio cultural”, assim como a
visão pessoal do autor sobre esses acontecimentos, que podem ,em alguma medida, ser
percebidos em seu texto. O terceiro marco temporal diz respeito ao contexto de produção
das entrevistas de história de vida, realizadas com João das Neves durante o ano de 2013.
Buscar-se-á compreender como João das Neves, enquanto sujeito histórico, refaz sua
narrativa do passado, a maneira como ele percebe sua produção artística, assim como o
próprio contexto ditatorial brasileiro.

A análise da peça será pautada na leitura analítica do texto dramatúrgico, assim


como na análise das relações entre a história e a ficção. No que tange aos aspectos
dramatúrgicos a peça tem uma estrutura bem simples: três cenas, quatro personagens e um
único cenário. Não existem rubricas indicando local ou data. A cena transcorre como se
estivesse fora de um espaço temporal definido. É importante lembrar que a atuação da
censura no contexto de produção da peça se fazia muito presente, dificultando assim, a vida
dos autores que quisessem se pronunciar sobre assuntos da história recente do país. Vale
lembrar que mesmo sem informações temporais diretamente relacionadas ao ano de 1964 a
peça foi proibida pela censura e encenada apenas no ano de 1981, durante o FILO.
(MARQUES, 2013). A única referência presente diz respeito ao cenário: um quintal que
permite perceber uma “boca de cena” ao fundo, dando ao expectador a suposição de que na
frente encontra-se um teatro.

A primeira cena inicia-se com dois pintores realizando o seu trabalho no espaço do
cenário. Em um breve diálogo discute-se a cor da tinta, a situação do transporte público e a
ingenuidade dos “meninos” da esquerda. No final da cena, eles saem pela frente do prédio.
No início da segunda cena, a rubrica indica que os pintores foram metralhados. Inicia-se o
diálogo entre dois jovens, onde Luiz pretende voltar para dentro do teatro e Clara tenta
dissuadi-lo. Ele volta para o teatro e é metralhado, Clara foge pela escada dos fundos. A
terceira cena é uma espécie de repetição da primeira, com a diferença que os pintores
percebem que podem ser metralhados e saem pelos fundos, com a ajuda de uma escada.

Com essa breve explanação podemos perceber que trata-se de uma cena muita
curta e com um enredo relativamente simples, se tivermos informações anteriores aos
eventos trabalhados nas cenas. Para um leitor que desconhece o contexto histórico que o

3
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2006. 311-315.

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autor pretendeu demonstrar, talvez a cena não seja tão facilmente assimilada. Feita essa
primeira localização dramatúrgica, nos interessa verticalizar a discussão das cenas.

Na primeira, os pintores demonstram terem ouvido boatos sobre a possibilidade de


intervenção militar, mas o autor deixa claro que as informações vieram através de diálogos
dispersos com os “meninos”. Mostra-se claramente no texto o distanciamento dos
trabalhadores das discussões políticas e também do movimento estudantil.

Inácio: Você viu o cara, aquele?

José: Que cara?

Inácio: Aquele velhote. Parece que já foi coisa. Agora tá reformado.


Garantiu que as tropas do centro e do sul estão com a legalidade.

José: Que legalidade?

Inácio: A legalidade aí, ora. A que os meninos estão falando.

José: Será que estão mesmo?

Inácio: Bom, pelo menos foi o que o velhote disse. Dizem que é informado.

José: E os meninos aí sabem de nada, Inácio.

Inácio: É, coitados. Não sabem mesmo. Mas pelo menos se esforçam,


fazem alguma coisa.

José: Pura barulheira. Coisa de filhinho de papai.

Inácio: Que isso José, os meninos são sinceros.

José: É, são. E daí? Não deixam de ser filhinhos de papai.

(DAS NEVES, 1978:114-115).

Inácio parece se sensibilizar mais com a atuação dos jovens, indicando inclusive que
o “velhote” parece ser bem informado e os “meninos” são sinceros. De acordo com as
entrevistas realizadas com João das Neves podemos sugerir que o “velhote” mencionado no
texto, refere-se ao historiador Nelson Werneck Sodré, presença constante nos últimos
momentos vivenciados na sede da UNE e um dos grandes defensores da possibilidade de
reação da esquerda (DAS NEVES. Entrevista concedida à autora em 22/06/2013.). Em
contraposição, José tem uma postura muito crítica aos jovens e a capacidade de obter
informações seguras através deles. O argumento para justificar sua posição é colocado no
momento que é reiterado que eles fazem apenas “barulho” e são “filhinhos de papai”.
Percebe-se claramente a impossibilidade de diálogo entre classes sociais tão díspares.
Talvez o objetivo do autor seria lembrar que a aliança operário- estudantil, muito proclamada

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pela esquerda vinculada ao nacional-popular, não foi concretizada nos anos anteriores ao
golpe.

Durante toda a cena, a rubrica indica um enorme barulho de multidão vindo da parte
externa do palco, mas tal fato não parece ser percebido pelos pintores. Eles se lavam
tranquilamente, pegam sua marmita e saem pela entrada principal do teatro, onde são
metralhados pelos invasores. Na documentação localizada e nos depoimentos não foram
encontrados nenhuma referência a presença dos pintores no local, ou mesmo mortes que
tenham ocorrido no momento da invasão da UNE. Trata-se de um momento onde História e
Ficção se unem na construção de uma obra artística e na possibilidade de reinterpretação
do passado através da ficção.

Na segunda cena, temos como conflito principal a necessidade do jovem Luiz em


retornar ao teatro para destruir o arquivo e retirar os fusíveis do palco. Entendemos que a
construção dessa cena também tem uma forte relação com uma passagem da trajetória de
Das Neves. Segundo ele, no momento que a sede estava sendo invadida foi estabelecido
um “combinado” com seus companheiros: “Quando nós sairmos daqui eu vou tirar as
escadas [porque que eles tão entrando], desligar todas as luzes, desligar os fusíveis etc, pra
um ficar um negócio na escuridão, era de manhã, mas o teatro estava fechado, enfim, e eu
com a ideia de salvar o teatro se houvesse alguma coisa, “né”? (DAS NEVES. Entrevista
concedida à autora em 22/06/2013). Ele explica que seu intuito era deixar o teatro no escuro
para dificultar a ação dos invasores e evitar que ele pudesse ser destruído.

Na cena teatral propriamente dita, o objetivo de Luiz era principalmente salvar os


arquivos, que o autor parece indicar sutilmente serem do PCB. O contraponto da cena é
feito por Clara, que tenta descontruir a argumentação de Luiz e convencê-lo a deixar a
documentação no local e fugir. Analisando a cena e o contexto que a peça foi escrita
intuímos que o eu-épico do autor encontra-se nos dois personagens. Luiz se aproximaria do
jovem João, que em 1964 acreditava na possibilidade de transformação da sociedade
brasileira através do teatro e era tomado pela esperança das reformas de base. Clara
parece referir-se ao João de 1977, que enxerga o passado com olhos críticos, revisa a
atuação da esquerda, mas, faz isso porque tem a seu favor o tempo e o conhecimento
histórico do passado, elementos dois quais, nem João, nem Luiz possuíam no meio do
turbilhão de acontecimentos de 1964.

Clara: Luiz, o que é que nós sabemos? Nada. A não ser que eles estão na
frente, armados até os dentes e querendo nos eliminar. Que eles sempre
estiveram na frente armados até os dentes. Enquanto isso nós falávamos,
cantávamos, representávamos e nem fomos capazes de ao menos prevenir

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dois pobres diabos que não tinham nada a ver com isso. [...] Eles nem
sequer sabiam do que se tratava. Nós mentimos. Mentimos sempre.
Sempre. Como eles sempre mentiram a nós. Eles, os cretinos que falavam
na merda da legalidade, na merda da luta pelo povo. Como se esqueceram
de deixar ao menos uma merda dum revolver nas nossas mãos. [...]

Luiz: Clara, é preciso confiar, Clara. Eu não acredito que eles vençam. Você
está desesperada, por isso não vê objetivamente a situação.

Clara: Deixa de ser burro, Luiz. Você confunde lucidez com desespero. Eu
estou lúcida. Os caras que nos mandaram resistir estão longe há muito
tempo. Será que você não reparou como tudo ficou vazio de repente? Você
não viu o silêncio, a ausência à nossa volta?

Luiz: Clara, os dirigentes tinham de se preservar.

Clara: Preservar é o cacete. Eles tinham que estar aqui, conosco. E não
sumirem de circulação na hora do perigo. Eles por acaso são melhores,
mais idealistas, mais inteligente que você ou qualquer um de nós? Os
dirigentes somos nós, Luiz. Eles apenas nos representam. E têm que estar
ao nosso lado ou não passam de filhos da puta. Tão filhos da puta como os
que estão aí na frente, invadindo o prédio. Só que esses nós sabemos
quem são. (DAS NEVES, 1978:117-118).

Nas falas da personagem Clara podemos perceber diversas críticas feitas à


esquerda principalmente em sua revisão, nos anos setenta. A crítica ao voluntarismo do
CPC, a impossibilidade de aliança operário estudantil, a hierarquização dentro do PCB e os
“equívocos” cometidos pelo Partido, à ilusão de que o golpe teria resistência e a participação
da sociedade civil do desfecho do golpe. Não podemos afirmar que o autor compartilhava de
todas as perspectivas de Clara, mas, entendemos que dramaturgicamente, a dureza da
personagem fazia um bom contraponto ao idealismo de Luiz. No final dessa cena Luiz volta
para salvar a documentação, Clara ouve os tiros e consegue fugir pela escada que se
encontrava no quintal, tal como no relato de João das Neves.

A escada aparece como uma metáfora interessante no texto. No primeiro momento,


serve como objeto de trabalho dos pintores, depois como “tábua” da salvação de Clara e
dos pintores (na terceira cena). “Tinha o muro da UNE no fundo do quintal e um terreno
baldio [...] eu não sei o que me bateu na cabeça, que eu peguei a escada do pintor, que era
muito alta, encostei naquele muro do fundo, já pensando nisso: qualquer coisa aqui, se
precisar fugir, a gente vai fugir pelos fundos. (DAS NEVES. Entrevista concedida à autora
em 22/06/2013). Esse relato permite-nos perceber a importância da escada na cena e no
momento da invasão do teatro. Ao mesmo tempo que indica a reforma do teatro e a
presença de trabalhadores do prédio da UNE, indica também a possibilidade de um
desfecho trágico para aqueles que se encontravam no prédio.

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Para dimensionar o efeito da experiência concreta do autor, localizamos algumas


reportagens que nos permitisse entender ao contexto histórico para além dos depoimentos
orais. O jornal Correio da Manhã publicou algumas reportagens que nos permitem entender
a repercussão da invasão. “Ás 18h de ontem, em frente a UNE, formou-se um aglomerado
de pessoas que gritavam "viva Lacerda pela democracia". Os ânimos se exaltavam e aos
poucos deu-se o saque do prédio. [...] Praticamente vazia, a UNE foi incendiada, bem como
os amontoados de objetos”. (Correio da Manhã, 02/04/1964). Ainda de acordo com a
reportagem, no momento em que as chamas do incêndio se alastravam os invasores
lacerdistas cantavam o hino nacional e bradavam a vitória da “democracia”.

Outra reportagem informava que a Marcha da Família com Deus pela Liberdade
realizada no dia 02 de abril, durou quatro horas e exaltou a invasão e o posterior incêndio da
sede da UNE. Numa das faixas podia-se ler: “Estudantes autênticos saldam a defunta UNE
desejando-lhe estada feliz nas profundezas do inferno”. (Correio da Manhã, 03/04/1964).
Tais exemplos nos permitem perceber tanto a exaltação de algumas parcelas da sociedade
civil após o golpe militar, quanto à vitória política da direita golpista sob a esquerda. Mesmo
soando com ares de ficção, tais fatos compõem um amplo mosaico da reação de uma
parcela da sociedade civil diante do golpe.

A terceira cena é parece mostrar o horizonte de expectativa desejado pelo próprio


autor. Ela é uma espécie de leitura do que poderia “ser”, caso os objetivos futuros dos
operários e dos estudantes fossem minimamente próximos. Se a História não costuma
trabalhar com a perspectiva do “se”, a ficção tem plena liberdade para dele se apropriar e,
muitas vezes, o faz com maestria. No que tange a cena analisada, ela permite a
possibilidade de visualizar novos destinos para os personagens. Ela inicia-se da mesma
forma que a primeira, mas é excluído o diálogo sobre a possibilidade de golpe e a atuação
dos estudantes. Quando estão prestes a sair, Inácio propõe saírem pela escada. Ao saírem
e serem vaiados pelos invasores do prédio, Inácio comenta com José: “Que filhos da puta”,
referindo-se aos invasores e não aos estudantes. (DAS NEVES, 1978:122). É relevante
ressaltar que o autor não cria uma cena de apoio declarado aos estudantes. Mesmo com a
modificação do roteiro estudantes e trabalhadores permanecem em mundos opostos, sem
diálogo efetivo.

É interessante perceber como João das Neves refaz a experiência no presente,


articulando sua narrativa em meio a diversas temporalidades artísticas e políticas vividas
pelo próprio sujeito. Ao analisar o golpe civil-militar de 1964 o autor nos dá um interessante
relato:

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O que eu não imaginava era que o golpe ia vencer ,“né”? Ia vencer, que não
iria haver reação, também é isso, “né”? Não houve reação, se o Jango
tivesse convocado a reação, se tivesse havido reação, eu não sei o que
aconteceria, uma desgraça, mas desgraça maior do que aconteceu no
Brasil, vinte anos depois, não poderia ter existido. Mas, enfim, o Jango
pensou de uma outra maneira e tinha lá suas razões para pensar, não estou
condenando ele não. Mas ele acho que ele achou que iria poupar a vida dos
brasileiros, etc, talvez ,“né”? Deve ter achado, com razão até, mas não
poupou, não é? Não foi naquele instante, mas ao longo de vinte anos, mas,
enfim, a gente não sabia o que iria acontecer. (DAS NEVES. Entrevista
concedida à autora em 22/06/2013).

Encerramos nossa comunicação com a seguinte expressão: “a gente não sabia o


que iria acontecer”, condição básica a todo sujeito histórico que se encontra no momento
vivido. O esforço de construção de uma narrativa artística revela um grande empenho na
relação do entrevistado com a sua história, relativa ao passado e ao presente. “Ao narrar
uma história, identificamos o que pensamos que éramos no passado, quem pensamos que
somos no presente e o que gostaríamos de ser”. (THOMSON, 1997:53). É digno de análise
histórica, tanto o que aconteceu concretamente com João das Neves, quanto o que o autor
colocou em suas obras artísticas no fluir do tempo, já que ambos resultam de um mesmo
processo pessoal. Ao relatar os fatos no ano de 2013, o autor parece-nos distante da rigidez
de Clara, mas também da ingenuidade de Luiz. Talvez o que de fato tenha permanecido,
seja sua crença da força política da arte e no seu engajamento como ser humano, percebido
ao longo de sua trajetória e reiterado pelo próprio no presente.

Atualmente, em meio à efeméride dos cinquenta anos do golpe civil-militar de 1964,


João das Neves está em processo de montagem da mesma peça que não pôde ser
estreada no Teatro CPC: Os Azeredos Mais Os Benevides. Ele assina a direção e sua
estreia está marcada para o primeiro semestre de 2014, na cidade de São Paulo.

Nesse entrecruzamento entre o passado e o presente, é importante compreender a


necessidade de ressignificação do passado, visando à construção de um presente mais
habitável para as pessoas que vivenciaram determinados processos históricos. A mesma
necessidade historiográfica de repensar o passado e analisá-lo é percebida também na obra
de artistas que continuaram atuantes no presente e ávidos por narrarem suas experiências
nos mais variados suportes.

Referências

1) Bibliografia

BARCELLOS, Jalusa. CPC: Uma História de Paixão e Consciência. Rio de Janeiro: Nova
fronteira, 1994.459p.

ISBN: 978-85-62707-55-1
389 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014

NEVES, João das. O Quintal. In: Escobar, Ruth Escobar. Feira Brasileira de Opinião: a feira
censurada. São Paulo, 1978.230p.

HENRIQUE, Marília Gomes. O realismo crítico-encantatório de João das Neves. (Mestrado


em Artes) – IA/Unicamp, Campinas, 2006. 105f.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos.


Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2006. 368 p.

MARQUES, Maria do P. Socorro Calixto. O outro lado do quintal. In: Simpósio Nacional de
História – ANPUH, XXII, 2013, Natal, RN. Anais (on-line).Disponível:
http://www.snh2013.anpuh.org/site/anaiscomplementares#M. Acesso em 17/04/2014.

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Tomo III. Campinas: Papirus, 1997.519 p.

THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: Questões sobre a relação entre a História


Oral e as memórias. Projeto História, São Paulo, n. 15, abril, 1997, pp. 51-84.

2) Entrevistas Orais

DAS NEVES. João. Lagoa Santa/MG, Brasil, 22 junho. 2014. Mp3, 80 minutos. Entrevista
concedia à Miriam Hermeto e Natália Cristina Batista.

ISBN: 978-85-62707-55-1
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UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014

Questionamentos sobre as relações de condicionalidade entre proposições artísticas


e o contexto político do Brasil na década de 1960 nas obras dos Salões Municipais de
Belas Artes da Prefeitura de Belo Horizonte

Nelyane SANTOS e Rodrigo VIVAS


Mestranda do Programa de Pós Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da
UFMG e Professor Doutor do Departamento de Artes Visuais da Escola de Belas Artes da
UFMG.
nelaysantos@yahoo.com.br e rodvivas@gmail.com

O circuito artístico de Belo Horizonte, a partir da década de 1950, esteve associado aos
Salões Municipais de Belas Artes da Prefeitura (SMBA-BH). A inexistência de galerias ou de
um mercado de arte consolidou a concorrência dos Salões como a única possibilidade de
conferir tanto visibilidade como reconhecimento para os artistas. Na década de 1960 ocorreu
um fenômeno para as artes plásticas de Belo Horizonte que se repetiu em outros circuitos
artísticos: a transformação de um salão regional em um espaço de relevância nacional.
Assistiu-se a participação de artistas reconhecidos nacionalmente, proporcionando um
momento de reflexão tanto para a arte tradicional mineira como para as novas
possibilidades que caracterizaram a arte na década de 1960.

A pesquisa sobre a produção e a crítica de obras nos SMBA-BH entre os anos de 1964 a
1968 tem como principal intuito, conhecer a diversidade das propostas artísticas da capital
neste período. Além disso, ao pensar a obra de arte como principal objeto de estudo da
história da arte, com todas as suas potencialidades visuais e materiais, a pesquisa pretende
também levantar questões e problemáticas sobre os marcos e definições institucionais
estabelecidos para a história da arte na cidade.

Diante da leitura de algumas referências importantes sobre a arte no Brasil deste período,
muito se encontra sobre o círculo social dos artistas, sobre a atuação da crítica de arte,
sobre as instituições provedoras dos salões e bienais, mas poucos estudos apresentam
análises aprofundadas dos aspectos visuais das obras. Em certa medida, esta tendência de
estudos gerou generalizações no reconhecimento da influência Pop entre os artistas
brasileiros, desconsiderando suas peculiaridades e suas distinções com a Pop Art e os
vários movimentos da década de 19601. Neste viés, o temário reconhecido por estes
estudos dá destaque às questões sócio-políticas, engrossando a tese da militância e
engajamento de esquerda dos artistas da época2. Desconsidera-se muitas vezes que esta
realidade social era permeada pela posição crítica do artista ao seu cotidiano mais direto,
expressando aspectos da vida íntima e dos problemas artísticos enfrentados rotineiramente.
1
Assim como fez Aracy Amaral ao desenvolver textos memorialísticos e de análise sócio-cultural em
Arte para quê? A preocupação social na arte brasileira: 1930-1970 (1987).
2
Conceitos comuns às ciências humanas que foram adotados pela estudiosa Marília Andrés Ribeiro
em sua tese, publicada como livro em “Neovanguardas: Belo Horizonte, anos 60. C/Arte, 1997

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Na análise das obras de arte dos Salões de 1964 a 1968, foram surgindo questionamentos
sobre as propostas artísticas que evidenciaram a diversidade de métodos, temas e
perspectivas da arte, não só da capital como de todo o país. No desenvolvimento de uma
pesquisa com ferramentas teóricas metodológicas próprias da história da arte, tendo como
foco a análise da visualidade da obra, esta determinação temática temporal da história da
arte com a história política do Brasil é questionada, tanto para reavaliar a aplicabilidade de
conceitos de engajamento, militância e utopia no circuito artístico da época, como também
para ampliar a percepção de temas e propostas dos artistas, reconhecendo a variedade de
suas experimentações. Lembrando que, neste período, a arte foi demarcada pela difusão de
diferentes linguagens e suportes, em esfera internacional.

O risco de se conduzir a análise da obra de arte por conceitos relativos às dimensões


simbólicas da ação social está relacionado à interpretação das manifestações artísticas
como estando condicionadas às situações eminentemente políticas, sem, portanto, dar
ênfase aos processos de liberdade de criação e de fruição estética que o artista enfrenta em
seu trabalho, constituindo, com vocabulário e ferramentas próprias, o conhecimento sobre a
arte. O que devemos evitar nos estudos da história da arte é uma correlação de causa e
consequência entre obra e cenário social, visto que a produção artística expressa a vivência
e o cotidiano em suas formas múltiplas.

Ao que tudo indica, o que a história da arte, institucionalizada pela academia e pelas
exposições retrospectivas, desejou confirmar é que as artes plásticas no Brasil da década
de 1960 foram engajadas, contestatórias e neo figurativas3. As obras analisadas no Museu
de Arte da Pampulha (MAP) que participaram dos Salões da capital demonstram que estas
generalizações precisam ser revistas, não só pelo combate aos estereótipos, mas, todavia,
pelo ostracismo e subjugação das propostas e problemas artísticos empreendidos nas
obras. Desta maneira propõe-se uma visão crítica desta interpretação institucionalizada da
história da arte, que teve também como característica a concentração de análises voltadas
para o circuito artístico brasileiro como advindo do eixo Rio-São Paulo, visto como centro
disseminador das manifestações artísticas internacionais do momento e como delimitador
de parâmetros produtivos para outros núcleos do país.

O Brasil da década de 1960 e seus diálogos com as artes

O contexto de regime civil militar no Brasil e a polaridade política do planeta (socialismo x


capitalismo) são as principais características da historicidade da década de 1960. Neste
cenário, as artes plásticas refletiram sobre a realidade vigente e propuseram reestruturações

3
Como bem tentou expressar as exposições em Belo Horizonte Neovanguardas, Museu de Arte da
Pampulha, 2007/2008, e 1911-2011 Arte Brasileira e Depois, na Coleção Itaú, Palácio das Artes,
2011.

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que foram marcantes e definidoras de novas posturas da produção, da crítica e da difusão


da arte. A década de 1960 para as artes marcou a convulsão de manifestações relacionadas
às novas figurações, ao novo realismo, a arte Pop e a Op Art. Estes movimentos tiveram
como proposta inicial a crítica ao Expressionismo Abstrato dos anos 50, que demarcava a
subjetividade na produção artística (ALVARADO, 1999). Resguardadas suas peculiaridades,
pode-se considerar que estes movimentos apresentavam em comum a comunicabilidade da
arte, utilizando-se da realidade social como instrumento de diálogo com o público.

A divulgação dos artistas e intelectuais como sujeitos da resistência à ditatura no Brasil


normalmente é generalizada, dando enfoque à música e ao teatro, de tal forma que pouco
se destaca a participação específica das artes plásticas. Um dos estudiosos das artes neste
período, Artur Freitas apresenta um argumento explicativo para esta distinção entre as
manifestações artísticas que mais se popularizaram entre a cultura de massa e as artes
plásticas, que permaneceram relativamente afastadas da popularidade.

As artes plásticas, por seu lado, deram um encaminhamento bastante


específico a essas questões, um encaminhamento, em geral, diferente
daqueles realizados pelas outras áreas de expressão artística – e por
diversas razões. Em primeiro lugar porque o engajamento político explícito
não era recorrente nas obras dos artistas plásticos, mesmo nos momentos
mais duros da repressão. O medo do servilismo intelectual num campo
cultural, àquela altura consideravelmente elitizado e autônomo, e o quase
irrefreável processo histórico de incompatibilização das produções artístico-
visuais com os aspectos literários da narração, sem dúvida pouco
estimulavam o engajamento explícito nas artes plásticas. O excesso de
transparência na informação ideológica da manifestação de arte, portanto,
soava ou como panfleto, ou como publicidade ou como ilustração, as três
piores maldições do campo artístico. O rebaixamento da obra em favor da
clareza de alguma mensagem política ainda podia remeter ao realismo
socialista – e era falta grave. O radicalismo, naquele período de extrema

experimentação na arte, não estava no tema, no assunto tratado. E mesmo


nos casos onde a preocupação social ou política era evidente, a
manifestação artística deveria se sustentar, sobretudo, pela sua condição
estética – e não pela sua condição de eventual artefato político –, e ser
julgada pelos pares. Portanto, se durante aqueles anos o político, num
sentido amplo, e sob a mirada do ético, atravessava toda a problemática da
inserção da arte na sociedade brasileira, nem por isso a referência imediata
aos problemas dessa sociedade se tornou regra ou compôs-se como
programa poético de grandes parcelas da comunidade artística. (FREITAS,
2004, p. 71)

Em estudo sobre os movimentos de esquerda no Brasil, Marcelo Ridenti apresentou num


quadro os “Setores da esquerda brasileira, por ocupação e grupos ocupacionais de
processados, 1964 – 1974” (RIDENTI, 1993, p. 73). Neste, revela que apenas 0,9 % dos

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1897 membros de grupos armados urbanos eram artistas, ou seja, um número que não
ultrapassa 18 pessoas. É claro que devemos considerar que se trata de um levantamento
numérico com base em processos judiciais, não sabemos, portanto, quais foram os critérios
e as atividades específicas ligadas às artes para definição deste número de profissionais.
Mas em certa medida, não deixa de confirmar o que RIDENTI aponta, “vários artistas e
intelectuais no período tinham uma simpatia difusa pela esquerda armada, sem que seja
possível dizer que eram propriamente militantes” (RIDENTI, 2000, p. 180).

Mesmo que os registros documentais, como é o caso dos processos judiciais, apontem
reduzido número de artistas participantes no combate ao regime ditatorial, as interpretações
de obras de arte do período tendem a relacioná-las a conceitos de engajamento e de
militância de esquerda. Aracy Amaral também afirma que entre os artistas plásticos não
ocorreu o engajamento político comum na área do teatro, cinema e música. “O político
tocaria o artista plástico ‘de leve’” (AMARAL, 2003, p. 329). Para AMARAL esta “apatia”
estaria relacionada ao caráter elitista das artes plásticas.

Além de ser um argumento generalista da condição social dos artistas plásticos e das
instituições de arte, não contribui para a análise e discussão da materialidade e visualidade
das obras produzidas no momento. Diante disso, Artur Freitas alerta para os cuidados das
correlações entre cenário político e artes.

Desse modo, mesmo que aceitemos que nesses tempos, nas diversas
produções dos artistas plásticos, grosso modo, tenha havido uma certa
abertura aos problemas políticos e sociais brasileiros, é imprescindível ter
em mente que essa porosidade heterônoma só possui sentido se
compreendida a partir das discussões internas ao meio artístico, o que faz
indispensável uma incursão nas condições de possibilidade que se
apresentavam – em termos de linguagem e de história das formas – aos
artistas dos maiores centros brasileiros. (FREITAS, 2004, p. 72)

Os textos de Aracy Amaral são referenciados em diversos estudos das artes no Brasil da
década de 1960, muito até pelo tom memorialista da autora que presenciou e acompanhou
vários eventos na época. Mas podemos perceber que a autora desenvolve seu texto como
se estivesse à procura de um tipo ideal de artista militante político. Cita alguns artistas e
suas obras como se enquadrassem-se no sentido semântico de rebeldia contra o regime
vigente e de crítica contra o status quo. Porém, o fechamento de cada uma dessas
passagens é carregado de um ar de frustração por não encontrar entre os artistas um
genuíno guerrilheiro, revolucionário de esquerda, engajado politicamente contra a ditadura.

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É evidente que a década de 60, fervilhante em sua múltipla agitação em


nível mundial como nacional e latino-americano (e aqui a revolução cubana
e suas consequências gozariam de repercussão considerável) fez com que
vários artistas se interessassem pelos eventos internacionais e nacionais de
maneira excepcional: seja na inspiração das viagens à Lua por astronautas,
realidade latino-americana, morte de Che Guevara, situação do povo
brasileiro, autoritarismo militar no Brasil, guerra no Vietnã, fenômenos de
massa nos meios urbanos – carnaval, futebol, publicidade, estórias em
quadrinhos, música popular brasileira, evidentemente estimuladas
vivamente pela irradiação do pop norte-americano. Essas temáticas são
bem visíveis nas obras, dessa década, de Cláudio Tozzi, Antônio Manuel,
Antônio Henrique Amaral, Antônio Dias, Vergara, Rubem Gerchman,
Geraldo de Barros, Maurício Nogueira Lima, Oiticica, Szpiegel, Carmela
Grosz, Marcelo Nitsch, Nelson Leirner, entre outros, a partir de meados da
década. É inegável, igualmente, que a expressão criativa a partir dessas
temáticas é liberada a partir do acesso a novas técnicas e novas formas
expressivas, inexistentes anteriormente, a partir dos novos materiais
exibidos nas obras pop americanas”. (AMARAL, 2003, p.329)

A importância que a história da arte oferece aos artistas que rompem com a tradição e
postulam novas ideias e manifestos vinculados aos questionamentos acerca dos cânones
artísticos e à institucionalização das artes, muito criticada neste período, parece estar
subjugada para a autora a uma participação política literal. O olhar que lançamos a algumas
obras do período, revelam sim, que muitos dos artistas foram militantes e revolucionários,
lutando contra as situações de opressão estabelecidas, atuando dentro do seu próprio
campo de conhecimento e produção, as artes plásticas, sem ser prioritariamente neo-
figurativo ou performático, reencenando torturas, símbolos militares ou coisas do tipo. A
própria materialidade, a efemeridade, a repetição da forma e do gesto, símbolos e sinais do
meio urbano, enfim, são vários sentidos impressos em obras que nos demonstram que as
propostas artísticas perpassaram a realidade brasileira em suas várias esferas sociais. O
que é preciso pensar é a obra enquanto vestígio, fonte e testemunho e não como ilustração
de uma narrativa institucionalizada pela voz dos vencedores da pós-ditadura.

Manifestos e escritos de artistas confirmam o que já podemos ver em obras da época: uma
influência do ideário neo-figurativo internacional, expressando na arte as contestações
sociais. Desta maneira, a contestação pode sim ser uma chave de compreensão dos
aspectos semânticos de muitas obras do período, mas não pode ser uma regra de
acessibilidade a todas as propostas artísticas do momento. Entre os anos de 1964 a 1969, o
país assistiu uma produção cultural de oposição, sendo consumida e disseminada com
relativa eficácia nas manifestações de cultura de massa. Sobre isso, Artur Freitas
argumenta:

Dentro desses limites, todavia, e em decorrência tanto de um sentimento


generalizado de derrota das esquerdas quanto de uma opressão
significativa imposta pelo novo regime, intensificam-se as discussões sobre

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o lugar da arte e do artista na sociedade brasileira, bem como as


discussões a respeito de quais seriam as novas formas artísticas
condizentes com os novos tempos. (FREITAS, 2004, p. 70)

Estas discussões sobre a arte estiveram presentes em eventos que entraram para a história
da arte brasileira como definidores de uma nova postura do artista, mais socialmente
engajado e crítico às institucionalizações da arte. Entre 1964 e 1968, a liberdade de
expressão não estava inteiramente cerceada, o que ocorreu mais efetivamente após o Ato
Institucional Nº 5, de 13 dezembro de 1968, que aparelhou e institucionalizou a máquina de
repressão e tortura. Ocorreram neste período Opinião 65 e 66, Proposta 65 e 66, Vanguarda
Nacional Brasileira, Nova objetividade brasileira4. O intuito de Opinião 65 foi instigar a
manifestação política entre os artistas e a posição perante a situação social da arte, além
disso, teria sido importante para inserir no espaço museológico novas linguagens da arte. Já
Proposta 65, apresentou a discussão sobre o Novo Realismo, comunicação e cultura de
massa na arte (ALVARADO, 1999). Opinião 66, Proposta 66 e Nova Objetividade Brasileira,
reforçaram o discurso de combate às categorias de arte. Vários artistas participaram
ativamente destes eventos estabelecendo discussões estéticas e ideológicas incorporando a
crítica à violência, ao capitalismo, à cultura de massa e defendendo a liberdade de
expressão, principalmente pelo uso de novos e diversificados materiais e suportes.

Por toda esta extensa narrativa, caracterizada pelo diálogo crítico das artes com o cenário
social vigente, a história da arte da década de 1960 foi institucionalizada com vários marcos
estabelecidos entre eventos de arte e momentos político e econômicos do país. Mas resta-
nos questionar: em que medida estes marcos representam as obras produzidas no período?
Entre os vários eventos, os salões estaduais e municipais concentram importantes
referências dos momentos da história da arte no Brasil, pois eram propagadores de valores,
movimentos e tendências impressos em obras compondo o acervo de vários museus
brasileiros por meio dos prêmios e aquisições. Desta maneira, buscar analisar as obras que
circularam nos SMBA-BH contribui para a releitura da história da arte no Brasil e para um
questionamento crítico acerca das correlações causais entre arte e cenário sócio-político.

Revendo obras na história da arte

Os Salões eram promovidos pela Prefeitura de Belo Horizonte desde 1937, sendo
realizados, desde 1957, no Museu de Arte da Pampulha. Este evento era o principal

4
Ocorridos no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1965 e 1966; Fundação Armando
Álvares Penteado, em São Paulo, em 1965 e 1966; na Reitoria da UFMG em Belo Horizonte, em
1966; e no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1967; respectivamente.

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definidor do circuito artístico do estado de Minas Gerais, fazendo parte também, desde a
década de 1960, do círculo de eventos nacionais por contar com a participação de críticos
de renome nacional no júri, como Mário Pedrosa, Frederico Morais, Walter Zanini e também,
pelo fato de contar com a participação de artistas reconhecidos nacionalmente. O período
que abrange os Salões de 1964 ao de 1968 demarca a transição da arte moderna para a
arte contemporânea, assistindo a emergência de novas referências visuais e de variadas
proposições artísticas que influenciaram a formação de um ideário de arte nacional. Neste
período o SMBA-BH passou por reestruturações que refletem as mudanças nas artes e no
cenário político social da cidade.

O ano de 1964 foi marcante, pois divulgou no XIX SMBA-BH, o rompimento com o estilo
mineiro de pintar, expressa por um dos artistas participantes do Salão, Jarbas Juarez. A
obra Composição em Preto nº 1 será aqui analisada focando principalmente seu caráter de
marco definidor do início da arte contemporânea, tese defendida por Marília Andrés Ribeiro
(1997), e seu provável aspecto de contestação ao regime ditatorial, recém instaurado
durante a criação e inserção da obra no Salão, inaugurado em 12 de Dezembro – data
oficial de abertura dos Salões por fazer parte das comemorações do aniversário da capital
mineira. Dando um salto para o XXII SMBA-BH, apresenta-se a obra Máquina de Triturar
Homens, de 1967, do artista mineiro Getúlio Andrade Starling, que demarca as discussões
entre as divisões tênues entre as categorias de arte, inaugurando as construções
escultóricas como nova determinação de arte objeto. No XXIII SMBA-BH destaca-se a obra
de Teresinha Soares, intitulada Guerra é Guerra vamos sambar, que dialoga com os
formatos de pinturas tridimensionais e com as sequencias narrativas comuns às obras da
pop art, trazendo um diálogo sútil e ao mesmo tempo insinuante da condição política do país
e do ufanismo das festas populares.

O artista, autor de Composição em Preto nº 1, Jarbas Juarez, era até então mais conhecido
por seus desenhos. A adoção da pintura marcou sua trajetória como sendo questionador,
combativo, e vanguardista por definir em suas obras posições de ruptura com as tradições
da arte mineira e por suscitar temas de oposição à situação social vivida no país (RIBEIRO,
1997). A obra em questão é uma pintura à óleo e tinta esmalte automotiva, com colagens de
papel corrugado e papel higiênico sobre tela. Foi confeccionada na vertical com a
composição em dois paralelos. A tela é monocromática em preto, aparentando distinção de
tons e brilhos pela aplicação de duas tintas diferentes e de texturas com materiais diversos.

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Jarbas Juarez. Composição em preto nº 1, 1964.


131,5 x 98,5 cm.

A grande polêmica que se seguiu à divulgação do resultado do XIX SMBA-BH se deu em


torno do depoimento de Jarbas Juarez sobre seu desejo de eliminar o estilo mineiro de
pintar, herança do mestre Alberto da Veiga Guignard e seus discípulos. O depoimento
manifesto desenvolvido sobre a frase célebre “Guignard está morto, descubramos nossos
próprios caminhos!” 5, foi a tônica de vários artigos de jornais da época. Em depoimento
posterior, Juarez declarou que esta obra foi inspirada por uma visão que teve do piso de
asfalto de uma avenida movimentada da cidade num dia de chuva (JUAREZ, 2003). O negro
áspero do chão em contraposição à viscosidade lisa do óleo escorrido dos carros. A
percepção do artista, atenta às referências visuais do espaço urbano, conduz à busca de
materiais para alcançar a visualidade semelhante destes mesmos elementos espaciais.

A inserção de produtos pouco comuns aos cânones da pintura sobre tela demarca o
rompimento de Jarbas Juarez com as tradições artísticas. Contudo, por mais que pareça
novidade no campo da experimentação enunciada pelo artista, e perceptível na análise de
suas obras na opinião dos críticos da época, é importante ressaltar que tanto a tinta
automotiva quanto o uso de colagens já estavam presentes em obras pelo menos desde a
década de 1950, entre os cubistas, inclusive no Brasil. É claro que não podemos
desconsiderar o rompimento de Jarbas Juarez com a figuração paisagística, estilo comum
entre os alunos e seguidores de Guignard, mas essa obra ainda mantém características
tradicionais de pintura se comparada às determinações da arte contemporânea.

O que chama atenção nas colagens de Juarez não é simplesmente a agregação de papéis e
sim a diversidade dos mesmos. São utilizados papel higiênico, papel corrugado e papelão,
tipos de papéis desprezíveis na arte por sua efemeridade e sua função prática associada ao
cotidiano. Teria sido intencional esta escolha de Jarbas Juarez associando os papéis

5
BENTO. Diário Carioca, Cortes Drásticos do Salão Mineiro. Rio de Janeiro, 11/12/1964.

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utilizados à sua função ou simplesmente à textura oferecida pelos mesmos? Este


questionamento leva-nos ao diálogo do artista com outras produções artísticas,
principalmente as da pop art por referenciar materiais do cotidiano ligados ao consumo de
massa, e também com as discussões efervescentes na época sobre a efemeridade da arte.
Sua intenção teria sido a de referenciar o asfalto que o inspirou no primeiro momento, ou o
luto que o motivou no manifesto contra o estilo mineiro de pintar? O que sua memória
posterior registra é uma necessidade de expressar seu repúdio ao momento político vivido
no Brasil. É claro que diante da repressão, Jarbas Juarez não declararia isto na época, sob
o risco de ser colocado em juízo. Mas, lembremos que o estado de exceção da ditadura
militar6, havia se iniciado oito meses antes da abertura do XIX SMBA-BH de 1964. Ou seja,
devemos nos questionar se o engajamento artístico contra a ditatura já tinha se intensificado
de maneira tão comprometida e se acirrado tão expressivamente em Minas Gerais.

Do XXII SMBA-BH de 1967 apresenta-se a obra de Getúlio Andrade Starling, artista


vencedor do 2º prêmio de escultura. Trata-se de uma escultura montada com base de
madeira, objeto utilitário em metal, bonecos de plástico e um pires. O suporte em madeira é
um tronco recortado e lixado, com as marcas de madeira aparentes. Na lateral direita a
madeira foi recortada deixando um vão para fixação de um moedor. Este foi pintado de
branco em toda sua extensão, de azul nas peças das extremidades e de vermelho no topo
da entrada do moedor. Nesta entrada encontram-se pequenos bonecos de plástico com
pequenos escorridos de tinta vermelha. Na saída do moedor encontram-se pernas e braços
de bonecos também muito pequenos e ligeiramente deformados pelo aquecimento do
plástico. Logo abaixo da extremidade de saída do moedor encontra-me apoiado sobre o
suporte de madeira, um prato de porcelana pintado de vermelho. Neste há um emaranhado
de pedaços de bonecos pequenos com os corpos ligeiramente deformados. Pernas, braços
e pés destes bonecos estão concentrados numa área do prato, também com aspecto de
deformação pelo aquecimento. No centro do prato, há dois bonecos pintados de preto.
Algumas pinceladas em vermelho nos bonecos dão o aspecto de carnificina na imagem.

6
Apesar de o Brasil já viver sob suas reminiscências desde o fim da 2º Guerra Mundial, num estado
democrático de direito que vivia sob suspeições e vigílias da polícia política diante da polaridade entre
capitalismo e socialismo vivido na Guerra Fria.

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Getúlio de Andrade Starling. Máquina de triturar


homens, 1967. 34 x 42,5 28 cm.

A obra pode representar a crítica ao consumismo, à cultura de massa, mas também ao


diálogo com as críticas de institucionalização da arte no período, que se deparava com a
pop art utilizando objetos de consumo como expressão artística e ao mesmo tempo, estando
as instituições de arte consumindo maciçamente as referências mais consagradas da arte
moderna e contemporânea. Na obra Getúlio Starling dialoga com as discussões
contemporâneas sobre a abolição das categorias da arte e as considerações acerca da
construção de objetos que partiam de outros objetos produzidos em escala industrial
ganhando o status de arte. O aspecto de carnificina e morte ao ser humano, moendo corpos
e massificando vidas, pode também estar vinculado à repressão do regime militar no Brasil,
mas antes de tudo o artista estabeleceu naquele momento um diálogo entre sua produção e
as principais discussões do estatuto da arte contemporânea, questionando o objeto artístico.

No ano de 1968 o Brasil assistiu um acirramento da repressão do regime militar, culminando


com o Ato Institucional nº 5, o que repercutiu nas artes, desencadeando processos de
censura e privações de liberdade. Nesta medida, a análise das obras premiadas neste salão
é interessante para tentar perceber as relações entre a produção artística e a realidade
social vivenciada pelos artistas. O XXIII SMBA-BH foi o último com esta nomenclatura, já
que no ano seguinte o formato do Salão modificou-se em vários aspectos. O encerramento
de um ciclo de salões com esta titulação demonstra o esgotamento do modelo de seleção e
premiação de obras por categorias de arte. Além disso, aponta para as possibilidades de
construção de outro discurso, o de implementação da Arte Contemporânea na capital, já que
no ano seguinte foi lançado com o título de I Salão Nacional de Arte Contemporânea da
Prefeitura de Belo Horizonte.

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Teresinha Correa Soares. Guerra é Guerra –


Vamos Sambar, 1968. 117 x150 x 4,5 cm.

A obra da artista Teresinha Soares, Guerra é Guerra – Vamos Sambar, foi selecionada
como 2º prêmio de pintura. Trata-se de um quadro montado com partes de compensado de
madeira colados e encaixados, estilo tela-caixa. A volumetria desta montagem e as cores
vibrantes chamam a atenção do espectador que a princípio aproxima-se envolvido por um
torpor de agitação e da combinação exultante de cores. Mas logo ao se deter na imagem à
sua esquerda percebe que a montagem em formato de filme fotográfico em preto e branco
demonstra uma cena dramática: uma figura humana carregando uma maca com uma
pessoa desfalecida. Os quadros do filme fotográfico são cortados e enquadrados numa
sequencia de ângulos que demonstram movimento.

À direita os quadros coloridos (nas cores da bandeira nacional) são uma sequencia narrativa
na vertical, demonstrando cenas de festa e rostos mascarados. Uma alusão às festas
carnavalescas tipicamente brasileiras. A temática da brasilidade, ufanismo e demarcação de
emblemas da cultura nacional rivalizam com a denúncia da violência e a escuridão do
regime militar que esconde a repressão e impõe medidas compensatórias de incentivo à
cultura carnavalesca.

Nas obras de Teresinha Soares o diálogo preponderante era de crítica ao machismo


instituído na sociedade brasileira, à submissão sexual da mulher e as violências que elas
sofriam. Por esta razão, era sempre vinculada ao erotismo nas colunas de jornais. O que
devemos ressaltar é que o trabalho da artista não se limitava aos conflitos de gêneros. Esta
obra demonstra que Terezinha Soares questionou o estatuto da violência e da sociedade de
consumo. Além disso, no campo das artes é importante ressaltar o quanto sua obra foi
marcante ao propor a ressignificação do uso e montagem de materiais.

Novas perspectivas e desafios para o diálogo entre arte e contexto histórico

A necessidade de uma revisão metodológica da história da arte em Belo Horizonte e


também no Brasil da década de 1960 revela que a arte, enquanto campo de conhecimento
autônomo, deve ser analisada com suas próprias ferramentas de pesquisa e com seu

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próprio arsenal teórico metodológico. Desta maneira, acreditamos que a valorização da


diversidade das propostas artísticas e os diálogos dos artistas com o campo artístico possa
contribuir para a construção de uma história da arte no Brasil que ultrapasse modelos
generalistas.

Ao questionarmos o sentido de engajamento e militância expressos em obras, não estamos


colocando em xeque a memória contestatória e de lutas cotidianas dos artistas. Estamos
sim revendo suas obras para valorizá-las enquanto fontes de pesquisa da história da arte.
Ao tentarmos elencar a diversidade das propostas artísticas e seus diálogos no circuito das
artes nos aproximamos um pouco mais da compreensão das relações de ambivalência entre
ser e estar no regime ditatorial, reconhecendo a complexidade das diversas resistências
culturais vividas pelos artistas.

Referências

ALAMBERT, Francisco. As bienais de São Paulo. Da era do museu à era dos curadores
(1951 – 2001). São Paulo: Boitempo, 2004.

ALVARADO, Daisy Valle Machado Peccinini de. Figurações Brasil anos 60: neofigurações
fantásticas e neosurrealismo, novo realismo e nova objetividade. São Paulo: Itaú Cultural;
Edusp, 1999.

FREITAS, Artur. Poéticas políticas: as artes plásticas entre o golpe de 64 e o AI-5.


HISTÓRIA: Questões & Debates. Curitiba, v.21, n.40, jan./jun.2004, p.59-90.

LUZ, Angela Ancora da. Salões Oficiais de Arte no Brasil – um tema em questão. Revista do
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. Rio de Janeiro, EBA/UFRJ, 2006.

RIBEIRO, Marília Andrés. Arte e política no Brasil : A atuação das neovanguardas nos anos
60. In. FABRIS, Annateresa (org.). Arte e Política: algumas possibilidades de leitura. São
Paulo: FAPESP; Belo Horizonte: C/Arte, 1998.

RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2000.

_______________. O Fantasma da Revolução Brasileira. São Paulo: Editora da


Universidade Estadual Paulista, 1993.

VIVAS, Rodrigo. Por uma História da Arte em Belo Horizonte: artistas, exposições e salões
de arte. Belo Horizonte: C/Arte, 2012.

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A resistência estudantil ao golpe civil-militar de 1964 na cidade de Ouro Preto-MG

Otávio Luiz MACHADO


Mestre em sociologia, Faculdade Frutal.
otaviomachado3@yahoo.com.br

Introdução

Como o primeiro pesquisador a desvendar os principais momentos que perpassam a


relação do movimento estudantil com a resistência ao golpe de 1964 na cidade de Ouro
Preto, ao tornar acessível muitos fatos históricos que ficaram praticamente somente na
experiência de vida daqueles que por lá estiveram naqueles anos de ebulição política-
ideológica, pensamos que a própria experiência de pesquisa do tema nos anos 2000 esteve
marcada pelos resquícios deixados após o fim do ciclo da ditadura civil-militar nos seus 21
anos de duração, como o medo de comentar sobre o assunto ditadura ou golpe, a falta de
informações sobre as atividades públicas dos dirigentes de órgãos do Estado nos mais
diversos escalões, a manifestação pública ou crítica no sentido de impedir ou denunciar
arbitrariedades advindas ou relacionadas com a ditadura etc.

Com o boom de publicações sobre o tema ditadura civil-militar no Brasil em meados


dos anos 2000 (que geralmente registrava os fatos acontecidos nas maiores e principais
cidades do País) e a abertura dos documentos de arquivos públicos inicialmente para
consulta de ex-perseguidos que buscavam reparação do Estado ou para pesquisadores com
autorização destes ou de seus familiares, o que se viu foi a maior tranquilidade por parte de
estudiosos para conseguir pesquisar com mais intensidade o tema. Eu vivenciei a pesquisa
um pouco antes dessa “abertura”, inclusive fui um dos primeiros pesquisadores a ter acesso
à documentação do Arquivo Público Mineiro, que em 2003 pôde oferecer muito material
digitalizado e providenciar cópias de documentos aos interessados.

A facilidade da nossa pesquisa, seja antes, seja depois dessa ”abertura”, só se


tornou algo concreto em função da adoção da metodologia da história oral, que nos permitiu
entrevistar pessoas que estiveram em Ouro Preto ao longo do recorte temporal que marcou
a ditadura civil-militar, ou seja, entre 1964 e 1985. Dos primeiros presos pela repressão aos
envolvidos na campanha das Diretas-Já ou da reorganização das entidades estudantis nos
meados da década de 1980, a nossa pesquisa resultou num contributo de valor histórico e
memorialístico, pois fontes originais e análises pioneiras foram construídas e aos poucos
vão sendo disponibilizadas para que, além de fonte para futuras pesquisas, também
contribua para que o conhecimento histórico do período seja conhecida para um número
infinito de interessados.

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A versão apresentada traz reflexões atuais do autor no momento, mas também não
deixa de atualizar aspectos já levantados no livro Um pequeno guia sobre o movimento
estudantil e o golpe de 1964 em Ouro Preto, Minas Gerais, que foi publicado em 2013 pela
Editora Prospectiva.

No texto, além de analisar o inquérito ocorrido na Escola de Minas de Ouro Preto


(EMOP) para averiguar possíveis atos de “subversão” praticados pelos estudantes e que
foram minimamente pressionados por setores militares, também gostaria de poder incluir
outros documentos também importantes, mas pelos limites desse trabalho tivemos que
praticamente ignorá-los. Mas fica o nosso registro, inclusive para referenciar que o conjunto
dos documentos do inquérito só foi localizado pelo autor dez anos depois que iniciou a
pesquisa. O mesmo se encontra à disposição no centro de documentação da EMOP, no
antigo prédio conhecido como Palácio dos Governadores.

Um Documento-síntese que também é fundamental para analisar, nesse caso, a


atuação mais geral dos estudantes mineiros e brasileiros contra a ditadura, além de ser
produzido em Ouro Preto na abertura do Congresso de Reabertura da UEE-MG (em 1979),
é uma fonte preciosa para se entender o protagonismo do movimento estudantil ouro-
pretano em outro momento da fase da ditadura, especificamente o de abertura política.
Trata-se do discurso manuscrito de uma ex-líder estudantil que vivia na clandestinidade:
Doralina Rodrigues (última presidente da UEE-MG antes do seu devido fechamento pelos
golpistas).

Como recorte do presente texto, portanto, os dois primeiros anos do golpe de 64


ganham mais evidência, ao considerarmos que esse período marca uma primeira fase do
movimento estudantil e de sua resistência ao golpe, que vai do expurgo inicial das principais
lideranças à primeira tentativa efetiva de reorganização do movimento estudantil.

A herança dos movimentos estudantis dos anos 1960 em Ouro Preto

A entidade estudantil que mais teve peso político na história do movimento estudantil
da Universidade Federal da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) foi o Diretório
Acadêmico da Escola de Minas (DAEM). Criado em 1931, teve sua primeira reunião em 1º
de novembro de 1932. O DAEM realizou inúmeras atividades ao longo de sua história.
Criou, em 1936 a Revista da Escola de Minas (existente até hoje), que é uma publicação
técnico-científica na área de Engenharia, cuja comissão inicial foi composta de Jardel
Borges, Raymundo Campos Machado, Walter José Von Kruger e Amâncio Lemos
Figueiredo.

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O DAEM também esteve envolvido na organização do Restaurante da Escola de


Minas (REMOP), criado em 1959, cujos fundadores foram Francisco Carlos Pinheiro Faro,
Euler G. Apolinário, Aziz Assi, Sérgio Bastos de Azevedo e Wilson S. R. Branco.

Para José Murilo de Carvalho,

“Desde a década de 1940, é provável que os alunos tenham sido o elemento mais
dinâmico (da Escola de Minas de Ouro Preto). A eles está afeta a publicacao da Revista
da Escola de Minas, hoje o único veículo de divulgação dos trabalhos científicos
produzidos na Escola. Deles também foi a iniciativa de criar a SICEG, já mencionada,
que até hoje mantém suas atividades” (CARVALHO, 1978, p. 143).

Após o golpe de 1964, o ambiente universitário ficou completamente dividido entre os


estudantes de “direita” e os de “esquerda”, que inclusive rivalizavam nas repúblicas de
estudantes e nas disputas por cargos nos órgãos estudantis.

O Movimento Estudantil em Ouro Preto entre 1964 e 1969

O Brasil vivenciou uma forte tensão política a partir da renúncia de Jânio Quadros,
em 1961. A política brasileira ficou marcada com aquele episódio, inclusive com o
impedimento da posse de João Goulart (Jango) por forças militares. Em 1964, porém, nos
momentos próximos ao golpe tais fatos puderam ser percebidos com os desdobramentos do
Comício de 13 de Março, que sinalizou a existência de um golpe em marcha há algum
tempo e que dificilmente poderia ser interrompido. Associado à inexistência de uma
resistência efetiva e sistemática pelos militantes de esquerda, que ficou confirmada em
seguida, entre 31 de março e 1º de abril de 1964, o golpe pôde ser constatado com a
movimentação das primeiras tropas em Minas Gerais. O Presidente João Goulart deixava o
poder e se exilava no Uruguai.

A pequena cidade de Ouro Preto foi marcada desde os primeiros dias do golpe com
uma série de pichações e brigas entre os estudantes, bem como das primeiras prisões
políticas. O delegado da cidade, que estava devidamente munido de uma lista dos
“subversivos” rascunhada por setores conservadores ou reacionários de Ouro Preto, iniciou
nos três primeiros dias – com a ajuda de milícias civis armadas – diversas prisões de
estudantes, políticos, operários e tantos outros que foram considerados “perigosos”.
Algumas prisões ocorreram dentro das próprias repúblicas estudantis.

A bipolarização dos estudantes entre “comunistas” e “reaça” ficou mais clara após o
golpe. Para Márcio Pereira, que foi preso em 1964, nos informou como as prisões foram
realizadas: “começaram a ir na casa de um a um, fizeram uma milícia e os direitistas se

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apresentam nestas milícias (armadas) como “voluntários” (Depoimento de Marcio Pereira a


Otávio Luiz Machado).

A cassação dos diretórios acadêmicos foi outra inevitável conseqüência. Enquanto


os líderes do movimento civil-militar consolidavam o golpe, também estavam sendo tomadas
medidas para barrar qualquer reação. A destituição de todos os órgãos estudantis em Minas
Gerais foi uma ordem do comandante do quartel-general do ID/4, o general Carlos Luiz
Guedes:

“Como imperativo do Movimento Revolucionário em curso, há necessidade de renovação


total nos Diretórios Acadêmicos, a fim de que seus Associados possam decidir
democraticamente sôbre o destino de suas Agremiações. Tendo em vista a infiltração
comunista constatada nas mesmas, ficam, a partir dêste momento, dissolvidas todas as
diretorias de Diretórios Acadêmicos das Escolas Superiores do Estado de Minas Gerais,
da União Colegial de Minas Gerais e suas filiadas” (ofício de 14 de abril de 1964).

Os militantes estudantis que haviam sido presos em Ouro Preto nos primeiros dias
do golpe começaram a ser soltos após as comemorações do dia 21 de abril de 1964. O
Presidente Castelo Branco foi homenageado pelo Governador Magalhães Pinto em
solenidade na Praça Tiradentes quando das comemorações cívicas em memória a
Tiradentes e aos demais inconfidentes.

Mas os inquéritos de crimes contra a segurança nacional já estavam em curso, bem


como os inquéritos internos da EMOP. O “Relatório de Crimes Contra a Segurança
Nacional” de Ouro Preto, que foi elaborado e concluído meses depois – foi um documento
fundamental para compreendermos a situação. Coordenado pelo delegado da cidade,
Sebastião Lucas, na apuração de possíveis crimes contra a segurança nacional foram
indiciados políticos, estudantes, professores, metalúrgicos e comerciários.

Foram os principais indiciados:

1) Políticos: Benedito Gonçalves Xavier, Antônio Cardoso Roriz, Sebastião Francisco (Maria
Preta), Júlio Armando Fortes, Kirki Gerônino e Aderilho Fernandes (todos vereadores);

2) Professores: Oswaldo Magalhães Dias e Antônio Pimenta;

3) Estudantes: Nuri Andraus Gassani, Antônio Carlos Moraes Sarmento, Eduardo Teles de
Barros (Amazonas), Ney de Almeida, Wagner Geraldo da Silva, Marco Antônio Pereira,
Rômulo Freire Pessoa, José de Paula Vasconcelos, Frank Ulrich Helmuth Falkenheim,
Osamu Takanohasi, Haroldo Pereira da Silva, Jacques Herskovic, Nelson Maculan Filho,
Sergio Antônio Pretti Maculan e Ivan Antônio de Tássis.

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Das testemunhas que prestaram depoimentos acusatórios contra os indiciados


circularam as seguintes categorias: 1) Comerciantes: 02; 2) Professores: 01; 3)
Engenheiros: 01; 4) Estudantes: 04; 5) Ferroviários: 01.

Dos relatórios selecionamos alguns trechos dos depoimentos das “testemunhas”


(considerados “dedo-duros”) com opiniões sobre as atividades políticas de algumas
lideranças estudantis presas e indiciadas entre abril e junho de 1964:

a) “[...] é elemento que sempre declarou ser comunista, constando em comentários, sem
nenhuma prova, que teria ele um transmissor e que em certa época alguem da cidade teria
ouvido o mesmo [...], pelo rádio falando em linguagem que tinha a aparência de um código
que não chegara a ser decifrado” (Relatório de Crimes Contra a Segurança Nacional – Ouro
Preto).

b) “O depoente auxiliou várias prisões, como voluntário (...) que [...] era doutrinador
comunista, constando mesmo que tinha contactos direots com o Kremlim, em Moscou, de
onde recebia instruções” (idem).

Porém, o que é mais interessante nos relatórios são as conclusões que os seus
autores chegaram sobre a revolta estudantil de Ouro Preto, o que de imediato não
concordamos:

“Ao procedermos as presentes investigações no meio dos estudantes de Ouro Preto,


verificamos que as condições de vida miserável que levam os estudantes da antiga
Capital de Minas, suas dificuldades de aquisição de livros, carissimos, levam-nos muitas
vezes a adquirir livros de procedencia russa, fornecidos a preços irrisórios. O desconforto
numa cidade em que o preço das utilidades andam á beira da morte, de tão caros, podem
levar áqueles estudantes a um estado de revolta, que os fazem esquecer de Deus e
guiarem-se ao materialismo pagão” (relatório de crimes contra a segurança nacional-
Ouro Preto).

No Documento referente aos inquéritos na EMOP (sobre apuração de subversão


logo após o golpe de 64), o que se vê é um dossiê completo com ofícios, depoimentos e
tantos outros presentes na juntada final. Como dissemos no início do texto, o mesmo não foi
aqui analisado, mas não impede de apresentarmos uma minúscula parte dele aqui no nosso
trabalho, especialmente a carta enviada pelo prefeito municipal à época ao diretor da
EMOP, Antônio Pinheiro Filho. O que mais chamou a atenção foi a homenagem prestada
pelo remetente aos vários estudantes da EMOP que atuaram com ele e com tantos outros
como “voluntários da revolução”, o que mais uma vez reforça o que os depoentes nos
narraram acerca da participação de civis diretamente na prisão e expurgo de opositores ao

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golpe na cidade de Ouro Preto, inclusive ajudando no policiamento da cidade contra


“elementos nocivos”:

“Valho-me da feliz oportunidade para levar ao conhecimento de Vv. Excias e dos dignos Diretores
da Escola de Minas, a meritória, patriótica e abnegada atuação de vários estudantes aí
matriculados que, conosco, permaneceram noites e noites constante vigília a lares de varias
famílias e autoridades desta cidade, na fase aguda da revolução de 31.3.64. Na qualidade de
prefeito municipal e um dos responsáveis pela ordem e tranqüilidade da família ouropretana,
mister se torna proclamar alto e a bom som a dívida insolvável de gratidão que a comunidade,
onde vivemos, contraiu para com estes jovens que deixaram o comodismo, o conforto e suas
primeiras obrigações para, patriótica e corajosamente, ajudar-nos no policiamento da cidade.
Creia Vv. Excias que a nossa grande Pátria e os pósteros hão de agradecer os esforços e
desprendimentos com que, honestamente, estão Vv. Excias. cuidando de averiguar se, na
Comunidade da benemérita Escola, existem elementos nocivos que desejam deslustrar o
ambiente democrático e saturado de sublimes lições e sublimes exemplos de brasilidade, que
sempre foram o apanágio do velho glorioso solar de Gorceix” (Carta de José Benedito Neves –
Prefeito de Ouro Preto – à Comissão de Inquérito, Ouro Preto, 14 de maio de 1964, grifos nossos
no Documento).

Foi inevitável o acerto de contas entre os estudantes quando a poeira começou a


baixar. Muitos estudantes presos em abril de 1964 estavam se formando. Alguns ficaram
mais tempo para concluir o curso em decorrência da prisão e do atraso nas matérias. Além
deste ônus, algumas empresas estatais não aceitaram em seus quadros a entrada de
pessoas que foram fichadas em 1964 ou em outros períodos da história.

“E teve uma reunião do Diretório em que eles não podiam mais ser chamados de
colegas, mas de “senhores”. E houve na assembléia o pessoal de direita que nos
defendeu, porque não gostavam deste tipo de negócio. E: “fulano, fulano e fulano não
são mais colegas, e sim, senhores”. Deve ter sido em maio ou em agosto de 64”
(MACULAN, 2003).

Para Maculan, que não apresenta nenhuma mágoa em relação ao comportamento


dos colegas, pensa que as implicações do envolvimento dos estudantes no golpe de 64 são
mais profundas:

“Eu tenho certeza que eles (voluntário da ´revolução´) achavam que estavam fazendo o
bem, que nós realmente éramos ´perigosos`. Não tiveram a capacidade de verificar que
estavam sendo usados, que eram instrumentos da elite da sociedade (...) Mas a nossa
volta foi um sucesso. Foi festa. Aí você vê o que mais me magoou foi o pessoal que foi
preso. E eu fiquei muito magoado com a atitude de colegas. Uma coisa é brigar. Mas
prisão é uma coisa que saí do seu nível de conhecimento” (MACULAN, 2OO3).

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A violência física também passou a rondar o quadro das disputas ideológicas: “A


turma estava a fim de dar porrada em alguém. E eles (da direita) se sentiam ameaçados.
Então tinham uns que andavam até armados (Depoimento de Antonio Carlos de Moraes
Sarmento a Otávio Luiz Machado, 2002).

Para Sarmento, a discriminação aos “dedo-duros” foi muito forte:

“Alguns poucos daqueles que eram ligados a esses dedo-duros nas repúblicas
começaram a ser discriminados por uma maioria que foi formada após o golpe militar e
de antipatia aquela situação. Muitas daqueles que eram de direita, manifestadamente da
direita e que não tinham participado do golpe nem de formação de nenhum bloco que
apoiasse o movimento militar, ficaram de certa forma contrários ao que nos foi feito como
prisões, acusações e não sei o que”.

A reorganização do movimento estudantil em Ouro Preto começou a ocorrer em


1965. Sob o comando de Hélcio Pereira Fortes – que posteriormente seria assassinado pela
repressão – o PCB foi devidamente consolidado em Ouro Preto. O mesmo mantinha uma
ligação muito produtiva com o núcleo regional de Minas Gerais do Partido, que por sua vez
estava com a liderança de Mário Alves. Tal grupo foi importante para a reorganização das
entidades estudantis em Minas Gerais

O DAEM na gestão de 1965 teve poucas condições de atuar, pois além da ameaça
de intervenção, o seu funcionamento dependia de ajustes de estatutos e da devida
aprovação das autoridades acadêmicas. O Diretório 1965-66 foi composto pelos seguintes
membros: Presidente: Cleverson Cabral; Vice-Presidente: Ivan Antônio de Tassis; 1º
Secretário: Benoni Torres; 2º Secretário: Jacques Herskovic; Tesoureiro: Rogério Vasques
Benezath.

Mas o movimento estudantil foi reconquistando um pouco mais a sua força em 1966.
A UEE de Minas Gerais, em ofício, convocou todas as entidades estudantis para as suas
eleições que ocorreriam durante o XX Congresso dos Estudantes Mineiros. E com a palavra
de ordem contra a Lei Suplicy: “Temos hoje fôrça bastante para reafirmar nossa denúncia à
Lei Suplicy, instrumento atentatório à livre organização dos estudantes. Força que provém
dos próprios estudantes e de sua consciência democrática, que não aceita as imposições
ministeriais” (Ofício de 15 de maio de 1966).

Em Ouro Preto, também, nas comemorações do 21 de abril de 1966, os estudantes e


militantes puderam também realizar protestos na solenidade. Houve ali um espaço para
contestação aberta contra o Governo militar, embora também estivesse todo o aparato
militar aguardando para reprimir. Assim, os estudantes deram uma importante
demonstração de indignação, conforme o depoimento de Nilmário Miranda: “O 21 de abril

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de 1966 ficou na história. Costa e Silva era Ministro da Guerra e veio até Ouro Preto. E foi
realizada uma manifestação, onde vários estudantes em muitos ônibus vieram dispostos
inclusive a ser presos, conseguiram surpreender e saíram daqui sem serem presos. Aí teve
uma assembléia no DCE da Gonçalves Dias em Belo Horizonte com o povo que chegou de
Ouro Preto. E dali ocorreu uma arrancada para uma chapa da UEE/MG (União Estadual dos
Estudantes de Minas Gerais) muito combativa, que é muito vinculada ao 21 de abril de Ouro
Preto. Ali também era um lugar de manifestação que fazia o Governo Militar. Sempre fez
manifestações de apoio à ditadura utilizando o 21 de abril. Portanto, os estudantes se
mobilizavam para protestar no 21 de abril” (Depoimento de Nilmário Miranda a Otávio Luiz
Machado).

Ainda durante o ano de 1966 Minas Gerais contribuiria para o movimento estudantil
brasileiro ao presidir o 28º Congresso Nacional de Estudantes da UNE que, mesmo
oficialmente proibido pelo regime militar, funcionou com o apoio dos órgãos estudantis. A
UNE realizava suas reuniões e eleições clandestinamente. O 28º Congresso foi realizado
num convento.

Para Poerner (1979, p. 274), o principal resultado do Congresso da UNE em Minas


Gerais foi o lançamento de uma palavra de ordem contrária à política educacional do
Governo e contra o próprio Governo, que desencadearia em setembro de 1966 nos
protestos nas ruas de diversas cidades brasileiras, tanto contra a cobrança das anuidades,
como contra atentado às liberdades democráticas expressos na repressão policial.

Considerações Finais

O golpe militar de 1964 provocou a interrupção da efervescência vivida pelos


estudantes universitários até então. Além do fechamento de entidades estudantis, a prisão
dos principais líderes estudantis nos primeiros dias do golpe, as universidades conviveram a
partir daí com inúmeros IPMs (Inquéritos Policiais Militares) buscando averiguar possíveis
crimes contra a “segurança nacional”.

Ao encerrarmos o texto, cremos ser possível concordar com um depoimento sobre o


movimento estudantil de Ouro Preto: “Pouco se fala dele, mas ele foi crucial na resistência
estudantil à ditadura, na reestruturação do PCB em Minas após o golpe, na formação da
Corrente Revolucionária de Minas Gerais e da ALN, na constituição de um núcleo sindical
politizado em Contagem e, finalmente, na estruturação da luta armada que se opôs à tirania”
(Depoimento de Ricardo Apgaua à Otávio Luiz Machado).

O movimento estudantil no período indicado estava sem condições de ver atendidas


suas reivindicações mínimas pelo Governo, nem pelas diretorias das faculdades e reitorias.

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Por outro lado, o crescimento vertiginoso do mercado de trabalho não era acompanhado do
debate de novas propostas de formação profissional.

Sem condições de dar respostas aos problemas universitários, impedidos de debater


o país e tendo-se iniciado um processo de desvalorização do diploma universitário, haja
vista que o número de profissionais formados superava a demanda do mercado de trabalho,
o movimento estudantil viu-se diante de uma contradição: foi autor de um projeto de reforma
universitária, mas foi rejeitado quando o Governo resolveu fazê-la.

O que se pode concluir é que, na luta pela transformação da sociedade brasileira, as


pautas específicas do movimento estudantil estiveram fortemente focadas na reforma do
ensino e na questão da formação profissional no final dos anos 1950, e a partir daí
passaram a estar mais associadas com uma luta política a medida que o compromisso com
as reivindicações estudantis acabou por abranger a sociedade como um todo, porque
adquiriu dimensão social a vinculação do jovem universitário ao processo de consolidação e
expansão da ordem competitiva, levando-se em consideração que a juventude universitária
que tinha a universidade como a última etapa preparatória para a entrada no mundo adulto,
também a tinha como canal de ascensão social.

Referências

1) Documentos Consultados ou indicados para Pesquisas

DIRETÓRIO ACADÊMICO DA ESCOLA DE MINAS DE OURO PRETO. Atas das Sessões


ordinárias e extraordinárias das Assembléias Gerais. 24 de abril de 1954 a 20 de maio de
1965.

____. Atas das reuniões de Diretoria. 26 de maio de 1958 a 9 de junho de 1962.

____. Atas das reuniões do Conselho de Representantes dos alunos da Escola Nacional de
Minas e Metalurgia da Universidade do brasil, 15 de maio de 1957 a 26 de outubro de 1962.

____. Atas das reuniões do Conselho de Representantes dos alunos da Escola Nacional de
Minas e Metalurgia da Universidade do Brasil, 15 de maio de 1957 a 26 de outubro de 1962.

DEPARTAMENTO DE ORDEM POLÍTICA E SOCIAL – DOPS. Relatório de Crimes Contra a


Segurança Nacional. Ouro Preto, 21 de Julho de 1964. DVS – 033.

ESCOLA DE MINAS DE OURO PRETO. Atas da Congregação. Diversas sessões. Várias


datas.

UNIÃO ESTUDUAL DOS ESTUDANTES (UEE-MG). Ofícios diversos. Várias datas.

2) Bibliografia

ISBN: 978-85-62707-55-1
411 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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412 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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Direito à verdade e à memória: (re)memorar é preciso

Paula de Sousa CONSTANTE


Mestranda em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais-
PUC/MG, Especialista em Direito Internacional pelo Centro de Estudos em Direito
Internacional- CEDIN, Graduada em Direito pela Newton Paiva. Graduanda em Ciências do
Estado pela UFMG.
psconstante@gmail.com

Introdução

“se as coisas são inatingíveis... ora! Não há motivos para não querê-las...Que tristes
os caminhos, se não fora a presença distante das estrelas” (Mario Quintana)

Durante 21 anos o Brasil viveu em um regime ditatorial, marcado por constantes violações
aos direitos humanos, dentre eles o desaparecimento forçado de pessoas e a violação à
dignidade da pessoa humana, o que deixou resquícios até os dias de hoje. Entretanto esse
período veio em voga com o Debate acerca do Direito à Verdade e à Memória e a
necessidade de instauração de uma Comissão para averiguar as violações à época e
(re)construir a memória “apagada” da sociedade.

A aprovação da lei de anistia no Brasil em 1979, durante o regime militar, é o marco jurídico
fundante do processo de redemocratização. A forte e histórica mobilização social da luta
pela anistia e pela abertura política é de tal sorte que do conceito de anistia emana toda a
concepção da Justiça de Transição no Brasil. O conceito de anistia enquanto “impunidade e
esquecimento” defendido pelo regime militar e seus apoiadores seguiu estanque ao longo
dos últimos anos, passando por atualizações jurisprudenciais. Por outro lado, o conceito de
anistia defendido pela sociedade civil na década de 1970, anistia enquanto “liberdade”,
seguiu desenvolvendo-se durante a democratização, consolidando-se na ideia de anistia
enquanto “reparação” constitucionalizada no artigo 8º do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias de 1988. Portanto, quanto ao déficit de juridicidade, a questão
que se apresenta é a seguinte: acordos políticos do passado autoritário podem ter o condão
de afastar o exercício de direitos humanos na democracia? Existe democracia sem direitos
humanos? (Abraão e Torelly, 2012).

No que tange ao período de transição de um regime ditatorial para um regime democrático,


enquanto a ditadura Argentina terminou em ruptura, o Brasil e o Chile são exemplos de
transições controladas. E a ditadura brasileira executou de forma meticulosa seu plano de
saída: (I) uma lei de auto anistia restrita para afastar posições políticas radicalizadas; (II)
eleições indiretas para assegurar uma lógica de continuidade; e (III) ampla destruição de
arquivos públicos dos centros e órgãos de repressão para tentar apagar vestígios e

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responsabilidades individuais pelas graves violações aos direitos humanos. (Abraão e


Torelly, 2012).

A Justiça de Transição, in concreto, pode ser concebida segundo três características: a


complementaridade, a circularidade e a contextualidade dos seus mecanismos.
Complementaridade significa que verdade, memória, justiça e reparação são elementos que
se entrecruzam, suas funções são superpostas e interdependentes. Por exemplo, o direito à
verdade depende tanto da atuação das comissões de verdade e reparação quanto do
sistema de justiça. Circularidade significa que os resultados de uns destes mecanismos
remetem à necessidade de aplicação dos outros. Por exemplo, o trabalho final de uma
comissão da verdade impõe novas medidas reparatórias, abre horizontes de justiça e
promove novas memórias. Contextualidade, por sua vez, implica que os mecanismos são
aplicados conforme as características históricas, políticas e de cada transição local. Por
exemplo, as ditaduras na América Latina ocorreram no contexto da Guerra Fria, estimuladas
por uma das potências do mundo bipolar contra a expansão do poder da outra. No caso
brasileiro, lutava-se contra a expansão do pensamento socialista e das ideias de esquerda.
Para a América Latina, que possui déficits históricos na consolidação do Estado de Direito, é
particularmente caro que o sistema de Justiça participe do processo de democratização da
sociedade e das instituições. E, assim, supere um conjunto de jurisprudências autoritárias
para afirmar os direitos humanos visando vocacionar-se para a superação de uma
concepção institucional de controle social repressivo rumo a uma concepção de segurança e
justiça protetiva da emancipação social. (Abraão e Torelly, 2012).

Atualmente tem se discutido no Brasil sobre a importância do Direito à Verdade e à


Memória, sendo que ela consiste em uma das etapas da justiça transicional, a qual se
mostra relevante para a construção da democracia. O Sistema Interamericano tem
desenvolvido um papel importante para a justiça transicional, pois tem sido acionada por
familiares e movimentos sociais no cumprimento de sentença da Corte Interamericana de
Direitos Humanos e assim superar obstáculos jurídicos (lei da Anistia) e promover a
responsabilização judicial dos agentes perpetradores de crimes contra a humanidade.

Deste modo, esse artigo vem trabalhar a importância do (re)memorar, ou para alguns, tomar
conhecimento, em especial a juventude brasileira que carece de conhecimento acerca
desse período tendo em vista a escassa quantidade de livros didáticos sobre o tema da
Verdade e da Memória e a consolidação da Democracia no Brasil.

Construir uma sociedade sem memória é torná-la incapaz de sustentar um regime


democrático.A memória e o conhecimento da verdade não é recordar o passado, mas

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consiste em pensar um futuro democrático, bem como conhecer é emancipar para a


construção política e social, redefinir o passado, refletir o presente e projetar um futuro com
racionalidade devida.

Direito a verdade e memória

Para compreendermos o Direito à Verdade e à Memória devemos ter em mente que ela
constitui-se como um dos elementos da Justiça Transicional. O conceito de justiça
transicional surgiu no final da década de oitenta e início da década de noventa,
principalmente em resposta às mudanças políticas ocorridas na América Latina e no Leste
Europeu. Da junção de demandas por justiça e por transição democrática, o termo justiça
transicional foi cunhado para expressar métodos e formas de responder a sistemáticas e
amplas violações aos direitos humanos. Assim, justiça transicional não expressa nenhuma
forma especial de justiça, mas diversas iniciativas que têm por intuito reconhecer o direito
das vítimas, promover a paz, facilitar a reconciliação e garantir o fortalecimento da
democracia.

Em 1988, esta área ganhou importante fundamento no direito internacional. Parte disto em
função da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, relativa ao caso
Velásquez Rodríguez vs. Honduras, em que ficou definido que todos os Estados estão
sujeitos a quatro obrigações: a) tomar medidas para prevenir violações aos direitos
humanos; b) conduzir investigações quando as violações ocorrerem; c) impor sanções aos
responsáveis pelas violações e d) garantir reparação para as vítimas. Estes princípios foram
reafirmados em decisões subsequentes e adotados também por decisões da Corte Europeia
de Direitos Humanos e por tratados e resoluções da ONU (Pinto, 2010).

Desta forma, o Direito à Memória e à Verdade deve ser entendido como algo vivo e como
um instrumento que sinalize à sociedade que num passado recente ela estivera presa à
dominação estatal. A memória é fundamental para a ressignificação social e temporal das
pessoas e segundo Hannah Arenth é “o elo que liga o passado ao futuro, tencionando e
agregando significado ao momento presente”( ARENTH, 2000). Ela deve ser tratada como o
dever de não esquecer, deste modo, este direito consiste em uma obrigação estatal de criar
espaços públicos, a fim de propiciar o debate e contribuir para emancipação política dos
indivíduos. Além disso, mais importante do que a memória individual construída tem-se a
memória coletiva como direito e constructo para a construção e fortalecimento da nossa
sociedade.Desta feita, a memória é um dever-direito, necessáriocomo fator cultural, social e
emancipatório do povo.

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O Direito à Verdade consiste no direito de procurar, receber e transmitir informações e


permiti o acesso ao chamado “arquivo secreto da ditadura”. Esse direito está estritamente
relacionado ao direito à liberdade de expressão. Na realidade a possibilidade de construção
de uma possível verdade acerca dos fatos ocorridos se relaciona com a memória e com a
educação em Direitos Humanos na maneira que esta proporciona o fortalecimento do
respeito aos direitos humanos e as liberdades fundamentais de todo ser humano e o pleno
desenvolvimento das potencialidades humanas.

O grande retrocesso da justiça de transição no Brasil: ADPF 153 do STF

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados, doravante Conselho do Brasil ingressou


Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)no Supremo Tribunal
Federal(STF) com o intuito de questionar, em especial, o artigo 1º da Lei de Anistia
(6.683/79) o qual versava:
“Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período
compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de
1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes
eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos
servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações
vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo
e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais,
punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.§
1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de
qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados
por motivação política.”

O conselho almejava que o artigo 1º fosse revisto com base na Constituição Federal de
1988, bem como pelos tratados ratificados e vigentes no País. Partindo do pressuposto que
a Constituição tem como princípios fundamentais o direito à vida, à integridade física e
pessoal, bem como o livre acesso à informação pública. Requeria do STF uma análise
hermenêutica, conforme a Constituição Federal, tendo em vista que ele é o guardião da
mesma e uma análise axiológica, a fim de possibilitar uma efetiva justiça de transição no
Brasil.
Entretanto a rejeição do ADPF 153 representou um enorme retrocesso para a sociedade
brasileira, uma vez que reiterou a impunidade dos crimes cometidos na ditadura, como
assim também fez a Lei de Anistia, e, deste modo um retrocesso ao processo democrático.
A decisão não levou em consideração a relevância da temática para a consolidação de um

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direito à verdade e à memória e representou uma visão conservadora, não hermenêutica e


que ignora os preceitos constitucionais do País, bem como a legislação internacional
ratificada. Conforme entendimento do presidente da Corte Internacional de Justiça, Cançado
Trindade, a lei de anistia significa uma “aberração jurídica”, pois viola normas cogentes de
direitos humanos.
No julgamento da ADPF o STF afirmou que a tortura não era tipificada no período da
ditadura militar, bem como não estava prevista de forma expressa na Constituição que
vigorava no período histórico, mas devemos salientar que o golpe ocorrido em 1964 foi uma
violação direta ao princípio da dignidade da pessoa humana, aos direitos fundamentais e à
democracia. Reiterar, como assim o fez o STF, a constitucionalidade da lei de Anistia é
fechar os olhos para que uma real e efetiva democracia aconteça. Deste modo, o STF,
negando a APDF 153, afirmou que a Lei de Anistia é constitucional e vigente até a presente
data. Um ponto importante é que a decisão do STF no ordenamento brasileiro tem caráter
erga omnes e não cabe recurso. O voto do Ministro relator expressa de forma bem clara o
posicionamento do guardião da Constituição sobre o tema em tela:
“(...)a Lei de Anistia foi “uma lei-medida”, não uma regra para o futuro
e, como tal, deve “interpretar-se em conjunto com o seu texto, a
realidade no e do momento histórico no qual foi criada e não a
realidade atual”. Nesse sentido, a Lei implementou “uma decisão
política [do] momento da transição conciliada de 1979”, uma vez que
“foram todos absolvidos, uns absolvendo-se a si mesmos”. A lei,
efetivamente, incluiu na anistia os “agentes políticos que praticaram
crimes comuns contra opositores políticos, presos ou não, durante o
regime militar”. O acordo político realizado pela classe política, que
possibilitou a transição para o Estado de direito “resultou em um
texto de lei [e, portanto,] quem poderia revê-lo seria exclusivamente o
Poder Legislativo. Ao Supremo Tribunal Federal não incumbe alterar
textos normativos concessivos de anistias”. Finalmente, a respeito da
recepção ou não da Lei No. 6.683/79 na nova ordem constitucional
democrática, salientou que “a [L]ey [de Anistia] de 1979 já não
pertence à ordem decaída. Está integrada na nova ordem
[constitucional]. Constitui a origem da nova norma fundamental” e,
portanto, “sua adequação à Constituição de 1988 resulta
inquestionável.”(Voto do Ministro Relator, folhas 2598 a 2670)
.
O Supremo Tribunal Federal brasileiro negou o direito à proteção judicial das vítimas,
impedindo a investigação criminal dos fatos cobertos pela lei de anistia, mas afirmou o
direito da sociedade ter acesso à verdade.Mas como ter conhecimento de uma possível
verdade se não se pode prosseguir com as investigações? Como construir uma verdade
sem conhecer a história que permeia os acontecimentos? O STF incumbiu o silêncio dos
acontecimentos e a possibilidade de construção de uma memória coletiva e nacional, a fim

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de evitar que atrocidades ocorram no futuro.


Deste modo, em 2010, os familiares dos mortos e desaparecidos no episódio da Guerrilha
do Araguaia, com apoio do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL)
demandaram no Sistema Interamericano interpretação sobre o caso e conquistaram uma
sentença junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos favorável. A sentença declarou
o dever do Estado brasileiro de suspender todos os obstáculos jurídicos impeditivos do
direito à proteção judicial das vítimas, inclusive na esfera penal. E, ainda, de declarar a lei
de anistia brasileira como uma clara autoanistia, incompatível com a jurisprudência do
Sistema Interamericano de Direitos Humanos, especialmente em relação às graves
violações contra os direitos humanos. (Abrão e Torelly, 2012)

A responsabilidade do Estado brasileiro e a invalidade da ADPF 153 do STF

Ab initio faz-se mister salientar que o Estado brasileiro já havia se considerado, de certo
modo, responsável pelo assassinato de opositores políticos, quando em 4 de dezembro de
1995 promulgou a Lei 9.140/95. Esta lei reconheceu a responsabilidade objetiva estatal
sobre cerca de 138 casos de desaparecidos, bem como o pagamento pecuniário para as
vítimas.Entretanto cada uma delas deveria demandar de forma particularizada para receber
o que lhe é de direito. Porém, quando da edição da decisão da ADPF 153, o Estado
brasileiro demonstrou falta de compromisso com o avanço do direito à verdade e à memória
e a consolidação da democracia no País.
A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos é unânime no entendimento
de que o desaparecimento forçado constitui grave e múltipla violação dos direitos humanos,
em especial de distintos dispositivos da Convenção Americana (Caso Anzualdo Castro
versus Peru. Exceção Preliminar, Mérito, Reparações e Custas. Sentença).A Corte
reconheceu a responsabilidade do Estado no caso da Guerrilha do Araguaia, reiterando o
desaparecimento forçado de pessoas como uma violação a privação da liberdade
resguardada no artigo 7º da Convenção Americana, conforme vislumbra do entendimento
abaixo:

Como estabeleceu o Tribunal, a sujeição de pessoas detidas a


órgãos oficiais de repressão, a agentes estatais ou a particulares que
atuem com sua aquiescência ou tolerância, que impunemente
pratiquem a tortura ou assassinato, representa, por si mesmo, uma
infração ao dever de prevenção de violações dos direitos à

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integridade pessoal e à vida, estabelecidos nos artigos 5 e 4 da


Convenção Americana, ainda na hipótese em que os atos de tortura
ou de privação da vida destas pessoas não possam ser
demonstrados no caso concreto. (Caso Velázquez Rodríguez. Mérito,
supra nota 25, par. 175).

A Corte tem reconhecido também em seus julgados que o desaparecimento implica a


execução dos detidos, a falta de acesso à informação, falta de ampla defesa e contraditório,
tendo em vista que as execuções não possuem julgamento prévio (Caso Velázquez
Rodríguez. Mérito, supra nota 25, par. 157),tudo isso com o escopo de ocultar os possíveis
resquícios da história. É dever do Estado, reconhecido pela Corte(Caso Velásquez
Rodríguez. Mérito, par. 166) o dever de punir e investigar as decorrentes violações de
direitos humanos e alcançam caráter iuscogens( Caso Goiburú e outros, par. 84).Além
disso, é de salutar importância a atuação das vítimas e seus familiares no processo, a fim de
pleitear a reparação devidae os possíveis esclarecimentos dos fatos e desaparecimentos de
forma verídica.
A ADPF foi considerada inválida e também aos olhos do ordenamento internacional viola os
direitos humanos, pois os crimes cometidos constituem-se como crimes contra a
humanidade, bem como há claro repúdio desta conduta por diversas Convenções e
acordos, como as disposições do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidasque
expressam que é dever do Estado investigar as violações ao Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos, assim como o Comitê contra a Tortura das Nações Unidas para o qual,
ante a suspeita de atos de tortura contra alguma pessoa, os Estados devem proceder a uma
investigação, de forma imediata e imparcial (Caso QaniHalimi-Nedzibi versus Áustria.
Comunicação No. 8/1991 Decisão de 30 de novembro de 1993, par. 13.5;Caso Saadia Ali
versus Tunísia. Comunicação No. 291/2006). A Corte Europeia de Direitos Humanos
também emanou seu entendimento no sentido de que as violações do direito à vida e à
integridade(ambas ocorridas na guerrilha do Araguaia e em distintos atos de tortura
presenciados no período militar) implicam não somente o ressarcimento pecuniário, mas
também a busca e feitura efetiva das investigações de maneira eficaz e exaustiva, com o
intuito de proceder a identificação e punição dos pretensos responsáveis(E.C.H.R., Case
ofAksoy v. Turkey. Application No. 21987/93, Judgmentof 18 December 1996, par 98).Ainda
nesse diapasão, a Comissão Africana sobre Direitos Humanos e Povos manifestou-se no
sentido de que a impunidade contra o processamento e julgamento de violações de direitos
humanos, o que se aplica de forma extensiva à decisão tomada pela Corte Maior do Brasil-

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STF na ADPF 153, não reconhecendo a ausência de constitucionalidade da Lei de Anistia,


constitui descumprimento das obrigações internacionalmente aceitas pelo Estado
(A.C.H.P.R., Case ofMouvementIvoiriendesDroitsHumains (MIDH) v. Côte d’Ivoire,
Communication No. 246/2002, Decisionof July 2008, paras. 97 and 98).

O STF ao proferir decisão na ADPF não levou em consideração a normativa internacional -


Corte Interamericana de Direitos Humanos, Comissão Interamericana de Direitos Humanos,
Decisões das Nações Unidas e de distintos órgãos dos sistema regionais de proteção de
direitos humanos- que repudia a autoanistia, ou melhor, que declara incompatível a Lei de
Anistia com o Estado Democrático de Direito e sua consolidação. A Corte no caso “Barrios
Alatos e La Cantuta” e “AlmonacidArellano e outros” declarou que as leis de anistias são
incompatíveis com a Convenção Americana de Direitos Humanos.Importante frisar que o
Brasil, em clara demonstração de soberania, ratificou a Convenção por livre ato volitivo e o
STF descumpriu a obrigação estabelecida nessa Convenção.

Por fim, a Corte manifesta-se no sentido da criação de mecanismos para a efetivação da


democracia e, a partir disso, preza pela criação de mecanismos que possam punir os
torturadores, bem como ressarcir as vítimas por eventuais danos causados e com isso
possibilitar a construção de uma verdadeira passagem de Transição, uma verdadeira justiça
de transição.

Da possibilidade de responsabilidade individual


O Estado já declarou a sua responsabilidade objetiva perante os casos ocorridos no período
da ditadura, entretanto uma nova discussãoque vem à tona é a responsabilização individual
dos torturados, pois até o presente momento não houve sequer arrependimento público. A
não punição dos perpetradores pode ser vista como um retrocesso da justiça transicional no
Brasil, de modo que não permite o reconhecimento necessário e sistemático do primeiro
instrumento da justiça de transição, conforme preceitua Emílio Peluso em sua obra Direito e
Literatura: representações do crime e da sociedade(NEDER PELUSO, 2012). A Corte
Interamericana de Direitos Humanos reconheceu em diversos casos que a responsabilidade
dos casos correlatos à ditadura deve ser analisada frente ao viés penal, a fim de que se
punam os autores de violações de direitos humanos, o que decorre da obrigação de garantia
prevista no artigo 1.1. da Convenção Americana.

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Esta obrigação implica o dever dos Estados Parte de organizar todo o aparato
governamental e, em geral, todas as estruturas por meio das quais se manifesta o exercício
do poder público, de maneira tal que sejam capazes de assegurar juridicamente o livre e
pleno exercício dos direitos humanos. Como consequênciadessa obrigação, os Estados
devem prevenir, investigar e punir toda violação dos direitos humanos reconhecidos pela
Convenção e procurar, ademais, o restabelecimento, caso seja possível, do direito violado e,
se for o caso, a reparação dos danos provocados pela violação dos direitos humanos. É
importante a responsabilização para o processo de amadurecimento da história política e
constitucional do País e para que se fortalece a democracia.

Direto à verdade e à memória e seu liame com a educação em direitos humanos

O Direito à Verdade e à Memória ainda não se concretizou no Brasil e, por isso, pensar em
educação em direitos humanos se mostra relevante, principalmente porque está em pauta a
votação de uma Comissão da Verdade e da Memória, que irá contribuir para a construção
da memória no País.
É verdade que os acontecimentos ocorridos entre 1964 e 1985 criaram uma apatia na
sociedade brasileira em relação à política e,tão somente, a educação em Direitos Humanos
é necessária para a reconstrução do ideário social e político. Conforme afirma Vera Maria
Candau, a Educação em Direitos Humanos engloba a formação de sujeitos de direito, o
empoderamento dos atores sociais e influi nos processos de mudanças necessários para a
construção de uma sociedade democrática.
A Educação em Direitos Humanos visa sanar com o desconhecimento do passado-
presente1e contribuir parara a formação de valores e de novas práticas sociais. Nesse
sentido, a ação educativa deve ser promovida de maneira curricular e extracurricular,
propiciando lugares de debate e reflexão para a sociedade. Pois a educação consiste em
um instrumento que possibilita aos indivíduos descobrirem novas formas de luta e de
resistência. Compreender o Direito à Memória e à Verdade como integrante fulcral da
Educação de Direitos Humanos é repensar a construção da sociedade brasileira e
reconstruir uma memória política necessária para a efetiva democracia no Brasil e, dessa
forma, possibilitar que novas atrocidades não ocorram, bem como consiste em um direito
dos jovens conhecerem e evitarem o discurso do desconhecimento acerca desse período
mitigado pelos livros didáticos.

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Passado-presente no sentido em que até os dias de hoje a questão da ditadura é
rememorada.

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Por fim, construir uma sociedade sem memória é torná-la incapaz de sustentar um regime
democrático. A memória e o conhecimento da verdade não é recordar o passado, mas
consiste em pensar um futuro democrático, bem como educar em direitos humanos é
emancipar para a construção política e social, redefinir o passado, refletir o presente e
projetar um futuro com a racionalidade devida.

Considerações finais

De um lado vislumbramos o trabalho memorável da Corte Interamericana de Direitos


Humanos em responsabilizar o Brasil pela não punição dos perpetradores responsáveis
pelas mortes na denominada Guerrilha do Araguaia, caminhando em conformidade com as
finalidades da Justiça de Transição e efetivação de um sistema verdadeiramente
democrático e que visa (re)construir uma memória “perdida” da sociedade brasileira.
Todavia o Supremo Tribunal Federal, a mais alta corte do Estado, em um claro
desconhecimento das obrigações internacionais ou inobservância da legislação
internacional ratificada pelo Brasil, as quais o Estado Brasileiro faz parte, considerou
constitucional a ADPF 153. Segundo expressa Marcelo Cattoni e Emilio Peluso:
“Cabe, portanto, criticar a decisão do Supremo Tribunal Federal na
ADPF 153/DF, pelo menos, quanto aos seus argumentos históricos
anacrônicos; seus pressupostos hermenêuticos inadequados; e sua
visão jurídico-constitucional, penal e internacional
ultrapassada”.(CATTONI DE OLIVEIRA e MEYER, 2011)

Essa decisão significou um verdadeiro retrocesso na história do Brasil e vai de encontro à


ideia de uma educação em direitos humanos pautada no direito à verdade e à memória e a
necessidade de criação de uma identidade ou (re)conhecimento do passado.

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Fabris Editor, 1997.

2) Casos- Jurisprudência internacional

Cf. Caso Anzualdo Castro versus Peru. Exceção Preliminar, Mérito, Reparações e Custas.
Sentença de 22 de setembro de 2009. Série C No. 202,

Caso Radilla Pacheco, supra nota 24,

CasoIbsen Cárdenas e Ibsen Peña, supra nota 24,

Cf. Caso Velázquez Rodríguez. Mérito, supra nota 25,

Caso ChitayNech e outros, supra nota 25,

Caso Ibsen Cárdenas e Ibsen Peña, supra nota 24,

Cf. Caso Velásquez Rodríguez. Mérito, supra nota 25,

Cf. Caso Goiburú e outros, supra nota 130, par. 84;

Caso ChitayNech e outros, supra nota 25, par,

Caso Ibsen Cárdenas e Ibsen Peña, supra nota 24, par. 197.

C.A.T., Caso QaniHalimi-Nedzibi versus Áustria. Comunicação No. 8/1991 Decisão de 30


denovembro de 1993, par. 13.5;

C.A.T., Caso Saadia Ali versus Tunísia. Comunicação No. 291/2006, Decisão de 21 de
novembro de 2008, par. 15.7,

C.A.T., Caso BesimOsmani v. República da Sérvia. Comunicação No. 261/2005, Decisão de


8 maio de 2009, par. 10.7.

Cf. E.C.H.R., Case of Aksoy v. Turkey. Application No. 21987/93, Judgment of 18 December
1996, para 98;

E.C.H.R., Case of Aydin v. Turkey. Application No. 23178/94, Judgment of 25 September


1997, para 103;

E.C.H.R., Case of Selçuk and Asker v. Turkey. Applications Nos. 23184/94 and 23185/94,
Judgment of 24 April 1998, para 96,

E.C.H.R., Case of Keenan v. United Kingdom. Application No. 27229/95, Judgment of 3 April
2001, para 123.

Cf. A.C.H.P.R., Case of MouvementIvoirien des Droits Humains (MIDH) v. Côte d’Ivoire,
Communication No. 246/2002, Decision of July 2008, paras. 97 and 98.

ISBN: 978-85-62707-55-1
424 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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Qual nome? A pesquisa onomástica em contextos transicionais: reflexões sobre o


modelo de justiça de transição

Pedro Ivo C. TEIXEIRENSE


Doutorando no Programa de História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(PPGHIS-UFRJ). Bolsista CAPES.
pedroteixeirense@gmail.com

Este trabalho propõe algumas reflexões acerca da importância da pesquisa


onomástica em contextos históricos de transições políticas. Particularmente, o foco desta
pesquisa situa-se em sociedades que experimentaram processos transicionais a partir de
regimes autoritários. Em essência, o paradigma de justiça de transição, cujo cerne reside na
reparação e reconhecimento dos direitos dos indivíduos que foram vítimas de
arbitrariedades ocorridas no passado, tem sido exercido por meio da perspectiva dos
direitos individuais. Por essa razão, espera-se dos procedimentos jurisdicionais e, também,
da produção historiográfica, um conjunto de aportes teóricos acerca dos limites e desafios
da pesquisa onomástica.

Soma-se a isso o fato de que as reflexões sobre os limites da pesquisa


onomástica apresentam um variado leque de temas sobre os próprios modelos de justiça de
transição adotados, no estudo em tela, no caso brasileiro. Em decorrência, pretende-se
esboçar a necessidade de aprofundamento dos debates acerca dos deveres estatais para
além do reconhecimento dos direitos individuais. Em outras palavras, à dimensão
reparadora, presente no modelo brasileiro, deve-se acrescentar a dimensão de reforma
institucional.

Para este estudo historiográfico, entende-se que os limites apresentados pela


pesquisa onomástica apresentam desafios para a produção do saber historiográfico; ao
mesmo tempo, contribuem para as disputas memoriais e políticas sobre a representação
pretensamente hegemônica do passado. Em resumo, propõe-se que as margens da
pesquisa onomástica possam ser estendidas para além da contribuição demográfica até
então explorada.

Esse rico campo dos estudos lexicais, encontra-se dividido em dois ramos
paralelos. De um lado, ao estudo do topônimo (nome próprio que se atribui ao lugar) situa-
se a Toponímia; de outro, o ramo da ciência, que lida com o estudo dos nomes pessoais, é
conhecido como Antroponímia.

Deve-se ressaltar que a Onomástica, na lição de Ramos (2008), encontra suas


funções para além do trabalho baseado na lexicografia e nos estudos de documentos e
dados oficiais; cabe ao estudioso o desvendar da história que se esconde por trás da
nomenclatura sob análise, por intermédio da relação existente entre movimentos históricos e

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sociais com o próprio fenômeno de nomear; com o ato de dar nome ou de emprestar um
nome ao “corpora toponímico”.

Para estabelecer um diálogo com o historiador Carlo Ginzburg (1995), essa


pretensão pode ser traduzida por meio de uma sofisticada atribuição aos estudos
onomásticos: “o fio de Ariana que guia o investigador no labirinto documental é aquilo que
distingue um indivíduo de outro em todas as sociedades conhecidas: o nome”.

No trecho citado acima, Ginzburg subverte a noção convencional que


usualmente é atribuída aos estudos onomásticos; há, nessa reflexão, um conjunto de
conceitos que procura expandir as possibilidades da pesquisa e da reflexão historiográfica.
Essa inovação, por intermédio de requintado uso metodológico, nas pesquisas realizadas
junto aos arquivos, utiliza o nome que fora atribuído aos indivíduos como ferramenta básica
de pesquisa.

O ponto de partida da ideia apresentada pelo autor, que ele considera uma
constatação banal, é de que “as trocas historiográficas entre a Itália e a França foram
fortemente desequilibradas”. Aparentemente simples, a observação de Ginzburg tem o
objetivo de apresentar uma sutil crítica à história da historiografia.

Em outras palavras, os estudos quantitativos, acerca do tema em tela, seriam


insuficientes para explicar as trocas ocorridas no mercado historiográfico. Apenas por meio
de estudos baseados no uso social da historiografia, tornar-se-ia possível “reconstituir os
termos de uma relação que implica”, fundamentalmente, uma escolha política.

E qual a relação existente entre a desigualdade presente no mercado


historiográfico e o uso da pesquisa onomástica em uma perspectiva inovadora? Ginzburg
assinala que, em primeiro lugar, a defasagem observada nas trocas historiográficas está
relacionada às possibilidades de pesquisa e exploração do acervo documental arquivístico,
“sem o qual o historiador não pode trabalhar”. Quando essas possibilidades encontram-se
bloqueadas, as restrições impostas ao trabalho historiográfico definem um desnivelamento
nas relações de troca entre dois ou mais “mercados” historiográficos.

Em segundo lugar, a impossibilidade de exploração adequada do acervo


arquivístico, opera dois fenômenos que, embora relacionados, apresentam efeitos distintos:
de um lado, ocorre uma imediata seleção dos arquivos pesquisados; de outro, essa restrição
contribui para que a produção historiográfica seja proveniente de arquivos que refletem
aquilo que Ginzburg chamou de “uma relação social específica”.

Por meio dessa constatação, o autor aponta requintada análise acerca das
relações existentes entre a História e a Antropologia. Enquanto se observa, no

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desenvolvimento do campo antropológico, uma complexidade de relações sociais


reconstruíveis pelo antropólogo, o historiador, estaria restrito à “unilateralidade dos
depósitos de arquivo com que trabalha”.

Neste ponto, nos aproximamos das ideias de Ginzburg que fomentaram a


produção deste trabalho. Para o autor, a unilateralidade dos “depósitos de arquivo” serve,
fundamentalmente, para legitimar a especialização do investigador. Ao contrário do
antropólogo, o historiador estaria reproduzindo a visão compartimentada dos arquivos
especializados que acabam por reduzir a atuação do indivíduo a uma dada esfera, digamos,
administrativa da vida.

“Os registros civis apresentam-nos os indivíduos enquanto nascidos e mortos, pais e filhos; os
registros cadastrais, enquanto proprietários ou usufrutuários; os autos, enquanto criminosos,
enquanto autores e testemunhas de um processo. Mas assim corre-se o risco de perder a
complexidade das relações que ligam um indivíduo a uma sociedade determinada”. (Ginzburg,
1995, p.173)

A crítica formulada por esse historiador, embora, aparentemente


desanimadora, destaca, ao mesmo tempo, uma possibilidade inovadora de pesquisa, ao
ressaltar novas funções para a pesquisa onomástica. Nesse ponto, de acordo com
Ginzburg, podem ser exploradas, no âmbito de investigações não muito extensivas, séries
documentais que aparecem sobrepostas no tempo e no espaço: poderíamos encontrar o
mesmo indivíduo, ou ainda, grupos de indivíduos, em inúmeros contextos sociais. Era esse
o “fio de Ariana” a que se referia o autor.

Uma última observação acerca desse aspecto merece destaque: o ponto


central para a teoria, que Ginzburg desenvolve em torno desse modelo de pesquisa micro
nominal, reside na possibilidade de que, por meio da pesquisa local, fosse possível
contribuir para uma narrativa generalizada dos fenômenos sociais.

“Mas o centro de gravidade do tipo de investigação micro nominal que aqui propomos encontra-
se noutra parte. As linhas que convergem para o nome e que dele partem, compondo uma
espécie de teia de malha fina, dão ao observador a imagem gráfica do tecido social em que o
indivíduo está inserido”. (op.cit, 1995, p.175)

Em resumo, para o autor, por meio desse método seria possível, para além da
documentação, “atingir aquele nível mais profundo, invisível, que é constituído pelas regras
do jogo, a história que os homens não sabem que fazem”.

Após essa breve introdução, poderíamos ainda nos questionar em que sentido
a utilização da pesquisa onomástica, proposta por Ginzburg, acrescentaria algum diferencial
às pesquisas tradicionais que continuam sendo realizadas diariamente? Ou ainda, em que

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sentido se pode afirmar que a utilização do método micro nominal representa instrumento de
configuração de redes sociais mais abrangentes na narrativa histórica sobre um dado
indivíduo?

Para responder a esses questionamentos, lançaremos mão de algumas


reflexões acerca das disputas memoriais que têm caracterizado os processos de transição
política nas sociedades que experimentaram algum modelo de regime autoritário. Em
particular, dedicaremos mais atenção às batalhas pela memória que têm marcado a
transição política brasileira.

Inicialmente, poderíamos adiantar que o método micro nominal representa, de


imediato, uma reformulação das técnicas de pesquisa em arquivo mais tradicionais. Em
segundo lugar, ao desafiar o padrão de enquadramento dos arquivos, ou seja, o padrão dos
“depósitos de arquivo”, o método seria um convite à ampliação dos horizontes no campo das
pesquisas; particularmente, daquelas que trabalham com aspectos relacionados com
violações de Direitos Humanos.

Todas essas questões serão abordadas por intermédio de algumas


considerações acerca de três aspectos fundamentais para as tentativas de investigação das
inter-relações entre os modelos de justiça de transição1, os processos de transição para o
regime democrático e o método micro nominal. Para o enriquecimento dos debates,
abordaremos alguns aspectos sobre os debates correntes no campo dos Direitos Humanos
e sua relação com a historiografia. Por último, esboçaremos algumas ideias sobre o olhar
brasileiro acerca do conceito de justiça de transição.

O processo brasileiro baseou-se na adoção das dimensões caracterizadoras de


um processo de justiça de transição que tem sido caracterizada como gradativa. A gênese
do processo de reparação, um dos mecanismos de justiça transicional, tem sido identificada,
na historiografia tradicional, como o marco da transição política brasileira. Sua origem, ainda
sob a ditadura civil-militar, deu-se no ano de 19792.

1
Para este estudo, entende-se Justiça de Transição como o conjunto de mecanismos que buscam
propor soluções para o enfrentamento do legado de violações de Direitos Humanos que
ocorreram em um dado momento da história. Sobre o conceito de Justiça de Transição ver
BICKFORD, Louis, “Transitional Justice”, in: The encyclopedia of Genocide and crimes against
Humanity, Macmillan Reference USA, 2004, Vol. 03, pp. 1045-1047.
2
É importante destacar que abordagem histórica mais recente procura desvincular o processo de
reparação aos perseguidos políticos do marco instituído em torno do ano de 1979. Essa nova
historiografia em consolidação, tem trabalhado com o intuito de identificar uma luta política,
construída ao longo de anos, como substrato das conquistas que culminariam na Lei de Anistia.
Para este trabalho, utilizaremos a data de 1979. Ao longo da pesquisa será proposta reflexão
mais aprofundada, com o propósito de identificar as escolhas historiográficas que estão por trás
dessa opção.

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Nesse ano, introduz-se aquele que tem sido apontado como o primeiro
instrumento de reparação aos perseguidos políticos: a Lei nº 6.683 – a Lei de Anistia. Dessa
forma, justifica-se a escolha do ano de 1979 como marco inicial da pesquisa proposta.

E qual o paralelo perceptível entre o processo brasileiro e a adoção de


mecanismos globais da chamada justiça de transição? Ao longo dos séculos, o surgimento
de novos regimes políticos ou a mudança paradigmática das concepções de justiça implicou
em processos transicionais, muitas vezes, incompletos. No século passado, por intermédio
da constatação de violações massivas dos Direitos Humanos, que foram perpetradas ao
longo das décadas de 1930 e 1940, começa a tomar corpo uma dada noção contemporânea
de justiça transicional.

Em essência, os processos de justiça de transição são entendidos como um


acerto de contas com o passado após experiências autoritárias. Esses processos
apresentam, de forma geral, em consonância com boa parte da literatura especializada,
quatro dimensões básicas. Essas dimensões podem ser agrupadas da seguinte forma: I) a
reparação; II) o direito à verdade e à memória; III) o reestabelecimento do Estado
democrático de direito e IV) a reestruturação das instituições estatais que perpetraram
violações das normas de Direitos Humanos.

A produção acadêmica sobre justiça de transição tem apresentado um


crescimento expressivo desde o término da Segunda Guerra Mundial. Após esse conflito, as
denúncias de massivas violações aos direitos fundamentais e o quadro de horror produzido
pelas primeiras análises acerca das consequências da guerra, ajudam a compreender a
ideia de responsabilização penal por violações aos Direitos Humanos. Ao longo desse
período, pode-se identificar um conjunto de diferentes paradigmas a balizar as concepções
que se formam nesse campo. Historicamente, os Estados Nacionais têm adotado três
diferentes modelos de responsabilização por violações dos Direitos Humanos no passado
(Sikkink, 2011, p.40).

Entretanto, devemos destacar que o alcance da ideia de responsabilização


varia consideravelmente, de acordo com a realidade política enfocada; portanto, no caso da
América Latina, por exemplo, desde o processo de redemocratização em meados da
década de 1980, um amplo leque de mecanismos alternativos de justiça transicional tem
sido utilizado, como comissões de verdade, reparações, anistias, debates públicos, outros
projetos para lidar com o passado de violação dos Direitos Humanos e, inclusive, a
responsabilização penal.

Esse fenômeno adquire, portanto, relevo na produção historiográfica que se


dedica a compreender os processos de transição de regimes arbitrários para regimes

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democráticos. A abordagem tradicionalmente aplicada ao tema da memória associada à


justiça de transição, ao se debruçar sobre “temas padronizados”, em detrimento de outros,
cuja análise não é objeto de escolha frequente, promove um esquecimento empobrecedor;
constituindo-se, pois, óbice aos procedimentos do fazer histórico. Engendra-se uma História
que exclui as questões fora de lugar.

Essas questões começaram a aparecer com bastante clareza nos estudos


historiográficos produzidos ao longo dos últimos anos. Como parte representativa dessa
corrente, podemos situar o trabalho produzido pelo professor Carlos Fico, citado acima.

Em janeiro de 1974, o jornal O Estado de São Paulo publicou um folheto, que


havia sido vazado supostamente devido ao descuido acidental de algum integrante da
Divisão de Segurança e Informação do Ministério da Educação e Cultura. O conteúdo do
folheto apresentava com cores exageradas e, muitas vezes, por meio de distorções risíveis,
a atuação do movimento internacional comunista e seus supostos métodos de atuação.

Ainda que o conteúdo do folheto, por si só, simbolizasse uma curiosa fonte
para a análise historiográfica, havia, para além dessa primeira perspectiva de estudos, uma
espécie de história subterrânea que demandava atenção mais cuidadosa. O historiador
Carlos Fico, em importante trabalho publicado no ano de 2001, dedicou-se a escavar os
subterrâneos dessa história aparentemente simples.

Inspirado no folheto vazado pela DSI do Ministério da Educação e Cultura,


Carlos Fico produziu com sagacidade um trabalho cujo pioneirismo, de acordo com o
historiador Jacob Gorender, encontra-se justamente, na “exploração, pela primeira vez, de
um arquivo de documentos oficiais, procedentes de órgãos do governo, principalmente
daqueles diretamente envolvidos com a repressão às organizações da esquerda armada”.
Sob a olhar talentoso do historiador, o mencionado folheto apareceria no exercício de uma
dupla função. De um lado, o folheto como fonte; do outro, o folheto como objeto de análise.

Para a leitura mais simplista que enxerga no conteúdo desse material,


produzido pelas comunidades de informação e repressão, um relato acerca das articulações
que sustentavam o movimento do comunismo internacional e, consequentemente, o
funcionamento dos grupos de oposição ao regime militar, a obra de Carlos Fico apresenta
uma série de questões que colocam em xeque essa interpretação.

Para a historiografia, a obra pioneira, de certa forma, posiciona a frente das


imagens propaladas pelo Estado ditatorial brasileiro um espelho abrangente que nos
convida a refletir sobre essas imagens, muitas das vezes exageradamente distorcidas ou,
simplesmente, falsificadas pelos órgãos de repressão. Na obra do historiador o alvo se
inverte e a história por trás do folheto, produzido pelos órgãos da ditadura militar, auxilia o

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historiador na tarefa de desvendar os processos de formação da estrutura repressiva e do


complexo militar-burocrático, que, fomentados pelo alto comando militar do país,
promoveram a perseguição, a espionagem, a chantagem, a tortura, o assassinato, enfim,
engendraram a estrutura que se julgava adequada para a realização de uma “utopia
autoritária”.

Dentre os inúmeros aspectos suscitados pela leitura da obra há uma reflexão


que especialmente contribuiu para o trabalho desta tese de doutorado; refiro-me às
estratégias da retórica de inculpação do Estado autoritário. Prática incontornável nos
Estados autoritários que, no caso brasileiro está estreitamente relacionado com a colossal
estrutura repressiva montada pela ditadura de 1964.

Deve-se destacar que os a estrutura mencionada não foi o produto imediato


de decisões intempestivas. Ao contrário: a organização do modelo repressivo da ditadura
militar processou-se ao longo de um árduo e paulatino processo cuja concretização, de
acordo com o historiador Carlos Fico, culminou com o surgimento, no ano de 1970, do
Sistema Nacional de Informações (SISNI), dos Centros de Operações de Defesa Interna e
dos Destacamentos de Operações de Informações, o temido sistema CODI-DOI.

Em resumo, pode-se afirmar, precisamente, que o processo de configuração


desses sistemas repressivos conheceu trajetória incerta e variada durante as duas décadas
de ditadura militar. Recorrendo novamente as reflexões propostas pelo professor Carlos
Fico, pode-se identificar, por trás da árdua batalha pela implantação de um sistema
repressivo tão poderoso, uma disputa política no seio do alto comando militar. Em outras
palavras, “a história da implantação e decadência do sistema de segurança e informações
corresponde uma outra, qual seja, a história da perda e reconquista do controle do poder
pelos militares moderados”. (19)

A tese exposta acima levanta uma série de questões acerca da


caracterização do golpe militar do dia 1º de abril de 1964 e da manutenção do regime. Essas
disputas têm apresentado um caráter múltiplo ao longo das décadas. Há, inegavelmente,
uma batalha pela memória do golpe de abril de 1964, travada entre grupos que procuravam
tornar hegemônicos seus discursos acerca desse fato. Pode-se, entretanto, perceber há
existência, ao mesmo tempo, de significativa disputa acadêmica dentro do campo da
historiografia.

De todo modo, para este trabalho, devemos destacar que a caracterização do


regime implantado como militar e a indicação da presença militar na organização, direção e
desenvolvimento das comunidades de segurança e de informação atendem a um terceiro
propósito: indicar a existência de um corpo de especialistas no âmago dessas comunidades

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que “lograram situar-se como produtores especializados do discurso que sustentou suas
próprias ações (espionagem, violência), quanto a conduta omissa dos moderados que os
toleravam”. (21)

É precisamente esse aspecto que merecerá destaque nas análises que aqui
serão apresentadas. O conjunto documental produzido pelos agentes da ditadura militar, no
exercício de suas funções de inteligência e repressão foi capaz de configurar uma “rede
intertextual” que, em última instância, foi a responsável pela produção dos discursos que
justificavam e reforçavam as ações repressivas. Essa atribuição de sentido ao “outro”, ao
“inimigo”, ao “indesejável” constitui, ao mesmo tempo, o sentido do agir e a convicção da
necessidade das ações adotadas. Na sofisticada expressão de Carlos Fico, “gerava efeitos
extra discursivos, podendo ser analisados como a narrativa de uma infâmia ou o poder
simbólico do algoz”. (21)

De fato, ao longo da história brasileira, desde a instituição do Estado, sempre


houve órgãos destinados à produção e coleta de informações de inteligência para auxiliar a
condução dos negócios estatais. Ao mesmo tempo, não se pode negar a prevalência de
uma função repressiva atribuída aos órgãos policiais e, mesmo às Forças Armadas, em
dados momentos, como a principal atividade das forças de segurança pública.

Parte da historiografia brasileira situa nesse momento o surgimento da


chamada “linha dura”. Com a formação dos primeiros Inquéritos Policiais-militares, cujo
discurso moralizador sustentava-se por meio da persecução aos comunistas e corruptos,
surgem os famosos “coronéis dos IPMs”, indivíduos que disputavam a inclinação política do
golpe, buscando medidas mais radicais e prolongadas para a execução dos expurgos
necessários para ‘limpar” o país3.

Essa inclinação radical de parte da oficialidade estabelece vínculos com o


desenvolvimento, desde o final da Segunda Guerra Mundial, de uma doutrina de segurança
nacional; que elaborada no interior da Escola Superior de Guerra, sustentava que “o Brasil
integrava-se ao contexto internacional da Guerra Fria”.

Em boa medida, podemos identificar como elementos determinantes para a


configuração da doutrina a percepção de seus formuladores de que o Brasil possui grande
importância estratégica no âmbito das relações políticas internacionais, em decorrência de
seu posicionamento geopolítico. Além disso, enxergavam a existência de forte

3
Em junho de 1964, terminou o prazo estabelecido pelo Ato Institucional para as cassações e
suspensões de direitos políticos. Dois dias antes dessa data, a 13 de junho, foi criado o Serviço
Nacional de Informações (SNI). Projeto do General Golbery do Couto e Silva que, de acordo
com Fico, durante a “conspiração, montou uma rede de informações que preparou dossiês sobre
mais de 400.000 pessoas”.

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vulnerabilidade ao comunismo, em virtude de fragilidades internas. Cabia aos “verdadeiros


brasileiros” resguardar a pátria em risco. É justamente nesse contexto que é criado o
Serviço Nacional de Informação (SNI) no ano de 1964.

Nesse período, o sistema de repressão e inteligência da ditadura recém-


implantada não estava ainda configurado e o Serviço Nacional de Informação exercia
atividades que, aos olhos da chamada “linha dura”, eram insuficientes para preservar a
“revolução”. No ano seguinte, com a derrota dos militares nas eleições estaduais de 1965,
em especial na Guanabara e em Minas Gerais, a presidência do general-ditador Castelo
Branco sofre pressões cujo discurso fundante busca adotar mecanismos que garantiriam o
controle da subversão e dos inimigos. Em resposta às pressões, às onze horas do dia 27 de
outubro, o governo iniciava, no Palácio do Planalto, a leitura do Ato Institucional número 2
(AI-2).

Apesar de abrir espaço para as demandas apresentadas pelos membros mais


conservadores do alto comando militar, o Ato não foi capaz de acalmar os ânimos. Em boa
medida, isso ocorreu em virtude do fato de que o governo utilizou-se dos instrumentos para
atingir precisamente, membros da chamada linha dura.

Essas observações nos conduzem a duas reflexões. Em primeiro lugar, a


radicalização da linha dura indicava o surgimento de um amplo grupo de oficiais que
desejavam ampliar os limites da repressão. Homens que enxergavam em procedimentos
radicais como a cassação de mandatos e a suspensão dos direitos políticos, o caminho para
o aprimoramento do regime. Em segundo lugar, demonstrava a existência de grupos que
agiam paralelamente às decisões oficiais. Homens que estavam dispostos a agir por conta
própria, ignorando a ordem legal; homens que acreditavam e propagavam a necessidade de
cultivar-se a supremacia da força sobre as ideias.

A radicalização ganha contornos mais nítidos com a adoção, ainda no


governo de Castelo Branco, da Constituição de 1967, que incorporou a maioria das medidas
arbitrárias que foram estabelecidas pelos atos institucionais. O processo de radicalização
intensificou-se, sobretudo, pois a nova Carta da República demandou a definição de uma
Lei de Segurança Nacional na qual estivessem tipificadas noções nocivas à política interna.

Em resumo, a ditadura de Castelo Branco tornou legal a ideia de “guerra


interna” possibilitando, dessa forma, que os nacionais, brasileiros civis, fossem
indiscriminadamente acusado de subversão. Essa medida foi fundamental para a edificação
de uma base jurídica e filosófica que transformaria, nos anos seguintes, os antigos grupos
de pressão da linha dura em membros do “Sistema de Segurança Nacional”. Estavam

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lançadas as bases para que esses homens pudessem não apenas investigar, mas também,
prender e interrogar. Era o primeiro passo decisivo para a formação de uma polícia política.

Um ano depois, em dezembro de 1968, com a adoção do Ato Institucional


número 5 (AI-5), estão dadas todas as condições para que os sistemas de segurança e de
informação sejam institucionalizados. A partir desse momento, inicia-se a estruturação de
um sistema de espionagem e repressão mais refinados; estruturava-se, de forma mais
rigorosa, as ações características de regimes ditatoriais, por intermédio da criação de
organismos próprios.

O desvendamento dessa estrutura repressiva, a qual alcançaria sua


expressão mais completa a partir de 1971, retoma as discussões acerca das questões
historiográficas fora de lugar. O debate novamente nos conduz aos debates acerca dos
mecanismos e procedimentos de justiça transicional adotados após a transição para
regimes democráticos.

Os mecanismos de justiça transicional, em especial os processos de anistia,


são exemplares nesse sentido. Essencialmente, por meio de ampla concertação nacional,
promovem um modelo de amnésia coletiva (ou memória seletiva?); salvo poucas exceções,
em nome da pacificação, obstaculizam, ou mesmo impedem a recuperação de muitos
aspectos do passado.

“Parece haver dois tipos de silêncio no pós-ditadura brasileiro: há o silêncio das


vítimas e dos sobreviventes da repressão que se calam pela própria incapacidade de
dizer o indizível do horror vivido nas salas de tortura, pela ausência de dimensão
pública para a narrativa; e há o silêncio mais geral, de parte da sociedade brasileira –
indivíduos e instituições, do Estado e não-governamentais –, que se nega a falar ou
ouvir o assunto, eximindo-se de qualquer responsabilidade que todo povo, governo e
instituições tem com o coletivo e com sua história”. (Teles, 2009, p.581)

A seletividade política da memória impede a configuração de sentidos múltiplos


e dificulta a reflexão acerca da própria gênese das ditaduras, ao longo das décadas de 1960
e 1970, no contexto da América do Sul. Para manter um diálogo com Marc Bloch, as
motivações que instigam a investigação historiográfica residem em problemas do presente e
não no passado. Nessa clássica formulação do método regressivo, os temas do presente
condicionam e balizam a possiblidade de retorno ao passado.

Diz-se algumas vezes: “A história é a ciência do passado”. É [no meu modo de ver] falar errado.
[Pois, em primeiro lugar,] a própria ideia de que o passado, enquanto tal possa ser objeto de
ciência é absurda. Como, sem uma decantação prévia, poderíamos fazer de fenômenos que não
têm outra característica comum a não ser não terem sido contemporâneos, matéria de um
conhecimento racional? (Bloch, 2001, p.52)

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434 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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Para esta proposta, a História constitui um fator cultural basilar no cotidiano de


cada indivíduo em decorrência de nossa necessidade de atribuir sentido ao tempo
experimentado (Rüsen, 2005, p.3). Dessa forma, por meio de um procedimento específico
de interpretação, o passado adquire, aos olhos dos homens de hoje, contornos que os
permitam estabelecerem diferenças entre sua própria época e todas as outras.

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Carta(s) de 1967/69 e constitucionalismo: “tivemos constituição”?

Raoni Macedo BIELSCHOWSKY


Doutorando em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade
Federal de Minas Gerais (Bolsista CAPES); mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Portugal; bacharel em Direito pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
raonibielschowsky@gmail.com

Introdução

A simbologia constitucional historicamente tem sido utilizada de forma indistinta por


diversas experiências jurídico-políticas, quer democráticas, quer não. A retórica do
constitucionalismo – e da Constituição em si – recorrentemente foi e é utilizada para dar
ares de legitimidade a regimes autocráticos; aparência de segurança jurídica a
ordenamentos normativos autoritários em regimes de exceção; e, mesmo, aspecto de
respeito aos Direitos e Garantias Individuais por ditaduras.

O Brasil não foge a essa regra, e, por mais de uma vez, teve a retórica e simbologia
constitucional presentes em cartas e regimes não democráticos, como foi o caso do Estado
Novo e do momento político a partir do Golpe de 1964; da Carta Constitucional de 1967 e da
Emenda Constitucional n. 1 de 1969. De fato, os contextos históricos e semânticos em que
determinadas categorias são utilizadas variam muito, mas é necessário identificar alguns
elementos básicos que são definidores a essas categorias. Por exemplo, para ser rigoroso,
é difícil dizer que em 1964 o Brasil passou por uma verdadeira revolução e não apenas por
um mero golpe de Estado1, bem como, é absolutamente impossível dizer que entre 1964 e
1985 tivemos uma Democracia2. De mesmo modo, entendemos que as experiências e a
dinâmica política da época não podem ser ditas constitucionais, tão pouco se pode dizer que
as cartas política desse momento se caracterizam enquanto Constituição.

Portanto, para uma análise compreensiva da história dos fenômenos políticos é


interessante ter-se em conta quais parâmetros permitem chamar um movimento de
revolucionário, um regime de democrático e, também, um corpo normativo de Constituição e

1
Sobre o movimento de 1964 ser ou não uma revolução, o próprio General Ernesto Geisel,
Presidente da República entre 1974-79, admitiu que o movimento civil-militar brasileiro de 1964 não
se tratou de revolução: “O que houve em 1964 não foi uma revolução. As revoluções fazem-se por
uma ideia, em favor de uma doutrina. Nós simplesmente fizemos um movimento para derrubar João
Goulart. Foi um movimento contra, e não por alguma coisa. Era contra a subversão, contra a
corrupção. Em primeiro lugar, nem a subversão nem a corrupção acabam. Você pode reprimi-las, mas
não as destruirá. Era algo destinado a corrigir, não a construir algo novo, e isso não é revolução”
(GASPARI, 2002, p. 138). Para um conceito de revolução remetemos à definição de PASQUINO
(BOBBIO et al., 2010).
2
Qualquer que seja o conceito de Democracia que se pretenda, quer mais alinhada a perspectivas
procedimentalistas, quer a perspectivas mais substantivistas (BIELSCHOWSKY, 2013), não resta
dúvidas que o regime político brasileiro de 1964-85 definitivamente não foi democrático.

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uma experiência estatal de Estado Constitucional. É neste sentido que é útil a classificação
ontológica das constituições sugerida por LOEWENSTEIN (1982, p. 217) – em Constituições
normativas, nominativas ou semânticas –, bem como a dicotomia entre “ter e estar em
constituição” sugerida por LUCAS VERDÚ (1998, p. 44).

“Ter constituição” significa que um Estado tem um corpo normativo positivado que
pode ser considerado uma Constituição em sentido estrito. Enquanto “estar em constituição”
significa que uma sociedade vive dinâmica e dialeticamente sua constituição, trabalhando
para fazê-la efetiva. Nesse contexto, este trabalho toma por base uma concepção cultural de
Constituição delineando alguns parâmetros para um conceito em sentido estrito e material.

A partir disso, faz-se uma análise para identificar se durante o regime militar o Brasil
“teve constituição”. Em outras palavras, o objetivo deste trabalho é – de forma mais teórica
que analítica – observar se a Carta Política de 1967 e a Emenda Constitucional n. 1 de 1969
efetivamente poderiam ser aproximadas do conceito de Constituição.

De fato, os acontecimentos históricos do período do regime civil-militar brasileiro não


deixam dúvidas que, durante ele, o Brasil pouco “esteve em constituição”. Contudo, analisar
se os documentos constitucionais desse momento eram formal e, sobretudo, materialmente
constitucionais – portanto, que vestiam a retórica do constitucionalismo – permite-nos por
em discussão as possibilidades e mecanismos de efetivação de uma Constituição e do
ideário constitucionalista.

Para tanto, não se nega a impossibilidade de estabelecer o “ter” ou o “não ter


Constituição” em sentido absoluto, ou seja, da impossibilidade de dizer-se
peremptoriamente que determinado corpo normativo é ou não é uma Constituição. Mais
ainda, em se afirmar categoricamente que uma comunidade “está em Constituição” ou “não
está e Constituição”. Afinal, a complexidade da engenharia política e dos fenômenos
humanos como um todo, impede sua compreensão através da utilização de parâmetros
muito rígidos ou através de leis falseáveis, típicas às ciências naturais. Contudo, não deixa
de ser curioso – ainda que sinistro – identificar que a grande maioria dos regimes
autoritários insista em tentar institucionalizar-se e dar ares de legitimidade constitucional a
suas estruturas políticas não-democráticas e, mesmo, antidemocráticas. Tem sido comum a
esses regimes tentar dar a seus momentos de exceção aspectos de segurança jurídica, de
respeito aos Direitos Fundamentais e de legitimidade democrática e constitucional, portanto,
dizendo-se constitucionais3.

3
De fato, a posição aqui apresentada, em que se fixa em um conceito um tanto mais preciso de
Constituição, dificilmente pode ser dita majoritária no Brasil. Especificamente sobre o momento
político do regime militar brasileiro, há quem trate dos arranjos político-institucionais utilizando o termo

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Ter e Estar em Constituição

Ao defender uma teoria da Constituição motivada por sua fundamentação axiológico-


cultural PABLO LUCAS VERDÚ utiliza-se de interessante dicotomia. O autor define que há dois
aspectos a serem analisados em uma comunidade política: ela pode ter Constituição ou não
ter Constituição; e ela pode estar em Constituição ou não estar em Constituição.

Ter uma Constituição significa a comunidade possuir um “Código fundamental


sistemático”, formal e materialmente constituído. Com isso quer-se dizer uma lei
fundamental, hierarquicamente superior, comprometida com determinada fundamentação
axiológica, basicamente consolidada na liberdade, na justiça, na igualdade, no pluralismo
político e, sobretudo, na premissa cultural antropológica do Estado Democrático de Direito: a
dignidade humana (LUCAS VERDÚ, 1998, pp. 40 e 41).

Por outro lado, estar em Constituição, significa, justamente, a comunidade viver em


um ambiente constitucional, em que essa ordem de valores culturalmente compartilhados
seja presente, viva e eficaz. Ou, nas palavras de VERDÚ: “Estar em Constituição significa a
aplicação dos direitos e deveres socioeconômicos mediante a anulação dos privilégios os
beati possidentis” (LUCAS VERDÚ, 1998, pp. 44).

Desse modo, LUCAS VERDÚ relaciona essa dicotomia à classificação “ontológica” de


Constituição dada por LOEWENSTEIN, que enumera: Constituição normativa; Constituição
nominativa; e Constituição semântica. Para LOEWENSTEIN o critério para essa classificação é
a concordância das normas constitucionais com a realidade do processo do poder. Nesse
sentido, o alemão alega que uma constituição escrita não funciona por si mesma, mas sim
quando seus destinatários (detentores e destinatários do poder) a fazem prática
(LOEWENSTEIN, 1976, pp. 217 e ss).

Nessa medida, uma Constituição normativa é aquela que é formal e materialmente –


portanto axiologicamente – constitucional; e ao mesmo tempo, é aquela viva, vivida e
defendida pela comunidade. Em outras palavras, é quando a Constituição jurídica, e
legítima, possui força normativa. Portanto é quando se tem Constituição e também se está
em Constituição.

Uma Constituição nominativa é aquela que é formal e materialmente constitucional,


porém não é vivida na prática. Ela é legítima, válida, mas não eficaz. Ou seja, é quando se
tem Constituição, mas não se está em Constituição.

Constituição de modo bastante mais genérico, falando, por exemplo, em “engenharia constitucional”
(BARBOSA, 2012, p. 49).

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E ainda, uma Constituição semântica se dá na situação em que numa comunidade


política existe um texto que se pretende constitucional – portanto, um texto que seja
formalmente (positivamente) constitucional – mas que, no entanto, não pode ser
considerado materialmente (axiologicamente) constitucional e, ao mesmo tempo, a
comunidade não vive um ambiente constitucional4. Assim sendo, em uma situação de
Constituição semântica não se tem Constituição, nem se está em Constituição. Nessa
situação, a Constituição escrita ao invés de ser meio de limitação do poder, como pretende
LOEWENSTEIN, seria utilizada para perpetuação de um poder ilegítimo5.

Assim, para a análise do Regime político Brasileiro instaurado desde 1964, partimos
da compreensão que efetivamente nunca estivemos em constituição durante os anos da
Ditadura Militar. Portanto, nos termos colocados por LOEWENSTEIN, almejamos identificar se
vivemos um momento de Constituição nominativa ou de Constituição semântica. Logo, é
preciso estabelecer um conceito de Constituição enquanto “Código fundamental
sistemático”, formal e materialmente constituído.

Constituição e constitucionalismo

Parece-me indissociável o conceito de Constituição da ideia de Constituição. Logo,


indissociáveis uma Constituição legítima e válida das próprias ideias do constitucionalismo.

A Constituição em seu sentido moderno surge na esteira das revoluções burguesas


em França e nas colônias da América do Norte. Movimentos políticos que são também
marcantes do próprio surgimento do Estado de Direito e do constitucionalismo enquanto
ideologia jurídico-política.

Nessa linha, BARACHO afirma que o constitucionalismo representa um corpo de ideias


e experiências, “designa as instituições e os princípios adotados pela maioria dos Estados a
partir dos fins do século XVIII, através de um governo constitucional, em oposição ao que
denomina absoluto” (BARACHO, 1986).

Também nesse sentido, CANOTILHO destaca que:

4
Destaque-se que por uma perspectiva positivista um texto axiologicamente descompromissado
poderia também ser chamado Constituição (KELSEN, 2006, p. 221), entretanto, a nosso ver uma
Constituição – sobretudo a partir das formulações feitas no segundo pós-guerra em resposta às
atrocidades do Terror – necessariamente tem de ser comprometida com a ordem democrática, com a
liberdade, igualdade, enfim, com a dignidade da pessoa humana, portanto, não basta uma
perspectiva semântica da Constituição, mas sim, tem de lhe ser reconhecida uma ontologia.
5
Há ainda uma quarta hipótese que não seria contemplada pela classificação de LOEWENSTEIN, mas
que pode ser bem melhor compreendida a partir do mecanismo de LUCAS VERDÚ, que é o caso da
Inglaterra. Os Ingleses não têm Constituição (ao menos enquanto código organizado e uno, apesar
das várias espécies de “normativas constitucionais” possíveis em seu sistema), mas estão em
Constituição.

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“a constituição em sentido moderno pretendeu, como vimos, radicar duas


ideias básicas: (1) ordenar, fundar e limitar o poder; (2) reconhecer e
garantir os direitos e liberdades do indivíduo. Os temas centrais do
constitucionalismo são, pois, a fundação e a legitimação do poder político e
a constitucionalização das liberdades” (CANOTILHO, 2003, pp. 54 e 55)”.

De fato, das fases que o constitucionalismo já teve, essas características são


marcantes do discurso da engenharia constitucional. Dúvidas não há que o
constitucionalismo do Estado Democrático de Direito, consolidado no pós-guerra, não é
idêntico àquele do Estado Social de Direito que o antecede6; tão pouco, que este coincide
precisamente com os parâmetros do constitucionalismo liberal, nem com os das primeiras
constituições próprias ao Estado Liberal de Direito7. Nesse sentido, há quem chegue a
defender que desde o segundo pós-guerra vivemos em um “neo”constitucionalismo. No
entanto, na verdade, nossa atual fase constitucional efetivamente vem a representar um
discurso que já é muito mais antigo dentro da própria história constitucional e que pouco tem
de novo enquanto discurso, enquanto compreensão do fenômeno constitucional e, mesmo,
em alguma medida, enquanto prática institucional.

A vinculação do Direito – mais propriamente do Direito Constitucional – com os


valores culturais próprios do constitucionalismo já estão presentes nos discursos
weimarianos de HELLER e SMEND (HORTA, 2005), por exemplo. Destarte, voltar
novamente o foco do Direito Constitucional para a pretensão de correção do ordenamento
parece-nos elemento marcante da fase que vivemos de nossa história constitucional,
mesmo, desde antes do segundo pós-guerra.

Assim, nesse processo de reencontro cultural do ocidente após o Terror, o Direito


Constitucional retomou o argumento de fundamentação axiológica, de vinculação do jurídico
ao ético, dando-lhe nova roupagem e contornos, obedecendo e representando uma
sociedade dinâmica que seguiu a segunda metade do século XX e agora o século XXI. Um

6
E que, apesar de sua indispensável contribuição à cultura constitucional, também permitiu o
crescimento do totalitarismo na Europa.
7
“A questão do primado da Constituição, como norma fundamental do Estado, que garante os direitos
e liberdades dos indivíduos, foi desenvolvida no decorrer do século XIX, com a consolidação dos
regimes liberais nos Estados Unidos e na Europa pós-revolucionários. O constitucionalismo foi
utilizado, de um lado, para contrapor ao contratualismo e à soberania popular, idéias-chave da
Revolução Francesa, os poderes constituídos no Estado. De outro, utilizou-se a Constituição contra
os poderes do monarca, limitando-os. Dessa forma, a Constituição do Estado evitaria os extremos do
poder do monarca (reduzido à categoria de órgão do Estado, portanto, órgão regido
constitucionalmente) e da soberania popular (o povo
passa a ser visto como um dos elementos do Estado). Embora liberais, as Constituições não serão,
ainda, democráticas. E, mais importante, a Constituição não é do rei ou do povo, a Constituição é do
Estado, assim como o direito é direito positivo, posto pelo Estado” (BERCOVICI, 2004, p. 5).

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Direito Constitucional que já identifica novos direitos fundamentais bastante diferentes, ainda
que complementares, aos Direitos de Liberdade e aos Direitos de Igualdade do
constitucionalismo clássico e do constitucionalismo social. Fase nova sim, mas não de
ruptura com esse passado. Nova fase da velha caminhada do mesmo constitucionalismo,
este sim, interrompido pelas atrocidades do século dos extremos. Um fenômeno cultural que
delineia a Constituição em determinados parâmetros que também foram sendo consolidados
e, mesmo, redesenhados à medida que no ocidente foram caindo os regimes autocráticos
do século XX, quer no continente Europeu – Portugal em 1974 e Espanha em 1975, por
exemplo –, quer na América Latina – com o fim dos Regimes de Militares no Brasil,
Argentina, Uruguai ou Chile, por exemplo.

Contudo, como dito, não raro essas ditaduras tentaram utilizar-se da retórica
constitucional para dar ares de legitimidade a suas instituições. Por vezes formalmente
reconhecendo um rol de Direitos Fundamentais, quase nunca respeitados ou reconhecidos,
também expedindo inúmeros instrumentos normativos formalmente adequados para todas
as ordens e desmandos do regime.

Assim o fizeram as Cartas Constitucionais de 1967 e 1969. Filhas de um golpe de


Estado que, a princípio, se motivava retoricamente, em muito, na defesa da ordem
Constitucional de 1946. Outorgadas como tentativa de “constitucionalizar” a “malfadada
causa revolucionária”. Ambas com direitos fundamentais previstos em seus textos, que, por
sua vez, também os punha a inteira disposição do Poder central.

Constituição de 1946, Carta de 1967 e E.C. n.1/1969

O regime instaurado com o golpe de 1964 conviveu com três documentos que se
pretendiam constitucionais. O primeiro deles a Constituição democrática de 1946; segundo a
Carta Política de 1967; e, por fim, a Emenda Constitucional n. 1 de 1969.

A Constituição de 1946 sem dúvida foi uma Constituição. Para JOSÉ AFONSO DA
SILVA, inclusive, 1946-1964 foi o único período, efetivamente, democrático no Brasil, antes
de 1985 (SILVA, 2011). Documento anterior à Lei Fundamental alemã – paradigmática
dessa nova fase do constitucionalismo – essa Constituição trazia um rol de Direitos
Fundamentais, uma clara estrutura de divisão dos poderes e instituições democráticas. A
princípio, o discurso do golpe de 1964, de certo modo, propagava como programa do
movimento a defesa da ordem constitucional de 1946. Nessa linha, o primeiro Ato
Institucional (ainda não numerado), ao “reconhecer a exceção”, mantinha a Constituição de
1946. Entretanto, de fato, o primeiro Ato Institucional, e os que o seguiram, passaram a viger

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de modo a sufocar a alegada ordem Constitucional8. Contudo, ao menos a princípio, o Brasil


tinha uma Constituição, apesar de não estar em Constituição.

Aos poucos a Constituição de 1946 foi sendo deformada. Entre 1964 e dezembro
1966 foram nada menos que quatro Atos Institucionais e quinze emendas constitucionais.
Com os Atos Institucionais, dentre outras coisas, suspenderam-se garantias constitucionais;
permitiu-se a desfiguração do Congresso e das casas legislativas estaduais e municipais por
meio de cassações; extinguiram-se os partidos políticos; outorgaram-se amplos poderes ao
Poder Executivo Federal em nome da “elástica” motivação da “segurança nacional”;
ampliaram-se severamente as competências legislativas do Executivo; estabeleceram-se
eleições indiretas para Presidente e Vice-Presidente, Governadores e Vice-Governadores.
Quanto às emendas sofridas, entre 1946 e 1963, a Constituição tinha recebido apenas seis
emendas, enquanto de 1964-1966 foram quinze, que promoveram diversas mudanças no
Poder Legislativo, no Poder Judiciário, no sistema financeiro e tributário.

Com todas as desfigurações, a Constituição de 1946 foi a pique9 e em 1966 o A.I. 4


convocou um “Congresso Constituinte”. Estabeleceu também um cronograma praticamente
infactível para os trabalhos de aprovação da nova Carta Política de 1967. O Congresso
deveria reunir-se entre 12 de dezembro de 1966 e 24 de janeiro de 1967 para, em pouco
mais de um mês, debater e aprovar o projeto enviado pela presidência. A Carta de 1967 era
prioridade do próprio Marechal Castello Branco, tivera seu projeto redigido por uma
comissão de juristas e foi “finalizada”, e bastante modificada, pelo então Ministro da Justiça
Carlos Medeiros Silva. Segundo BONAVIDES E PAES DE ANDRADE, “a elaboração da
Constituição de 1967 era, pois, um dos estágios do processo institucionalizador do
Movimento de 1964”, “a verdade é que, procurando legitimar-se, o Movimento de 1964
tentava encontrar num texto constitucional novo uma forma de institucionalização”
(BONAVIDES; PAES DE ANDRADE, 1991, p. 431).

Não nos ateremos ao confuso expediente de Congresso Constitucional adotado para


aprovação do texto final. Efetivamente, o Congresso que discutiu e votou o texto já era
completamente retalhado e deformado pelas cassações realizadas, além de ter seu trabalho
bastante cerceado pelo tempo e pela pressão exercida pelo Governo. Apesar de tudo, é de
se destacar que vícios e defeitos no processo constituinte de discussão e aprovação de
novas Constituições foram comuns aos mais paradigmáticos textos constitucionais da
8
Dizia o preâmbulo do primeiro Ato Institucional: “A revolução vitoriosa se investe no exercício do
Poder Constitucional. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta pe a forma mais
expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder
Constituinte se legitima por si mesma”.
9
“A Constituição de 1946 mesmo adotada, estava superada praticamente pelo uso dos poderes
excepcionais que foram atribuídos ao Marechal Castello Branco pelo Ato Institucional de 1964 e
reforçado peo de 1965” (BONAVIDES; PAES DE ANDRADE, 1991, p. 431).

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história, como é o caso da Constituição Americana e da Lei Fundamental alemã. Esses


vícios de origem não colocam em cheque a importância, legitimidade ou o claro
enquadramento desses textos dentro do conceito de Constituição em sentido estrito.
Contudo, a Carta Política de 1967 não sofria tão somente de vícios no seu processo de
aprovação, mas também não pretendia a limitação do Poder autoritário, mas sim, sua
consolidação.

Apesar de a Carta de 1967 ter estabelecido um rol de Direitos e Garantias individuais


no art. 150, já no art. 151 era prevista sua flexibilização. Além disso, a carta ampliou a
competência e o poder do Presidente da República através dos decretos-leis, leis delegadas
dentre outros diplomas criados; também, “constitucionalizou” a eleição indireta para
Presidente e Vice-Presidente; estabeleceu restrições à liberdade de pensamento e
manifestação sob o pretexto de combater atos subversivos e tantas outras previsões
antidemocráticas. Em 1967 o Brasil certamente não estava em Constituição, e com a nova
Carta, tão pouco tinha uma Constituição. Foi um documento por vezes chamados de “semi-
autoritário”, que, na verdade, teve por intuito institucionalizar o Governo de força instaurado
em 64.

Quase dois anos após a entrada em vigor da Carta de 1967, em dezembro de 1968,
é publicado o A.I. 5 que reforça o Estado de Exceção. De fato, a Carta de 1967 já não mais
atendia ao regime. Quer pelo trabalho feito pela oposição durante o Congresso Constituinte
(BONAVIDES; PAES DE ANDRADE, 1991, p. 436); quer pelo fato de a linha dura do regime
ter feito a sucessão de Castello Branco com Costa e Silva; quer pelo fato de um regime de
exceção ser, ele mesmo, contraditório à normalidade de uma carta jurídica. De fato, a Carta
de 1967 era mais liberal do que desejava o Governo Militar em 1968. E assim, “o Presidente
Costa e Silva encarregou seu Vice-Presidente, Dr. Pedro Aleixo, de redigir uma emenda à
Carta de 1967, já em desuso pelos inúmeros atos de exceção. A exceção passou a ser
regra” (RAMOS, 1987, p. 93).

Realmente, a Emenda Constitucional n. 1 efetivamente substitui a Carta de 1967:

“teoricamente e tecnicamente, não se trata de emenda, mas de nova


Constituição. A técnica da emenda só serviu como mecanismo de outorga,
uma vez que verdadeiramente se promulgou o texto integralmente
reformulado, a começar pela denominação que se lhe deu – Constituição da
República Federativa do Brasil –, à qual se acrescentaram mais 24
emendas”. (SILVA, 2011, p. 80).

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Nesse sentido, o artigo 1° da Emenda era claro: “Art. 1º. A Constituição de 24 de janeiro
de 1967 passa a vigorar com a seguinte redação”. É marca dessa nova Carta o ainda maior
fortalecimento do Poder Executivo, com mais intensa concentração do Poder e ainda
maiores e mais fortes ilegítimas restrições aos direitos e garantias individuais em nome da
segurança nacional. Enfim, esse documento representava a tentativa de institucionalização
do recrudescimento do regime que já estava em curso desde o A.I. 5. Institucionalmente
exacerbou os fundamentos do Golpe: o anticomunismo desmedido; o conservadorismo à
direita, sem o mínimo respeito aos direitos humanos mais básicos; política econômica a
partir de teses monetaristas, dentre outros; enfim, essa nova carta “é pior que a Constituição
de 1967. Malfeita, autoritária, centralizadora, praticamente entregou todos os poderes ao
Executivo. Esvaziou o Poder Legislativo. Retirou-lhe as prerrogativas de independência”
(SILVA, 2011, p. 80). Portanto, se não podemos identificar a Carta de 1967 como uma
Constituição menos ainda podemos dizer isso da Carta de 1969:

“A procura por legitimidade constitucional e da institucionalização do


‘sistema’ não encontrou mesmo com a Constituição de 1967 e a Emenda n°
1 de 1969, condições de seriedade da proposta e das intenções do governo.
O poder arbitrário do sistema desnudou suas reais intenções, exatamente
quando os dispositivos formais dos textos que garantiram a liberdade de
expressão, de reunião, de imprensa, foram violentados pela censura e pela
repressão policial” (BONAVIDES; PAES DE ANDRADE, 1991, p. 444).

Considerações Finais

Provavelmente, a exceção, por sua própria essência, não permite a estabilidade da


institucionalização, quanto menos, da constitucionalização. Independentemente dos
parâmetros materiais, tão caros e definidores do conceito de Constituição, os regimes de
exceção não conseguem limitar-se por muito tempo a normas pré-estabelecidas, nem
mesmo, a normas estabelecidas por esses próprios regimes, pois “a regra é a da exceção”.

Por mais contraditório que possa soar, regimes autoritários precisam de liberalidades
institucionais para implementar seus programas. Portanto, geralmente têm se demonstrado
improváveis as tentativas de adoção eficaz de cartas políticas estáveis por ditaduras. Os
documentos outorgados tendem a rapidamente perder sua essência, ou mesmo, nunca ter
qualquer vigência, quanto menos, eficácia. Pois o autoritarismo não consegue conviver com
limitações a seu poder, e, por isso, é sempre antagônico ao constitucionalismo.

Aos regimes autoritários, sempre é necessária mais uma lei, mais uma norma, mais
uma emenda, mais uma “constituição”. É verdade que mesmo bons textos constitucionais

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não são capazes de, de forma demiúrgica, estabelecer um regime de liberdade. Ser e dever
ser não podem ser compreendidos ou postos de forma isolada. A norma constitucional não
tem existência autônoma à realidade e sua prestenção de eficácia não pode estar separada
das condições históricas de sua realização (HESSE, 1991, p. 14). Todavia, não estar em
Constituição geralmente faz com que Constituições, quer nominativas, quer semânticas,
tenham vida curta. Assim, quando regimes políticos fazem cartas políticas, querendo-lhes
apenas semanticamente chamar Constituição, é um bom indício de que essa comunidade
não vive em Constituição, não consegue limitar o poder, nem respeita com os direitos,
liberdades e garantias, tão pouco seus cidadãos,

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O Golpe de 1964 e a repressão ao movimento de “trabalhadores favelados” em Belo


Horizonte

Samuel Silva Rodrigues de OLIVEIRA


Doutorando CPDOC-FGV.
samu_oliveira@yahoo.com.br

A presente comunicação discute o “Inquérito DVS 096”, a peça jurídica de acusação


atingiu a Federação dos Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte (FTFBH). Instaurado
em quatro de maio e tendo fim em vinte e oito de agosto de 1964, durante o inquérito
apreendeu-se documentos, interrogou-se lideranças e fechou-se associações de favelas.
Mais do que destruir a estrutura associativa que permitia a articulação de protestos, a
repressão desconstruiu a gramática política que permitiu os “trabalhadores favelados”
reivindicarem o “direito de morar” e a dignidade política para se colocar na cena pública.

No “Inquérito DVS 096”, o movimento da FTFBH foi visto como “comunista” e


“demagógico” - identificando João Goulart como a origem de uma manipulação que
encontraria repercussão nas favelas de Belo Horizonte. Existe uma distância entre
reconhecer a participação e influência de militantes do Partido Comunista, de facções de
esquerda ou de outros políticos em um movimento e chamar um movimento de “comunista”
ou de “demagogo”. Ao se confundir a classificação de um evento com a articulação de
grupos através de múltiplas mediações, apaga-se a forma como os atores modulam
discursos, representações e experiências de (in)justiça para legitimar as mobilizações
sociais. Aceitarmos essa simplificação significa perder aquilo que Moore Jr. (1978)
identificou como um dos traços que seriam constitutivos dos movimentos sociais surgidos a
partir do século XIX: a complexidade da sociedade contemporânea e das experiências de
mundo no capitalismo viria acompanhada pela multiplicação de éticas, diversificando as
maneiras de justificar a obediência e os protestos (MOORE Jr., 1978).

O engano dessa postura heurística que toma as categorias formuladas por um


testemunho escrito como a transparência do real torna-se mais evidente quando lidamos
com as fontes guardadas e produzidas pela polícia política, como é o caso do “Inquérito
DVS 096”. Numa preocupação permanente de comprovar a culpa dos investigados, a
instituição policial tomou um rótulo ou liderança como sendo a origem de uma ação coletiva,
apagando as condições históricas que tornaram possível a existência do movimento social.
A imagem do comunismo e de outras ideologias políticas, principalmente de esquerda,
aparece como uma marca que destaca alguns personagens e esquece de outros, evidencia
algumas situações e torna opaca outras, num jogo de claro e escuro que constrói um
sentido. Nessa seara, Carneiro (2002) observou que os documentos elaborados e

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acumulados nos arquivos policiais eram representativos de uma lógica da suspeição. Ali, os
valores endossados pelas autoridades policiais “hierarquizavam as idéias submetendo-as,
diariamente, a um objetivo de purificar a sociedade. Definiam até décadas atrás, segundo
sua lógica, os limites entre o lícito e o ilícito” (p.21). As informações contidas nestes acervos,
antes de ser uma transparência da sociedade e de suas relações, explicitam um lugar social
legitimado para reprimir práticas políticas.

Ademais, um dos filtros culturais que alicerçam a representação da realidade


produzida nesses acervos são as categorias de acusação que fazem parte da cultura
brasileira. Essas categorias funcionam “como uma estratégia mais ou menos consciente de
manipular poder e organizar emoções, delimitando fronteiras” (VELHO, 1997: 59). Os
documentos descrevem grupos e ações que são identificadas como desviantes de uma
suposta ordem que deveria existir na sociedade. Nesse sentido, “a acusação de desvio
sempre tem uma dimensão moral que denuncia a crise de certos padrões ou convenções
que dão ou davam sentido a um estilo de vida de uma sociedade, de uma classe, de um
grupo ou de segmento social específico” (Idem, 1997:61). As categorias de acusação
apontam para uma transversalidade de relações entre a polícia e a comunidade política em
geral. O desafio de trabalhar com os documentos produzidos pela polícia como portadores e
construtores de categorias de acusação é compreender os laços entre o aparato repressivo
e os grupos sociais que legitimam sua prática.

Ao tomar o “Inquérito DVS 096” como o cerne do corpus documental constituído para
escrever esse artigo, tentaremos nos reportar a essas duas dimensões conectadas da
produção da fonte: ela informa sobre a prática policial e as categorias de acusação
construídas a partir de relações transversais estabelecida com setores da sociedade. Para o
melhor rendimento de nossa análise, o texto está dividido em duas partes: numa primeira,
analisamos o movimento social dos “trabalhadores favelados”, organizado pela FTFBH, e,
numa segunda, verticalizaremos a discussão sobre o inquérito.

1. Movimento dos “trabalhadores favelados” de Belo Horizonte

A Federação dos Trabalhadores Favelados existiu entre 1959 e 1964, sendo fruto de
uma rede articulada dentro e fora das favelas. Segundo seu estatuto, poderiam ter voz e
deliberar nas reuniões da Federação, os moradores que contribuíssem ou participassem de
alguma associação civil de favela, representando o interesse do lugar em que residiam.
Eram excluídos os atores externos e os moradores que não estivessem envolvidos nas

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associações civis do seu local de moradia1. A rede articulada pela FTFBH era a expressão
do gozo dos direitos civis, da liberdade dos indivíduos reunirem-se para defender seus
interesses. A solidariedade tecida entre as associações postulava a não-discriminação
quanto a “credos religiosos ou políticos”, visando a reunir o maior número de moradores2. As
situações que motivavam a mobilização eram contextualizadas por inúmeras relações com
partidos políticos, sindicatos, autoridades públicas e outras instituições religiosas e laicas
que tinham o foco de ação em áreas pobres.

O movimento em pauta fez grande esforço para se expandir e englobar todas as


favelas, conseguindo bastante expressividade. Em 1959, a Federação foi fundada com nove
associações, e, em 1964, reunia cinqüenta e cinco entidades. Contudo, considerando que a
FTFBH não permitia que uma mesma comunidade tivesse duas representações, e que o
Censo de 1965, organizado pelo estado de Minas Gerais, acusou setenta e sete favelas em
Belo Horizonte, deve-se reconhecer que o movimento não estava presente em todas as
comunidades. Além disso, não eram todos os tipos de associativismo que se vinculavam à
Federação. As associações de moradores que participavam da FTFBH identificavam-se
como UDCs – Uniões de Defesa Coletiva. As associações civis eram registradas com vários
nomes (“Associações Pró-Melhoramentos”, “Comitês de Defesa Coletiva”, “Associações de
Defesa Coletiva”, “Associação de Moradores”), mas publicamente elas reconheciam-se
como UDCs. No jornal do movimento de favelas, “O Barraco”, via-se no cabeçalho a sigla
“UDC” em uma casa rústica, identificada como a sede da associação civil3. Outros tipos de
mobilização que não pactuassem com os propósitos do associativismo de defesa coletiva
estavam, em princípio, excluídos da Federação.

A referência e o reconhecimento do associativismo de defesa coletiva remetiam à


importância da luta contra o despejo coletivo promovido na Vila dos Marmiteiros. Em 1949,
os moradores desta favela criaram a primeira UDC, engajando-se contra o despejo
tencionado pela Companhia Mineira de Terrenos Ltda. Esse tipo de propósito e
associativismo expandiu-se para outras localidades. A formação do movimento articulado
pela FTFBH inseria-se no período democrático (1945-1964) nas lutas pelo direito de
moradia em áreas de litígio – lotes urbanos ocupados por favelas que questionavam o
direito de propriedade reivindicado pelo Estado ou por outros atores privados4. A fundação

1 Estatuto da Federação dos Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte, 27/01/1960. Cartório Gero
Olíva.
2 Estatuto da Federação dos Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte, 27/01/1960. Cartório Gero
Olíva.
3 O Barraco, [?/01/1962]. Arquivo Público Mineiro. Fundo DOPS. Pasta 0119.
4 OLIVEIRA, Samuel. Política urbana e movimento de favelas em Belo Horizonte (1947-1964).
Saeculum – Revista de História, nº24, p.39-54, jan./jun.2011.

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da FTFBH representou uma alteração na forma como estes movimentos de luta pela
moradia se organizaram, pois eles passaram a se reunir de forma federativa.

O movimento dos trabalhadores favelados mantinha-se aberto a múltiplas


manifestações que eram encampadas por lideranças e diretorias de associações civis de
favelas. Estas usavam de diversos discursos para reivindicar direitos e denunciar injustiças
vivenciadas pelos moradores, principalmente quanto ao risco de remoção e perda do “direito
de morar”. Os advogados Fabrício Soares e Dimas Perrim ligados à FTFBH eram figuras
centrais na organização dessas práticas de protesto. Eles eram tidos como os “advogados
das favelas”. O primeiro foi deputado estadual em duas legislaturas pela União Democrática
Nacional (UDN); em 1958, rompeu com o partido, engajando-se nas lutas nacionalistas, pela
defesa do petróleo e do minério. Nesse período, ele aproximou-se do Partido Socialista
Brasileiro (PSB) e do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Dimas Perrim era operário,
formou-se em advocacia em 1962, e teve dupla filiação partidária, no Partido Comunista
Brasileiro (PCB) e no PTB.

No espaço público, quem normalmente representava a FTFBH era o presidente da


Comissão Executiva, escolhido por eleição entre os diretores das entidades filiadas. Entre
1959 e 1961, Hermogêneo Moura, morador da Vila Perrela, foi o presidente da FTFBH; e
entre 1961 e 1964, foi eleito como presidente Francisco Nascimento, da Vila Nosso Senhor
dos Passos. Este segundo presidente, juntamente com os advogados, fez grande esforço
para conectar as lutas políticas das associações civis às esquerdas e às campanhas pela
“reforma urbana” no início dos anos 1960. Essas campanhas pela reforma urbana
articulavam os moradores de favelas a segmentos localizados em sindicatos (marceneiros,
trabalhadores da indústria e da construção civil), lideranças de esquerda, autoridades
públicas e organizações estudantis. A maior expressão dessa campanha foi o I Congresso
dos Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte, em 1962.

Durante esse período, a celebração da expansão do associativismo era parte do


discurso do movimento social. As lideranças ligadas a FTFBH afirmavam o caráter
“evoluído” das favelas de Belo Horizonte em relação ao de outras cidades, legitimando sua
representatividade no espaço público5. Entretanto, deve-se ponderar que a formação de
coligações, uniões ou federações de associações civis de favelas e bairros foi uma

5 No jornal da FTFBH, “O Barraco”, várias reportagens apresentavam o fato de “não existir


movimento similar no Brasil”. Cf. Favelado é ser humano e merece respeito e amparo. Binômio, Belo
Horizonte, Caderno 3, p.3, 20/08/1962. Suplemento O Barraco. O jornal "O Barraco" teve seu primeiro
número em janeiro de 1962. A partir do nº 6, em agosto do mesmo ano, passou a ser publicado como
um suplemento do jornal "Binômio".

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constante nos anos 1950. Antes de ser um sinal da “evolução” das favelas de Belo
Horizonte, a formação da FTFBH estava inserida na circulação de um tipo de repertório da
ação coletiva6 em escala nacional. Em 1954, foi fundada a União dos Trabalhadores
Favelados no Distrito Federal; em São Paulo, criou-se a Federação das Sociedades de
Amigos de Bairros e Vilas de São Paulo (Fesab); em 1959, encontrei o registro de um
evento que congregava as Sociedades de Bairros na cidade de Salvador7. Em todas essas
capitais, surgiam movimentos de moradores que reuniam mais de um bairro ou favela
politizando o cotidiano urbano.

2. O Inquérito DVS-096 e sua relevância para historiografia do Golpe de 1964

Em maio de 1964, foi instaurado o Inquérito do Departamento de Vigilância Social nº


096 (Inquérito DVS-096). O coronel reformado da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG),
Gradinor Soares, foi designado como interventor na Federação, fechando várias
associações civis de favelas que existiam no período. A intervenção inseria-se num contexto
mais amplo, marcado por perseguições a vários movimentos que apoiaram e se envolveram
na luta pelas reformas de base.

O golpe de estado de 1964 desencadeou uma serie de ações contra grupos,


lideranças, organizações que apoiavam as bandeiras reformistas. O governo de João
Goulart (1961-1964) caracterizou-se pelas tentativas de estímulo ao crescimento
econômico, num contexto de aumento da inflação e de redução do índice de crescimento do
Produto Interno Bruto (PIB), e pelo impulso a expansão dos direitos sociais dos
trabalhadores. A transformação da “base social” ou da “realidade brasileira” era uma
tentativa de modernização da sociedade, sendo apresentada como solução no plano

6 O conceito de “repertório” tem como objetivo tornar inteligível como os personagens históricos
fazem protestos. Como usam de certo conjunto de “performances relativamente familiares e
modulares na qual um ator político faz reivindicações a outro”. Os meios de ação contra determinados
adversários não existem em número irrestrito e não são inventados a cada novo contexto de luta.
Elas se organizam como rotinas de protesto: constituem-se um aprendizado que envolve a escolha e
a legitimação no grupo social de um número limitado de formas de ação para reivindicar certas
demandas. Em conjunturas particulares, operam-se inovações nos protestos e a adaptação de
performances modulares. O repertório da ação coletiva é “uma combinação paradoxal de ritual e
flexibilidade”, variando de acordo com o ator que se estuda e com a conjuntura sócio-política. Cf.
TILLY, Clarles & TARROW, Sidney. Contentious Politics and Social movements. In: BOIX, Carles,
STOKES, Susan Carol (Eds.). The Oxford handbook of comparative politics. Oxford: Oxford University
Press, 2007, p.440-442.
7 LIMA, Nísia Trindade Verônica. O movimento de favelas no Rio de Janeiro: políticas do Estado e
lutas sociais (1954-1973). 1989. 230 f. (Dissertação de Mestrado em Ciência Política) - Instituto
Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (IUPERJ), Rio de Janeiro, 1989; FONTES, Paulo. Um
nordeste em São Paulo: trabalhadores migrantes em São Miguel, Rio de Janeiro: ed.FGV, 2010.
p.276 ; Sociedade de Bairros realiza congresso – declaração de princípios nacionalista. Novos
Rumos, Rio de Janeiro, 7 a 13/8/1959, p.10.

ISBN: 978-85-62707-55-1
454 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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econômico e social. As reformas das estruturas sociais brasileiras atingiam vários


segmentos sociais e interesses localizados no campo, nos bancos, na indústria, na
educação e nos centros urbanos (BANDEIRA, 1977; FERREIRA, 2005; FERREIRA, 2006).

Ainda que não existisse uma coesão entre os golpistas quanto ao projeto político
para o Brasil, configurando uma heterogeneidade de propostas e conflitos na disputa pelo
poder, havia o intento de desconstrução da legitimidade do governo João Goulart. As
imagens de “desorganização”, “comunista”, “corrupto” difundiram-se em diversos vetores de
socialização como forma de justificar a luta contra as elites políticas ligadas ao presidente
Jango, bem como dos movimentos que apoiavam as reformas de base. Para além do
governo de João Goulart, uma série de ações que tiveram vez e voz no Brasil entre 1945 e
1964, politizando a sociedade e as desigualdades de classe na cidade e no campo, poderia
serem taxadas como “subversivas”, como fora dos limites legais do regime.

Após o Golpe de 1964, um dos instrumentos de ataque e desconstrução da


legitimidade do governo Goulart e de outros movimentos foram os inquéritos. O Ato
Institucional nº1 (AI-1) reafirmava a defesa da Constituição de 1946, das prerrogativas
liberais contra a atuação de grupos de esquerda – os “comunistas”, mas fornecia as balizas
jurídicas que fomentariam a abertura de processos jurídicos para incriminar individual e
coletivamente opositores ao regime. Em seu artigo oitavo, indicava que os “inquéritos e
processos visando à apuração da responsabilidade pela prática de crime contra o Estado ou
seu patrimônio e a ordem política e social ou de atos de guerra revolucionária poderão ser
instaurados individual ou coletivamente”8. O inquérito foi a expressão do autoritarismo,
servindo para a repressão de diversos movimentos sociais constitutivos no Brasil.

No intuito de regulamentar os inquéritos nas práticas estatais, o “Comando Supremo


da Revolução” - a tríade militar encabeçada pelos representantes do Exército, Marinha e
Aeronáutica – editaram os atos nº 8 e 9. Estas portarias normatizavam a instauração de
Inquéritos Policiais Militares (IPMs), considerando-se o “clima subversivo, de caráter
nitidamente comunista”. As autoridades que coordenariam os IPMs no combate aos
“comunistas” poderiam designar “servidores de confiança” para realização de diligências ou
de investigações, bem como requisitar quaisquer inquéritos ou sindicâncias já em curso9.

A historiografia tem tomado esses eventos como o início de uma primeira “onda
repressiva” sobre a sociedade brasileira no contexto da ditadura civil-militar. As análise

8BRASIL. Ato Institucional nº1, 9/04/1964.


9BRASIL. COMANDO SUPREMO DA REVOLUÇÃO. Ato do Comando Supremo da Revolução nº8,
14/04/1964; BRASIL. COMANDO SUPREMO DA REVOLUÇÃO. Ato do Comando Supremo da
Revolução nº9, 14/04/1964

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455 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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desse processo tomam os IPMs como signo do princípio da federalização dos órgãos de
segurança e momento privilegiado montagem do aparato repressivo da ditadura. A lógica de
instauração de IPMs responde à ascensão dos militares e civis ligados ao golpe e ao
processo de centralização do poder vivenciado de forma acelerada naquele período
(BRASIL NUNCA MAIS, 1985; ALVES, 1987; FICO, 2001). Essas análise tem o mérito de
anunciar a robustez do aparato repressivo que se constituiria a partir da centralização do
poder, mas perdem de vista nuances que são importantes. Afinal, se consultarmos os
acervos das polícias políticas estaduais, veremos que nem todos os inquéritos foram “IPMs”.
Existem outros que foram produzidos e estimulados pela onda repressiva decorrente do
Golpe de 1964, mas que respondiam a conflitos e lógicas localizadas em cidades ou regiões
específicas.

O inquérito policial que atingiu a FTFBH foi de iniciativa autônoma do Departamento


de Vigilância Social (DVS), da polícia política estadual. Ele mostrava o comprometimento do
órgão estadual com a “Revolução de 1964”, com o intento de destituir a legitimidade do
governo João Goulart e de movimentos que lutaram pela reforma de base, mas também
respondia a interesses e lógicas localizadas na cidade. A ação da polícia estava guarnecida
pela posição de Magalhães Pinto, governador mineiro que se colocava como um dos
arautos e lideranças do golpe que depôs João Goulart. Além disso, os interesses que
guiaram a constituição da acusação do movimento de favelas tinham forte enraizamento nas
lutas e conflitos urbanos: principalmente, a luta travada dos movimento de “trabalhadores
favelados” contra o deputado estadual pessedista Antônio Luciano. Esse teve seus lotes
“ocupados”/ “invadidos” em 1963.

Nesse sentido, a análise do Inquérito DVS nº096 permite vislumbrar como


estratégias regionais e nacionais foram estruturadas no momento da instauração da
repressão decorrente do Golpe de 1964. Ignorar esse imbricamento de lógicas distintas na
organização do inquérito é desconsiderar a própria historicidade do conflito social que foi
reprimido e a maneira como as categorias acusatórias que foram mobilizadas no inquérito
tinham expressão e vida em período anterior ao golpe civil-militar. Para analisarmos o
Inquérito DVS nº 096, devemos evitar a transformação do Golpe de 1964 e discurso que o
legitimou como um marco zero para a análise do social.

3. A “comunização” do Brasil, o governo de João Goulart e a repressão do


movimento de favelas

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O Inquérito DVS nº 096 foi instaurado em quatro de maio de 1964. A peça jurídica de
acusação incorporou ao discurso anti-comunista que organizava as perseguições aos
“inimigo interno” da “Revolução de 1964”. Segundo portaria do delegado de Segurança
Pública, Raimundo Tomaz, “elementos conhecidos nos núcleos favelados nesta Capital
vêm, já de algum tempo, organizando invasões de terrenos, criando novas favelas com
propósitos ainda não de todo esclarecidos, porquanto, segundo suspeita, este movimento
integrava plano de subversão da ordem e comunização do país”10.

No relatório conclusivo do delegado de polícia, Raimundo Thomaz, temos um


exemplo dessa lógica acusatória que vinculou a imagem do comunismo ao governo de João
Goulart e ao movimento de trabalhadores favelados. O relatório explicava o movimento
social da seguinte maneira:

para se defenderem os favelados e garantirem o “seu descoberto direito de morar”,


sentiram a necessidade de aumentar o mínimo de defensores e, para tanto, formaram
àqueles que a essa época exigiam reformas, ainda que com emprego da força, solidários
portanto pelas reformas de base, com a agrária, a urbana, a remessa de lucros, a
bancária e de diretrizes e bases do ensino, a tributária, etc. e a da Constituição Federal,
pois todo esse movimento amparado pelo então Presidente da República e a cúpula
político-adminstrativa do Governo. Certamento o “Direito de Morar” se incluiria naquele
11
plano de conquistas .

Ora, se é inegável que as reformas de base, assim como a ascensão de João


Goulart, cumpriram um papel na mobilização dos trabalhadores favelados, isso não
significava a adesão e o envolvimento em todas as iniciativas do governo, nem era
necessariamente um vínculo direto com o “Presidente da República e a cúpula político-
administrativa do governo”. O princípio de causalidade evocado no relatório do delegado é
enganador, pois desconsiderava o processo histórico mais extenso dos conflitos urbanos.
Ademais, o “descoberto direito de morar”, termo e categoria moral na mobilização e
na valorização dos protestos das favelas, era ironizado pelo delegado, como se ele fosse
mera invencionice da conjuntura reformista, desprovido de densidade histórica e social. As
ações do movimento de favelas anteriores à ascensão de Jango não são referidas no
Inquérito DVS 096. Essa versão enquadrava a História dos movimentos de favelas no ano
de 1961 – o princípio e origem do confronto, e desconsiderava a versão dos atores e das
iniciativas para conquista do direito de moradia em Belo Horizonte. Nessas outras
narrativas, transcendia-se aquele momento específico, relembrando as biografias de luta

10Portaria, 04/05/1964. APM. Fundo DOPS. Pasta 3992.


11TOMAZ, Raimundo. Relatório Inquérito DVS 096, 26/08/1964. APM. Fundo DOPS. Pasta 3932.

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para sobreviver na cidade, a trajetória do associativismo de defesa coletiva e a


exemplaridade do conflito da Vila dos Marmiteiros contra a Sociedade Mineira de Terrenos
em 1949.

A lógica discursiva do relatório tinha um claro componente nacional ajustando-se ao


discurso que legitimaria a deposição do presidente João Goulart. A acumulação de
documentos para justificar a repressão ao movimento social também recuava apenas até o
ano 1961. Considerando que, no Brasil, as delegacias especiais da polícia política foram
fundadas na década de 1920 e que o Estado de Minas Gerais criou a Delegacia de Ordem
Pública em 1927, os dados que poderiam ser acessados como prova para acusar os
indiciados podiam recuar no tempo, até o momento do surgimento das primeiras
associações de favelas, em 1949. Entretanto, os documentos acumulados pela policia sobre
movimentos de favelas e usados no inquérito tinham como data inicial limite o ano de
196112.

Essa ordem arquivística na organização das provas de subversão do movimento de


favelas apresentava uma seleção a posteriori, demarcando uma temporalidade e uma
origem para o conflito. Ela representava o enquadramento do Inquérito ao discurso que
tomava João Goulart como mito e causa dos conflitos sociais do período. Como se a
politização das cidades e do urbano ocorresse somente pela mediação feita por uma
liderança. Esse era o mito da conspiração comunista que justificou nacionalmente o Golpe
de 1964.

Para comprovar a comunização das favelas, o delegado mandava “colher as


declarações dos proprietários ou representantes destes, com referências às áreas de
terrenos invadidas, esclarecendo sempre os processos adotados pelos invasores e a
resistência as medidas postas em prática para integração [de posse] nos diversos casos”13.
As categorias de acusação mobilizadas contra o movimento de trabalhadores favelados era
construída a partir do apoio de pessoas e grupos que reivindicavam a posse de terrenos
urbanos em que se localizavam as favelas.

O “Inquérito DVS 096” tornava realidade as ambições de atores do mercado


imobiliário que combatiam as associações de favelas que resistiam às ações de despejo e
ao intento de homogeneizar o tecido urbano por um viés higienista. O espaço reservado
dessa comunicação não permite um maior aprofundamento dessa questão, mas é
importante aqui salientar que o discurso de acusação formulado pela polícia política

12APM. Fundo DOPS. Pasta 3932.


13Idem

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alicerçava-se numa reciprocidade com um grupo social que observava as favelas como uma
agressão ao direito de propriedade na cidade e a pressupostos estéticos que deveriam
prevalecer na expansão da cidade.

Referências

ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1985). Petrópolis: Vozes,
1987.

BANDEIRA, Moniz. O governo João Goular: Lutas sociais no Brasil (1961-1964). Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.

BRASIL nunca mais – Um relato para a História. Petrópolis: Vozes, 1985.

CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Livros Proibidos, Ideias Malditas. São Paulo: FAPESP,
2002.

FERREIRA, Jorge. Imaginário Trabalhista: Getulismo, PTB e cultura política popular. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

FERREIRA, Marieta de Moraes. João Goulart: entre a memória e a História. Rio de Janeiro:
FGV, 2006.

FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record, 2001.

FONTES, Paulo. Um nordeste em São Paulo: trabalhadores migrantes em São Miguel, Rio
de Janeiro: ed.FGV, 2010.

LIMA, Nísia Trindade Verônica. O movimento de favelas no Rio de Janeiro: políticas do


Estado e lutas sociais (1954-1973). 1989. 230 f. (Dissertação de Mestrado em Ciência
Política) - Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (IUPERJ), Rio de Janeiro,
1989.

MOORE JR., Barrington. Injustiça – as bases sociais da revolta e da obediência. São Paulo:
Brasiliense, 1987.

TILLY, Clarles & TARROW, Sidney. Contentious Politics and Social movements. In: BOIX,
Carles, STOKES, Susan Carol (Eds.). The Oxford handbook of comparative politics. Oxford:
Oxford University Press, 2007.

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459 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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VELHO, Gilberto. Duas categorias de acusação na sociedade brasileira contemporânea. In:


Individualismo e Cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

ISBN: 978-85-62707-55-1
460 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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Construindo a importância política: movimento estudantil e a estratégia cultural na


cidade de João Pessoa (1976 a 1979)

Talita HANNA
Mestranda na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
hannahistoria@gmail.com

Distensão lenta, gradual e segura

O país está suficientemente sofrido.


Precisamos acelerar o processo de
redemocratização.
Mas sem virar estátua de sal,
como a mulher de Ló.
Não podemos nos perder olhando para trás.
Golbery, em confissão a Ulysses Guimarães1,
maio de 1975.

“Quem muda a sociedade é a sociedade. Quem transforma a sociedade são as


forças sociais. Um cidadão, uma atividade, não muda a sociedade, não, é o conjunto da
vontade social em combinação com circunstâncias históricas que vão apontando uma
determinada direção.” Assim o teatrólogo paraibano Paulo Pontes descreve sobre a
conjuntura social do Brasil frente ao sucesso nacional da peça Gota d’ Água, em parceria
com Chico Buarque.2 Eis uma conjuntura em que as mudanças políticas do país davam
brechas esperançosas para uma futura abertura política. A partir de 1974 assume a
presidência Ernesto Geisel, considerado, para alguns autores e pesquisadores, integrante
da ala mais moderada do regime. Neste momento, o governo Geisel passa a representar
uma leve mudança de posicionamento do governo ditatorial militar, por motivos dos quais
aqui serão brevemente descritos.

Para o Brasil, a primeira metade da década de 1970 esteve diante de uma esquerda
desmobilizada devido a repressão institucionalizada através do Ato Institucional n° 5. Com a
oposição dispersa, o poder militar sentiu-se mais confiante para reduzir o aparato repressivo
e dar margem a algumas mudanças políticas, até futuramente culminar na abertura política,
na figura de João Batista Figueiredo. Geisel, alinhado a posição de Castelo Branco,
concordou em estabelecer direcionamentos tênues e um regime militar mais tolerante,
porém dentro de um processo de distensão política cuidadosamente planejada para ser
“lenta, gradual e segura”. Outro elemento que contribuiu para o planejamento e execução da
distensão política foi a preocupação em preservar a corporação militar. A permanência

1
Informações contidas no livro de Luiz Gutemberg “Moisés, codinome Ulisses Guimarães” citado por
Elio Gaspari (2004).
2
Em entrevista ao jornal O Momento: 23 a 29 de fevereiro de 1976.

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militar no comando do Estado poderia levar ao risco de autonomização dos aparelhos


repressivos, o que poderia gerar quebra de comando hierárquico e divisões nas Forças
Armadas. (Motta, 2014: 327).3

O quadro internacional também pairava entre os militares. Segundo Gaspari (2004),


baseado no arquivo privado de Golbery do Couto e Silva e de Heitor Ferreira, a derrota
eleitoral do partido do governo (Arena) para o MDB no ano de 1974 já teria deixado margem
para o grau de descontentamento nacional e, além disso, foi gerado no governo o temor de
que a experiência da Grécia4 reverberasse no Brasil. Geisel também temia que os jovens
oficiais brasileiros, influenciados pelo exemplo dos capitães portugueses que destituíram o
salazarismo, passassem a acreditar que a situação nacional não estava bem devido a velha
junta governativa de “velhos ultrapassados” (Gaspari, 2004: 24). Em reunião com o Alto
Comando das Forças Armadas em janeiro de 1975, Geisel proferiu:

Aí temos o problema da subversão. [...] Não existe nenhum foco no país


de subversão interna ativa, vamos dizer. [...] Acho que deveríamos,
inclusive, fazer uma nova análise completa de todo este problema da
esquerda para ver se há mudanças ou não. Porque se houver
mudanças, nós também devemos mudar. (Segunda Reunião do Alto
Comendo das Forças Armadas apud Gaspari: 2004, 30)

Também um dos maiores parceiros das ditaduras militares na América Latina havia
mudado seu posicionamento em relação aos governos repressivos. Os Estados Unidos
passa, na figura do presidente Jimmy Carter, a posicionar-se em favor dos Direitos
Humanos, incentivando os países sob regime ditatorial a aderirem a uma política
democrática. No Brasil, A Igreja e a Ordem dos Advogados do Brasil já se posicionavam em
favor dos Direitos Humanos. Geisel também põe em pauta:

Nós continuamos a ter um grande fator negativo, sobretudo no âmbito


interno, que são alguns setores internos que nos acusam de
arbitrariedade, de torturas, de procedimentos ilegais. Isto é um fator
muito negativo para o governo [...] ver até onde nós podemos ir para
atender a este problema que se apresenta aí, dos direitos da pessoa
humana e não sei mais o quê. Não sou um fetichista nessa história, mas
acho que nós temos que ter cuidado para que isso não vire um
bumerangue contra nós. (Segunda Reunião do Alto Comando das
Forças Armadas apud Gaspari, 2004: 30)

A distensão política, mesmo atuando com o Ai-5 em vigência até o fim do governo
Geisel, alimenta a esperança dos brasileiros, sobretudo daqueles que integravam

3
Os órgãos de espionagem e repressão chegaram a ter certa autonomia, porém sob subordinação
hierárquica (base das normas militares). Ao final do governo de Castelo Branco, os exaltados passam
da condição de grupo de pressão para “sistema de segurança”, com permissão para investigar,
prender e interrogar. Surge, assim, a polícia política. Para uma melhor leitura sobre órgãos de
espionagem e polícia política, ver: FICO, Carlos. Como eles agiam: os subterrâneos da ditadura
militar. Rio de Janeiro: Record, 2001.
4
Os coronéis foram presos após um fracassado golpe no Chipre.

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movimentos de oposição ao regime ditatorial. Gradativamente a sociedade civil foi dando


mostras mais visíveis de atuação, muitas delas agindo em conjunto na busca por um
objetivo em comum: o fim do governo ditatorial e a democratização política do país. A
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Associação Brasileira de Imprensa e Ordem dos
Advogados do Brasil utilizam de suas posições hegemônicas na sociedade5 para fazer
frente a sociedade civil. E o movimento estudantil?

Impedidos de atuar nas ruas, os estudantes acadêmicos passaram a adotar outras


medidas de ação oposicionista: alguns aderiram a luta armada, outros atuaram nas próprias
instâncias deliberativas das universidades, de modo que no período de distensão, as
notícias públicas sobre um movimento estudantil combativo (ao menos na Paraíba), se dá
de maneira muito tímida. É possível que por este motivo, até então não se tenha um estudo
exaustivo acerca das movimentações estudantis acadêmicas de 1976 a 1979 em João
Pessoa. Não é de se julgar: os clássicos dos estudos sobre movimento estudantil, Arthur
Poerner (1995) e Guilhon Albuquerque (1977), alegavam que o heroico movimento
estudantil brasileiro havia chegado ao fim com a adesão de muitos estudantes à luta
armada. É possível que esta ideia de desmantelamento do movimento tenha tornado o tema
(neste período cronológico) de poucos atrativos. Segundo Poerner (1995), não havia
mínimas condições para a sobrevivência do movimento estudantil mediante a repressão pós
AI-5, embora nunca tenham deixado de existir tentativas e ações isoladas ou pontuais.6

Movimento estudantil dentro e fora da UFPB

A necessidade de construção de novas perspectivas de luta acadêmica e política


levam a uma fragmentação da vanguarda revolucionária, e esta fragmentação acompanhou
a retomada do movimento estudantil na década de 1970/80. Segundo Pellicciotta (1997),
vários aspectos estão interligados ao movimento estudantil dos anos 70/80: aspectos
acadêmicos, culturais e políticos. Segundo a referida autora, ao estudar o caso da USP,
menciona que a partir dos anos 70 as concepções militantes deixam de se dar apenas em
território partidário e muitas das proposições políticas afastam-se desta perspectiva para
produzir uma multiplicidade de propostas de organização e ação política. (Pellicciotta, 1997,
p. 32)

5
Por alguns autores chamada de “elite oposicionista”.
6
Em pequenos grupos ou em ações relâmpagos houve no Brasil, dentre outros, protestos contra a
presença de Nelson Rockefeller, em 1969; segundo aniversário da morte de Edson Luís, em 1970;
manifestação contra as arbitrariedades e a morte do estudante Alexandre Vannucchi na USP, em
1974. Já meados de 1974 – 1975 ocorrem diversas greves pelas universidades públicas do país.

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Nesse sentido, tendo por base pesquisa em jornais, é possível perceber que o
movimento estudantil na UFPB utilizou, ao menos nos primeiros anos de distensão do
governo Geisel, a cultura como meio de burlar a repressão na tarefa de aglutinar os
estudantes, trazendo-os cada vez mais ao campo da consciência política. Tais atividades se
davam, inicialmente, dentro do espaço acadêmico.
Nos jornais pesquisados, entre 1974 a 1975 não há registros de atividade
contestatória no meio estudantil acadêmico da UFPB. Já de 1976 a 1979 há registros de
algumas atividades estudantis em torno da cultura, rumo a vias mais amplas: O Momento
publicou, na edição 113 de fevereiro de 1976, o lançamento do jornal Gênese7, que tinha por
intuito divulgar os problemas sócio-político e econômico do nordeste brasileiro e das
universidades. Este não foi o único jornal produzido por estudantes na UFPB deste período:
os estudantes de comunicação lançaram o jornal Bocão, cuja finalidade era fazer uma
análise do jornalismo na Paraíba. Outro jornal promovido por estudantes foi O Berro, com
conteúdo que assemelhava-se ao jornal Gênese, com uma exceção: procuravam ater-se
aos problemas cotidianos da cidade de João Pessoa, desde matérias sobre infraestrutura,
excluídos (idosos, prostitutas, mendigos ...) e deficiência dos transportes coletivos.8
Apesar de representar uma boa circulação de notícias e ideias, a mobilidade
estudantil não converteu-se apenas em jornais. O jornal A União registrou na edição de 18
de julho de 1976, a realização de ciclo de debates sobre arte e cultura realizado pelo DCE-
UFPB, em conjunto com diversos diretórios acadêmicos. Realizados semanalmente, eram
debatidos temas ligados a música, teatro, cinema e literatura. Este também foi o ano do
sucesso nacional da peça Gota d’Água, de Chico Buarque e do teatrólogo paraibano Paulo
Pontes. Ano também em que Vladimir de Carvalho teve seu documentário “O país de São
Saruê” (de 1971)9 interditado e sob a censura da Divisão de Censura de Diversões Públicas.
É possível que esses fatores tenham engrossado o caldo de ideias entre os estudantes
acadêmicos de João Pessoa, sobretudo também alinhados as novas tendências
reivindicatórias entre os estudantes do Brasil. Se nas ruas estava difícil, era através da arte
e cultura que poderiam transformar algo.
No ano de 1977 houve novamente a proibição de passeatas estudantis por todo o
Brasil. O ministro Armando Falcão tomou medidas para que todos os estados brasileiros

7
Apesar de estar ligado ao DCE “diretório não participativo dos processos eletivos”, seus editores
(Paulo Tavares, Romero Antônio Leite e Carlos Tavares) alegam que é um jornal independente.
Edição 113 do jornal “O Momento” – 23 a 29 de fevereiro de 1976.
8
Transporte coletivo era um grande problema da população pessoense, principalmente dos
estudantes. Além da reduzida frota, era comum o não cumprimento ao direito estudantil da meia
passagem.
9
Documentário sobre a vida de lavradores, garimpeiros e outros moradores do nordeste brasileiro, da
área conhecida como polígono das secas (Paraíba, Pernambuco e Ceará). Foi censurado devido ao
teor de denúncia contra a exploração dos trabalhadores pelos donos de terra, sendo oficialmente
lançado em 1979, quando acabou premiado pelo júri do Festival de Brasília.

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impedissem “manifestações coletivas que comprometessem a normalidade, imprescindível à


preservação do processo de desenvolvimento do país.”10 E prossegue:

Passeatas, concentrações de protestos em logradouros públicos, assim


como outras demonstrações contestatórias, são distúrbios de fundo e fim
subversivos, não podendo em consequência ser toleradas. Mostra-se
aconselhável que sejam tomadas de preferência medidas preventivas,
oportunas e eficazes, para resguardo da tranquilidade geral que a nação
exige acima de tudo.” (Trecho de recomendação do ministro Armando
Falcão registrado no jornal A União, maio de 1977)

No mesmo mês é publicado no jornal o posicionamento do MEC com relação as


atitudes estudantis. Apesar das medidas de proibição a manifestações em vias públicas, as
mesmas vinham ocorrendo no meio universitário em João Pessoa, que segundo a notícia
“burlava regulamentos e estatutos regimentais das instituições de ensino superior”. Continua
reproduzindo: “Caso os órgãos de representação estudantil não obedeçam aos critérios
prescritos no decreto lei 228 de 1967, os órgãos serão suspensos ou dissolvidos pelos
Conselhos Universitários” (A União, maio de 1977). Fundado em 1893, A União é um jornal
ligado ao governo da Paraíba e seus registros, até então, giram em torno dos atos positivos
do governo do estado e nacional em contraposição aos deslizes cometidos pelo partido
oposicionista. Não é de se admirar que não haja praticamente notícias sobre movimentos
contestatórios.
No dia 20 de maio de 1977, parte do pronunciamento do deputado Tarcizo Telino na
Assembleia Legislativa vem impressa na capa de A União11. Ao contestar o pronunciamento
feito pelo deputado do MDB Bosco Barreto em solidariedade as movimentações estudantis,
Telino pronuncia:

Os estudantes paraibanos devem se omitir dessas agitações que ora se


verificam nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, pois elas não
representam os interesses da classe estudantil e, sim, atende aos
interesses de uma minoria política e subversiva. (A União: 20 de maio de
1977)

Para Tarcizo Telino, não seria esse o momento de apoiar as manifestações


estudantis, pois “a classe estudantil não sabe o que quer”. Segundo o deputado, os
estudantes deveriam protestar contra o sistema de ensino, pois era esse o mundo daqueles
que ainda não tinham chegado a etapa profissional. Lutando contra os erros do sistema de
ensino, receberiam o apoio do governo.
O jornal O Momento nos demonstra um outro posicionamento com relação as
movimentações estudantis. Fundado em 1973 por Jório de Lira Machado, sua ideologia era
de oposição às autoridades constituídas e não contou com nenhuma ajuda das frentes
10
A União: edição de maio de 1977.
11
Título: Deputado pede que os estudantes paraibanos não apoiem agitações.

ISBN: 978-85-62707-55-1
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bipartidaristas (MDB e Arena). O próprio teor publicado é outro e quem ler percebe que não
há intenção de agradar governantes vigentes. Em março de 1977, O Momento informa que
o DCE, presidido por Severino Dutra, promove a inauguração do Cineclube-UFPB, que
priorizava a exibição de filmes paraibanos. Em conjunto com a inauguração do cineclube
houve a campanha pela construção e publicação do Caderno de Poesia Marginal, com
intuito de incentivar os estudantes a expressarem suas angustias cotidianas, individuais ou
coletivas a partir da poesia.
É possível também ler a notícia sobre o ciclo de debates, também promovidos pelo
DCE-UFPB, com jornalistas dos jornais alternativos O Movimento, O Pasquim e Versus:
Jaguar, o cartunista Henfil, Antônio Carlos Carvalho e Marcos Faernann fizeram parte de
uma roda de debates como parte da calourada.12 Esses são registros que não devem ser
passados despercebidos, em se tratando de ações que visavam aglutinar estudantes a
refletir e agir para além dos interesses estudantis e profissionais.
A presidência de Severino Dutra no DCE (de 1976 a maio de 1977) esteve
bastante articulada a cultura. Em junho de 1977 tomam posse novos dirigentes no DCE-
UFPB. A entidade passa a ter como representante Walter Oliveira e a partir deste
momento percebe-se os primeiros passos de atuação estudantil fora do eixo acadêmico-
cultural. Há manifestações pela manutenção da meia passagem a partir da segunda
metade do ano de 1977, contra a campanha da Associação dos Transportes Coletivos
pela extinção da meia passagem estudantil. As movimentações estudantis receberam o
apoio da Arquidiocese da Paraíba, através da figura do arcebispo Dom José Maria Pires,
noticiado pelo O Momento em sua edição 188, de agosto de 1977. Temos aqui a saída
de estudantes do espaço acadêmico para as ruas, mesmo sob a vigência do AI-5.
Contudo, é a partir de 1979 que o movimento estudantil acadêmico de João
Pessoa toma a iniciativa de atuar em conjunto com outros setores da sociedade civil
paraibana13 em luta não apenas por causas estudantis. O DCE-UFPB apoia os
agricultores de Coqueirinho e Cachoeirinho, no município de Pedras de Fogo na
Paraíba, que estavam sendo violentamente despejados pela Usina Central Olho d’Água.
Este também foi o ano em que os estudantes da UFPB estiveram mobilizados em apoio
aos professores da rede pública estadual de ensino, por melhores salários e condições
de trabalho. Paralelamente em apoio aos professores, as atenções também estiveram
voltadas para o 31° Congresso da UNE, a ser realizado na Bahia. Sônia Maria Germano,
enquanto presidente do DCE, cedeu coletiva a imprensa local explicando a importância

12
Semana de arte e cultura promovida por entidades de representação estudantil acadêmica, como
parte da recepção aos novos estudantes acadêmicos, ou chamados feras.
13
Atuam em conjunto com o Centro de defesa dos Direitos Humanos da Arquidiocese da Paraíba,
Diretório Acadêmico 11 de agosto de Campina Grande, ADUF-PB, setor jovem do MDB-PB,
Movimento Feminino pela Anistia-PB.

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da UNE para os estudantes acadêmicos. O programa de informação consistia em


pedágios para ajuda financeira a ida de representantes paraibanos, panfletagem,
debates, bandeiras da UNE por toda UFPB e convite de parte da sociedade civil
paraibana (Arquidiocese da Paraíba, Comitê Brasileiro pela Anistia, setor jovem do MDB
e Assembleia Legislativa) para participar do evento e contribuir financeiramente com a
ida de estudantes paraibanos. O 31° Congresso da UNE unificou ainda mais os
estudantes, em se tratando do nível nacional e a inserção partidária tornou-se mais
significativa.

Considerações finais

As movimentações estudantis da UFPB, campus João Pessoa, passaram por dois


momentos entre os anos de 1976 a 1979: inicialmente, o Diretório Central dos Estudantes
(enquanto maior representação estudantil dentro do espaço acadêmico), sob a presidência
de Severino Dutra, enfrentou o grande desafio de mobilizar os estudantes em meio ao
sentimento de medo causado pelo AI-5 e pela lei 477. Essa mobilização aos poucos chegou
a ser possível através de expressões culturais. Com Walter Oliveira, a partir da segunda
metade de 1977, os estudantes saíram do espaço acadêmico e ocuparam as ruas de João
Pessoa pelo direito da meia passagem estudantil. Já o ano de 1979 presenciou
movimentações estudantis mais confiantes de estar nas ruas, na luta não só por causas
estudantis, mas em apoio aos demais setores da sociedade civil, sobretudo após revogação
de decreto 477 e 228. Diz Sônia Maria Germano, em coletiva: “Os estudantes estão ombro a
ombro com as lutas gerais dos trabalhadores, professores e funcionários, enfim, do povo
brasileiro” (Correio da Paraíba, 19 de maio de 1979). Eis um posicionamento da
representação estudantil da UFPB, campus João Pessoa, que a partir de 1980 desemboca
em uma outra face das movimentações: a inserção partidária a partir das tendências
políticas.

Referências

1) Bibliografia

ALBUQUERQUE, J. A. Guilhon Org. Classes médias e a política no Brasil. Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 1977.

ARAÚJO, Fátima. História e Ideologia da imprensa na Paraíba. João Pessoa: Editora A


União, 1983.

GASPARI, Elio. A ditadura encurralada. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e

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modernização autoritária. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

PELLICCIOTTA, Mirza Maria Baffi. Uma aventura política: as movimentações estudantis dos
anos 70. 1997. 282 p. Dissertação de mestrado: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
da Universidade Estadual de Campinas.

POERNER, Arthur José. O poder jovem: história da participação política dos estudantes
brasileiros. São Paulo: Centro de memória da juventude 1995.

2) Periódicos

A União, meses janeiro de 1975 a dezembro de 1977.

O Momento, meses janeiro de 1975 a dezembro de 1979.

O Berro, edição especial sobre o 31° Congresso da UNE, 1978.

Correio da Paraíba, meses janeiro a junho de 1979.

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O Estado de exceção é a regra: vidas sujeitadas à justiça militar em tempos de


ditadura

Tásso BRITO
Mestrando no PPGH-UFPE e bolsista CAPES.
tasso.brito@gmail.com

O filosófo Walter Benjamin é enfático quando diz “A tradição dos oprimidos nos
ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral.” (BENJAMIN,
1994 p.226), as práticas de um estado exceção como no caso brasileiro seriam
endurecimento de práticas já existentes. Uma vez que este estado não seria o rompimento
das lutas e tensões que existiam antes deles, mas sim o acirramento destas, na medida em
que uma parcela da sociedade passa a exercer mais poder sobre outra.

Podemos compreender esta afirmação se passarmos a pensar sobre a vida de


muitos homens e mulheres antes do golpe civil militar, homens como Gregório Bezerra, um
dos líderes mais conhecido do Partido Comunista em Pernambuco. Sendo notória sua
posição de dirigente do partido, a suas ações eram constantemente vigiada pelo
Departamento de Ordem Política e Social de Pernambuco (DOPS-PE), mesmo quando este
foi deputado federal, na década de 1940, sua vida era constantemente devassada por
policiais a serviço do DOPS.

Não sendo diferente a vida de outros membros do Partido Comunista ou que eram
nomeados de comunista por aquele órgão, eram vigiados e presos pelo governo
democrático então vigente. Na década de 1950, muitos membros do Partido Comunista
foram presos, depois de uma investigação empreendida pelo DOPS. Segundo Breyner
(1989), a operação policial e a prisão de vários membros do partido quase levou este ao fim
em Pernambuco.

A lei que vai servir de base de acusação para essas prisões durante o regime civil
militar não data do golpe de 1964, mas de 1953, a Lei de Segurança Nacional servirá de
base de acusação para os crimes considerados políticos pela ditadura civil-militar.

Então, podemos começar a pensar que as vidas desses homens filiados ao Partido
Comunista ou que eram denominados de comunistas pelos órgãos de repressão já eram
sujeitadas as práticas que comumente dizemos se tratar de um estado exceção. Não que o
período que existia antes do golpe de 64 fosse um estado de exceção, mas é inegável que
algumas de suas práticas eram tão autoritárias que muitas pessoas já viviam em seus
direitos em suspensão tal como será na ditadura que se seguiu no pós-golpe. Eram práticas

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que foram muitas vezes exacerbadas pela ditadura, mas que já existiam antes e por vezes
existirão depois do fim da ditadura.

As leis e as aplicações delas que se seguiram no pós 1964 são a efetivação e


expansão de práticas já existentes na sociedade brasileira antes mesmo do golpe civil
militar. Recorrendo a Giorgio Agamben que diz:

Na sua forma arquetípica, o estado de exceção é, portanto, o


princípio de toda localização jurídica posto que somente ele abre o
espaço em que a fixação de um certo ordenamento e de um
determinado território se torna pela primeira vez
possível.(AGAMBEN, 2010, p. 21)

Podemos pensar, como este período antes de 1964 trazia práticas que seriam
territorializadas com a ditadura. E não criadas com o golpe, assim partimos para outra noção
sobre as leis, sobre a justiça e sobre o direito que não é a do contrato social iluminista. As
leis não são a pacificação do homem lobo do homem, mas sim fruto da força, da guerra, do
vencedor do conflito.

O estado de exceção, principalmente o caso brasileiro, não é um estado que decreta


o fim das leis. Ele se faz valer de sua força para uma constante criação delas, fazendo o
executivo ter funções legislativas e criando leis ao seu bel prazer. Assim o estado de
exceção brasileiro se situa no lugar de indistinção entre a existência e a não existência de
legalidade, é desta zona de indistinção que o estado cria as regras e por não sair desta zona
é que podemos chamá-lo de estado de exceção. Esta zona é uma zona ocupada através da
força, tanto a força coercitiva quanto a força do convencimento, estas que também são duas
formas que o direito se exercer.

Tendo isso em mente podemos pensar como o sistema jurídico se exerce com e na
violência, assim não podemos cair na simplória critica do justo e injusto quando tratamos
dos sistemas de justiça. Principalmente ao pensarmos o sistema jurídico brasileiro durante a
ditadura civil-militar.

II

Gregório Bezerra foi um dos principais dirigentes do Partido Comunista em


Pernambuco, participou ativamente nos principais momentos do partido, militar reformado,
participou do levante comunista de 1935, foi deputado federal na década de quarenta, antes
do golpe atuava no campo junto aos trabalhadores rurais de Pernambuco. Foi preso

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algumas vezes ao longo de sua trajetória de vida, sua prisão durante os primeiros dias do
golpe marcou a memória sobre o golpe na cidade de Recife.

No bairro de Casa Forte, um dos mais tradicionais e elitizados da cidade, Gregório


com sessenta anos de idade foi torturado por membros do quartel motomecanização.
Enquanto era torturado, o tenente coronel Darci Villocq conclamava o povo a agredir o seu
prisioneiro, mas a população não atendeu a este chamado.

No dia 2 de Abril de 1964, Gregório Bezerra recebeu voz de prisão. Sua prisão foi
efetuada por um capitão da polícia militar (PM) de Pernambuco, sua ordem era apresentar o
preso ao Coronel da PM Ivan Rui, chefe de segurança do estado de Pernambuco naquele
momento. Sua prisão se deu no interior do estado. Quando este estava sendo conduzido a
Recife, no município de Ribeirão, encontram-se com um destacamento do 20º batalhão de
caçadores de Alagoas que retira a posse do detento do oficial da PM. Então, Gregório
Bezerra é trazido à Recife, mas não é apresentado mais ao secretário de segurança do
estado, ele foi levado ao comando do IV exercito.

Se pensarmos que a polícia é a primeira instância da justiça, esta prisão já é


indiciaria do tipo de justiça aplicada naquele período, assim como as relações de força entre
os órgãos no interior do regime. Apesar da ditadura ser civil-militar, os órgãos castrenses
tinham força para agir a revelia dos demais órgãos do estado. Por isso a prisão de Gregório
foi consumada pelos militares do exército e não da polícia.

Três anos depois, ele ainda se encontrava sem uma acusação formalizada, porém
preso. Dentro de um senso da normalidade jurídica, isto seria impossível. O que sempre era
lembrado por sua advogada nos pedidos de habeas corpus, porém constantemente o
habeas corpus era negado. Em certo grau, isto se deu pelo redesenho dos quadros do
judiciário empreendido pelo executivo pós 64.

O AI-1 com seus expurgos puderam redesenhar os quadros de juízes pelo país,
alijando aqueles que eram tidos como contrários ao novo regime. Já o AI-2 modificara a
estrutura do Superior Tribunal Federal (STF), aumentando o número de cadeiras de onze
para dezesseis1 (MACIEL, 2006 p.16), o mesmo AI-2 ainda levava os julgamentos de crimes
contra a segurança nacional para a esfera da justiça militar, fossem os réus civis ou
militares.

1
Vale lembrar aqui que os ministros que ocupariam estas cadeiras foram indicados pelo poder
executivo, ou seja, pela ditadura vigente.

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O senso comum acredita que governos autoritários não precisam de aparelhos


judiciais. Mas, no Destacamento de Operação de Informação (DOI) do Exército havia vários
órgãos especializados e dentre as partes desta maquinaria existia uma assessoria jurídica
(FICO, 2001 p.124). Assim, podemos pensar que a questão judicial fazia parte do rol de
preocupações dos agentes da repressão. Anthony Pereira (2010 p.55) alerta que o sistema
judicial e a legalidade ditatorial não são meras fantasias, mas sim uma “realidade virtual”
que engendra práticas, inclusive as de força e arbitrariedades.

Assim, podemos perceber o esforço do regime para garantir a jurisprudência


almejada. A força jurídica não está na criação das leis, mas sim no preenchimento delas por
jurisprudências. Por isso, o constante esforço para conseguir ter um poder judiciário
favorável ao executivo ditatorial. Isto para além de mecanismos de exceção como a polícia
política ou a censura prévia que visavam garantir o funcionamento deste estado de exceção.

Como lembra Foucault, os processos jurídicos também criam as verdades


(FOUCAULT, 2003), assim a captura de Gregório Bezerra é o início da transformação de
uma pratica em um crime aos olhos do estado estabelecido. Pois, as praticas de Gregório só
irão configurar crime na medida em que o maquinário judicial assim nomeia.

III

A advogada de Gregório Bezerra durante boa parte do processo, Mércia


Albuquerque, teve sua vida profissional pautada na defesa de presos políticos. Gregório foi
o seu primeiro cliente, mas ao término da ditadura civil militar estima-se que ela tenha
defendido mais de mil presos políticos. Homens e mulheres que em sua grande maioria
foram julgados na 7ª auditória militar, que apesar de ser em Recife era encarregada por
julgar crimes ocorridos nos estados de Alagoas, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do
Norte.

Para Anthony Pereira, os advogados de defesa foram capazes de pouco a pouco


criar uma nova jurisprudência para a lei de segurança nacional, assim ampliando os limites
da legalidade. (Pereira, 2010 p.211). Assim, talvez não se trate de procurar vitórias judiciais,
não que não houvesse, mas de pensar como as defesas foram criando estes novos limites
da legalidade.

Os advogados também tinham outras formas de ajudar seus clientes que muitas
vezes beiravam a ilegalidade ou eram de fato ilegais. Faziam parte de uma rede de
solidariedade que pregava muitas vezes o discurso dos direitos humanos, e através disso

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encontravam justificativas para ações como ajudar em fugas de foragidos ou até mesmo
retirar da cadeia, manifestos de presos políticos que faziam greve de fome em São Paulo2.
Porém, estas ações por conta de sua própria natureza não foram tão documentadas a não
ser involuntariamente, quando um destes advogados era preso por alguma ação que era
considerada ilegal aos olhos da maquinaria jurídica e policialesca do regime. Por isso, este
artigo com pesar as ignorará, para focar nas ações legais.

Mércia ao defender Gregório se esforça para que este seja tratado como preso
político. O preso político é uma figura do direito que se encontra em uma dupla exclusão,
estão excluídos da sociedade liberta e do sistema prisional mesmo estando preso. Esta
dupla exclusão são inclusivas, garantem um lugar único, inclui o preso neste lugar, assim
aqueles que são nomeados pela justiça de preso político ocupa este lugar daquele que é
preso, mas não está sujeito ao sistema prisional, ou seja são excluídos para que possam ser
incluído nos cálculos de poder de outra forma.

Assim, quando o diretor da Casa de Detenção Olímpio Ferraz obriga os presos


políticos a usarem o uniforme da penitenciaria, os advogados de defesa e seus clientes se
opõem a tal ato. Mércia Albuquerque, representando Gregório Bezerra e mais alguns outros
presos, encaminha uma denúncia ao IV exército que a acata. O diretor tenta argumentar que
esta é a regra da Casa de Detenção, porém o IV exército não aceita esta argumentação,
mantendo o direito dos presos políticos se vestirem como querem. Os presos políticos na
Casa de Detenção não tiveram no seu prontuário registrados atos nomeados de indisciplina
como a recusa de usar o uniforme3.

Pois, a construção de uma identidade de preso político era buscada por aqueles
homens acusados de subversão. Para Umberto Eco (1989, p.07) as vestimentas são uma
forma de comunicação não verbal, a recusa do uniforme pode ser entendido desta forma.
Pois, ao se recursar a usar o uniforme, podemos ler os presos dizendo que não são presos
comuns, que não estão lá como os outros.

Usar roupas comuns na prisão, enquanto que os presos comuns usavam uniformes,
foi uma das ferramentas encontrada para que a identidade de preso político possa ser
criada. Assim, como parece ser o desejo do IV exército, da advogada Mércia Albuquerque e
de seus clientes.

2
Nove advogados chegaram a ser preso por levar a imprensa um manifesto de presos políticos que
faziam greve de fome em uma prisão de São Paulo em 1972.
3
No arquivo público estadual de Pernambuco, mais especificamente no fundo relativo aos prontuários
dos presos da Casa de Detenção não há registros de atos considerados de indisciplina, como a
recusa do uso do uniforme.

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Além do não uso dos uniformes, os presos políticos ainda tinham o direito de ter um
espaço separado dos presos comuns. Ocupando a ala Sul da Casa de Detenção, os presos
políticos também se diferenciavam dos comuns por seu lugar de moradia dentro da prisão.

Vale lembrar aqui que oficialmente o governo ainda não admitia a existência de
presos políticos. Mas, dentro da lógica de governabilidade o que relatamos aqui parece
apontar na direção que internamente o poder estatal admitia a existência do preso político
ou que o IV exército assim o fazia. Podemos pensar assim como era dinâmico o regime, que
hora aceitava a existência do preso político e hora negava a depender dos interesses, das
relações de força estabelecidas a cada momento. Por isso, que nunca podemos olhar para o
regime de forma monolítica, pois cada trama histórica faz emergir novos sujeitos, sejam eles
homens ou instituições.

Assim, podemos ver como além de ser excluídos da sociedade pela prisão, eles
também são excluídos do sistema prisional. Mas, esta dupla exclusão é o que garante a
entrada dessas vidas no sistema judicial, no próprio regime ditatorial ali implantado. É o
estado de exceção que assume esta força de alocação de cálculos sobre a vida, essa força
que permite a vida ou autoriza o seu sacrifício.

IV

Mas, a construção desta imagem, desta identidade de preso político, não é uma
construção do regime civil militar. Gregório Bezerra que foi preso algumas vezes, sempre
construiu para si esta identidade, posicionando-se sempre no lugar de preso político. Ou
seja, não se trata de uma construção iniciada com o regime iniciado em 1964.

Desta vez, o próprio Estado garantiu a existência de tal figura. Assim, podemos
pensar como a estrutura política jurídica dava conta de manter a existência de algo que data
de antes do golpe. O estado de exceção então vigente é algo que atua em dois sentidos, no
primeiro ele cria o novo para depois manter uma ordem que data de antes dele mesmo. A
implantação do estado de exceção vem como criação do novo na medida em que rompe
com o estado democrático então vigente, mas este novo existe para conservar uma ordem
política e social que se encontrava em xeque por novas forças e novos agentes que
emergiam da trama histórica dos período comumente chamado de “período de experiência
democrática”.

A busca de preservação da ordem, também se faz presente na acusação jurídica que


levava a cadeia os presos políticos. Gregório Bezerra e outros tantos foi acusado de

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subversão da ordem com auxílio de potência estrangeira, não a ordem do estado exceção,
mas a ordem política e social do período anterior ao golpe. Não é de se espantar que na
sentença de Gregório o auditor militar relembre de ações como o levante comunista de 35 e
uma acusação de incêndio a um quartel do exército no estado da Paraíba. Atos estes que
Gregório já havia respondido e ou inocentado na justiça.

Estes atos foram levados em conta, mas formalmente não foram julgados pelo
processo 8868, no qual eram réus Gregório Bezerra, Francisco Julião, Miguel Arraes e
outros. Mas, desde sua captura Gregório era interpolado por esses atos, em seu primeiro
interrogatório o coronel Ibiapina o acusava de ter matado um oficial em 1935. Só depois de
várias perguntas sobre este suposto assassinato, o general Justino Alves Bastos começar a
interrogar Gregório a respeito de armamentos que supostamente estavam sob a
responsabilidade do interrogado.

Então, mais do que fundar o novo o regime tentava manter uma ordem. Por isso que
retornamos a tese de Walter Benjamin, o estado de exceção é a regra para aqueles que
detém menos força. Aqueles interessados em manter o status quo faziam o máximo para
manter a ordem, a própria prisão de Gregório aponta para esta direção. Como já foi relatado
no começo deste artigo, a prisão de Gregório foi tomada da policia militar pelo exército, mas
o 20º batalhão de caçadores encontrava-se auxiliado por José Lopes Siqueira, dono da
Usina Estreliana4 com seu grupo de homens armados, uma espécie de milícia privada
comumente chamada de jagunços. José Lopes ao ver Gregório queria assassiná-lo, porém
os membros do 20º batalhão resolveram levar o líder comunista a presença do general
Justino Alves Bastos, comandante do IV exército.

Este tipo de ameaça não era apenas dos civis, mas de militares também. Mas,
segundo Pereira (2010) e Montenegro (2012) localizar e colocar aqueles que foram detidos
na malha judicial era ter garantias da sobrevivência daqueles que foram detidos. Assim,
podemos pensar que a justiça militar era interessada em cria a figura do preso político,
mesmo depois de 69, quando ela tem o poder de condenar a morte, tal sentença nunca foi
executada, mesmo tendo alguns casos de condenação, como o caso de Teodomiro Ramos5.

4
Antes do golpe houve uma chacina de cinco trabalhadores rurais daquela usina, durante um
protesto no qual eles tentavam fazer valer decisões da justiça do trabalho. Eles foram mortos
pelos funcionários de José Lopes Siqueira. Para mais detalhes ver Porfírio (2009)
5
Teodomiro aderiu ao movimento armado, comumente chamado de Guerrilhas Urbanas, na operação
que este foi preso ele matou a tiros um oficial do exercito e feriu outro. Seu crime foi julgado e ele
condenado a morte, mas tal sentença não chegou a ser executado. Seu relato se encontra no
arquivo Marcas da Memória – Memória da Anistia, no Laboratório de História Oral e Imagem
(LAHOI) UFPE.

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A justiça militar capturava vidas, transformava-as, colocava-as em cálculos de


governabilidade, mas não foi uma gestora de mortes. Outros órgãos estatais parecem ter
assumido esta função. Mesmo, quando o poder executivo militar atribui também a justiça a
gerência da morte dos detidos, esta nunca executou tal pena.

A justiça, assim como no Processo de Kafka, não tem um objetivo final. Esta captura
a vida para fazer dela coisa sua, sem oferecer outro fim a não ser a própria captura da vida.
Desta forma a figura do preso político é aquele que tem seu lugar dentro do ordenamento do
estado de exceção fixado como uma vida capturada.

E neste sentido a lei se confunde com a vida, numa vigência sem significado, pura
forma, o modo de viver que se impõe como lei tende a se dizer como vida e esta capturada
ou transformada nada pode dizer, está entregue aqueles dispositivos que a transforma, no
caso em tela a justiça militar.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2010.

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476 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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Ação Democrática Parlamentar: anticomunismo, democracia e radicalização


política (1961-1965)

Thiago Nogueira de SOUZA


Mestrado na Unirio.
thisouza85@gmail.com

A primeira metade da década de 1960 assistiu ao surgimento de diversas


organizações anticomunistas no que teria sido a segunda grande “onda” do anticomunismo
no Brasil (MOTTA, 2002). Dentre essas organizações estava a Ação Democrática
Parlamentar (ADP), uma frente suprapartidária surgida no âmbito do Congresso Nacional
que chegou a reunir mais de 150 deputados1 dos mais variados partidos, sobretudo do
Partido Social Democrático (PSD) e da União Democrática Nacional2. Os parlamentares que
aderiram a ADP foram eleitos em 1958 para uma legislatura que contou com um total de 326
deputados. Isto significa que, em seu auge, a ADP teria sido capaz de mobilizar quase a
metade deles.

Em certa literatura sobre o golpe de 1964, os membros da Ação Democrática


Parlamentar (e os políticos conservadores de uma forma geral) são frequentemente tratados
como peças no tabuleiro de uma grande conspiração imperialista aliada a grupos nacionais
(empresários e militares) organizados, sobretudo, no Instituto Brasileiro de Ação
Democrática (IBAD) e no Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES). Ambas as
instituições, que atuaram conjuntamente, desempenharam importante papel na
desestabilização do governo Goulart, bem como no apoio à disseminação de outras
organizações anticomunistas no período, como a ADP, que teria sido “o mais importante
canal do IPES no Congresso” (DREIFUSS, 1981). Nessa leitura, a direita parlamentar
apareceria como executora dos interesses de forças exteriores ao campo político, das quais
seria mero instrumento.

A organização da ADP na Câmara dos Deputados, ainda no primeiro semestre de


1961, constituiu, por um lado, uma resposta dos setores conservadores às forças
nacionalistas e de esquerda que atuavam, desde o governo Juscelino Kubitschek, na Frente
Parlamentar Nacionalista (FPN). Por outro lado, essa mobilização direitista correspondeu
também ao impacto de acontecimentos mais recentes em escala continental, como a
Revolução Cubana, que começava a se definir pelo socialismo e converteu-se em um novo

1
Jornal do Brasil, 22.10.1961 e Ação Democrática, novembro de 1961. p. 19.
2
Ao contrário do que dizem as escassas informações existentes sobre a ADP, ela não era composta
majoritariamente por udenistas. Numa lista nominal de aderentes, aparecem 49 pessedistas, 38
udenistas, 16 trabalhistas e ainda outros 35 de partidos menores, perfazendo 138 deputados. Ver
COSTA FILHO, João Mendes da. Ação Democrática Parlamentar: seus objetivos. Brasília:
Departamento de Imprensa Nacional, 1961.

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e explosivo elemento no cenário da Guerra Fria, cujos efeitos na América Latina ainda eram
imprevisíveis. Essa conjugação de elementos internos e externos fica bem evidente num
discurso pronunciado, em março de 1961, pelo deputado João Mendes da Costa Filho
(UDN-BA), principal liderança do movimento conservador no Congresso:

Sr. Presidente, o silêncio dos democratas nesta Casa, diante das monstruosidades de
Fidel Castro, que depois de assassinar os seus adversários vem mandando ao
“paredon” companheiros de revolução, poderia dar a impressão de que as esquerdas
dominaram inteiramente o Parlamento Nacional, o que não é exato porque há nesta
casa democratas que acreditam numa democracia sem adjetivações, regime que, não
sendo de força, é todavia suficientemente forte para se defender dos seus inimigos,
ostensivos ou disfarçados. O País conhecerá, dentro de mais alguns dias, a ação
democrática, neste Parlamento, de conservadores que não tem constrangimento,
3
espécie de respeito humano, em dizer que são conservadores

À Revolução Cubana e ao fortalecimento das esquerdas dentro do país, em parte


animadas e estimuladas pelo próprio processo revolucionário cubano, somou-se a
implementação, por parte do governo Jânio Quadros, de uma política externa independente
que incorporava entre seus pressupostos o neutralismo perante o conflito da Guerra Fria e a
coexistência pacífica entre os sistemas capitalista e socialista (VIZENTINI, 1995). Essa
convergência entre mudanças no campo interno e externo foi capaz de fazer soar o alerta
nas forças conservadoras que, no primeiro semestre de 1961, defendiam a união das forças
ditas de “centro” para fazer frente ao avanço da esquerda. Numa entrevista publicada em
todos os jornais da grande imprensa, em maio, o pessedista Armando Falcão, ex-ministro da
Justiça do governo Kubitschek, fazia um apelo nesse sentido:

Sem se referir expressamente à UDN e ao PSD [...] o ex-ministro Armando Falcão


defendeu a fusão dos partidos centristas como única solução para preservar o sistema
democrático no Brasil e como “uma fatalidade histórica, resultante do seu próprio
instinto de conservação e autodefesa”. A rivalidade político-eleitoral entre esses partidos
é qualificada pelo ex-ministro da Justiça de “guerra infecunda, que coloca em campos
opostos partidos e homens que defendem o mesmo programa e desejam ver
preservada uma idêntica filosofia de vida”. [...] o Sr. Armando Falcão rejeita o argumento
de que a fusão dos partidos centristas acarretaria uma divisão dos elementos do centro
e da esquerda: a divisão, a seu ver, já existe, “é necessariamente insanável, por motivos
ideológicos, e cada vez mais se acentuará” no momento histórico em que se “divide a
humanidade em dois mundos políticos, sem a mais longínqua possibilidade de
4
harmonização”

Falcão insistia que era preciso “uma definição sem disfarces, com o estabelecimento
de um divisor de águas” que pusesse fim “às atitudes de meia-cor”5. A ideia de uma “união
sagrada” entre os partidos conservadores para defender a democracia, supostamente
ameaçada pelas forças de esquerda e sem possibilidade de “harmonização” com elas,
estava na raiz do surgimento da ADP no Congresso. Para João Mendes, o maior mérito do

3
Diário do Congresso Nacional, 21.03.1961. p. 1945.
4
Falcão defende união do centro para preservar democracia. Jornal do Brasil, 20.05.1961.
5
Idem.

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movimento era justamente “delimitar os campos”. Segundo ele “na luta travada entre a
democracia e o comunismo” não havia “lugar para os indecisos, os acomodatícios, os
‘pacifistas’, os ‘neutralistas’, inocentes úteis ou criptocomunistas”6. Na perspectiva
conservadora, o campo nacionalista era cada vez mais identificado com o comunismo e as
bandeiras nacionalistas, como a reforma agrária distributivista e a limitação das remessas
de lucro, eram tidas como “comunizantes”. A revista Ação Democrática, periódico
anticomunista vinculado ao IBAD, assim se referiu ao surgimento da ADP, como contraponto
à FPN:

A Ação Democrática Parlamentar foi ideada por um grupo de democratas que, liderados
pelo Sr. João Mendes, já naquele mês de março, sentiam que a democracia podia ser
traída a qualquer momento [...] Já então novamente se articulavam os elementos da
Frente Parlamentar Nacionalista, onde um pequeno grupo de deputados manobrava às
escâncaras suas teses comunistas, tudo sob a capa do nacionalismo entre aspas. Esse
pequeno grupo, ativista e atuante, fazia crer aos menos avisados que no Congresso
Nacional renascia com redobrada força a histeria nacionalista, duramente batida a 3 de
7
outubro [de 1958]

Como observou um arguto repórter do Jornal do Brasil, a organização da direita contra


as mudanças sociais e os setores de esquerda se fez através de um processo altamente
simplificado de julgar a realidade. Este processo consistiria “em ignorar as nuanças, colocar
os problemas em suas alternativas extremas e em identificar como inimigos (isto é,
“comunistas”) todos os que divergem de sua orientação e de sua visão das coisas”8. É certo
que, no campo nacionalista, o lançamento da ADP foi recebido com muitas críticas. O
deputado Ruy Ramos (PTB-RS) considerava injusta a divisão entre “comunistas” e
“democratas” estabelecida por João Mendes, pois os problemas da América Latina estariam
situados num outro conflito, entre “desenvolvidos” e “subdesenvolvidos”. Segundo ele, a
frente lançada pelos conservadores teria “a finalidade de defender uma suposta democracia
de miséria e amparar um regime de subdesenvolvimento” para as nações latino-americanas,
sendo “reacionário na mais extensa expressão da palavra”.

Já o deputado Breno da Silveira (PSB-GB), enfatizava que o combate ao comunismo


deveria ser feito “pela presença do deputado nas lutas populares” e não “através de
manifestos pomposos”. Também José Joffily (PSD-PB) acusava a frente de dar ênfase
excessiva ao combate ao comunismo e silenciar em relação ao combate às forças
imperialistas e colonialistas, que também seriam contrárias à democracia. Para o deputado
Bocaiuva Cunha (PTB-RJ), João Mendes prestava “grande serviço” ao país ao traçar uma
divisão nítida entre os grupos da direita e da esquerda na Câmara dos Deputados,
6
Diário do Congresso Nacional, 25.05.1961. p. 3510.
7
Ação Democrática, novembro de 1961. p. 19.
8
Extrema-direita se organiza para opor violência à mudança social. Jornal do Brasil, 03.12.1961. Em
seu artigo, o jornalista Luciano Martins relaciona o Instituo de Ação Democrática (IBAD), a Ação
Democrática Parlamentar (ADP) e o Movimento Anticomunista (MAC).

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acusando o deputado baiano de ter “compromissos com as classes privilegiadas, com todas
as injustiças, com todos os privilégios que as classes dominantes até hoje tem tido em
nosso país” e lamentava que "nessa hora desaparecem os partidos e veem-se
representantes da União Democrática Nacional, aliados a representantes do PSD e a alguns
mesmo do meu partido, o PTB"9.

O epíteto de “reacionário” era rechaçado por João Mendes através da evocação de um


“slogan” lançado pelo udenista Otávio Mangabeira na constituinte de 1946: “anticomunistas
sempre, reacionários nunca”. O próprio Mendes, assim como várias outras lideranças da
ADP, havia sido constituinte em 1946 e sua luta contra o “perigo vermelho” não constituía
nenhuma novidade. Além de Mangabeira, outra importante referência do deputado baiano
era o também udenista Clemente Mariani, outro constituinte de 1946. Segundo Mariani, a
única forma de a democracia sobreviver era se defendendo contra os seus inimigos, isto é,
os comunistas. Dentro de uma fórmula que seria repetida diversas vezes por João Mendes
ao longo de sua trajetória parlamentar, a democracia estaria “disposta a praticar a parte de
intolerância que se exige, necessariamente, de todo o organismo que pretende viver em
relação ao que tende a impedi-lo”10.

Como observou Reznik (2004), ao estudar os debates parlamentares em torno da Lei


de Segurança Nacional na década de 1940, a emergência da Guerra Fria desempenhou um
papel fundamental neste polo de reflexão – do qual João Mendes já era um dos expoentes –
segundo o qual a sobrevivência da democracia estaria vinculada a prática da intolerância e
da violência. Se essa já era uma preocupação que se manifestava desde o pós-guerra, na
década de 1960 a sociedade brasileira havia se tornado mais complexa e os desafios se
tronavam ainda maiores. A atuação mais pujante dos movimentos sociais, como a Ligas
Camponesas e os sindicatos, a mobilização popular promovida por lideranças
comprometidas com os ideais nacionalistas e o precedente “perigoso” da Revolução Cubana
se juntavam para aumentar ainda mais a necessidade de uma atuação vigilante e combativa
por parte dos conservadores.

Nessa época, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), em colaboração com


o IBAD, foi responsável pela tradução e publicação de uma vasta literatura anticomunista.
Entre os livros publicados no período, houve um de grande repercussão nos meios políticos:
O Assalto ao Parlamento, uma narrativa de como os comunistas teriam tomado o poder na
Tchecoslováquia por meios “pacíficos”. Discursando em nome da ADP, o deputado Bento

9
Diário do Congresso Nacional, 25.05.1961. p. 3510.
10
Idem.

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Munhoz da Rocha, ex-governador do Paraná, colocava a questão da “tomada pacífica” do


poder como uma das preocupações centrais dos setores anticomunistas:

Cumpre [...] defender a democracia contra aqueles que nela não acreditam e se valem
de suas franquias para a sua própria destruição. Neste passo nos defrontamos com um
ponto nevrálgico [...] que reside na utilização pacífica dos direitos democráticos dentro
do parlamento e fora dele pelos encarregados da aplicação concreta das categorias do
materialismo dialético. Passa-se pacificamente, como o indica o exemplo de vários
países da Europa Central, do funcionamento da máquina parlamentar para alguma
forma de ditadura do proletariado e portanto para o Estado Socialista, estágio
11
necessário mas jamais superado para alcançar a sociedade comunista

Como ex-professor de História da América e Sociologia12, Munhoz da Rocha tinha um


bom conhecimento teórico sobre o marxismo e seu discurso procurava definir a linha
ideológica da ADP. Para ele, a grande disputa não era entre sistemas econômicos, mas
entre duas concepções filosóficas distintas: o materialismo “ateu” e o espiritualismo cristão.
Proclamava também a superioridade da democracia representativa sobre “a democracia
popular, tão do gosto de certos setores da opinião brasileira”, pois “só o diálogo travado
entre o povo e os candidatos a postos eletivos, no decorrer do processo eleitoral, justifica
alguém a falar e agir em seu nome, e não a gritaria das praças públicas, que concede
sagração popular de outro sentido e outra substância”13.

A partir da crise originada pela renúncia de Jânio Quadros e resolvida, em parte, com
a adoção do parlamentarismo, a estratégia de mobilização popular para pressionar o
Congresso em busca das reformas de base e na defesa de um gabinete nacionalista, se
tornaria um problema cada vez maior para os conservadores e até mesmo para a esquerda
mais moderada. Em outubro de 1961, os governadores Leonel Brizola (PTB-RS) e Mauro
Borges (PSD-GO), que haviam participado da Campanha da Legalidade, fundaram a Frente
de Libertação Nacional (FLN), que contou com a participação de Miguel Arraes (PTB-PE),
então prefeito do Recife. Juntos eles lançaram a Declaração de Goiânia, que conclamava os
diferentes setores da sociedade a se unirem em prol da reforma agrária, da limitação das
remessas de lucro e da nacionalização de companhias estrangeiras. Visava também obter
uma grande bancada nacionalista nas eleições legislativas do ano seguinte. A atuação
dessas lideranças era considerada subversiva e até mesmo revolucionária, nas palavras de
João Mendes:

No sul, o revolucionário Governador Brizzola, em perfeito estilo castrista, fomenta


invasões de propriedades rurais e assalta empresas estrangeiras [...] No norte do país,
o senhor Miguel Arraes, prefeito de Recife e categorizado representante do pensamento
de Fidel Castro, lidera, escancaradamente, movimento subversivo de caráter comunista
na capital pernambucana, em consonância com a atuação do Deputado Francisco
Julião que, no interior de Pernambuco, prepara sofridos trabalhadores rurais para as
guerrilhas ensinadas por Che Guevara. No centro, o Governador de Goiás, Senhor

11
Diário do Congresso Nacional, 25.08.1961. p. 6175 (grifo meu).
12
Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro (DHBB).
13
Diário do Congresso Nacional, 25.08.1961. p. 6175.

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Mauro Borges, chefia naquele Estado a Frente Nacional Libertadora ou que outro nome
tenha o movimento de caráter revolucionário, inspirado e supervisionado em todo o País
pelo Governador Leonel Brizzola. Com a agravante de ser oficial do Exército Nacional, o
14
Senhor Mauro Borges prepara a força de ligação dos guerrilheiros do Norte e do Sul

Embora possa parecer absurda, de uma perspectiva atual, a ideia de que havia uma
revolução em marcha não estava presente somente na imaginação ou nas alucinações da
direita conservadora. Nas palavras do deputado Sérgio Magalhães (PTB-GB), importante
líder do campo nacionalista, “o processo da crise social e os movimentos de massa”
estariam se adiantando e ultrapassando as lideranças políticas, levando o país a uma
“situação de fato”:
“Não somos nós que fazemos a revolução. A revolução está em curso, está nas ruas e
só nos caberá uma tomada de posição [...] se o Conselho de Ministros não resolve os
problemas do povo – água, escola, vida barata, torna-se inevitável a revolução,
independentemente da vontade de quem quer que seja”. [...] Fez ver que há uma
radicalização das forças políticas e que “estamos sentados sobre um vulcão”. Declarou,
por fim, que “o processo está muito adiantado” e que “só há uma alternativa para o
Conselho de Ministros: tomar enérgicas providências, fazer o que o povo espera e
deseja ou cair, arrastando consigo o sistema parlamentarista e talvez o próprio regime”.
E arrematou que, embora tenha lutado para resolver legalmente os problemas do país,
15
ficará “ao lado do povo e à frente da revolução” .

Se a possibilidade de uma “revolução brasileira” era encarada seriamente tanto pela


direita quanto pela esquerda, ela também possuía um líder em potencial: Leonel Brizola. A
ideia de que o governador gaúcho pudesse encarnar o papel de “Fidel Castro brasileiro”,
permeava o imaginário dos conservadores. O deputado Armando Falcão (PSD-CE) -
também membro da ADP - o acusou explicitamente de tramar a “cubanização” do Brasil,
inspirando-se no líder revolucionário:

Se V. Exª me tem no conceito de homem que pelas posições que assume colabora com
interesses antinacionais, se V. Exª assim pensa e assim diz, me dá também o direito de
dizer que para mim V. Exª se coloca na posição de quem, dentro do Brasil, é o seguidor
do ditador Fidel Castro; V. Exª, para mim, é um homem que quer chefiar no Brasil uma
revolução semelhante à cubana e que, dentro de mais algum tempo, quando
terminarem os prazos que V. Exª vez por outra assina ao Congresso, deixará crescer a
16
barba, Sr. Deputado Leonel Brizzola .

Para João Mendes, embora Brizola não fosse necessariamente “comunista”, era ao
menos um agitador e um elemento “subversivo”, que prestaria “o maior serviço possível” ao
partido comunista:

É através de elementos como o Sr. Deputado Leonel Brizola que o Partido Comunista
chega ao poder. [...] Declarei alto e bom som, para que a Nação saiba qual de todos os
agitadores o mais perigoso: aquele que está preparando o assalto a este Parlamento,

14
Diário do Congresso Nacional, 27.02.1962. p. 683.
15
Diário de Notícias, 24.10.1961.
16
Diário do Congresso Nacional, 21.03.1963. p. 761.

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aquele que nos marcou prazo para que votemos lei, prazo curto, sabendo ser
17
impossível elaboração de estatuto como o da reforma agrária dentro de 40 ou 60 dias .

Diante de um estado considerado “pré-revolucionário”, não faltavam apelos para uma


intervenção mais firme das Forças Armadas e até mesmo críticas severas a postura legalista
assumida por boa parte da oficialidade. Ainda em fevereiro de 1962, João Mendes
conclamava a intervenção dos “responsáveis pela segurança das instituições democráticas”:

Não é possível que os responsáveis pela Segurança Nacional [...] se mantenham


nesse compasso de espera até que tudo esteja consumado. [...] Ao contrário do que
pensam ou dizem estar pensando os úteis não inocentes, se continuar esta posição
estática de defesa passiva do regime democrático, ignorando-se o comunismo tal
como ele é e age, não haverá a menor dúvida de que a atual desordem dirigida
levará o país a uma guerra civil da qual resultará a vitória que será emprestada, a
prazo curto, aos esquerdistas e aos políticos tipo Brizzola para ser, oportunamente,
transferida aos verdadeiros donos, aqueles que sabem o que querem e para onde
18
vão

Num primeiro momento, o presidente João Goulart era relativamente poupado das
críticas mais pesadas que eram dirigidas a outras lideranças nacionalistas. Jango era visto
como um latifundiário que não teria uma “autêntica” vocação esquerdista. O maior problema
de seu governo residiria no fato de que “por sua origem política e por seus compromissos
eleitorais”, ele estaria “impedido de agir contra os agitadores”19. A inércia do presidente e a
consequente “ausência de autoridade” seriam mais um elemento a justificar uma
intervenção militar na vida política do país. Porém, com o passar do tempo, especialmente a
partir do segundo semestre de 1963, Jango passa a ser acusado de tentar solapar as
instituições democráticas, dividir as Forças Armadas e dar proteção a entidades
consideradas subversivas e que estariam agitando o país, como o Comando Geral dos
Trabalhadores (CGT)20.

Em nota oficial da ADP rejeitando o pedido de estado de sítio feito pelo presidente
em outubro de 1963, João Mendes argumento que, se aprovado, seria “o mais eficiente
instrumento com que ele poderia consolidar a sua república sindicalista ou encaminhar-se
para a ditadura”.21 Em dezembro, João Mendes considerava que o Brasil vivia um momento
de “revolução iniciada” com depredações e invasões de prédios públicos e propriedades
privadas, lamentando que as Forças Armadas estivessem “confundindo a legalidade com a
conduta do Sr. Presidente da República, quando são duas coisas profundamente
diferentes”22. Já em março de 1964, ironizando a postura legalista ainda mantida por parte
da oficialidade, João Mendes leu em plenário uma nota do O Globo em que dizia que

17
Idem, 02.04.1963. p. 1128.
18
Diário do Congresso Nacional, 27.02.1962 (grifo meu).
19
Idem.
20
Idem, 26.09.1963.
21
Idem, 07.10.1963. p. 7543.
22
Idem, 17.12. 1963. p. 10111.

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enquanto as Forças Armadas velavam pela manutenção de uma legalidade meramente


“formal”, desenvolvia-se o plano que “legalmente” colocaria “o Brasil sob inteiro controle do
CGT, PUA e outros esquerdistas”23.

Após a vitória do movimento de 1964, para a qual diversos membros da ADP


contribuíram ativamente, os discursos de João Mendes sugeriam que a guerra contra o
"comunismo" e a "subversão" não estavam ainda vencidas e que eram necessárias medidas
mais enérgicas do que as que haviam sido tomadas até então por parte do novo regime.
Logo após as primeiras cassações de 1964, ele desmentia boatos de que a ADP estivesse
por trás da elaboração das listas de cassação de mandatos, deplorando que tivessem “sido
poupados certos indivíduos profundamente comprometidos com o comunismo e a
subversão”:
Não é possível que a Revolução desencante os que, pelos ideais por ela defendidos,
expuseram sua vida, fazendo injustificáveis discriminações, sob perniciosas
influências políticas, de reprovável coleguismo de farda, ou afetivas. Os úteis não
inocentes ou 'legalistas', que dia por dia levaram sua contribuição à tarefa
demolidora das nossas instituições democráticas, após um ligeiro retraimento,
voltam ao seu trabalho subreptício. Direta e indiretamente concorreram para solapar
a democracia, minando-lhe as resistências e participando dos atos preparatórios e
de execução do crime que não se perpetrou contra este país, menos pela ação
vigorosa das Forças Armadas do que pela misericordiosa intercessão da
24
Providência Divina .

João Mendes propunha um incremento das perseguições políticas e da repressão


aos “inimigos” da democracia. Em sua concepção, os defensores da legalidade democrática
nada mais seriam do que "inocentes úteis" que faziam o jogo dos “comunistas”. Para ele,
desde abril de 1964 o Brasil vivia um estado “de fato" em que não haveria espaço para
"esses puritanos, pregoeiros de uma fementida ordem jurídico-legal"25, cúmplices do caos e
da desordem. Em um de seus últimos discursos na Câmara dos Deputados, em agosto de
1965, ao atacar uma possível candidatura do marechal Henrique Teixeira Lott - que seria o
líder da "contra-revolução" - ao governo da Guanabara, João Mendes leva às últimas
consequências as ideias que sustentava desde a década de 1940:
Chegamos ao paradoxo de uma revolução que não se realiza para ser 'legalista'. O
seu exagerado amor a juridicidade e ao legalismo teria de dar no que esta aí: a
contra-revolução, sob a interina e disfarçada chefia do Marechal Henrique Teixeira
Lott [...] Cumpria ao Poder Revolucionário declarar que o candidato dito do PTB é
confessadamente inimigo da Revolução [...] não podendo, por isso, concorrer às
eleições de outubro próximo. Assim procedendo, estaria de acordo com princípios
incontestes, segundo os quais a democracia permite todas as liberdades menos a
que tende a destruí-la e que para defender-se contra quem ameace sua existência
deve praticar a parte de intolerância que, necessariamente, se exige de todo o
organismo que pretende viver, em relação ao que procure impedi-lo. [...] Nas atuais

23
Idem, 02.03.1964. p. 1283.
24
Diário do Congresso Nacional, 06.05.1964.
25
Idem.

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circunstâncias em nosso país, o sufrágio como instrumento simplesmente formal


26
poderá, paradoxalmente, levar à destruição da própria democracia .

Talvez esse seja um exemplo bem acabado do que George Orwell chamava de
“duplipensar”27. O fato é que as ideias expostas por Clemente Mariani na Constituinte de
1946 completavam seu ciclo com João Mendes, em 1965. O que, antes do golpe, poderia
ser classificado como a defesa de uma "democracia intolerante" tornava-se, a partir de
então, a defesa pura e simples de um regime abertamente autoritário e repressor. Devido a
seus posicionamentos, bastante afinados com os da linha-dura militar, não é de surpreender
que João Mendes tenha sido convidado pelo marechal Artur da Costa e Silva, sucessor de
Castelo Branco, para integrar o Superior Tribunal Militar (STM), em junho de 1968. Com seu
desprezo pelos formalismos e pela tolerância política - que marcaram sua trajetória como
parlamentar - ele estava credenciado a ser um intérprete, no Judiciário, da nova "legalidade
revolucionária".

Referências

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26
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27
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“Criar é resistir”: a produção cultural em tempos de autoritarismo

Valéria Aparecida ALVES


Doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica – PUC/SP; Professora
Adjunta do Departamento de História da Universidade Estadual do Ceará – UECE.
valeria.alves@uece.br

Considerações iniciais

Para analisar a produção cultural na década de 1970 é preciso considerar que no


Brasil, ao mesmo tempo em que ocorria a ampliação dos mecanismos de repressão e
cerceamento das liberdades, o combate ostensivo aos movimentos de oposição, como os
grupos de guerrilha que optaram pela luta armada, ocorria, também, a consolidação do
mercado de bens culturais. Nesta década a indústria cultural firmou-se e ampliou sua
influência sobre a arte produzida.

O período de 1969 a 1973, durante o governo Médici, foi marcado pela expansão do
crescimento econômico - “milagre econômico” -, propaganda ufanista, repressão, uso
generalizado da tortura e rígida censura, sendo caracterizado como “os anos de chumbo”.
Período marcado pela “cultura do medo”1, que impossibilitava as manifestações públicas de
protesto contra o autoritarismo implantado, configurando, dessa forma, o retraimento da
oposição.

Neste contexto, sob a vigência da “cultura do medo”, setores que se opunham à


ditadura militar tiveram que reinventar as formas de protestos, manifestação e de denúncia.
Buscando uma via alternativa, desenvolveu-se, neste período os movimentos de
contracultura e a luta armada. Durante os anos 70, diversos jovens, principalmente da
classe média, inconformados com a situação política, mas ao mesmo tempo, sentindo-se
frustrados e derrotados diante das reivindicações e mobilização dos anos 60, seguiram
caminhos diversos: alguns optaram pelo enfrentamento armado e muitas vezes direto com
os militares. Organizados em diversos grupos, das mais diferentes tendências ideológicas,
radicalizavam sua luta contra a ditadura militar.

Por outro lado, alguns jovens, também, radicalizavam sua postura frente ao
autoritarismo vigente. Mas, ao invés do enfrentamento direto, optaram pela via pacífica e
escolheram a “marginalidade”, entendida como recusa ao sistema, ou seja, preferiram o
distanciamento:

[...] o que não interessava era o pensamento acadêmico, a estrada


sinalizada, o intelectual tradicional. O fascínio pelo “lúmpem”,
fundamentado pelo marcusianismo dos mais letrados, era contrapartida

1
Termo utilizado por ALVES: 2005, p. 205.

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lógica da recusa, nem sempre meramente conceitual, do modo de vida


burguês, “careta”. Drop out – cair fora do “sistema”, como então se dizia
– era a palavra de ordem da contraculturalista. [...] (RISÉRIO: 2005, p.
25)

O termo contracultura foi criado pela imprensa norte-americana, ainda, na década de


1960 para classificar as novas manifestações culturais nos Estados Unidos e Europa. Os
termos “marginal” ou “underground”, também, foram utilizados para definir o novo
comportamento de parte da juventude.

Esses jovens, também, conhecidos como “hippies”, buscavam a partir da reinvenção


do seu modo de vida a transformação social, a partir da mudança dos valores, da moral, dos
costumes. Propunham construir uma nova cultura – modo de vida. Apesar da ênfase à ação
individual, identificada nos movimentos de contracultura, o caráter coletivo não havia sido
abandonado. Era o tempo das “comunidades alternativas”, da vida comunitária nas
moradias coletivas. Criticando o mundo industrial e a sociedade de consumo, valorizavam o
retorno à natureza, a economia de subsistência e o artesanato. Aderiram às dietas
macrobióticas, mudaram o visual, cabelos compridos – adotados por homens e mulheres -,
exploraram o misticismo, as drogas alucinógenas e novas práticas sexuais:

[...] Antes que alterar o sistema de poder, ele [o jovem - hippie] pretendia,
pela transformação interior e da conduta cotidiano, “mudar a vida”, quem
sabe construindo-se como novo ser de uma Nova Era, espécie de
amostra grátis do Futuro. [...] Luiz Carlos Maciel morou numa
comunidade, Rogério Duarte foi monge budista, Roberto Pinho montou a
Guariroba, a “refazenda” da canção de Gilberto Gil, prevendo desde uma
economia de subsistência até contato com extraterrestres”. (RISÉRIO:
2005, p. 25)

É importante ressaltar que a contracultura não deve ser entendida como uma
resposta à ditadura militar brasileira. Pois, conforme destaca Risério, o movimento era
internacional, com ramificações no Brasil e existiu “não por causa, mas apesar da ditadura”.
(RISÉRIO: 2005, p. 26)

Geleia Geral

A coluna Geleia Geral, de Torquato Neto, publicada no jornal Última Hora, foi porta-
voz do movimento da contracultura. Divulgava as atividades e os locais de encontro do

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grupo com quem dialogava, apresentava os projetos e as parcerias. Utilizava nos textos as
gírias e expunha o comportamento e as atitudes, consideradas subversivas que
escandalizavam parte da sociedade.

Durante a década de 1970, além das manifestações culturais da contracultura, outros


setores também seguiam produzindo, mantendo a produção cultural não apenas ativa, mas
em expansão. Houve crescimento da produção editorial, musical, teatral e, principalmente,
cinematográfica. Obviamente, dentro dos limites impostos pelo Estado - sob controle e
vigilância – mas, que não inviabilizaram a produção cultural, pois a censura atingia as obras
especificamente, ou seja, os produtos – matérias jornalísticas, peças, filmes, livros, músicas,
mas não os setores da produção - jornais, teatros, cinemas, editoras e as indústrias
fonográfica e cinematográfica.

Sobre os mecanismos da censura, Renato Ortiz, identificou duas faces: a


“repressiva”, que vetava e impossibilitava a expressão, considerada por ele como “negativa”,
e a “disciplinadora”, considerada mais complexa, que afirmava e incentivava a produção
mediante orientação do próprio Estado, sendo, portanto, ao mesmo tempo, repressor e
incentivador das atividades culturais (ORTIZ: 1994, p. 114). No entanto, é preciso ressaltar
que apesar das diferenças apontadas pelo pesquisador, as duas faces da censura, se não
configuraram entraves para o desenvolvimento econômico - embora a censura aos produtos
culturais tenham representado prejuízos aos empresários -, foram extremamente prejudiciais
à produção cultural, pois ambas promoviam o cerceamento da liberdade de expressão, pois
garantiram:

[...] rigorosa censura de todos os veículos de informação e o fechamento


de alguns destes. As universidades eram controladas, e o teatro, o
cinema, a música, a literatura, as artes e a cultura em geral deviam
submeter-se à censura para obter dos militares autorização para chegar
ao público. Com os censores fisicamente presentes nos estúdios e
redações, e dispositivos de censura rigidamente aplicados, os veículos
de comunicação foram silenciados, impedindo-se a divulgação ou
discussão das conseqüências das políticas econômicas ou repressivas
do governo. [...] (ALVES: 2005, p. 205)

Especificamente sobre a censura nos principais meios de comunicação de massas –


o rádio e a televisão – o pesquisador Alberto Moby da Silva, afirma que a interferência foi
relativa, pois, as emissoras de rádio e TV já eram possuidoras de esquemas de
autocensura, uma vez que atendiam a interesses econômicos, os anunciantes e se
afastavam de qualquer projeto que pudesse causar problemas com a Ditadura Militar. Na
prática, como ressalta, ainda, o autor, foram o rádio e, especialmente, a TV os instrumentos
mais utilizados para propagar o discurso oficial. Não sendo mero acaso que nesse período o
governo ampliou os investimentos para a expansão do setor das telecomunicações, através

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da Empresa Brasileira de Telecomunicações – EMBRATEL, bem como incentivou o


programa de crédito para a ampliação do consumo de aparelhos de televisão, que “saltou de
2 mil, em 1950, para 4,9 milhões em 1970” (SILVA: 2008, p. 97).

Foi neste contexto de expansão da indústria cultural e ampliação das medidas


autoritárias e repressivas, que a coluna Geleia Geral, estreou na quinta-feira, dia 19 de
agosto de 1971, com a repetição do título “Cordiais Saudações”, já utilizado na coluna
Música Popular, do jornal dos Sports:

Ligue o rádio, ponha discos, veja a paisagem, sinta o drama: você pode
chamar isso tudo como bem quiser. Há muitos nomes à disposição de
quem queira dar nomes ao fogo, no meio do redemoinho, entre os becos
da tristíssima cidade, nos sons de um apartamento apertado no meio de
apartamentos. Você pode sofrer, mas não pode deixar de prestar
atenção. Enquanto eu estiver atento, nada me acontecerá. Enquanto
batiza a fogueira – tempo de espera? Pode ser – o mundo de sempre
gira e o fogo rende. O pior é esperar apenas. O lado de fora é frio. O
lado de fora é fogo, igual ao lado de dentro. Estar bem vivo no meio das
coisas é passar por referência, continuar passando. Isso aí eu li uma vez
no Pasquim [...] (TORQUATO NETO, Última Hora, 19 ago. 1971).

Os textos de Torquato Neto trazem referências a um “esvaziamento criativo”,


provocado pelo exílio de diversos artistas e intelectuais, mas, ao mesmo tempo enfatizava à
resistência e exaltava as estratégias utilizadas por muitos artistas para “driblar” os censores.
Em novembro de 1971, descreveu um sua coluna o cenário musical brasileiro, destacando
os artistas que resistindo às dificuldades impostas, não apenas pelo contexto político, mas
também pelas dificuldades técnicas e de mercado, que seguiam produzindo, além de
informar sobre a movimentação da “cultura marginal”, que através das “brechas”, ocupava
espaços e desenvolvia novas formas para divulgar sua produção e, portanto, resistir:

[...] Lutando, Paulinho da Viola não interrompeu seus movimentos e


segue furando, na dele; Milton Nascimento tem dificuldades com sua
gravadora, no momento, mas superáveis pelo seu próprio (dele)
trabalho; Caetano e Gil continuam enviando recados da Europa e, agora,
dos Estados Unidos; Chico Buarque acaba de gravar seu novo elepê,
que deve pintar por aí até o fim do ano; os Novos Baianos tiveram um
trabalho recente (compacto duplo) inteiramente prejudicado por questões
de péssimas mixagens e prensagem (já foi recolhido, pela CBD) e
preparam agora, com muito cuidado, seu próximo disco; Waly
Sailormoon segue transando com seus parceiros e seus passeios e
disso aí têm surgido as letras (as canções) mais contundentes, atuais e
dramáticas da necessidade presente; uns caras novos e ousados

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começam a pintar, fora, evidentemente, dos meios oficiais de divulgação,


mas de qualquer maneira furando o bloqueio no meio de shows
gravados ao vivo, concertos esporádicos por aí etc. E etc. etc. etc.
(TORQUATO NETO, Jornal Última Hora, 6. nov. 1971)

O clima de cerceamento, a censura instaurada no país, foi destacado por Torquato


Neto, que discutia, não só a censura imposta pelo Estado, mas também, pela indústria
fonográfica:

Quem é o asfixiador? Eis o que estou sabendo: a música popular


brasileira continua sem ar – e é claro, otário, que mesmo assim alguma
coisa ainda pinta, e quase sempre em quase todos os suplementos.
Pintam Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Gilberto Gil, Gal e mais
alguns. Pintam, mas a falta de ar continua. Quem asfixia a Música
Popular Brasileira? [...].(TORQUATO NETO, Jornal Última Hora, 5.
nov. 1971)

Através de sua coluna, Torquato, seguia lamentando e denunciando a situação vivida


no país. A ampliação da censura, ao mesmo tempo que dificultava a produção, também
contribuía para o desenvolvimento do que Torquato considera “empobrecimento” da criação
artística – a repetição, o comodismo, a falta de criatividade. Contudo, destacava a
resistência de muitos artistas, mesmo que tal produção atingisse um público cada vez mais
restrito:

[...] E já que o tom é esse mesmo, continuo perguntando: o que é que


asfixia a música popular brasileira, além da indústria fonográfica
obedientíssima, além do medo? O clima. Pode chamar: o clima tropical
desta paisagem a toque de caixa. Mas o que é que é isso? Liguem o
rádio e escutem o que está sendo estimulado: voos rasteiros, repetição e
retardamento geral, mediocridade e medo de criar. (...) Não pintou outra
coisa: Lucianas, conformismo, alegorias, marchas-rancho, meninas das
ladeiras, império de Wilson Simonal etc. E mais Don e Ravel,
principalmente Don e Ravel, e o oportunismo total e ainda por cima, com
calma: nenhum outro exemplo pode ser mais típico do que essa dupla de
estrondoso sucesso nacional. O sucesso dessa gente asfixia, toma o
espaço da melhor música popular brasileira, com a ajuda geral e da
geral. E no entanto acredite: quase morreu, mas continua vivendo,
embora quase sem ar, sem ir ao ar, e indo mesmo assim. [...] Aos
trancos e barrancos a música popular brasileira se põe de pé, depois da
rasteira, e avança: recomeça a tomada de espaços. Uns e outros pintam
aqui e ali: um show, outros shows, vários elepês mais ou menos
recentes, e até, de repente, um furo qualquer nas paradas. Só que a
regra geral da asfixia continua firme nas rádios e nas gravadoras, na
divulgação da transa [...].(TORQUATO NETO, Jornal Última Hora, 5.
nov. 1971)

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Inconformado com o contexto político e cultural, Torquato Neto exigia mudanças


através de sua coluna. De forma bastante irônica e provocativa, salientava a necessidade de
alteração no cenário musical e cobrava posicionamento e ação dos artistas, que deveriam,
inclusive, “tirar proveito” do crescimento da indústria fonográfica, para ampliar a difusão de
suas produções:

[...] Deixa eu completar idiotas: enquanto a indústria fonográfica espera


que tudo fique trancado nas mãos dela, o que é que a gente faz? Não há
cassetes pra vender por aí? Não há discos nas importadoras, que as
gravadoras daqui não lançam? Não há toca-discos, gravadores e o
escambal? O que diabo estais a esperar? Solta isso, vamos lá, dá o
maior pé. E está fazendo falta. Discos, jornais, estações de rádio, vocês
sabem. Pinta por aí tudo. E aqui? (TORQUATO NETO, Jornal Última
Hora, 15. nov. 1971.)

O recado de Torquato Neto explicita a estratégia defendida por ele, enfaticamente,


através de sua coluna, de “encontrar brechas” e “ocupar os espaços” disponíveis ou não.
Com texto irônico e debochado, mas evidenciando criticidade e mobilização, manteve em
sua coluna o “receituário” da ação política dos movimentos de contracultura:

Pílulas do tipo deixa-o-pau-rolar. Na mesma base: deixa. Primeiro passo


é tomar conta do espaço. Tem espaço à beça e só você sabe o que
pode fazer do seu. Antes, ocupe. Depois se vire. Não se esqueça de que
você está cercado, olhe em volta e dê um rolê. Cuidado com as
imitações. Imagine o verão em chamas e fique sabendo que é por isso
mesmo. A hora do crime precede a hora da vingança, e o espetáculo
continua. Cada um na sua, silêncio. Acredite na realidade e procure as
brechas que ela sempre deixa. Leia o jornal, não tenha medo de mim,
fique sabendo: drenagem, dragas e tratores pelo pântano. Acredite.
[...](TORQUATO NETO, Jornal Última Hora, 16. nov. 1971.)

Torquato chamava a atenção para a necessidade de permanente vigilância, mas


defendia a ação. As atitudes defendidas reafirmam a postura politizada e o inconformismo
presente nos movimentos de contracultura, que contrariam, portanto, a tese que generaliza
a participação de jovens na década de 1970, afirmando o predomínio do conformismo e da
passividade. Na mesma coluna, o autor continuava divulgando a produção cultural dos
movimentos de contracultura no Brasil:

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[...] O poeta Waly Sailormoon, numa de absoluta concentração, transa


Alfa-Alfavela-Vila, enquanto seu roteiro do Rio poundiano continua sendo
publicado em folhetim pela Flor do Mal. Graças a Deus. SIM – Ivan
Cardoso monta dois filmes ao mesmo tempo e sem a menor
atrapalhação e muito inteiramente à vontade, enquanto Vergara se
entusiasma com o que vê e providencia maneiras de ver melhor ainda, e
mais. Os dois filmes de Ivan serão ampliados nos States e quem estiver
ligado nessa verá. Believe me. (TORQUATO NETO, Jornal Última
Hora, 16. nov. 1971.)

Contudo, apesar de ressaltar que a produção cultural continuava ativa, o autor


denunciava as dificuldades impostas pela censura ao processo criativo. Ressaltava que sem
a possibilidade de atualização, não seria possível a renovação. No trecho observa que a
influência estrangeira não era problema para a criação:

[...] É isso. Enquanto o cinema também enlouquece do lado de fora, aqui


do lado de dentro a “psiquiatria” da censura não permite, ao menos, que
uma organização estritamente cultural (eu disse organização? Então fica,
deixa), como a cinemateca do Museu de Arte Moderna, cumpra sua
missão de informar essa transformação ao pequeno grupo de pessoas,
os especializados, cineastas etc. que têm necessidade e obrigação de
saber o que acontece com a linguagem com que transam. É isso. Não
adianta culpar a cinemateca pelo que ela não pode fazer. A gente se
queixa, porque sente nas telas da cidade o horror de se saber por fora. A
gente vai lá e revê os filmes dos bons tempos. Depois trata de arrumar
uma passagem e se arrancar para os States ou para a Europa,
investindo, como é preciso, em in-for-ma-ção. (TORQUATO NETO,
Jornal Última Hora, 26. nov. 1971.)

Torquato fez de sua coluna um “front” de resistência, invariavelmente, reiterava,


quase que cotidianamente, o discurso da “ocupação dos espaços”, da invenção, da
elaboração de projetos, da busca de alternativas para suportar e superar a situação vivida
no país:

[...] Ocupar espaço, criar situações. Ocupa-se um espaço vago como


também se ocupa um lugar ocupado: everywhere. E aguentar as pontas,
segurar, manter. Ou como em Teorema, aplicar e sair do filme. Tiro um
sarro: vampiro. O nome do inimigo é medo. Meu nome ninguém
conhece. Moro do lado de dentro e nasci na Chapada do Corisco –
carrego isso. Plano geral na parede: numa encruzilhada vista do alto as
pessoas se movem e correm atrás de algo. Não sei se é uma pelada,
não sei se é outra coisa. Corta e lemos a palavra: DESÇA. Fim do
cinema, início do cinema. O espaço desocupado, ocupação do espaço.
Filmes. Sem começo e sem fim, mas mesmo assim: pelas brechas, pelas

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rachas. Buraco também se cava e a cara também se quebra. Mas


cuidado com o psiquiatras. Se pintar um grilo, ponha-o para fora você
mesmo e com fé em Deus. Querem ocupar o espaço da tua mente – se
assim você me entende. Estão a fim de te curar, acredite neles. Cuide de
sua sanidade. Aqui na terra do Sol, não tenha medo da Lua. Ocupar
espaço: espantar a caretice: tomar o lugar: manter o arco: os pés no
chão: um dia depois do outro. (TORQUATO NETO, Jornal Última
Hora, 30 nov. 1971.)

No trecho acima, nota-se que o autor utilizava a linguagem cinematográfica, com


uma escrita criativa, utilizando títulos de filmes – Teorema e Terra do Sol (referências aos
filmes de Pasolini e Glauber Rocha, respectivamente), como se descrevesse um roteiro,
para enfatizar a necessidade de resistir em meio ao clima de repressão e censura, que
podemos entender como uma referência não apenas à ação do governo militar, mas
também à indústria cultural, endereçava seu recado aos diretores, roteiristas e produtores
de cinema no Brasil, embora de maneira, bastante cifrada, ou seja, nas entrelinhas do texto.
Mas, apesar da ênfase sobre a necessidade da resistência ter sido recorrente na coluna,
também, reconhecia que resistir tornava-se tarefa cada vez mais difícil e convidava o leitor a
refletir sobre o contexto político e cultural:

Corra. Pense nisso: é do lado de dentro, é do lado de fora. Se informe,


pense em ver os filmes que não vão passar aqui, os espetáculos que
não vão poder acontecer aqui por causa disso tudo, das dificuldades que
a gente conhece; saia um pouco, pense nisso: vá lá, do lado de fora,
invista em informação, fure a barreira e se lance no mundo, bote os pés
do lado de fora e sinta o drama, faça das suas, ande por aí, “considere a
possibilidade de ir para o Japão num cargueiro do Loyd lavando o
porão”, ache um meio, se arranque e fique sabendo das coisas. Por aqui,
menino, continua tudo confuso apesar do verão que não me engana.
Pense nisso, naquilo. Vá e compare: em Nova York, por exemplo, tudo
ferve. Vá quente. Se mande. Faça das suas. Ou fique e cumpra firme a
pândega. Hum? É bonito isso? Pode ser, pode crer. Mas é uma loucura.
[...] (TORQUATO NETO, Jornal Última Hora, 20 jan. 1971.)

Ao mesmo tempo que o autor sugere o autoexílio como forma de escapar do


contexto de endurecimento da ditadura militar, o autor também ressalta que do “lado de
fora”, no exterior, é possível entender de forma mais clara as dificuldades vividas no país,
por meio da comparação: “Vá e compare: em Nova York, por exemplo, tudo ferve”. E para
aqueles que estavam no “lado de dentro”, ou seja, no país, a sugestão continuava a ser a
inovação, entendida não com repetição das fórmulas já testadas, inovar era, para o autor,

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sobretudo, reinventar, conforme destacou na coluna: “se não tem forma nova não tem nada
de novo, não requente coisa alguma, veja de novo, faça outra vez, invente a diferença”.
(TORQUATO NETO, Jornal Última Hora, 20 jan. 1971.)

É importante, portanto, ressaltar que a criação proposta por Torquato Neto,


compartilhada com o grupo com quem desenvolvia os projetos e estabelecia parceria,
estava relacionada ao processo experimental. Interessava a busca, a pesquisa e a ousadia.
Propunha o diálogo com as experiências internas – observar o cenário nacional – e externas
– manter-se atento às propostas desenvolvidas no exterior e partir deste diálogo, propor o
novo. A produção cultural que interessava e que poderia ser considerada de resistência era
a inovação. Sobre tal processo criativo temos a explicação de Waly Salomão:

[...] De modo que é o processo criativo total que é ativado impedindo o


fetichismo coagulador da obra feita. Para iniciar a corrida são
necessários dois ou três pressupostos básicos: tomar uma boa talagada
de inconformismo cultural-ético-político-social, evitar a arapuca armada
do folclore e destravar a armadilha preparada pelo esteticismo. Para
poder genuinamente – o genuíno não sendo nenhuma raiz encontrável
mas o resultado sintético das pedras de tropeço iniciáticas – no Buraco
Quente e chegar até o (lendário boteco) Só Para Quem Pode. [...]
(SALOMÃO: 2003, p. 17).

A resistência afirmada na produção cultural defendida por Torquato Neto e seus


parceiros estava centrada na liberdade de criação. Tais artistas e intelectuais que seguiam
“driblando” a censura, “encontrando as brechas” e “furando a barreira”, eram exaltados por
seguirem o caminho experimental, defendido como o ideal no processo criativo. Em tempos
de autoritarismo resistir significava buscar a liberdade em todas as formas, inclusive artística
e não se conformar, inclusive com as “fórmulas prontas”. Ainda, sobre o processo criativo,
Hélio Oiticica afirmava que:

[...] É preciso entender que uma posição crítica implica inevitáveis


ambivalências: estar apto a julgar, julgar-se, optar, criar, é estar aberto
às ambivalências, já que valores absolutos tendem a castrar quaisquer
dessas liberdades; direi mesmo: pensar em termos absolutos é cair em
erro constantemente – envelhecer fatalmente; conduzir-se a uma
posição conservadora (conformismos, paternalismos etc.); o que não
significa que não se deva optar com firmeza: a dificuldade de uma opção
forte é sempre a de assumir as ambivalências e destrinchar pedaço por
pedaço cada problema. Assumir ambivalências não significa aceitar
conformisticamente todo esse estado de coisas; ao contrário, aspira-se
então colocá-lo em questão. Eis a questão. (OITICICA, Hélio. Brasil-
Diarréia apud SALOMÃO: 2003, p. 52-53)

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Nota-se, portanto, a ênfase na análise crítica, na negação do comodismo e


conformismo com a realidade social, política e cultural. Observa-se a prontidão e defesa
para a inquietude, indignação e busca de novas formas, novas questões e, sobretudo, novas
possibilidades. Tais questões foram compartilhadas por artistas e intelectuais e os mesmos
desenvolveram ao longo da década de 1970, diversos projetos nos quais apresentavam o
novo e, portanto, a resistência.

Considerações finais

A análise da coluna Geleia Geral de Torquato Neto revela as dificuldades vividas no


Brasil durante os “anos de chumbo”. As medidas adotadas pelo governo militar,
prejudicaram, sem dúvida, o processo criativo, mas não impediram a criação e o
desenvolvimento da produção cultural. Desta forma, considerar a década de 1970 como um
período de falta de criatividade e “silêncio” revela uma visão equivocada sobre o período.

Enfim, nota-se pela análise da produção cultural brasileira na década de 1970 que,
apesar da intensa censura, em especial dos anos de 1973 e 1974, artistas e intelectuais
encontraram as “brechas” e “ocuparam o espaço”, conforme solicitava Torquato Neto em
sua coluna. Continuaram a produzir, mesmo nos “anos de chumbo”, criando “situações e
segurando as pontas”. E dessa, forma confirmaram a afirmativa de Torquato: “Criar é
resistir”.

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Análise das audiências públicas da Comissão Nacional da Verdade: apontamentos


sobre a articulação dos conceitos de história de vida, luta por reconhecimento e
memória coletiva

Vanessa Veiga de OLIVEIRA


Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG.
veiga.jornalismo@gmail.com

1. Introdução

No canal da Comissão Nacional da Verdade (CNV) no Youtube estão reunidos mais


de 100 vídeos produzidos a partir das gravações de todas as audiências públicas realizadas
pela Comissão desde o início do seu trabalho. Entre esses vídeos há um intitulado “A voz da
vítima”, publicado em 22 de maio de 2013. O vídeo inicia-se com a seguinte passagem: “Dar
voz às vítimas e testemunhas das graves violações de direitos humanos. Este é o objetivo
principal das audiências públicas da Comissão Nacional da Verdade”.

Tal afirmação nos leva a indagar: qual o papel das audiências públicas no trabalho
da Comissão Nacional da Verdade? O que significa dar voz? Quem tem sua voz ouvida? O
que é feito com que é escutado a partir dessas vozes? Qual o papel das histórias de vida
expostas nas audiências públicas para a luta pelo reconhecimento dos crimes cometidos
pelo Estado durante o regime militar?

A partir da discussão sobre os conceitos de luta por reconhecimento (HONNETH,


2003) e histórias de vida (STEINER, 2012, MAIA, GARCÊZ, 2012, MAIA, no prelo),
pretendemos refletir sobre como as experiências de vida individuais ganham espaço nas
audiências públicas da Comissão Nacional da Verdade e transforma-se em questões de
interesse coletivo, no caso, a luta pelo direito humano à memória e à verdade. Iremos
explorar alguns vídeos das audiências públicas disponibilizados no canal do Youtube, e
tentar identificar hipóteses possíveis papéis e funções que as histórias de vida, podem
exercer na luta pelo direito à memória e verdade. Acreditamos que os testemunhos, além de
configurarem a semântica coletiva da luta por reconhecimento da memória e justiça no
Brasil, afeta o desenvolvimento das atividades da Comissão Nacional da Verdade.

Para desenvolvermos esse pensamento, o artigo se organiza do seguinte modo:


primeiro recuperamos de modo sintético as noções fundamentais envolvendo os conceitos
de reconhecimento e histórias de vida. Em seguida, exploramos as características que
encontramos nos testemunhos das audiências públicas e encerramos o trabalho refletindo
sobre as funções políticas que essas histórias de vida podem ter sobre o caso analisado.

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2. Testemunho e luta por reconhecimento no processo político

Já algum tempo, diversos autores vêm trabalhando, ainda que com perspectivas e
questões diferentes, com discussões que configuram uma teoria do reconhecimento
(TAYLOR, 1994, HONNETH, 1995; FRASER, 2000, TULLY, 2000; HONNETH, FRASER,
2003; ZURN, 2005; DERANTY, 2009; MAIA, no prelo). Para os nossos interesses, nos
parece profícua a perspectiva trabalhada por Axel Honneth (2003). Isso se deve ao fato do
autor ressaltar que a partir de um conflito e de um processo intersubjetivo, os sujeitos
podem construir uma semântica coletiva a qual é a base para a atuação de uma luta social
que visa um aprendizado coletivo. No nosso caso, os atores da luta pelo reconhecimento do
direito à memória e à verdade no Brasil almejam uma evolução moral da sociedade
brasileira, no sentido de que ela nunca mais aceite que um Estado seja o executor de
práticas de tortura, de privação de direitos e de assassinatos.

Herdeiro da tradição da “Teoria Crítica”, Axel Honneth (2003) vê nos conflitos um


ponto central para se entender processos de mudança social e a partir disso desenvolve seu
conceito de luta por reconhecimento. O conflito – ou luta – que interessa a Honneth são
aqueles originados das experiências de desrespeito, que por sua vez motivam ações que
buscam o reconhecimento mútuo. A luta nesse caso ocorre para alcançar um
reconhecimento intersubjetivamente compartilhado, o qual compõe a identidade humana
(HONNETH, 2003).

A autorrelação almejada pela luta por reconhecimento trata da transformação da


situação de desrespeito em uma valorização moral dos próprios afetados pelo conflito.
Honneth distingue três formas de reconhecimento recíproco, correspondentes às três
esferas ou âmbitos de interação social, na quais se configuram diferentes modos de
autorrelação prática alcançados pelo reconhecimento, como também diferentes formas de
desrespeito ou de não-reconhecimento. São as esferas: do amor, do direito e da estima
social. Sobre as formas de desrespeito em cada uma das esferas de reconhecimento,
Mendonça sintetiza:

Honneth (2003a) afirma que o não-reconhecimento nesses três


âmbitos se manifesta por meio da violência física, da denegação de
direitos e da desvalorização social de certos sujeitos por seus
atributos e modos de vida. Essas formas de desrespeito impedem a
auto-realização do sujeito, mas também podem fomentar uma
reflexividade, que nasce da indignação moral. Tal compreensão
reflexiva pode ser coletivizada e se desdobrar em lutas sociais por
reconhecimento, que são essenciais para a evolução moral da
sociedade. (MENDONÇA, 2009, p.145)

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É interessante perceber que o conflito – elemento central no pensamento de Honneth


– assume uma dupla função. Ao passo que ele gera o estigma social, o sofrimento, ele é
também responsável por mobilizar uma luta por reconhecimento e, por consequência, uma
evolução moral da sociedade por meio do aprendizado coletivo. Para tanto, o conflito
precisa passar por um processo de filtragem cognitiva, ou seja, tais situações de desrespeito
precisam ganhar um significado que sustente a existência de uma resistência política. E
essa transformação cognitiva do conflito depende de um processo intersubjetivo. Segundo
Honneth, “somente quando o meio de articulação de um movimento social está disponível é
que a experiência de desrespeito pode tornar-se uma fonte de motivação para ações de
resistência política” (HONNETH, 2003, p.224). Assim, denota-se a importância de que o
conflito seja processado linguisticamente para formar uma semântica coletiva, pois é preciso
“produzir sentidos sobre os danos experimentados como algo que não afeta apenas a eles,
como indíviduos singulares, mas a um círculo de pessoas”. (MAIA, GARCÊZ, 2012a, p.3)

Um mecanismo que pode servir de insumo para a formação da semântica coletiva é


a prática de testemunhos ou histórias de vida (MAIA, GARCÊZ, 20012a,b; STEINER, 2012;
MANSBRIDGE, 1999; POLLETA, 1998, 2006; YOUNG, 2000). Esse ato de fala pode
aproximar o sentimento de injustiça – importante na construção da teoria de reconhecimento
de Axel Honneth – vivenciado pelo concernido daqueles que não sofreram diretamente o
dano. Isso acontece porque as histórias de vida ao relatarem os detalhes e os dramas da
injustiça podem sensibilizar ou mesmo criar afinidades e identificações entre aqueles que
escutam as histórias. Ainda, os testemunhos têm o potencial de politizarem determinado
problema, dando nome àquela injustiça (MAIA, GARCÊZ, 2012a, p.7). Algumas das
contribuições das histórias de vida são,

“At times, telling stories may become a mechanism to describe,


demonstrate, or explain something to others, who may then accept
the relevance of certain demands or identity specific orientations as
valid. In such circumstances, personal testimonies do not provide
clear answers but rather show the moral complexity of some
problems.” (MAIA, GARCÊZ, 2012b, p.11)

Neste trabalho, percebemos que as falas podem contribuir (conscientemente ou não


por parte daquele que conta sua história) para o objetivo de sensibilizar, exemplificar,
reivindicar, denunciar e reiterar demandas relativas à luta em tela. Além disso, acreditamos
que essas histórias de vida exercem funções institucionais, de visibilidade e pedagógicas.

O que pretendemos destacar aqui é essa produtiva articulação entre histórias de vida
e reconhecimento. A partir da perspectiva de Honneth, entendemos que o processo de uma

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luta por reconhecimento, calcada em um processo intersubjetivo, demanda que os sujeitos


tenham uma atitude moral de consideração do outro, bem como assumam uma posição de
reciprocidade e de inclusividade. Nesse sentido, acreditamos que os testemunhos possam
aproximar ou criar condições de inteligibilidade e afinidade entre sujeitos com histórias de
vida diferentes. Steiner (2012) também destaca a contribuição das experiências pessoais
em processos políticos. Sobre a articulação das histórias de vida com o modelo deliberativo,
o autor afirma que,

In my view the fit is not too bad. If indeed the empirical analyses hold
up that storytelling contributes to increased reciprocity, to more
equality, and to lesse animosity, the picture looks favorable from a
deliberative perspective. To be sure, the negative sides are that
stories may be used in a manipulative way and that they can take the
discussion away from the issue under discussion. (STEINER, 2012,
p.86)

Em seu livro “The Foundations of deliberative democracy”, Steiner realiza uma


revisão do conceito de histórias de vida, bem como de estudos empíricos que utilizam de
testemunhos em suas análises. Preocupado com o potencial deliberativo das histórias de
vida, o autor percebe que elas são utilizadas tanto como justificativas para argumentos, ou
mesmo como único tipo de justificativa (ou seja, sem recorrer a um argumento, a uma razão)
em processos discursivos. E tanto a elite política (os representantes formais, membros do
parlamento), quanto cidadãos ordinários, recorrem às histórias de vida em suas justificações
(STEINER, 2012, p.84). Essas constatações demonstram, segundo o autor, a relevância das
histórias de vida, especialmente para encorajar a deliberação e para ajudar sujeitos
socialmente em desvantagem a conseguir um poder de fala maior. Por outro lado, Steiner
também chama atenção para os efeitos negativos que eles podem suscitar, quando as
histórias de vida chegam a manipular a opinião pública ou a desviar o foco de uma
determinada discussão e empobrecer o debate.

Nossa intenção neste trabalho é analisar como as histórias expostas nas audiências
públicas podem produzir efeitos na condução dos trabalhos da Comissão da Verdade.
Acreditamos que essas experiências pessoais, ao se tornarem públicas, desempenham
certos objetivos na construção da semântica da luta pelo reconhecimento à memória e à
justiça no Brasil, e assumem certos papéis simbólicos e estratégicos nessa questão.

3. Os depoimentos nas audiências públicas

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Após um ano de trabalho, a Comissão Nacional da Verdade reconheceu o importante


papel desempenhado pelas audiências públicas (objeto de nossa análise) na condução das
investigações sobre o período da ditadura militar brasileira. Essa constatação se dá pelo fato
das audiências públicas possibilitarem uma maior aproximação entre a Comissão e a
sociedade civil. Todas elas são registradas em vídeo pela EBC (Empresa Brasil de
Comunicação) e disponibilizadas no canal da CNV no Youtube.

Segundo Paulo Sérgio Pinheiro, membro da Comissão, as audiências são hoje a


segunda linha de atuação da CNV. Já foram recolhidos 268 depoimentos, sendo que destes,
37 (13,8%) eram de agentes e colaboradores do regime militar. Segundo Paulo Sérgio
Pinheiro, a Comissão decidiu dar “prioridade absoluta” no próximo ano para depoimentos
“com suspeitos perpetradores de violações com a presença de vítimas e familiares, inclusive
com transmissão simultânea por televisão e internet para assegurar a mais ampla
transparência e publicidade” (BRASIL, 2013). Nesse ponto já podemos perceber os efeitos
das audiências públicas na condução da CNV. Primeiro, por priorizar audiências com
agentes da repressão, uma vez que os 37 depoimentos coletados renderam a indicação de
mais nomes relacionados à agentes da ditadura, bem como informações sobre a morte de
desaparecidos políticos. Além disso, a definição por realizar esses depoimentos com a
presença das vítimas e familiares foi uma demanda da sociedade civil presente nas
audiências.

Ao assistir o material das audiências públicas, podemos perceber com recorrência


demandas (de investigação, de solução, de posicionamento, entre outros) que são
justificadas por meio da exploração de histórias de vida relacionadas ao período ditatorial.
Como nos dois casos abaixo, foi demandada a presença e o diálogo entre vítimas e agentes
da repressão nas sessões públicas da CNV, com ambas as vítimas descrevendo seus casos
pessoais de tortura e utilizando disso como argumento para que a presença deles fosse
fundamental nesse processo. Nesse sentido, apontamos que um dos objetivos identificados
nos testemunhos das audiências públicas da CNV era o de realizar uma denúncia (1).

Cláudio Fonteles: Então, o senhor não se negaria a fazer uma acareação


com o Gilberto Natalini dentro da Comissão Nacional da Verdade?
Coronel Ulstra (fala exaltado): Não faço acareação com ex- terrorista. Não
faço! Não faço!
Gilberto Natalini (ex-preso político, se levanta da onde estava sentado, fala
exaltado, sem microfone): eu não sou terrorista, coronel. Terrorista é o
senhor! O senhor é terrorista! Terrorista é o senhor! Sou brasileiro de lei! O
senhor é torturador!
Cláudio Fonteles (apontando para Gilberto Natalini): calma, calma, aí não.
Gilberto Natalini: Ah, então ele pode falar e eu não?! Se ele fala, eu posso
falar também!
Cláudio Fonteles: não! Não! Ninguém fala! Senta todo mundo.

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Gilberto Natalini: Ah, só o terrorista que pode falar?


Cláudio Fonteles: Não adjetiva, Natalini! Acabou, acabou!
Gilberto Natalini: Eu também posso falar!
(Audiência Pública com o Coronel Brilhante Ulstra, 10/5/13)

“Eu sou Pinheiro Sales, da Comissão da Verdade e Justiça do Sindicato dos


Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul. Eu fui preso político durante
9 anos. Tenho essa mão direita semi-paralisada, com os tendões cortados.
Isso aconteceu durante o tempo que o comandante Brilhante Ulstra
comandava o DOI-CODI de São Paulo. Fui torturado então no DOI-CODI,
recebi chutes do próprio Fleury. (...)Gostaria de ver o Ulstra na minha frente
e ver ele dizendo que nunca torturou. Que ele não tem nada com tortura. E
outros certamente farão isso. Essa Comissão não pode e não será, não
poderia jamais ser uma Comissão da Frustação. Ela é uma das conquistas
que veio – atrasada, mas veio – mais importantes da população brasileira.”
(Balanço da CNV, 21/5/13)

Também identificamos que um dos objetivos de apresentar histórias de vida na


Comissão da Verdade era o de sensibilizar (2). Vários relatos são permeados de emoção e
contribuem para que a sociedade se identifique, se sensibilize e amplie o espaço de
visibilidade e discutibilidade da causa em tela. Os trechos abaixos de depoimentos de
vítimas e familiares de vítimas da ditadura militar exemplificam:

“Eu não esperava passar por aquela situação, tendo em vista que a ditadura
acabou, mas não tinha acabado. Eu tive que continuar naquela situação só
porque eu era amante de um professor, que era o Darcy Ribeiro, e eu não
podia ler Darcy Ribeiro dentro do alojamento. Estava lendo um artigo de
jornal do Darcy Ribeiro, e de repente eu tava sendo acusado de pertencer a
partido político, de ser subversivo.” (Luís Cláudio Monteiro, estudante do
Corpo de Bombeiros do RJ no início dos anos 80 - Audiência Pública
do Rio de Janeiro-RJ,23/3/13 )

“Meu pai morreu poucos dias após o fechamento da Panair. Disse para ele,
antes de morrer, que nunca mais voltaria ao Brasil, mas ele olhou nos meus
olhos, segurou minhas mãos e disse para que eu amasse o Brasil, pois os
homens passam, mas o Brasil fica. E eu concordo com ele e hoje entendo o
que ele falava. Ele disse também que a verdade é como um sol, por mais
que as nuvens possam cobrir, um dia vai aparecer. E isso pautou sempre a
vida dele”. (Marylou Simonsen, filha de Mario Wallace Simonsen, sócio
da Panair, empresa que foi fechada pela ditadura - Audiência Pública
no Rio de Janeiro-RJ, 23/3/13)

De maneira semelhante, as histórias de vida também podem ter como objetivo


exemplificar (3), ou seja, dar detalhes dos danos sofridos e que motivam a luta pelo
reconhecimento da causa da memória e justiça no Brasil. Esse tipo de testemunho contribui
para a justificação da luta, ao relatar as formas de desrespeito sofridas, e potencializa a
identificação do outro em relação ao afetado pela injustiça .

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“E eu fiquei meio angustiado com aquela demora e resolvi então descobrir


onde estavam aqueles presos. Eu tinha 14 anos, sabia muito bem como era
a polícia militar e falei “eles só podem tá lá”. E fui lá, sozinho, subi uma
grade e quando eu consegui olhar lá embaixo, vi aqueles cinquenta e
poucos presos. A minha visão era de que aqueles homens estavam em um
campo de concentração. Aqueles homens estavam aniquilados; o peso da
tortura transformou aqueles sujeitos e quando vi todos reunidos... Eles eram
magros, não podiam usar ponte no dente, não podiam usar cinto,
seguravam as calças na mão, não podiam usar cardaços, andavam se
arrastando. A cena é muito parecida com a imagem que a gente tem de um
campo de concentração. Não vi meu pai sendo torturado, mas eu vi o que a
tortura fez com meu pai”. (Júlio Cénsar Manso Vieira, aos 14 anos viu o
pai sendo torturado - Audiência em Curitiba-PR, 12/11/12)

“Eu sofri uma violência ou, melhor, várias violências sexuais. Toda a nossa
tortura era feita nós nuas, todas as mulheres nuas, os homens também
ficavam nus, e toda a sala cheia de homens. Choques pelo corpo todo,
inclusive na vagina, no ânus, nos mamilos, boca, ouvidos.” (Amélia Teles,
ex-presa política - Audiência Pública “Verdade e Gênero” em São
Paulo-SP, 25/3/13)

As histórias de vida também se traduzem frequentemente no objetivo de demandar


(4) medidas concretas em relação ao reconhecimento dos danos causados pela ditadura
militar. As experiências pessoais são utlizadas para dar legitimidade e valor às
reivindicações.

A população precisa de saber e conhecer seus heróis, seus mártires que


estão sepultados, onde que é ninguém sabe. As famílias têm o direito
cristão ou de qualquer filiação religiosa, têm o direito de enterrar os seus
mortos. (Jarbas Silva Marques, familiar de desaparecido, Audiência
pública de Goiânia-GO, 13/7/2012)

De modo semelhante, essas falas podem servir também para reiterar (5)
informações, demandas e denúncias já feitas em momentos interiores, como no caso
abaixo. Essa é uma característica recorrente, dado que pelo tempo transcorrido desde a
redemocratização brasileira, vários casos de mortes e de desaparecimentos políticos foram
investigados em outras instâncias ou por mecanismos paralelos, já existindo, portanto,
indícios que poderiam agilizar o processo judicial. No caso que ilustra esse tipo de
contribuição das histórias de vida, um especialista em direitos humanos (assim identificado
pela CNV) cobra informações acerca de um caso que já foi inclusive contado em um livro.

“Em casos de desaparecimento forçado de pessoas, como o de Fernando


Santa Cruz e Eduardo Courier – e você tem que ver que o Brasil foi
inclusive condenado pela corte interamericana -, você tem o chamado
desaparecimento do corpo, e isso tem uma característica específica que é o
dano continuado. Nesses casos relatados, a família de Fernando, o sr
Marcelo e Risoleta, não tiveram o direito de enterrar Fernando. E disso foi
produzido uma literatura que está no livro “onde está meu filho” que tenta
desvendar toda a circunstância do desaparecimento de Fernando e

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Eduardo. Jovens, com 26 anos, há 38 anos foram sequestrados no Rio de


Janeiro e até não se sabe nada”. (Manoel Moraes, representante do
Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares de
Pernambuco - Audiência pública em Recife-PE, 10/9/12)

Podemos afirmar que um mesmo testemunho pode ter mais de um dos objetivos
apresentados nesta seção. Eles podem, por exemplo, ter a intenção de exemplificar o dano
e com isso também sensibilizar a audiência. Ressaltamos, ainda, que esses objetivos são
identificados por nós, em uma análise, ou seja, não é necessariamente a intenção daquele
que conta sua experiência pessoal. De tal forma, o que buscamos destacar nesta parte do
trabalho é que as histórias de vida que ganham publicidade nas audiências públicas e
acabam por atingir objetivos como denunciar situações, sensibilizar a sociedade, detalhar as
formas do dano, reivindicar soluções e reiterar posições, e que tais características
identificadas nos depoimentos compõem a semântica coletiva envolvendo a luta da memória
e justiça no Brasil.

4. Considerações finais: o papel do testemunho na conformação da CNV

Na seção anterior buscamos evidenciar como as audiências públicas foram


relevantes para o primeiro ano de trabalho da Comissão Nacional da Verdade, uma vez que
elas foram o espaço que abriga as histórias de vida. Percebemos que esses relatos podem
ser transformados em questões de interesse coletivo e que no caso investigado elas
contribuem com, pelo menos, três importantes funções ou papéis no processo político.

A função institucional

A primeira que destacamos é a função institucional e que estaria relacionada às


atribuições burocráticas previstas e esperadas das audiências dentro do Plano de Trabalho
da própria CNV. Nesse sentido, é preciso considerar, em primeiro lugar, que as audiências
públicas produzem um material investigativo e podem, portanto, serem transformadas em
provas, caso seja iniciado um processo judicial acerca das mortes e desaparecimento. É
interessante ressaltar também que os testemunhos dessas sessões contribuem para a
identificação de novos atores (agentes ou vítimas) envolvidos no contexto da repressão
militar. Essa informação possibilita a coleta de mais material testemunhal, bem como de
documentos e dados antes desconhecidos. As audiências realizadas no primeiro ano da
CNV indicaram outros 337 nomes para serem ouvidos pela comissão sendo que destes 240
estão vivos e localizados.

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A função de visibilidade

Denominamos como “função de visibilidade” o segundo papel político que as


audiências públicas trazem para o processo da Comissão da Verdade. Essa função trata-se
do aspecto de que os relatos publicizados pelas audiências contribuem para tornar de
conhecimento público os crimes cometidos pela ditadura. As audiências possuem um forte
valor de noticiabilidade e freqüentemente ganham o espaço de visibilidade midiática. Além
disso, o material também foi disponibilizado na internet, por meio de um canal no Youtube.
Esse processo permite que a luta pelo direito humano à memória e à verdade rompa uma
esfera de invisibilidade e torne-se mais acessível a toda população brasileira. Tal
acessibilidade potencializa a produção de debates e a exposição do caso, e materializa –
simbolicamente e politicamente - a existência da controvérsia, da questão política em torno
dos crimes cometidos pelo Estado durante o regime militar.

A função pedagógica

Uma última função identificada até o momento nas audiências públicas diz respeito
ao caráter pedagógico. As histórias de vida permitem que a sociedade se aproxime mais do
tema e possa inclusive produzir uma memória coletiva. No documento de balanço das
atividades de um ano da CNV, os membros destacam que

“Os depoimentos colhidos em audiências públicas têm o efeito crucial de


permitir à sociedade a oportunidade de conhecer as verdades indizíveis das
práticas do regime ditatorial. Possuem, portanto, não só o efeito de permitir
a coleta de informações, mas sobretudo o de proporcionar a ocorrência de
momentos de efeito catártico, em que o País pode iluminar o que estava no
espaço do segredo.” (BRASIL, 2013, p.9)

Esse aspecto de traduzir o desconhecido e de revelar “verdades indizíveis” é


importante, uma vez que um dos objetivos centrais da luta pelo direito humano à memória e
à verdade é produzir um consenso de que as situações vividas durante o regime militar não
podem voltar a acontecer, a fim de que se tenha um verdadeiro amadurecimento
democrático. Para tanto, é preciso conhecer essa realidade que o país viveu; é preciso
também condenar publicamente esses crimes, o que acontece por meio da Comissão da
Verdade. As histórias de vida têm esse potencial de aproximar os sujeitos dessa realidade
vivida e produzir um aprendizado coletivo.

Por fim, destacamos que neste trabalho buscamos identificar algumas características
das histórias de vida presentes nas audiências públicas da Comissão Nacional da Verdade
a fim de apontar alguns possíveis papéis dessas experiências pessoais na constituição do

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processo político em torno da luta pelo direito à memória e à verdade. Essa perspectiva
permite examinar empiricamente problemas e possibilidades da construção de uma luta por
reconhecimento da memória e justiça no Brasil, e, ainda, apontar as implicações dessa
dinâmica para o desenvolvimento das atividades da Comissão Nacional da Verdade e para
a formação e visibilidade de uma memória coletiva do país sobre o período de repressão
militar.

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ISBN: 978-85-62707-55-1
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Raul Seixas no torvelinho dos anos de chumbo: autoritarismo, contracultura,


redemocratização

Vitor CEI
Doutorando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG. Bolsista da
FAPEMIG.
vitorcei@gmail.com

1. Prelúdio

O ano de 2013 evoca não apenas os 50 anos do golpe militar de 1964, aniversário que
motiva a organização deste seminário, como também os 25 anos da morte do cantor e
compositor Raul Seixas. O legado do maluco beleza e a sua relação com a ditadura civil-
militar já foram abordados em minha dissertação de mestrado, Novo Aeon: Raul Seixas no
torvelinho de seu tempo, defendida em 2009 no Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal do Espírito Santo, e publicada em 2010 pela editora Multifoco, do Rio
de Janeiro (SANTOS, 2010).

Hoje, faço uma releitura da minha dissertação em nova perspectiva, à luz da teoria do
testemunho. Isto posto, o objetivo geral desta comunicação é identificar o teor testemunhal
das canções de Raul Seixas a partir das críticas que o compositor faz da experiência política
de seu tempo.

A partir da categoria de “testemunho”, operador conceitual central na teoria literária


desde a década de 1990, compreendo que as canções de Raul revelam uma memória das
tensões que ocorriam no Brasil dos anos de chumbo, além de abordar uma discussão
premente e indispensável sobre as causas e os efeitos do golpe militar e do processo de
redemocratização, com a nova forma de capitalismo que então surgia.

De acordo com Valéria de Marco (2004), a expressão “literatura de testemunho” não se


associa ao entendimento do senso comum do texto literário como mera representação
realista de um momento histórico, mas remete sempre a uma relação entre literatura e
violência. Nesse sentido, existem duas grandes concepções de literatura de testemunho,
com pouco diálogo entre si. Uma delas desenvolve-se no âmbito dos estudos sobre as
literaturas que registram e interpretam a violência das ditaduras da América Latina; a outra
volta-se para a barbárie nazista, com foco na Shoah, termo hebraico utilizado para substituir
a palavra Holocausto, que tem conotação de sacrifício.

A partir dessas considerações, esta comunicação se divide em três partes. A primeira


consiste neste prelúdio. Na segunda mostro que nos anos 1970 a discografia de Raul
Seixas foi marcada por composições utópicas e afirmativas, cantando em nome de
liberdade, mudança e emancipação. Diante do autoritarismo, Raul se apropriou da ideia de

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Novo Aeon apresentada pelo ocultista inglês Aleister Crowley (2012) para formular o seu
próprio projeto de uma Sociedade Alternativa.

Na terceira parte mostro que a década de 1980 jogou para escanteio a insatisfação
radical que existia por trás do desejo utópico presente nas sociedades capitalistas durante
as décadas de 1960 e 70. Nesse contexto, a obra de Raul Seixas passou a apresentar um
caráter melancólico, de certo modo resignado, marcando o aspecto traumático das suas experiências. Ele
passou a abordar temas como frustração, internação, doença e alcoolismo. Entre o tom
melancólico e o irônico, a obra de Raul produzida nos anos 1980, apesar de manter acesa a
quase apagada chama da utopia, projeta um mundo dilacerado e de valores degradados,
manifestando instabilidades, como tudo que é reprimido ou contestado.

2. Autoritarismo

Entre o final da década de 1960 e o início da década de 1970, o Brasil fruiu um período
de intenso desenvolvimento econômico, que a propaganda do regime militar chamou de
“milagre brasileiro”. Uma característica notável do “milagre” é que o rápido crescimento do
Produto Interno Bruto (PIB), com taxas de 11,1% ao ano, veio acompanhado de inflação
declinante e relativamente baixa para os padrões brasileiros, além de superávits no balanço
de pagamentos (VELOSO et al, 2008, p. 222).

Enquanto os brasileiros “comiam alpiste”, para nos servirmos de uma expressão muito
usada por Raul Seixas, a vida político-social passou pela mais terrível coerção militar da
história do país. O AI-5, expedido pelo general-presidente Costa e Silva em 13 de dezembro
de 1968 (com vigência até 1979), inaugurou no país um novo ciclo de autoritarismo.

Em contraposição à propaganda do governo, que lançava motes como “Brasil


Potência”, “Brasil Grande” e “Brasil, ame-o ou deixe-o”, Raul Seixas compôs canções
contraculturais, utópicas e desbundadas, críticas do regime militar. Destaco, aqui, um
grande sucesso da música midiática de 1973, “Ouro de Tolo”, do disco Krig-Ha, Bandolo
(SEIXAS, 1973), cujo título significa, no vocabulário do Tarzan, “cuidado, aí vem o inimigo”.
Sylvio Passos observa que a canção é “Uma letra autobiográfica e ao mesmo tempo uma
bofetada na face da classe média, que trocava a verdadeira realização pelo acesso às
bugigangas comuns de consumo, naqueles tempos de Milagre Brasileiro” (PASSOS, 2003,
p. 83). Escutem:

Eu devia estar contente


Porque eu tenho um emprego
Sou o dito cidadão respeitável

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E ganho quatro mil cruzeiros por mês

Eu devia agradecer ao Senhor


Por ter tido sucesso na vida como artista
Eu devia estar feliz
Porque consegui comprar
Um Corcel 73

Eu devia estar alegre e satisfeito


Por morar em Ipanema
Depois de ter passado fome por dois anos
Aqui na Cidade Maravilhosa

Eu devia estar sorrindo e orgulhoso


Por ter finalmente vencido na vida
Mas eu acho isto uma grande piada
E um tanto quanto perigosa

Eu devia estar contente


Por ter conseguido tudo o que eu quis
Mas confesso abestalhado
Que eu estou decepcionado...

Porque foi tão fácil conseguir


E agora eu me pergunto: e daí?
Eu tenho uma porção de coisas grandes
Pra conquistar, eu não posso ficar aí parado

Eu devia estar feliz pelo Senhor


Ter me concedido o domingo
Pra ir com a família ao Jardim Zoológico
Dar pipoca aos macacos

Ah, mas que sujeito chato sou eu


Que não acha nada engraçado
Macaco, praia, carro, jornal, tobogã
Eu acho tudo isso um saco

É você olhar no espelho


Se sentir um grandessíssimo idiota
Saber que é humano, ridículo,
Limitado, e que só usa dez por cento de sua cabeça animal

E você ainda acredita que é um doutor


Padre ou policial
E que está contribuindo com sua parte
Para o nosso belo quadro social

Eu é que não me sento


No trono de um apartamento
Com a boca escancarada
Cheia de dentes, esperando a morte chegar

Porque longe das cercas embandeiradas


Que separam quintais
No cume calmo
Do meu olho que vê
Assenta a sombra sonora

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Dum disco voador (SEIXAS, 1973).

O título da canção faz referência à pirita, mineral de pouco valor que por apresentar
coloração dourada e brilho metálico é conhecido popularmente como “ouro de tolo”. O nome
popular do minério pode ser lido como uma metáfora para o processo de modernização que
ocorria no Brasil.

De acordo com Luiz Lima (2006), “ouro de tolo” também era o nome que se dava, na
Idade Média, às falsas promessas de pseudo-alquimistas que prometiam fabricar o metal
precioso. Por outro lado, na linguagem simbólica dos autênticos alquimistas, a
transformação de outros metais em ouro era uma metáfora para a transformação espiritual
do ser humano, de um estado energeticamente pesado, o “chumbo”, para outro de
iluminação, o “ouro”. No caso de Raul, dos anos de chumbo aos anos dourados da
Sociedade Alternativa.

A canção parece exprimir a tensão existencial do compositor diante do caráter


contraditório da vida na sociedade de consumo. O povo brasileiro, desprovido de liberdade
ou de direitos de cidadania, é coagido a “vencer na vida”, satisfazendo-se com o consumo
de casa própria, carro do ano, eletrodomésticos e outros bens de consumo. A composição
apresenta essa coerção e, na penúltima estrofe – “eu que não me sento no trono de um
apartamento com a boca escancarada cheia de dentes, esperando a morte chegar” – mostra
a passagem do estado passivo do eu lírico à sua tentativa de resistência ao status quo.

A canção “Ouro de Tolo” transmite inconformismo diante do modo de vida constituído


a partir das conquistas capitalistas de um Estado autoritário. O compositor não procura
confrontar os valores dominantes a outros sustentados nos mesmos princípios, como se
estivesse engajado na luta por uma sociedade mais “justa”, em que todos tivessem direito a
emprego com um salário adequado à vida nessa mesma sociedade de governo ditatorial.

Ao contrário disso, a letra ironiza os costumes e crenças dominantes, disparando


chistes contra os valores mais prezados pelo conservadorismo da época: o Deus-Pai que
faz concessões, o ufanismo pela pátria amada, a família vista como célula do organismo
social e, claro, o consumo como um direito adquirido.

Chato, inoportuno, assim devia ser visto o cantor-compositor por certa parte do
público, fascinado com as belezas naturais (praia), as novidades tecnológicas (carro do
ano), a indústria cultural (jornal) e o lazer (tobogã e zoológico). Podemos compreender o
desencanto de Raul no sentido apontado por Adorno e Horkheimer, para quem a
mercantilização da vida reificou até mesmo o lazer: “A diversão é o prolongamento do
trabalho sob o capitalismo tardio. Ela é procurada por quem quer escapar ao processo de
trabalho mecanizado, para se pôr de novo em condições de enfrentá-lo” (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 128).

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A canção oscila entre o tom melancólico e o eufórico. Pelo primeiro, apresenta


descrença em relação ao desenvolvimentismo. Através do segundo, cria um distanciamento
em relação à ilusão do “milagre brasileiro”, operando-se a possibilidade de uma ruptura com
o regime autoritário e a instauração de uma Sociedade Alternativa.

Ainda em 1973, a economia mundial foi abalada pelo aumento do preço do barril de
petróleo gerado pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), que
funciona como um cartel para controlar o suprimento mundial do ouro negro. O Brasil, que
na época importava mais de 80% do petróleo consumido, viu a prosperidade ruir. Assim, a
Crise Internacional do Petróleo mostrou que o ouro da ditadura era de tolo.

O dinamismo do capitalismo parecia ter entrado em colapso. A crise econômica e a


diminuição do padrão de vida da população enfraqueceram o fascínio que o regime militar
exercia sobre as massas. Para abafar a insatisfação popular, em janeiro de 1974 o general-
presidente Ernesto Geisel deu início à abertura política “lenta, gradual e segura”, ou, em
outras palavras, uma distensão do regime, repleta de marchas e contramarchas.

3. Redemocratização

Nos anos 80 o tema da redemocratização aparece na obra de Raul Seixas


acompanhado de outros como frustração, internação, doença e alcoolismo, o que revela um
perfil melancólico, pessimista e desencantado. Entre a melancolia e a ironia, o compositor
satirizou a abertura política “lenta, gradual e segura” com o disco Abre-te Sésamo, de 1980.
Exemplar é a canção-título:

Lá vou eu de novo
um tanto assustado
com Ali-Babá e os 40 ladrões
Já não querem nada
com a Pátria Amada
e cada dia mais
enchendo meus botões

Lá vou eu de novo
Brasileiro nato
Se eu não morro eu mato
essa desnutrição
Minha teimosia braba de guerreiro
é que me faz o primeiro dessa procissão

Fecha a porta!
Abre a porta!
Abre-te Sésamo!

E vamos nós de novo

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Vamos na gangorra
no meio da zorra
desse vai e vem
É tudo mentira
Quem vai nessa, pira
atrás do tesouro de Ali-bem-bem
Fecha a porta!
Abre a porta!
Abre-te Sésamo! (SEIXAS, 1980).

Ali-Babá, o conhecido personagem do conto “Ali Babá e os Quarenta Ladrões”,


integrante da clássica coletânea árabe As Mil e uma Noites, descobre um tesouro escondido
por quarenta ladrões dentro de uma caverna fechada por magia. A senha para abrir a
caverna era a expressão “Abre-te Sésamo”. Quando os ladrões se ausentam, Ali Babá entra
na caverna e furta parte do tesouro.

Inspirada no conto, a canção faz uma sátira política, expressando as falhas e


contradições da redemocratização do país. Em entrevistas, Raul dizia (sobre o LP): “Abre-te
Sésamo mostra uma abertura mentirosa” (PASSOS, 2003, p. 115). Para lançar o disco e
denunciar a farsa da abertura, Raul compareceu ao programa do Chacrinha montado num
jegue, vestido de sultão e cercado de odaliscas. Em entrevistas, dizia várias vezes, em tom
de deboche, que com a canção ele apenas trouxe Ali-Babá, porque os 40 ladrões já
estavam aqui. Do mesmo disco, sugestiva é a canção “Anos 80”, cujo refrão diz

Hei anos 80
Charrete que perdeu o condutor
Hei anos 80
Melancolia e promessas de amor (SEIXAS, 1980).

Se lermos a canção pelo viés histórico podemos perceber a expressão de um


lamento em relação à situação do país no período de abertura política. Mesmo após a
revogação do AI-5, em 31 de dezembro de 1978, uma perspectiva melancólica marcava o caráter

traumático das experiências de violência política. Por exemplo, a expressão “sonho de um sonhador”, que
compõe o último verso da canção, pode ser lida como uma amarga auto-ironia,
demonstrando desesperança com a realização da Sociedade Alternativa.

Raul Seixas se defrontou com o desafio de não deixar a melancolia provocada pela
situação vigente deteriorar-se em resignação. Nesse sentido, o deboche e a ironia presentes
nas canções “Abre-te Sésamo”, “Anos 80” e em outros trabalhos da década parecem ter o
intuito de romper com a gravidade dos momentos de crises e incertezas que marcaram a

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época, aliviando a sensação de inércia diante da impossibilidade de transformação da


sociedade.

Temperada com humor, a melancolia era marcadamente o estado de espírito de


Raul naquele tempo. Esse estado de ânimo, combinando tristeza e preocupação com o
futuro, numa incerteza sobre as consequências da então iminente abertura política, também
é um mal-estar referente ao passado, história de catástrofe em que muitos são os excluídos.
Entre um passado de horror e um futuro de promessas, a melancolia configurava a obra de
Raul Seixas, suscitando reflexões atentas ao torvelinho de seu tempo.

Ernildo Stein (1996) indica que essa melancolia de ocaso, de fim de século,
representa mais do que um elemento de desânimo e desesperança. Sofrendo com o caos
vigente e frente a um mundo esvaziado de sentidos, o melancólico é impelido a recriar
novos mecanismos de significação, sonhando com outra ordem, vislumbrando horizontes
onde aparecem novas possibilidades e, no caso de Raul Seixas, a utopia de uma Sociedade
Alternativa inserida em novos valores socioculturais.

Concluo que, a despeito de suas limitações, as canções de Raul Seixas tocam em


pontos nevrálgicos dos problemas políticos, sociais e culturais do Brasil das décadas de
1970 e 1980, contribuindo para a construção de uma memória contra o esquecimento da
ditadura civil-militar de 1964-1985.

Referências

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filosóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

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DE MARCO, Valeria. A literatura de testemunho e a violência de Estado. Lua Nova, São


Paulo, n. 62, 2004.

LIMA, Luiz. Vivendo a Sociedade Alternativa: Raul Seixas e o seu tempo. São Paulo:
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UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014

VELOSO, Fernando; VILLELA, André; GIAMBIAGI, Fabio. Determinantes do “Milagre”


Econômico Brasileiro (1968-1973): uma análise empírica. Revista Brasileira de Economia,
Rio de Janeiro, v. 62 n. 2, p. 221–246, 2008.

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