You are on page 1of 5

22 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2018

O ANIMAL, UM CIDADÃO COMO TODOS OS OUTROS?

Entre a descoberta de surpreendentes capacidades dos bonobos – que resolvem conflitos copulando – e o destaque
conferido ao sofrimento das criações na pecuária, nossa percepção sobre os animais foi modificada e a questão assumiu
uma importância inesperada. Em geral acalorados, os debates que surgem não podem ser reduzidos a caricaturas: os malvados
carnívoros arrogantes contra os doces vegetarianos empáticos, ou, pelo contrário, o bom senso dos comedores de carne contra
o sectarismo dos trituradores de cenoura. Os questionamentos que surgem são de fato relevantes: qual é a parcela animal
do ser humano? Qual é a melhor forma de coexistir? Devemos alguma coisa às outras criaturas vivas? Resta, por fim, descobrir
se esse acolhimento da alteridade, alimentado de emoção, pode contribuir para o progresso social

A era dos açougueiros


vegetarianos
POR BENOÎT BRÉVILLE*

s vacas francesas poderão em Na França, e ainda mais na Alema- bastidores e sensibilizar a opinião vam a ação direta, a sabotagem dos

A breve morrer alegremente: em


virtude de uma lei votada em
maio pela Assembleia Nacional,
cada matadouro será dotado de um
“responsável pelo bem-estar animal”,
nha, nos países escandinavos, no Ca-
nadá e em Israel (Tel Aviv reivindica o
título de “capital vegetariana do mun-
do”), o número de vegetarianos não
para de aumentar. Sua proporção na
com imagens chocantes. Muitos con-
vertidos explicam ter dado esse passo
depois de verem alguns desses vídeos
– vacas cujo sangue é tirado quando
ainda vivas, para que o processo seja
meios de transporte, o roubo de pré-
dios da indústria alimentar e dos gru-
pos farmacêuticos. Seus primeiros al-
vos eram as manifestações burguesas
da exploração animal, tais como a ca-
que zelará para que os bichos estejam França varia segundo estudos entre mais rápido; pintinhos machos esma- ça e as corridas de cachorros, práticas
bem “atordoados” – ou seja, eletrocuta- 3% e 6% da população (contra 8% a gados aos milhares...2 que testemunhavam, segundo eles, a
dos ou dopados com gás – antes de sua 10% na Alemanha), dos quais 1% seria Para garantir reverberação midiáti- imbricação das dominações social e
execução. Não há certeza de que isso vegano e teria assim excluído qualquer ca, a causa animal pode inclusive con- “especista”.3
seja suficiente para aumentar a classi- forma de exploração animal de seu tar com a contribuição de uma penca Forjado no modelo dos termos “ra-
ficação da França no Índice de Prote- modo de vida – desde comer mel até se de famosos. Na França, os jornalistas cismo” e “sexismo”, esse neologismo
ção Animal estabelecido por ONGs pa- vestir com lã. Contaríamos, além dis- Franz-Olivier Giesbert e Aymeric Ca- apareceu no início dos anos 1970 e se
ra comparar as legislações de cerca de so, com um quarto de “flexitarianos”, ron, a cantora Mylène Farmer, o monge impôs rapidamente como a base ideo-
cinquenta países. Com um medíocre uma noção vaga designando pessoas budista Matthieu Ricard... Enquanto lógica do movimento de libertação
C, a França está no meio, bem à frente preocupadas em reduzir sua alimen- isso, Leonardo di Caprio subvenciona a animal. Segundo os Cahiers Antispé-
da Bielorrússia, do Azerbaijão e do Irã, tação de carne, sem, no entanto, aboli- proteção dos elefantes, Angelina Jolie e cistes (“Cadernos antiespecistas”), “o
onde não existe interesse algum pelo -la. Ainda que a sensibilidade em rela- Brad Pitt se consagram à vida selvagem especismo é para a espécie o que o ra-
assunto, mas longe da Áustria, que ção ao sofrimento animal não seja a na Namíbia. Já os atores Penelope cismo é para a raça e o que o sexismo é
proíbe a criação de frangos em granjas única motivação para a mudança de Cruz, Pamela Anderson e Natalie Port- para o sexo: uma discriminação com
industriais, o comércio de peles, expe- regime – razões alimentares ou am- man e os cantores Justin Bieber, Mor- base na espécie, quase sempre em fa-
riências médicas em macacos, a cas- bientais podem levar a isso –, a ideia de rissey, Paul McCartney, Bryam Adams vor dos membros da espécie humana”.
tração sem anestesia de leitões, a supe- que podemos não consumir carne ga- e Moby participam das cruzadas da as- Seria então conveniente libertar os
ralimentação de gansos... nha espaço. sociação People for an Ethical Treat- animais como antes foram emancipa-
A questão do sofrimento animal Os recentes avanços da causa ani- ment of Animals (Peta – Pessoas pelo dos os escravos ou as mulheres – com a
não entrou apenas nos parlamentos. mal se devem aos seus militantes. As- Tratamento Ético dos Animais), uma diferença notável de que os principais
Ela ocupa um espaço cada vez maior do sociando objetivos a curto prazo (fe- das mais importantes do movimento envolvidos não correm o risco de se
debate público e dos meios militantes, chamento de um matadouro ou de um de defesa dos animais, que produz unir à luta.
em particular ecologistas. Na internet, aquário de golfinhos) e um projeto campanhas publicitárias em que mu- Houve no passado diversas vozes
vídeos virais explicitam o horror dos mais geral (a “libertação animal”), lheres nuas aparecem em posições para pregar o vegetarianismo e recu-
matadouros e da criação industrial. eles organizam um lobby frenético sugestivas. sar a morte dos animais. No século VI
Sob a pressão das associações, diversas junto aos representantes políticos. Que Hollywood tenha se tornado antes da nossa era, por preocupação
companhias de circo (Joseph Bouglio- “São cinquenta e-mails por dia que to- um dos centros nevrálgicos da causa de não violência e porque acreditavam
ne na França, Barnum nos Estados Uni- dos [os deputados da República em animal não deixa de ser irônico. na transmigração da alma, o matemá-
dos...) recentemente pararam de usar Marcha, o partido de centro do presi- Quando se impôs no Reino Unido dos tico Pitágoras e seus discípulos se abs-
animais em seus espetáculos e redes de dente Emmanuel Macron] recebemos anos 1960, o movimento de “liberta- tinham de comer carne. Mais de um
supermercado tiraram de suas prate- sem parar sobre a questão da violên- ção animal” se ligava à estética punk e milênio depois, seitas evangélicas e
leiras os ovos das galinhas criadas em cia animal”, constatou recentemente se identificava com a contracultura. puritanas continuavam banindo pro-
gaiolas. Quanto às livrarias, suas prate- o deputado Gilles Le Gendre.1 Eles se Seus militantes, frequentemente bati- dutos da carne, esperando assim “ven-
leiras se cobrem de livros que exaltam introduziram clandestinamente nos zados de ecoguerreiros e dos quais al- cer a carne e fazer o espírito triunfar”.4
os méritos do regime sem carne. locais do agronegócio para filmar os guns terminaram na prisão, pratica- A partir dos anos 1960-1970, justificou-
JULHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 23

© Odyr
-se o vegetarianismo pela igualdade nheiro do Google, cientistas norte-a- Privilégio das classes superiores lhões a 9 milhões de bichos, que trate
entre as espécies, sob o pretexto de mericanos se dedicam a cultivar bifes durante séculos, a carne “mudou de cada um com delicadeza?9 Introduzir a
que todas seriam compostas de seres in vitro a partir de células-tronco – campo sociológico”: os operários e as vídeo-vigilância nos matadouros irá
sensíveis à dor, capazes de refletir e de projeto aplaudido com entusiasmo pe- pessoas sem diploma consomem hoje apenas reforçar o controle exercido so-
se comunicar. lo Peta. Enquanto a preocupação com em dia mais do que os executivos e di- bre os operários, que já são submetidos
Pouco a pouco, o símbolo da luta a alimentação vegetariana se desen- plomados, ressalta a Terra Nova, uma a cadências infernais. O bem-estar dos
animalista se deslocou da caça e das volve, novos produtos aparecem nos fundação que se propõe a contribuir animais de criação passa por cima do
peles para a indústria da carne. O as- mercados: salsichas à base de ervilhas, para a “renovação intelectual da es- dos trabalhadores da linha e os dois
sunto tem, com efeito, poder de mobi- presuntos “sem carne, mas ricos em querda progressista” convidando-a a dependem do mesmo imperativo: di-
lização. A cada semana, segundo a Or- proteínas”... Na França, os números do “aproveitar as oportunidades de uma minuir o ritmo da produção.
ganização das Nações Unidas para a departamento “embutidos vegetais” alimentação com menos carne” e ba-
Alimentação e a Agricultura (FAO), quase dobrou entre 2015 e 2016. Essas seando-se nos “setores mais promisso- *Benoît Bréville é jornalista do Le Monde
mais de 1 bilhão de animais terrestres misturas que têm aparência, textura e res da FoodTech”.7 Agora, os mais favo- Diplomatique.
são mortos para encher estômagos hu- pretensamente gosto de carne são fre- recidos se distinguem ao renunciar à
manos, sem contar cerca de 20 bilhões quentemente elaboradas por multina- carne, por sensibilidade à causa ani-
de peixes e crustáceos.5 A fim de satis- cionais da carne ou dos embutidos, co- mal, assim como por preocupação
fazer uma demanda sempre crescente, mo a Fleury-Michon, que criou em com sua saúde, e o vegetarianismo se 1 Coletiva de imprensa na Assembleia Nacional, 23
em particular nos países do Sul, é pre- 2016 a linha Côté Végétal (“Lado vege- transforma em estandarte. Tratar-se-ia maio 2018.
ciso produzir e matar o mais rápido tal”), a Herta, com Le Bon Végétal (“O do “novo regime da moda”, segundo a 2 O filme Earthlings (“Terráqueos”), dirigido por
Shaun Monson (2005) e narrado por Joaquin
possível, da forma mais barata possí- bom vegetal”), a Aoste, com “Le Végé- revista semanal Le Point (13 jun. 2015). Phoenix, apresenta tais imagens, assim como as
vel. A zootecnia, a ciência das produ- tarien (“O vegetariano”), e a Le Gaulois “Comer bem sem consumir animais grandes plataformas de vídeo on-line.
ções animais, adaptou então os bichos (“Le Gaulois Végétal”). E elas não têm nunca foi tão descolado”, declara a re- 3 Marianne Celka, Vegan Order. Des éco-warriors
au business de la radicalité [Vegan Order. Dos
às necessidades de criação, para que nada de natural. Para preparar seu vista Elle (1º jul. 2016). Quanto à estilis- ecoguerreiros ao business da radicalidade], Arkhé,
eles crescessem mais rápido, para que “cordon bleu vegetal” (vendido por um ta Lolita Lempicka, especializada na Paris, 2018.
as tetas das vacas se adaptassem me- preço 67% mais caro que seu equiva- moda têxtil custosa mas 100% vegetal, 4 Segundo as palavras de um teórico vegetariano do
século XVII, citadas em Arouna P. Ouédraogo, “De
lhor às máquinas etc. “Os animais de lente de carne), o aviário Le Gaulois ela se gaba de seu “negócio glam e ve- la secte religieuse à l’utopie philanthropique. Genè-
criação se tornaram ‘máquinas ani- deve, por exemplo, misturar não me- gano”.8 A batalha contra a carne abre se sociale du végétarisme occidental” [Da seita
mais’ a serviço de um projeto indus- nos de quarenta ingredientes, entre os um novo episódio na luta de classes? religiosa à utopia filantrópica. Gênese social do
vegetarianismo ocidental], Annales Histoire,
trial de exploração da ‘matéria ani- quais maltodextrina (que fornece o Os restaurantes vegetarianos já se Sciences Sociales, v.55, n.4, Paris, jul.-ago. 2000.
mal’”, analisa a socióloga e agrônoma aroma e o agente de carga que permite tornaram símbolo da gentrificação dos 5 “Livestock Primary”. Disponível em: <www.fao.org>.
Jocelyne Porcher.6 Para alguns, o ani- o aumento de volume do alimento), antigos bairros populares. Ao mesmo 6 Jocelyne Porcher, “Ne libérez pas les animaux! Plai-
doyer contre un conformisme ‘analphabète’” [Não
mal constitui um obstáculo para a in- alho-poró e clara de ovo em pó, goma tempo que despertam as consciências libertem os animais! Pregar contra um conformis-
dústria agroalimentar – é preciso alo- xantana (gelificante), carragenina (es- sobre a realidade da agroindústria, os mo “analfabeto”], La Revue du MAUSS, n.29, pri-
já-lo, alimentá-lo, cuidar dele... –, que pessante e estabilizante), proteínas de vídeos da associação L214 contribuem meiro semestre de 2007.
7 “La viande au menu de la transition alimentaire” [A
não teria nenhum escrúpulo em se li- soja reidratadas, citrato de sódio (con- para estigmatizar os operários dos ma- carne no cardápio da transição alimentar], Terra
vrar dele se encontrasse uma matéria- servante regulador de acidez, aromati- tadouros, a respeito dos quais os co- Nova, 23 nov. 2017.
-prima mais rentável. zante) etc. A paixão vegetariana pode mentaristas se divertem ao discutir so- 8 Citado em Patrick Piro, “Nouveau REV pour l’éco-
logie” [Novo REV para a ecologia], Politis, Paris, 17
Investido pelos fundos de pensão e paradoxalmente gerar um alimento bre a falta de empatia. Mas podemos maio 2018.
as start-ups da FoodTech, o setor dos cada vez mais artificial, reforçando o realmente esperar de um esquarteja- 9 Segundo um cálculo efetuado por Jocelyne Por-
produtos similares à carne está em poder da agroindústria sobre a cadeia dor que viu passar por suas mãos, ao cher. Cf. Vivre avec les animaux. Une utopie pour le
XXIe siècle [Viver com os animais. Uma utopia para
pleno desenvolvimento. Com o di- alimentar. longo de 25 anos de carreira, de 6 mi- o século XXI], La Découverte, Paris, 2014.
24 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2018

O ANIMAL, UM CIDADÃO COMO TODOS OS OUTROS?

Fazer jus aos


direitos dos animais
As universidades de Limoges, na França, de Basileia, na Suíça,
e de Barcelona, na Espanha, oferecem cada vez mais diplomas em
Direito Animal. O dinamismo dessa disciplina testemunha a crescente
institucionalização da questão animal, em particular nos países ricos
POR JÉRÔME LAMY*

© Odyr
m caso de divórcio, quem vai fi- hommes (1755) [Discurso sobre a ori- 1848, visava sobretudo policiar o com- bem-estar dos animais enquanto se-

E car com o cachorro? Como ava-


liar os prejuízos causados pelas
divagações de uma vaca peram-
bulante? O que fazer em caso de desres-
peito a espécies protegidas? Todas essas
gem e os fundamentos da desigualda-
de entre os homens], atesta que, “liga-
dos de alguma maneira à nossa
natureza pela sensibilidade de que são
dotados, consideramos que eles de-
portamento de uma população da qual
se temiam agitações violentas.3
De modo geral, a sensibilidade ex-
pressa no século XIX, principalmente
nos ambientes mais favorecidos (a ra-
res sensíveis”, afirma o artigo 13. Os
Estados-membros procuraram, en-
tão, adaptar sua legislação.
Na França, apesar de diversos ar-
ranjos, principalmente nos códigos Pe-
perguntas e muitas outras relevantes na vem participar do direito natural e que inha Vitória aderiu à SPCA britânica), nal e Rural, foi preciso esperar uma lei
França encontram-se em textos espa- o homem está sujeito a uma espécie de não vai além dessas proibições de de 16 de fevereiro de 2015 para o Códi-
lhados em sete códigos legislativos (Ci- dever para com eles”. O “direito natu- maus-tratos – permanecendo a toura- go Civil deixar de considerar o animal
vil, Penal, Rural, do Meio Ambiente etc.) ral” designa aqui o conjunto dos direi- da um símbolo dos limites a não ultra- um “bem móvel” e o reconhecer como
e constituem, de fato, o direito dos ani- tos derivados da própria natureza de passar, uma vez que o artigo do Códi- um “ser dotado de sensibilidade”. Mas,
mais. Diante dessa dispersão, começa a um ser, em oposição ao “direito positi- go Penal que proíbe os atos de signo das ambivalências na França, o
se constituir um “direito animal”, que vo” praticado pelo Estado. Alguns crueldade prevê que suas disposições animal selvagem não é mencionado, e
visa elaborar um conjunto coerente de anos depois, na Introduction aux prin- não são “aplicáveis às touradas na me- é sempre possível, como previsto no
normas jurídicas.1 Não se trata apenas cipes de la morale et de la législation dida em que uma tradição local dura- artigo 426-6 do Código do Meio Am-
de um objetivo prático. Essa remodela- (1789) [Introdução aos princípios da doura pode ser evocada”. Da mesma biente, estabelecer listas de “perigo-
ção assinala não só o desejo de fortale- moral e da legislação], o filósofo inglês maneira, a dissecação horroriza, mas sos” suscetíveis de serem eliminados.
cer a proteção dos animais, mas tam- Jeremy Bentham continua essa refle- sem que o direito venha legislá-la. Outros países se mostram nitidamente
bém o surgimento de uma nova xão, considerando a capacidade de so- Na segunda metade do século XX, mais protetores. Na Alemanha, onde
concepção sobre sua natureza. frer, que reconhece nos animais, como o corpus legislativo torna-se mais den- desde 1993 há o Partido dos Animais, a
A questão dos deveres humanos fundamento do “direito aos direitos”.2 so e dá origem a um direito próprio dos proteção animal foi inscrita, em 2002,
para com os animais começou a ser animais, paralelamente a um interes- na Constituição como objetivo do Es-
teorizada a partir do Iluminismo. Cer- “SER DOTADO DE SENSIBILIDADE” se cada vez maior do público. Procla- tado. Assim como Áustria, Dinamarca,
tamente, como prova de sua perenida- Foi preciso esperar o início do sécu- mada na sede da Unesco em Paris, em Israel, Itália e Reino Unido, a Alema-
de, costuma-se citar um fragmento lo XIX para que surgissem as primeiras 1978, a Declaração Universal dos Di- nha proíbe o empanturramento força-
isolado da obra do filósofo Teofrasto, leis condenando a crueldade praticada reitos dos Animais se inspira direta- do de animais, bem como a presença
discípulo de Aristóteles, que no século contra animais. Em 1822, dois anos an- mente na Declaração Universal dos de animais selvagens nos circos – uma
IV antes de nossa era fala de uma iden- tes da fundação, na Inglaterra, da So- Direitos Humanos de 1948 e estabele- disposição em vigor também na Bélgi-
tidade entre as “almas” dos humanos e ciety for Prevention of Cruelty of Ani- ce diferentes princípios: “Toda vida ca, Áustria, Grécia, Dinamarca... Al-
das outras espécies, compostas de ra- mals (SPCA) [Sociedade para animal tem direito ao respeito”; “se a guns países europeus, tais como a Áus-
zão, agressividade e desejo. Do mesmo Prevenção da Crueldade contra os Ani- matança de um animal for necessária, tria, a Dinamarca e o Reino Unido,
modo, é lembrada com frequência, mais], a Martin’s Act [Lei de Martin] ela deverá ser instantânea, indolor e baniram a produção e a venda de peles
principalmente pelos que se opõem à proíbe os maus-tratos infligidos ao ga- não deverá gerar angústia”; “o animal dos animais, enquanto outros (Norue-
tourada, a bula papal De Salute Gregis, do britânico. Na sequência, leis contra que o homem mantém sob sua depen- ga, Holanda, Suécia e Estados Unidos)
de 1º de novembro de 1567, na qual Pio a tortura em animais surgem no mun- dência tem direito a um sustento e ao dispõem de uma política encarregada
V ameaça de excomunhão os que par- do germânico. Na França, a Société zelo...”. Mas esse texto, sem alcance ju- de fazer respeitar os direitos dos ani-
ticipam de “espetáculos em que touros Protectrice des Animaux (SPA) [Socie- rídico coercitivo, permanece sobretu- mais. Mas talvez a evolução mais im-
e animais selvagens são perseguidos dade Protetora dos Animais] só foi do simbólico. pressionante ocorra na Suíça, que não
na arena”, considerando-os “contrá- criada em 1846, pouco antes da Lei O mesmo não acontece com o Tra- é Estado-membro da União Europeia.
rios à piedade e à caridade cristã”. O Grammont, de 9 de julho de 1850, que tado de Lisboa sobre o funcionamento As novas regras helvéticas da política
papa determina então essa primeira dispõe em seu artigo 1º: “Serão puni- da União Europeia, assinado em 2007 veterinária pretendem melhorar o
limitação dos maus-tratos públicos dos com multa de 5 a 15 francos e pode- e que passou a vigorar em 2009. “Na bem-estar animal: proíbem ferver os
em nome de Deus e de suas criaturas. rão ser condenados à pena de um a cin- definição e aplicação das políticas da crustáceos vivos e algumas modalida-
Os filósofos iluministas se perguntam co anos de prisão aqueles que tiverem União nas áreas da agricultura, da des de eutanásia, e obrigam que sejam
sobre o status dos animais em relação praticado pública e abusivamente pesca, dos transportes, do mercado retirados das competições esportivas
ao ser humano. maus-tratos aos animais domésticos”. interno, da pesquisa e desenvolvi- os animais extremamente estressados
Assim, Jean-Jacques Rousseau, no No entanto, não devemos nos iludir mento tecnológico e do espaço, a pela situação...
prefácio de seu Discours sur l’origine et com ela. Essa lei de inspiração burgue- União e os Estados-membros levarão Se deixarmos de lado o caso da Ín-
les fondements de l’inégalité parmi les sa, adotada após as sublevações de totalmente em conta as exigências do dia, esses avanços dizem respeito so-
JULHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 25

bretudo ao mundo ocidental. Eles reve- of Animal Law e a Animal Law Review caco-de-crista que fez, em 2011, uma processo, beneficiou-se de um ha-
lam como levar em conta o sofrimento (editada desde 1994) revelam o dina- selfie com o aparelho fotográfico de beas corpus (que proíbe aprisionar
dos animais se tornou um fenômeno mismo dessa disciplina na área acadê- David Slater, poderia reivindicar os di- sem julgamento): tendo-lhe sido con-
social nos países ricos. A institucionali- mica. Na França, desde 2009, a Revue reitos autorais de seu autorretrato? cedido o direito à liberdade, após ter
zação progressiva do direito dos ani- Semestrielle du Droit Animalier se es- Após vários anos de trâmites, o tribu- passado toda a sua vida em cativeiro,
mais confirma isso. O primeiro curso força para unir “os trabalhos dos juris- nal respondeu com uma negação no ela poderia assim abandonar o zooló-
consagrado aos direitos e aos animais tas de todas as especialidades acadê- último mês de abril. gico de Buenos Aires.
foi ministrado nos Estados Unidos na micas, mas também de filósofos e De modo mais amplo, as capacida-
Seton Hall University em 1977, a pedido cientistas”, a fim de acompanhar sua des jurídicas de articular corretamen- *Jérôme Lamy é pesquisador do Centre Na-
de um estudante.4 Depois, essa matéria evolução e as disputas teóricas. te a copresença de todas as espécies tional de la Recherche Scientifique (CNRS),
se espalhou em um grande número de Um nome aparece continuamente animais na Terra (inclusive os huma- na França.
faculdades norte-americanas. Na Fran- em colunas dessas revistas: trata-se de nos) passaram a ser, desde então,
ça, seguindo o exemplo da Universida- Peter Singer. Esse filósofo australiano questionadas: uma vez que formamos 1 Jean-Pierre Marguénaud, Florence Burgat e Jac-
de Autônoma de Barcelona, a Universi- uma “comunidade mista”8 com os ani- ques Leroy, Le droit animalier [O direito animal],
abriu caminho para uma nova articu- Presses Universitaires de France, 2016.
dade de Estrasburgo propôs, a partir de lação do direito e da ética em sua obra mais, como organizar as relações en- 2 Jeremy Bentham, An Introduction to the Principles
2015, duas especializações – Direito Animal Liberation (“Libertação ani- tre humanos e não humanos, de tal of Morals and Legislation [Introdução aos princí-
Animal e Ética Animal em sua pós-gra- modo que elas não sejam “apenas em pios éticos e legislação], T. Payne and Son, 1789,
mal”, 1975),5 ao afirmar, na esteira de p.CCCIX.
duação Ética e Sociedade. No ano se- benefício dos primeiros”? Seria neces-
Jeremy Bentham, que o critério perti- 3 Jean-Yves Bory, La douleur des bêtes. La polémi-
guinte, a Universidade de Limoges sário, então, de acordo com a filósofa que sur la vivisection au XIXe siècle en France [A
nente de consideração moral é a capa- dor dos animais. A polêmica sobre a dissecação
abriu um bacharelado em Direito Ani- Corine Pelluchon, uma teoria política
cidade de sofrer. Ele considera, então, no século XIX na França], Presses Universitaires
mal para os alunos do “bac+2” e as pes- que dê sentido aos direitos dos ani-
que os seres humanos têm certo nú- de Rennes, 2013, p.78.
soas “interessadas”. Para satisfazer es- mais, na perspectiva de construir uma 4 Joyce Tischler, “The History of Animal Law, Part I
mero de obrigações a respeitar em re- (1972-1987)” [A história da legislação para os ani-
ses novos estudantes e a pedido da sociedade mais justa para todos. O que
lação aos animais. Mas, para ele, o em- mais, Parte I (1972-1987)], Journal of Animal Law
Fundação 30 milhões de Amigos, a edi- os filósofos canadenses Will Kymlicka and Policy, v.2008, p.10.
prego do vocabulário dos direitos é
tora Lexis Nexis publicou, em março, o e Sue Donaldson propõem concreti- 5 Peter Singer, La libération animale [A libertação
apenas “um resumo político prático”: 6 animal], Grasset, Paris, 1993.
primeiro Código do animal, um volume zar: com base na convicção de que o
ele próprio não baseia sua defesa dos 6 Peter Singer, Questions d’éthique pratique [Ques-
de mais de mil páginas que reúne todos direito dos animais se encontra num tões de ética prática], Bayard, Paris, 1997 (edição
os textos legislativos e jurisprudências animais na reivindicação de seus di- impasse, não impede o sofrimento nas original: 1979).
sobre o assunto. reitos. O jurista norte-americano Gary criações industriais de animais e não 7 Gary L. Francione, Introduction aux droits des ani-
L. Francione reivindica que os animais reflete a realidade das relações entre
maux [Introdução aos direitos dos animais], L’Age
d’Homme, Lausanne, 2015. Ler também “Pour
OS DIREITOS AUTORAIS DE UM MACACO sejam considerados pessoas e, portan- homens e animais, eles sugerem es- l’abolition de l’animal-esclave” [Pela abolição do
Paralelamente a essa estruturação to, dotados de personalidade jurídica.7 tender o modelo da cidadania aos ani- animal escravo], Le Monde Diplomatique, n.629,
universitária, surgiram inúmeras re- O tribunal da Califórnia, evidente- mais domésticos.9
ago. 2006, p.20.
8 Corine Pelluchon, Manifeste animaliste. Politiser la
vistas acadêmicas especializadas. Nos mente, não está convencido disso. Sur- Em 2015, Sandra, de 29 anos, fê- cause animale [Manifesto animalista. Politizar a
Estados Unidos, o Journal of Animal preendido por uma associação de de- mea orangotango, reconhecida “pes- causa animal], Alma, Paris, 2016.
fesa dos animais, ele teve de resolver 9 Will Kymlicka e Sue Donaldson, Zoopolis. Une
Law, produzido na Universidade do soa não humana” pelo tribunal (ar- théorie des droits des animaux, [Zoópolis. Uma
Estado de Michigan, o Stanford Journal uma questão inédita: Naruto, um ma- gentino) encarregado de julgar o teoria dos direitos dos animais], Alma, 2016.

Porcos e touros no banco dos réus


Nos dias de hoje, quando um cachorro morde uma criança, seu dono é considerado penalmente responsável e pode,
portanto, ir parar num tribunal. Na Idade Média, era o próprio animal que precisava comparecer diante dos juízes
POR LAURENT LITZENBURGER*

m 1408, dois processos muito mo que se adapta à ascensão e à queda bertas dos pesquisadores. Por outro prios animais. Enquanto o homem foi

E singulares se desenvolveram pa-


ralelamente no reino da França
e em suas redondezas. Em Pont-
-de-l’Arche (ducado da Normandia) e
em Saint-Mihiel (ducado de Bar), por-
dos processos como uma magia. No
entanto, os exemplos continuaram ra-
ros, o que durante muito tempo fez os
historiadores pensarem que esses ca-
sos não passavam de manifestações
lado, a maior parte desses episódios só
é conhecida de forma indireta, pelo
viés de documentos contabilizados e
de despesas efetuadas para a audiên-
cia e a execução. Ou seja, não suscitam
punido apenas com uma pena pecu-
niária destinada a cobrir as custas da
justiça, a porca foi considerada culpa-
da e condenada à forca, ao mesmo
tempo que seus porquinhos escapa-
cos acusados de terem matado crian- da remanescência de arcaísmos judi- a curiosidade que, hoje, é nossa... ram da morte, por não haver nenhuma
ças foram condenados à forca. Alguns ciários. Em trabalhos pioneiros, o so- O mais impressionante é que o pro- prova que permitisse incriminá-los.
anos antes, em 1386, na Falaise, uma ciólogo Edward Payson Evans identifi- cesso contra animais seguia o ritual Da mesma maneira que os seres
porca, também acusada de infanticí- cou, entre a Idade Média e o século judiciário dos processos contra seres humanos, os animais eram submeti-
dio, foi maquiada como se fosse um XIX, pouco mais de duzentos casos em humanos. Os animais eram vistos co- dos com frequência à prisão preventi-
homem, julgada e executada diante todo o continente.2 No reino da Fran- mo seres conscientes, movidos por va durante a instrução de seu processo
dos porcos da região.1 ça, o historiador Michel Pastoureau re- vontade própria, responsáveis por e, às vezes, colocados sob vigilância,
Processos como esses parecem ter censeou uns sessenta entre 1266 e seus atos e capazes de compreender as provavelmente porque poderiam se
ocorrido em todo o Ocidente cristão 1586. Numa escala ainda mais reduzi- sentenças. Assim, uma porca e seus mostrar particularmente agitados e
desde meados do século XIII até os da, os arquivos da Lorraine e de Barr seis porquinhos foram acusados de menos sensatos que seus homólogos
tempos modernos. A maioria de casos revelam 34 casos entre os séculos XIV “morte e homicídio” de uma criança bípedes. Em 1408, em Saint-Mihiel, vá-
conhecidos se passa no século XVI; de- e XVIII: um conjunto de documentos de 5 anos, em Savigny, no ducado da rios arqueiros receberam, assim, 10
pois, a prática diminui e dá lugar ao provavelmente incompleto e suscetí- Borgonha, em 1457. Advogados defen- soldos “para beber com seus amigos”
pensamento do Iluminismo, num rit- vel de ser corrigido conforme as desco- deram o proprietário, mas não os pró- durante dois dias de vigilância do por-
26 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2018

co infanticida. Em Pont-de-l’Arche, o criar porcos na cidade. A ameaça que Deus procurava punir o grupo por No momento, nenhum texto de lei
encarceramento durava 24 horas. eles representavam para as crianças, seus pecados. O tribunal ordenava, enquadrando a possibilidade de em-
O papel das instituições judiciárias que ficavam sozinhas em casa durante então, a organização de uma procissão preender esses processos foi encontra-
era interrompido no momento em que as jornadas de trabalho agrícolas, não geral, que reunisse as autoridades lai- do. Esses crimes atacam os próprios
o julgamento se dava, sob a responsa- era ignorada. Os testamentos dos cam- cas e religiosas, que terminava com fundamentos da sociedade: as violên-
bilidade da força pública que deveria poneses no fim da Idade Média mos- um anátema contra os insetos e roedo- cias contra as crianças tocam no sa-
realizá-lo. Como durante processos de tram pais que se preocupavam com a res nocivos. Os gafanhotos que amea- grado; as calamidades agrícolas impu-
seres humanos, as sentenças variavam adoção de seu filho “até que ele atinja a çavam o feno da grande pradaria de tadas aos parasitas colocam em risco a
de acordo com o contexto: a acusação idade para se defender de cachorros e Tomblaine, ao lado de Nancy, passa- subsistência e a estabilidade das co-
podia ser abandonada quando a víti- porcos”. Na França, na Inglaterra e em ram por essa experiência em 1719, as- munidades. De acordo com o pensa-
ma sobrevivesse aos ferimentos, como outros lugares na Europa, os tribunais sim como os besouros das vinícolas da mento do filósofo René Girard, é possí-
em 1416, em Hennecourt (Vosges); os não paravam de intimar as famílias a aldeia de Eulmont, nove anos depois. A vel identificar aqui a causa do bode
acusados eram às vezes inocentados zelar melhor por sua progenitura e ruptura do equilíbrio natural, deseja- expiatório. No momento em que os
por falta de provas (como os porqui- seus animais. da por Deus, justifica esses processos. juízes poderiam considerar os crimes
nhos de Savigny). Ao contrário, todos Ao lado desses processos julgados A maior parte dos animais selva- julgados como reflexo de uma crise
eles podiam ser executados se fosse por tribunais civis, existia uma segun- gens não é lembrada a não ser nos pro- mais global, eles buscam, no caso in-
possível identificar o culpado. A sen- da forma de processo de animais, mais cessos de magia. Em geral, Satã toma a dividual, a origem e a causa de tudo o
tença para os animais assassinos era a antiga e duradoura: as ações realizadas forma (ou o controle) de um lobo e até que fere o corpo social.3 Segundo o
mesma que para os homens: a forca. pelos tribunais eclesiásticos, principal- mesmo de uma malta, com o objetivo historiador Robert Muchembled, cada
Às vezes, os cadáveres permaneciam mente encarregados dos casos relevan- de atacar os animais, os seres huma- processo contribui, assim, para enrai-
expostos durante algum tempo nos tes para a Igreja, contra os insetos e roe- nos isolados ou devorar as crianças. O zar mais profundamente as crenças na
patíbulos, a fim de impressionar. Esses dores nefastos às plantações. O Diabo e os vampiros, os feiticeiros e as magia e as superstições, dando mais
procedimentos judiciários que, como primeiro caso testemunhado diz res- feiticeiras, que supostamente podem força ao sobrenatural.4
salienta Michel Pastoureau, “repre- peito a arganazes, uma espécie de roe- se transformar da mesma maneira que De qualquer maneira, esses pro-
sentam o exercício da ‘justiça eficaz’”, dor, e lagartas em Laon, em 1120, e en- seu mestre maléfico, podem também cessos responderam às preocupações
se dizem demonstrativos. contramos vestígios desse tipo de caso ganhar a aparência de um rato, uma religiosas das sociedades pré-indus-
O bestiário convocado para o ban- até o século XIX. Quatro casos em Lor- lebre, um corvo, um pássaro ou um ca- triais. Eles manifestaram uma vonta-
co das testemunhas era relativamente raine, entre 1692 e 1733 (antes da anexa- chorro (errante, que não é considerado de de restabelecer a hierarquia instau-
restrito. O porco infanticida dominava ção do ducado à França, em 1766), per- mais como doméstico). O único ani- rada, por Deus, entre os homens e os
com entusiasmo o banco dos réus, mitem tornar o esquema mais preciso. mal comum aos processos de magia e animais. De acordo com a Gênese,
acompanhado de gatos e touros. Os Quando as comunidades rurais se de animais é o gato. O Diabo muitas Deus criou o homem conforme sua
dados refletem a predominância, na viam diante de uma situação prejudi- vezes se reveste dessa aparência, a fim própria imagem, permitindo-lhe sub-
época, dos porcos nas áreas rurais e cial que não conseguiam controlar, de perturbar os adultos durante o sono meter “os peixes do mar, os pássaros
nas cidades, onde animais errantes es- apelavam para a intercessão de um tri- ou as crianças no berço. do céu, os animais, toda a terra e todos
tavam presentes em toda parte. Eles bunal eclesiástico. Este enviava emis- Para compreender essa prática ju- os pequenos animais que se movem
circulavam livremente nas ruas, pra- sários para intimar os insetos e roedo- diciária, inúmeras hipóteses foram le- na terra” (Gênese, 1:26). Quando os
ças e cemitérios, desempenhando res incriminados a se apresentarem vantadas: sobrevivência de supersti- animais violam essa hierarquia divi-
muitas vezes o papel de lixeiros. Às ve- “em pessoa” diante do tribunal. Du- ções populares; vontade de eliminar na, o processo deve restabelecer a or-
zes, eles incomodavam as autoridades rante a audiência, o juiz ordenava um uma ameaça que pesa sobre a socieda- dem cósmica. Ele se parece com um
municipais, que temiam uma polui- deles a se retirar, com os seus, dos de; desejo de instaurar o medo entre mecanismo de proteção das socieda-
ção das fontes de água. Foi principal- campos ameaçados. Se os parasitas os congêneres do animal executado; des, que constituiria uma verdadeira
mente por essa razão que uma lei do fossem exterminados, a comunidade tentativa de inverter a ordem da natu- ideologia, no sentido medieval do ter-
duque de Lorraine, datada de 1607, poderia agradecer a Deus com ora- reza e da sociedade, como durante mo, ou seja, “uma estrutura imaginá-
proibiu os habitantes de Nancy de ções. Se a praga persistisse, era porque motins e carnavais... ria [...] um sistema de representações
mentais, de ritos e de comportamen-
tos, no ponto de junção do consciente
com o inconsciente, capaz de tornar o
mundo significativo e de agir sobre
ele”.5 Formas de adaptação e de resi-
liência diante dos riscos de uma pro-
miscuidade permanente com os ani-
mais, esses processos permitiam
racionalizar o indizível e devolviam a
iniciativa ao homem.

*Laurent Litzenburger é pesquisador asso-


ciado no Centro de Pesquisa Universitário
Loreno de História (CRULH – Centre de Re-
cherche Universitaire Lorrain d’Histoire), da
Universidade de Lorraine.

1 Michel Pastoureau, Une Histoire symbolique du


Moyen Âge occidental [Uma história simbólica da
© Odyr

Idade Média ocidental], Seuil, Paris, 2004.


2 Edward Payson Evans, The Criminal Prosecution
and Capital Punishment of Animals [A acusação
criminosa e a pena capital de animais], William Hei-
nemann, Londres, 1906.
3 René Girard, Les Origines de la culture [As ori-
gens da cultura], Fayard, Paris, 2004.
4 Robert Muchembled, La Violence au village (XVe-
-XVIIe siècle) [A violência no campo (do século XV
ao XVII)], Tournai, Brepols, 1989.
5 Amaury Chauou, Le Roi Arthur [O rei Arthur],
Seuil, 2009.

You might also like