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EDIPUCRS
Jerônimo Carlos Santos Braga – Diretor
Jorge Campos da Costa – Editor-Chefe
RS NEGRO
Cartografias sobre a produção do conhecimento
ORGANIZADORES :
Gilberto Ferreira da Silva
José Antônio
Antônio dos Santos
Luiz Carlos da Cunha Carneiro
2ª EDIÇÃO
R EVISADA
EVISADA E AMPLIADA
Porto Alegre
Novembro 2010
© EDIPUCRS, 2010
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente
por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a
recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento
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autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca
e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).
GOVERNO DO ESTADO DO R IO
IO GRANDE DO SUL
Governadora: Yeda Rorato Crusius
www.estado.rs.gov.br
* Em 2009, os mesmos organizaram ainda a obra RS Índio: cartograas sobre a produção
do conhecimento, para atender a Lei 11.645/2008, que inclui a temática indígena no currículo
escolar.
8 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)
Introdução ..................................................................................... 11
I – HISTORIOGRAFIAS
1 A escravidão no Brasil Meridional e os desaos historio-
grácos ................................................................................... 15
Regina Célia Lima Xavier
2 A inserção do negro na sociedade branca ............................... 32
Raul Róis Schefer Cardoso
3 Joana Mina, Marcelo Angola e Laura Crioula: os parentes
contra o cativeiro ..................................................................... 46
Paulo Roberto Staudt Moreira
4 Os lanceiros Francisco Cabinda, João Aleijado, preto Antonio
e outros personagens negros na Guerra dos Farrapos ............. 63
Vinicius Pereira de Oliveira, Daniela Vallandro de Carvalho
5 Intelectuais negros e imprensa no Rio Grande do Sul: uma
contribuição ao pensamento social brasileiro .......................... 83
José Antônio dos Santos
6 Carnavais de Porto Alegre: etnicidade e territorialidades negras
no Sul do Brasil ....................................................................... 100
Íris Germano
II – RELIGIOSIDADES
7 As religiões afro-gaúchas ........................................................ 123
Ari Pedro Oro
8 O sagrado na tradição africana e os cultos afro-brasileiros ..... 134
Elsa Gonçalves Avancini
9 “O negro no campo artístico”: uma possibilidade analítica de
espaços de solidariedade étnica em Porto Alegre/RS .............. 148
Cristian Jobi Salaini
III – COMUNIDADES QUILOMBOLAS
10 Comunidades negras no RS: o redesenho do mapa estadual ... 165
Rosane Aparecida Rubert
11 Mediação social e políticas públicas nas comunidades rema-
nescentes de quilombos do Rio Grande do Sul ....................... 182
Paulo Sérgio da Silva
12 Espaços possíveis por onde cartografar quilombos ................. 197
Georgina Helena Lima Nunes
13 Do “Planeta dos Macacos” a “Chácara das Rosas”: de um
território negro a um quilombo urbano ................................... 220
Ana Paula Comin de Carvalho
IV – MOVIMENTOS NEGROS
14 A ressignicação de Palmares: uma história de resistência ..... 231
Deivison Moacir Cezar de Campos
15 A rede associativa negra em Pelotas e Rio Grande .................. 246
Beatriz Ana Loner
16 “As contas do meu Rosário são balas de artilharia” ................ 262
Liane Susan Muller
17 Sport Club Cruzeiro do Sul e Sport Club Gaúcho: associativis-
mo e visibilidade negra em terras de imigração europeia no RS . 272
Fabricio Romani Gomes, Magna Lima Magalhães
18 Prelúdios de um encontro histórico envolto a discursos: o dia em
que o político negro cortejou o mestre-salas dos mares (1959) .. 283
Arilson dos Santos Gomes
V – PRÁTICAS EDUCATIVAS: ALTERNATIVAS
PARA O COMBATE AO PRECONCEITO RACIAL
19 Caminhos para uma educação antirracista: experiências que
falam ........................................................................................ 303
Gilberto Ferreira da Silva
20 Diversidade cultural, relações étnico-raciais e práticas peda-
gógicas: a Lei 10.639 como possibilidade de diálogo ............. 312
Jacira Reis da Silva
21 A Cor da Cultura: crianças, televisão e negritude na escola .... 322
Sátira Pereira Machado
22 Educomunicação e produção cultural afro-brasileira: educando
para a diversidade ....................................................................... 333
Leunice Martins de Oliveira
VI – AÇÕES AFIRMATIVAS E UNIVERSIDADE
23 Ações armativas em educação: políticas de cotas em uni-
versidades públicas ................................................................... 345
Jorge Manoel Adão
22 Ação armativa na sociedade porto-alegrense ........................ 361
Dircenara dos Santos Sanger
Nota sobre os autores ...................................................................... 376
INTRODUÇÃO
2
É o caso, por exemplo, dos três Encontros de Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional,
realizados em Castro, Porto Alegre e Florianópolis, respectivamente em 2003, 2005 e 2007; é
também o caso dos inúmeros eventos realizados no Rio Grande do Sul pelo GT Negros, vin-
culado a ANPUHRS.
30 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)
3
Para uma visão aprofundada do tema, ver Revel (1998).
4
Para uma visão aprofundada do tema, ver Penna (2005).
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 33
5
Este Artigo é parte da Monograa “A inserção do negro na sociedade branca” apresentada no
programa de pós-graduação da Unilasalle no ano 2002. As entrevistas foram produzidas com os
moradores locais relatando suas lembranças vividas entre os anos de 1950-1980.
34 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)
6
Para uma visão aprofundada do tema, ver Hall (2001).
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 35
7
Para uma visão aprofundada do tema, ver, Cardoso (2007).
36 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)
8
Para uma visão aprofundada do tema, ver Giddens (2002).
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 37
“de cima”. Sobre os moradores “de cima”, Dona Moça arma: “Eles
nunca se deram bem, é que eram mais orgulhoso”. Doraci Silva
(Lorena) tem a mesma opinião: “Porque que existia não sei se eles
se achavam rico ou se achavam melhor que os outros porque tinham
morada na vila, porque a vila de primeiro tinha muita fama a vila:
– A vila lá, Deus o livre! O pessoal da vila era da vila”.
Com a fundação da fábrica, iniciou-se uma relação de anta-
gonismo entre os nativos, moradores da “vila de baixo”, e os
funcionários da fábrica, denominados pelos “nativos” de moradores da
“vila de cima”. Enquanto a população do núcleo fabril usufruía das
comodidades da vida moderna como água, luz e casas de alvenaria,
o grupo de moradores da “vila de baixo” somente bem mais tarde foi
conhecer a luz elétrica em suas residências. Maria Schultz lembra:
“Eles achava que o pessoal lá de cima era... como se diz? Mais da elite;
pessoal lá de baixo, pessoal de baixo não tinha água encanada, não
tinha luz”.
A maneira encontrada pelos moradores de baixo para superar as
vicissitudes baseava-se sempre num modelo coletivo, assim, se não
havia água encanada, as moradoras se reuniam no rio que margeia a
vila para lavarem suas roupas. Elenita Machado dos Santos (lha de
Dona Moça) relembra: “Todo mundo lavava roupa no rio... não se
usava tanque, não tinha essas arrumação que a gente tem hoje, era
no rio”.
Quanto à convivência do grupo de moradores da “vila de baixo”
parecia haver, num primeiro momento, uma grande harmonia. Vejamos
o que arma Maria Schultz: “Era compadre, era comadre, eram vizinhos
se visitavam, iam tudo nas festas de famílias. Eram convidados e tudo
mais”.
Havia um momento de grande congraçamento da comunidade
no qual todos se uniam no intuito de reverenciar Nossa Senhora da
Conceição e São Benedito. A festa tomava tamanha proporção que os
pais que tinham seus lhos nascidos no transcorrer do ano deixavam
para batizá-los no dia 8 de dezembro, dia da festa de Nossa Senhora
da Conceição. Maria Schultz comenta: “Então nesse dia todo mundo
batizava as crianças, esperava pra batizar”. E continua: “Dava umas
festas macanuda, como se diz, umas festa bonita, com banda, com
churrasco, com muito melhor que as de Santa Rita. Mas aqui vinha
40 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)
10
A casa deste casal de africanos cava muito próxima – uma quadra talvez – do açougue
onde em 1863 e 1864 ocorreram brutais assassinatos, e que deram a rua do Arvoredo uma
lúgubre imagem, pois suspeitava-se que os cadáveres haviam sido transformados em linguiça e
consumidos pela população da capital. Sobre o caso do linguiceiro e a sua ccionalização, ver
ELMIR (2004).
11
Carta registrada em 26.05.1865. APERS. 1º TPA, RD nº 18, f.49 v.
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 49
12
Carta registrada em 19.02.1862, passada na Costa da Charqueada, 3º distrito de São Jerônimo.
APERS. 1º TPA, RD nº 4, f.115.
50 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)
Africanos Total
Tipo
Nº % Nº %
Pagas 1.381 49,96 3.740 37,20
Condicionais 667 24,13 3.547 35,28
Gratuitas 573 20,73 1.934 19,23
Nada Consta 143 5,18 834 8,29
Total 2.764 100,00 10.055 100,00
13
Lembremos que Cristo é relacionado no candomblé à gura de Oxalá, a quem talvez Joana tenha
se dirigido em busca de saúde. (CORREA, 1994, p. 27.) Infelizmente, em nossas pesquisas nos
livros de pacientes internados na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, de janeiro de 1858
a dezembro de 1864, Joana não foi encontrada.
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 51
14
APERS. Cartório Cível, São Jerônimo, Liquidação, maço 17, auto 689, 1852.
15
APERS. Cartório Cível, Ordinárias, Triunfo, maço 15, auto 414, 1846.
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 53
17
Junto com Joana e Antonia foi uma carta de Lemos Pinto, datada de 07.05.1834, que dizia: “Pelo
Vitorino vão duas negras de sua conta oitocentos mil réis”.
56 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)
Livres Escravos
Brancos Pardos Pretos Caboclos Pardos Pretos
Homens 11.951 2.987 2.339 954 1.418 2.663
Mulheres 10.879 3.032 2.396 1.140 1.512 2.477
Total 35.678 8.070
19
Foram padrinhos deste casamento: Gaspar Batista de Carvalho e Clara Batista de Carvalho,
provavelmente membros da família de Antonio André Henrique de Carvalho, vizinho e aliado dos
pais da noiva. AHCMPA. Casamentos da Catedral nº 7, f.157.
20
AHCMPA. Casamentos da Catedral, nº 8, f.62.
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 59
21
AHCMPA. Óbitos nº 18, nº de ordem 31869.
60 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)
Referências
BARCELLOS, Daisy et al. Comunidade negra de Morro Alto. Porto Alegre: UFRGS,
2004.
CORREA, Norton. Panorama das religiões afro-brasileiras do Rio Grande do Sul. In:
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UFRGS, 1994.
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DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
ELMIR, Cláudio Pereira. A história devorada. Porto Alegre: Escritos, 2004.
62 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)
27
Sua senhora residia no Uruguai à época de sua incorporação às tropas, encontrando-se Francisco
alugado a este senhor de Canguçu. É possível que sua senhora fosse uma das muitas proprietárias
de terras e escravos em ambos os lados da região fronteiriça entre Brasil e Uruguai e que parte de
sua escravaria transitasse entre suas posses.
28
A região compreendida entre o Estado Oriental e o Brasil tem se mostrado um espaço bas-
tante permeável que ainda carece de análises especicas no tocante às possíveis trocas e
experiências que este local propiciava aos cativos e libertos. Ver: BORUCKI; CHAGAS;
STALLA (2004).
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 65
29
Carta de liberdade recebida por Francisco Cabinda em Montevidéu: “Vai tratar da sua
vida o preto forro de nome Francisco [sic] pelo qual rogo as autoridades Republicanas não lhe
ponham embaraço no seu trânsito sem justa causa. Campo na Conceição 4 de junio [sic] de
1837. [ass.] Francisco Carnero Sarmento. 1º Ten. De Laçadores d’pª Lª” . AHRS, Fundo Justiça,
Maço 101, Ano de 1839, Processo 0913.
30
De forma geral, tem sido os documentos produzidos por fontes repressivas que tem per-mitido
os historiadores acessar a vida dos indivíduos subalternos. Ver: GINZBURG (1987; 1989).
66 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)
31
Referimos-nos aqui às produções de LEITMAN (1979 e 1997); BAKOS (1997); FLORES
(1978, 1984 e 2004); CARRION (2003).
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 67
33
Muitos lanceiros eram domadores e campeiros na região de pecuária, espaço econômico
tradicionalmente visto como palco privilegiado da mão de obra livre. Estudos recentes têm
demonstrado a disseminação da presença negra, em geral, e do escravo, em particular, na campanha
sulina. Tais trabalhos têm demonstrado que a ideia, por muito tempo vigente, da presença fortuita
e casual de braços cativos nas lides pecuárias não é uma imagem verossímil, vericando que a
área, por excelência do “gaúcho”, era também povoada por negros – africanos e crioulos – que
contribuíram e partilharam juntos da construção do estado sulino. Ver: OSÓRIO (1999), ZARTH
(2002), GARCIA (2005), FARINATTI (2007).
34
Anais do AHRS , Volume 10, CV-5412, p. 67.
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 69
35
Anais do AHRS , v. 13, CV-6201, p. 28.
36
Anais do AHRS , v. 5, CV-2830 e 2831, p. 51.
37
Entretanto, é sabido que tal rigor na hora de selecionar soldados não era tão cui-
dadosamente cumprido, visto a urgência que tinham de preencher as leiras em função
do grande número de deserções. Tal armação não era uma exclusividade sobre os negros
recrutados e sim uma constante entre todos que de alguma forma tinham em seus horizontes
o recrutamento. Desta forma não é surpresa que a documentação nos ofereça agrantes de
indivíduos inválidos e aleijados nas tropas (AHRS, Autoridades Militares, Maço 135, AHRS,
AM, M. 135B, 2550).
70 Silva, G.F.;
G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)
38
Anais do AHRS , v. 10, CV-5406, p. 63.
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 71
39
A polêmica que cerca o Massacre de Porongos – Canabarro teria sido atacado de surpresa ou
traído os lanceiros? – foi levantada ao nal da década de 1850 pelo farroupilha Domingos José
de Almeida, que armou ter visto o original da citada correspondência ( Anais do AHRS, v. 3, CV-
673, p. 142.). A partir de então, o fato
f ato gerou uma acalorada controvérsia
c ontrovérsia entre os estudiosos que se
debruçaram sobre o tema. Tal evento passa a receber diversas denominações – batalha, surpresa,
traição ou massacre –, cada uma delas carregando em si os signicados e os entendimentos
atribuídos ao evento, conforme a interpretação efetuada.
40
Este documento encontra-se depositado no acervo da Coleção Varela, Varela, de posse do Arquivo
Histórico do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. Foi publicado nos Anais do Arquivo
Histórico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1983, v. 7, p. 30-31. Apresentamos cópia em
anexo.
72 Silva, G.F.;
G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)
41
Varela ( Anais
Ver, por exemplo, relatos de Manuel Alves da Silva Caldeira, na Coleção Varela Anais
do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul , v. 5, CV-3101, CV-3102, CV-3103 e
CV-3104)
CV -3104) e de José Custódio Alves de Souza, João Amado e José Gomes Jardim (VARELA,
(VARELA, 1933,
p. 248)
42
Ver esta discussão em: RODRIGUES (1899) e BENTOBENTO (s/d2).
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 73
conssão desta trama, bem como sua armação de que teria produzido
bom efeito a “bomba” lançada entre os farrapos (WIEDERSPAHN,
1980, p.71). Nesta perspectiva, a Carta seria falsa e o ataque aos
lanceiros uma “surpresa”, já que eles teriam sido pegos desprevenidos
e não teria havido intenção de seus líderes em facilitar o seu ex-
termínio.
Seja como for, parece haver consenso entre os pesquisadores
de que estes guerreiros negros foram atacados em uma situação
extremamente desfavorável. Eles estavam extenuados pela longa
duração do conito, em inferioridade de armamentos e de pessoal
e encontravam-se desavisados do perigo iminente, sendo eliminados em
quantidade considerável. Nesse sentido, a adoção do termo “massacre”
não implica necessariamente em adesão à tese da traição ou da surpresa,
mas sim o reconhecimento das condições severamente desiguais do
conito.
Foi a partir dos estudos de Alfredo Varela (1933) e Alfredo
Ferreira Rodrigues (1899), iniciados na década de 1890, que a
polêmicaa toma fôlego. Atravé
polêmic Atravéss da public
publicação
ação de artigo
artigoss e livro
livros,
s,
estes autores estabelecem um intenso debate e pontuam argumentos,
indícios e informações para corroborar suas teses: Varela defende
a traição em Porongos, enquanto Ferreira Rodrigues arma que
Canabarro fora atacado de surpresa. Ambos utilizam farta documen-
tação e depoimentos de contemporâneos ao conito.
Analisando a produção textual posterior atinente ao tema per-
cebe-se existirem duas matrizes historiográcas a respeito
r espeito deste evento
e que a discussão acerca do caráter do Combate de Porongos, até hoje
não resolvida, retoma em grande medida a base argumentativa do debate
originalmente travado a partir do nal do século XIX entres os autores
mencionados. Grosso modo, identicam-se quatro grandes períodos de
gênese e reelaboração destas matrizes:
Primeiro período:
período: debate inicial travado na virada do século XIX
para o XX, com a discussão polarizada entre Alfredo Varela
Varela e Alfredo
Ferreira Rodrigues. Estes estudos, mais do que proporem uma versão
do que teria sido a Revolução Farroupilha, constroem uma repre-
sentação a respeito da história do próprio Estado que a partir de então
passou a ser amplamente difundida e aceita pelos mais variados setores
setores
do Rio Grande do Sul e do país.
74 Silva, G.F.;
G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)
Segundo período:
período : Décadas de 1920, 1930 e 1940, tendo como
referência autores como Maia (1920), Reichardt (1928), Spalding
(1934), Rosa (1935) e Laytano (1936; 1984). A polêmica da surpresa ou
traição aos lanceiros negros ca em segundo plano, havendo hegemonia
da versão de que Canabarro foi f oi atacado inesperadamente.
Embora Laytano seja referência para os estudos sobre o passado
do negro no estado por conferir visibilidade historiográca até então
inexistente a este grupo, isto acontece pelo prisma do mito da democracia
racial dos pampas, com inuência clara das ideias de Gilberto Freyre. É
neste momento que surgem os primeiros Centros de Tradição Gaúcha,
importantes difusores de uma concepção de identidade regional, a qual
não contemplava os negros. Obras como as de Goulart (1933) e Vianna
(1933) difundem a ideia de que a escravidão no Rio Grande do Sul não
teria tido a mesma dimensão e importância vericada em outras áreas
do Brasil – como nos engenhos de açúcar do nordeste e nas lavouras
de café do sudeste – e que, onde ela ocorreu, ter-se-ia caracterizado
por um tratamento mais brando e igualitário dos senhores junto a seus
cativos.43
Terceiro período:
período : Décadas de 1970 e 1980. Verica-se o ressur-
gimento da tese da traição, tanto por pressão do movimento negro,
especialmente nas guras do poeta Oliveira Silveira e do Prof.
Guarani Santos, como por desdobramentos de pesquisas acadêmi-
cas (LEITMAN, 1985; FLORES, 1984). Como contraponto a esta
perspectiva,
perspecti va, Cláudio Moreira Bento (1975) e Ivo Caggiani (1992)
aparecem como expoentes da matriz “surpresa”.
Muitos historiadores que estudaram a Guerra Farroupilha
neste período, quando abordam a questão do negro, geralmente se
centram na análise do caráter abolicionista ou não do ideário rebelde.
Entretanto, surgem importantes questionamentos sobre a importância
demográca e social do negro na formação histórica do Rio Grande
do Sul, primeiramente com a tese do sociólogo Fernando Henrique
Cardoso (1962) e posteriormente com as publicações de Maestri Filho
(1982) e Bakos (1982). No campo dos movimentos sociais, destaca-se
a atuação de ativistas negros como Oliveira Silveira, com publicações
43
A respeito da invisibilidade do negro na história do Rio Grande do Sul e do mito da democracia
racial dos pampas, ver OLIVEN (1996) e GUTFREIND (1990).
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 75
até hoje nesta área rural conhecida como Estância La Gloria
Gloria,, no
Departamento de Paysandu.47
Conclusão
A historiograa sulina já discorreu demasiadamente sobre os
temas polêmicos deste artigo e não é nossa intenção prolongar tal
contenda, apenas situá-la historiogracamente. A discussão que
propomos não se resume em habilitarmos ou desacreditarmos heróis
construídos pela memória coletiva ao longo do tempo e sim pensar
de que maneira este embate emblemático tem marcado a memória e
a contemporaneidade, bem como pensarmos a insuciência para o
meio historiográco do que tem sido posto em discussão. Estes debates
têm se mostrado, por vezes, apaixonados demais, impedindo uma
apreensão mais densa, empírica e analítica da participação do negro
como integrante das forças em litígio e como indivíduos que legaram
uma história aos seus descendentes, os quais hoje reivindicam um espaço
na construção identitária sulina.
O importante é situar que a participação do negro na Guerra dos
Farrapos e particularmente o Massacre de Porongos são episódios do
passado que guardam profunda relação com o presente. O tema tem
sido revivido por pesquisadores e movimentos sociais que buscam
valorizar a contribuição histórica do negro para a formação histórica
do estado do Rio Grande do Sul. Neste sentido, adquire importância
ímpar, uma vez que se busca este reconhecimento justamente a partir
do evento histórico considerado como um dos elementos fundamentais
da gênese do gauchismo. A Revolução Farroupilha se constitui em
um dos mitos fundadores do regionalismo gaúcho, arsenal quase
inesgotável de heróis e datas comemorativas, em um contexto cultural
onde a construção identitária rio-grandense passa irremediavelmente
por este evento histórico, fonte de várias representações que apontam
o estado sulino como portador de uma herança de combatividade e
politização.
Assim, a ação de rememorar (e se apropriar) do passado em
relação ao vivido no presente, reivindicando espaços para a etnia
negra, tem sido desencadeada por dois conjuntos de iniciativas: a
Jornal Zero Hora
47
Hora, Porto Alegre, 19/09/2003, p. 36.
78 Silva, G.F.;
G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)
Referências
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Estancieiro
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es e comer
comerciante
ciante na constitu
constituição
ição da estr
estremadura
emadura
portuguesa na América: Rio Grande de São Pedro (1737-1922). 1999. Tese (Doutorado
em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal
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SALAINI, Cristian Jobi. Nossos heróis não morrmorreram:
eram: um estudo antropológico sobre as
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Di ssertação
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RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 81
ANEXO
CARTA DE PORONGOS
CARTA P ORONGOS
Cópia. Reservadíssimo. Ilmo. Sr. Regule V. As. Suas marchas
de maneira que no dia 14 às 2 horas da madrugada possa atacar
a força ao mando de Canabarro, que estará nesse dia no cerro
dos Porongos. Não se descuide de mandar bombear o lugar do
acampamento de dia, devendo car bem certo de que ele há de
passar a noite nesse mesmo acampamento. Suas marchas devem
ser o mais ocultas que possível seja, inclinando-se sempre sobre
a sua direita, pois posso aançar-lhe que Canabarro e Lucas
ajustaram ter as suas observações sobre o lado oposto. No conito
poupe o sangue brasileiro quanto puder, particularmente da gente
branca da Província ou índios, pois bem sabe que essa pobre gente
ainda nos pode ser útil no futuro. A relação junta é das pessoas
a quem deve dar escápula se por casualidade caírem prisionei-
ras. Não receie da infantaria inimiga, pois ela há de receber ordem
de um Ministro e de seu General-em-chefe para entregar o
cartuchame sobre [sic] pretexto de desconança dela. Se Cana-
barro ou Lucas, que são os únicos que saem de tudo, forem
prisioneiros,
prisione iros, deve dar-lhes escapul
escapulaa de maneir
maneiraa que ninguém
possa nem levemente desconar, nem mesmo os outros que eles
pedem que não sejam presos, pois V. Sa. Bem deve conhecer a
gravidade deste secreto negócio que nos levará em poucos dias
ao m da revolta desta Província. Se por acaso cair prisioneiro
um cirurgião ou boticário de Santa Catarina, Casado, não lhe
reviste a sua bagagem e nem consinta que ninguém lhe toque, pois
com ela deve estar a de Canabarro. Se por fatalidade não puder
alcançar o lugar que lhe indico no dia 14, às horas marcadas,
deverá diferir o ataque para o dia 15, às mesmas horas, cando
bem certo de que neste caso o acampamento estará mudado um
quarto de légua mais ou menos por essas imediações em que
estiverem no dia 14. Se o portador chegar a tempo de que esta
importante empresa se possa efetuar, V. S.a lhe dará 6 onças, pois
ele promete-me entregar em suas mãos este ofício até as 4 horas
da tarde do dia 11do corrente. Além de tudo quanto lhe digo nesta
ocasião, já V. As. Deverá estar bem ao fato das coisas pelo meu
ofício de 28 de outubro e por isso julgo que o bote será apro-
veitado desta vez. Todo o segredo é indispensável nesta ocasião
e eu cono no seu zelo e discernimento que não abusará deste