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ESPORAS

Os estilos de Nietzsche

-^

Jacques Derrida E D I T O R A
ESPORAS
Os estilos de Nietzsche

Jacques Derrida

Tradução
Rafael Haddock-Lobo e Carla Rodrigues
ESPORAS
Os estilos de Nietzsche

Jacques Derrida

Tradução
Rafael Haddock-Lobo e Carla Rodrigues

E D I T O R A

Rio de Janeiro
Título original
"Éperons, les styles de Nietzsche"

> Copyright 1978 by Flammarion, Paris.


Todos os direitos reservados.

© Copyright desta edição


NAU Editora
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Editoras: Angela Moss e Simone Rodrigues


Tradução: Rafael Haddock-Lobo e Carla Rodrigues
Revisão: Miro Figueiredo
Revisão técnica: Maria Continentino
Diagramação e capa: Mariana Lloyd
Imagem da capa: Lucrécia, de Lucas Cranach, o Velho, c. 1537.
Conselho editorial: Alessandro Bandeira Duarte, Claudia Saldanha,
Cristina Monteiro de Castro Pereira, Francisco Portugal, Maria Cristina
Louro Berbara, Pedro Hussak, Vladimir Menezes Vieira

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

D48e

Derrida, Jacques, 1930-2004


Esporas : os estilos de Nietzsche / Jacques Derrida ; tradução Rafael Haddock-Lobo
e Carla Rodrigues. - Rio de Janeiro : NAU, 2013.
112 p.
Tradução de: Eperons, les styles de Nietzsche"
ISBN 978-85-8128-012-7
1. Nietzsche, Friedrich V/ilhelm, 1844-1900. 2. Filosofia 3. Verdade. I. Título.

13-0055. C D D : 193
C D U : 1(43)
04.01.13 08.01.13 041922

Todos os direitos teservados. Nenhuma parte desta obta pode set


reproduzida ou transmitida por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico,
incluindo fotocópia e gravação) sem permissão escrita da Editora.

Uediçáo: 2013 -Tiragem: 1500 exemplares


Sumário

9 Esporas da Sedução, prefácio à edição brasileira


por Maria Cristina Franco Ferraz

19 Esporas, Os estilos de Nietzsche

21 A questão do estilo

23 Distâncias

31 Véus

37 Verdades

43 Enfeites

47 A simulação

51 "História de um erro"

59 Femina vita

69 Posições

75 O olhar de Edipo

79 O golpe de dom

87 Abismos da verdade

93 "Esqueci meu guarda-chuva"


Lista de abreviaturas dos livros de Nietzsche citados
nesta edição:

ABM - Além do Bem e do Mal: prelúdio a umafilosofiado futuro.

Cl — Crepúsculo dos ídolos.

EH — Ecce Homo: como alguém se torna o que é.

GC — A Gaia Ciência.

H D H - Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres.


Esporas da sedução
Maria Cristina Franco Ferraz

Certos pensadores contemporâneos nos lega-


ram, paralelamente a suas obras mais extensas, breves
livros em que a reflexão filosófica se alia de modo
ainda mais evidente ao ritmo e ao risco da inven-
ção de estilos. Este é o caso do saboroso Esporas - Os
estilos de Nietzsche, de Jacques Derrida, finalmente
traduzido no Brasil. Nele, a "temática", o jogo esta-
belecido entre determinadas noções e idéias convo-
cam, igualmente, a autorreflexividade e mesmo certa
auto-ironia, insinuadas em passagens do texto.
O livro remete a uma conferência intitulada
"A questão do estilo", proferida por Jacques Derrida
em 1972. Desde o subtítulo, Os estilos de Nietzsche,
aponta para seu eixo condutor. Mais do que um
tema a ser desdobrado, funciona como um convite
à curiosa e rara imbricação entre leveza e densidade
que também caracteriza parágrafos e aforismos de
Nietzsche. Nesse sentido, estas Esporas derridia-
nas produzem uma rítmica e um estado de corpo
próximos àqueles sugeridos no aforismo 381 de A
Gaia Ciência.
10

Nesse texto, Nietzsche alude ao aspecto vivaz


e sucinto de seu estilo aforístico, avesso a herme-
tismos, ao fechamento da obra sobre si mesma.
O aforismo solicita ritmos ligeiros e espertos do
pensar, um estado de corpo elástico, bailarino. Em
um trecho tão bem-humorado quanto o próprio
estilo que caracteriza como seu, o filósofo ressalta
a metodologia implicada no aspecto vivo, com-
pacto dos aforismas: o método dos banhos frios,
nos quais se entra e sai rapidamente (sobretudo
na fria Alemanha). Na ágil e sintética fórmula
que a língua alemã possibilita: "schnell hinein,
schnell hinaus"'.
Somente certa distância afirmativa impreg-
nada pelo pathos de uma "gaia ciência" estaria apta
a reconhecer verdades que não se podem apreen-
der senão em pleno sobrevôo, verdades que não se
deixam desnudar - apenas surpreender. Tais "ver-
dades" não se escondem por trás de supostos véus
encobridores. Não se trata, portanto, de alcançá-
las com o indecoroso gesto do desnudamento1. As
"verdades" a que Nietzsche alude se movem com
a velocidade do que é instantâneo, do que não se
oculta nem sefixapor trás. Cortam o ar, passam (e
se passam) no meio.
E essa verdade {verdade-mulher) que Derrida
retomou e ressaltou em Esporas. Derrida enfatiza o
valor atribuído por Nietzsche a uma constelação
de noções articuladas entre si, por vezes intercam-
' Cf., a esse respeito, a instigante passagem do final do § 4 do
prefácio à segunda edição de A Gaia Ciência.
11

biáveis, que giram em torno da verdade-mulher,


arredia e avessa a operações ingênuas, crédulas,
dogmatizantes. Noções como, por exemplo, as de
dissimulação, velamento, pudor, estilo, simulacro.
Sem domesticar ou pretender apaziguar a dimensão
necessariamente heterogênea e múltipla das pers-
pectivas expressas nos livros de Nietzsche, Derrida
ressalta a importância central d"a" mulher em uma
obra e em uma filosofia por demais apressada-
mente julgadas como misóginas. Esquivando-se de
qualquer julgamento, desfia e explora certa trama
de noções nietzschianas seminais, articuladas à ver-
dade-mulher.
Afastando-se de crenças ou mal-entendidos,
esclarece que não está em jogo qualquer essência
d"a" mulher, d"o" feminino, d"a" feminilidade ou
da "sexuúidade feminina", dentre outros "fetiches
essencializantes" (p. 37 desta edição). Só em uma
perspectiva não-essencializante se poderia portanto
entender esse feminino. Como o próprio título da
conferência que deu origem ao livro evidencia, não
se trata sequer de "uma" mulher: o termo aponta-
ria, antes, para uma multiplicidade, para uma mul-
tidão. Derrida assinala a cumplicidade produzida
nos textos de Nietzsche entre mulher, vida, sedu-
ção, dissimulação, pudor.
Articulada a véus que nada escondem, ao ser
superficial (como os gregos, por profundidade),
tal "mulher", não possuindo qualquer essência ou
próprio, convoca a catástrofe dos pares opositivos
profundidade-superfície,essência-aparência, arras-
12

tando no mesmo movimento toda crença identi-


tária. Nesse sentido, põe em funcionamento uma
outra lógica, nova matriz de pensamento mar-
cada por um gesto plenamente afirmativo. Como
Nietzsche sugere, a afirmação não se opõe à nega-
tividade: dela se esquiva. A "mulher" funciona,
assim, como ruína da metafísica, caracterizada pelo
filósofo alemão como campo de oposições duais
regidas pela negatividade.
O pudor, virrude bem nietzschiana, é
arrancado ao solo moral-metafísico, passando
a funcionar como sagaz adesão ao jogo sedutor
e cosmético das aparências, como expressão de
um salutar pathos da distância com relação ao
mau-gosto inerente à pretensa intimidade con-
sigo mesmo e com o outro. Pudor, nesse caso,
eqüivale a ater-se aos sedutores véus da super-
fície por conta de uma suspeita alegremente
cética e maliciosa com relação à crença em
"essências por trás".
Tal pudor filosoficamente produtivo remete
à ausência de fundo ou de fundamento associada à
verdade-mulher, antípoda da "vontade de verdade"
que rege a tradição filosófica ocidental. Eis o que se
lê no parágrafo 27 de Crepúsculo dos ídolos (seção
"Sentenças e dardos"), igualmente retomado por
Derrida: "Considera-se a mulher profunda. - Por
quê? Porque nela nunca se chega ao fundo (aufden
Grund kommen). A mulher nem chega a ser rasa
{flach)". Alheia ao solo dualista metafísico, ela não
pode ser profunda; tampouco seu oposto - rasa.
13

Flach remete, em alemão, a "plano", "raso", "chato"


(em francês, piai), mas igualmente a desinteres-
sante, sem espírito {geistlos). Espirituosa, a verdade-
mulher zomba da falta de jeito de todo filósofo
dogmático, que, como afirmado no prólogo de
Além do bem e do mal, por total falta de tato e faro
não consegue conquistá-la.
Pensador antidogmático que insistiu no falo-
gocentrismo expresso em nossa tradição filosófica e
cultural, Derrida se candidata a potente conquista-
dor dessa verdade-mulher. Com seu estilo-estilete,
aproveita para dar estocadas certeiras em certo
feminismo movido pelo desejo de ocupar o mesmo
lugar do homem, decalcando-o, mimetizando-o.
Nesse sentido, Derrida não deixou de contribuir,
nos anos 70 do século passado, para incitar esse
movimento a se desatrelar de impulsos dogmati-
zantes ou essencializantes.
Em Esporas Derrida reedita seu vínculo com
outro filósofo de que seu pensamento é tributário:
Heidegger. Como afirma o pensador francês, "é a
partir de certa paisagem heideggeriana, com seus
plenos e lacunas, suas saliências e reentrâncias" (p.
52), que opera esse retorno aos textos de Nietzsche.
Articulando desde o início do livro a filosofia de
Nietzsche e certas noções e movimentos de pen-
samento heideggerianos (tais como Entfernung,
remetido à distância, e velamento), Derrida assi-
nala um salto ou lacuna na minuciosa leitura efe-
tuada por Heidegger acerca de um conhecido pará-
grafo de Nietzsche ("História de um erro").
14

Derrida mostra como Heidegger seguiu


"a operação de Nietzsche no que ela pode ter de
excessiva aos olhos da metafísica e do platonismo"
(p. 57). Assinala, entretanto, que, ao citar e comen-
tar em detalhes certa passagem da "História de
um erro" em que Nietzsche afirma que a idéia "se
torna mulher", Heidegger pula, contorna a mulher.
Segundo Derrida, "todos os elementos do texto,
sem exceção, são analisados, salvo o devir-mulher
da idéia" (p. 60). Derrida parte então da inspiração
filosófica de matriz heideggeriana para se indagar
justamente tanto sobre esse "tornar-se mulher da
idéia" quanto sobre o gesto filosófico de Heidegger,
fazendo intervir na discussão o conceito psicanalí-
tico de castração.
Deixo aos leitores o delicado trabalho de
acompanhar os sinuosos meandros dessa via, as
maneiras sutis, consistentes e ardilosas com que
Derrida desdobra a leitura de Nietzsche realizada
por Heidegger, assinalando suas lacunas e limites,
mas ao mesmo tempo reatando ambas as perspec-
tivas antimetafísicas. Cabe entretanto observar as
implicações da presença ou da ausência da mulher
no que concerne ao estilo em que se pensa/escreve.
Tanto o silêncio de Heidegger acerca desse "tornar-
se mulher" quanto a ênfase na mulher presente nos
textos de Nietzsche e de Derrida repercutem em
questões de estilo.
Como se pode ler em Esporas, "sem paródia
discreta, sem estratégia de escritura [...] portanto
sem estilo" (p. 69), a inversão retorna ao mesmo,
15

reinstitui o "mesmo", reentronando a lógica da


identidade e reduzindo-se ao tom estridente das
meras antíteses. Arguto leitor de Nietzsche e de
Heidegger, Derrida leva adiante o gesto heidegge-
riano a contrapelo, sugerindo que a filosofia niet-
zschiana, absorvida por "pequenas orelhas"2, lida
com o riso e o tato requeridos pela verdade-mulher,
opera de fato a ultrapassagem da metafísica.
Com sutileza, Derrida mostra ainda que a
impossibilidade de se sistematizar a mulher em
Nietzsche articula-se à heterogeneidade paródica
dos estilos (p. 71). Potência ambígua e indecidível,
a mulher se aproximaria do pharmakon, remédio-
veneno igualmente referido à escrita, tal como res-
saltado por Derrida no conhecido texto publicado
entre nós sob o título A farmácia de Platão. Náo
se trata, entretanto, de qualquer paródia, mas de
uma paródia discreta. Pois, como qualquer outro
recurso, tanto a paródia quanto o simulacro podem
funcionar a serviço da verdade ou da castração (p.
72). Em sua mais baixa potência, remeteriam ainda
ao contrassenso de um culto a Nietzsche.
Como a própria filosofia nietzschiana sugere
e Derrida realça, a paródia discreta — avessa à estri-
dência que marca o estilo de todo impulso dogma-
tizante, de todo culto ou seita - é perpassada por
um tom bufo, simultaneamente malicioso e ingê-
nuo. Derrida lembra que a paródia "supõe sempre
algo de ingênuo", a "vertigem de um não-domínio,
2
Cf. o quinto capítulo do meu livro Nove variações sobre temas
nietzschianos (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002).
16

uma perda de conhecimento" (p. 72). Não se trata de


lutar quixotescamente em busca do "verdadeiro"
Nietzsche; tampouco de tentar salvá-lo de leituras
insipientes. A perspectiva de Derrida não aplaina o
texto; enfatiza suas inúmeras oscilações e variações,
suas estratégias para escapar a todo dogmatismo,
igualmente àquele que pode se manifestar na lei-
tura da obra do próprio Nietzsche.
Derrida salienta que a indecidibilidade do
tema, suas variações na obra do filósofo remetem
a certa cegueira de Nietzsche nessas questões. Uma
cegueira "regular, ritmada", que escande a obra e
corrobora seu tom bufo, sua malícia ingênua. Se
a questão da mulher "suspende a oposição deci-
dível entre o verdadeiro e o não-verdadeiro" (p.
78), aproximar-se do pensamento de Nietzsche
implica tolerar (ou mesmo desejar) o arejamento
do indecidível, gozar a discrição da paródia. Algo
semelhante se pode dizer sobre ler Heidegger, que
requer o gosto pela "pane" (um dos sentidos possí-
veis da expressão "être en rade", que abre a sessão
"O golpe de dom") e seus enigmas.
Curiosa e significativamente, o próprio estilo
de Derrida neste livro se contamina por momentos
com a pane, com o indecidível, com um tom autoi-
ronizante. Com efeito, na última sessão de "Esqueci
meu guarda-chuva", introduz-se em Esporas a autor-
reflexividade. Eis o trecho: "no entanto, meu discurso
era tão claro quanto esqueci meu guarda-chuva. Ele
possuía mesmo algumas virtudes ou alguns pesos
retóricos, pedagógicos, persuasivos, não é?"
17

No lugar do elogio metafísico das transparên-


cias, o texto de Derrida se encerra aproximando-se
do feminino, permanecendo secreto "não porque
detenha um segredo", mas justamente porque este
sempre pode lhe faltar (p. 101). Ou ainda, simu-
lando "uma verdade escondida em suas dobras"
(p. 101). Demolindo a crença em uma suposta "tota-
lidade do texto de Nietzsche", Derrida conclui o
livro convocando o riso que atravessa textos aber-
tos, maliciosos, indecifráveis. Textos expostos sem
teto ou para-raios. Dobrados e desdobráveis como
guarda-chuvas, nos quais se é convidado a avançar
sem guarda-chuvas protetores - literal e definitiva-
mente esquecidos.
19

Da Basiléia, em setenta e dois {Nascimento


da Tragédia), Nietzsche escrevia a Malvida von
Meysenburg.

Recorto, em sua carta, as formas de um


excerto - errático.
"...finalmente, o pequeno pacote a vós desti-
nado [ou a pequena dobra: mein Bündelchen fiir
sie. Nunca se saberá o que foi, entre eles, assim cha-
mado?] encontra-se pronto e, finalmente, me ouvi-
reis de novo depois de eu ter estado sumido em um
verdadeiro silêncio sepulcral (Grabesschweigen)...
Nós poderíamos celebrar um reencontro, do gênero
de nosso concilio da Basiléia (Basler Konzil), do
qual eu guardo a lembrança em meu coração... Na
terceira semana de novembro, e por oito dias, anun-
cia-se a mim uma visita senhorial (ein herrlicher
Besuch) - aqui, na Basiléia! A 'visita em si' (der
'Besuch an sich'), Wagner mit Frau, Wagner e sua
mulher. Eles deram uma grande volta, ao longo da
qual pretendiam visitar todos os teatros importan-
tes da Alemanha, mas também, dada a ocasião, o
célebre DENTISTA da Basiléia, com quem contraí,
20

então, uma enorme dívida de gratidão (dem ich


also sehr viel Dank schulde). [Nesta longa carta,
dentista é uma das três únicas palavras sublinha-
das]... Com efeito, eu cheguei a me tornar, com
meu 'Nascimento da tragédia', hoje, o filólogo
mais indecente [o mais escabroso, der anstóssigste
Philologe des Tages] e afazer da tarefa daqueles que
gostariam de aliar-se a mim um verdadeiro prodígio
de temeridade, e tanta unanimidade é o que me faz
conhecer minha sentença de morte (über mich den
Stab zu brechen)."

(7 de novembro de 1872)
A questão do estilo

O título destinado para esta seção seria a


questão do estilo0.

Mas - a mulher será meu tema.

Restaria perguntar-se se isso vem a ser o


mesmo - ou o outro.

A "questão do estilo", sem dúvida, vocês


devem ter reconhecido, é uma citação4.

Eu quero registrar que não anteciparei aqui nada


que não pertença ao espaço aberto ao longo desses dois

5
Este título remete à primeira versão, como à primeira oca-
sião deste texto: o colóquio no qual Nietzsche foi o tema, em
Cerisy-la-Salle, em julho de 1972. A segunda versão, esta que
apresentamos aqui, foi inicialmente publicada nas edições
Corbo e Fiore (Veneza, 1976, com prefácio de Stefano Agosti
e ilustrações de François Loubrieu), em uma publicação qua-
drilíngue (francês, italiano, inglês e alemão). NA.
4
Referência ao nome de um dos capítulos do livro Versions du
Soleil, de Bernard Pautrat. NT.
22

últimos anos pelas leituras que abrem uma fase nova em


um processo de inrerpretação desconsrrutora, ou seja,
afirmativa.
Se eu náo cito esses trabalhos5, aos quais
devo muito — e nem sequer Versions du Soleil que
me deu este título, inaugurando um campo de pro-
blemas até a margem na qual, próximo da deriva,
eu me manterei - , isto não será nem por omissão
nem por presunção de independência. Sobretudo,
será para náo fragmentar a dívida e pressupô-la, a
cada instante, em sua totalidade.

5
Seus "autores" (Sarah Kofman, Philippe Lacoue-Labarthe,
Bernard Pautrat, Jean-Michel Rey) assistiam a esta seçáo. NA.
Distâncias

A questão do estilo é sempre o exame, a


pesagem de um objeto pontiagudo.
Por vezes, apenas de uma pluma.
Mas também de um estilete, até mesmo de
um punhal. Com a ajuda dos quais se pode, cer-
tamente, atacar cruelmente isto a que a filosofia
chama pelo nome de matéria ou de matriz, para
aí cravar uma marca, para aí deixar uma impres-
são ou uma forma, mas também para repelir uma
forma ameaçadora, para mantê-la à distância,
reprimi-la, proteger-se dela - dobrando-se, então,
ou redobrando-se, em fuga, por detrás dos véus e
das velas.6

6
Derrida recorre a uma característica ambígua da palavra
voile: no masculino, le voile é o véu, essa peça do vestuário
feminino que aparece nas metáforas de Nietzsche como aquilo
que oculta. No feminino, Ia voile é a vela de um veleiro, pala-
vra que Derrida associa à força que move a embarcação mar
adentro. Essa ambivalência intraduzível da palavra voile serve
aos propósitos de Derrida: questionar as diferenças sexuais
como mera dualidade, oposição binaria e metafísica. NT.
24

Deixemos o élitro7 flutuar entre masculino


e feminino.
A língua francesa nos assegura este gozo,
contanto que não se articule 8.
E quanto aos véus e as velas — aí nos encontra-
mos - , Nietzsche teria praticado todos os gêneros.
O estilo avançaria, então, como a espora, por
exemplo, como o esporão de um barco a vela: o
rostrum, essa saliência que se prolonga, visando ao
ataque para ferir a superfície adversa.
Ainda, sempre em termos marítimos, espora
é também como se chama essa ponta rochosa que
"rompe as ondas na entrada de um porto".

Deste modo, o estilo pode também, com sua


espora, se proteger contra a ameaça terrificante,
cega e mortal (do) que se apresenta, se dá a ver
com teimosia: a presença, portanto, o conteúdo, a
coisa mesma, o sentido, a verdade - a menos que
isso não seja. já o abismo deflorado em todo este
desvelamento da diferença.
Já, nome disto que se apaga ou, antecipada-
mente, se subtrai, deixando, contudo, uma marca,
uma assinatura subtraída naquilo mesmo do que se
7
Élitro, denominação para asa de insetos, seria uma metáfora
para o movimento de oscilação entre dois lugares, como o cair
de uma pluma. NT.
8
Articular, no sentido de articulação, mas também no sentido
da colocação de artigos, o que demarcaria a diferença "articu-
lada" entre masculino e feminino. NT.
25

retira - o aqui presente - e do que portanto teria


que ser levado em conta.
Isto é o que eu farei, mas essa operação não
se deixa simplificar nem se desfiar de um só golpe.

Espora, em frâncico ou alto-alemão sporo, em


gaélico spor e em inglês spur. Em "les Mots anglais",
Mallarmé o aproxima de spurn, depreciar, repudiar,
rejeitar com desprezo. Não é uma homonímia fas-
cinante, mas a operação, de uma língua para outra,
de uma necessidade histórica e semântica; o spur
inglês, a espora, é a "mesma palavra" que o Spur
alemão: rastro, sulco, indício, marca.

O estilo esporante - o objeto longo, oblongo,


arma de parada militar, enquanto que perfura, a
ponta oblongifólia, extraindo sua potência apotro-
paica dos tecidos, telas e véus que se vendam, que
se enrolam e desenrolam ao seu redor - é também,
não esqueçamos dele, o guarda-chuva.
Por exemplo, mas não esqueçamos dele.

E para insistir nisto que imprime a marca da


espora estilada na questão da mulher - eu não digo,
segundo a locução tão freqüentemente consagrada, a
figura da mulher -, aqui se tratará de vê-la enlevar-se,
a questão da figura sendo ao mesmo tempo aberta e
26

fechada, por isto que se chama a mulher; para anun-


ciar, também, desde agora, isto que regula o jogo das
velas (por exemplo, de um navio) sobre a angústia
apotropaica; para deixar, enfim, aparecer certa troca
entre o estilo e a mulher de Nietzsche, eis aqui algu-
mas linhas de A Gaia Ciência, de acordo com a bela
tradução de Pierre Klossowski:

"As mulheres e suas operações à distância" {Les


femmes et leur opérations à distance, ihre Wirkung in
die Ferne)?
"Ainda tenho orelhas? Não sou eu senão
uma orelha e nada mais?"
[Todas as interrogações de Nietzsche, e estas
relativas à mulher em particular, encontram-se enro-
ladas no labirinto de uma orelha, como mais adiante,
em A Gaia Ciência {Die Herrinnen der Herren, As
senhoras dos senhores10), uma cortina ou uma tape-
çaria, uma tela {Vorhang) se levanta ("nos descortina
possibilidades nas quais habitualmente não cremos"),
quando se eleva tal voz de contralto, profunda e
poderosa {eine tiefe mãchtige Altstimme), que parece,
como o melhor do homem na mulher {das Beste
vom Manne), superar a diferença dos sexos {über das
Geschlecht hinaus) e encarnar o ideal. Mas quando
essas vozes de contralto "representam o amante viril
ideal, Romeu, por exemplo", Nietzsche declara sua
9
Na tradução de Paulo César de Souza "Ar mulheres e o seu
efeito à distância" (GC60).
10
GC 70.
27

reserva: "Não cremos nesses amantes: essas vozes


têm ainda uma coloração maternal e doméstica,
justamente e sobretudo quando há amor no seu
timbre"].
"Não sou eu senão uma orelha e nada mais?
Em meio ao ardor da ressaca [jogo de palavras intra-
duzível, como se diz: Hier stehe ich inmitten des
Brandes der Brandung. Brandung, em afinidade
com o abrasamento de Brand, que significa também
a marca a ferro em brasa, é a ressaca, como traduz
Klossowski justamente, o retorno sobre elas mesmas
das ondas quando encontram as cadeias de rochas
ou se quebram sobre os arrecifes, as falésias, as espo-
ras etc], cujo retorno espumoso das flamas brancas
jorra até meus pés [então, eu sou também a espora]
- estas não são senão uivos, ameaças, gritos estriden-
tes que me assaltam, enquanto em seu antro mais
profundo, o antigo abalador da terra canta surda-
mente a sua ária [seine Arie singt, Ariadne não está
tão longe] como um touro que muge: fazendo isso,
com seu pé sísmico, ele bate até tal ponto que treme
o coração dos demônios dessas rochas esboroadas.
Então, como surgido do nada, diante do portal desse
labirinto infernal, aparece, distante apenas algumas
braças, um grande veleiro (Segelschiff), que passa
num silencioso deslizamento fantasmal. Oh, beleza
fantasmal! Que encanto exerce sobre mim? O que é?
Este esquife [Klossowski concentra aqui em uma só
palavra - esquif, esquife - todas as possibilidades de
"sich hier eingeschifft"] carregaria consigo o repouso
taciturno do mundo? Minha própria felicidade se
28

assenta lá, neste lugar tranqüilo - meu eu mais feliz,


meu segundo eu-mesmo eternizado? Não ainda
morto, mas já não mais vivendo? Deslizando e flutu-
ando, um ser intermediário, (Mittelwesen) espectral,
silencioso e visionário? Semelhante ao navio, que
com suas velas brancas plana por sobre o mar como
uma gigante borboleta? Ah! Planar sobre a existência!
(Über das Dasein hinlaufen!) E isto, é isto de que
se precisa! Teria, pois, este tumulto (Larm) feito de
mim um fantasioso (Phantasten)?Toda grande agita-
ção (Larm) nos leva a imaginar a felicidade na calma
e no longínquo (Ferne). Quando um homem, às vol-
tas com seu próprio tumulto, se encontra em meio à
ressaca (Brandung, de novo) de seus lances e projetos
(Würfen und Entwürfen), então, sem dúvida, ele vê
também deslizarem diante de si os seres encantados
e silenciosos, dos quais cobiça a felicidade e o retrai-
mento (Zurückgezogenheit: o redobrar-se sobre si
mesmo) - estas são as mulheres (es sind die Frauen)."
"Ele gosta de pensar que lá, junto às mulhe-
res, habitaria o seu melhor eu (sein besseres Selbst):
nestes lugares tranqüilos, o mais violento tumulto
{Brandung) se apaziguaria em um silêncio de morte
(Totenstillé) e a vida se tornaria o próprio sonho da
vida {über das Leben)."''
[O aforismo precedente, Wir Künstler!,
Nós, artistas!, que começa por: "Se amamos uma
mulher"12, descreve o movimento que comporta

" GC 60.
12
GC 59. A partir deste ponto, na tradução para o português
das obras citadas por Derrida, optou-se pelas edições brasilei-
29

simultaneamente o risco sonambúlico da morte, o


sonho da morte, a sublimação e a dissimulação da
natureza. O valor de dissimulação não se dissocia
da relação da arte com a mulher: " - imediatamente
o espírito e a força do sonho vêm sobre nós, e de
olhos abertos e indiferentes ao perigo, escalamos os
mais perigosos caminhos, rumo aos telhados e tor-
res da fantasia {Phantasterei), sem qualquer verti-
gem, como que nascidos para escalar - nós, sonâm-
bulos diurnos {wir Nachtwandler des Tages)\ Nós,
artistas! Nós, ocultadores do que é natural {wir
Verhehler der Natürlichkeit)\ Nós, maníacos da Lua
e de Deus {wir Mond- und Gottsüchtigen)[15 Nós,
incansáveis e silenciosos andarilhos {wir totenstil-
len, unermüdlichen Wanderer), em alturas que não
vemos como alturas, mas como nossas planícies,
nossas certezas!"]
"Porém, meu nobre sonhador, porém!
Mesmo no mais belo veleiro há muito ruído e
alarido {Làrm), e, infelizmente, muito alarido
pequeno e lamentável {kleinen erbãrmlichen Lãrm)\
O encanto e poderoso efeito das mulheres {der

ras. Neste caso, A Gaia Ciência, tradução de Paulo César de


Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. NT.
" Segundo a nota de Paulo César de Souza: "maníacos da Lua
e de Deus!": Mond- und Gottsüchtigen — "lunáticos, embria-
gados do divino", lunáticosy ebrios de Io divino, bramosi delia
luna e di Dio, lunatiques et chercheurs de Dieu, moonstruck and
God-struck. O adjetivo alemão mondsüchtig também significa
sonâmbulo" (GC n.28). A tradução de Klossowski, utilizada
por Derrida, também se refere a "nós, lunáticos e buscadores
de Deus". NT.
30

Zauber und die màchtigste Wirkung der Frauen) é,


para usar a linguagem dos filósofos, um efeito à
distância {de le faire sentir au loin, eine Wirkung
in die Ferne, uma operação à distância), uma actio
in distans: o que requer, antes e acima de tudo -
distância! {dazu gehôrt aber, zuerst und vor aliem -
Distanz!)"14

14
GC 60.
Véus

Sob qual passo se abre esta Dis-tanz?


A escritura de Nietzsche já a mimetiza, graças a
um efeito de estilo desviado entre a citação latina (actio
in distans), parodiando a linguagem dos filósofos, e o
ponto de exclamação, o hífen que deixa em suspenso
a palavra Distanzr. que nos convida, por uma pirueta
ou um jogo de silhueta, a nos mantermos longe destes
múltiplos véus que nos produzem um sonho mortal.
A sedução da mulher opera à distância, a dis-
tância é o elemento de seu poder.
Mas este canto, este charme, deve ser man-
tido à distância; deve-se manter a distância à dis-
tância, não apenas, como se poderia supor, para se
proteger contra essa fascinação, mas também para
experimentá-la.
E necessária a distância (que é necessária);
deve-se manter à distância (Distanzf). Isto que nos
falta, isto que nos falta fazer e isto que se assemelha
também a um conselho de homem para homem:
para seduzir e para não se deixar seduzir.
Se é necessário manter-se à distância a ope-
ração feminina (da actio in distans), isto que não se
32

resolve simplesmente com uma aproximação, salvo


a arriscar a morte mesma, é porque "a mulher" não
é, talvez, alguma coisa, a identidade determinável
de uma figura que se anuncia à distância, à distân-
cia de outra coisa, e da qual teria que se afastar ou
se aproximar. Talvez seja ela, como não-identidade,
náo-figura, simulacro, o abismo da distância, o dis-
tanciamento da distância, o corte do espaçamento,
a distância mesma, se ainda se pudesse dizer, o que
é impossível, a distância mesma.
A distância se distancia, o longe se afasta.
Dever-se-ia aqui recorrer ao uso heideggeriano
da palavra Entfernung: ao mesmo tempo o afas-
tamento, o distanciamento e o distanciamento
do distanciamento, o distanciamento da lon-
jura, o dis-tanciamento, a destruição (Ent-)
constituinte do longe como tal, o enigma velado
da proximidade.
A abertura afastada desta Entfernung dá
lugar à verdade, e a mulher aí se afasta de si mesma.
Não há essência da mulher porque a mulher
afasta e se afasta de si mesma.
Ela engole, vela pelo fundo, sem fim, sem
fundo, de toda essencialidade, toda identidade,
toda propriedade. Aqui, cego, o discurso filosófico
soçobra - deixa-se precipitar à sua perda.
Não há verdade da mulher, mas é porque este
afastamento abissal da verdade, esta não-verdade é
a "verdade". Mulher é um nome desta não-verdade
da verdade.
33

Eu defendo esta proposição a partir de alguns


textos, entre outros muitos.
Por um lado, Nietzsche retoma por sua
conta, de um modo que teremos que quali-
ficar, esta figura apenas alegórica: a verdade
como mulher ou como o movimento de véu do
pudor feminino. Um aforismo raramente citado
desenvolve a cumplicidade, mais que a unidade,
da mulher, da vida, da sedução, do pudor e de
todos os efeitos do véu {Schleier, Enthüllung,
Verhüllung). Problema temível disto que não se
desvela senão uma só vez, das enthüllt sich uns
einmal. E eis aqui somente as últimas linhas: "...
pois a profana realidade não nos dá o belo, ou
o doa somente uma só vez! Quero dizer que o
mundo é pleno de coisas belas, e contudo, pobre,
muito pobre de belos instantes e revelações
{Enthüllungen) de tais coisas. Mas talvez esteja
nisso o mais forte encanto {Zauber) da vida: há
sobre ela, entretecido de ouro, um véu (golddur-
chwirkter Schleier) de belas possibilidades, cheio
de promessa, resistência, pudor, desdém, com-
paixão, sedução. Sim, a vida é mulher!"15.
Mas, por outro lado, o filósofo que crê
nesta verdade que é mulher, crédulo e dogmático,
que crê tanto na verdade quanto na mulher, não
entendeu nada.
Não entendeu nada nem da verdade nem
da mulher.

'•• GC 339.
34

Pois, se a mulher é verdade, ela sabe que náo


há verdade, que a verdade náo tem lugar e que náo
se tem a verdade. Ela é mulher na medida em que
não crê na verdade, portanto, nisto que ela é, nisto
que se crê que ela seja, e que, portanto, ela não é.
Assim opera a distância quando ela furta a
identidade própria da mulher, desmonta o filósofo
cavaleiro, a menos que este não receba da própria
mulher duas esporas, golpes de estilo ou golpes
de punhal, cuja troca embaralha, então, a iden-
tidade sexual: "Se alguém não pode e, portanto,
não quer se defender, isso não chega a constituir
uma vergonha a nossos olhos; mas menospre-
zamos quem não possui nem a capacidade nem
a vontade de vingar-se - não importando se é
homem. Poderia uma mulher nos prender (nos
"cativar", como se diz), se não acreditássemos que
em algumas circunstâncias ela saberia manejar um
punhal (qualquer tipo de punhal, irgendeine Art
von Dolch) contra nósi Ou contra si mesma: o que,
em certos casos, seria a vingança mais áspera (a
vingança chinesa)" {Capacidade de vingança16). A
mulher, a amante, a mulher amante de Nietzsche
assemelha-se às vezes à Pentesiléia. (Ao lado de
Shakespeare, Kleist aparece citado, em A vontade
de potência, a propósito da violência infligida ao
leitor e do "prazer da dissimulação". Kleist teria
escrito também uma "Prece de Zoroastro".) Sexo
velado em transparência, a ponta revirada contra

16
GC 69.
35

si, é também a Lucrécia adagada de Cranach17.


Como pode a mulher, sendo a verdade, não acre-
ditar na verdade? Mas também, como ser a ver-
dade acreditando ainda nela?
Abertura do Para-além: "Supondo que a ver-
dade seja uma mulher - não seria bem fundada a
suspeita de que todos os filósofos, na medida em
que foram dogmáticos, entenderam pouco de
mulheres (sich schlecht aufWeiber verstanden, são
mal entendidos em mulheres)? De que a terrível
seriedade, a desajeitada insistência com que até
agora se aproximaram da verdade, foram meios
inábeis e impróprios (ungeschickte und unschickliche
Mittel) para conquistar uma dama (Frauenzimmer,
termo desdenhoso: uma moça fácil)?"18.

17
O autor refere-se ao suicídio de Lucrécia, dama romana semi-
lendária cuja tragédia encontra-se na origem da fundação da
República Romana (509 a.C). Lucas Cranach, tanto o velho
(1472-1553) quanto o jovem (1515-1586) - entre outros pin-
tores -, dedicaram-lhe inúmeras telas. Conta-se que Lucrécia era
uma bela jovem, esposa de um nobre romano, quando foi violada
por Sexto, filho de Tarquínio, o Soberbo, último rei de Roma.
Após relatar o fato ao marido e ao pai e pedir vingança, a jovem se
mata com uma adaga (508 a.C). NT.
18
Além do bem e do mal: prelúdio a umafilosofiado futuro, tradu-
ção de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
1992. "Prólogo", pág. 07. NT.
Verdades

Nietzsche, neste instante, desvia a verdade da


mulher, a verdade da verdade: "E certo que ela não
se deixou conquistar - e hoje toda espécie de dog-
matismo está de braços cruzados, triste e sem ânimo.
Se é que ainda está de pé!"19
A mulher (a verdade) não se deixa conquistar.
Na verdade, a mulher, a verdade não se
deixa conquistar.
Isto que na verdade não se deixa conquis-
tar é - feminino, isto que não se deve se apres-
sar a traduzir por feminilidade, a feminilidade da
mulher, a sexualidade feminina e outros fetiches
essencializantes que são justamente o que se crê
conquistar quando se permanece na tolice do filó-
sofo dogmático, do artista impotente ou do sedu-
tor sem experiência.
Este distanciamento da verdade que se retira
de si própria, que se suspende entre aspas (maqui-
nação, grito, voo e garras de um grou20), tudo isto

19
ABM, prólogo.
20
A palavra grue, em sentido popular, pode também apresen-
tar o sentido de "prostituta". NT.
38

que vai obrigar, na escrita de Nietzsche, a coloca-


ção da "verdade" entre aspas - e, como conseqüên-
cia rigorosa, de todo o resto - , isto que vai, então,
inscrever a verdade - e, como conseqüência rigo-
rosa, inscrever em geral, digamos que não seja o
feminino: mas a "operação" feminina.
Ela (se) escreve.
E a ela que regressa o estilo.
Mais ainda: se o estilo era o homem (como
o pênis seria, segundo Freud, "o protótipo normal
do fetiche"), a escritura seria a mulher.

Todas estas armas circulam de mão em mão,


passando de um polo ao outro - e o que permanece
é a questão que eu trato aqui neste momento.

Não se deveria conciliar estas proposições de


aparência feminista com o enorme corpus do antife-
minismo encarnado em Nietzsche? A congruência,
palavra que eu oporei aqui, por convenção, a coe-
rência, é bastante enigmática, mas rigorosamente
necessária. Esta seria, no mínimo, a tese da pre-
sente comunicação.
Verdade, a mulher é o ceticismo e a dissi-
mulação velante, eis isto que se deveria poder pen-
sar. A o"KSV|AÇ {sképsis) da "verdade" tem a idade da
mulher: "Receio que as mulheres que atingiram a
velhice {altgewordene Frauen) sejam, no recôndito
39

de seu coração [segundo Klossowski, nas dobras


mais secretas de seu coração], mais céticas do que
todos os homens: elas crêem na superficialidade
da existência como a própria essência, e toda vir-
tude e profundidade, para elas, é apenas encobri-
mento [Verhüllung, para Klossowski, velamento]
dessa 'verdade', o desejável encobrimento de um
pudendum - logo, questão de decência e pudor, e
nada mais!"21

A "verdade" não seria mais que uma superfí-


cie, ela não se tornaria verdade profunda, crua, dese-
jável, senão pelo efeito de um véu: que cai sobre ela.
Verdade não suspensa pelas aspas e que recobre a
superfície de um movimento de pudor.
Bastaria suspender o véu ou deixá-lo cair
de um outro modo para que não houvesse mais
verdade ou apenas a "verdade" - assim escrita. O
véu/cai.

Porque, então, o susto, o medo, o "pudor"?


A distancia feminina abstrai de si mesma a ver-
dade suspendendo a relação com a castração. Suspender
como se poderia tensionar ou estender uma tela, uma
relação, etc, que se deixa ao mesmo tempo - suspen-
dida - na indecisão. Na É7tOYj| (époké).
21
Céticos, GC 64; Cf. também, sobretudo, o final do Prólogo
de A Gaia Ciência .
40

Relação suspensa com a castração: não com a


verdade da castração, na qual a mulher não acredita,
nem na verdade como castração, nem na verdade-
castração. A verdade-castração é justamente o pro-
blema [affàir] do homem, a problematização mas-
culina que nunca é bastante velha, bastante cética
ou dissimulada, e que, em sua credulidade, em sua
tolice (sempre sexual, e que, ocasionalmente, se
representa com a esperteza de um mestre), se cas-
tra, segregando o chamariz da verdade-castração.
(E neste ponto que se deveria, talvez, interrogar -
dècapitonner22 - o desdobramento metafórico do
véu; da verdade que fala, da castração e do falo-
gocentrismo no discurso lacaniano, por exemplo.)

22
A palavra francesa capitonner foi abrasileirada como capi-
tonê e diz respeito a um tipo de estofamento dividido em
losangos ou quadrados marcados por botões ou pespontos
(Aulete). Os dicionários não prevêem, no entanto, o uso de
"descapitonê", possibilidade de tradução literal do termo
dècapitonner usado por Derrida. "Descapitonê" teria o sen-
tido de desacolchoar, soltar os pontos de ligação. A opção
de deixá-lo no original foi motivada também pelo grande
número de referências que o termo capitonner carrega. A ima-
gem do ponto de capitonê (point de capiton) foi usada por
Ferdinand de Saussure no Curso de Lingüística Geral como
metáfora para a ligação entre significante e significado. Em
Lacan, a figura do ponto de capitonê (point de capiton, eventu-
almente traduzido como ponto de basta) foi usada no seminário
III para se referir ao número mínimo de pontos de ligação
entre o significante e significado necessários para que um ser
humano seja tido como normal. O que formaria o psicótico
seria a incapacidade de costura desses pontos. (LACAN, J. As
psicoses. Tradução de Aluísio Menezes. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editora, 1988). NT.
41

A "mulher" - a palavra é datada - não acre-


dita mais no verdadeiro reverso da castração, na
anticastração. Ela é por demais ardilosa para isso,
e ela sabe - dela, de sua operação, ao menos, nós
(mas quem, nós?), deveríamos aprender - que
uma tal inversão lhe tiraria toda possibilidade de
simulacro, que daria de fato no mesmo e a ins-
talaria mais seguramente do que nunca na velha
máquina, no falogocentrismo assistido de seu
companheiro, imagem invertida dos pupilos 23 ,
aluno bagunceiro, ou seja, ela se tornaria discípulo
disciplinado do mestre.
Ora, a "mulher" necessita do efeito de castra-
ção, sem o qual ela não saberia seduzir nem susci-
tar o desejo - mas ela, evidentemente, não acredita
nisso. E "mulher" o que não acredita nisso e que
joga. Em jogo: um novo conceito ou uma nova
estrutura da crença que visa a rir. Do homem -
ela sabe, com um saber ao qual nenhuma filosofia
dogmática ou crédula poderia se comparar, que a
castração não tem lugar.
Fórmula a se deslocar muito prudente-
mente. Ela marca, de início, que o lugar da cas-
tração não é determinável, marca indecidível ou
não-marca, margem discreta de conseqüências
incalculáveis, e uma entre elas eu tentei apon-
tar em outro lugar 24 , retornando à equivalência
estrita da afirmação e da negação da castração,
da castração e da anticastração, da assunção e da
23
E também das pupilas. NT.
24
La Dissémination (Le Seul, 1972), pág. 47 adiante. NA.
42

denegaçáo. A desenvolver-se mais tarde, sob o


título de o argumento do espartilho [1'argument de
Ia gaine25], deslocado do texto de Freud sobre o
fetichismo.

25
Cf. Glas (Galilée, 1974), pp. 234 sq, pág. 252 sq. NA. [No
texto sobre fetichismo, Freud argumenta que o fetiche pelas
roupas íntimas femininas representaria o último momento
em que a mulher ainda pode ser vislumbrada como fálica.
Sem as roupas íntimas, a castração da mulher se desnuda ].
Enfeites

Se ela acontecesse, a castração seria essa sintaxe


do indecidível assegurando, anulando e igualando
todos os discursos em pró e contra. E o golpe em falso,
que não se tenta nunca, aliás, sem interesse. Daí a
expressão "Skepsis da mulher" [Skepsis des Weibes].

A partir do momento em que ela rasga o véu


do pudor ou da verdade, no qual se quis envolver,
mantendo-a "na maior ignorância possível in eroticis
[em questões eróticas]"26, seu ceticismo não tem mais
limite. Que se leia Von der weiblichen Keuschheit {Da
castidade feminina): no "amor e vergonha em con-
tradição", na "inesperada proximidade entre deus e
animal", entre "o enigma desta solução" e "a solução
deste enigma", "a derradeirafilosofiae o ceticismo da
mulher se ancoram". E neste vazio que ela lança sua
âncora, {die letzte Philosophie und Skepsis des Weibes
an diesem Punkt ihreAnker wirfi).
A "mulher" se interessa, deste modo, tão pouco
pela verdade, ela acredita tão pouco nela, que a ver-
dade sobre si mesma não lhe diz mais respeito.
26
GC71.
44

É o "homem" que acredita que seu discurso


sobre a mulher ou sobre a verdade - tal é a questão
topográfica que eu esboçava, que se esquivava tam-
bém, como sempre, há pouco, quanto ao contorno
indecidível da castração - diz respeito à mulher. Que
a circunvê.

É o "homem" que acredita na verdade da


mulher, na mulher-verdade.
E, na verdade, as mulheres feministas, contra as
quais Nietzsche multiplica seu sarcasmo, são homens.
O feminismo é a operação pela qual a
mulher quer parecer com o homem, com o filó-
sofo dogmático, reivindicando a verdade, a ciência,
a objetividade, quer dizer, com toda a ilusão viril, o
efeito de castração que a isto se junta.

O feminismo quer a castração - também da


mulher. Perda de estilo.

Nietzsche denuncia bem, no feminismo, a falta


de estilo: "Não é de péssimo gosto que a mulher se
disponha de tal modo a ser científica (wissenschaftlich)?
Até agora a tarefa de esclarecer (Aufklãreri) foi, por feli-
cidade, coisa de homens, dom dos homens (Mànner-
Sacbe, Mãnner-Gabe) - ficava entre nós'".27
27
ABM 232, cf. também 233.
45

É verdade que em outro lugar28 - ainda que


não seja de todo contraditório — o homem de ciên-
cia mediano, aquele que não cria, que não dá à luz,
aquele que se contenta, em suma, em ter a ciência
na ponta da língua, cujo "olho é como um lago liso
e relutante", mas que pode se converter em "olhos
de lince para o que existe de baixo nas naturezas cuja
altura não pode alcançar", esse homem estéril da
ciência é comparado a uma solteirona.

Nietzsche, o que se pode verificar em todos


os lugares, é o pensador da gravidez 29. O que ele
louva no homem não é menos do que na mulher.
E levando em conta que ele chorava facilmente e
falava de seu pensamento como uma mulher grá-
vida, eu o imagino muitas vezes vertendo lágrimas
sobre seu ventre 30.
28
ABM 206.
29
Para ilustrar a tese de Derrida sobre a "gravidez" de Nietzsche,
remetemos o leitor a algumas passagens de Ecce Homo, nos quais
Nietzsche, definitivamente, assume Zaratustra como seu "filho":
"Contarei agora a história do Zaratustra. (...) resultam então
dezoito meses de gravidez. Esse número exato de dezoito meses
poderia sugerir, entre os budistas pelo menos, que no fundo
sou uma fêmea de elefante. (...) Apesar disso, e como que para
demonstrar minha tese de que tudo decisivo acontece apesar de
tudo, foi nesse inverno e nesse desfavorecimento das circuns-
tâncias que meu Zaratustra nasceu" {Ecce homo: como alguém
se torna o que é, Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995, págs. 82-83). NT.
x
"As mães - Os animais não pensam nas fêmeas da mesma
forma que os homens: para eles, a fêmea é ser produtivo. Não
46

"...ficava entre nós'; e afinal, com tudo


o que as mulheres escreveram sobre a mulher',
é lícito duvidar que a mulher queira [Nietzsche
sublinha] ou possa querer {will und wollen kann)
esclarecimento {Aufklàrung) sobre si {eigentlich,
propriamente)... Se com isso ela não busca para si
um novo enfeite {einen neuen Vutzfür sich) — creio
que enfeitar-se {Sich-Putzen) é parte do eterno-
feminino, não? - , então ela quer despertar temor
- quer talvez dominar {Herrschaft). Mas não quer a
verdade {Aber es will nicht Wahrheit): que interessa
à mulher a verdade? Desde o início nada é mais
alheio, mais avesso, mais hostil à mulher do que a
verdade - sua grande arte é a mentira, seu maior
interesse, a aparência {Schein) e a beleza".31

existe amor paterno entre eles, mas algo como amor aos filhos
de uma amada e habituaçáo a eles. As fêmeas têm, nos filhos,
satisfação do seu desejo de domínio, uma propriedade, uma
ocupação, algo que lhe é compreensível e com que se pode
falar: tudo isso é amor materno - comparável ao amor do
artista pela sua obra. A gravidez tornou as mulheres mais bran-
das, mais pacientes, mais temerosas e dispostas à submissão; de
igual modo, a gravidez espiritual produz o caráter contempla-
tivo, que é aparentado ao caráter feminino: são as mães mascu-
linas. - Para os animais, o sexo belo é o masculino." (GC 72).
A imagem da mãe determina, então, os traços da mulher. Eles
destinam-se, predestinam-se desde seu âmago. H D H 380:
"Vindo da mãe (Von der Mutter hei). — Todo indivíduo traz
em si uma imagem de mulher que provém da mãe: é isso que
o leva a respeitar as mulheres, a menosprezá-las ou a ser indi-
ferentes a elas em geral" (Humano, demasiado humano: um
livro para espíritos livres, tradução de Paulo César de Souza.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000). NA.
31
ABM 232.
A simulação

Todo o processo da operação feminina se


espaça em aparente contradição.
A mulher é, contraditoriamente, duas vezes
o modelo, ela é louvada e condenada ao mesmo
tempo. Como a escritura faz regularmente, e não
por acaso, a mulher dobra o argumento do suple-
mento [1'argument du procureur] à lógica do caldei-
rão01. Modelo da verdade, ela goza de uma potência
sedutora que regula o dogmatismo, desbaratina e
bota para correr os homens, os crédulos, os filó-
sofos. Mas, considerando-se que ela não acredita
mais, ela, na verdade, encontrando no entanto
seu interesse nesta verdade que não a interessa, ela
é ainda o modelo; desta vez, o bom modelo, ou
melhor, o mau modelo considerado como o bom
modelo: ela joga com a dissimulação, o enfeite, a
mentira, a arte, afilosofiaartista; ela é uma potência
de afirmação. Se se a condena, ainda, é na medida
em que, do ponto de vista do homem, ela nega essa

32
Referência ao texto de Freud "O chiste e sua relação com o
inconsciente". A lógica do caldeirão serve como exemplo de
sentenças que são válidas por si, mas que, reunidas, excluem-
se mutuamente. NT.
48

potência afirmativa, vindo a mentir por acreditar


ainda na verdade, refletindo especularmente o dog-
matismo tolo que ela provoca.

Mediante o elogio da simulação, do "prazer


de simular" (die Lustan der Verstellung), do histrio-
nismo, do "perigoso conceito de artista", A Gaia
Ciência inclui entre os artistas, que são sempre
especialistas em simulação, os judeus e as mulhe-
res. A associação do judeu e da mulher não é, pro-
vavelmente, insignificante. Nietzsche os trata com
freqüência paralelamente, o que nos remeterá, tal-
vez, uma vez mais, ao motivo da castração e do
simulacro, inclusive do simulacro de castração no
qual a circuncisão seria a marca, o nome da marca.
Final do aforismo sobre "o instinto histriônico":33
"qual o bom ator, nos dias de hoje, que não é judeu?
Também o judeu literato congênito, que efetiva-
mente domina a imprensa européia, exerce esse
poder em virtude de seus dons teatrais: pois o lite-
rato é essencialmente ator - ele faz o entendido', o
especialista. - Por fim, as mulheres: reflitam sobre
a história inteira das mulheres - [daqui a pouco,
esta história, que é a história alternada do histrio-
nismo e do histerismo, nós a releremos como uma
página na história da verdade] elas não têm de ser
atrizes, antes e acima de tudo? Ouçam os médicos
que hipnotizaram as mulheres (Frauenzimmer);
enfim, amem-nas - deixem-se 'hipnotizar' por elas!

"GC361.
49

Qual é sempre o resultado? Que elas 'dão-se por',


mesmo quando se dão }4 . [Dass sie 'sichgebetí, selbst
noch, wenn sie - sichgeben... Uma vez mais, estudar
o jogo dos travessões e não apenas das aspas.]... A
mulher é tão artística..."

Para aguçar a categoria, é necessário relem-


brar o momento deste elogio equivocado, tão pró-
ximo do requisitório, em que o conceito de artista
sempre se divide.
Há o artista histrião, a dissimulação afirma-
tiva, mas há também o artista histérico, a dissimu-
lação reativa que é parte do "artista moderno". Este
último, Nietzsche compara com "nossas pequenas
histéricas" e às "pequenas mulheres histéricas".
Parodiando Aristóteles, Nietzsche ataca as mulhe-
res pequenas.35 "E nossos artistas estão por demais
aparentados com as mulherzinhas histéricas! Mas
isso fala contra o 'hoje' e não contra o 'artista'!"
(Aforismo citado por Klossowski, Nietzsche e o
Círculo Vicioso).

Detenho-me por um momento sobre o


jogo do "dar", do "dar-se" e do "dar-se-para". Mais
adiante veremos os resultados.
•M NT. Em nota, o tradutor brasileiro informa que Nietzsche
joga com os dois sentidos do verbo "dar": no primeiro caso,
fazer passar-se por; no segundo, entregar-se.
35
GC 75, O terceiro sexo.
50

As questões da arte, do estilo, da verdade não


se deixam, então, dissociar da questão da mulher.
Mas a simples formação desta problemática comum
suspende a questão "o que é a mulher?". Não se
pode mais procurar a mulher, a feminilidade da
mulher ou a sexualidade feminina. Ao menos, não
se pode encontrá-las segundo uma modalidade
conhecida pelo conceito ou pelo saber, mesmo que
não se possa impedir de buscá-las.
"História de um erro"

Eu gostaria agora de anunciar que no lugar


onde ela atravessa, rumo ao corpo da mulher,
ao véu da verdade e ao simulacro da castração, a
questão do estilo pode e deve se medir de acordo
com a grande questão da interpretação do texto de
Nietzsche, da interpretação da interpretação, da
interpretação e mais nada; para resolvê-la ou para
desqualificá-la em seu enunciado.

Se se quer medir o alcance desta questão,


como dimensionar a leitura heideggeriana de
Nietzsche, qualquer que seja a sua importância
atual, qualquer que seja o esforço que se tenha feito
na França, por motivos determináveis, para ocul-
tar, contornar ou adiar essa avaliação?

Eu pronunciei muitas vezes a palavra castra-


ção sem ter, ao menos aparentemente, até aqui, me
apoiado em nenhum texto de Nietzsche. Volto a
isto agora.
52

Correndo o risco de surpreendê-los, é a par-


tir de uma certa paisagem heideggeriana, com seus
plenos e lacunas, suas saliências e reentrâncias, que
eu faço esse retorno. O grande livro de Heidegger
é muito menos simples em sua tese do que se tem
geralmente a tendência de dizer. Ele se abre, como
se sabe, sobre o problema da vontade de potência
enquanto arte e sobre a questão do "grande estilo".

A título de conotação ou acompanhamento,


eu lembro as três advertências de Heidegger. Elas
me parecem urgentes e não creio que tenham per-
dido seu valor.

1. Advertência contra o confusionismo esteti-


zante, cego tanto à arte quanto à filosofia, e que
gostaria de nos fazer concluir de tais proposições
nietzschianas, precocemente decifradas, que a era
do filósofo-artista, estando doravante aberta, o
rigor do conceito poderia se mostrar menos intra-
tável, que se poderia dizer qualquer coisa e militar
pela não-pertinência, o que sempre volta a reas-
segurar e a confirmar, a deixar fora de alcance a
ordem à qual se acredita opor-se; por exemplo, a
filosofia, mas também o poder, as forças dominan-
tes, suas leis, sua polícia - aos quais é preciso se
guardar de dizer a verdade.
53

2. Advertência contra a confusão entre o


"grande estilo" e o estilo "heróico-fanfarrão"
{heroisch-prahlerischen) que é, aliás, em sua exu-
berância pseudotransgressora, o próprio da classe
"culta", diz Nietzsche, que entende sempre com
essa palavra a classe inculta dos filisteus wagne-
rianos, "necessidade de pequenos burgueses",
comenta Heidegger, "com a veia da selvageria".

3. Necessidade de ler Nietzsche, questionando


sem cessar a história do Ocidente, porque sem isso,
sobretudo quando se pretende acabar com as ilu-
sões seculares, não se faz mais do que ruminar as
idéias recebidas e se permanece "sem apelo", "gol-
peados pela sentença da história" {Nietzsche, t. I,
págs. 117-184).

Deste mesmo capítulo, antecipo agora três


proposições. Elas não param o movimento de aná-
lise heideggeriana que nós devemos seguir aqui.

1. A velha estética teria sempre sido, segundo


Nietzsche, uma estética de consumidores: passivos
e receptivos. Dever-se-ia, portanto, substituí-la por
uma estética de produtores {erzeugenden, zeugen-
den, schaffenden). A uma estética feminina, então,
deveria suceder uma estética masculina. Como se
54

atesta, entre tantos outros textos, no aforismo 72 de


A Gaia Ciência, aos olhos de Nietzsche, bem como
de toda a tradição, a produção é masculina, e uma
mãe produtora é uma mãe masculina. Heidegger
cita outro aforismo: "Nossa estética era feminina
(eine Weibs-Aesthetik), no sentido de que apenas as
naturezas receptivas (die Emphãnlichen) à arte for-
mularam sua experiência [de] o que é o belo?'. Em
toda a filosofia, até nossos dias, o artista faz falta
{fehlt der KünstlerY (Fr. 811 trad. fr. p. 70).
Dito de outra forma, ou melhor, tradu-
zido (Heidegger não o disse), até aqui, diante
da arte, o filósofo da arte, que está precisamente
sempre diante da arte, que não a toca, que, em
certos casos, se imagina artista e produtor de
obras, ao passo que se contenta em provocar a
arte, este filósofo é mulher: mulher estéril, cer-
tamente, e não "mànnliche Mutter" [mãe mas-
culina]. Diante da arte, o filósofo dogmático,
torpe cortesão, continua a ser, como o sábio de
segunda categoria, o impotente, uma espécie de
solteirona.
Mas Nietzsche se serve aqui do velho filo-
sofema denominado produção, com suas cono-
tações mais ou menos imperceptíveis e ingenu-
amente implicadas em criatividade, atividade,
formação e atualização, em uma palavra, pre-
sentação, em trazer à presença manifesta. E ele
inscreve este conceito patinado de metafísica
na equivalência tradicionalmente suposta, de
Aristóteles a Kant e até Hegel (em sua análise
55

bem conhecida da passividade do gozo clito-


riano), entre a produtividade ativa ou informa-
tiva, de um lado, e a viriiidade, do outro; entre a
passividade improdutiva e material, de um lado,
e a feminilidade, do outro. O que parece contra-
dizer, e nós voltaremos a isso, as outras proposi-
ções sobre a mulher.

2. O pensamento de Nietzsche sobre a arte seria,


seguindo Heidegger, "metafísico na sua inten-
ção mais íntima", pois a arte é para ele "a maneira
essencial na qual o ente se acredita como ente"
(trad. fr. p. 122).

3. Nietzsche parece proceder mais freqüente-


mente, no que se refere à metafísica e ao plato-
nismo, à relação platônica, a uma simples "inver-
são (Umdrehung) que teria consistido em colocar
ao contrário as proposições platônicas, quer dizer,
de cabeça para baixo", (trad. fr. p. 182).

Heidegger não se limita, como se diz comu-


mente dele, a este esquema. Não que ele o aban-
done pura e simplesmente. Não mais nele do que
em Nietzsche, o trabalho de leitura e de escrita não
é homogêneo e não pula sem uma estratégia do pró
ao contra. Se bem que Nietzsche parece ou deve
56

praticar com freqüência a inversão [Umdrehungl,


é visível, observa Heidegger, que ele "busca outra
coisa" (etwas andem sucht) (trad. fr. p. 182).

Para anunciar este outro que não forma mais


par dentro de uma oposição invertida, Heidegger
remete-se a este relato desde então célebre, de
uma fabulação única, a História de um erro, em
Crepúsculo dos ídolos (1888): como o "mundo verda-
deiro" acabou por se tornar fábula.

Eu não vou retomar o comentário de


Heidegger, nem tampouco aqueles que, na França,
já nos esclareceram esse texto. Eu apenas levanta-
rei dele um ou dois traços que não foram, que eu
saiba, explicados, em particular por Heidegger, e
que tocam precisamente a mulher.

Heidegger valoriza a torção mais forte no que


se refere à problemática da inversão [Umdrehungj:
a oposição que se prestava à inversão é suprimida:
"Com o mundo verdadeiro suprimimos também o
aparentei', diz o relato (mit der ivahren Welt haben
wir auch die scheinbare abgeschaffit). A hierarquia
dos dois mundos, do sensível e do inteligível, não
foi somente invertida. Uma nova hierarquia é afir-
mada e uma nova posição de valor. A novidade
57

não consiste em renovar o conteúdo da hierarquia


ou a substância dos valores, mas em transformar
o valor mesmo da hierarquia. "Uma nova hierar-
quia {Rangordnung) e uma nova posição de valor
(Wertsetzung), isto quer dizer: transformar o esquema
hierárquico {das Ordnungs-Schema. verwandeln)".
Não suprimir toda hierarquia, a an-arquia conso-
lidando sempre a ordem estabelecida, a hierarquia
metafísica; não mudar ou inverter os termos de uma
hierarquia dada, mas transformar a estrutura mesma
do hierárquico.

Heidegger segue, então, a operação de


Nietzsche nisto que ela pode ter de excessiva aos
olhos da metafísica e do platonismo.
Mas não se trataria apenas, ao menos aqui,
de se perguntar (segundo uma forma de questão
relevante, ainda da hermenêutica e, portanto, dessa
filosofia que uma tal operação deveria, no entanto,
desarranjar) se Nietzsche conseguiu fazer o que
seguramente projetou, e "até que ponto" ele efeti-
vamente superou o platonismo? Heidegger chama
essa de uma "questão crítica" {Fragen der Kritik)
que se deve deixar guiar pelo "re-pensar da vontade
pensante mais íntima de Nietzsche", de seu querer-
dizer mais profundo {wenn wir Nietzsches innerstem
denkerischen Willen nach-gedacht haben).
Femina vita

É no horizonte dessa questão heideggeriana,


no momento em que ele orienta a leitura mais exi-
gente, que se deverá, um pouco mais tarde talvez,
depois do retorno no qual estamos, explodir.

O que, talvez, não se poderá fazer senão pela


intervenção de algum prático estilete. Prática estili-
zada? Mas de qual gênero?

Esta não se escreve senão segundo a fabula-


ção conjunta da mulher e da verdade. Entre mulhe-
res. A despeito da profundidade que é o pudor.
Alguns aforismos para fazer esperar a his-
tória da verdade, que eles precedem em algumas
páginas, em O crepúsculo:

"Sentenças e setas (Sprüche und Pfeile).


16. Unter Frauen. 'Die Wahrheit? O Sie ken-
nen die Wahrheit nicht! Ist sie nicht ein Attentat auf
60

alie unsere pudeurs?' - Entre mulheres - A ver-


dade? Oh, vós não conheceis a verdade! Afinal, a
verdade não é um atentado contra todos os nossos
pudeurs [pudores]?'
27. Man hàlt das Weib fur tief - warum?
weil man nie bei ihm aufden Grund kommt. Das
Weib ist noch nicht einmalflach. - Considera-se a
mulher profunda - Por quê? Porque nela nunca se
chega ao fundo. A mulher não é nem mesmo rasa.
29. 'Wie viel hatte ehemals das Gewissen zu
beissen! welche guten Zàhne hatte es! - Und heute?
woranfehlt es? - Frage Bines Zahnarztes. - 'Outrora,
quanto a consciência tinha de morder? Que bons
dentes ela possuía? E hoje? Quantos lhe faltam?'
Pergunta de dentista.
A História de um erro. Em cada uma das seis
seqüências, das seis épocas, à exceção da terceira,
algumas palavras são sublinhadas. Na segunda
época, as únicas palavras sublinhadas por Nietzsche
são sie wird Weib, ela [a idéia] torna-se mulher.

Heidegger cita essa seqüência, respeitando


o grifo, mas seu comentário, como é sempre o
caso, ao que parece, contorna a mulher. Todos os
elementos do texto são analisados, sem exceção,
salvo o devir-mulher da idéia (sie wird Weib), que
se encontra, então, abandonada, um pouco como
se saltasse uma imagem sensível em um livro de
filosofia, como se arrancasse também uma página
61

ilustrada ou uma representação alegórica em um


livro sério.

O que permite ver sem ler ou ler sem ver.

Olhando mais de perto o "ela torna-se mulher"


[sie wird Weib], nós não vamos contra Heidegger, isto
é, não vamos seguir o caminho do seu próprio gesto.
Nós não iremos razer o contrário do que ele fez, e que
retornaria, mais uma vez, ao mesmo. Nós não iremos
colher uma flor mitológica, desta vez para estudá-la à
parte, recolhê-la ao invés de deixá-la cair.

Tentemos, antes, decifrar esta inscrição da


mulher, sua necessidade não é, talvez, nem aquela
de uma ilustração metafórica ou alegórica sem
conceito, nem aquela de um conceito puro sem
um esquema fantástico.
O contexto indica claramente que isto que
se torna mulher é a idéia. O devir-mulher é um
"progresso da idéia" {Fortschritt der Idee).
A idéia é uma forma da apresentação de si da
verdade. A verdade, então, não foi sempre mulher.
A mulher não é sempre verdade. Uma e outra têm
uma história, formam uma história - a própria his-
tória, talvez, se o valor estrito de história é sempre
apresentado como tal no movimento da verdade —
62

que a filosofia não pode decriptar sozinha, estando


nela mesma incluída.
Antes deste progresso na história do mundo-
verdadeiro, a idéia era platônica. E a Umschreibun,
a transcrição, a perífrase ou a paráfrase do enun-
ciado platônico da verdade, nesse momento inau-
gural da idéia, é "Ich, Plato bin die Wahrheif, "eu,
Platão, sou36 a verdade".

O segundo tempo, o do devir-mulher da


idéia como presença ou encenação da verdade,
é portanto o momento em que Platão não pode
mais dizer "eu sou a verdade", em que o filósofo
não é mais a verdade, se separa dela como de si
mesmo, não a segue mais senão como rastro,
exila-se ou deixa a idéia se exilar.
Então, começa a história, começam as histó-
rias. Então, a distância - a mulher - separa a verdade
- o filósofo -, e dá a idéia. Que se afasta, se torna
transcendente, inacessível, sedutora, agita e mostra o
caminho à distância, in die Ferne. Seus véus flutuam
ao longe, o sonho de morte começa - é a mulher.
"O mundo verdadeiro inatingível por hora,
mas prometido ao sábio, ao devoto, ao virtuoso
(ao pecador que cumpre a sua penitência')".

36
Há aqui um jogo intraduzível com a conjugação do verbo
être (ser/estar), que na primeira pessoa do singular é je suis,
idêntico à conjugação do verbo suivre (seguir). Assim, pode-se
entender a frase também como "eu, Platão, sigo a verdade".
63

"Progresso da idéia: ela se torna mais sutil,


mais insidiosa, mais inapreensível - ela torna-se
mulher..."07

Todos os atributos, todos os traços, todos os


atrativos que Nietzsche reconheceu na mulher, a
distância sedutora, o inacessível que capta, a pro-
messa infinitamente velada, a transcendência pro-
dutora de desejo, o Entfemung pertencendo bem à
história da verdade como história de um erro.
Ora, como em aposição, como para explicitar
e analisar o "ela torna-se mulher", Nietzsche acres-
centa "ela torna-se cristã" [sie wird cbristlich...] e
fecha parêntese.
E na época deste parêntese que se pode ten-
tar arrastar essa fabulação em direção ao motivo
da castração dentro do texto de Nietzsche, ou
seja, em direção ao enigma de uma não-presença
da verdade. O que se ensina em letras vermelhas
no "ela torna-se mulher, torna-se cristã...", eu vou
tentar demonstrar que é um "ela castra (-se)"; ela
castra porque ela é castrada, ela joga sua castra-
ção na época de um parêntese, ela finge a castra-
ção - sofrida e infligida - para dominar o mestre
de longe, para produzir o desejo e, num mesmo
golpe, que aqui é "a mesma coisa", matá-lo.
37
NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos. "Como o
'mundo verdadeiro' se rornou finalmenre uma fábula: histó-
ria de um erro, p. 31 da edição brasileira, tradução de Paulo
César de Souza. São Paulo, Cia das Letras, 2006.
64

Fase e perífrase necessárias na história da


mulher-verdade, da mulher como verdade, da veri-
ficação e da feminização.
Viremos a página. Passemos, em O crepús-
culo dos ídolos, à página que segue A história de um
erro. Inicia-se, então, Moral ais Widernatur, Moral
como contranatureza. O cristianismo aí é inter-
pretado como castracionismo38 {Kastratismus). A
extração de um dente, a extirpação de um olho, diz
Nietzsche, são operações cristãs. São as violências
da idéia cristã, da idéia tornada mulher. "Todos os
antigos monstros da moral são unânimes quanto
a isso: ilfaut tuer les passions [e preciso matar as
paixões', estas palavras encontram-se em francês
no texto de Nietzsche]. A formulação mais famosa
desta sentença encontra-se no Novo Testamento,
naquele Sermão da Montanha, no qual, dito de pas-
sagem, as coisas não foram de todo contempladas
do alto. Aí mesmo, por exemplo, diz-se com respeito
à sexualidade, 'se teu olho te escandaliza, arranca-o
fora'. Por sorte, nenhum cristão age segundo este
preceito. Aniquilar as paixões e os desejos, apenas

38
No original, Nietzsche opta pela palavra latina Kastratismus.
Na tradução para português, seguimos a opção de Paulo
César Sousa, castracionismo. Trata-se, aqui, de uma referên-
cia nietzschiana aos castrato, jovens castrados antes de entrar
na puberdade para preservarem a voz aguda. Os castrados sur-
gem em 1589, quanto o papa Sisto V (1585/1590) aprovou o
recrutamento dos castrato para o coro da Igreja de São Pedro,
em Roma. Os castrato foram usados pela Igreja Católica
durante mais de 300 anos e ocuparam uma posição domi-
nante na ópera dos séculos XVII e XVIII. NT.
65

para evitar sua estupidez e as conseqüências desa-


gradáveis de sua estupidez, se nos apresenta hoje
como sendo mesmo apenas uma forma aguda desta
última. Não passamos a admirar mais os dentistas
que arrancam [ausreissen, grifado] os nossos dentes,
para que eles não doam mais" {Crepúsculo dos ído-
los, "Moral como contranatureza", 1).

À extirpação ou castração cristã, ao menos


aquela da "primeira Igreja" (ainda que não se tenha
saído da Igreja), Nietzsche opõe a espiritualização
da paixão {Vergeistigung der Passion). Ele parece
sugerir que nenhuma castração opera em uma tal
espiritualização, o que não é tão óbvio assim. Eu
deixo esse problema em aberto.

Então, a Igreja, a primeira, verdade da


mulher-ideia, procede por ablação, extirpação,
excisão. "A igreja combate o sofrimento através
da extirpação [Ausschneidung, o corte, a castra-
ção] em todos os sentidos: sua prática, seu 'tra-
tamento' [cure, em francês] é o da castração. Ela
nunca pergunta: 'como se espiritualiza, se embe-
leza, se diviniza um desejo?' Em todos os tem-
pos, ela pôs a ênfase da disciplina na supressão
[erradicação, Ausrottung] (da sensibilidade, do
orgulho, do desejo de domínio [Herrschsucht],
de posse [Habsucht] e de vingança [Rachsucht]).
- Mas atacar os sofrimentos na raiz é o mesmo
66

que atacar a vida na raiz: a práxis da igreja é


inimiga da vida [lebensfeindlich]...".

Inimiga, portanto, à mulher que é a vida


(femina vita): a castração é uma operação da
mulher contra a mulher, não menos que de cada
sexo contra si e contra o outro 39.

" Desde que se determine a diferença sexual em oposição,


cada termo inverte sua imagem no outro. Proposição na qual
os dois x seriam, ao mesmo tempo, sujeitos e predicados,
a cópula, um espelho. Tal é a máquina da contradição. Se
Nietzsche segue a tradição para inscrever o homem dentro
do sistema da atividade (com todos os valores que estão asso-
ciados a ele) e a mulher dentro do sistema de passividade, ele
chega a inverter o sentido do casal, ou melhor, a explicar o
mecanismo de inversão. Humano, demasiado humano (411)
atribui o entendimento e o domínio à mulher, a sensibilidade
e a paixão ao homem, no qual a inteligência "em si é algo
passivo" (etwas Passives). Como o desejo passional é narcísico,
a passividade ama-se como passividade no outro, projeta-o
como "ideal", fixa-o como o parceiro que, em retorno, ama
sua própria atividade e renuncia, ativamente, a produzir o
modelo e, com isso, a tomar o outro. A oposição ativo/passivo
reflete seu apagamento homossexual até o infinito, revela-se
na estrutura da idealização ou da máquina desejante.
"Não é raro as mulheres secretamente se admirarem da
veneração que os homens rributam ao seu sentimenro. Se
os homens, na escolha do cônjuge, buscam antes de tudo
um ser profundo e sensível, enquanto as mulheres buscam
alguém sagaz, brilhanre e com presença de espírito, vê-se cla-
ramente que no fundo o homem busca um homem ideali-
zado, e a mulher, uma mulher idealizada, ou seja, não um
complemento (Ergànzung), mas sim um aperfeiçoamento
(Vollendung) de suas próprias qualidades." NA.
67

"O mesmo recurso, a mutilação, a erradi-


cação, é instintivamente escolhido, na luta contra
um desejo, por aqueles que são muito fracos de
vontade, muito degenerados para poder impor-se
moderação nele (...) Observe-se a história inteira
dos sacerdotes e filósofos, incluindo os artistas: as
coisas mais venenosas para os sentidos não foram
ditas pelos impotentes, tampouco pelos ascetas, mas
pelos ascetas impossíveis, por aqueles que teriam
tido necessidade de ser ascetas (Cl "Moral como
contranatureza", 2.) A espiritualização da sensuali-
dade chama-se amor: ela é um grande triunfo sobre
o cristianismo. Um outro triunfo é nossa espiritu-
alização da inimizade. Consiste em compreender
profundamente o valor de possuir inimigos: numa
palavra, em agir e concluir de modo inverso àquele
como antes se agia e se concluía. Em todos os tem-
pos a Igreja quis a destruição de seus inimigos: nós,
imoralistas e anticristos, vemos como vantagem
nossa o fato de a Igreja subsistir (Cl "Moral como
contranatureza", 3.) O santo no qual Deus se com-
praz é o castrado ideal... (Cl "Moral como contra-
natureza", 4)."
Posições

A heterogeneidade do texto manifesta-o


bem. Nietzsche não se dava a ilusão, mas, ao con-
trário, analisava-os, de saber o que eram os efei-
tos nomeados mulher, verdade, castração, ou os
efeitos ontológicos de presença ou ausência. Ele se
guardou bem da denegação precipitada que con-
sistiria em elevar um discurso simples contra a cas-
tração e contra seu sistema.
Sem paródia discreta, sem estratégia de
escritura, sem diferença ou leve afastamento, sem
o estilo, portanto, o grande, a inversão vem mesmo
na declaração esfuziante da antítese.
Daí a heterogeneidade do texto.
Renunciando aqui a tratar do enorme
número de proposições sobre a mulher, eu
tentarei formalizar a regra, reduzindo-as a um
número finito de proposições típicas e matri-
ciais. Depois eu marcarei o limite essencial de
uma tal codificação e o problema de leitura que
ela determina.
70

Três tipos de enunciado, então, três propo-


sições fundamentais que são também três posições
de valor, provocadas a partir de três lugares dife-
rentes. Essas posições de valor poderiam, também,
talvez, depois de um certo trabalho que eu só posso
aqui indicar, tomar o sentido que a psicanálise (por
exemplo) dá à palavra "posição".

1. A mulher está condenada, humilhada, despre-


zada como figura ou potência de mentira. A catego-
ria da acusação é, assim, produzida em nome da ver-
dade, da metafísica dogmática, do homem crédulo
que faz avançar a verdade e o falo como seus atribu-
tos próprios. Os textos — falogocêntricos — escritos a
partir dessa instância reativa são muitos.

2. A mulher está condenada, desprezada como


figura ou potência de verdade, como ser filosó-
fico e cristão, seja porque ela se identifica com a
verdade, seja porque, à distância da verdade, ela
ainda joga como com um fetiche, em seu pro-
veito, sem nela acreditar, mas permanecendo,
por astúcia e ingenuidade (a astúcia está sempre
contaminada por ingenuidade), dentro do sis-
tema e dentro da economia da verdade, dentro
do espaço falogocêntrico.
O processo é, então, conduzido do ponto de
vista do artista mascarado. Mas este acredita ainda
na castração da mulher e permanece na inversão da
71

instância reativa e negativa. Até aqui, a mulher é


duas vezes a castração: verdade e não-verdade.

3. A mulher é reconhecida, para-além desta


dupla negação, afirmada como potência afir-
mativa, dissimuladora, artista, dionisíaca. Ela
não é afirmada pelo homem, mas se afirma ela
mesma, nela mesma e no homem.
No sentido que dizia agora há pouco, a castra-
ção não acontece. O antifeminismo é, por sua vez,
revertido, ele não condenava a mulher senão aos
limites em que ela estava, ele respondia ao homem
de duas posições reativas.

Para que estes três tipos de enunciados for-


mem um código exaustivo, para que se tente daí
reconstituir sua unidade sistemática, seria neces-
sário que a heterogeneidade paródica do estilo,
dos estilos, fosse dominável e redutível ao conte-
údo de uma tese. Seria necessário, por outro lado,
mas essas duas condições são indissociáveis, que
cada valor implicado nos três esquemas fosse deci-
dível em um par de oposição, como se houvesse
um contrário para cada termo: por exemplo, para
a mulher, a verdade, a castração.
Ora, a gráfica do hímen ou do pharmakon,
que inscreve nela o efeito da castração, sem a isso
se reduzir, e que está em obra por toda parte, em
72

particular no texto de Nietzsche, limita, sem apelo,


a pertinência destas questões hermenêuticas ou sis-
temáticas. Ela sustentaria sempre uma margem de
controle do sentido ou do código.
Não que se deva, passivamente, tomar par-
tido do heterogêneo ou do paródico (isto seria
ainda reduzi-los). Não que se deva concluir, disso
que o mestre sente, que o sentido único e fora do
enxerto é inencontrável, com a mestria infinita de
Nietzsche, com seu poder inconquistável, com sua
impecável manipulação da armadilha, com uma
espécie de cálculo infinito, quase aquele do Deus
de Leibniz, mas um cálculo infinito do indecidí-
vel, desta vez, para frustrar a abordagem herme-
nêutica. Isto seria, para evitar um golpe certeiro,
recair, também certamente, na armadilha. Isto seria
fazer da paródia ou do simulacro um instrumento
de dominação a serviço da verdade ou da castra-
ção, reconstituir a religião, o culto de Nietzsche,
por exemplo, e aí encontrar seu interesse, prelado
do intérprete em paródias, interprelado.40
Não, a paródia supõe sempre, em alguma
parte, uma ingenuidade, apoiada em um incons-
ciente, e a vertigem de um não-domínio, uma
perda de conhecimento. A paródia absolutamente
calculada seria uma confissão ou uma tábua de lei.

40
A palavra interprelado é uma proposta de tradução de
interprêtise, neologismo criado por Derrida para adicionar o
prefixo inter, já usado na palavra interpretação (interprete), à
palavra prelado (prêtise). NT.
73

É preciso dizer, simplesmente, que se não se


pode assimilar - entre eles, primeiramente - os afo-
rismos sobre a mulher e o resto, é também porque
Nietzsche náo via muito claramente, num simples
piscar de olhos, em um instante, e que tal cegueira
regular, ritmada, com a qual náo se acabará nunca,
acontece no texto. Nietzsche está um pouco per-
dido. Há perda, isso pode se afirmar, desde que há
hímen.

Na teia do texto, Nietzsche está um pouco per-


dido, como uma aranha, diferencia-se do que se pro-
duz através dela; eu digo como uma aranha ou como
muitas aranhas, a de Nietzsche, a de Lautréamont, a
de Mallarmé, as de Freud e de Abraáo.

Ele era, ele temia tal mulher castrada.

Ele era, ele temia tal mulher castradora.

Ele era, ele amava tal mulher afirmadora.

Tudo isso ao mesmo tempo, simultanea-


mente ou sucessivamente, segundo os lugares de
seu corpo e as posições de sua história.
74

Ele tinha de se haver nele, fora dele, com


tantas mulheres.
Como na Basiléia, durante o concilio.
O olhar de Édipo

Não há uma mulher, uma verdade em si da


mulher em si, pelo menos, isto é o que diz a tipo-
logia tão variada de sua obra, a multidão de mães,
filhas, irmãs, solteironas, esposas, governantas,
prostitutas, virgens, avós, garotas novas e velhas.
Pela mesma razão, não há uma verdade de
Nietzsche ou do texto de Nietzsche.
Quando se lê em Para além "são apenas ver-
dades minhas", sublinhando "meine Wahrheiten
sind"41, isto se dá precisamente em um parágrafo
sobre as mulheres. Minhas verdades, isto implica,
sem dúvida, que não se trata de verdades, posto que
elas são múltiplas, multicoloridas, contraditórias.
Então, não há uma verdade em si, mas para além
disso, mesmo de mim para mim, a verdade é plural.
Ora, esta passagem encontra-se entre o
famoso parágrafo sobre "der schreckliche Grundtext
homo natura" [o terrível texto básico homo natura],
onde ele apela ao intrépido olhar de Édipo (uners-
chrocknen OEdipus-Augen) contra os enganos dos

41
ABM231.
76

velhos metafísicos apanhadores de pássaros {die


Lockweisen alter metaphysischer Vogelfàngef). Edipo,
desenganado, que nem nega nem assume a carga
cegadora e o requisitório contra o feminismo, o
"eterno feminino", a "mulher em si", Madame
Roland, Madame de Staél, Monsieur George Sand,
seu "mau gosto"; ao "taceat mulier in ecclesia" da
Igreja, ao "taceat mulier in politicis" de Napoleão,
Nietzsche acrescenta, como "verdadeiro amigo das
mulheres", "taceat mulier de mulieré".42
Então, não há verdade em si da diferença
sexual em si, do homem ou da mulher em si, ao
contrário, toda ontologia pressupõe, esconde esta
indecidibilidade da qual é o efeito de arrazoamento,
apropriação, identificação, verificação de identidade.

Aqui, para além da mitologia da assinatura,


da teologia do autor, o desejo biográfico se inscreve
no texto, nele deixa uma marca irredutível, mas
também irredutivelmente plural. O "granito de
fatum [destino] espiritual" de cada um doa e recebe
as marcas, formando a matéria.
A ereção cai.

42
ABM 232. Ver também 230 a 239. O que não contra-
diz, mas, ao contrário, confirma tal enunciado: "A mulher
perfeita. - A mulher perfeita (das vollkommene Weib) ê um
tipo de ser humano mais elevado que o homem perfeito;
também algo muito mais raro. — A ciência que estuda os ani-
mais oferece um meio de se tornar provável esta afirmação"
(HDH 377). NA.
77

O texto biográfico fixa-se, estabiliza-se por


uma duração incerta e constitui por um longo
tempo a pedra indeslocável, com todos os riscos
desta "monumentale Historie''que os Unzeitgemãsse
teriam reconhecido há tempos.
Este granito é um sistema "de decisões e
respostas predeterminadas a seletas perguntas
predeterminadas. Em todo problema cardinal
fala um imutável 'sou eu' {'das bin icb); sobre
o homem e a mulher, por exemplo, um pensa-
dor não pode aprender diversamente {umlernen),
mas somente aprender até o fim (auslernen) -
descobrir inteiramente o que nele está 'firmado'
a esse respeito... Depois da notável gentileza que
acabo de endereçar a mim mesmo [ele acaba de
definir o fatum espiritual como nossa grande
estupidez], talvez me seja permitido expor algu-
mas verdades acerca da 'mulher em si': supondo
que desde já se saiba que são apenas verdades
minhas" (ABM 231).
E em Ecce homo ("Por que escrevo tão bons
livros"), há dois parágrafos seguidos (4 e 5) nos quais
Nietzsche adianta, sucessivamente, que há "um
grande número de estilos possíveis", ou que não há
"estilo em si", posto que ele "conhece bem as mulhe-
res" [ou, mais ainda, as mulherzinhas, Weiblein]: "É
parte de meu dom dionisíaco. Quem sabe? Talvez eu
seja o primeiro psicólogo do eterno-feminino. Todas
elas me amam - uma velha história: excetuando as
mulherezinhas vitimadas, (verunglückten Weiblein),
as 'emancipadas', as não aparelhadas para ter filhos. -
78

Felizmente não estou disposto a deixar-me despeda-


çar: a mulher realizada despedaça quando ama..."43

Desde o momento em que a questão da mulher


suspende a oposição decidível do verdadeiro e do não-
verdadeiro, ela instaura o regime epocal das aspas para
todos os conceitos pertencentes ao sistema desta deci-
dibilidade filosófica, ela desqualifica o projeto herme-
nêutico postulante do sentido verdadeiro de um texto,
ela libera a leitura do horizonte do sentido do ser ou da
verdade do ser, dos valores de produção do produto ou
de presença do presente - isto que se desencadeia é a
questão do estilo como questão da escritura, a questão
de uma operação esporeante mais poderosa que todo
conteúdo, toda tese e todo sentido.
A espora estilística atravessa o véu, não o
rasga apenas para ver ou produzir a coisa mesma,
mas desfaz a oposição a si, a oposição dobrada
sobre si do velado/desvelado, a verdade como pro-
dução, desvelamento/dissimulação do produto em
presença. Ela nem suspende, nem deixa cair o véu:
ela de-limita o suspense - a época.
De-limitar, desfazer, desfazer-se, tratando-se
do véu, isto não retorna ainda ao mesmo desvelar?
Ou seja, destruir um fetiche?
Esta questão, enquanto questão (entre logos e
theoria, dizer e ver), permanece interminavelmente.

4f
EH 5.
O golpe de dom

A leitura heideggeriana estava à margem - mas


nós partimos dos enigmas da margem - no momento
em que deixava de tratar da mulher na fabulação da
verdade; ela não colocava a questão sexual ou, na
melhor das hipóteses, a submetia à questão geral da
verdade do ser. Ora, não se acabou de perceber que a
questão da diferença sexual não era uma questão regio-
nal submetida a uma ontologia geral, depois a uma
ontologia fundamental, e enfim à questão da verdade
do ser? E que ela talvez nem mesmo fosse uma questão?
Talvez as coisas não sejam tão simples. As sig-
nificações ou os valores conceituais que formam, ao
que parece, o risco ou o mote de todas as análises
nietzschianas sobre a diferença sexual, sobre a "eterna
guerra entre os sexos", o "ódio de morte dos sexos",44
sobre o "amor", o erotismo, etc, todas têm como vetor
44
" - Houve ouvidos para a minha definição de amor? É a
única digna de um filósofo. Amor - em seus meios a guerra,
em seu fundo o ódio de morte dos sexos. - Foi ouvida a
minha resposta à questão de como se cura - se "redime" -
uma mulher? Fazendo-lhe um filho. A mulher necessita
de filhos, o homem é sempre somente o meio: assim falou
Zaratustra". Ecce Homo, "Por que escrevo tão bons livros?"
(V). Dever-se-ia analisar todo o capítulo. NA.
80

isto que se poderia chamar de processo de propriação


(apropriação, expropriação, tomada, tomada de posse,
dom e troca, dominação, servidão, etc). Através de
numerosas análises, que eu não posso seguir aqui,
surge, segundo a lei já formalizada, ora que a mulher
é mulher dando, dando-se, ao passo que o homem
toma, possui, toma posse, ora que, ao contrário, a
mulher, dando-se, dá-se-para, simula e assegura assim
a dominação possessiva 45.

45
"As coisas que chamamos de amor. — Cobiça e amor: que sen-
timentos diversos evocam essas duas palavras em nós! - e pode-
ria, no entanto, set o mesmo impulso que recebe dois nomes;
uma vez difamado do ponto de vista dos que já possuem, nos
quais ele alcançou alguma calma e que temem pot sua 'posse';
a outra vez dos pontos de vista dos insatisfeitos, sedentos, e por
isso glorificado como 'bom'. Nosso amor ao próximo - não é
ele uma ânsia por nova propriedade?. E igualmente nosso amor
ao saber, à verdade e toda ânsia por novidades?" (GC 14). E
depois de ter reconhecido a motivação para possuir (hesitzen)
e para se apropriar sob todos os fenômenos de desinteresse ou
de renúncia, Nietzsche define a hipérbole mas também isto que
orienta seu primeiro movimento: "Mas é o amor sexual que se
revela mais claramente como ânsia de propriedade: o amante
quer a posse incondicional e única da pessoa desejada..." (GC
14). A amizade, que Nietzsche opõe neste aforismo ao amor,
não "transcende" a pulsão apropriante, ela põe em comum os
desejos, as cobiças, as ganâncias, e os orienta para um "bem"
compartilhado, o ideal.
Outra citação para demonstrar a organização sistemática
destes movimentos de propriação: "Como cada sexo tem seu
preconceito em relação ao amor. - Por mais concessões que eu
me ache disposto a fazer ao preconceito monogâmico, nunca
admitirei que se fale de direitos iguais do homem e da mulher
no amor (...). O que a mulher entende por amor é claro:
total dedicação (não apenas entrega) de corpo e alma (...). O
81

O "dar-se-para", o para, qualquer que seja


seu valor, quer ele engane dando a aparência ou
introduza qualquer destinaçáo, finalidade ou cál-
culo ardilosos, qualquer retorno, amortecimento
ou benefício na perda do próprio, o para retém
o dom de uma reserva e muda desde então todos
os signos da oposição sexual. Homem e mulher
mudam de lugar, trocam sua máscara ao infinito.
"As mulheres souberam assegurar para si, através
da submissão (Unterordnung), uma forte vantagem
e mesmo a dominação (Herrsehaft) "(HDH 412).

homem, ao amar uma mulher, quer dela precisamente este


amor (...). Um homem que ama como uma mulher torna-se
escravo; mas uma mulher que ama como um homem torna-
se mais perfeita como mulher... A paixão da mulher, na sua
incondicional renúncia a direitos próprios, tem justamente
por pressuposto que do outro lado não exista semelhante
pathos, semelhante desejo de renúncia: pois se ambos renun-
ciassem a si mesmos por amor, daí resultaria - não sei bem o
quê; talvez um vácuo? — A mulher quer ser tomada e aceita
como posse, quer ser absorvida na noção de 'posse', de 'pos-
suído'; em conseqüência, quer alguém que tome, que não dê e
não conceda a si próprio (...). A mulher se concede, o homem
acrescenta - eu acho que não é possível superar esse contraste
natural mediante contratos sociais ou com a melhor vontade
de justiça: por mais desejável que seja não termos continua-
mente perante os olhos o que há de terrível, duro, enigmático
e imoral nesse antagonismo. Pois o amor, concebido de modo
inteiro, grande, pleno, é natureza e, enquanto natureza, algo
eternamente 'imoral'." (GC 363). E Nietzsche, então, tira daí
a conseqüência: a fidelidade é essencial ao amor da mulher,
contraditória com o do homem. NA.
82

Se a oposição do dar e do tomar, do possuir


e do possuído é uma espécie de engodo transcen-
dental produzido pela grafia do hímen, o processo
de propriação escapa a toda dialética, como a toda
decidibilidade ontológica.

Então não se pode mais perguntar "o que é o


próprio, a apropriação, a expropriação, a domina-
ção, a servidão, etc.?". Enquanto operação sexual -
e nós não sabemos nada da sexualidade antes dela -
a propriação é mais poderosa, porque indecidível,
que a questão ti esti [o que é?], que a questão do véu
da verdade ou do sentido do ser. Tanto mais - mas
este argumento não é nem secundário nem suple-
mentar - que o processo de propriação organiza a
totalidade do processo de linguagem ou de troca
simbólica em geral, compreendidos nisso, deste
modo, todos os enunciados ontológicos. A histó-
ria (da) verdade (é) um processo de propriação. O
próprio não está, portanto, nos domínios de uma
interrogação onto-fenomenológica ou semântico-
hermenêutica.
A questão do sentido ou da verdade do ser
não é capaz de dar conta da questão do próprio, da
troca indecidível do mais no menos, do dar-tomar,
do dar-guardar, do dar-danar, do golpe de dom. Ela
não é capaz porque é aí que ela está inscrita.
83

Cada vez que surge a questão do próprio, nos


campos da economia (no sentido restrito), da lin-
güística, da retórica, da psicanálise, da política, etc,
a forma onto-hermenêutica de interrogação mostra
seu limite.
Este limite é singular. Ele não determina um
domínio ôntico ou uma região ontológica, mas sim
o limite do próprio ser. Desta forma, seria muito
apressado concluir que se poderá pura e simples-
mente prescindir dos recursos críticos da questão
ontológica, seja em geral ou na leitura de Nietzsche.
Seria também tão ingênuo quanto concluir
que, não estando a questão do próprio nos domínios
da questão do ser, se poderia ocupar diretamente
dela, como se se soubesse isto que é o próprio, a pro-
priação, a troca, o dar, o tomar, a dívida, o custo, etc.
Tendo então os discursos confortavelmente instala-
dos em tal ou tal campo determinado, permanecer-
se-ia, na falta de elaborar o problema, na pressupo-
sição onto-hermenêutica, na relação pré-crítica com
o significado, no retorno à palavra presente, à língua
natural, à percepção, à visibilidade, em uma pala-
vra, à consciência e a todo sistema fenomenológico.
Este risco, que não é de modo algum recente, volta
a tornar-se bem atual.

Eu indico esquematicamente por que, no


ponto em que estamos, a leitura de Heidegger
(do Heidegger leitor de Nietzsche, a leitura de
Heidegger, esta que ele pratica tanto quanto a que
84

nós arriscamos aqui de seu texto) não me parece


simplesmente em déficit com relação a esta de-limi-
tação da problemática ontológica46.
Com efeito, na quase totalidade de seu
trajeto, ela se mantém - e é isso que amiúde se
tem como sua tese - no espaço hermenêutico da
questão da verdade (do ser). E ela conclui, pre-
tendendo penetrar no mais íntimo da vontade
pensante de Nietzsche (ver mais acima), que
esta pertence ainda, e para completá-la, à histó-
ria da metafísica.
Sem dúvida, supondo-se ainda que o valor
de pertencimento tenha qualquer sentido único e
não se arrebate a si mesmo.
Mas uma certa fenda abre esta leitura sem
desfazê-la, abre-a sobre uma outra que não se deixa
mais naquela enclausurar-se. Não que ela tenha,
de rebote, um efeito crítico ou destruidor sobre
isto que desta maneira se submete à violência, mas
também à necessidade quase interna desta fenda.
Mas ela transforma a figura e reinscreve por sua
vez o gesto hermenêutico. E é por esta razão, desig-
nando "a quase totalidade de um trajeto", que eu
não adiantei uma apreciação quantitativa; antes, eu
anunciei uma outra forma de organização que se
abriga sob esta consideração estatística.

46
Quanto à leitura pré-textual de Nietzsche por Heidegger e
ao deslocamento que a problemática da escritura pode provo-
car nela, eu retomo aqui o mote de uma questão aberta em
Gramatologia (I.I., "O ser escrito", pp. 22-24). NA.
85

Esta fenda sobreviria cada vez que Heidegger


submete, abre a questão do ser à questão do pró-
prio, do propriar, da propriação (eigen [próprio],
eignen [prestar-se a], ereignen [dar-se, acontecer]
e, sobretudo, Ereignis [acontecimento]). Isto não
significa uma ruptura ou uma reviravolta no pensa-
mento de Heidegger. Já a oposição da Eigentüchkeit
[propriedade] e da Uneigentlichkeit [improprie-
dade] organizava toda a analítica existencial de Ser
e Tempo. Uma certa valorização do próprio e da
Eigentüchkeit- a valorização mesma - não se inter-
rompe nunca. Há aí uma permanência que se deve
levar em conta e cuja necessidade deve ser interro-
gada sem cessar.
No entanto, um movimento oblíquo desar-
ranja regularmente esta ordem e inscreve a verdade
do ser no processo de propriação. Processo este que,
para estar imantado pela valorização do próprio,
pela preferência indesenraizável pelo próprio, não
a conduz menos à estrutura abissal do próprio. Esta
estrutura abissal é uma estrutura não fundamental,
por sua vez superficial e sem fundo, e ainda sem-
pre "plana", na qual o próprio envia-se pelo fundo,
soçobra na água de seu próprio desejo sem nunca
encontrar, arrebata-se e irrita-se - consigo mesmo.
Passa ao outro.

Sem dúvida, tem-se com muita freqüência


a impressão — e a massa de enunciados, a quali-
dade de suas conotações o confirmam - de uma
86

nova metafísica da propriedade, da metafísica em


suma. É aqui que a oposição entre metafísica e
não-metafísica encontra, por sua vez, seu limite,
que é o limite mesmo desta oposição, da forma da
oposição. Se a forma da oposição, a estrutura opo-
sicional, é metafísica, a relação da metafísica com
seu outro não pode mais ser de oposição.
Abismos da verdade

Cada vez que as questões metafísicas e a


questão da metafísica estão inscritas na questão
mais poderosa da propriação, todo esse espaço
reorganiza-se.
Isto sobrevém muito regularmente, senão de
maneira espetacular, e sobretudo, o que não é fortuito,
no último capítulo do Nietzsche {"Die Erinnerung in
die Metaphysik" ["A recordação na metafísica"]). Aí,
passa-se de uma proposição do típo "Das Sein selbts
sich anjanglich ereignet"47, que, depois de Klossowski48,
eu renuncio a traduzir, a uma proposição na qual o
"ser" mesmo é reduzido {das Ereignis er-eignet). Entre
os dois: "... undso noch einmalin der eigenen Anjàngnis
die reine Unbedürjügkeit sich ereignen lãsst, die selbst
ein Abglanz ist des Anfànglichen, das ais Er-eignung der
Wahrheitsich ereignet."49

47
Derrida mantém o original em alemão. A tradução bra-
sileira para o trecho é: "o ser mesmo acontece apropriati-
vamente de maneira inicial". HEIDEGGER, M. Nietzsche.
Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2008. v. II. pg. 371. NT
48
Nietzsche, trad. P. Klossowski, t. 2, p. 391-2, nota 2 do
tradutor. NA.
49
"...e, assim, se deixa acontecer mais uma vez apropriativa-
mente no próprio iniciar da pura ausência de carências; uma
88

E, enfim, com a questão da produção do fazer


e da maquinação, do acontecimento (pois este é um
dos sentidos de Ereignis), tendo sido arrancada da
ontologia, a propriedade ou a propriação do próprio
é precisamente nomeada como isto que não é pró-
prio a nada, nem portanto a ninguém, não decide
mais sobre a apropriação da verdade do ser, reenvia ao
sem fundo do abismo da verdade como não-verdade,
o desvelamento como velamento, o esclarecimento
como dissimulação, a história do ser como história na
qual nada, nenhum ente advém, senão apenas no pro-
cesso sem fundo do Ereignis, a propriedade do abismo
{das Eigentum des Ab-grundes) que é necessariamente o
abismo da propriedade, e também a violência de um
acontecimento que advém sem ser.
O abismo da verdade como não-verdade,
da propriação como apropriação/a-propriação, da
declaração como dissimulação paródica - pergun-
tar-se-á se é isto o que Nietzsche chama a forma do
estilo e o não-lugar da mulher.
O dom - predicado essencial da mulher - que
aparecia na oscilação indecidível do dar-se/dar-se-para,
dar/tomar, deixar-tomar/apropriar-se, tem o valor ou
o custo do veneno. O custo do pharmakon. Eu remeto
aqui à belíssima análise de Rodolphe Gasché sobre a
equivalência indecidível do gift-gifi (dom-veneno),
a troca heliocêntrica {Lechange héliocentrique, sobre
Mauss, em LArc).

ausência de carências que é ela mesma um reflexo do inicial,


que acontece apropriativamente como a apropriação da ver-
dade em meio ao acontecimento". Op cit, p. 373. NT.
89

É a esta operação enigmática do dom abis-


sal (o dom-se-endivida, o dom-sem-dívida) que
Heidegger submete também a questão do ser em
Ser e Tempo (1962). No curso de uma argumen-
tação que não posso reconstituir aqui, ele faz
aparecer a propósito do es gibt Sein, que o dar
(Geben) e a doação {Gabe), na medida em que
constituem o processo de propriação e que não
são de nada (nem de um ente-sujeito, nem de
um ente-objeto), não se deixam mais pensar no
ser, no horizonte ou a partir do sentido do ser,
da verdade.

Do mesmo modo que não há ser ou essên-


cia da mulher ou da diferença sexual, não há
essência do es gibt no es gibt Sein, do dom e da
doação do ser. Este "do mesmo modo que" não
acontece por acaso. Não há dom do ser a partir
do qual alguma coisa como um dom determi-
nado (do sujeito, do corpo, do sexo e de outras
coisas semelhantes - a mulher, então, não terá
sido meu tema) deixa-se apreender e colocar
em oposição.

Isto não implica que se deva proceder a uma


simples reviravolta e fazer do ser um caso particu-
lar ou uma espécie do gênero propriar, dar/tomar a
vida/a morte, um caso do acontecimento em geral
chamado Ereignis. Heidegger previne contra a gra-
90

tuidade e a nulidade de uma tal reviravolta concei-


tuai da espécie e do gênero50.
50
" 'Ser como Ereignis' - outrora afilosofiapensava, partindo do
ente, o ser como idéia, como actualitas, como vontade; e agora,
pode-se acreditar - como Ereignis. Assim entendido, Ereignis sig-
nifica uma declinaçáo nova na série de interpretações do ser {eine
abgewandelte Auslegung des Seins) - declinaçáo que, no caso dela
se manter de pé, representa uma continuação da metafísica. O
como' [ais) significa neste caso: Ereignis como gênero do ser (ais
eine Andes Seins), subordinado ao ser que constitui o conceito de
base, mantendo sua hegemonia (denfestgehakenen Leitbegriff). Se,
ao contrário, nós pensamos o ser - assim como se tentou - no
sentido de avanço na presença (Sein im Sinne von Anwesen und
Anwesenlassen) e de deixar-avançar na presença, que há na reunião
da destinaçáo (die es im Geschick gibt) - que, por sua vez, repousa
na projeção esclarecedora-abrigadora do tempo verdadeiro (das
seinerseits im lichtendverbergenden Reichen der eigentlichen Zeit
beruht), então, o ser tem seu lugar no movimento que faz advir a si
o próprio (dann gehõrt das Sein in das Ereignen). Dele, o dar e sua
doação (das Geben unddessen Gabe) acolhem e recebem sua deter-
minação (Bestimmung). Desta maneira, o ser seria um gênero do
Ereignis e não o Ereignis um gênero do ser. Mas a fuga que busca
refugio em uma tal reviravolta (Umkehrung) seria bem vantajosa.
Ela deixa de lado o verdadeiro pensamento da questão e daquilo
que a mantém (Sie denkt am Sachuerhalt vorbei). Ereignis não é
o conceito supremo (der umgreifende Obergriff) que compreende
tudo e sobre o qual ser e tempo se deixariam ordenar. As relações
lógicas de ordem não querem dizer nada aqui. Pois, na medida
em que nós pensamos à procura do ser mesmo e seguimos o que
ele tem de próprio (seinem Eigenen), ele se apresenta como a doa-
ção, acordada pela projeção do tempo, da destinaçáo da parou-
sia (Gabe des Geschickes von Anwesenheit). A doação da presença é
propriedade do Ereignen (Die Gabe von Anwesen ist Eigentum des
Ereignens)," (Zeit und Sein, trad. E Fédier, em "Lendurance de
Ia pensée", p. 61- 63). NA. [Tempo e Ser, tradução de Erenildo
Stein, em Os pensadores/Jean-Paul Sartre/Martin Heidegger, São
Paulo, Abril Cultural, 1973. pp.453-469. NT.j
91

Tal seria a pista, talvez, sobre a qual lançar


novamente a leitura de "Nietzsche" por Heidegger,
retirá-la {Ia vôlei) para fora do círculo hermenêutico,
com tudo que ela aponta: um campo imenso. Cuja
medida só se dá, sem dúvida, a passo de pomba {pas
de colombe).

Aqui poderia começar um outro discurso


sobre o pombal {colombairé) de Nietzsche.
'Esqueci meu guarda-chuva"

'Eu esqueci meu guarda-chuva/

Entre os fragmentos inéditos de Nietzsche,


encontram-se estas palavras, sozinhas, entre aspas51.

Talvez uma citação.

Talvez tenha sido retirada de alguma parte.

Talvez tenha sido ouvida aqui ou ali.

Talvez fosse a intenção de uma frase a escre-


ver aqui ou ali.
51
Aforismo classificado com a cota 12, 175, trad. fr. de A
Gaia Ciência, p. 457. NA.
94

Nós não temos nenhum meio infalível de


saber de onde aconteceu a retirada, sobre o que a
escrita poderia ter sido.

Nós nunca estaremos seguros de saber o que


Nietzsche quis fazer ou dizer ao anotar estas pala-
vras.

Nem mesmo se ele quis que algo fosse feito.


Supondo-se ainda que náo se tenha nenhuma
dúvida sobre sua assinatura autografa e que se saiba
o que estabelecer sob o conceito de autógrafo e a
forma de uma assinatura.

A esse respeito, a nota dos editores que


classificaram esses inéditos é um monumento de
sonambulismo hermenêutico no qual cada palavra
recobre, com a tranqüilidade mais displicente, um
formigueiro de questões críticas. Dever-se-ia passá-
la no crivo para fazer a nota de todos os problemas
que nos ocupam aqui.

Talvez saibamos um dia qual é o contexto


significante desse guarda-chuva. Os editores talvez
o saibam, ainda que não o digam; eles declaram
não terem conservado, em seu trabalho de seleção
95

e de esclarecimento dos manuscritos, senão aqueles


que dizem respeito ao que eles julgam ser um tra-
balho "elaborado" de Nietzsche52.

Talvez um dia, com trabalho e com sorte,


poder-se-á reconstituir o contexto interno ou
externo deste "eu esqueci meu guarda-chuva". Ora,
esta possibilidade factual não impedirá nunca que
isso esteja marcado na estrutura deste aforismo
(ainda que o conceito de aforismo não seja sufi-

52
Ver a Nota justificativa (princípio dos editores), tradução
francesa, p. 294.
P.S. Teriam os editores, de longe, soldado nosso aforismo a
este outro (HDH 430), cuja leitura devo à Sarah Kofman, e
que se conclui assim: "Não é raro que uma mulher tenha a
ambição de se oferecer para tal sacrifício [proteger o grande
homem e se tornarem como que o recipiente do desfavor
geral e do ocasional mau humor das demais pessoas], e então
o homem ficará satisfeito - caso seja egoísta o bastante para
tolerar em seu convívio esse voluntário para-raios, guarda
chuva e abrigo contra tempestades (um sich einen solchen
freiwilligen Blitz-, Sturm- und Regenableiter in seiner Nãhe
gefallen zu lassen)."? É pouco provável, por toda espécie de
razões, ainda que Nietzsche tenha por vezes sentido falta da
presença de uma tal mulher a seu lado. Post-scriptum de
uma carta à sua irmã (21 de maio 1887): "Tens o ar, tu tam-
bém, de te transformares em 'vítima voluntária' e de tomares
todos os aborrecimentos sobre teus ombros. E o senhor meu
cunhado, ele aceita que tu assumas este papel de para-raios?
(Ver Humano, demasiado humano — A este propósito, por que
Madame Wagner levou tão a mal justamente este aforismo?
Por causa do Wagner ou dela mesma? Isto sempre permane-
ceu um enigma para mim.)" (29-3-1973). NA.
96

ciente aqui, já que, em muito de sua fratura, ele


invoca o complemento totalizante); que ele possa,
por sua vez, permanecer por inteiro e para sempre
sem outro contexto, separado não apenas de seu
meio de produção, mas também de toda intenção
ou querer-dizer de Nietzsche. Este querer-dizer e
esta assinatura apropriante permanecer-nos-ão, a
princípio, inacessíveis.
Não que este inacessível seja a profundidade
de um segredo, ele pode ser inconsistente, insigni-
ficante. Nietzsche talvez não tenha querido dizer
nada, ou então ele tenha querido dizer bem pouca
coisa, ou não importa o quê, ou ainda fingir querer
dizer alguma coisa.
Esta frase talvez nem seja de Nietzsche,
mesmo que se esteja certo de nela reconhecer sua
mão. O que é escrever com sua mão? Assume-se,
assina-se tudo que se escreve com sua mão?
Assume-se mesmo sua "própria" assinatura? A
estrutura mesma da assinatura (a assinatura/cai)
desqualifica a forma destas questões53.

53
A assinatura e o texto caem, um para fora do outro, segre-
gam-se, separam-se e excretam-se, formam-se do próprio corte
que os decapita, os ergue em tronco sem cabeça, a partir do ins-
tante de sua iterabilidade. Ora, esta começa pela expropriaçáo,
e marca tudo isto que erige com uma estrutura de cagalhão.
"Cagalhão (é-tron), s.m. Termo grosseiro. Material fecal con-
sistente e moldado. • Etron de Suisse, pequeno cone que as
crianças fazem com pólvora de canháo moldada e amassada,
que acendem pela ponta. • Hist., Séc. XIII, 'Estrons sans
orduré Jubinal, Fatrasies, t. 11, 222. • Séc. XIV 'Adonques, dit
le veneur, tous les estrons que nos chiensfont vous feussent en Ia
97

Aliás, esta frase está entre aspas. Aliás, não se


tem sequer a necessidade das aspas para supor que
ela náo é, como se diz, de cabo a rabo "dele". Sua
simples legibilidade é suficiente para expropriá-la.

gorgef Modus, PCII. • Séc. XVI 'Une tartre bourbonnoise com-


posée... d'estrones toutchaulx, Rabelais, PantagruelU, 16. - E.
Wallon, stron; italiano, stronzo, cagalhão, e stronzare, cortar;
baixo latim, strundius, struntus; flamenco, stront, imundice,
estrume; do alemão strunzen, pedaço cortado; do alto alemão
strunzan, retirar cortando: propriamente, aquilo que é rejei-
tado." Littré.
Aqui é o lugar de algumas notas suplementares. Há muitos
críticos que gostariam de proibir que se jogue, em particular
com o Littré, e se mostram severos em nome da "ilitrefação",
obra de salubridade pública e revolucionária. ("Permanece
a ilusão substancialista do desenvolvimento sintagmático
de todos os 'sentidos' de uma palavra. Assiste-se [de Ponge
a Derrida] a superstição essencialmente ideológica que con-
siste em citar o dicionário, e particularmente o Littré, tomado
como referência lingüística — o que (colocado à parte o pro-
blema em si da utilização dos dicionários) testemunha um
estranho retorno à ideologia fixista da burguesia, bloqueando
a língua no classicismo dos séculos XVII/XVIII. Não havia
senão uma justificativa histórica para se ler o Littré: para ler
Mallarmé."). Após uma sentença tão severa (e não se adver-
tiu recentemente, de uma cátedra eminente, que tudo o que
se disse da escritura, no curso destes últimos anos, deveria
ser denunciado "severamente"?), eu apenas repetirei que A
Disseminação [La Dissémination, Paris, Editions du Seuil,
1972], que não é polissemia, se ocupa ainda menos de "todos
os 'sentidos' de uma palavra", do sentido e da palavra em
geral, e onde se teria podido ler, entre outras coisas: "(Littré,
a que nós não pedimos aqui nada menos que uma etimolo-
gia)", p. 288; ou ainda: "Littré, mais uma vez, a quem não
se terá jamais pedido, naturalmente, o saber' (p. 303). NA.
98

Nietzsche ainda poderia ter disposto de um


código mais ou menos secreto que, para ele ou
qualquer cúmplice desconhecido, poderia dar sen-
tido a este enunciado.

Nós nunca saberemos. Ao menos, pode-


mos náo sabê-lo nunca, e esta possibilidade, esta
impotência, deve-se levar em consideração. Esta
consideração está indicada na restança deste náo-
aforismo como rastro, ela o subtrai a toda questão
hermenêutica segura de seu horizonte.

Ler, relacionar-se com uma escritura, é per-


furar este horizonte ou este véu hermenêutico,
rejeitar todos os Schleiermacher, todos os fazedores
de véu, segundo a palavra de Nietzsche citada por
Heidegger54. E trata-se mesmo de ler este inédito,
isto por que ele se dá escapando, como uma mulher
ou uma escritura.

Pois esta frase é legível. Sua transparência se


expõe sem dobra, sem reserva. Seu conteúdo parece
de uma inteligibilidade mais que plana. Qualquer
um compreende o que quer dizer "eu esqueci meu
guarda-chuva" ["jai oublié mon parapluie"]. Eu
54
Schleiermacher, grande hermeneuta do século XIX. Seu
nome quer dizer, literalmente, "fazedor de véu". NT.
99

tenho \J'ai] (verbo ter [avoir], ainda que utilizado


como auxiliar e que o ter [l avoir] de meu guarda-
chuva esteja marcado no adjetivo possessivo), um
guarda-chuva, que é meu e que eu esqueci. Posso
descrever a coisa. Agora eu não o tenho mais, no
presente, então devo tê-lo esquecido em qualquer
lugar, etc. Eu lembro meu guarda-chuva, eu lem-
bro de meu guarda-chuva. É uma coisa que se pode
ter ou não ter mais no momento em que mais se
necessita dela, ou tê-la ainda quando não mais se
necessita dela. Questão de tempo.

Este estrato de legibilidade pode eventual-


mente dar lugar a traduções sem perda em todas as
línguas que disponham de um certo material. E ver-
dade que este material não se limita ao signo "guarda-
chuva" (e a alguns outros) na língua, nem mesmo
à presença da "coisa" na cultura, mas a um enorme
funcionamento. Este estrato de legibilidade pode
também dar lugar a outras operações interpretativas
mais elaboradas. Pode-se, por exemplo, propor uma
decriptagem "psicanalítica", reunindo-a, depois dos
desvios de uma certa generalidade, ao idioma niet-
zschiano. Sabe-se ou acredita-se saber qual é a figura
simbólica do guarda-chuva: por exemplo, a espora
hermafrodita de um falo pudicamente redobrado em
seus véus, órgão, por sua vez, agressivo e apotropaico,
ameaçador e/ou ameaçado, objeto insólito que não se
acha todos os dias por um simples encontro com uma
máquina de costura sobre uma mesa de castração.
100

Ele náo é apenas um objeto simbólico para


Freud, mas quase um conceito, a metáfora de um
conceito metapsicológico muito próximo do famoso
Reizscbutz?5 do sistema Percepção-Consciência.
Ademais, isto que é lembrado náo é somente um
guarda-chuva, mas o esquecimento da coisa, e a
psicanálise, que conhece muito de esquecimento e
símbolos fálicos, pode esperar assegurar-se a mestria
hermenêutica deste resto, ou ao menos suspeitar,
pois os psicanalistas não são tão ingênuos como, por
vezes, se tem o interesse em acreditar, que comple-
tando prudentemente o contexto, articulando-o e
estreitando as generalidades, poder-se-á um dia satu-
rar a espera interpretativa.
No que, a princípio, o ou a psicanalista se
colocaria, se bem que menos ingenuamente, na
mesma situação que o leitor impulsivo e que o
hermeneuta ontologista que pensam, todos eles,
que este inédito é um aforismo significante, que
ele deve querer dizer alguma coisa, que ele deve
vir do mais íntimo do pensamento do autor, con-
tanto que se esqueça que se trata de um texto,
de um texto em restança, verdadeiramente esque-
cido, talvez de um guarda-chuva. Que não se tem
mais à mão.
Esta restança não é arrastada em nenhum tra-
jeto circular, nenhum itinerário próprio entre sua
origem e seu fim. Seu movimento não tem nenhum
centro. Estruturalmente emancipada de todo que-
rer-dizer vivo, ela pode sempre nada querer-dizer,
" Termo freudiano: proteção contra excitação. NT.
101

não ter nenhum sentido decidível, jogar parodica-


mente com o sentido, exilar-se pela escrita, sem fim,
para fora de todo corpo textual ou de todo código
finito.
Legível como um escrito, este inédito pode
sempre permanecer secreto. Não que ele detenha
um segredo, mas porque ele pode sempre perder
e simular uma verdade escondida em suas dobras.

Este limite está prescrito por sua estrutura


textual, confunde-se com ela; e é ela que, com seu
jogo, provoca e desconcerta o hermeneuta.

Com isso, não concluam que se deva de


cara desistir de saber o que isto quer dizer: esta
seria, uma vez mais, a reação estetizante e obscu-
rantista do hermeneuein.
Para levar em consideração, o mais rigo-
rosamente possível, este limite estrutural, a
escritura como restança marcante do simulacro,
deve-se, ao contrário, afastar a decifração para
tão longe quanto for possível. Tal limite não
vem guarnecer um saber e anunciar um mais-
além, ele atravessa e divide um trabalho cientí-
fico do qual ele é também a condição e que se
abre a si mesmo.
102

Se Nietzsche queria dizer alguma coisa, não


seria este limite da vontade de dizer, como efeito
de uma vontade de potência necessariamente dife-
rencial e, logo, sempre dividida, dobrada, multi-
plicada?

Nunca se poderá dispensar a hipótese, por mais


que se afaste a interpretação conscienciosa, de que a
totalidade do texto de Nietzsche seja, talvez, enorme-
mente do tipo "eu esqueci meu guarda-chuva".
Assim como dizer que não haveria mais
"totalidade do texto de Nietzsche", fosse ela frag-
mentária ou aforística.
Para se expor aos relâmpagos ou ao raio de
uma imensa gargalhada56. Sem para-raios e sem
teto.
"Wir Unverstàndlichen... denn wir wohnen
den Blitzen immer nàher': "Nós, os incompreensíveis
[título do aforismo 371 da Gaia Ciência] - pois
habitamos cada vez mais próximos dos raios!". Que
se remonte, apenas mais acima, ao aforismo 365,
que se encerra assim: nós, seres póstumos ("...wir
posthumen Menscherf?).

%
Gargalhada, literalmente, é rajada de riso (éclatde rire). NT.
103

Um passo ainda.
Suponham que a totalidade, de alguma
maneira, disto que eu, se se pode dizer, acabo de
dizer, seja um enxerto errático, talvez paródico,
do tipo, eventualmente, de um "eu esqueci meu
guarda-chuva".

Se não o é na sua totalidade, ao menos este


texto, que já começam a esquecer, pode sê-lo em
alguns de seus movimentos mais derrapantes, de
modo que a indecifrabilidade nele se propague sem
medida.

Entretanto, meu discurso era claro como "eu


esqueci meu guarda chuva"57. Ele possuía mesmo
algumas virtudes ou alguns pesos retóricos, peda-
gógicos, persuasivos, não é?

Suponham, não obstante, que ele seja críp-


tico, que eu tenha escolhido tais textos de Nietzsche
(por exemplo, "eu esqueci meu guarda-chuva"), tais
conceitos ou tais palavras (por exemplo, "espora"),
por razoes cuja história e cujo código eu sou o
único a conhecer. Até mesmo segundo razões,
uma história e um código, que, para mim mesmo,
57
Jogo de palavras, pois a frase também quer dizer: meu dis-
curso era tão claro que "eu esqueci meu guarda-chuva". NT.
104

não têm nenhuma transparência. Em último caso,


poderiam dizer também, não há código para um
só. Mas poderia haver uma chave deste texto entre
eu e eu, contrato pelo qual eu sou mais que um.
No entanto, como eu e eu morremos, não
duvidem, há aí uma necessidade estruturalmente
póstuma de minha relação - e da de vocês - com
o acontecimento deste texto que não chega nunca.
O texto pode sempre permanecer, por sua
vez, aberto, oferecido e indecifrável, ainda que não
se saiba indecifrável.

Suponham, então, que eu não seja o único a


pretender conhecer o código idiomático (noção já,
por si só, contraditória) deste acontecimento: que
haja aqui ou lá a partilha presumida do segredo
deste não-segredo. Isto não mudaria em nada a cena.
Os cúmplices morreram, não duvidem, e este
texto pode permanecer, se ele é críptico e paródico
(ora, eu digo-lhes que ele o é, de ponta a ponta, e
eu posso lhes dizer por que isso não vai lhes adian-
tar em nada, e eu posso mentir ao confessá-lo,
posto que não se pode dissimular senão dizendo a
verdade, dizendo que se diz a verdade), indefinida-
mente aberto, críptico e paródico, ou seja, fechado,
aberto e fechado ao mesmo tempo ou alternada-
mente. Dobrado/desdobrado, um guarda-chuva,
em suma, que vocês não usarão, que vocês poderão
esquecer daqui a pouco, como se vocês nunca tives-
105

sem ouvido falar dele, como se ele estivesse situado


acima de suas cabeças, como se vocês não tivessem
mesmo me ouvido ou me entendido, pois eu não
disse nada que vocês pudessem ouvir ou entender.
Sempre se acredita poder se descarregar deste
guarda-chuva, sobretudo porque não choveu.

A morte da qual eu falo não é a tragédia ou a


atribuição relacionada a um sujeito: ao qual dever-
se-ia fazer caso, tirar a conseqüência quanto à cena
que nos ocupa. Não se trata de proceder assim: "eu
sou mortal, logo, etc". Pelo contrário, a morte - e
o póstumo - não se anunciam senão a partir da
possibilidade de uma tal cena. E isso acontece,
então, da mesma forma com a tragédia e com a
paródia, pelo nascimento.

É talvez a isso que Nietzsche nomeava o


estilo, o simulacro, a mulher.
Mas se torna bem evidente, com uma gaia
ciência, que por esta razão mesma não houve nunca
o estilo, o simulacro, a mulher.
Nem a diferença sexual.

Para que o simulacro advenha, deve-se escre-


ver no espaçamento entre vários estilos.
106

Se há estilo, eis o que nos insinua a mulher


(de) Nietzsche, deve haver mais de um.

Duas esporas ao menos, eis a herança


[échéance5^.

Entre elas, o abismo onde lançar, arriscar,


perder talvez, a âncora.

58
O termo échéance admite tradução por herança, significado
da palavra francesa no século 13, apesar de atualmente ser
mais utilizado como prazo ou termo. NT.
107

P.S. Roger Laporte lembra-me de um encon-


tro tempestuoso - há mais de cinco anos e eu não
posso reportar aqui as circunstâncias - ao longo
do qual nós dois nos opusemos, por razoes distin-
tas, à tal hermenêutica que, de passagem, preten-
dia debochar da publicação de todos os inéditos
de Nietzsche: "Eles terminarão por publicar suas
notas de lavanderia e os resíduos do gênero eu
esqueci meu guarda-chuva'."
Nós voltamos a falar disso, os testemunhos
o confirmam.
Eu me assegurei, então, da veracidade deste
relato, da autenticidade destes "fatos" dos quais eu
não tinha, aliás, nenhuma razão para duvidar.
Entretanto, eu não tenho a menor lem-
brança disso. Nem hoje em dia. (1.4.1973)
109

RS. II. Não finjamos saber o que é o esqueci-


mento. Trata-se, portanto, de questionar o sentido
do esquecimento? Ou de reconduzir a questão do
esquecimento à questão do ser? E o esquecimento
de um ente (por exemplo, o guarda-chuva), seria
ele incomensurável ao esquecimento do sentido do
ser - do qual ele seria, no máximo, uma imagem
ruim? Claro que sim.
Eu não me lembrava mais deste texto de
Heidegger, extraído de Zur Seinsfrage [Sobre a
questão do Ser], que no entanto eu li e citei em
outro lugar.
"Na fase de consumação do niilismo, parece
que algo como o 'ser dó ente, ele não esteja aí,
que ele não seja nada (no sentido do nihil negati-
vum). O Ser permanece ausente de uma maneira
singular. Ele se mantém em uma retirada velada
{Verborgenheit) que se vela a si mesma. Ora, é em
um tal velamento que consiste a essência do esque-
cimento, experimentada como os gregos a experi-
mentaram. Isto não é, por fim (quer dizer, segundo
isto que é, por fim, sua essência), nada de negativo,
mas é, enquanto retirada, sem dúvida uma retirada
protetora, que salvaguarda o ainda Indesocultado
[Indécelé]. Para a representação corrente, o esque-
cimento toma facilmente a aparência da simples
lacuna, da falta, da incerteza. O costume é o de se
considerar que esquecer, ser esquecidiço, é exclusi-
vamente omitir', e que a omissão é um estado do
homem (representado por si mesmo) que se encon-
tra bem freqüentemente. Nós permanecemos ainda
110

muito afastados de uma determinação da essência


do esquecimento. E aí mesmo onde a essência do
esquecimento se descobre a nós em toda sua exten-
são, nós estamos ainda muito facilmente expostos
ao perigo de não compreender o esquecimento
senão como um feito humano. Assim, tem-se
representado, de mil maneiras, o esquecimento do
ser' {Seinsvergessenheit) como se o ser, por assumir
uma imagem, fosse o guarda-chuva que a distração
de um professor de filosofia tivesse abandonado
em alguma parte {dass, um es im Bilde zu sagen,
das Sein der Schirm ist, den die Vergesslichkeit eines
Philosophieprofessors irgendwo hat stehen lassen).
"Ora, o esquecimento não ataca tão-somente,
enquanto é aparentemente distinto, a essência do
ser {das Wesen des Seins). Ele é consubstanciai ao ser
{Sie gehõrt zur Sache des Seins), e reina enquanto
Destino de sua essência {ais Geschick seines Wesens)"
{Contribuições para a Questão do Ser, trad. fr. G.
Granel, in Questions I, p. 237-238). (17-5-1973).

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