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Graça do Início ao Fim

Por Igor Miguel1

Paulo foi categórico: há o Evangelho e "evangelhos". Uso "evangelhos" associado àquelas falsas
versões do verdadeiro Evangelho, as quais Paulo classificou de "anátema", ou seja, maldição. Paulo
era tão zeloso pelo Evangelho, que chegou a afirmar que mesmo um "anjo" vindo do céu pregasse
outro evangelho, que não fosse o que ele anunciava, que ele deveria ser tratado como algo espúrio e
desclassificado.

Admira-me que estejais passando tão depressa daquele que vos chamou na graça de
Cristo para outro evangelho, o qual não é outro, senão que há alguns que vos
perturbam e querem perverter o evangelho de Cristo. Mas, ainda que nós ou mesmo
um anjo vindo do céu vos pregue evangelho que vá além do que vos temos pregado,
seja anátema. Assim, como já dissemos, e agora repito, se alguém vos prega
evangelho que vá além daquele que recebestes, seja anátema. (Gl 1:6-9)

Agora, gostaria de mencionar como exemplo, um outro evangelho que vem sendo pregado.
Destaco um caso isolado, que esporadicamente aparece nos púlpitos das mais diversas
comunidades cristãs, e que tem afetado a espiritualidade de milhares de pessoas. O evangelho da
compensação, o evangelho do "preço" e do fardo religioso.

Tente detectar o problema das sentenças abaixo, afirmadas por um determinado pregador que
escutei recentemente:

"A verdadeira graça se paga um alto preço. [...] E você que quer a graça tem que
pagar um preço: a sua renúncia, carregar a sua cruz. [...] Você tem que pagar um
preço pela sua salvação."

Antes de darmos um tratamento bíblico e apostólico a esta afirmação, seria importante deixar claro
que o termo "salvação" é uma referência a toda obra redentora que Deus realiza no pecador,
do início ao fim, tendo em vista o resgate do homem caído até conduzi-lo à vida eterna e inclui:
o novo-nascimento (regeneração), a conversão, a fé para justificação, a santificação e a glorificação
final. Então, seria errado, concentrar a doutrina da "salvação pela graça", como se esta graça
operasse apenas no início da obra salvadora (conversão) e depois, fosse como se Deus entregasse o
resto aos cuidados do homem ou em cooperação com as obras humanas autônomas. Façamos uma
fórmula:

• Salvação = regeneração + conversão + justificação + santificação + glorificação

Com esta definição em mente, voltemos à afirmação do pregador. Em primeiro lugar, há um


problema de linguagem por trás da afirmação do pregador. Ele desrespeita um princípio básico da
interpretação bíblica: o significado da própria expressão "graça". Graça tem o sentido (tanto no
grego como no hebraico) de "favor", "dom", "dádiva" ou "presente". Precisamente, por ser "algo
imerecido" e "sem preço", tal palavra é frequentemente traduzida para o português com o sentido de
"graça", ou seja, um "dom imerecido". O problema com a afirmação do pregador é que tal
"dádiva" está associada a um "preço" ou "custo".

Claro que a ação redentora de Deus em Jesus Cristo, em algum sentido, envolveu um preço: o preço
do sacrifício de Cristo. O problema é que para o pregador, além do preço de Cristo, uma pessoa

1 Teólogo, pedagogo, mestrando em língua hebraica pela USP. Autor do blog Pensar... em www.teologo.org
precisaria também pagar um preço para ter acesso à graça salvadora.

Observe a incoerência: se é "graça" como se pode "pagar um preço"? Vejamos o que o evangelho
apostólico tem a dizer sobre isso:

Ora, ao que trabalha, o salário não é considerado como graça, e sim como dívida.
Mas, ao que não trabalha, porém crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é
atribuída como justiça. (Rm 4:4-5) E, se é pela graça, já não é pelas obras; do
contrário, a graça já não é graça. (Rm 11:6)

Paulo está refutando precisamente o falso evangelho da recompensa. O que trabalha, ou seja, o que
quer ser justificado (importante aspecto da salvação) por "esforço", não pode receber a "graça", pois
aos que "trabalham", recebem salário, não graça. Mais tarde, ainda em sua carta aos romanos,
Paulo afirmaria que "graça" é "graça" em sentido absoluto, negar isto, seria cair em um contradição
lógica.

Os pregadores do evangelho da recompensa esquecem que "obra alguma" ou "preço algum" podem
dar conta da condição vulgar e da condenação que repousa sobre os homens indistintamente (Rm
3:1 e seg.). Por isso, a única e absoluta forma de ser "salvo" ou "justificado" é pela graça, mediante
a fé em Cristo, sem qualquer cooperação das obras humanas. Somente quando se "crê naquele que
justifica o ímpio" pode alguém ser agraciado pela salvação. Precisamente por esta razão que Paulo
ainda diz mais:

Sendo, pois justificados pela fé, temos paz com Deus, por meio de nosso Senhor Jesus
Cristo, mediante quem obtivemos entrada pela fé a esta graça, na qual estamos
firmes. (Rm 5:1-2).

Ninguém pode ser salvo, ou se "mantém firme" em Cristo, se não for pela graça que se tem acesso
pela fé. O texto de Paulo é claríssimo, não há preço a pagar, não há esforço pessoal, apenas graça
mediante a fé. Esta sim, deveria ser a origem e causa da firmeza do cristão e não o contrário.

O problema é que sem a graça, não há obra humana justa. "Não há um justo, nem um sequer; não
há ninguém que entenda, não há ninguém que busque a Deus... não há quem faça o bem, não há
nem um só." (Rm 3:10-13). As obras humanas estão comprometidas pela injustiça e o pecado. Se
assim, o é, qual o salário (resultado) de obras manchadas pelo pecado?

O salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna, em Cristo
Jesus nosso Senhor. (Rm 6:23).

Observe que o texto diz "dom gratuito". Se é gratuito, não é pelo "preço" que se acessa a graça.
Façamos agora, uma comparação direta entre o texto paulino e o que disse o pregador:

Falso Evangelho

[...] E você que quer a graça tem que pagar um preço: a sua renúncia, carregar a sua
cruz. [...] Você tem que pagar um preço pela sua salvação.

Evangelho Apostólico

Pela graça sois salvos, por meio da fé, e isto não vem de vós, é dom de Deus, não de
obras, para que ninguém se glorie. Pois somos feitura sua, criados em Cristo Jesus
para as boas obras, as quais Deus preparou para que andássemos nelas. (Ef 2:8-10).
Mesmo dispensando maiores explicações, é importante mencionar que, enquanto no falso
evangelho claramente foi dito "Você tem que pagar um preço pela salvação", em Paulo é dito,
que tal salvação é um dom, e que ele não procede de nada que os homens possam fazer (obras).

Claro que a Bíblia fala sobre a "tomar a cruz" e "boas obras", porém, elas nunca são colocadas
como "causa" ou "fatores condicionantes" da salvação. Ao contrário, as obras ou a obediência
são sempre respostas ou efeitos, de vidas na graça. Só alguém na graça de Cristo pode ter uma
salvação que é frutífera:

Assim, pois, amados meus, como sempre obedecestes, não só na minha presença,
porém, muito mais agora, na minha ausência, desenvolvei a vossa salvação com temor
e tremor; porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo
a sua boa vontade. (Fp 2:12-13).

Preservação e Perseverança dos Santos

O evangelho da graça não é o evangelho da frouxidão moral ou da desobediência, ao contrário, ela


transforma "escravos do pecado" em "servos da justiça" (Rm 6). Como foi dito, para muita gente, a
graça e a fé, operam apenas no "início" da obra salvadora. Como se depois, o homem, de forma
autônoma, ou seja, independente da graça de Deus, pudesse obedecer ou se santificar. Para evitar
tal confusão, Paulo afirmava claramente que o mesmo Deus que começou a "boa obra", tem poder
para levá-la até sua consumação:

Estou plenamente certo de que aquele que começou a boa obra em vós há de completá-
la até ao Dia de Cristo Jesus. (Fp 1:6)

Um das maiores ensinos apostólicos é o que se refere à perseverança e segurança da salvação. Um


cristão que nasceu de novo (regenerado) e foi justificado mediante a fé e salvo pela graça, nunca se
perderá ou cairá desta condição (não me refiro aqui a falsos cristãos e a falsas conversões). Ao
contrário, ele terá recursos da graça de Deus para viver uma vida santa e frutífera até a
consumação, ou seja, até que toda obra salvadora tenha se consumado na glorificação final dos
santos. Existem diversos textos bíblicos que asseguram que uma pessoa realmente alcançada pela
graça, será levada a uma vida santa e alcançará a eternidade. Jesus afirmou claramente que suas
ovelhas jamais se perderiam:

As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou
a vida eterna; jamais perecerão, e ninguém as arrebatará da minha mão. Aquilo
que meu Pai me deu é maior do que tudo; e da mão do Pai ninguém pode arrebatar. (Jo
10:27-29)

O apóstolo Paulo jubilava diante da segurança da salvação, quando disse: "... porque eu sei em
quem tenho crido e estou certo de que ele é poderoso para guardar o meu depósito até aquele
Dia." (II Tm 1:12).

Claro que os apóstolos insistiam na exortação a boas obras, a uma vida frutífera e na confirmação
da eleição. E deveriam fazê-lo, pois às ovelhas de Cristo, aqueles alcançados por sua graça, não só
devem, mas certamente buscariam ardentemente uma vida de feitos que glorifiquem a Deus. Mas,
tais obras, jamais podem ser colocadas associadas ou condicionadoras da salvação.
Algumas pessoas admitem que a obra inicial da salvação é absolutamente por graça, mas durante o
processo de santificação, afirmam uma "combinação de graça e obras", para que a pessoa seja
mantida no caminho. Entretanto, o ensino de Jesus e dos apóstolos é que não há como se santificar
ou obedecer sem que a graça de Deus também conceda recursos para isto. Ou seja, há graça no
novo nascimento, na conversão, justificação, santificação e glorificação dos santos. Não há boas
obras nos santos que não sejam causadas pela graça.

Por outro lado, é óbvio que a simples confissão verbal não significa regeneração automática, a
confissão deve ser acompanhada de fé autêntica. Por esta razão, pessoas que confessaram Jesus e
vivem uma vida embaraçada e escravizada pelo pecado, deveriam questionar se um dia foram
regeneradas de fato. Mas, jamais, deve-se colocar tensão em suas obras como "causa" ou o
elemento que o manterá na condição de graça.

Se somos exortados à obediência e não queremos obedecer, ou se vivemos embaraçados na


escravidão do pecado, deveríamos questionar se fomos salvos, e não ficar condicionando a salvação
a nosso desempenho. Afinal, se uma pessoa realmente bebeu da água que Jesus oferece é guiada
incrivelmente por sua graça a viver uma vida crescentemente consagrada e frutífera.

Um cristão na graça é um cristão que ancorou sua existência na Nova Aliança, que os profetas
reconheceram (Jr 31:31 e seg.), que envolvia a regeneração e a inscrição da Lei do Senhor nos
corações. Aliança em que o próprio Deus por seu Espírito faria com que seus filhos vivessem
uma vida de crescente obediência a Deus:

Dar-vos-ei coração novo e porei dentro de vós espírito novo; tirarei de vós o coração de
pedra e vos darei coração de carne. Porei dentro de vós o meu Espírito e farei que
andeis nos meus estatutos, guardeis os meus juízos e os observeis. (Ez 36:26-27)

Quem não se encheu de alegria ao se ver livre de um determinado vício ou pratica pecaminosa,
ainda não sabe o que é a "alegria da salvação", ainda não desfrutou da dádiva do Espírito de
obediência e santidade outorgado por Deus em Cristo na Nova Aliança.

Graça envolve a Glória de Deus

Por que tudo é por graça? A resposta de Paulo seria: "para que ninguém se glorie" (Ef. 2:9).
Deus não divide sua glória com ninguém, se a salvação for uma combinação entre a "obra de Deus"
(graça) e "obra dos homens" (obediência sem graça), ninguém pode dar toda glória a Deus pela obra
da salvação. Pois por mais incrível que tenha sido a misericórdia e a obra de Deus no Cristo
crucificado, esta obra o tempo inteiro, fica dependendo do desempenho e das obras daquele que
quer salvo. Isto seria exatamente o erro romanista combatido pelos reformadores e o legalismo
combatido por Paulo entre os judaizantes do I século.

Se a obra de Cristo para salvação estiver condicionada aos feitos dos homens, a obra de Cristo é
menor do que se imagina e Deus é incompetente, contrariando a revelação das Escrituras que o
descreve como o Todo Poderoso. Agora, se podermos olhar para Jesus como o "autor" e
"consumador" da fé (Hb 12:1 e seg.), saberemos que a obra de Jesus foi magnífica o suficiente, para
"começar" e "terminar" a obra que ele deu início.

Temos recursos na graça de Deus, e somente nela, 100% nela, para vivermos uma vida santa,
obediente e frutífera. Se não temos obtido tal recurso, devemos recorrer ao evangelho e "provarmos
nossa eleição no Senhor" (I Pe 1:10 e 11). Mas, certamente, uma vez que a graça de Deus tocou um
homem morto em seus delitos e pecados, e o levantou de seu cativeiro, e se esta foi uma obra de
Cristo, e se ele é "ovelha" de Jesus, ninguém poderá arrebatá-la. Nada poderá separar este salvo do
amor de Deus, como foi dito:

Em todas estas coisas, porém, somos mais que vencedores, por meio daquele que nos
amou. Porque eu estou bem certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem
os principados, nem as coisas do presente, nem do porvir, nem os poderes, nem a altura,
nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de
Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor. (Rm 8:37-39)

Por que o fardo?

Muitas pessoas por causa de uma compreensão errada da salvação, vivem em permanente estado de
tensão espiritual, pois não sabem lidar com sua condição diante de Deus. Por causa do evangelho
da compensação e da insegurança, veem-se frequentemente em uma condição de "medo" ou de
"bipolaridade", como se estivesse simultaneamente no "céu" e no "inferno". A única forma de
escapar deste medo é crer, confiar, de forma plena, na suficiente e grandiosa obra de Cristo.
Renunciar a pretensão e o orgulho de que se pode "cooperar" para a obra perfeita que Deus realizou
em Jesus. Somente assim, o Senhor abrirá o túmulo deste "morto" (Ef 2:1 e seg.), removerá a
condenação, justificando-o e lhe será derramado o Espírito Santo, auxiliador e sinal de nossa
filiação divina.

Considerações Finais

Assim, fica claro que qualquer outro evangelho pregado, distinto deste deve ser absolutamente
descartado. O evangelho apostólico assevera a absoluta ação de Deus, do início ao fim, e que toda
obra salvadora é obra da graça. E, se você, leitor, sente-se sob tal pressão legalista e compensatória,
e vive em permanente luta interna, cheio de dúvidas sobre sua condição, esta é a obra de Cristo, o
selo do Espírito Santo, creia simplesmente na obra realizada por Cristo. Esta é a única obra que
pode te introduzir definitivamente no Reino de Deus em plena segurança e que inscreve os preceitos
de Deus em seu coração, desfrutando da Lei da Liberdade (Tg 1:25). Guarde bem as palavras de
Paulo a Tito quando disse:

Quando, porém, se manifestou a benignidade de Deus, nosso Salvador, e o seu amor


para com todos, não por obras de justiça praticadas por nós, mas segundo sua
misericórdia, ele nos salvou mediante o lavar regenerador e renovador do Espírito
Santo, que ele derramou sobre nós ricamente, por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador,
a fim de que, justificados por graça, nos tornemos seus herdeiros, segundo a esperança
da vida eterna. Fiel é esta palavra, e quero que, no tocante a estas coisas, faças
afirmação, confiadamente, para que os que têm crido em Deus sejam solícitos na
prática de boas obras. Estas coisas são excelentes e proveitosas aos homens. Evita
discussões insensatas, genealogias, contendas e debates sobre a lei; porque não têm
utilidade e são fúteis. (Tito 3:4-9).

Soli Deo Gloria!

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