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Eviláz io Teixeira
Teixeira
Conselho Editorial
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Helenita Rosa Franco
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Jerônimo Carlos Santos Braga
Jorge Campos da Costa
Jorge Luis Nicolas Audy (Presidente)
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EDIPUCRS
Jerônimo Carlos Santos Braga – Diretor
Jorge Campos da Costa – Editor-Chefe
RS NEGRO
Cartografias sobre a produção do conhecimento

ORGANIZADORES :
Gilberto Ferreira da Silva
José Antônio
Antônio dos Santos
Luiz Carlos da Cunha Carneiro

2ª EDIÇÃO
R EVISADA
EVISADA E AMPLIADA

Porto Alegre
 Novembro 2010
© EDIPUCRS, 2010

CAPA Vinícius Xavier


Ilustração de Silvia do Canto
PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS Francisco Leal Moreira
REVISÃO Leônidas Taschetto e Fernanda Lisbôa
EDITORAÇÃO Supernova Editora
IMPRESSÃO E ACABAMENTO

APOIO TÉCNICO Camila Provenzi


Vera Lúcia Mendonça (AHRS)
Vivian Bertuol (SJDF)

EDIPUCRS – Editora Universitária da PUCRS


Av. Ipiranga, 6681 – Prédio 33
Caixa Postal 1429 – CEP 90619-900
Porto Alegre – RS – Brasil
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Fone/fa x: (51) 3320-3523
e-mail: edipucrs@puc
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rs.br
www.pucrs.br/edipucrs

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

R585 RS negro : cartografias sobre a produção do conhecimento [recurso


eletrônico] / organizadores Gilberto Ferreira da Silva, José
Antônio dos Santos, Luiz Carlos da Cunha Carneiro. – Dados
eletrônicos – 2. ed. rev. e ampl. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2010.
380 p.
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Modo de acesso: <http://www.pucr
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1. Negros – Rio Grande do Sul – História. 2. Cultura


Afro-Brasileira.
Afro-Brasileira. 3. Identidade
Identidade Cultural.
Cultural. 4. Negros – Brasil –
Educação. I. Silva, Gilberto
Gilber to Ferreira da. II. Santos, José Antônio
dos. III. Carneiro, Luiz
Luiz Carlos da Cunha.
CDD 981.650541
Ficha Catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS.

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por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a
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GOVERNO DO ESTADO DO R IO
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Governadora: Yeda Rorato Crusius
www.estado.rs.gov.br 

SECRETARIA DA JUSTIÇA E DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL


Secretário de Estado: Fernando Luís Schüler
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Coordenador da Lei da Solidariedade
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Comunidade Negra do RS (CODENE)
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Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul


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COMPANHIA ESTADUAL DE ENERGIA ELÉTRICA DO RS (CEEE)


Diretor-Presidente: Sérgio Camps de Morais
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Esta obra é parte integrante do projeto
diversidade , que é uma
 RS Negro: educando para a diversidade
realização da Secretaria da Justiça e do Desenvolvimento
Social do RS (SJDS), da Fundação de Educação e Cultura
do Internacional (Feci), da Companhia Estadual de
Energia Elétrica do RS (CEEE), nanciada através da
Lei da Solidariedade.

Tem a parceria do Educom Afro,


Afro, da Copir, do Codene, do AHRS, da UERGS e da
EDIPUCRS.

O kit do projeto inclui os seguintes produtos:


1. livro “ RS Negro:
Negro: cartograas da produção do conhecimento”;
2. vídeo-documentário  “Sou”;
3. revista RS Negro;
4. pôster book  RS
 RS NEGRO;
5. CD de aulas  RS NEGRO;
6. CD de áudios “ Negro Grande”.

Equipe do Projeto RS Negro


Curadoria e Coordenação Executiva: Sátira Machado
Assistente Social: Débora Grosso
Pesquisa Histórica: José Antônio dos Santos
Orientação Pedagógica: Leunice Martins de Oliveira
Organização Livro: Gilberto Ferreira da Silva,
José Antônio dos Santos, Luiz Carlos da Cunha Carneiro
Produção Video-Documentário: Bureau de Cinema e Artes Visuais
Produção da Revista: Denise Cogo, Cristóvão de Almeida,
Lourdes Silva e Hector Rodriguez
Produção Pôster Book e Ilustrações: Silvia do Canto
Designer: Jorge Meura
Produção do CD de Aulas: Arilson dos Santos
Produção do CD de Audios: Claudinho Pereira e Preta Pereira
Colaboradores: Maria da Graça Gomes Paiva, Lúcia Regina Brito,
Liliana Cardoso, Edegar Barbosa, Evelize Reis, Júlio Bernardes,
Débora Dutra, Iara Teresinha Coelho Tonidandel,
Antônio Paulo Valim Vega, Camila Provenzi, Naiara Silveira,
Miriam Alves (Olori Obá), Fernanda Oliveira
Oliveira da Silva, Vivian Bertuol,
Bertuol,
Milena Cassal, Priscila Azevedo, Cricia Santos, Giane Vargas Escobar,
Escobar,
Irene Santos e RBS
Os produtos do  Projeto RS Negro estão disponíveis em:
www.pucrs.br/faced/educomafro
APRESENTAÇÃO

Indivíduos têm direitos. Não sabemos exatamente qual a exten-


são desses direitos, pois eles são históricos. Sabemos que sua fun-
damentação reside na ideia de que somos iguais na diferença. A
modernidade tem assistido à evolução gradativa desta ideia: somos
iguais em nossas diferenças de religião, de riqueza, de gênero, de etnia
e escolhas comportamentais.
O livro que ora apresentamos é um esforço no sentido de dar
efetividade à ideia de uma igualdade quanto à memória histórica e à
cultura. A partir do trabalho dos professores Gilberto Ferreira da Silva,
José Antônio dos Santos e Luiz Carlos da Cunha Carneiro, foram
reunidos artigos de intelectuais gaúchos acerca da contribuição e da
experiência social negra no Rio Grande do Sul.* Trata-se de um livro
destinado aos nossos professores, aos jornalistas e a todos os que
desejam aprender um pouco mais sobre a vida social no Estado. Em
 particular, é uma publicação que pretende estimular aos professores
da rede pública e privada de ensino a incorporar cada vez mais a
história das comunidades afrodescendentes em seu trabalho de sala
de aula.
As fontes e os dados sobre os negros no Estado são muitas.
O estudo exaustivo sobre a contribuição econômica dos africanos
e seus descendentes ao país; as comunidades quilombolas; a im-
 prensa negra; as artes afro-brasileiras; os clubes sociais negros;
a espiritualidade de matriz negro africana; as escolas de samba;
os movimentos sociais; as mulheres negras; as rodas de capoeira;
as nações hip-hop; as frentes políticas; e os centros de tradições
gaúchas criados por negros renovam as identidades dos brasileiros
no Séc. XXI.

* Em 2009, os mesmos organizaram ainda a obra  RS Índio: cartograas sobre a produção
do conhecimento, para atender a Lei 11.645/2008, que inclui a temática indígena no currículo
escolar.
8 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

Sob um prisma cultural,  RS Negro: cartograas sobre a


 produção do conhecimento traz aos leitores um pouco desses es-
tudos. A obra é um convite à reexão e à descoberta, consti-
tuindo-se em um resultado positivo da decisão tomada pela Gover-
nadora, Yeda Rorato Crusius, de armar com o vigor necessário o
 papel do Estado do Rio Grande do Sul como garantidor de direitos
e promotor da igualdade. Para isto foi criada, em 2007, a Secretaria
da Justiça e do Desenvolvimento Social e, no seu âmbito, a Coordenadoria
das Políticas de Igualdade Racial.

Fernando Luís Schüler


Secretário de Estado da Justiça e do
Desenvolvimento Social
SUMÁRIO

Introdução ..................................................................................... 11
I – HISTORIOGRAFIAS
  1 A escravidão no Brasil Meridional e os desaos historio-
  grácos ................................................................................... 15
 Regina Célia Lima Xavier 
  2 A inserção do negro na sociedade branca ............................... 32
 Raul Róis Schefer Cardoso
3 Joana Mina, Marcelo Angola e Laura Crioula: os parentes
contra o cativeiro ..................................................................... 46
 Paulo Roberto Staudt Moreira
4 Os lanceiros Francisco Cabinda, João Aleijado, preto Antonio
e outros personagens negros na Guerra dos Farrapos ............. 63
Vinicius Pereira de Oliveira, Daniela Vallandro de Carvalho
5 Intelectuais negros e imprensa no Rio Grande do Sul: uma
contribuição ao pensamento social brasileiro .......................... 83
 José Antônio dos Santos
6 Carnavais de Porto Alegre: etnicidade e territorialidades negras
no Sul do Brasil ....................................................................... 100
 Íris Germano
II – RELIGIOSIDADES
7 As religiões afro-gaúchas ........................................................ 123
 Ari Pedro Oro
8 O sagrado na tradição africana e os cultos afro-brasileiros ..... 134
 Elsa Gonçalves Avancini
9 “O negro no campo artístico”: uma possibilidade analítica de
espaços de solidariedade étnica em Porto Alegre/RS .............. 148
Cristian Jobi Salaini
III – COMUNIDADES QUILOMBOLAS
10 Comunidades negras no RS: o redesenho do mapa estadual ... 165
 Rosane Aparecida Rubert 
11 Mediação social e políticas públicas nas comunidades rema-
nescentes de quilombos do Rio Grande do Sul ....................... 182
 Paulo Sérgio da Silva
12 Espaços possíveis por onde cartografar quilombos ................. 197
Georgina Helena Lima Nunes
13 Do “Planeta dos Macacos” a “Chácara das Rosas”: de um
território negro a um quilombo urbano ................................... 220
 Ana Paula Comin de Carvalho
IV – MOVIMENTOS NEGROS
14 A ressignicação de Palmares: uma história de resistência ..... 231
 Deivison Moacir Cezar de Campos
15 A rede associativa negra em Pelotas e Rio Grande .................. 246
 Beatriz Ana Loner 
16 “As contas do meu Rosário são balas de artilharia” ................ 262
 Liane Susan Muller 
17 Sport Club Cruzeiro do Sul e Sport Club Gaúcho: associativis-
mo e visibilidade negra em terras de imigração europeia no RS . 272
 Fabricio Romani Gomes, Magna Lima Magalhães
18 Prelúdios de um encontro histórico envolto a discursos: o dia em
que o político negro cortejou o mestre-salas dos mares (1959) .. 283
 Arilson dos Santos Gomes
V – PRÁTICAS EDUCATIVAS: ALTERNATIVAS
PARA O COMBATE AO PRECONCEITO RACIAL
19 Caminhos para uma educação antirracista: experiências que
falam ........................................................................................ 303
Gilberto Ferreira da Silva
20 Diversidade cultural, relações étnico-raciais e práticas peda-
gógicas: a Lei 10.639 como possibilidade de diálogo ............. 312
 Jacira Reis da Silva
21 A Cor da Cultura: crianças, televisão e negritude na escola .... 322
Sátira Pereira Machado
22 Educomunicação e produção cultural afro-brasileira: educando
 para a diversidade ....................................................................... 333
 Leunice Martins de Oliveira
VI – AÇÕES AFIRMATIVAS E UNIVERSIDADE
23 Ações armativas em educação: políticas de cotas em uni-
versidades públicas ................................................................... 345
 Jorge Manoel Adão
22 Ação armativa na sociedade porto-alegrense ........................ 361
 Dircenara dos Santos Sanger 
 Nota sobre os autores ...................................................................... 376
INTRODUÇÃO

Os temas ligados à história e cultura afro-brasileira, como as polí-


ticas de ações armativas, comunidades remanescentes de quilombos,
educação para a diversidade étnico-racial e educação antirracista, têm
tido voz corrente nos meios de comunicação e no cotidiano de todo o
 país. No caso do Rio Grande do Sul, a experiência de implementação das
 políticas de ação armativas no acesso às universidades e nos concursos
 públicos, bem como as discussões sobre o feriado de 20 de Novembro
 – Dia Nacional da Consciência Negra – têm levantado a questão da
 participação do negro na história do Estado.
Desta forma, as questões da educação antirracista e do respeito
à diversidade no ambiente escolar, dirigido ao contingente negro,
 passaram a ter espaço obrigatório na escola. Principalmente a partir
da Lei Federal 10.639 de 09 de janeiro de 2003, que alterou a Lei
9.394/1996 das Diretrizes e Bases da Educação Nacional, onde se
 preconiza a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-
Brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio de todo
o país. Esta Lei foi reformulada pela 11.645 em 2008, acrescentando,
de igual maneira, a obrigatoriedade para o ensino da cultura e historia
dos povos indigenas. Segundo a Lei, o conteúdo programático deverá
incluir “o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.
Assim: “O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá
diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação
da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como
o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e
dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira
e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as
suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à
história do Brasil”.
 Nesse sentido, o livro RS Negro: cartograas sobre a produção
do conhecimento se insere naquelas temáticas propostas pela Lei
11.645/08 com a perspectiva e o recorte regionais. A proposta dos
12 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

organizadores é compor um mosaico ou um mapa da presença e


 participação dos negros na história do Estado que contempla as ten-
dências das pesquisas produzidas nos últimos anos nas Universidades
gaúchas. São professores e pesquisadores dos temas mais variados
tais como: o carnaval, a religião, a educação, a intelectualidade, os
quilombos, jornais, clubes, festas, abarcando diversos períodos histó-
ricos – da fundação da Colônia de Sacramento e ocupação da Pro-
víncia de São Pedro, passando pela escravidão nas charqueadas,
resistência nos quilombos e trabalho nas cidades, até as cotas nas
universidades e a demarcação das terras dos remanescentes. O que
 pode, por sua vez, nos fornecer um quadro aproximado do que foi a
organização social, política e cultural da comunidade negra gaúcha para
superar as condições adversas em que se encontrou no passado e que
ainda busca superar no presente.
O  RS Negro  chega em boa hora, pois ainda há pouca dispo-
nibilidade de bibliograa sobre a temática da história, cultura e edu-
cação do negro no Rio Grande do Sul. Também há relativa diculdade
no acesso a pesquisas e publicações especializadas – dissertações e
teses acadêmicas – para o público em geral, principalmente os pro-
fessores do ensino básico, embora muitos reconheçam a importância
fundamental dos negros na construção socioeconômica e cultural do
Estado.
Desta forma, o amplo panorama da contribuição negra aqui reu-
nido se propõe a circular entre um público o mais diverso possível:
 professores de Ensino Básico e Educação de Jovens e Adultos,
universitários, pesquisadores e demais interessados.

Gilberto Ferreira da Silva


José Antônio dos Santos
I
HISTORIOGRAFIAS
1
A escravidão no Brasil Meridional e os
desafos historiográfcos
Regina Célia Lima Xavier 

Já houve tempo em que se armou que no Rio Grande do Sul a


escravidão havia sido numericamente insignicante, que sua socieda-
de havia sido, desde sempre, predominantemente branca (GOULART,
1927). Imagens como esta tem sido sistematicamente refutada pelos
estudiosos e a escravidão tem sido objeto de muitas pesquisas. Para
que possamos ter uma ideia da vitalidade dos trabalhos sobre este
tema, assinalamos o crescimento de publicações. Na década de
1980, por exemplo, contabilizou-se 114 títulos publicados, na década
seguinte, já seriam 196 e este número saltaria para 416 referências1
de 2000 a 2006 (XAVIER, 2007). Estes indicativos apontam a riqueza
do tema e o crescimento das pesquisas desenvolvidas no âmbito das
universidades. Analisar esta produção mais recente não é, pois, uma
tarefa simples. É necessário fazer algumas escolhas. Neste artigo, que
tem justamente como objetivo reetir sobre a história da escravidão
no Rio Grande do Sul tendo, tanto quanto possível, as experiências do
Paraná e de Santa Catarina como contraponto, alguns recortes foram
feitos. Em primeiro lugar, privilegiei apenas alguns daqueles trabalhos
 publicados nos anos 2000. Escolhi aqueles que versam sobre aspectos
relativamente pouco trabalhados que trouxeram, portanto, grandes
contribuições. Este artigo busca chamar a atenção para aqueles que
se desenvolveram ancorados em uma sólida pesquisa empírica. Entre
as diversas fontes, destaca-se a leitura de testamentos, inventários,
 processos crimes, cartas de alforri
alforrias,
as, documentação policial
policial,, perió-
dicos, entre muitos outros. A pesquisa destas fontes abriu espaço para
novas perspectivas analíticas, incrementado o debate teórico-metodo-
lógico. Foi preciso, no entanto, deixar fora de minha análise outros
trabalhos importantes referentes, por exemplo, aos crimes, quilombos,
1
Estes números são baseados
baseados no Guia Bibliográco
Bibliográco e referem-se aos livros,
livros, artigos, teses,
dissertações e resumos publicados sobre o Brasil Meridional.
16 Silva, G.F.;
G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

fugas, família escrava, entre outros. O pequeno espaço deste artigo


limita suas ambições. Por isso, não se pretende aqui esgotar o tema nem
citar todos os trabalhos publicados neste período.
Um dos primeiros aspectos que gostaria de citar refere-se ao
 processo de formação das fortunas no Rio Grande do Sul e no Paraná.
Helen Osório (2000), centralizando sua análise na constituição do
grupo mercantil sul rio-grandense, analisou o nal do século XVIII
e início do século XIX. Leandro (2003), por sua vez, em seu estudo
sobre Paranaguá, no Paraná, estendeu sua análise do século XVIII até
a década de 1880, investigando a formação das fortunas das famílias
mais inuentes econômica e politicamente naquela área. Franco Netto
(2001), para o período de 1850/1900, analisou outra região do Paraná,
centrando-se em Guarapuava. Estes trabalhos, os quais citamos a
seguir, relacionam a formação das elites e das fortunas à presença da
escravidão.
 No Rio Grande do Sul, segun
segundo
do Osório (2000), destac
destacavam-se
avam-se entre
os mais afortunados, aqueles que eram comerciantes e que ao mesmo
tempo atuavam nas charqueadas; os estancieiros que se dedicavam,
 primordialmente,
 primordi almente, a agropecuári
agropecuáriaa e os comerciant
comercianteses lavrador
lavradores,
es, que
atuavam tanto na área rural quanto possuíam imóveis urbanos. Apesar
de se dedicarem a atividades diferentes, suas fortunas eram constituídas,
em grande parte, pela propriedade de escravos. Estes marcavam,
inequivocamente, a hierarquia social.
Já na região de Paranaguá, no Paraná, segundo Leandro (2003),
entre os mais afortunados, estavam os proprietários negociantes e os
 proprietários
 proprie tários fazendeir
fazendeiros.
os. As maiores fortun
fortunas
as se constit
constituíram,
uíram, no
entanto, a partir de uma múltipla atuação. Ao mesmo tempo em que
estavam envolvidos com o tráco de escravos, exportavam a erva
mate; outros tinham propriedades agrícolas, possuíam embarcações
e companhias de navegação. Em ambos os casos, a escravaria cor-
respondia a uma parcela fundamental de suas fortunas. Apesar de
ter havido uma queda do número de escravos em 1870 nesta área,
os escravos nunca deixaram de signicar um parâmetro importante
desta fortuna senhorial, um dos principais elementos de sua segurança
 patrimonial, sinal de distinção e garantia de um afastamento da po-
 breza. Em Guarapuava,
Guarapuava, por m, tal como armou Franco Netto (2001),
a grande concentração da fortuna dos senhores estava concentrada
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 17

nos bens de raiz (campos, fazendas, invernadas e capoeiras),


capoeiras) , nos animais
de transporte e criação e nos escravos. Sua estrutura econômica era
 baseada no trabalho servil. Em 1850, por exemplo, os proprietár
proprietários
ios
de escravos detinham 90,3% da riqueza local, em 1860, 98% e em
1870, 87,9%.
Parece-me importante assinalar a relevância de trabalhos como
estes citados acima. Eles refutam aquela ideia de que a escravidão só foi
importante nas charqueadas ou que tivesse tido um peso secundário na
estrutura social. Embora não se possa ter ainda uma análise comparativa
mais abrangente englobando as várias áreas do Rio Grande do Sul,
Santa Catarina e Paraná, pode-se inferir, a partir destes trabalhos, que
este processo de formação da fortuna das elites e o desenvolvimento
de suas atividades econômicas não podem ser pensados sem uma
investigação aprimorada sobre o impacto da escravidão no Brasil
meridional.
Já faz algum tempo que a historiograa tem ressaltado a im-
 portânciaa da elite, dos comercian
 portânci comerciantestes de grosso trato, no comércio
internacional de escravos. Tendo em vista a importância desta ati-
vidade na constituição das fortunas coloniais, novas investigações
foram empreendidas sobre o tráco transatlântico de escravos no
Brasil meridional. Nestas pesquisas, interrogou-se sobre suas rotas,
sobre como se realizaram estas transações comerciais e seu impacto
na economia local, além de levantar questões sobre as características
dos escravos para ali deslocados. Após 1830, com a proibição deste
comércio, o tráco continuaria intenso mesmo na ilegalidade. O sul
do Brasil continuou a receber africanos. Para compreender melhor este
 período, desenvolveram-se trabalhos
tr abalhos sobre o porto de Paranaguá além
de se ter também estudos sobre o desembarque clandestino no litoral
do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Ao nal da década 1850,
no entanto, a repressão a este tráco se tornaria mais efetiva, restando
a possibilidade de se transacionar escravos em um tráco interno às
 províncias brasileiras. Os trabalhos sobre esta temática são bastante
recentes e auxiliam a um maior detalhamento deste processo abrindo
um novo leque de questões.
Gabriel Berute (2006) analisou a questão do tráco para o Rio
Grande do Sul em um momento em que ele estava em plena vigência.
Esta localidade para se abastecer de escravos participava indireta-
18 Silva, G.F.;
G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

mente do tráco transatlântico, na medida em que os cativos vindos


da África eram desembarcados, inicialmente, no porto do Rio de
Janeiro, sendo posteriormente deslocados para o porto de Rio Grande.
 Não se pode esquecer que os comerciantes sul rio-grandenses tinham
uma grande dependência comercial da corte. O autor considerou que
o uxo deste comércio acompanhou a conjuntura observada para
o Rio de Janeiro que passou de um período de estabilidade, entre
1790 e 1807, para um momento de aceleração, de 1810 a 1825. Este
 período coincide com a expansão econômica do Rio Grande do Sul,
com a estruturação das charqueadas, tendo crescido 112% o volume de
escravos aqui desembarcados de um período para o outro. O tráco teve
t eve
um caráter fortemente especulativo, tendo se realizado por um grande
número de agentes mercantis. O Rio de Janeiro recebeu principalmente
escravos da região de Congo-Angola no século XVIII e XIX. Dos
escravos africanos que aqui chegavam, portanto, via Rio de Janeiro,
segundo os dados compulsados pelo autor, 71% vinham da África
Centro Ocidental, com predomínio de escravos Benguela e Angola;
26% da África Ocidental e o restante da África Oriental. A maioria
dos escravos que desembarcava no porto de Rio Grande era africana
recém chegada ao Brasil. A maioria deles era do sexo masculino e em
idade adulta, embora tivesse um signicativo percentual de crianças
importadas.
Estes dados abrem novas possibilidades de pesquisa, tendo em
vista que, na população escrava do Rio Grande do Sul neste período,
os crioulos (escravos nascidos no Brasil) tinham uma ligeira vantagem
numérica em relação aos africanos. Como explicar esta diferença do
 perl do tráco com os dados da população da província? O autor
 pondera que isto talvez indique a possibilidade de reprodução natural
dos escravos. Esta é uma hipótese plausível, mas, para ser realmente
conrmada, necessita de estudos demográcos que investiguem
o tema da família escrava e suas formas de reprodução endógena.
Outra questão interessante refere-se à maioria de escravos masculinos
importados, em um perl que não era muito diferente daquele
observado em outros lugares no Brasil. Sendo os homens a maioria
dos escravos que chegava à província, não é de se estranhar que fosse
também maioria em sua população escrava, principalmente entre os
africanos. Esta vinculação entre os dados do tráco e seu impacto
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 19

na  população ao longo deste período ca assim destacada. Caso di-


ferente, por exemplo, parece ter vivido o Paraná (até 1830). Lá, a
 participação regular no tráco atlântico parece não ter ocorrido. Os
escravos ali importados foram transacionados em um tráco interno
àquela província, em rotas utilizadas por tropeiros e negociantes
de gado. Não havia ali uma diferença muito acentuada entre os
sexos, proporcionando uma reprodução natural (GUTIERREZ apud
BERUTE, 2006). Formas diferentes de importar escravos implicam,
neste caso, em um perl escravo diferenciado destas regiões. Mas o
que concluir sobre o percentual de crianças africanas importadas no
Rio Grande do Sul? Este dado contrasta com aqueles de outros portos
como o do Rio de Janeiro e da Bahia. Berute (2006) considera que
isto possa ser explicado por um cálculo racional dos senhores que,
entre outras razões, importariam escravos em idades adequadas
ao aprendizado de algumas tarefas, como aquelas exigidas pela
 pecuária.
Como o Rio de Janeiro era o principal fornecedor de escravos
 para o porto de Rio Grande
Grande,, esta rota tem sido privi
privilegiad
legiadaa nas
análises. No entanto, outra parcela de escravos vinha dos portos da
Bahia e de Pernambuco. No nal do século XVIII, consta que havia
certo uxo de escravos novos que partiam dos portos de Salvador em
direção ao Rio Grande do Sul, desempenhando um papel comple-
mentar neste comércio. Não se tinha muitos escravos crioulos,
indicando uma dependência do tráco atlântico. Eram majoritários
os africanos em idade adulta e de sexo masculino. A maior parte
deste comércio da Bahia com o Rio Grande do Sul era de pequena
monta, entrando os escravos em pequenas levas (RIBEIRO, 2007).
Embora já se tenha alguma pesquisa sobre esta relação entre os portos
de Salvador e Rio Grande, quase nada se conhece em relação a
Pernambuco, apesar de já existirem alguns trabalhos sobre este porto
(STABEN, 2007). Muito ainda resta, portanto, a ser pesquisado para
que se possa ter uma ideia mais aproximada das características deste
tráco e do perl dos escravos para que se possa avaliar seu impacto na
 população sul rio-grandense.
rio-grandense. Anal, estes portos poderiam
poderiam transacionar
africanos de diferentes procedências, trazendo para o Rio Grande do
Sul uma maior diversidade étnica. Para concluir, quero destacar que se
faz necessário novas pesquisas que investiguem a distribuição destes
20 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

escravos desembarcados no porto de Rio Grande para o interior da


 província do Rio Grande do Sul.
Com a proibição do tráco atlântico em 1830, este comércio
 passou por grandes transformações, tornando-se mais ágil no intuito
de burlar as proibições e os riscos decorrentes da apreensão de navios.
São necessárias, ainda, maiores investigações sobre este período
 para que possamos melhor entender a participação da região sul
neste comércio e a importância dele na constituição das fortunas e na
denição do perl demográco da região. No caso de Santa Catarina,
temos o artigo de Pires (2005) que descreve um caso interessante de
um navio, denominado Asseiceira, apresado pelos ingleses em 1840.
 Nele embarcaram 332 escravos em um porto da África Oriental
(Quelimane). No caso, parece que a ilha de Santa Catarina havia
servido de subterfúgio para despistar as autoridades do contrabando
que se efetuava. No Rio Grande do Sul tem-se o caso de um desembar-
que de africanos nas praias de Tramandaí, em 1852 (MOREIRA, 2007;
OLIVEIRA, 2006). As autoridades, a partir deste período, tomariam várias
medidas para impedir este comércio, considerado como contrabando,
 patrulhando estas e outras praias. Mas, de fato, os trabalhos sobre este
comércio clandestino ainda são bem pontuais.
Outro ponto importante no sul, assinalado por Leandro (2003) no
trabalho que citamos a seguir, parece ter sido o porto de Paranaguá.
Sua articulação econômica com o Atlântico Sul se deu, justamente,
entre 1831 e 1850. Vimos que ali os grandes comerciantes formaram
suas fortunas participando também do comércio de escravos. Alguns
tracantes que atuavam no Paraná relacionavam-se com a praça
comercial do Rio de Janeiro, embora tivessem autonomia para
consignar navios negreiros e bancar diretamente a empreitada do
tráco transatlântico. Após 1830, sendo o tráco ilegal, os impor-
tantes portos do Rio de Janeiro e de Salvador seriam mais vigiados,
forçando a utilização de novas rotas. O porto de Paranaguá seria
escolhido e nele desembarcaria um grande número de africanos. Qual a
importância destes desembarques na constituição da população escrava
do Paraná a partir deste momento? Teria sido suciente para mudar seu
 perl? Ou parte destes escravos africanos foi, por sua vez, revendida
 para outras regiões? Enm, as questões aqui levantadas apontam para a
necessidade de novas pesquisas.
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 21

Com a proibição do tráco atlântico em 1850, reduziram-se as


 possibilidades de reposição dos plantéis escravos que se tornaram
cada vez mais caros. Algumas áreas, em expansão econômica, como o
caso do sudeste cafeeiro, atrairiam parte dos cativos daquelas regiões
menos capitalizadas ou em crise. Foi o caso do nordeste que sofria com
a seca e do Rio Grande do Sul que sofria com a queda do preço do
charque. Vale ressaltar que consta que o Rio Grande do Sul foi uma
das províncias que mais perdeu escravos neste tráco interprovincial.
 Não há ali, no entanto, muitas pesquisas sobre este tipo de comércio de
escravos.
Cunha (2006), analisando o caso de Santa Catarina, pondera que
o tráco interno parece ter tido ali, também, um impacto importante,
sendo citado como uma explicação possível para a diminuição da
 população escrava naquela província. Inicialmente acreditou-se
que este deslocamento dos escravos para outras províncias tivesse
ocorrido principalmente por terra, mas em seu recente estudo o autor
levanta a possibilidade de ele ter se efetuado por mar, tendo em vista
as vantagens deste tipo de transporte que, além de ser mais rápido,
signicava um menor custo de manutenção dos escravos. A utilização
do vapor tinha ainda outras características. Ao melhorar a comunicação,
facilitando os contatos comerciais, abria a possibilidade de participação
de comerciantes diversos neste comércio de escravos. De fato, seus
dados parecem indicar que muitos dos comerciantes listados atuavam
também em outras atividades, tais como as funções públicas, e eram
 parte integrante da elite econômica e política local.
Enm, o tema do tráco de escravos tem despertado pesquisas
inovadoras, mas muito ainda resta para ser conhecido, tanto em relação
à participação do sul no tráco atlântico quanto em relação às transações
de compra e venda efetuadas entre as várias localidades no interior do Rio
Grande do Sul, do Paraná e de Santa Catarina neste período. Interrogar-
se sobre o impacto deste comércio na constituição da sociedade pode
vir a esclarecer questões, tais como as relações étnicas, sua inuência
na formação dos plantéis e a forma como experimentaram a escravidão,
entre outros aspectos.
Durante algum tempo, os estudiosos destacaram a centralidade
de algumas atividades para explicar o papel desempenhado pela
escravidão no desenvolvimento social. Sublinharam-se, para o caso
22 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

do Rio Grande do Sul, as charqueadas que, com seu incremento,


teriam impulsionado a formação de uma sociedade escravista. A
importância das charqueadas terminou por obscurecer a presença
dos escravos em outros lugares e atividades. Para mudar este quadro,
Zarth (2002) chamou a atenção em seu trabalho para a relevância de
se estudar locais que não tiveram charqueadas ou que eram pouco
urbanizados. Estudos como o seu demonstraram o quanto a escravidão
esteve inserida em praticamente todas as atividades econômicas.
Anal, como concluiu o autor, se os escravos em termos absolutos
 podiam não ser muito numerosos em alguns destes locais, princi-
 palmente se comparados com outras regiões, sua importância relativa
não deixou de ser comprovada. Na região das missões, por exemplo, sua
 presença foi encontrada nas atividades das pequenas indústrias artesanais
e no fabrico da farinha de mandioca. Os escravos estavam presentes
também nas áreas coloniais ligadas a pequenas indústrias e ao comércio,
como em São Leopoldo. O estudo do trabalho escravo no espaço urbano,
 por vezes, tem sido destacado em pesquisas voltadas às cidades de Porto
Alegre e Pelotas, por exemplo, como veremos mais adiante. Mas, sem
dúvida, os maiores avanços nos estudos se destacam nas atividades
 pastoris.
Para compreender melhor a importância da escravidão, os estudiosos
têm tentado investigar, de forma mais detalhada, o trabalho dos escravos.
Se nas charqueadas, por exemplo, havia uma gama considerável de
funções especializadas, como seriam em outras atividades como nas
estâncias, por exemplo?
Farinatti (2003; 2005) já armou que é preciso ter cuidado com
as classicações, pois diferenças como o tamanho das propriedades
e suas características terminavam por inuenciar o tipo de trabalho
escravo ali desenvolvido e o perl destes trabalhadores. Osório (1999;
2003; 2005), construindo uma visão mais global do Rio Grande do
Sul, no período entre 1765 e 1825, demonstrou que em várias grandes
estâncias o número de escravos campeiros supria as necessidades de
mão de obra permanente para a criação de gado. Assinalou, ainda,
que mais da metade das estâncias era constituída de estabelecimentos
mistos, e os escravos, nestes casos, dedicavam-se, tanto à agricultura
quanto à pecuária. Zarth (2002), por sua vez, vai pontuar a diculdade
de se denir de forma estreita estas atividades, tendo em vista que os
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 23

escravos podiam ser encarregados de funções diversas. Um escravo


 podia se dedicar a produção de mandioca, mas não descuidar da lida
 pecuária. Apesar desta diculdade apontada por estes autores, Zarth
(2002) termina por destacar três atividades básicas. A do escravo
roceiro – dedicado primordialmente à agricultura; o campeiro –
responsável pelos trabalhos pastoris, e os escravos domésticos. Zarth
valorizou em seu trabalho os escravos roceiros. Farinatti (2005), no
entanto, trabalhando com um período posterior (1831/1870) na região
de Alegrete, vai encontrar um perl diferente, tendo em vista que lá
ele não encontrou tantos escravos roceiros. Principalmente entre os
grandes produtores, os escravos campeiros era a maioria, não sendo a
agricultura relevante nesta região estudada. Nestas grandes estâncias,
 pondera o autor, os escravos tinham uma grande variedade de ofícios.
O tamanho da propriedade inuía também no perl destes escravos.
Assim, os grandes criadores (com mais de 2000 reses) tinham um
alto índice de escravos africanos do sexo masculino. Já os médios e
 pequenos produtores (500 a 1000 reses) tinham um maior número
de crioulos, mulheres e crianças. Para ele, é importante estudar a
composição das escravarias porque este era outro parâmetro que marcava
as diferenças e as desigualdades entre os criadores de gado.
 No Paraná também se tem investigado a região pecuária, como é
o caso da região de Castro e Guarapuava. Nesta primeira localidade,
Lima (2004; 2007) arma que havia unidades produtivas dedicadas à
agricultura, à pecuária e unidades que combinavam estas atividades,
sendo mistas, como no caso do Rio Grande do Sul. Uma boa parte
(32%) destas propriedades em Castro, em 1835, tinha escravos. Este
número não se deve apenas ao crescimento vegetativo, pois, na década
de 1830, houve uma participação da região no comércio de escravos.
Muitos senhores migraram também para ali levando suas escravarias.
Conforme a bibliograa já havia apontado, sua população escrava era
eminentemente crioula, com alta proporção de crianças e equilíbrio entre
os sexos. Este perl não seria diferente para Guarapuava (FRANCO
 NETTO, 2001). Entre 1850 e 1880, predominava, em sua população
escrava, homens crioulos. Os africanos não chegavam a 9% da população
cativa da região.
Estes trabalhos, como assinalou Osório (2007), contestam a
visão tradicional de uma paisagem agrária conformada por grandes
24 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

latifúndios pecuários manejados por poucos peões livres. Ao destacar


o trabalho escravo no interior das estâncias estes autores abrem um
novo campo de pesquisa. Anal, ainda é preciso se conhecer melhor a
formação dos plantéis escravos e seus pers, as atividades em que eram
empregados, os conitos nos quais estiveram envolvidos e as diferentes
formas de controle social.
 Na tentativa de melhor compreender a experiência da escravidão,
o espaço urbano também foi objeto de algumas análises. Destaco aqui
aquelas referentes às cidades de Porto Alegre e Pelotas.
O estudo de Zanetti (2002) já ressaltava o crescimento de Porto
Alegre em meados do século XIX. Ali havia uma representativa
 presença dos escravos que tinham ocupações variadas e também
atuavam como trabalhadores ao ganho (quando tinham uma relativa
autonomia para contratar seus serviços devendo parte do valor ganho
a seus senhores), como trabalhadores alugados (quando o senhor
alugava seus serviços a terceiros) ou como lavradores e roceiros,
trabalhando em serviços agrícolas nos arredores da cidade. Apesar de
mostrar esta diversidade dos trabalhos urbanos, a autora vai questionar
que este fosse um espaço de maior mobilidade, destacando a cidade
como um lugar de confronto dos escravos com seus senhores e auto-
ridades públicas. O trabalho ao ganho em Porto Alegre, por exemplo,
longe de proporcionar melhores condições de vida, era, essencial-
mente, uma forma de o senhor angariar maiores lucros na exploração
do trabalho compulsório. Com ganhos insucientes para prover as
necessidades básicas, os escravos na cidade se viam impelidos a
contrair dívidas com lojistas, a cometer roubos e furtos. Diante de
suas péssimas condições de vida e de trabalho, restava a eles resistir
ao cativeiro cometendo variados crimes contra a ordem pública, a
 propriedade ou contra indivíduos. Na cidade, os escravos estavam
submetidos não apenas à repressão senhorial, mas a diversos me-
canismos de controle, tais como a vigilância policial, as posturas
municipais, entre outras. Os crimes escravos, no entanto, indicam sua
insubordinação e revolta. O quadro em Pelotas, revelado pela pesquisa
de Simão (2002), tende a não ser muito diferente do vericado em Porto
Alegre. Ali os escravos também desempenharam atividades diversas
e recorreram a variados crimes como forma de resistir ao sistema
escravista.
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 25

Esta ênfase na cidade como um lugar propício para se investigar a


resistência dos escravos também foi vericada no trabalho de Moreira
(2003), relativo igualmente a Porto Alegre. Este autor vai destacar a
complexidade do espaço urbano, no qual conitavam expectativas
diversas relativas à experiência da escravidão. Por um lado, os senhores
desejavam extrair além do lucro relativo ao trabalho do escravo, sua
delidade e obediência, enquanto os cativos buscavam maiores espaços
de atuação e de liberdade. Neste sentido, embora a questão central seja a
resistência escrava, o autor vai estar preocupado em revelar não apenas
aquelas mais radicais, mas também as mais cotidianas. Para ele, muitos
casos de desordens, embriaguez, imoralidades, roubos e vadiagem,
tão combatidos pelas autoridades, tinham um efeito mais danoso do
que ataques mais radicais, como os crimes contra os senhores e seus
familiares. Era uma resistência mais corrosiva porque incidia nas formas
adotadas de controle social. O aumento deste tipo de resistência, na
década de 1880, coincidia com a resistência dos cativos aos contratos
de prestação de serviços.
Outro ponto a destacar é a possibilidade dos escravos de alugarem
quartos ou pequenos imóveis para viver. Estes locais possibilitavam
uma maior sociabilidade, integrando-os a diferentes grupos étnicos e
à população pobre livre. Esta era uma prerrogativa importante para o
desenvolvimento de seus relacionamentos amorosos ou familiares; era,
também, objeto de rme vigilância policial. Destaca-se, neste sentido, o
 bairro Cidade Baixa como local em que redes de solidariedade poderiam
ser construídas pela comunidade negra. Em Porto Alegre havia, portanto,
espaço para se desenvolver uma “cidade negra” à revelia dos esforços
repressivos das autoridades.
Se a cidade era um lugar de conitos e de resistência para os
escravos, era, ao mesmo tempo, um lugar que propiciava espaços
de convivência à comunidade negra, importante na construção de
estratégias variadas na busca de melhores condições de vida. Assim,
a imagem da cidade projetada pelo trabalho de Moreira (2003) tende a
ser mais matizada do que aquela do “calabouço urbano” conferida por
Zanetti (2002).
Estas diferenças interpretativas também são signicativas quan-
do estes autores analisam a questão das alforrias no Rio Grande do
Sul. Zanetti (2002) considerava um exagero postular-se a facilidade
26 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

dos escravos em obter alforrias. Para ela, a historiograa atribuía ao


escravo, de forma demasiada, a possibilidade de negociar sua liber-
dade. Em sua opinião, esta ênfase na negociação criava a imagem de
um escravo passivo e acomodado ao sistema. Esta autora, assim
como Simão (2002), em suas análises respectivas a Porto Alegre e
Pelotas, preferiu enfatizar os horrores de se viver na escravidão e a
contundente resistência dos cativos a esta situação. Moreira (2007), por
sua vez, analisa as alforrias dentro do quadro da relação estabelecida
entre senhores e escravos e a partir de suas diferentes estratégias e
 perspectivas. Ele compreende as cartas de alforrias como um elemento
“cênico”, no qual “os senhores buscavam através delas negar, anular,
esvaziar a luta de classes (e étnica)” presentes no contexto escravista.
Daí a ênfase senhorial na alforria como concessão e a utilização de
um vocabulário que sublinhava a imagem de escravos submissos.
As cartas, muitas vezes, tinham a intenção de “obliterar a existência
da ação escrava”. As alforrias, segundo Moreira (2007), devem ser
compreendidas dentro deste “jogo estratégico” no qual os escravos
contrapunham às expectativas senhoriais, suas diversas ações. Neste
sentido, estabelecia-se uma tensa negociação. Este termo, dene
este autor, não deve ser encarado como apaziguamento do mundo
escravista, mas como a explicitação de um confronto destas diferentes
 perspectivas.
O debate sobre a resistência ou a acomodação dos escravos esteve,
 portanto, presente nestes recentes estudos aqui citados. Contudo, com
a publicação de novos instrumentos de pesquisa (Arquivo Público do
Paraná, 2005; Rio Grande do Sul, 2006) e análises mais recentes sobre
as cartas de alforrias (MOREIRA, 2007), o interesse dos estudiosos
tende a se deslocar um pouco, buscando aprofundar as pesquisas
sobre as formas de sociabilidade dos escravos e o signicado de
suas alforrias.
Uma questão importante, por exemplo, incide sobre as variadas
formas de obtenção da liberdade. Zanetti (2002), ao analisar as difíceis
condições de vida do escravo em Porto Alegre, considerou que o
 pecúlio angariado mensalmente por um escravo ao ganho era suciente
apenas para comprar o equivalente a um quartilho de aguardente, uma
réstia de cebolas ou um quilo de charque. Ela calculou que em 1840
seriam necessários 11 anos de trabalho ao ganho para que um escravo
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 27

 pudesse comprar sua alforria, concluindo que esta possibilidade era


insignicante numericamente, uma verdadeira exceção. Em 2007,
no entanto, foi publicado um levantamento exaustivo das alforrias
registradas em Porto Alegre (MOREIRA, 2007), totalizando 10.055
cartas. É interessante notar que 37,20% delas foram pagas pelos escravos.
Portanto, nem tão insignicante assim. Resta-nos, então, reetir um
 pouco melhor sobre estas diferentes formas de obtenção da alforria e
seus signicados.
Inicialmente é necessário compreendermos que as alforrias pagas,
como arma Moreira (2007), foram aquelas que tiveram o valor do
cativo restituído ao senhor por ele próprio, por seus familiares ou por
terceiros. Isto signica que a diculdade real apontada por Zanetti
(2002) para o acúmulo do pecúlio era, muitas vezes, contornada por
algumas prerrogativas adotadas pelos escravos. Em seu trabalho,
Moreira (2007) aponta a existência de redes de mútuo apoio entre a
comunidade negra. Em muitos casos, o pecúlio não se referia ao
esforço individual, mas de um grupo composto por anidades étnicas,
religiosas ou afetivas. Vale ressaltar, também, a presença de algumas
associações abolicionistas que libertaram alguns escravos mediante
o pagamento de seus valores (MOREIRA, 2003; REBELATTO,
2006). Por m, muitos cativos estabeleciam contratos com terceiros
comprometendo-se a servi-los durante um determinado tempo contra suas
alforrias.
Ainda segundo Moreira (2007), as alforrias concedidas sob
condição (que correspondiam a 35,28% do total) previam a obrigação
do escravo de cumprir certas obrigações que eram designadas nas
cartas. Algumas, por exemplo, previam que o cativo só seria livre
quando o senhor morresse. E em muitos destes casos alforriavam-se
crianças obrigando-as, portanto, a viver uma boa parte de suas vidas
sob a escravidão. Outra condição, bastante recorrente em Porto Alegre,
referia-se aos casos em que os escravos deveriam prestar seus serviços
durante certo tempo, suciente para indenizar o senhor do valor por
ele investido no escravo. Este tipo de condição tendia a criar laços de
dependência dicultando a autonomia do libertando. Na última década
da escravidão este tipo de alforria atingiu o seu auge. Aquele foi um
 período de intenso movimento abolicionista e de resistência escrava.
Alforriar os escravos, condicionando sua plena liberdade ao cumpri-
28 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

mento de contratos de serviços, foi o que Moreira (2007) chamou de


“escravidão disfarçada”.
As alforrias gratuitas (19,23% do total), por m, foram àquelas
obtidas sem pagamento ou condição. Elas certamente não apontam
 para a benevolência dos senhores e devem ser analisadas dentro do
contexto da política de domínio senhorial. Muitas destas cartas, por
exemplo, assinalavam o agradecimento dos senhores em relação
aos serviços prestados por seus escravos, criando, por outro lado,
 pedagogicamente, a ideia de que aqueles escravos que trabalhassem
duramente poderiam obter a liberdade. Outros casos eram aqueles nos
quais os senhores libertavam escravos doentes ou inválidos para o
trabalho.
Analisando o total destas cartas, Moreira (2007) percebe que as
mulheres foram mais bem sucedidas do que os homens na obtenção
das alforrias. Este dado não é muito diferente de outras localidades
no Rio Grande do Sul e no restante do Brasil. Mas análises porme-
norizadas destas cartas compulsadas, no contexto sul rio-grandense,
 podem esclarecer melhor a relação entre a escravidão e as relações de
gênero, a importância da formação de famílias e as condições de vida
dos cativos. Percebe-se, também, que os africanos se alforriaram mais
que os crioulos. A maior parte deles era procedente da África Central
Atlântica, seguidos por aqueles vindos da África Ocidental e, por
último, da África Oriental. Os dados das alforrias tendem a corrobo-
rar a procedência dos escravos apontados pelo tráco atlântico. A
capacidade destes africanos de estabelecer laços entre si, de cons-
truírem anidades étnicas imprescindíveis para a compra de suas
liberdades, aponta, cada vez mais, para a importância de estudos
sobre etnicidade como forma de compreender as diferentes formas de
sociabilidade e de cultura construída pelos escravos na formação do Rio
Grande do Sul e do Brasil meridional.
Quando se contabiliza mais de 400 trabalhos produzidos nos
últimos seis anos sobre a escravidão no Brasil meridional tem-se uma
ideia do quanto a pesquisa se expandiu. No entanto, pelo menos no
que se refere ao Rio Grande do Sul, muito ainda resta para ser feito.
Raros são os trabalhos demográcos, conhece-se relativamente
 pouco o perl dos escravos nas suas diferentes áreas e suas formas de
vida. Trabalhos comparativos de fôlego que relacionem a experiência
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 29

histórica do Rio Grande do Sul com aquela do Paraná e de Santa Cataria


ainda precisam ser feitos. Os autores aqui citados e seus trabalhos
sobre a escravidão demonstram a riqueza da empreitada e abrem novas
 perspectivas de pesquisa.
O campo de investigação tem se modicado muito também. São
notáveis os esforços empregados na confecção de instrumentos de
 pesquisa. Digno de nota são os levantamentos das cartas de alforrias
do Rio Grande do Sul, o guia de fontes do Paraná, assim como o guia
 bibliográco para o Brasil meridional. Tem-se, ainda, organizado
vários eventos nos quais se apresentam trabalhos concluídos ou
em andamento, fomentando um saudável espaço de discussão,
imprescindível à construção de novos conhecimentos. 2  Estas são
iniciativas importantes que devem incentivar os novos pesquisadores
e qualicar os debates. Anal, muito ainda resta para ser feito para que
se revele de forma cada vez mais límpida que o Rio Grande do Sul
nunca foi tão branco quanto erroneamente já se apregoou, para que se
demonstre a importância dos africanos e seus descendentes na formação
deste Brasil meridional.
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2
É o caso, por exemplo, dos três Encontros de Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional,
realizados em Castro, Porto Alegre e Florianópolis, respectivamente em 2003, 2005 e 2007; é
também o caso dos inúmeros eventos realizados no Rio Grande do Sul pelo GT Negros, vin-
culado a ANPUHRS.
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século XIX. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002.
2
A inserção do negro na sociedade branca
Raul Róis Schefer Cardoso

Pesquisas historiográcas, por um longo tempo, estiveram


direcionadas para a análise das ações de grandes indivíduos, reis ou
heróis. Intimamente ligada ao poder, a narrativa desses grandes fei-
tos objetivava valorizar Impérios, Monarquias e Repúblicas que,
destacando uma concepção de processo evolutivo, buscava de-
monstrar o sentido unívoco do progresso da humanidade. Opondo-
se a uma história factualista, historiadores europeus partiram da
valorização dos excluídos como objeto de estudo. Assim, camponeses,
operários, o negro, a mulher, ou aquilo que genericamente denomi-
namos de “populares” ganharam voz e vez.
A micro-história nasceu a partir dessa proposta. Vinculada à história
social, ela possibilita ao pesquisador estudar determinadas sociedades
através de uma redução de escala e a partir desse microcosmo determinar
um ponto de partida para uma abordagem mais ampla, direcionando-se
 para uma generalização.3
Entretanto, trabalhar com a história dos excluídos torna-se difícil.
Diferentemente dos grandes personagens – governantes e lideranças
 políticas – que sempre foram foco dos relatos, dos registros históricos
e da documentação ocial, o homem comum não produz documentos.
Estudar essa realidade resulta para o pesquisador reconhecer o reduzido
número de fontes disponíveis. Contudo, foi a partir desse obstáculo que
a história oral encontrou um vasto campo a ser trabalhado e utilizado
como metodologia de pesquisa.4
Este artigo busca interpretar como se processou a inserção do
homem negro na sociedade branca ao longo do tempo, acompanhando
a trajetória da comunidade e através da descrição e análise das
relações estabelecidas entre o homem branco e o homem negro no
cotidiano, examinando as múltiplas interações informais e formais, os

3
Para uma visão aprofundada do tema, ver Revel (1998).
4
Para uma visão aprofundada do tema, ver Penna (2005).
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 33

signicados simbólicos, as redes de relações e os conitos cotidianos


que se constroem dentro das relações sociais que, numa escala reduzida,
 permite ao pesquisador fazer uma abordagem mais precisa de como os
agentes sociais percebem-se.
Morretes: da “vila de cima” e da “vila de baixo”
Apoiado na micro-história e na história oral, esse artigo busca
dar voz e destacar o destino de homens e mulheres comuns de uma
comunidade em especial. Os habitantes do bairro Morretes, município de
 Nova Santa Rita, na região metropolitana de Porto Alegre, constituíram-
se como fontes de pesquisa para estabelecer os processos históricos
que explicam a inserção do negro na sociedade brasileira, bem como
sua autodenição como indivíduo e a formatação de sua identidade
interagindo numa sociedade inter-racial.5
Com foco neste pequeno universo, selecionamos um ponto
inicial de pesquisa: a divisão social e racial que determinava a se-
 paração dos habitantes da localidade: de um lado a comunidade negra
e de outro a comunidade branca. E também uma subdivisão expli-
citada pelos moradores ao se referirem aos da “vila de cima” e da
“vila de baixo”. Nessa subdivisão, os interesses de uma parte da
comunidade branca confundiam-se com os interesses da comunidade
negra, principalmente a partir da instalação de uma fábrica de cimento
no bairro, no início da década de 1950. Com as comodidades que
subjaziam a isto, moradores brancos não incorporados no quadro
funcional acabaram por sofrer a segregação dos funcionários da
fábrica.
 No mundo contemporâneo, o indivíduo sofre a inuência de uma
sociedade globalizada e de rápidas transformações. Aquele sentimento
de uma identidade unicada é suplantado por uma multiplicidade
de representações culturais. O sujeito acaba, temporariamente, se
identicando com uma dessas variantes e a incorpora. Essa assi-
milação de novas culturas é fruto do mundo globalizado, em contraste
com sociedades anteriores que tinham como característica viver num

5
Este Artigo é parte da Monograa “A inserção do negro na sociedade branca” apresentada no
 programa de pós-graduação da Unilasalle no ano 2002. As entrevistas foram produzidas com os
moradores locais relatando suas lembranças vividas entre os anos de 1950-1980.
34 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

tempo mais compassado e bucólico. Essas assimilações ocasionais


terminam por provocar rupturas e fragmentações, que estão em constante
movimento, resultando num pluralismo cultural.6
 No bairro Morretes essa pluralidade se manifestava quando
 brancos da “vila de baixo” incorporavam o sentimento de exclusão
que os negros carregavam consigo mesmo antes da instalação da
fábrica. Emergia o sentimento de pertencimento a esse grupo e o
convívio cotidiano inuenciava na constituição de uma identidade.
Contudo, quando a “prática formal” oferecia a oportunidade de reu-
nir ambos os grupos, o da “vila de baixo” e o da “vila de cima”,
novamente fazia surgir o fenômeno do deslocamento. A comunidade
 branca da “vila de baixo” acabava por assumir a identidade que estava
submersa no seu subconsciente, mas que nunca fora renegada, a
de ser branco. Esse fenômeno é o que Norbert Elias (2000, p. 21)
denomina, de coesão grupal: “[…] a identicação coletiva e as normas
comuns capazes de induzir à euforia graticante que acompanha a
consciência de pertencer a um grupo de valor superior, com o desprezo
complementar por outros grupos”.
Quando a comunidade se encontrava para festejar a padroeira do
local, sempre havia uma festa de congraçamento com almoço campeiro,
seguido de um concorrido baile. O modelo hierarquizante da sociedade
 brasileira se manifestava quando o grupo dos brancos se dirigia para
dançar na pista reservada a eles, e os negros se dirigiam para a outra
 pista também já reservada a eles. Não havia nenhuma expressão de
indignação por parte dos negros, eles simplesmente dançavam felizes e
integrados. Brancos e negros pareciam viver harmoniosamente, cada um
com seu espaço, sabendo bem qual era o seu lugar e a linha que dividia
seus mundos bem delimitados.
Por ser um município novo e periférico, não dispomos de muitas
fontes documentais que pudessem embasar nossa pesquisa, sendo
mais um elemento para optarmos pela história oral. Assim, buscamos
reconstruir o passado dessa comunidade através de depoimentos e
lembranças dos moradores e de seu cotidiano. Segundo Etienne François
(1998, p.4), “a história oral seria inovadora primeiramente por seus
objetos, pois dá atenção especial aos “dominados”, aos silenciosos

6
Para uma visão aprofundada do tema, ver Hall (2001).
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 35

e aos excluídos da história [...] numa perspectiva decididamente


“micro-histórica.”
É através desses relatos de histórias de vida que se projetam
as relações de um determinado grupo, cabendo ao pesquisador identicar,
nos interstícios das entrevistas, o que realmente a pesquisa procura
desvendar.
Morretes é um antigo bairro do município que tinha por característica,
até o início do século XX, a presença de grandes fazendas nas quais a
mão de obra utilizada era o homem negro escravo. 7 A instalação de
uma fábrica de cimento acabou por provocar dentro da comunidade
uma relação de aproximações e interesses análogos entre a comunidade
negra e os moradores brancos, não aproveitados como mão de obra da
fábrica. No cotidiano os interesses utuavam, ora pendendo para um
lado, ora para outro, provocando deslocamentos e fragmentações no
grupo social dos habitantes da “vila de baixo” constituídos por pessoas
da raça branca.
Dentro daquilo que denominamos “práticas informais” (práticas
do cotidiano sem um compromisso formal, despidas de um simbolismo
cerimonioso, profundo ou marcado), observamos que o grupo de
moradores brancos da “vila de baixo” se identicavam com os negros,
compartilhando o sentimento de exclusão. No cotidiano do grupo da
“vila de baixo” manifestava-se um congraçamento diário. Encontramos
isso nas mais simples tarefas, como lavar roupa na beira do rio em
grupos. Esse sentimento de pertencimento e de igualdade também era
manifestado pelos negros da “vila de baixo”. Uma maneira de expressar
essa condição de igualdade remete ao que ocorria quando nascia uma
criança negra: era convidado para padrinho um morador do grupo branco
da mesma vila.
Entretanto, quando entravam em cena as “práticas formais” –
aquelas revestidas de um caráter ocial, cerimonioso e que acabam por
confrontar e distinguir a comunidade da “vila de baixo” e a da “vila
de cima” – esse sentimento de pertencimento da comunidade branca
da “vila de baixo” acabava se deslocando e se identicando com a
comunidade branca da “vila de cima”.

7
Para uma visão aprofundada do tema, ver, Cardoso (2007).
36 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

Encontramos, então, um sujeito social que transita entre rupturas


e fragmentações. Entretanto, não se xando num polo central, mas a
 partir da pluralidade, os antagonismos sociais acabam por produzir
identidades.8 A sociedade moderna se caracteriza mais pelas diferenças,
fazendo surgir um sujeito articulado e em constantes deslocamentos.
Partindo, ainda, dessa premissa, constatamos nas entrevistas os
antagonismos e os deslocamentos a que estava sujeita à comunidade
do bairro de Morretes. Respondendo a uma pergunta de como era
o dia a dia na “vila de baixo”, a senhora Lourdes vem corroborar
essa lógica:
Eu nunca me esqueço! Um dia teve ali perto da minha casa,
na minha casa eu e a minha cunhada, teve um baile de uns
embarcadistas, que eram nossos vizinhos, vizinho de porta ali tinha
uma vilazinha né, então brancos, brancos e tinha embarcadistas
moreno, trabalhava nos barco antigamente lá e eles foram comer
um churrasco. Moravam assim que nem aqui porta com porta e
nos convidaram né, e ai o que aconteceu? Nós dançamos lá eu e a
Lora....
A convivência entre todos e os grupos, inclusive dos negros, ia
ao encontro de seus interesses momentâneos: compartilhar uma boa
conversa à beira do rio, possuir o status de padrinho das crianças nascidas
e derrotar o inimigo momentâneo no futebol, nesse caso, os jogadores
e torcedores da “vila de cima”. E, nalmente, numa “prática informal”
com seus vizinhos “morenos”, dançar com um “moreno”, o que poderia
ser considerado inimaginável antes.
Eram nas “práticas formais” que ocorria a transmutação. Quando
das festividades que celebravam o dia de São Benedito e Nossa Senhora
da Conceição, todos os signicados das “práticas informais” eram
suplantados por uma motivação mais forte que é intrínseca a toda a
sociedade, por aquele sentimento que num determinado momento
aora e fala mais alto no indivíduo. Para uns ele é a nacionalidade, para
outros é a religião. Mas, no caso de Morretes, o que fazia emergir um
sentimento de pertencimento mais signicativo era a condição de negro
ou de branco.

8
Para uma visão aprofundada do tema, ver Giddens (2002).
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 37

Através dos contatos com os moradores percebemos que os


casais escolhidos para “festeiros” sempre eram brancos. Perguntado
aos habitantes sobre se havia alguma restrição à participação do negro
como “festeiro” eles diziam que “não, era só eles serem convidados”.
A questão é que eles não eram convidados.
O Brasil trabalhista dos anos 50
 Na década de cinquenta, o Brasil se inseriu num modelo
econômico que poderia ser classicado como correspondendo aos
 primeiros passos de uma política globalizante. Nova Santa Rita
absorveu os reexos dessa política. Embora a fábrica de cimento
não fosse identicada como uma empresa multinacional, tinha as
características de uma empresa nacional de grande porte. Parte
integrante do complexo industrial Matarazzo, essa empresa aca-
 bou por reetir no ambiente local as mesmas características que
fundamentavam as políticas das multinacionais. Ela garimpava
mão de obra qualicada e, na falta dela, importava estrangeiros
 para suprir as necessidades de um mercado altamente especializado.
Simultaneamente, formava um exército de reserva de mão de obra
não especializada sedento por um emprego estável e com o status de
empregado com carteira assinada, com todos os benefícios que dela
advinham.
Contudo, apesar dos muitos benefícios que essa nova modalidade
de trabalho fazia emergir, outras tantas mazelas a acompanhavam. No
contexto nacional, a mão de obra excedente e não absorvida por esse novo
mercado, sentia-se excluída. Não raras vezes, essas políticas acabavam
 por penalizar a sociedade negra que, na sua maioria desqualicada e
semianalfabeta, tinha como última saída se deslocar dos grandes centros
 para a periferia ou para as favelas.
Quando da instalação da fábrica de cimento em Nova Santa
Rita, uma das preocupações da equipe diretiva era propiciar aos seus
colaboradores o mínimo de conforto, ensejando várias comodidades
da vida moderna. A concretização de tais ideias se vericou com
a construção de casas de alvenaria para os trabalhadores da fábrica,
desde o mais alto cargo até o mais simples operário, diferenciando o
seu status pela comodidade e pela área de que cada grupo desfrutava.
Assim, a fábrica agregava aos trabalhadores a residência e os bene-
38 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

fícios que ela propiciava, como a energia elétrica produzida pela


fábrica e a água encanada, estendidas até o núcleo habitacional ope-
rário.
Em contraposição, encontramos outro grupo que se sente excluído
desse mercado de trabalho local, que torna desnecessário, para alguns, se
deslocar para os arrabaldes ou criar uma nova favela, visto que não existia
nesse lugar uma supervalorização urbana ou uma inação imobiliária.
Mas as condições de vida do grupo excluído reetem características
de uma zona suburbana: inexiste energia elétrica e tampouco água
encanada, conforto que somente será conhecido no m da década de
setenta e início da de oitenta.
Essa condição social do ser trabalhador da fábrica ou não acabou
introjetando nos moradores excluídos do processo seletivo de admissão
uma noção de não pertencimento, expressando através da linguagem esse
não pertencimento, denominando os moradores do núcleo habitacional
da fábrica de “moradores da vila de cima” e a eles próprios de “moradores
da vila de baixo”. Essa qualicação se aplica por questões geográcas:
a fábrica se localiza num ponto mais alto que a vila dos moradores
nativos.
O cotidiano
A estrutura social e econômica da comunidade de Morretes
esteve intimamente dependente da fábrica de cimento desde a sua
instalação, no nal da década de 1950. Como já foi dito, na tentativa
de atrair empregados, a fábrica acabou por construir um núcleo
habitacional circunvizinho à planta industrial. Zara Schroeter co-
menta: “Engenheiros já eram em casas separadas, e os pobres
nas casas geminadas e além dos mais ou menos ainda tinha os alo-
 jamentos, que eram quartos”.
A mesma opinião tem Maria Luiza Machado, ou – como é conhecida
a antiga moradora pertencente ao grupo da “vila de baixo” – Dona Moça:
“É lá tinha casas boa, aquele funcionário que ganhava melhor morava
em casas separada, aqueles que ganhava já menos...”
Entretanto, da construção da vila operária derivou um clima
de hostilidade tácita. O grupo de moradores que não trabalhava na
fábrica, ou que trabalhava, mas tinha sua residência fora da vila dos
operários, acabava por se sentir excluído ou rejeitado pelo grupo
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 39

“de cima”. Sobre os moradores “de cima”, Dona Moça arma: “Eles
nunca se deram bem, é que eram mais orgulhoso”. Doraci Silva
(Lorena) tem a mesma opinião: “Porque que existia não sei se eles
se achavam rico ou se achavam melhor que os outros porque tinham
morada na vila, porque a vila de primeiro tinha muita fama a vila:
 – A vila lá, Deus o livre! O pessoal da vila era da vila”.
Com a fundação da fábrica, iniciou-se uma relação de anta-
gonismo entre os nativos, moradores da “vila de baixo”, e os
funcionários da fábrica, denominados pelos “nativos” de moradores da
“vila de cima”. Enquanto a população do núcleo fabril usufruía das
comodidades da vida moderna como água, luz e casas de alvenaria,
o grupo de moradores da “vila de baixo” somente bem mais tarde foi
conhecer a luz elétrica em suas residências. Maria Schultz lembra:
“Eles achava que o pessoal lá de cima era... como se diz? Mais da elite;
 pessoal lá de baixo, pessoal de baixo não tinha água encanada, não
tinha luz”.
A maneira encontrada pelos moradores de baixo para superar as
vicissitudes baseava-se sempre num modelo coletivo, assim, se não
havia água encanada, as moradoras se reuniam no rio que margeia a
vila para lavarem suas roupas. Elenita Machado dos Santos (lha de
Dona Moça) relembra: “Todo mundo lavava roupa no rio... não se
usava tanque, não tinha essas arrumação que a gente tem hoje, era
no rio”.
Quanto à convivência do grupo de moradores da “vila de baixo”
 parecia haver, num primeiro momento, uma grande harmonia. Vejamos
o que arma Maria Schultz: “Era compadre, era comadre, eram vizinhos
se visitavam, iam tudo nas festas de famílias. Eram convidados e tudo
mais”.
Havia um momento de grande congraçamento da comunidade
no qual todos se uniam no intuito de reverenciar Nossa Senhora da
Conceição e São Benedito. A festa tomava tamanha proporção que os
 pais que tinham seus lhos nascidos no transcorrer do ano deixavam
 para batizá-los no dia 8 de dezembro, dia da festa de Nossa Senhora
da Conceição. Maria Schultz comenta: “Então nesse dia todo mundo
 batizava as crianças, esperava pra batizar”. E continua: “Dava umas
festas macanuda, como se diz, umas festa bonita, com banda, com
churrasco, com muito melhor que as de Santa Rita. Mas aqui vinha
40 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

 pessoal de lancha, vinha naquele dia de Nossa Senhora da Con-


ceição, era sagrado, guardavam as crianças o ano todo pra batizar nesse
dia”.
Entretanto, justamente nessas festas religiosas emergia um
sentimento que, para um observador menos atento, não era sintomático
no dia a dia da comunidade: a discriminação que sofria o negro.
Conforme relata Zara Schroeter:
Então isso aí era uma coisa que marcava, porque o meu pai
(inaudível) e a gente foi criada branco e preto nos seus lugares.
E quando chegava nas festas como norma tinha que se separar.
Então vinha aquelas bandas de Porto Alegre, a banda do exército
normalmente, e tocava nas festas, então tinha uma corda no meio
da pista, naquele tempo não se chamava de pista, era, era um tipo
de terreiro né, se fazia um tabuleiro, e aí os pretos dançavam de um
lado e os brancos do outro.
Maria Schultz apresenta outra versão:
 Nem tinha fábrica neste tempo, como era assim, depois que a
fábrica veio pra cá não tinha esse negócio de separação, não.
Isso é bem de primeiro. Depois não tinha mais separação, até
ali diz né, que no outro coisa, no outro livro [se referindo à obra
 Nova Santa Rita Memória e Documentação], diz assim, que
aqui nesse salão houve uma separação de branco e preto. Nunca
houve isso.
Morretes dispunha de dois salões para bailes: um que se locali-
zava na fábrica, e nos dias de baile era aberto à comunidade da “vila
de baixo”; e outro na “vila de baixo” que hoje tem por denomina-
ção  Internacionalzinho. Esse clube pertenceu primeiro à sogra da
senhora Maria Luiza Machado (Dona Moça), posteriormente foi
vendido ao esposo da senhora Maria Schultz, hoje administrado pelo
seu genro.
 Nos bailes do clube Internacionalzinho, Doraci Silva relata que
havia outra forma de segregar os negros: “Internacionalzinho, agora
os preto os negro aí não entravam, não entravam, logo que vieram pra
cá nem na copa eles entravam, se entravam eram tirado”. Encontramos
em outras entrevistas opiniões que discordavam da existência da
referida corda que separava brancos e negros, mas conrmavam a
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 41

existência de duas pistas e a proibição de brancos e negros dançarem


 juntos. Vejamos o que fala Lourdes Sant’Ana:
Aquele capão, não ali onde é hoje, aquilo que tu viu tapado, tem hoje
aquelas coisas, mas era lá em cima no meio do mato né. Então no
meio desse bar, galpão vamos supor galpão né, que era um tablado
de tábua ali cava os músicos. Branco pra cá e preto pra lá, todo
mundo era amigo mas dançá não né [...].
Igual lembrança tem Dona Moça: “É, era proibido, não podia. Se a
 janela tava aberta eles iam lá e fechavam a janela. Já fechavam a janela
e já sabiam que não era pra olhar”.
É do interior desse contexto que procuramos, dentro dos seus
limites, trazer à luz a inserção do negro na sociedade branca, buscando
encontrar a forma como negros e brancos edicaram a identidade
do negro no Brasil. As relações sociais fortemente hierarquizadas,
como se apresentam no Brasil, acabam por dissimular a segregação
ou a discriminação, sem que os próprios protagonistas percebam que
discriminam ou que são discriminados.
Vejamos no caso de Morretes o que arma Doraci Silva (Dona
Lorena), que é matriarca de uma das famílias de negros das mais
numerosas e antigas da vila:
Graças a Deus, muito bem, isso aí nós agradecemos porque nós
semos muito bem querido aqui. Porque eu perdi olha nós moremo
esse tempo aqui, nós zemo 50 ano de casado esse ano, cinquenta
que eu sou casada né, graças a Deus criemo todo nossos lho,
criemo todo nosso lho aqui dentro, temo neto e bisneto aqui
dentro, dentro de Morretes. Não discriminação, aqui não, não tinha
discriminação. Até a gente é uma pessoas que se dá muito bem
com a vizinhança, todo vizinho aqui é bom. Todo vizinho graças a
Deus, isso aí a gente não pode dize que tem vizinho ruim, o vizinho
daqui da frente aqui ó, [inaudível] só aqui nessa aqui eu moro
há 47 anos.
Para Da Matta (1993, p.75), “numa sociedade fortemente hie-
rarquizada, onde as pessoas se ligam entre si e essas ligações são
consideradas como fundamentais [...] as relações entre senhores e
escravos podiam se realizar com muito mais intimidade conança e
consideração”. Perguntada se nunca havia ocorrido um movimento
42 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

que questionasse a discriminação dos negros nas festas religiosas e nos


 bailes da vila, Lourdes Sant’Ana responde: “Um movimento contra
assim não, não”.
A respeito dessa atitude de não se rebelar contra a discriminação,
Da Matta (1993, p.83) arma que “um sistema de fato profundamente
anti-igualitário, baseado na lógica de “um lugar para cada coisa, cada
coisa em seu lugar”, que faz parte de nossa herança portuguesa, mas que
nunca foi realmente sacudido por nossas transformações sociais.”
Morretes e a micro-história
A partir das conclusões apontadas nessa análise, havia no bairro
Morretes uma rede de ligações e interesses que tornava os grupos ali
residentes interdependentes. São essas relações de interdependência dos
grupos que faziam oscilar esses interesses de um determinado grupo para
um lado e para o outro. Chamou a atenção que os deslocamentos sempre
ocorriam no grupo branco da “vila de baixo”; esses deslocamentos não
foram notados no grupo de moradores negros da “vila de baixo”, nem
nos moradores brancos da “vila de cima”. Mas qual é a explicação
 para esse fenômeno? Para explicar esse desdobramento que ocorria no
 bairro é necessário retomar aquilo que denominei de “práticas formais”
e “práticas informais”.
Os atores coletivos se confrontavam em determinadas situa-
ções, e em outras se aliavam, estando em constante mutação. As
multiplicidades e complexidades dos interesses em jogo resultavam,
 por um lado, nos moradores brancos da “vila de baixo” conviverem
harmoniosamente com os negros no dia a dia, e nas datas festivas
religiosas se incorporarem aos moradores brancos da “vila de cima”.
E, por outro lado, essas mesmas multiplicidades e complexidades
faziam com que os moradores negros da “vila de baixo” não se
rebelassem contra os moradores brancos da “vila de baixo” que
os desconsideravam totalmente quando ocorriam as festividades
religiosas. Os moradores da “vila de baixo”, negros ou brancos,
conviviam em comunidade e necessitavam constituir relações amistosas
e respeitosas. A relação de interdependência que se estabelecia no seu
cotidiano acabava por desembocar numa unidade comunitária. Seria
difícil para todos os moradores da “vila de baixo” o convívio diário
num ambiente de hostilidades e desrespeito. Assim, encontramos
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 43

traços dessa relação amistosa no percurso de toda a pesquisa; os


entrevistados brancos sempre enaltecendo e elogiando os moradores
negros da “vila de baixo”.
Quando havia baile no Clube Internacionalzinho, emergiam os
 problemas. Os moradores negros da vila desejavam participar desse
momento de congraçamento coletivo, visto que, no dia a dia, negros
e brancos conviviam harmoniosamente. Entretanto, os negros eram
 barrados, simplesmente lhes eram cerradas as janelas que davam acesso,
 pelo lado de fora, ao bar que vendia bebida. Para a comunidade branca,
isso era um problema, a linha imaginária que dividia os dois mundos
estava posta a partir do momento em que se iniciavam as “práticas
formais”, e o baile no Clube Internacionalzinho era uma dessas práticas.
A forma como os moradores brancos resolviam o problema tinha que ser
alcançada de uma maneira que não colocasse em cheque a unidade social
e não tornasse impossível o convívio, que na sua maioria baseava-se nas
“práticas informais”, ou seja, no cotidiano. Assim, este “problema” era
resolvido de forma tácita, uma vez que nada era resolvido pela via direta,
cara a cara.
Essas relações nas quais se conguram os meios implícitos
fazem parte de um modelo hierarquizante brasileiro em que o pre-
conceito é dissimulado, e colocá-lo aberto e explicitamente que-
 braria um pacto nunca assinado, mas sempre bem executado.9 Uma forte
 preocupação que a sociedade branca tem quando a discriminação passa
da forma velada para a discriminação aberta ou escancarada, essa forma
mais aberta termina desestabilizando toda a estrutura vigente e coloca
em perigo a ordem social.
Em Morretes, não era diferente. A predominância das “práticas
informais” serviam para estabelecer um bom convívio diário entre
os moradores brancos e negros, formando uma unidade. Entretanto,
quando as “práticas formais” entravam em cena, todo esse quadro
era desfeito e se iniciava uma reorganização e uma realocação de
interesses. Para que não fosse quebrada a ordem social vigente nos
momentos das “práticas informais” (ali no momento do baile, no Clube
Internacionalzinho), nas “práticas formais”, simplesmente cerravam-se
as janelas do bar, ao invés de colocar uma placa com os dizeres “proibido
9
Para uma visão aprofundada do tema, ver Sodré (1999).
44 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

o acesso de pessoas negras”. Uma atitude mais direta e franca quebraria


o pacto social implícito.
Como não havia a possibilidade de extirpar os moradores negros
da vila, os moradores brancos buscavam conviver de uma forma
harmoniosa. Por exemplo, quando os moradores brancos lavavam
roupa junto com os negros, batizavam seus lhos ou jogavam
uma partida de futebol juntos, estavam, na realidade, assumin-
do a identidade desse grupo formado pelos moradores da “vila
de baixo”.
 Nas entrevistas, cou claro o sentimento de exclusão que os brancos
manifestavam quando se referiam aos moradores da “vila de cima”:
“parece que eles eram uns ricos”, “se achavam melhor que os outros”
era a forma como os moradores brancos se referiam aos moradores de
cima. Sentindo-se excluídos e necessitando conviverem integrados aos
moradores negros, acabaram criando uma unidade que se reetia numa
identidade, a de moradores “da vila de baixo”.
Há, portanto, uma conveniência por parte de todos os membros
que compõem a sociedade. Estes deslocamentos, fragmentações,
mutações é que possibilitavam o convívio social. Quando os membros
negros da comunidade, mesmo percebendo a segregação, continuaram
interagindo com todos os membros da sociedade local, possibilitando
o livre trânsito, optaram pela convivência pacíca e harmoniosa,
desprezando o radicalismo e o isolamento. Nas entrevistas, os moradores
armaram saber que eram alvo de discriminação, mas imediatamente
armavam sentirem-se felizes em morar no bairro, destacando
que todos os moradores eram muito queridos e que até batizavam
seus lhos.
Os moradores negros tinham um sentimento que falava mais alto.
Entre radicalizar e se isolar, optaram pelo bom convívio social e, com
esse convívio, buscaram criar uma relação de pertencimento.
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PENNA, Rejane Silva.  Fontes orais e historiograa:  avanços e perspectivas. Porto
Alegre: Edipuc, 2005.
REVEL, Jacques.  Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiero:
FGV, 1998.
SODRÉ, Muniz. Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis: Vozes,
1999.

Lista de entrevistados e fontes orais


DORACI LAUREANA COSTA SILVA. Nascimento em 28/07/34, no bairro Morretes,
em Nova Santa Rita. Moradora há 51 anos. Viúva, com 12 lhos, 35 netos e 11
 bisnetos.
LOURDES SANTA’ANA DA SILVA. Nascimento em 24/12/33, em Bom Jesus de
Triunfo.
MARIA BLOEDOW SCHULTZ. Nascimento em 21/08/21, no bairro Morretes, em
 Nova Santa Rita. Viúva e com 2 lhos.
MARIA LUIZA MACHADO (DONA MOÇA). Nascimento em 03/04/1921, no bairro
Berto Círio, em Nova Santa Rita.
ZARA LUBING MORAIS SCHROETER. Nascimento em 03/07/1945, no bairro
Morretes, em Nova Santa Rita.
3
Joana Mina, Marcelo Angola e Laura
Crioula: os parentes contra o cativeiro
Paulo Roberto Staudt Moreira

Durante a elaboração deste artigo, muitas horas foram gastas


 pensando em como construir a narrativa dos vestígios documentais
que encontramos e que falava de nossa personagem principal, uma
negra africana chamada Joana. Por tratar-se de uma trajetória in-
dividual, deveríamos contemplar sua existência de uma forma linear,
cronológica, seguindo uma linha do nascimento na África até seu
enterro no cemitério da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre?
Será que assim tratada, ela apareceria de forma mais denitiva?
Pensamos que não. Resolvemos dividir com os eventuais leitores um
 pouco do prazer que tivemos em tomar contato pouco a pouco com
esta mulher africana, escravizada ainda criança, afastada da família e
de sua comunidade, transportada em uma fétida embarcação junto a
outros malungos (parceiros do mesmo infortúnio), tornada empregada
doméstica em uma charqueada, que pouco a pouco reorganizou co-
mo podia sua existência, rmou laços afetivos duradouros com um
companheiro africano como ela e viveu como liberta pelas ruas da
capital da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul por 25 anos.
A primeira vez que tomamos conhecimento de Joana foi através
de um ato que exteriorizava autonomia e autoconança. Aconteceu com
da leitura de um processo criminal que tratava de um caso corriqueiro
ocorrido em Porto Alegre, em 1869. Joana Guedes de Jesus (40 anos,
solteira, lha de pais incógnitos, naturalidade nação mina, quitandeira,
analfabeta), fez uma queixa em 30 de abril de 1869 na 1ª subdelegacia
de polícia, com o seguinte teor:
[...] achando-se mansa e pacicamente em sua casa, foi espancada
dentro da mesma sua casa por José dos Passos, por mandado
de Mathias de Tal, capataz ou encarregado da cocheira do Dr.
Heinzelmann, ontem pelas três horas da tarde e como este proce-
dimento é criminoso, e a suplicante queira que seu agressor e
mandatário sejam punidos, vem perante V. Sa. dar sua queixa [...]
(APERS. Cartório Júri, maço 41, Processo 1193, Porto Alegre, 1870).
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 47

Em três de maio do mesmo ano, presente pessoalmente na casa


do subdelegado, Joana explicou o ocorrido com mais detalhes:
Respondeu que dias antes dela [...] ser ferida, um menino de casa
do réu Mathias, queria arrebentar uma corda que ela queixosa
tinha amarrado no quintal de sua casa, e como o menino se
mostrasse [insistente] ela [...] dirigiu-se para dentro e queixou-
se a mãe do menino que é mulher de Mathias, e ela no lugar
de atender ou providenciar pôs-se de altercações com ela
respondente, até que ela [...] retirou-se para dentro e continuou
em boa paz com os vizinhos, o dito Mathias e outros, até que
no dia 29.04, indo ela ao quintal, principiou o preto Manoel dos
Passos a provocá-la e ela [...] a única palavra que disse foi que
se deixasse de valentia, que o nosso governo precisava muito
de homens valentes para a Campanha, e nisto ela respondente
retirara-se para dentro, que o dito Mathias, que ela [...] supõe
que estivesse escondido em casa varejou-lhe como uma tranca
(pau), que se a apanha matara-a; a vista do que ela resolveu sair
e convidar pessoas para testemunhar esse atentado de Mathias, é
quando nessa ocasião o referido José dos Passos, saiu atrás dela
respondente e caiu-lhe de vergalho, fazendo-lhe diversas ofensas
no pescoço.

Esta altercação ocorreu na rua do Arvoredo, atual Fernando


Machado, centro de Porto Alegre, sendo os principais envolvidos os
vizinhos e moradores em típicas residências do período, onde habitavam
setores populares e remediados em extrema proximidade, unidos por
 pátios comuns ou de divisão incerta através de frágeis cercas. Em
residências como estas, as privacidades eram divididas, sendo o atrito
entre vizinhos algo que precisava ser resolvido urgentemente. Segundo
o cronista Coruja (1983, p.101-102), a rua do Arvoredo: “Bem merecia
este nome, porque até certo tempo só havia nela árvores e casas de
capim, contando-se as de telhas por unidade [...]”.
 Naquele ano de 1869, Joana residia na rua do Arvoredo, nº
261, junto com seu amásio Marcelo Henrique da Silva. Uma das tes-
temunhas indicadas por ela, o negociante Antonio André Henrique de
Carvalho, informou que ouviu uma “gritaria muito grande” e saiu à porta
de sua venda e vendo o preto José dos Passos agredir Joana gritou “que
não desse na preta que era forra”.
48 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

Esta frase de Antonio André aponta para a consideração da


alforria como uma espécie de carta de recomendações por bons
serviços, delidade etc. dos ex-senhores. Frederico Bier, acusado em
1866 de ter assassinado o seu escravo Lourenço de Nação Cabinda,
teve como principal acusadora a preta forra Romana, a qual ten-
tou desmerecer dizendo que tudo não passava de futilidades, “de
mexericos de uma preta forra, ébria e miserável”. Entretanto, o
Promotor Público da 2ª Vara Crime da Comarca da Capital Luiz
Inácio de Melo Barreto, decidiu que o homicídio estava provado e
que o depoimento de Romana deveria ser considerado, pois “as boas
qualidades, a moralidade mesma desta preta, mereceram-lhe a alforria
gratuita de seu ex-senhor” (APERS – Sumários – Júri, maço 38,
 processo 1128).
Pelos documentos coletados, Joana e Marcelo moravam em uma
“casa de porta e janela” na rua do Arvoredo, provavelmente entre
as ruas General Auto (na época chamada Rua de Belas) e o beco
da Casa da Câmara (hoje pequeno trecho fechado ao trânsito da
Rua General João Manoel). A alcunha dada pela população a este
 beco justicava-se pela existência, quase na esquina da Igreja
(atual Duque de Caxias) com a rua de Belas, do prédio da Junta da
Real Fazenda, que serviu de Casa da Câmara (SPALDING, 1967,
 p. 54).10
Joana e Marcelo eram cúmplices de várias experiências comuns
 – eram ambos africanos e haviam conseguido se alforriar há poucos
anos. Marcelo, preto de Angola, com 50 anos comprou sua carta de
alforria a Antero Henrique da Silva, por um conto de réis, em 23 de
maio de 1865.11 Já Joana, com 40 anos conseguiu alforria sem ônus
ou condição de sua senhora Maria Guedes de Menezes, através de
carta passada em 10 de janeiro de 1862. Maria Guedes justicava a
liberdade que dava a sua cativa africana por ela “ter servido durante seu

10
A casa deste casal de africanos cava muito próxima – uma quadra talvez – do açougue
onde em 1863 e 1864 ocorreram brutais assassinatos, e que deram a rua do Arvoredo uma
lúgubre imagem, pois suspeitava-se que os cadáveres haviam sido transformados em linguiça e
consumidos pela população da capital. Sobre o caso do linguiceiro e a sua ccionalização, ver
ELMIR (2004).
11
Carta registrada em 26.05.1865. APERS. 1º TPA, RD nº 18, f.49 v.
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 49

cativeiro com todo o zelo e dedicação” e também porque Joana estava


“doente”.12
Ambos assumiram como seus os sobrenomes de seus ex-senhores
e exemplicam algumas trajetórias dos escravos em busca de reaver
a liberdade perdida com o tráco transatlântico. Como diz Schwartz
(1988, p.327), muitos senhores deviam permitir e incentivar que seus
ex-escravos portassem seus sobrenomes numa demonstração de poder
 paternal e clientelístico, mas alguns não apreciavam muito tal costume
com os escravos agindo com uma forma de “direito adquirido” ao
somarem ao seu nome de batismo o sobrenome do ex-senhor, para
assim compartilhar um pouco do seu capital simbólico, principalmente
de um notável. É a ideia do “você sabe com quem está falando?”, com
o liberto usando o nome (a “projeção social”) de seu antigo senhor em
momentos de necessária armação perante outros de igual ou maior
status socioeconômico (DA MATTA, 1983).
Diversas pistas documentais apontam, porém, que os libertos
manipulavam vários nomes (ou identidades). Provavelmente o sobre-
nome do senhor servia como uma identidade pública usado na interação
destes indivíduos negros com a sociedade branca, enquanto entre os seus
 parceiros usavam indicativos nominais diferenciados, como referenciais
étnicos, de procedência, prossional etc.
Quanto à forma pela qual Marcelo e Joana romperam os vínculos
com a escravidão – a obtenção de carta de alforria –, devemos salientar
que era uma via bastante comum no Brasil Colonial e Imperial,
 já bastante mencionada pela historiograa nacional. Na pesquisa
que realizamos nos livros de cartório de Porto Alegre, entre 1748 e
1888, encontramos 10.055 cartas de alforria. Deste total, 60,95 % (ou
6.128 cartas) foram concedidas no período em que Joana e Marcelo
se alforriaram, entre 1849 e 1888. No levantamento estatístico do
cômputo geral, Marcelo insere-se entre os 3.740 cativos (cerca
de 37,20%) que conseguiram de volta sua liberdade através do
 pagamento aos seus senhores (MOREIRA, 2003). Os percalços que
tinham que passar para acumular este capital são praticamente
inimagináveis – trabalhos em qualquer período livre, principalmente

12
Carta registrada em 19.02.1862, passada na Costa da Charqueada, 3º distrito de São Jerônimo.
APERS. 1º TPA, RD nº 4, f.115.
50 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

domingos e dias santos, mas certamente o que mais contava – e que


cará demonstrado mais adiante – era o auxílio solidário de familiares,
 parentes, patrícios.
Já Joana fazia parte dos 19,23 % (equivalente a 1.934) de
escravos que conseguiram alforria sem ônus ou condição. Parte destes
cativos era libertada, pois não apresentavam mais condições físicas
de continuar prestando serviços aos seus senhores (pela avançada
idade ou enfermidade). Seus bondosos  senhores, então, livravam-se
do ônus de sustentá-los e concediam alforria para que fossem morrer
na miséria, sustentados precariamente pela caridade pública. Mas no
caso de Joana, cuja carta de alforria traz explicitamente no texto uma
referência à sua doença, supomos que sua senhora tenha calculado
mal sua incapacidade em continuar prestando serviços. Chamamos
a atenção que além do sobrenome Guedes, de sua ex-senhora, Joana
incorporou também a alcunha “de Jesus”, o que pode nos fazer pensar
que talvez isso tenha ocorrido em função de uma promessa feita
 por ela. Será que, sentindo-se gravemente doente, Joana recorreu a
um poderoso orixá católico  e ao ser atendida tratou de homenageá-
lo carregando-o como sobrenome indicativo de agradecimento, fé e
submissão?13
Pensamos ser interessante separarmos apenas as cartas de alforria
emitidas para escravos africanos. Assim, dos 2.764 africanos alfor-
riados, temos:

Africanos Total
Tipo
 Nº %  Nº %
Pagas 1.381 49,96 3.740 37,20
Condicionais 667 24,13 3.547 35,28
Gratuitas 573 20,73 1.934 19,23
 Nada Consta 143 5,18 834 8,29
Total 2.764 100,00 10.055 100,00

13
Lembremos que Cristo é relacionado no candomblé à gura de Oxalá, a quem talvez Joana tenha
se dirigido em busca de saúde. (CORREA, 1994, p. 27.) Infelizmente, em nossas pesquisas nos
livros de pacientes internados na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, de janeiro de 1858
a dezembro de 1864, Joana não foi encontrada.
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 51

Procurando densicar ainda mais a análise e aproximá-la


dos personagens que nos interessam, devemos considerar que, dos
africanos acima, 33,8 % eram da Costa Ocidental africana, desta-
cando-se os Minas e Nagôs, grupos próximos entre si.

África Ocidental (Mina) África Ocidental (Nagô)


Tipos Homens Mulheres Homens Mulheres
Nº % Nº % Nº % Nº %
Pagas 117 65,73 123 63,73 174 79,09 134 77,90
Condicionais 20 11,24 25 12,96 22 10,00 11 6,40
Gratuitas 30 16,85 37 19,17 17 7,73 20 11,64
Desconhecido 11 6,18 8 4,14 7 3,18 7 4,06
Subtotal 178 193 220 172
Total 371 392

Como percebemos na tabela, a alforria gratuita obtida por Joana


enquadra-se na porcentagem do grupo de mulheres Minas ao qual
 pertencia. As breves referências que fazemos às nações africanas que
foram trazidas para o Brasil Meridional servem, em parte pelo menos,
 para dissipar o miasma que encobre a presença negra no Rio Grande
do Sul. A riqueza (e diversidade) cultural ca evidente na pluralidade
das – mesmo imprecisas – classicações. Minas e Nagôs juntos
conguravam 763 alforrias ou 82% do total das libertações de afri-
canos da Costa Ocidental.
Voltando para as alforrias concedidas a escravos africanos e
 pensando nos procedentes da África Central Atlântica, região do
angolano Marcelo, temos 39,76% do total. Subdividindo esta área pelas
regiões apontadas pela historiadora Mary Karasch (2000) temos:

Angola Norte Angola Sul Congo Norte


H M H M H M
Nº % Nº % Nº % Nº % Nº % Nº %
Paga 30 38,46 54 47,37 66 36,46 88 39,64 96 43,44 71 48,30
Cond 29 37,18 29 25,44 85 46,97 82 36,94 58 26,25 25 17,00
SOC 17 21,80 21 18,42 22 12,16 41 18,47 59 26,70 44 29,94
Desc 2 2,56 10 8,77 8 4,41 11 4,95 8 3,61 7 4,76
Sub 78 114 181 222 221 147
Total 192 403 368
52 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

Por uma daquelas vicissitudes biográcas, conseguimos algumas


informações preciosas sobre Joana e Marcelo. Sua ex-senhora Maria
Guedes de Menezes passou por problemas judiciários, pois seu falecido
marido – Bernardino Martins de Menezes, morto em 1838 – dei-
xou dívidas oriundas de uma sociedade que tinha com Francisco de
Lemos Pinto.
 Não sabemos desde quando a família Menezes possuía esta-
 belecimento charqueador na Costa das Charqueadas, distrito de
São Jerônimo. Mas em 1826, quando se processava o inventário da
 falecida Simiana Joaquina de Menezes, alguns parentes se reuniram
e formaram uma sociedade, arrendando alguns bens que estavam
sendo avaliados. A sociedade foi formada por Bernardino Martins de
Menezes e Camilla Martins de Menezes, lhos de Simiana, acom-
 panhados de seus respectivos cônjuges, Maria Guedes de Menezes e
Francisco de Lemos Pinto.
Os dois casais tornaram-se então sócios em uma charqueada que
começou com uma canoa grande, um terreno de campo de 250 braças
de frente e uma légua de fundo, uma morada de casas de vivenda,
charqueada e mangueira, 3 caldeiras, um terreno na Ilha da Paciência
(fronteira à propriedade) e 8 escravos. 14  Gradualmente, o empre-
endimento aumentou com a compra de mais escravos e terras. Pelo que
conseguimos perceber, Bernardino de Menezes tratava da administração
da charqueada, enquanto Francisco Pinto residia em Porto Alegre. Em
uma correspondência de 1836, Bernardino Menezes escreveu a Francisco
Pinto que no momento não tinha “encomenda de negros”, o que nos leva
a pensar que talvez Porto Alegre fosse o ponto fornecedor de escravos
 para a charqueada.
Anos após, na luta que travaram pelo ressarcimento do dinheiro
investido na charqueada, Francisco Pinto e sua mulher Camila
alegaram que ao contraírem esta sociedade “não tiveram tanto em
vista a percepção de lucro ou ganho próprio, como beneciar, pela
grande amizade que lhe consagravam a seu irmão e cunhado, cujas cir-
cunstâncias eram então bem desfavoráveis”. 15  Apesar desta aparente
 benevolência com os parentes, o empreendimento charqueador foi

14
APERS. Cartório Cível, São Jerônimo, Liquidação, maço 17, auto 689, 1852.
15
APERS. Cartório Cível, Ordinárias, Triunfo, maço 15, auto 414, 1846.
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 53

logo aumentado com a compra de escravos e terras, mostrando real


interesse dos sócios em otimizá-lo. Logo no mesmo ano da socie-
dade foram comprados 18 cativos, sendo o plantel engrossado em
1827 com a chegada de mais 16 escravos. Incluídos nesta segunda
leva de trabalhadores escravizados vieram quatro moleques, sendo
um deles o futuro amásio e marido de Joana, Marcelo, avaliado por
224 mil réis.
Bernardino faleceu em 1838 e, apesar da Guerra Farroupilha, os
sócios Francisco Pinto e Camila tomaram conta de todos os bens sociais
e os administraram até 1843, “promovendo, apesar do estado crítico da
época, os interesses da sociedade, expondo-se com risco de vida a todos
os perigos da Campanha, e conseguindo pagar os credores da mesma a
enorme soma de quase 80 contos de réis, afora os suprimentos”. Sem
aviso, em 7 de novembro de 1843, Maria Guedes saiu de Porto Alegre
com seu cunhado Antonio Rodrigues da Fonseca Araújo e assumiu
o controle da charqueada, avisando aos capatazes que só ela tinha
doravante a posse e mando daquela sociedade.
As informações que temos sobre Marcelo e Joana, em sua vida
de cativos na charqueada de Maria Guedes de Menezes, provêm das
 pendengas judiciárias entre os ex-sócios e alguns credores do mesmo.
 Numa destas ações, que correu pelo fórum da vila do Triunfo,16 a
autoridade judicial mandou que se procedesse ao arrolamento dos bens
da sociedade, a m de se vericar o pagamento da dívida, o que foi
feito em 27 de outubro de 1852, na Costa da Charqueada (3º distrito
de São Jerônimo), distante cerca de 70 a 80 quilômetros de Porto
Alegre. Na estância denominada Itacorubi – nome do tupi-guarani
que signica rio das pedras esparsas  –, onde era capataz Jerônimo
Ferreira de Oliveira, existiam os seguintes escravos pertencentes à
sociedade: Serino (campeiro), Francisco Crioulo (campeiro), Antonio
(campeiro) e Cosme (salgador e servidor na Estância). Existiam ainda
as escravas Antonia (com dois lhos) e Joana (com uma lha crioula),
que Maria Guedes armava enfaticamente serem “de sua legítima pro-
 priedade, e não da sociedade”. Na charqueada existiam vários escra-
vos da sociedade: Carneadores: José Gregório, Lino, Florêncio, Valen-
te, Manoel dos Passos, Cipriano, Agostinho e Antonio (também piloto);
16
APERS – Cartório do Cível – maço 9, auto 287, Triunfo (São Jerônimo), 1852.
54 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

Salgadores: Jacob, Martinho e Marcos; Carpinteiros: Antonio e Miguel;


Pedreiro: João; Campeiro: Marcelo; Gracheiros: José e Januário Congo;
Cozinheiras: Vitória e Joaquina da Costa (também lavadeira).
Como percebemos, Joana já aparece com uma lha, prova-
velmente chamada Laura. Pelos dados que revelaremos mais adiante
sabemos que o parceiro de Joana, já naquela ocasião, era o campeiro
africano Marcelo. Entre os espaços da charqueada e da estância, e da
cozinha ao campo, estes africanos conseguiram entreter relações e
formar um núcleo familiar que durou décadas e que fomentou a quebra
dos laços do cativeiro.
Sabemos pelos registros da sociedade de Menezes e Pinto que o
moleque Marcelo começou a trabalhar na charqueada em 1827, com
aproximadamente 11 anos, e que Joana foi para a cozinha da estância
em 1834, com 12 anos de idade. A infância escrava encerrava pelos
7/8 anos e daí em diante iniciava uma fase intermediária em que aos
moleques e as negrinhas eram ensinados ofícios ou tarefas, ao mesmo
tempo em que trabalhavam efetivamente em ocupações de adultos.
O processo de desvanecimento da invisibilidade dos cativos no
RS é gradual; em um primeiro momento, a historiograa aceitou a
existência de escravos, mas em pequeno número. Depois, o uso das
estatísticas provou que sempre existiram amplos contingentes demo-
grácos de cativos, mas a historiograa defendeu que existiam, mas
estavam concentrados em pequenas propriedades e nas cidades, e eram
mais bem tratados do que no restante do país. Finalmente, nos últimos
anos, a historiograa regional tem aceitado o fato da abundante presença
de escravos no RS e do seu uso em praticamente todos os ofícios,
incluindo os rurais, como campeiros, peões etc.
O caso de Joana e Marcelo mostra como mesmo em um
“estabelecimento penitenciário” como a charqueada, a família escrava
esteve presente e que é impossível compreender a sociedade escravista
sem uma compreensão clara de seu papel.
[...] acreditamos que a família escrava era, ao mesmo tempo, fator
de manutenção e de limitação do domínio senhorial. Se, de um lado,
ela ‘pacicou’ os escravos dentro das senzalas, de outro ela cobrou
respeito aos seus laços de parentesco e amizade, trazendo, muitas
vezes, transtornos e prejuízos tanto para quem os comprava como
 para quem os vendia (ROCHA, 2004, p.51).
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 55

A proximidade de idade e de procedência (eram ambos africanos)


fomentou afetividades e permitiu que naquele  purgatório  (onde
certamente os descendentes de Cam purgavam os pecados bíblicos de
seus antepassados), Joana e Marcelo entretivessem relações e gerassem
sua lha Laura, nos últimos anos da década de 1830.
O fato de Marcelo ocupar-se como campeiro, talvez tenha facilitado
o estabelecimento de laços familiares. Como exercia um ofício que
exige mobilidade, os laços familiares serviam, na ótica senhorial, como
uma segurança, ou pelo menos como uma variável que dicultava os
 planos de fuga (FARIA, 1998, p.327). No plantel escravo da charqueada
apenas Marcelo aparece como campeiro, compartilhando o ofício com
mais quatro cativos ocupados na estância do Itacorubi (Joaquim pardo,
Sirino, Francisco crioulo e Antonio). Assim, talvez as tarefas de Marcelo
integrassem idas seguidas à sede da estância, de onde conduzia tropas de
gado para a charqueada, e arranjava tempo para seduzir ou ser seduzido
 por sua parceira Joana.
Voltemos para os acirrados entreveros  jurídicos do início da
década de 1850. O que ocorre a seguir provocou um enorme atropelo
à senhora Maria Guedes de Menezes, mas uma série de fontes
documentais preciosas para os historiadores. Apesar da armação de
Maria Guedes de que Joana era de sua propriedade particular e não
da sociedade de seu nado marido, ela acabou sendo depositada junto
a outros escravos para o pagamento dos bens e enviada para Porto
Alegre.
Maria Guedes de Menezes apresentou documentos provando que
em 1834 foram enviados para a charqueada, pelo sócio Lemos Pinto,
16 escravos pertencentes à sociedade e mais duas escravas (Joana e
Antonia), de propriedade particular de seu nado marido. Assim, com
aproximadamente 12 anos, Joana chegou nesta charqueada, não sabemos
se vinda diretamente da África ou de outro ponto do território brasileiro,
talvez do Rio de Janeiro, Salvador, Pernambuco.17
O certo é que de 1852 até pelo menos 1860, Joana esteve
depositada em Porto Alegre, enquanto seu futuro era decidido pelas

17
Junto com Joana e Antonia foi uma carta de Lemos Pinto, datada de 07.05.1834, que dizia: “Pelo
Vitorino vão duas negras de sua conta oitocentos mil réis”.
56 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

salas dos tribunais em intermináveis pilhas de requerimentos, petições


e despachos. Terá sido esta a primeira vez que Joana chegou a Porto
Alegre e tomou contato com a comunidade negra local? Não sabemos,
mas possivelmente Joana deve ter se sentido a vontade em um centro
urbano com forte presença de elementos africanos, de diversas
 procedências (e nações), mas que agiam em um processo constante
de reinvenção da identidade étnica e de composição de autorrepre-
sentações que possibilitassem convivência comum e ações solidárias.
Considerando os dados do censo de 1872, temos:

Livres Escravos
Brancos Pardos Pretos Caboclos Pardos Pretos
Homens 11.951 2.987 2.339 954 1.418 2.663
Mulheres 10.879 3.032 2.396 1.140 1.512 2.477
Total 35.678 8.070

A Tabela acima mostra que a capital da Província de São Pedro,


em 1872, tinha uma população total de 43.748 almas, sendo 18,45%
escravos e 81,55% livres. Dentre os habitantes livres, 22.830 eram
efetivamente descritos como brancos. Assim, a cidade possuía uma
 população não branca de 20.918 pessoas – quase a metade do total –,
sendo 18.824 negros (43%).
Como vimos, Joana era Mina e Marcelo Angola, ou seja, eram
africanos, porém não iguais. Suas autorrepresentações e visões que
tinham dos demais eram resultado de um amplo processo de reinvenção
étnica começado na África e continuado persistentemente em suas
experiências diaspóricas. As “célebres ‘nações’ africanas do cativeiro”,
transformadas pelo dinamismo do tráco e da vida no Novo Mundo,
 produziram “outras ‘nações’ e ‘misturas’ identitárias” (SOARES e
outros, 2005, p. 8; 25; 28).
Os Minas, por exemplo, eram uma referência à fortaleza de São
Jorge da Mina – construída pelos portugueses em 1481 e tomada
 pelos holandeses em 1637. Como Minas foram designados, a partir do
século XVII, “todos os que provinham da Costa do Ouro, mas também
os da Costa dos Escravos e do golfo de Benim, ou seja, indivíduos
oriundos de povos muitas vezes diferentes, mas que possuíam traços
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 57

culturais, crenças e um panteão religioso muito próximo” (POR-


TUGAL, 1999, p.73).
Estes personagens que estamos pesquisando, portanto, eram
 portadores de “identidades atlânticas africanas reinventadas”. Em
termos de uma perspectiva “transétnica”, podemos considerar nações
como Angola, Moçambique, Cabinda, Benguela, Congo, Mina, exces-
sivamente genéricas, mas “[...] algumas podem ter sido consideradas
como identidades de abrangência mais ampla – nos termos do ‘guarda-
chuva’ étnico proposto por João José Reis – sob as quais algu-
mas comunidades africanas se moveram” (SOARES e outros, 2005,
 p.28 e 50).
Às 9 da manhã de 12 de fevereiro de 1870, os africanos Joana
Guedes de Jesus e Marcelino Henrique da Silva casaram na Catedral
Metropolitana de Porto Alegre, ocializando perante a Igreja Católica
uma relação que já durava cerca de 30 anos. A cerimônia foi celebrada
 pelo Padre Hildebrando de Freitas Pedroso e teve como padrinhos
Bernardo Ferreira Gomes e o vendeiro Antonio André Henrique de
Carvalho, vizinho dos noivos e que serviu de testemunha no processo
de 1869.18
Em agosto do mesmo ano, o angolano Marcelo Henrique da
Silva viajou à Costa das Charqueadas, e entregou para a senhora
Maria Guedes de Menezes a substancial quantia de um conto e cem
mil réis. Essa quantia, resultado das economias de não sabemos quanto
tempo, permitiu que Joana e Marcelo libertassem sua lha Laura do
cativeiro e a trouxessem para Porto Alegre. A carta foi confeccionada
em São Jerônimo, mas registrada no livro 19 de Registros Diversos do
2º Tabelionato de Porto Alegre, pelo próprio Marcelo, certamente co-
mo uma garantia que sua lha não seria molestada pela polícia por
suspeita de escrava fugida. Laura, uma das 8 cativas com este nome cuja
alforria foi registrada em Porto Alegre (das 10.055 cartas pesquisadas)
tinha então 30 anos de idade.
As pesquisas sobre Laura, a lha da Mina Joana e do Angola
Marcelo continuam. Não sabemos quando morreu e se teve lhos,
mas temos conhecimento que depois de livre casou ocialmente duas
vezes. As escolhas dos dois parceiros com quem casou mostra que ela
18
AHCMPA. Casamentos da Catedral nº 7, f.135v.
58 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

optou por indivíduos próximos de seu grupo familiar, composto de


africanos e seus descendentes imediatos.
Às 16 horas do dia 2 de setembro de 1871, pouco mais de um ano
após ter obtido a alforria, Laura Guedes de Jesus casou, na Catedral
da Capital da província, com Pedro Luiz Bernardo, em uma cerimônia
realizada pelo mesmo padre Hildebrando que casou Marcelo e Joana.
Pedro era lho de Bernardo Gomes, de nação africana.19 Viúva, Laura
voltou a casar em 7 de abril de 1880. Apesar de muito se falar sobre os
antagonismos e diferenciações entre crioulos e africanos, ela escolheu
como parceiro um africano como seus pais. Seu nome era Emilio
Joaquim de Moraes (lho de pais incógnitos, natural da Costa da África,
maior de 50 anos de idade) e o casamento ocorreu na Catedral de Porto
Alegre, sendo a cerimônia celebrada pelo Monsenhor João Pedro de
Miranda e Souza.20
Assim como a maioria de seus compatriotas – conforme pode ser
vericado em tabela mostrada anteriormente – o Nagô Emílio, quando
tinha por volta de 45 anos de idade, livrou-se do cativeiro ressarcindo
seu senhor pela mercadoria perdida. Corria o ano de 1865, quando o
cativo Emilio e seu senhor Joaquim Francisco de Morais redigiram
um “papel de obrigação” estipulando como se daria o pagamento pelo
resgate da liberdade deste Nagô:
[...] recebendo eu nesta data somente a quantia de 1:000$, e cando
o mesmo escravo obrigado a dar a quantia de 800$ dentro do prazo
de 1 ano a contar desta data, cuja quantia ca vencendo desde
agora o prêmio de 1% ao mês e que será pago mensalmente, e
no m do prazo de 1 ano não pagar a dita quantia de 800$ cará
a mesma vencendo o prêmio de 2% ao mês (APERS – 1º TPA
nº 18, f.60).
Devemos ainda chamar a atenção que Laura, apesar de ser citada
 por Marcelo em seu testamento como lha, ostentava como seu nome
de liberta apenas o sobrenome da mãe Joana. Seu nome de papel , ou
seja, aquele que ela usava nos registros, era Laura Guedes de Jesus.
Seria respeito a uma tradição matrilinear africana ou indicativo de que

19
Foram padrinhos deste casamento: Gaspar Batista de Carvalho e Clara Batista de Carvalho,
 provavelmente membros da família de Antonio André Henrique de Carvalho, vizinho e aliado dos
 pais da noiva. AHCMPA. Casamentos da Catedral nº 7, f.157.
20
AHCMPA. Casamentos da Catedral, nº 8, f.62.
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 59

ela não era lha biológica de Marcelo? Talvez nunca venhamos a


saber, mas ao casar pela segunda vez Laura escolheu Emilio, um
africano da Costa da África, mais próximo cultural ou etnicamente
de sua mãe Mina do que de seu pai Angola. Ainda carecemos de
estudos sobre as práticas de autonomeação dos ex-escravos no Brasil.
A escolha de seus nomes quando livres é um indicativo poderoso das
estratégias que pensavam usar (quando, por exemplo, incorporavam
a sua denominação o sobrenome dos ex-senhores) e da importância das
relações familiares e de parentesco, quando homenageavam antepassados,
muitas vezes referenciados pelo primeiro nome (WEIMER, 2007;
BARCELLOS, 2004; RIOS, 2005).
O primeiro marido de Laura, por exemplo, chamava-se Pedro
Luiz Bernardo, sendo seu pai o africano Bernardo Gomes. Supomos
que Pedro tenha nascido escravo e ao alforriar-se assumiu como
sobrenome o primeiro nome do pai. Já Laura, como dissemos, incor-
 porou ao seu nome os sobrenomes da mãe e, quando casou pela
segunda vez, assinou como Laura  Luiza  Guedes de Jesus, home-
nageando seu defunto marido.
Joana Guedes de Jesus morreu em 25 de junho de 1887, com 65
anos de idade, de “lesão orgânica do coração” e foi enterrada no dia
seguinte, conduzida “a mão” para o cemitério. 21 Já Marcelo sobreviveu
dois anos a ausência de sua companheira, falecendo às 21 horas de 27
de abril de 1889, com 73 anos de idade. Um ano antes de falecer, em 2
de março de 1888, Marcelo, provavelmente sentindo que sua vida estava
no m, pediu que lhe escrevessem o testamento.
Sou natural da África, cuja liação desconheço. [...] Declaro que
minha lha Laura Guedes de Jesus é minha herdeira necessária,
com exceção da terça dos meus bens. Instituo herdeiro da referida
minha terça ao meu alhado Marcelino, lho de meu compadre
Raymundo Ignácio de Azevedo. [...] Desejo que meu enterro
seja feito com decência, porém pobremente, sendo aplicado as
despesas do mesmo, alguns trastes que possuo e são conhecidos.
O texto do testamento é uma prova (ou indicativo poderoso)
das relações da comunidade negra local. Marcelo indicou três tes-
tamenteiros, sendo o primeiro seu compadre  Raimundo Inácio de

21
AHCMPA. Óbitos nº 18, nº de ordem 31869.
60 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

Azevedo, em segundo lugar Aureliano de Oliveira (“meu bom amigo”)


e em terceiro Fructuoso Vicente Vaz (“meu particular amigo”).
Marcelo era irmão da Irmandade do Rosário, de onde pro-
vavelmente conhecia o sacristão da Igreja, Frutuoso Vicente Vaz, seu
“particular amigo”. Frutuoso, que supomos que fosse negro (mas não
temos certeza), casou em 01.02.1858 com Maria Joaquina da Conceição
(natural de Porto Alegre, lha de Ana Maria da Conceição), às 18
horas na Igreja do Rosário.22 Vaz era sacristão da Igreja que congre-
gava boa parte da população negra de Porto Alegre (NASCIMENTO,
2006).
O congo Raimundo Inácio de Azevedo, quando tinha cerca de
44 anos, em 13.12. 1858, conseguiu que sua senhora Tereza Antonia
de Azevedo lhe concedesse carta de alforria em troca de um conto e
trezentos mil réis.23 Tão logo liberto, Raimundo tratou de acumular
 pecúlio para libertar sua família ainda em cativeiro: em 01.11.1859
ele entregou para sua ex-senhora uma quantia suciente para que ela
comprasse a crioula Maria Rosa, e assim libertasse sua lha Maria
Bernardina, de 15 anos.24 As afetividades e identidades de Joana,
Marcelo e Raimundo foram consagradas através do estabelecimento
de um parentesco simbólico. Em 06.10.1877, Joana e Marcelo
 batizaram o ingênuo Marcelino (nascido em 8 de setembro daquele
ano), lho da crioula Maria (escrava de Alexandrina Bernardes da
Silva).25 O nome de Raimundo não aparece no registro deste batismo,
feito pelo Reverendo Padre Leonardo Felipe Fortunato, provavel-
mente porque sua relação com a mãe do inocente era meramente
consensual. De qualquer maneira, este apadrinhamento demarcou
e fortaleceu simbolicamente os laços entre estes africanos, cando
o padrinho homenageado no nome do batizando. Assim, o batismo
estabelece parentescos ctícios e mapeia aliados. 26
22
AHCMPA. Casamentos do Rosário nº 2, f.76.
23
Provavelmente o pagamento foi feito em prestações, pois a carta foi registrada somente em
02.03.1864. APERS. 1o TPA, RD nº 17, f.206.
24
APERS. 1º TPA, RD nº 27, f.51v. Carta registrada em 04.11.1859.
25
A mãe de Marcelino conseguiu liberdade em 21.02.1883, pagando 600 mil réis a sua senhora,
talvez auxiliada por seu amásio liberto. AHCMPA. Batismo de Libertos da Catedral, f.25 / APERS.
1º TPA, RD nº 16, f.117v.
26
Idêntico caso ocorreu em 18.08.1873, quando o casal Laura Luiza Guedes de Jesus e Pedro
Luiz Bernardo batizaram uma ingênua de seis meses, lha da escrava parda Clarinda (propriedade
de Brisida Calderon Vieira), a qual foi nomeada de Laura. AHCMPA. Batismo de Livres das
Dores nº 3.
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 61

Como dissemos quando tratamos da relação consensual entretida


 pelos escravos africanos Joana e Marcelo na charqueada de Maria
Guedes de Menezes, não podemos entender a sociedade escravista
sem reservar um espaço fundamental para a questão dos laços
familiares e de parentesco. Como transparece com clareza nesta
rede de parentesco que estamos apontando, foi essencial para a
sobrevivência de escravos e libertos, para a manutenção de suas
identidades étnicas (reinventadas) e, também, para a potencialização de
variadas formas de resistência (incluindo a alforria) o uso estratégico dos
apadrinhamentos e dos casamentos (sejam consensuais ou ocializados
 pela Igreja) (SCHWARTZ, 2001).
 Na ausência de uma rede familiar consanguínea, a identicação
étnica – fundamentalmente aquela reinventada – ganha feições de
uma grande família simbólica, podendo mesmo ser um dos principais
canais de solidariedade e organização social dos africanos que aqui
viviam. Estes parentes entreteceram uma luta surda contra o cativeiro,
fragmentada, difícil de vencer pela quantidade de fronts onde se devia
lutar; batalha da qual não se saía vitorioso sem que fosse empreendida
uma ação coletiva.
Abreviaturas
AHRS – Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.
AHCMPA – Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre.
APERS – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul.
RD – Registros Diversos.
TPA – Tabelionato de Porto Alegre.

Referências
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2004.
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ORO, Ari Pedro.  As religiões afro-brasileiras do Rio Grande do Sul. Porto Alegre:
UFRGS, 1994.
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Alegre: Cia. União de Seguros Gerais, 1983.
DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
ELMIR, Cláudio Pereira.  A história devorada. Porto Alegre: Escritos, 2004.
62 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

FARIA, Sheila de Castro.  A colônia em movimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,


1998.
GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa/Rio de Janeiro: DIFEL/
Bertrand Brasil, 1991.
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das Letras, 2000.
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de Janeiro: Laemmert & Cia., 1872.
MATTOSO, Kátia de Queiros. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982.
MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Os cativos e os homens de bem. Porto Alegre: EST,
2003.
 NASCIMENTO, Mara Regina do.   Irmandades leigas em Porto Alegre. 2006. Tese
(Doutorado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.
PORTUGAL, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses. Os negros em Portugal: séculos XV-XIX. Lisboa: Mosteiro dos Jerônimos,
1999.
RIOS, Ana; MATTOS, Hebe.  Memórias do cativeiro. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005.
ROCHA, Cristiany Miranda.  Histórias de famílias escravas. Campinas: UNICAMP,
2004.
SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos. São Paulo: Cia. das Letras, 1988.
 _______. Escravos, roceiros e rebelde. Bauru: EDUSC, 2001.
SOARES, Carlos; GOMES, Flavio; GOMES, Juliana. No labirinto das nações: africanos
e identidades no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.
SPALDING, Walter. Pequena história de Porto Alegre. Porto Alegre: Sulina, 1967.
WEIMER, Rodrigo de Azevedo.  Livres pela lei: um estudo sobre a transição da
escravidão ao trabalho livre em dois municípios do Rio Grande do Sul: Conceição do
Arroio e São Francisco de Paula, 1880-1900. 2007. Dissertação (Mestrado em História)
 – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2007.
4
Os lanceiros Francisco Cabinda, João
aleijado, preto Antonio e outros personagens
negros da Guerra dos Farrapos
Vinicius Pereira de Oliveira
Daniela Vallandro de Carvalho

Quando o lanceiro Francisco Cabinda adentrou a Casa de


Correição do Rio de Janeiro, em fevereiro de 1839, para prestar
depoimento sobre sua existência  na Corte ninguém imaginava que
suas poucas palavras iriam pôr em relevo experiências às quais esteve
sujeito no curso dos longos dez anos de guerra civil na Província de São
Pedro.
Francisco residia em Piratini e, como muitos outros escravos das
redondezas, serviu na guerra como soldado, aliás, lanceiro. Nada de
novo transcorreria na vida de Francisco se não fosse a guerra a afetar
o dia a dia da província sulina há alguns anos. Enquanto as tropas de
Antonio de Souza Netto e do Major Teixeira Nunes se aproximavam
da localidade, rumo a mais uma das tantas batalhas ocorridas no
decênio belicoso e à procura de pessoas dispostas (ou não!) a lutarem
nas leiras rebeldes, Francisco trabalhava nas lavouras de seu amo,
 proprietário de algumas terras na cidade de Canguçu. Foi assim que
a história de Francisco, da guerra farrapa e dos lanceiros negros se
cruzaram gerando uma rica história que apresentaremos aqui alguns
fragmentos.
 Neste dia, Francisco foi cedido por seu amo aos chefes farrapos
 para integrar um dos muitos corpos de infantaria e artilharia das forças
rebeldes. Junto com ele foi também cedido o escravo Antônio, de nação
Benguela. Incorporados às tropas, os africanos foram levados à casa
de um irmão de Bento Gonçalves, onde lhe disseram que se lutassem
no exército farroupilha receberiam liberdade. Desta forma, tomaram
conhecimento da proposta dos Farroupilhas de conceder liberdade a
todos os escravos que lutassem em suas leiras, cando esta liberdade
condicionada ao término da guerra.
64 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

Ou seja, mesmo cedido por seu amo, que certamente fora coagido


 pelos farroupilhas a entregá-lo, Francisco ainda foi convencido  pelos
rebeldes a auxiliá-los na contenda contra o Império. Não interessava
aos farroupilhas um soldado apenas, mas um indivíduo que lutasse
motivado – e nada motivava mais do que a promessa de liberdade! Há
que ser ressaltado o fato de que Francisco se encontrava alugado para
este senhor, ou seja, no jogo de coação em que estava envolto, acabou
 por ceder algo que não lhe pertencia, minimizando suas possíveis perdas
advindas da passagem dos farrapos por suas terras.27
Alistado, Francisco passou a fazer parte de um dos corpos de
lanceiros e em uma das incursões dos mesmos a Montevidéu o ocial
responsável pelas tropas dispensou todos os negros por não possuir
dinheiro para pagar seus soldos. Em função disso, disse a todos os
escravos que “estavam livres”, tendo os mesmos recebidos “papéis”
individuais.
Já na condição de homem livre, Francisco trabalhou por um tempo
em uma estância no Estado Oriental.28 Depois fora recrutado pelas forças
do General Oribe, tendo lutado nas contendas uruguaias e assim, mais
uma vez, experimentado as agruras dos campos de batalha. É possível
que seu conhecimento do território uruguaio – já que sua senhora lá
residia – o tornasse um soldado importante e que sua luta ao lado de Oribe
não fosse apenas fruto de uma imposição do recrutamento compulsório e
sim um ato de barganha e negociação, já que soldados experientes eram
raros à medida que a deserção era uma dura realidade que se apresentava
nas contendas que envolviam os territórios fronteiriços.
Estranho seria se nosso personagem depois de tantas guerras
não saísse lesado física ou espiritualmente. Por ocasião de seu
engajamento nas tropas rebeldes, Francisco já contava 60 anos. É
 possível que seu amo o tenha cedido por considerá-lo um escravo
 pouco útil para o trabalho e imprestável sicamente por conta de

27
Sua senhora residia no Uruguai à época de sua incorporação às tropas, encontrando-se Francisco
alugado a este senhor de Canguçu. É possível que sua senhora fosse uma das muitas proprietárias
de terras e escravos em ambos os lados da região fronteiriça entre Brasil e Uruguai e que parte de
sua escravaria transitasse entre suas posses.
28
A região compreendida entre o Estado Oriental e o Brasil tem se mostrado um espaço bas-
tante permeável que ainda carece de análises especicas no tocante às possíveis trocas e
experiências que este local propiciava aos cativos e libertos. Ver: BORUCKI; CHAGAS;
STALLA (2004).
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 65

sua idade avançada. Contudo, seus cálculos estavam errados, ao me-


nos naquele momento. Somente depois de alguns anos lutando que
Francisco adoeceu, tendo sido internado no hospital da capital uruguaia,
momento no qual o cônsul brasileiro toma conhecimento de sua presença
e o remete para a Corte do Rio de Janeiro como escravo, sendo recolhido
à Casa de Correição onde prestou o depoimento que nos possibilitou
conhecer um pouco de sua vida.
Impossível não carmos encantados com a história deste africano
que sobreviveu ao tráco atlântico, viveu por alguns anos como escra-
vo em uma estância da campanha sulina, possivelmente desempenhan-
do funções vinculadas à lida do campo, tornou-se soldado lanceiro
aos 60 anos de idade (sabe-se que para a população cativa a expecta-
tiva de vida era curta), lutou por 2 anos e meio entre tropas farrapas e
uruguaias e sobreviveu às contingências de duas sangrentas guerras.
De tudo isso lhe restou a experiência de soldado (que preten-
siosamente resumimos aqui), as marcas pelo corpo (estava inválido
quando chegou ao Rio de Janeiro) e um pedaço de papel que con-
servou consigo junto ao corpo qual um relicário: sua carta de alforria.
Por ocasião de seu interrogatório às autoridades imperiais, Francisco
apresentou a carta de liberdade dada pelo ocial farroupilha em
Montevidéu.29
Ao mesmo tempo em que o documento citado nos fornece poucos
vislumbres da experiência de vida de Francisco antes da guerra – nada
sabemos de sua chegada no Brasil através do tráco atlântico, dos
laços familiares que mantinha e daqueles que fora obrigado a abdicar,
de suas opções religiosas, etc. –, muito nos é revelado.30 Mesmo que
a documentação se mostre arredia, é possível perseguir algumas
trajetórias de vida destes indivíduos, dimensionando sua participação,
importância e contribuição na conformação sócio-etnico-cultural do
 belicoso Rio Grande de São Pedro oitocentista.

29
Carta de liberdade recebida por Francisco Cabinda em Montevidéu: “Vai tratar da sua
vida o preto forro de nome Francisco [sic] pelo qual rogo as autoridades Republicanas não lhe
 ponham embaraço no seu trânsito sem justa causa. Campo na Conceição 4 de junio [sic] de
1837. [ass.] Francisco Carnero Sarmento. 1º Ten. De Laçadores d’pª Lª” . AHRS, Fundo Justiça,
Maço 101, Ano de 1839, Processo 0913.
30
De forma geral, tem sido os documentos produzidos por fontes repressivas que tem per-mitido
os historiadores acessar a vida dos indivíduos subalternos. Ver: GINZBURG (1987; 1989).
66 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

A história do africano cabinda é um caso elucidativo do que


Michel Foucault descreveu como personagens obscuros que faziam
“parte de milhares de existências destinadas a não deixarem rastros”
e que só pareciam se materializar através do encontro com o poder:
“sem este choque nenhuma palavra sem dúvida haveria permane-
cido para recordar-nos sua fugaz trajetória” (FOUCAULT, 1992,
 p.180-181).
A trajetória do lanceiro Francisco talvez seja uma daquelas
histórias que de tanto procurarmos apareça para nos premiar pela
insistência e para que possamos recordar sua fugaz trajetória. Ilustra
também os esforços presente hoje em alguns historiadores: o de retirar
da invisibilidade um grupo signicativo de indivíduos que zeram
(e fazem!) parte da formação sócio-histórico-cultural do Rio Grande
do Sul:
Se existe uma palavra que ainda nos dias de hoje parece acom-
 panhar como uma assombração a questão do negro em geral (e do
escravo em particular) na historiograa produzida no Rio Grande
do Sul, esta é – invisibilidade. Esta é a histórica realidade de uma
 porção sempre considerável da população do Brasil meridional
que ambiguamente  estava presente nas estatísticas coloniais e
imperiais, porém encontrava-se em situação ironicamente transpa-
rente para os historiadores (MOREIRA; TASSONI, 2007, p. 11).
A Revolução Farroupilha foi possivelmente o assunto mais
trabalhado pela historiograa gaúcha, entretanto, a relevância e a
dimensão da participação do negro neste conito foram parcamente
analisadas. Tal temática tem sido apenas tangencialmente tocada por
historiadores e os trabalhos que existem contemplando a união da
temática escravidão com o momento da guerra farrapa já podem ser
considerados clássicos. 31
 Nos últimos anos, assistimos a um processo de releitura da his-
tória do Rio Grande do Sul, especialmente no sentido de ressaltar a
diversidade de sua composição étnica através da incorporação de
índios, negros e mestiços à produção historiográca, como integran-
tes e importantes contribuintes à formação social da região. Especial

31
Referimos-nos aqui às produções de LEITMAN (1979 e 1997); BAKOS (1997); FLORES
(1978, 1984 e 2004); CARRION (2003).
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 67

destaque tem sido conferido ao papel dos lanceiros negros na Revo-


lução Farroupilha e ao polêmico Combate de Porongos, ocorrido em
14/11/1844.
Já não se trata de novidade o fato de que os negros desem-
 penharam papel fundamental nas forças militares rebeldes durante a
Guerra dos Farrapos. Em troca da promessa de liberdade ao nal do
conito, muitos escravos lutaram nos Corpos de Lanceiros do exército
farroupilha, criados em 12/09/1836 e 31/08/1838. Estima-se que, em
alguns momentos, eles tenham composto de um terço à metade das
tropas revoltosas (LEITMAN, 1985).
Antes mesmo da criação ocial dos destacamentos de lanceiros,
os negros já haviam desempenhado papel de destaque no confronto,
como na tomada das cidades de Porto Alegre e Pelotas, ocorridas em
setembro de 1835 e abril de 1836. O relato de João Daniel Hillebrand,
imigrante alemão e Diretor Geral da Colônia de São Leopoldo, é
revelador da composição étnica da tropa que tomou Porto Alegre no dia
20/09/1835. Em depoimento da época, informava aos seus “patrícios
alemães que uma partida, pela maior parte composto de negros e índios”
estaria ameaçando as autoridades da Província (BENTO, 1975, p. 172).
Armou ainda que a “força dos revoltosos que se apresentaram próximo
à Azenha e que depois entraram na Cidade de Porto Alegre, não excedia
de 80 a 90 pessoas, índios, negros e mulatos, a maior parte armadas de
lanças” (CARRION, 2003, p. 5).
Da mesma forma, em abril de 1836, por ocasião da primeira
invasão das tropas rebeldes a Pelotas – a maior cidade charqueadora
da época –, tem-se a informação de que cerca de 400 a 500 escravos
tenham seguido as forças rebeldes. Meses depois, em setembro de 1836,
surge o primeiro corpo de lanceiros, provavelmente composto destes
cativos. Assim, é possível que o decreto tenha sido uma consequência
do sucesso e eciência empreendida por este primeiro grupo de negros
armados.32
Além de contribuírem como soldados à causa farroupilha, negros
livres e alforriados, juntamente com índios, mestiços e escravos
32
Fonte: Relatório do Ministro da Guerra-Justiça, 1836. Brasil, Ministério da Justiça, Ministro
(Gustavo Adolfo de Aguillar Pantoja, Relatório do Anno de 1836, apresentado a Assembleia
Legislativa na Sessão Ordinária de 1837 (publicado em 1837); p. 09 In: <http://www.crl.edu/
content/brazil/mina.htm>.
68 Silva, G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

fugidos do Uruguai também trabalharam em outros setores cruciais


da economia de guerra: foram tropeiros de gado, mensageiros, peões
e campeiros nas estâncias, trabalhadores na fabricação de pólvora,
nas plantações de fumo e erva-mate implantadas pelos rebeldes
(LEITMAN, 1985). Em 17/10/1838, por exemplo, o jornal O Povo
 publicou um expediente tratando da criação, pelo Estado farroupilha,
de fazendas para produção de erva-mate com uso do trabalho escravo
em Taquari, Distrito das Dores e Missões.
Esses escravos eram na sua maioria recrutados entre os negros
campeiros e domadores da região sul do Estado, especialmente
nas proximidades da Serra dos Tapes e do Herval, e nas localidades
de Piratini, Caçapava do Sul, Encruzilhada do Sul, Arroio Grande e
Canguçu, como podemos perceber na história do africano Francisco. 33
A arregimentação se dava de várias formas: através da solicitação de
escravos a senhores simpáticos à causa farrapa, pela captura forçada
de negros pertencentes a proprietários leais ao Império e via sedu-
ção com a promessa de alforria, o que acabava por ocasionar o
engajamento voluntário de cativos que fugiam de seus senhores,
vislumbrando no exército farroupilha uma possibilidade de liberdade.
Ou, ainda, poderiam adentrar as tropas em substituição de indivíduo
livre convocado, o qual podia oferecer um escravo com carta de alforria
 para lutar em seu lugar.
O relato do escravo de nação angola José, que lutou como soldado
farrapo e desertou em 1837, ajuda a compreender o peso dos negros na
composição das tropas republicanas. Em depoimento às autoridades do
Império, José informou que “a infantaria dos brancos” havia quase toda
desertado e que naquele momento a mesma seria composta “de pretos,
uns com armas e outros com lanças”.34

33
Muitos lanceiros eram domadores e campeiros na região de pecuária, espaço econômico
tradicionalmente visto como palco privilegiado da mão de obra livre. Estudos recentes têm
demonstrado a disseminação da presença negra, em geral, e do escravo, em particular, na campanha
sulina. Tais trabalhos têm demonstrado que a ideia, por muito tempo vigente, da presença fortuita
e casual de braços cativos nas lides pecuárias não é uma imagem verossímil, vericando que a
área, por excelência do “gaúcho”, era também povoada por negros – africanos e crioulos – que
contribuíram e partilharam juntos da construção do estado sulino. Ver: OSÓRIO (1999), ZARTH
(2002), GARCIA (2005), FARINATTI (2007).
34
 Anais do AHRS , Volume 10, CV-5412, p. 67.
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 69

Lutar como lanceiro muitas vezes se mostrava como uma


alternativa à vida em cativeiro, visto que, para além da miragem da
liberdade ao nal do conito, a atuação no campo de batalha oferecia
oportunidades de fuga, mesmo que a isso implicasse o temor e o medo
diário da morte em batalha, situação nada anormal de uma conjuntura
 belicosa.
A atuação dos farroupilhas na busca por arregimentar escravos
 pode ser vericada ainda em documentos ociais, como o remetido
 por Antônio de Souza Netto, em agosto de 1840, ao Cel. João Antônio
da Silveira, recomendando que este não perdesse “oportunidade
de fazer recrutar libertos para os Corpos de Lanceiros e mesmo de
Infantaria, pois me consta existirem não poucos em algumas fazendas
de dissidentes”.35
Em 20/04/1838, o governo republicano criou um Depósito Geral
de Recrutamento,36  onde deveriam ser “instruídos e disciplinados
os recrutas sob direção de ociais de reconhecida inteligência e
capacidade até que sejam habilitados a entrarem no serviço dos
Corpos”. No artigo 28, constava que se procederia “dentre os re-
crutados apurada escolha dos indivíduos da melhor classe por cores,
educação, bens e agilidade para o serviço da Cavalaria e Artilharia
de Linha”. Determinava ainda que se zesse “igual escolha dentre os
índios e pretos libertos, fazendo seleção dos mais ágeis e capazes para
o Corpo de Lanceiros da 1ª Linha, destinando os outros para os Corpos
de Infantaria e Caçadores”.37
Mesmo que tenhamos alguns agrantes de experiências indi-
viduais, poucos são os relatos sobre estes corpos de lanceiros negros.
Em sua maioria, são descrições feitas pelas lideranças imperiais ou
farroupilhas e se restringem a questões administrativas ou logísticas.

35
 Anais do AHRS , v. 13, CV-6201, p. 28.
36
 Anais do AHRS , v. 5, CV-2830 e 2831, p. 51.
37
Entretanto, é sabido que tal rigor na hora de selecionar soldados não era tão cui-
dadosamente cumprido, visto a urgência que tinham de preencher as leiras em função
do grande número de deserções. Tal armação não era uma exclusividade sobre os negros
recrutados e sim uma constante entre todos que de alguma forma tinham em seus horizontes
o recrutamento. Desta forma não é surpresa que a documentação nos ofereça agrantes de
indivíduos inválidos e aleijados nas tropas (AHRS, Autoridades Militares, Maço 135, AHRS,
AM, M. 135B, 2550).
70 Silva, G.F.;
G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

O conhecido depoimento do italiano Giuseppe Garibaldi, porém, me-


rece destaque:
Este corpo de lanceiros, composto em geral de negros livres da
república, e escolhidos entre os melhores domadores de cavalos
da província, tinha unicamente os ociais superiores brancos, e
nunca o inimigo havia visto as costas destes lhos da liberdade.
As suas lanças, que eram maiores do que as comuns, os seus
rostos pretos como o azeviche, os membros robustos e a sua
disciplina exemplar faziam deles o terror dos inimigos (DUMAS,
1947, p. 30).
Garibaldi pouco informa, porém, sobre as expectativas e per-
cepções dos lanceiros negros a respeito da guerra e do trato recebido
da parte dos farroupilhas. Embora a história do africano Francisco
seja uma exceção documental no tocante à complexidade da expe-
riência de vida que revela, outros canais de acesso existem e nos
levam a experiências mais amplas. Um valioso relato foi prestado
 pelo preto Antônio, escravo de Antônio Manuel de Sampaio, residente
em Porto Alegre. Este cativo foi preso pelos imperiais e interrogado
em 16/10/1837, revelando que havia se engajado no exército rebelde
dias antes, motivado por convite feito pelo preto José, escravo de
Barem. Pouco tempo depois, conversando com o mesmo preto, este
“lhe fez ver que aquela vida não estava boa” e assim resolveu voltar
 para seu senhor, pois concluiu a “asneira que tinha feito”.
f eito”. Por motivos
moti vos
não relatados, as expectativas deste escravo com os possíveis ganhos
advindos do engajamento voluntário ao exército farroupilha foram
frustradas, resultando em cálculos que o levaram a optar pelo retorno
ao cativeiro.38
Apesar da utilização da alforria como mercadoria de troca, em
nenhum momento a República Rio-Grandense libertou seus cativos.
A questão da abolição era controversa entre os farroupilhas. Ao
mesmo tempo em que o governo rebelde prometia liberdade aos
escravos engajados e condenava a continuidade do tráco inter-
nacional, seu jornal ocial O Povo 
Povo  estampava anúncios de fugas
de cativos. Houve uma tentativa de abolição através de projeto
apresentado na Assembleia Constituinte de 1842 por José Mariano de

38
 Anais do AHRS , v. 10, CV-5406, p. 63.
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 71

Mattos, que foi recusado. Diversas lideranças farrapas, anos após o


nal do conito, ainda possuíam escravos, como foi o caso de Bento
Gonçalves da Silva (1788-1847) que morreu deixando 53 cativos a seus
herdeiros (BAKOS, 1985).
A controvérsia do Massacre de Porongos
 Na madru
madrugada
gada de 14/11/1844
14/11/1844,, tropa
tropass imper
imperiais
iais comanda
comandadas
das
 pelo Coronel Francisco Pedro de Abreu – conhecido por  Moringue
 – atacaram o exércit
exércitoo farrapo
farrapo,, em especial o Corpo de Lanceiro
Lanceiross
 Negros liderado pelo General Davi Canabarro. Tal evento ocorreu nas
 proximidades do Cerro de Porongos, em Pinheiro Machado, na época
distrito de Piratini, na metade sul do estado. Cerca de 100 100 soldados
farroupilhas que estavam no local foram mortos e outros tantos foram
feitos prisioneiros. Eram, em maioria, escravos que lutavam para obter a
liberdade.
Alguns anos depois, a divulgação de uma correspondência
atribuída a este conito deu início a uma polêmica sobre o seu
caráter.39  Tal documento, que cou conhecido como “Carta de
Porongos”,4 0  teria sido enviado pelo Barão de Caxias (Presidente da
Província do Rio Grande do Sul e Comandante em Chefe do Exército
imperial na região) a Moringue. O seu conteúdo revelaria a existência
de um acordo prévio entre o Barão e as lideranças farroupilhas,
visando facilitar a ofensiva imperial contra os lanceiros acampados
em Porongos e acabar com o conito que se arrastava há quase
uma década. Em determinado trecho da correspondência, Caxias
informaria a Francisco Pedro o local, dia e horário para o ataque,
garantindo-lhe que a infantaria farroupilha estaria desarmada pelas suas
lideranças.

39
A polêmica que cerca o Massacre de Porongos – Canabarro teria sido atacado de surpresa ou
traído os lanceiros? – foi levantada ao nal da década de 1850 pelo farroupilha Domingos José
de Almeida, que armou ter visto o original da citada correspondência ( Anais do AHRS, v. 3, CV-
673, p. 142.). A partir de então, o fato
f ato gerou uma acalorada controvérsia
c ontrovérsia entre os estudiosos que se
debruçaram sobre o tema. Tal evento passa a receber diversas denominações – batalha, surpresa,
traição ou massacre –, cada uma delas carregando em si os signicados e os entendimentos
atribuídos ao evento, conforme a interpretação efetuada.
40
Este documento encontra-se depositado no acervo da Coleção Varela, Varela, de posse do Arquivo
Histórico do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. Foi publicado nos  Anais do Arquivo
 Histórico do Rio Grande do Sul.  Porto Alegre, 1983, v. 7, p. 30-31. Apresentamos cópia em
anexo.
72 Silva, G.F.;
G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

Com este documento, um primeiro grupo de estudiosos defende


a tese de que o General farroupilha David Canabarro teria, propo-
sitadamente, desarmado e separado os lanceiros do restante das
tropas acampadas nas imediações do Cerro de Porongos para que
fossem aniquilados pelo exército imperial sem oferecer resistência.
Ele desejaria, assim, livrar-se deles para facilitar a assinatura do
tratado de paz que vinha sendo negociado, já que o Império do Brasil
mostrava-se contrário à ideia de premiar com liberdade os escravos
rebeldes (LEITMAN, 1979). Dar-lhes a liberdade era algo não
cogitado pelas elites, pois se temia que um grande contingente de
negros livres pudesse não só pôr em risco a estrutura social no qual
estava assentada a sociedade escravocrata como também possibi-
litar que estes homens com larga experiência militar e politizados
 pudessem incitar outros escravos, insatisf
insatisfeitos
eitos com sua condição a
lutarem pela liberdade. Por outro lado, não lhes dar a liberdade tam-
 bém poderia levar os escravos a incitarem insurreiç
insurreições,
ões, bem como
 promoverem fugas em massa para o Uruguai, onde a escravidão havia
sido recentemente abolida.
Relatos de pessoas que estiveram presentes na batalha infor-
mam ainda que o general farroupilha teria sido avisado da apro-
ximação das tropas inimigas e não tomou providências.41 Por este enfoque
interpretativo, o episódio foi considerado uma traição de Canabarro aos
soldados negros a ele subordinados.
Outra corrente arma que a Carta de Porongos foi forjada pelos
imperiais com o objetivo de desmoralizar Canabarro, único chefe
farroupilha que ainda teria condições de aglutinar as desgastadas
forças rebeldes.42  Felix de Azambuja Rangel, contemporâneo do
conito, deixou relato armando ter tomado conhecimento do mo-
que  Moringue mostrou
mento em que Moringue  mostrou a citada correspondência a Caxias e
este assinou e mandou tirar as cópias posteriormente divulgadas entre
os farroupilhas.  Manuel Patrício de Azambuja, outro contemporâneo
da guerra, teria escutado do próprio Francisco Pedro de Abreu uma

41
Varela ( Anais
Ver, por exemplo, relatos de Manuel Alves da Silva Caldeira, na Coleção Varela  Anais
do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul , v. 5, CV-3101, CV-3102, CV-3103 e
CV-3104)
CV -3104) e de José Custódio Alves de Souza, João Amado e José Gomes Jardim (VARELA,
(VARELA, 1933,
 p. 248)
42
Ver esta discussão em: RODRIGUES (1899) e BENTOBENTO (s/d2).
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 73

conssão desta trama, bem como sua armação de que teria produzido
 bom efeito a “bomba” lançada entre os farrapos (WIEDERSPAHN,
1980, p.71). Nesta perspectiva, a Carta seria falsa e o ataque aos
lanceiros uma “surpresa”, já que eles teriam sido pegos desprevenidos
e não teria havido intenção de seus líderes em facilitar o seu ex-
termínio.
Seja como for, parece haver consenso entre os pesquisadores
de que estes guerreiros negros foram atacados em uma situação
extremamente desfavorável. Eles estavam extenuados pela longa
duração do conito, em inferioridade de armamentos e de pessoal
e encontravam-se desavisados do perigo iminente, sendo eliminados em
quantidade considerável. Nesse sentido, a adoção do termo “massacre”
não implica necessariamente em adesão à tese da traição ou da surpresa,
mas sim o reconhecimento das condições severamente desiguais do
conito.
Foi a partir dos estudos de Alfredo Varela (1933) e Alfredo
Ferreira Rodrigues (1899), iniciados na década de 1890, que a
 polêmicaa toma fôlego. Atravé
 polêmic Atravéss da public
publicação
ação de artigo
artigoss e livro
livros,
s,
estes autores estabelecem um intenso debate e pontuam argumentos,
indícios e informações para corroborar suas teses: Varela defende
a traição em Porongos, enquanto Ferreira Rodrigues arma que
Canabarro fora atacado de surpresa. Ambos utilizam farta documen-
tação e depoimentos de contemporâneos ao conito.
Analisando a produção textual posterior atinente ao tema per-
cebe-se existirem duas matrizes historiográcas a respeito
r espeito deste evento
e que a discussão acerca do caráter do Combate de Porongos, até hoje
não resolvida, retoma em grande medida a base argumentativa do debate
originalmente travado a partir do nal do século XIX entres os autores
mencionados. Grosso modo, identicam-se quatro grandes períodos de
gênese e reelaboração destas matrizes:
 Primeiro período:
período: debate inicial travado na virada do século XIX
 para o XX, com a discussão polarizada entre Alfredo Varela
Varela e Alfredo
Ferreira Rodrigues. Estes estudos, mais do que proporem uma versão
do que teria sido a Revolução Farroupilha, constroem uma repre-
sentação a respeito da história do próprio Estado que a partir de então
 passou a ser amplamente difundida e aceita pelos mais variados setores
setores
do Rio Grande do Sul e do país.
74 Silva, G.F.;
G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

Segundo período:
período : Décadas de 1920, 1930 e 1940, tendo como
referência autores como Maia (1920), Reichardt (1928), Spalding
(1934), Rosa (1935) e Laytano (1936; 1984). A polêmica da surpresa ou
traição aos lanceiros negros ca em segundo plano, havendo hegemonia
da versão de que Canabarro foi f oi atacado inesperadamente.
Embora Laytano seja referência para os estudos sobre o passado
do negro no estado por conferir visibilidade historiográca até então
inexistente a este grupo, isto acontece pelo prisma do mito da democracia
racial dos pampas, com inuência clara das ideias de Gilberto Freyre. É
neste momento que surgem os primeiros Centros de Tradição Gaúcha,
importantes difusores de uma concepção de identidade regional, a qual
não contemplava os negros. Obras como as de Goulart (1933) e Vianna
(1933) difundem a ideia de que a escravidão no Rio Grande do Sul não
teria tido a mesma dimensão e importância vericada em outras áreas
do Brasil – como nos engenhos de açúcar do nordeste e nas lavouras
de café do sudeste – e que, onde ela ocorreu, ter-se-ia caracterizado
 por um tratamento mais brando e igualitário dos senhores junto a seus
cativos.43
Terceiro período:
período : Décadas de 1970 e 1980. Verica-se o ressur-
gimento da tese da traição, tanto por pressão do movimento negro,
especialmente nas guras do poeta Oliveira Silveira e do Prof.
Guarani Santos, como por desdobramentos de pesquisas acadêmi-
cas (LEITMAN, 1985; FLORES, 1984). Como contraponto a esta
 perspectiva,
 perspecti va, Cláudio Moreira Bento (1975) e Ivo Caggiani (1992)
aparecem como expoentes da matriz “surpresa”.
Muitos historiadores que estudaram a Guerra Farroupilha
neste período, quando abordam a questão do negro, geralmente se
centram na análise do caráter abolicionista ou não do ideário rebelde.
Entretanto, surgem importantes questionamentos sobre a importância
demográca e social do negro na formação histórica do Rio Grande
do Sul, primeiramente com a tese do sociólogo Fernando Henrique
Cardoso (1962) e posteriormente com as publicações de Maestri Filho
(1982) e Bakos (1982). No campo dos movimentos sociais, destaca-se
a atuação de ativistas negros como Oliveira Silveira, com publicações

43
A respeito da invisibilidade do negro na história do Rio Grande do Sul e do mito da democracia
racial dos pampas, ver OLIVEN (1996) e GUTFREIND (1990).
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 75

de poemas muito conhecidos e até hoje declamados por integrantes


dos movimentos negros do estado. Importante papel foi desem-
 penhado também pela revista “Tição”
“Tição”,, que em seu nº 2/1979 conta com
o texto “O Negro em Armas no Sul”.
Sul” .
Quarto período:
período : contemporaneidade. Produções audiovisuais
como o lme  Netto perde sua alma
alma,, a minissérie global  A casa das
 sete mulheres e
mulheres e a série da RBS TV A
TV  A ferro e fogo
fogo contribuíram
 contribuíram para a
reemergência da polêmica sobre o Massacre de Porongos e da importância
i mportância
dos lanceiros negros, conferindo visibilidade nunca antes alcançada
à questão.
De maneiras distintas, diversos grupos do estado buscam acionar
esta memória acerca de Porongos e dos Lanceiros Negros, através de
 produções educativas, artísticas, criação de atividades relacionadas a
esta memória por piquetes de negros, entidades do movimento negro
e promoção de cavalgadas alusivas ao episódio em datas signicativas
como a Semana Farroupilha e a Semana da Consciência Negra. A criação
de um memorial aos lanceiros negros no Cerro de Porongos está também
em andamento.44
Simultaneamente, ocorre a publicação de uma série de artigos e
livros versando direta ou indiretamente sobre o tema. Autores como
Carrion (2005) e Flores (2004) se posicionam na defesa da ideia
de “traição”. Antônio Augusto Fagundes, porta-voz do movimento
tradicionalista, debate através da imprensa o que considera uma
série de distorções históricas mal intencionadas que visam macular
o passado heroico dos líderes farrapos. 45 Cláudio Moreira Bento
reaparece como defensor da matriz “surpresa” publicando artigos via
internet. É também elaborado um Inventário Nacional de Referências
Culturais por uma equipe de pesquisadores vinculados a 12ª Su-
 perintendência Regional do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional) visando inventariar as práticas culturais da
comunidade negra residente no Cerro de Porongos, para os quais
a memória do massacre e dos lanceiros representa um referencial
identitário, bem como uma diversidade de grupos de outras cida-
44
A respeito das diferentes formas como esta memória é acionada e ressignicada, ver: SALAINI
(2006).
45
  Jornal Zero Hora, Porto Alegre/RS, 29/09/2001, p. 05 (Segundo Caderno) e 05/07/1997, p. 4
(Segundo Caderno).
76 Silva, G.F.;
G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

des que integram um movimento contemporâneo de evocação e


ressignicação do episódio de Porongos.
É o momento de armação de uma memória positiva sobre
a participação do negro na história do Rio Grande do Sul que trans-
cende a questão de Porongos. Verica-se um processo de reelabo-
ração identitária do “ser gaúcho” onde o negro passa a reinvidicar
seu espaço na formação histórica deste estado, construindo um senti-
mento de pertencimento à história do Rio Grande do Sul justamente
através do principal ícone identitário regional: a Revolução Farrou-
 pilha.
O destino dos Lanceiros Negros
O destino reservado aos lanceiros negros após o término do
conito é também tema controverso e pouco conhecido. Seguindo
as tratativas de paz, os escravos que permaneciam em armas foram
entregues ao Barão de Caxias no dia da assinatura do armistício em
Ponche Verde e deveriam ser reconhecidos livres pelo Império.
Juntamente com outro grupo prisioneiro, foram enviados para a capital
do Império na condição de libertos. Se de fato receberam a liber-
dade ao chegarem em seu destino é tema polêmico. Alguns indícios
apontam para a possibilidade de que tenham sido novamente es-
cravizados e transformados em propriedade do Estado brasileiro.
Especula-se que podem ter sido enviados para a fazenda imperial de
Santa Cruz no Rio de Janeiro.46
Outros soldados negros podem, ao longo do conito, ter buscado
refúgio no Estado Oriental, formado quilombos ou ainda ter vivido
como homens livres nas grandes cidades. Um número indenido
deles permaneceu na condição de escravo no próprio estado. Relatos
informam ainda que uma parcela dos lanceiros teria acompanhado o
General Antônio de Souza Netto após o término do conito até sua pro-
 priedade no Uruguai, e que descendentes destes soldados viveriam
46
A esse respeito, ver as seguintes fontes: Instruções dadas
dadas por Jerônimo Coelho a Caxias pelo
pelo
Ministro da Guerra do Império para pacicar o RS em 18/12/1844 (p. 174), ocio de 15/01/1845
de Caxias a Francisco Pedro de Abreu (p. 166-167), ocio de 04/02/1845, e ofício de 02/03/1845
(p. 170), todos em MINISTÉRIO DA GUERRA (1950) No AHRS consultar: Avisos de Guerra,
B-1.48 (ofício de 05/09/1845), e B-1.49 (ofícios
(ofíci os de 05/09/1845, 02/11/1845 e 04/11/1845).
04/11/1845). Consultar
ainda as seguintes obras: ARARIPE (1986, p. 178), FLORES
F LORES (2004, p. 77) e FONTOURA
FO NTOURA (1984,
 p. 148).
RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 77

até hoje nesta área rural conhecida como Estância  La Gloria
Gloria,, no
Departamento de Paysandu.47
Conclusão
A historiograa sulina já discorreu demasiadamente sobre os
temas polêmicos deste artigo e não é nossa intenção prolongar tal
contenda, apenas situá-la historiogracamente. A discussão que
 propomos não se resume em habilitarmos ou desacreditarmos heróis
construídos pela memória coletiva ao longo do tempo e sim pensar
de que maneira este embate emblemático tem marcado a memória e
a contemporaneidade, bem como pensarmos a insuciência para o
meio historiográco do que tem sido posto em discussão. Estes debates
têm se mostrado, por vezes, apaixonados demais, impedindo uma
apreensão mais densa, empírica e analítica da participação do negro
como integrante das forças em litígio e como indivíduos que legaram
uma história aos seus descendentes, os quais hoje reivindicam um espaço
na construção identitária sulina.
O importante é situar que a participação do negro na Guerra dos
Farrapos e particularmente o Massacre de Porongos são episódios do
 passado que guardam profunda relação com o presente. O tema tem
sido revivido por pesquisadores e movimentos sociais que buscam
valorizar a contribuição histórica do negro para a formação histórica
do estado do Rio Grande do Sul. Neste sentido, adquire importância
ímpar, uma vez que se busca este reconhecimento justamente a partir
do evento histórico considerado como um dos elementos fundamentais
da gênese do gauchismo. A Revolução Farroupilha se constitui em
um dos mitos fundadores do regionalismo gaúcho, arsenal quase
inesgotável de heróis e datas comemorativas, em um contexto cultural
onde a construção identitária rio-grandense passa irremediavelmente
 por este evento histórico, fonte de várias representações que apontam
o estado sulino como portador de uma herança de combatividade e
 politização.
Assim, a ação de rememorar (e se apropriar) do passado em
relação ao vivido no presente, reivindicando espaços para a etnia
negra, tem sido desencadeada por dois conjuntos de iniciativas: a

  Jornal Zero Hora
47
Hora, Porto Alegre, 19/09/2003, p. 36.
78 Silva, G.F.;
G.F.; Santos, J.A. & Carneiro, L.C.C. (Org.)

 primeir a é a efetiva represent


 primeira representatividad
atividadee que os moviment
movimentos
os sociais
negros da atualidade têm alcançado; e a segunda, a presença cada
vez maior de pesquisadores que têm se debruçado sobre a temática
da escravidão, trazendo à tona a presença signicativa de cativos
na composição da vida econômica e social da província sulina. Os
trabalhos acadêmicos de forma geral têm percebido não só a presença
desta etnia em suas pesquisas, como a disseminação destes sujeitos
 por todo o tecido social sulino, de maneira que tem se mostrado
impossível pensar a sociedade rio-grandense dos séculos XVIII e
XIX, e por a atualidade, sem contemplá-los com uma mirada mais
cuidadosa.

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RS Negro – Cartografas sobre a produção do conhecimento 81

ANEXO

CARTA DE PORONGOS
CARTA P ORONGOS
Cópia. Reservadíssimo. Ilmo. Sr. Regule V. As. Suas marchas
de maneira que no dia 14 às 2 horas da madrugada possa atacar
a força ao mando de Canabarro, que estará nesse dia no cerro
dos Porongos. Não se descuide de mandar bombear o lugar do
acampamento de dia, devendo car bem certo de que ele há de
 passar a noite nesse mesmo acampamento. Suas marchas devem
ser o mais ocultas que possível seja, inclinando-se sempre sobre
a sua direita, pois posso aançar-lhe que Canabarro e Lucas
ajustaram ter as suas observações sobre o lado oposto. No conito
 poupe o sangue brasileiro quanto puder, particularmente da gente
 branca da Província ou índios, pois bem sabe que essa pobre gente
ainda nos pode ser útil no futuro. A relação junta é das pessoas
a quem deve dar escápula se por casualidade caírem prisionei-
ras. Não receie da infantaria inimiga, pois ela há de receber ordem
de um Ministro e de seu General-em-chefe para entregar o
cartuchame sobre [sic] pretexto de desconança dela. Se Cana-
 barro ou Lucas, que são os únicos que saem de tudo, forem
 prisioneiros,
 prisione iros, deve dar-lhes escapul
escapulaa de maneir
maneiraa que ninguém
 possa nem levemente desconar, nem mesmo os outros que eles
 pedem que não sejam presos, pois V. Sa. Bem deve conhecer a
gravidade deste secreto negócio que nos levará em poucos dias
ao m da revolta desta Província. Se por acaso cair prisioneiro
um cirurgião ou boticário de Santa Catarina, Casado, não lhe
reviste a sua bagagem e nem consinta que ninguém lhe toque, pois
com ela deve estar a de Canabarro. Se por fatalidade não puder
alcançar o lugar que lhe indico no dia 14, às horas marcadas,
deverá diferir o ataque para o dia 15, às mesmas horas, cando
 bem certo de que neste caso o acampamento estará mudado um
quarto de légua mais ou menos por essas imediações em que
estiverem no dia 14. Se o portador chegar a tempo de que esta
importante empresa se possa efetuar, V. S.a lhe dará 6 onças, pois
ele promete-me entregar em suas mãos este ofício até as 4 horas
da tarde do dia 11do corrente. Além de tudo quanto lhe digo nesta
ocasião, já V. As. Deverá estar bem ao fato das coisas pelo meu
ofício de 28 de outubro e por isso julgo que o bote será apro-
veitado desta vez. Todo o segredo é indispensável nesta ocasião
e eu cono no seu zelo e discernimento que não abusará deste

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