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Entre a descoberta de surpreendentes capacidades dos bonobos – que resolvem conflitos copulando – e o destaque
conferido ao sofrimento das criações na pecuária, nossa percepção sobre os animais foi modificada e a questão assumiu
uma importância inesperada. Em geral acalorados, os debates que surgem não podem ser reduzidos a caricaturas: os malvados
carnívoros arrogantes contra os doces vegetarianos empáticos, ou, pelo contrário, o bom senso dos comedores de carne contra
o sectarismo dos trituradores de cenoura. Os questionamentos que surgem são de fato relevantes: qual é a parcela animal
do ser humano? Qual é a melhor forma de coexistir? Devemos alguma coisa às outras criaturas vivas? Resta, por fim, descobrir
se esse acolhimento da alteridade, alimentado de emoção, pode contribuir para o progresso social
s vacas francesas poderão em Na França, e ainda mais na Alema- bastidores e sensibilizar a opinião vam a ação direta, a sabotagem dos
© Odyr
-se o vegetarianismo pela igualdade nheiro do Google, cientistas norte-a- Privilégio das classes superiores lhões a 9 milhões de bichos, que trate
entre as espécies, sob o pretexto de mericanos se dedicam a cultivar bifes durante séculos, a carne “mudou de cada um com delicadeza?9 Introduzir a
que todas seriam compostas de seres in vitro a partir de células-tronco – campo sociológico”: os operários e as vídeo-vigilância nos matadouros irá
sensíveis à dor, capazes de refletir e de projeto aplaudido com entusiasmo pe- pessoas sem diploma consomem hoje apenas reforçar o controle exercido so-
se comunicar. lo Peta. Enquanto a preocupação com em dia mais do que os executivos e di- bre os operários, que já são submetidos
Pouco a pouco, o símbolo da luta a alimentação vegetariana se desen- plomados, ressalta a Terra Nova, uma a cadências infernais. O bem-estar dos
animalista se deslocou da caça e das volve, novos produtos aparecem nos fundação que se propõe a contribuir animais de criação passa por cima do
peles para a indústria da carne. O as- mercados: salsichas à base de ervilhas, para a “renovação intelectual da es- dos trabalhadores da linha e os dois
sunto tem, com efeito, poder de mobi- presuntos “sem carne, mas ricos em querda progressista” convidando-a a dependem do mesmo imperativo: di-
lização. A cada semana, segundo a Or- proteínas”... Na França, os números do “aproveitar as oportunidades de uma minuir o ritmo da produção.
ganização das Nações Unidas para a departamento “embutidos vegetais” alimentação com menos carne” e ba-
Alimentação e a Agricultura (FAO), quase dobrou entre 2015 e 2016. Essas seando-se nos “setores mais promisso- *Benoît Bréville é jornalista do Le Monde
mais de 1 bilhão de animais terrestres misturas que têm aparência, textura e res da FoodTech”.7 Agora, os mais favo- Diplomatique.
são mortos para encher estômagos hu- pretensamente gosto de carne são fre- recidos se distinguem ao renunciar à
manos, sem contar cerca de 20 bilhões quentemente elaboradas por multina- carne, por sensibilidade à causa ani-
de peixes e crustáceos.5 A fim de satis- cionais da carne ou dos embutidos, co- mal, assim como por preocupação
fazer uma demanda sempre crescente, mo a Fleury-Michon, que criou em com sua saúde, e o vegetarianismo se 1 Coletiva de imprensa na Assembleia Nacional, 23
em particular nos países do Sul, é pre- 2016 a linha Côté Végétal (“Lado vege- transforma em estandarte. Tratar-se-ia maio 2018.
ciso produzir e matar o mais rápido tal”), a Herta, com Le Bon Végétal (“O do “novo regime da moda”, segundo a 2 O filme Earthlings (“Terráqueos”), dirigido por
Shaun Monson (2005) e narrado por Joaquin
possível, da forma mais barata possí- bom vegetal”), a Aoste, com “Le Végé- revista semanal Le Point (13 jun. 2015). Phoenix, apresenta tais imagens, assim como as
vel. A zootecnia, a ciência das produ- tarien (“O vegetariano”), e a Le Gaulois “Comer bem sem consumir animais grandes plataformas de vídeo on-line.
ções animais, adaptou então os bichos (“Le Gaulois Végétal”). E elas não têm nunca foi tão descolado”, declara a re- 3 Marianne Celka, Vegan Order. Des éco-warriors
au business de la radicalité [Vegan Order. Dos
às necessidades de criação, para que nada de natural. Para preparar seu vista Elle (1º jul. 2016). Quanto à estilis- ecoguerreiros ao business da radicalidade], Arkhé,
eles crescessem mais rápido, para que “cordon bleu vegetal” (vendido por um ta Lolita Lempicka, especializada na Paris, 2018.
as tetas das vacas se adaptassem me- preço 67% mais caro que seu equiva- moda têxtil custosa mas 100% vegetal, 4 Segundo as palavras de um teórico vegetariano do
século XVII, citadas em Arouna P. Ouédraogo, “De
lhor às máquinas etc. “Os animais de lente de carne), o aviário Le Gaulois ela se gaba de seu “negócio glam e ve- la secte religieuse à l’utopie philanthropique. Genè-
criação se tornaram ‘máquinas ani- deve, por exemplo, misturar não me- gano”.8 A batalha contra a carne abre se sociale du végétarisme occidental” [Da seita
mais’ a serviço de um projeto indus- nos de quarenta ingredientes, entre os um novo episódio na luta de classes? religiosa à utopia filantrópica. Gênese social do
vegetarianismo ocidental], Annales Histoire,
trial de exploração da ‘matéria ani- quais maltodextrina (que fornece o Os restaurantes vegetarianos já se Sciences Sociales, v.55, n.4, Paris, jul.-ago. 2000.
mal’”, analisa a socióloga e agrônoma aroma e o agente de carga que permite tornaram símbolo da gentrificação dos 5 “Livestock Primary”. Disponível em: <www.fao.org>.
Jocelyne Porcher.6 Para alguns, o ani- o aumento de volume do alimento), antigos bairros populares. Ao mesmo 6 Jocelyne Porcher, “Ne libérez pas les animaux! Plai-
doyer contre un conformisme ‘analphabète’” [Não
mal constitui um obstáculo para a in- alho-poró e clara de ovo em pó, goma tempo que despertam as consciências libertem os animais! Pregar contra um conformis-
dústria agroalimentar – é preciso alo- xantana (gelificante), carragenina (es- sobre a realidade da agroindústria, os mo “analfabeto”], La Revue du MAUSS, n.29, pri-
já-lo, alimentá-lo, cuidar dele... –, que pessante e estabilizante), proteínas de vídeos da associação L214 contribuem meiro semestre de 2007.
7 “La viande au menu de la transition alimentaire” [A
não teria nenhum escrúpulo em se li- soja reidratadas, citrato de sódio (con- para estigmatizar os operários dos ma- carne no cardápio da transição alimentar], Terra
vrar dele se encontrasse uma matéria- servante regulador de acidez, aromati- tadouros, a respeito dos quais os co- Nova, 23 nov. 2017.
-prima mais rentável. zante) etc. A paixão vegetariana pode mentaristas se divertem ao discutir so- 8 Citado em Patrick Piro, “Nouveau REV pour l’éco-
logie” [Novo REV para a ecologia], Politis, Paris, 17
Investido pelos fundos de pensão e paradoxalmente gerar um alimento bre a falta de empatia. Mas podemos maio 2018.
as start-ups da FoodTech, o setor dos cada vez mais artificial, reforçando o realmente esperar de um esquarteja- 9 Segundo um cálculo efetuado por Jocelyne Por-
produtos similares à carne está em poder da agroindústria sobre a cadeia dor que viu passar por suas mãos, ao cher. Cf. Vivre avec les animaux. Une utopie pour le
XXIe siècle [Viver com os animais. Uma utopia para
pleno desenvolvimento. Com o di- alimentar. longo de 25 anos de carreira, de 6 mi- o século XXI], La Découverte, Paris, 2014.
24 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2018
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m caso de divórcio, quem vai fi- hommes (1755) [Discurso sobre a ori- 1848, visava sobretudo policiar o com- bem-estar dos animais enquanto se-
bretudo ao mundo ocidental. Eles reve- of Animal Law e a Animal Law Review caco-de-crista que fez, em 2011, uma processo, beneficiou-se de um ha-
lam como levar em conta o sofrimento (editada desde 1994) revelam o dina- selfie com o aparelho fotográfico de beas corpus (que proíbe aprisionar
dos animais se tornou um fenômeno mismo dessa disciplina na área acadê- David Slater, poderia reivindicar os di- sem julgamento): tendo-lhe sido con-
social nos países ricos. A institucionali- mica. Na França, desde 2009, a Revue reitos autorais de seu autorretrato? cedido o direito à liberdade, após ter
zação progressiva do direito dos ani- Semestrielle du Droit Animalier se es- Após vários anos de trâmites, o tribu- passado toda a sua vida em cativeiro,
mais confirma isso. O primeiro curso força para unir “os trabalhos dos juris- nal respondeu com uma negação no ela poderia assim abandonar o zooló-
consagrado aos direitos e aos animais tas de todas as especialidades acadê- último mês de abril. gico de Buenos Aires.
foi ministrado nos Estados Unidos na micas, mas também de filósofos e De modo mais amplo, as capacida-
Seton Hall University em 1977, a pedido cientistas”, a fim de acompanhar sua des jurídicas de articular corretamen- *Jérôme Lamy é pesquisador do Centre Na-
de um estudante.4 Depois, essa matéria evolução e as disputas teóricas. te a copresença de todas as espécies tional de la Recherche Scientifique (CNRS),
se espalhou em um grande número de Um nome aparece continuamente animais na Terra (inclusive os huma- na França.
faculdades norte-americanas. Na Fran- em colunas dessas revistas: trata-se de nos) passaram a ser, desde então,
ça, seguindo o exemplo da Universida- Peter Singer. Esse filósofo australiano questionadas: uma vez que formamos 1 Jean-Pierre Marguénaud, Florence Burgat e Jac-
de Autônoma de Barcelona, a Universi- uma “comunidade mista”8 com os ani- ques Leroy, Le droit animalier [O direito animal],
abriu caminho para uma nova articu- Presses Universitaires de France, 2016.
dade de Estrasburgo propôs, a partir de lação do direito e da ética em sua obra mais, como organizar as relações en- 2 Jeremy Bentham, An Introduction to the Principles
2015, duas especializações – Direito Animal Liberation (“Libertação ani- tre humanos e não humanos, de tal of Morals and Legislation [Introdução aos princí-
Animal e Ética Animal em sua pós-gra- modo que elas não sejam “apenas em pios éticos e legislação], T. Payne and Son, 1789,
mal”, 1975),5 ao afirmar, na esteira de p.CCCIX.
duação Ética e Sociedade. No ano se- benefício dos primeiros”? Seria neces-
Jeremy Bentham, que o critério perti- 3 Jean-Yves Bory, La douleur des bêtes. La polémi-
guinte, a Universidade de Limoges sário, então, de acordo com a filósofa que sur la vivisection au XIXe siècle en France [A
nente de consideração moral é a capa- dor dos animais. A polêmica sobre a dissecação
abriu um bacharelado em Direito Ani- Corine Pelluchon, uma teoria política
cidade de sofrer. Ele considera, então, no século XIX na França], Presses Universitaires
mal para os alunos do “bac+2” e as pes- que dê sentido aos direitos dos ani-
que os seres humanos têm certo nú- de Rennes, 2013, p.78.
soas “interessadas”. Para satisfazer es- mais, na perspectiva de construir uma 4 Joyce Tischler, “The History of Animal Law, Part I
mero de obrigações a respeitar em re- (1972-1987)” [A história da legislação para os ani-
ses novos estudantes e a pedido da sociedade mais justa para todos. O que
lação aos animais. Mas, para ele, o em- mais, Parte I (1972-1987)], Journal of Animal Law
Fundação 30 milhões de Amigos, a edi- os filósofos canadenses Will Kymlicka and Policy, v.2008, p.10.
prego do vocabulário dos direitos é
tora Lexis Nexis publicou, em março, o e Sue Donaldson propõem concreti- 5 Peter Singer, La libération animale [A libertação
apenas “um resumo político prático”: 6 animal], Grasset, Paris, 1993.
primeiro Código do animal, um volume zar: com base na convicção de que o
ele próprio não baseia sua defesa dos 6 Peter Singer, Questions d’éthique pratique [Ques-
de mais de mil páginas que reúne todos direito dos animais se encontra num tões de ética prática], Bayard, Paris, 1997 (edição
os textos legislativos e jurisprudências animais na reivindicação de seus di- impasse, não impede o sofrimento nas original: 1979).
sobre o assunto. reitos. O jurista norte-americano Gary criações industriais de animais e não 7 Gary L. Francione, Introduction aux droits des ani-
L. Francione reivindica que os animais reflete a realidade das relações entre
maux [Introdução aos direitos dos animais], L’Age
d’Homme, Lausanne, 2015. Ler também “Pour
OS DIREITOS AUTORAIS DE UM MACACO sejam considerados pessoas e, portan- homens e animais, eles sugerem es- l’abolition de l’animal-esclave” [Pela abolição do
Paralelamente a essa estruturação to, dotados de personalidade jurídica.7 tender o modelo da cidadania aos ani- animal escravo], Le Monde Diplomatique, n.629,
universitária, surgiram inúmeras re- O tribunal da Califórnia, evidente- mais domésticos.9
ago. 2006, p.20.
8 Corine Pelluchon, Manifeste animaliste. Politiser la
vistas acadêmicas especializadas. Nos mente, não está convencido disso. Sur- Em 2015, Sandra, de 29 anos, fê- cause animale [Manifesto animalista. Politizar a
Estados Unidos, o Journal of Animal preendido por uma associação de de- mea orangotango, reconhecida “pes- causa animal], Alma, Paris, 2016.
fesa dos animais, ele teve de resolver 9 Will Kymlicka e Sue Donaldson, Zoopolis. Une
Law, produzido na Universidade do soa não humana” pelo tribunal (ar- théorie des droits des animaux, [Zoópolis. Uma
Estado de Michigan, o Stanford Journal uma questão inédita: Naruto, um ma- gentino) encarregado de julgar o teoria dos direitos dos animais], Alma, 2016.
m 1408, dois processos muito mo que se adapta à ascensão e à queda bertas dos pesquisadores. Por outro prios animais. Enquanto o homem foi
co infanticida. Em Pont-de-l’Arche, o criar porcos na cidade. A ameaça que Deus procurava punir o grupo por No momento, nenhum texto de lei
encarceramento durava 24 horas. eles representavam para as crianças, seus pecados. O tribunal ordenava, enquadrando a possibilidade de em-
O papel das instituições judiciárias que ficavam sozinhas em casa durante então, a organização de uma procissão preender esses processos foi encontra-
era interrompido no momento em que as jornadas de trabalho agrícolas, não geral, que reunisse as autoridades lai- do. Esses crimes atacam os próprios
o julgamento se dava, sob a responsa- era ignorada. Os testamentos dos cam- cas e religiosas, que terminava com fundamentos da sociedade: as violên-
bilidade da força pública que deveria poneses no fim da Idade Média mos- um anátema contra os insetos e roedo- cias contra as crianças tocam no sa-
realizá-lo. Como durante processos de tram pais que se preocupavam com a res nocivos. Os gafanhotos que amea- grado; as calamidades agrícolas impu-
seres humanos, as sentenças variavam adoção de seu filho “até que ele atinja a çavam o feno da grande pradaria de tadas aos parasitas colocam em risco a
de acordo com o contexto: a acusação idade para se defender de cachorros e Tomblaine, ao lado de Nancy, passa- subsistência e a estabilidade das co-
podia ser abandonada quando a víti- porcos”. Na França, na Inglaterra e em ram por essa experiência em 1719, as- munidades. De acordo com o pensa-
ma sobrevivesse aos ferimentos, como outros lugares na Europa, os tribunais sim como os besouros das vinícolas da mento do filósofo René Girard, é possí-
em 1416, em Hennecourt (Vosges); os não paravam de intimar as famílias a aldeia de Eulmont, nove anos depois. A vel identificar aqui a causa do bode
acusados eram às vezes inocentados zelar melhor por sua progenitura e ruptura do equilíbrio natural, deseja- expiatório. No momento em que os
por falta de provas (como os porqui- seus animais. da por Deus, justifica esses processos. juízes poderiam considerar os crimes
nhos de Savigny). Ao contrário, todos Ao lado desses processos julgados A maior parte dos animais selva- julgados como reflexo de uma crise
eles podiam ser executados se fosse por tribunais civis, existia uma segun- gens não é lembrada a não ser nos pro- mais global, eles buscam, no caso in-
possível identificar o culpado. A sen- da forma de processo de animais, mais cessos de magia. Em geral, Satã toma a dividual, a origem e a causa de tudo o
tença para os animais assassinos era a antiga e duradoura: as ações realizadas forma (ou o controle) de um lobo e até que fere o corpo social.3 Segundo o
mesma que para os homens: a forca. pelos tribunais eclesiásticos, principal- mesmo de uma malta, com o objetivo historiador Robert Muchembled, cada
Às vezes, os cadáveres permaneciam mente encarregados dos casos relevan- de atacar os animais, os seres huma- processo contribui, assim, para enrai-
expostos durante algum tempo nos tes para a Igreja, contra os insetos e roe- nos isolados ou devorar as crianças. O zar mais profundamente as crenças na
patíbulos, a fim de impressionar. Esses dores nefastos às plantações. O Diabo e os vampiros, os feiticeiros e as magia e as superstições, dando mais
procedimentos judiciários que, como primeiro caso testemunhado diz res- feiticeiras, que supostamente podem força ao sobrenatural.4
salienta Michel Pastoureau, “repre- peito a arganazes, uma espécie de roe- se transformar da mesma maneira que De qualquer maneira, esses pro-
sentam o exercício da ‘justiça eficaz’”, dor, e lagartas em Laon, em 1120, e en- seu mestre maléfico, podem também cessos responderam às preocupações
se dizem demonstrativos. contramos vestígios desse tipo de caso ganhar a aparência de um rato, uma religiosas das sociedades pré-indus-
O bestiário convocado para o ban- até o século XIX. Quatro casos em Lor- lebre, um corvo, um pássaro ou um ca- triais. Eles manifestaram uma vonta-
co das testemunhas era relativamente raine, entre 1692 e 1733 (antes da anexa- chorro (errante, que não é considerado de de restabelecer a hierarquia instau-
restrito. O porco infanticida dominava ção do ducado à França, em 1766), per- mais como doméstico). O único ani- rada, por Deus, entre os homens e os
com entusiasmo o banco dos réus, mitem tornar o esquema mais preciso. mal comum aos processos de magia e animais. De acordo com a Gênese,
acompanhado de gatos e touros. Os Quando as comunidades rurais se de animais é o gato. O Diabo muitas Deus criou o homem conforme sua
dados refletem a predominância, na viam diante de uma situação prejudi- vezes se reveste dessa aparência, a fim própria imagem, permitindo-lhe sub-
época, dos porcos nas áreas rurais e cial que não conseguiam controlar, de perturbar os adultos durante o sono meter “os peixes do mar, os pássaros
nas cidades, onde animais errantes es- apelavam para a intercessão de um tri- ou as crianças no berço. do céu, os animais, toda a terra e todos
tavam presentes em toda parte. Eles bunal eclesiástico. Este enviava emis- Para compreender essa prática ju- os pequenos animais que se movem
circulavam livremente nas ruas, pra- sários para intimar os insetos e roedo- diciária, inúmeras hipóteses foram le- na terra” (Gênese, 1:26). Quando os
ças e cemitérios, desempenhando res incriminados a se apresentarem vantadas: sobrevivência de supersti- animais violam essa hierarquia divi-
muitas vezes o papel de lixeiros. Às ve- “em pessoa” diante do tribunal. Du- ções populares; vontade de eliminar na, o processo deve restabelecer a or-
zes, eles incomodavam as autoridades rante a audiência, o juiz ordenava um uma ameaça que pesa sobre a socieda- dem cósmica. Ele se parece com um
municipais, que temiam uma polui- deles a se retirar, com os seus, dos de; desejo de instaurar o medo entre mecanismo de proteção das socieda-
ção das fontes de água. Foi principal- campos ameaçados. Se os parasitas os congêneres do animal executado; des, que constituiria uma verdadeira
mente por essa razão que uma lei do fossem exterminados, a comunidade tentativa de inverter a ordem da natu- ideologia, no sentido medieval do ter-
duque de Lorraine, datada de 1607, poderia agradecer a Deus com ora- reza e da sociedade, como durante mo, ou seja, “uma estrutura imaginá-
proibiu os habitantes de Nancy de ções. Se a praga persistisse, era porque motins e carnavais... ria [...] um sistema de representações
mentais, de ritos e de comportamen-
tos, no ponto de junção do consciente
com o inconsciente, capaz de tornar o
mundo significativo e de agir sobre
ele”.5 Formas de adaptação e de resi-
liência diante dos riscos de uma pro-
miscuidade permanente com os ani-
mais, esses processos permitiam
racionalizar o indizível e devolviam a
iniciativa ao homem.