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2016
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Fevereiro de 2016
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Examinada por:
Rio de Janeiro
Fevereiro/2016
5
Ao meu marido.
Ao meu irmão.
Às minhas crianças.
À minha orientadora.
Obrigada!
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AGRADECIMENTOS
Primeiramente, agradeço a Deus por esta oportunidade, se minha vida não estivesse
calcada na vontade Dele, isto nunca ocorreria. Agradeço a Ele por tudo que fez comigo
durante os anos de graduação e mestrado, de como me sustentou debaixo de Sua Graça
infinita. Muito Obrigado, Senhor!
Aos meus pais, porque se não fosse pelo apoio deles e suas orações, o que seria de
mim? Em todo momento apoiaram minhas decisões, me deram forças e condições, mesmo
que a situação fosse apertada, para frequentar a faculdade e poder estudar para concluí-la,
mesmo que muitas vezes me tirassem das seções de estudo para descansar, contra a minha
vontade. Agradeço pelos dias acordando de madrugada, pela disposição e oração. Muito
obrigada por serem exemplos e meu apoio fundamental. Ao meu irmão, agradeço por me
fazer rir e pelo apoio incondicional, fico muito orgulhosa do rapaz que você se tornou e
espero ter sido exemplo em sua vida, não desista de fazer sua faculdade e seja o melhor! Amo
vocês.
Ao meu amado marido, por fazer parte da concretização desse sonho muito antes
dele ser sonhado, por estar comigo durante as longas seções de estudo para o vestibular, por
entender meu “desespero” em relação à faculdade, me ajudando comprando meu primeiro
dicionário de latim, por nunca me deixar, mesmo atrelada com inúmeras preocupações,
durante a graduação, em relação ao nosso futuro. E, me apoiou quando decidi fazer o
mestrado, me aparou quando o desespero e as preocupações vieram. Por tantas vezes que me
acordou do meu sono sob os livros e cadernos, por carregar minha mochila na prova do
mestrado, por estar presente e por alegrar-se comigo quando passei. Te amo e muito obrigada
pelas suas orações, pelas massagens em minha mão dolorida e, principalmente, pelo seu amor.
À minha orientadora, Professora Doutora Arlete Mota, por dar-me a chance de fazer
Iniciação Científica, e lá se vão seis anos, e me apresentar a Marcial e a todo universo que
envolve a sua obra. Agradeço por me escutar e por estar ao meu lado em cada decisão que
tomei, por me ajudar a vencer a timidez de me apresentar nas JIC´s e por plantar a vontade de
fazer o mestrado, e cá estou. Muito obrigada por ser como uma mãe para mim e por aceitar
ser a minha orientadora.
mim, muito obrigada por estarem ao meu lado em cada decisão, estarem comigo nos
primeiros meses de faculdade. Agradeço a Deus por serem exemplos em minha vida. Muito
Obrigada!
“omnem sollicitudinem vestram proiicientes in eum, quoniam ipsi cura est de vobis”
I Pe. 5.7
8
Marcial. X, 2
Ecl. 3.1
9
RESUMO
ROCHA, Mariana Beraldo Santana do Amaral. “Rumpitur invidia quidam”: um estudo sobre
os conceitos de imitatio, aemulatio e plagium nos Epigrammata de Marcial, Rio de Janeiro,
2016. Resumo da dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do Título de Mestre em Letras Clássicas.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016.
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ABSTRACT
ROCHA, Mariana Beraldo Santana do Amaral. “Rumpitur invidia quidam”: um estudo sobre
os conceitos de imitatio, aemulatio e plagium nos Epigrammata de Marcial, Rio de Janeiro,
2016. Abstract da dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do Título de Mestre em Letras Clássicas
The main purpose of this study is analyze the epigrams of Martial (39/41 - 103/104), bringing
to light the literary production of the ancient romans. Before to come to the point, we will
realize a small study on the general epigrammatic genre. After it intended to discuss the
imitatio and aemulatio processes, these understanding by the old rhetorical had as
conceptualization. Once it is understood the imitatio processes and aemulatio from the
perspective of ancient authors, we need to conceptualize these processes within what modern
theorists call intertextuality. To illustrate the process, will be necessary to analyze how the
epigramist worked with the indicated processes, especially when it comes to emulation
Catullus, declared master of the poet, Horace, emulated within a philosophical bias and Ovid,
emulated in around the theme of exile in his work. For the case of plagiarism in antiquity, it
will call upon the teachings of the Roman rights, without first understand the process of
copying and publication of a work at the time. Moreover, the work of Marcial features the
necessary scope in order to understand how it developed plagiarism addiction in antiquity, as
the poet was a pioneer when referring to the copyist of their works as plagiarist.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016
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SUMÁRIO
Resumo
Abstract
I – INTRODUÇÃO 12
VI – CONCLUSÃO 121
I – INTRODUÇÃO
Marco Valério Marcial, epigramista romano, nasceu 39/40 e morreu por volta
103/104, em Bilbilis, na Hispânia Terraconense. Chega a Roma por volta do ano de 64 para
tentar a sorte na cidade e divulgar suas obras. Por falta de apoio recorre aos patronos e à
adulação aos poderosos, assim a venda de seus livrinhos se torna realidade. Sabe-se que o
poeta conseguiu alguns privilégios enquanto vivia em Roma. Adulou Tito com seu Liber
Spetaculorum e depois, com a chegada de Domiciano, adulou-o com o mesmo livro. Em
consequência, garantiu o ius trium liberorum, apesar de não ter filhos – a expressão vale para
o número de livros – e lhe foi conferida a ordem equestre, títulos dados por Tito e mantidos
por Domiciano. Louvou as qualidades do princeps e suas vitórias militares, propagando o
governo e suas realizações públicas. Não adula somente ao imperador, mas a todos que
faziam parte do mesmo círculo que ele.
A obra de Marcial chegou até os tempos atuais em sua totalidade, cerca de 1500
epigramas divididos em quinze livros publicados durante os trinta e quatro anos que o poeta
viveu em Roma. Inicialmente, para a elaboração deste trabalho, foi preciso traçar um histórico
sobre o poeta. Sabe-se que não existe nenhum tipo de texto biográfico que conte a história do
poeta, por isso atentou-se apenas nas informações que o próprio Marcial apresenta aos seus
leitores bem como o informativo de sua morte, dado por Plínio, o Jovem, amigo do
epigramista. Plínio declara a morte do poeta, em Ep. III, 21. Para entender melhor a vida e a
obra de Marcial, foi importante a leitura da tese de doutorado de GRAÇA (2012), intitulada
Roma na poesia de Marcial: imagens e ecos de um espaço físico e social, que apresenta um
importante painel sobre a vida do poeta bem como a sua variedade temática.
A distribuição dos seus livros não gerava lucros, quem ganhava com a circulação da
obra eram os livreiros da época, o poeta esperava outro benefício, a imortalidade de seus
escritos e alguma proteção de um patrono rico e influente. O patronato consistia numa prática
bastante comum em Roma, que consistia em uma relação baseada em troca de bens e
serviços: o patrono, possuidor de certo capital e bem relacionado em todas as esferas –
políticas, econômicas e culturais – “apadrinhava” alguns poetas, chamados de cliens, e o
poeta, por sua vez contribuía de alguma forma com o prestígio de seu protetor através de uma
saudação matinal, uma procissão ou uma citação em um poema. O protegido recebia em troca
uma pequena remuneração, um convite para ceia ou alguns pequenos benefícios. Havia certa
dependência de Marcial em relação aos seus patronos ricos e o epigramista se compara a
Virgílio e a Horácio, por conta dos favores que estes receberam de Augusto e Mecenas, além
13
do retorno que os poetas lhes fizeram em seus livros. Ao tempo que bajulava, também
criticava seus patronos, e se queixa de sua situação econômica, pedindo ao seu leitor que
pagasse por seus epigramas. Para entender as questões sobre o patronato, foi necessária a
leitura da dissertação de mestrado de LEITE (2003), O patronato em Marcial. Cita-se
também, como fonte teórica importante, o artigo de VENTURINI (2001), intitulado Amizade
e política em Roma: o patronato na época imperial, onde, por exemplo, a autora afirma sobre
o patronato:
Em Roma, antes do aparecimento do movimento dos poetae novi, quase não se ouvia
falar sobre a escrita epigramática, embora alguns estudiosos apontarem que Virgílio tenha
escrito alguns textos epigramáticos, por exemplo. Até o momento a literatura servia a
República e os poetas não expressavam as suas opiniões nos versos. É com os neotéricos,
século I a.C., que a poesia começa a transpor o sentimento do poeta. É neste espaço que o
epigrama ganha notoriedade e alargamento temático; agora o gênero trata de amor na mesma
maneira que trata de temas licenciosos, uma espécie de subversão dos seus valores
primordiais. Para entender melhor o gênero, foi preciso a leitura da dissertação de mestrado
14
Marcial foi o grande expoente do gênero e soube, em poucas linhas, falar de tudo e de
todos, se tornando uma espécie de cronista social da época. O gênero se tornou famoso em
Roma, além do poeta ser reconhecido em vida como autor de epigramas. Marcial escreveu
exclusivamente se valendo do gênero epigramático e soube aproveitar muito bem as
características cunhadas pelos seus antecessores gregos e pelo autor que lhe serviu de maior
inspiração, Catulo. Para entender a escrita epigramática em Marcial, a leitura da dissertação
de mestrado de CESILA (2004), Metapoesia nos epigramas de Marcial: tradução e análise,
foi relevante na estruturação das informações prestadas no capítulo em que se fala da
composição dos Epigrammata. Diz o autor sobre a estruturação dos epigramas de Marcial:
Em inúmeros escritos, o poeta versa sobre o seu próprio fazer literário e sobre o
processo de criação literária, mas atentou-se para os escritos que fizeram alguma referência a
autores que vieram antes de Marcial na literatura latina. Para tal, a leitura do artigo intitulado
Autores de referência na obra de Marcial de TORRÃO (2004) foi um importante meio
informativo, pois o crítico elenca os autores que são citados em Marcial, desde aqueles mais
famosos, como Catulo até aqueles dos quais não se tem material escrito, como Pacúvio:
Uma leitura, por mais simples que seja da obra de Marcial faz-nos encontrar um
número bastante razoável de nomes de autores. De facto, Marcial utiliza alguns dos
seus epigramas para referir toda uma série de escritores de que possuímos pouca ou
nenhuma informação quer se trate de contemporâneos quer de autores mais antigos,
mas não deixa de nos referir também o nome de alguns outros que, já nessa altura,
apareciam como referência evidente na literatura latina e, em alguns casos menos
numerosos, também na literatura grega. Acontece até que, em algumas situações, a
divulgação destes nomes só é feita através dos epigramas do bilbilitano, como é o
caso de alguns contemporâneos do poeta (TORRÃO, 2004, p. 137).
Com o corpus reunido, será preciso trabalhar com os conceitos que Marcial apresenta
nesses epigramas: imitatio e aemulatio. Para os antigos, a imitatio consistia na imitação de
modelos tradicionais, de estilos, de temas anteriores, de reprodução da natureza enfim de tudo
que caracterizava uma referência, vinculada a uma tradição. Na Antiguidade era esperado dos
autores que imitassem aos escritores do passado, que suas obras se igualassem aos modelos
antigos e esta imitação tinha que ser expressa e conhecida, senão seria plágio. Não bastava ao
autor imitar: o ato da imitatio vinha acompanhado do desejo de superação, chamado de
aemulatio, sentimento que leva o indivíduo a igualar ou superar algo/alguém por mérito e
consiste no esforço contínuo para igualar a alguém em alguma coisa. Há outra definição para
a aemulatio, que diz respeito a uma homenagem feita àquela pessoa que o poeta admira. Por
muitas vezes Marcial se deixou levar pela admiração de alguns poetas. O fez às vezes apenas
com uma menção discreta a alguns autores que lhe serviam de referência. Mas há várias
menções diretas, por exemplo, a Catulo – poeta que lhe serviu de referência para a escrita
epigramática e a Ovídio, em especial, ao seu exílio.
Para entender esses conceitos, foi de valia a leitura da tese de doutorado de PRATA
(2007), O caráter intertextual dos Tristes de Ovídio: uma leitura dos elementos épicos
virgilianos. Não obstante, para que se compreendesse melhor o tema, foi necessária a leitura
17
(...) a imitatio é uma arte poética sutil, criadora de sentido, amplamente praticada e
especialmente evidente na poesia latina. Até o momento, só é encontrado nos
antigos as referências ao caráter emulativo da imitação e especialmente a sua função
de ornamento, como se citar um predecessor ilustre significasse nada mais que
emprestar algo do seu brilho e excelência ou medir forças com ele (p. 86).
Outro questionamento se fez latente, no decorrer dos estudos para a redação desta
dissertação: “Existia direito autoral na Antiguidade?”. Em busca de respostas, foi preciso
pensar sobre os mecanismos de produção e publicação de um livro na Antiguidade, para isso a
tese de doutorado de LEITE (2008), O universo do livro em Marcial e o artigo The circulation
of literary texts in the Roman world, de STARR (1987), foram essenciais para o entendimento
destes mecanismos. O primeiro apresenta em que materiais os livros eram escritos e como se
dava a preparação dos manuscritos, o segundo, as diversas maneiras pelas quais um livro pode
ser divulgado e/ou publicado.
O primeiro contato com o terceiro conceito estudado nesta dissertação se deu após a
leitura do anexo II da dissertação de mestrado de CESILA (2004), Marcial e as origens do
termo plágio. Com seus escritos, Marcial ficou conhecido por toda Roma: esta elogiou, amou
e cantou seus livrinhos. O epigramista ainda diz que seus textos estavam em todos os bolsos
romanos, mas sua fama, além do reconhecimento, trouxe alguns dissabores, como ser copiado
por muitos. Em alguns de seus epigramas, em sua maioria irônicos, o poeta delata a tal
prática, cita nomes próprios, embora não se possa afirmar a veracidade destes – um Fidentino
era o alvo predileto do poeta, por exemplo.
Para maior entendimento sobre o plágio, se fez indispensável buscar outros textos que
servissem de apoio teórico para a escrita, como o artigo de ZANINI (2013), A tutela das
criações intelectuais e a existência do direito de autor na Antiguidade Clássica, que foi
essencial para que o plágio fosse entendido no âmbito do direito e por traçar um importante
18
Embora se reconheça que existam inúmeros estudos voltados para os temas que serão
trabalhados, tem-se como propósito apresentar os aspectos mais relevantes em cada conceito e
como esses conceitos relacionam-se dentro da obra de Marcial. O poeta trabalhou à exaustão
com os conceitos de imitatio e aemulatio e condenou o exercício do plágio, visto que o ato de
plagiar anularia o seu direito sobre a obra e, consequentemente, o seu pouco lucro – além de
uma possível glória e proteção de alguém influente. Através de uma linguagem de fácil
entendimento, objetiva-se direcionar o estudo dos conceitos listados, apresentando as teorias
de diversos estudiosos e trazendo a conceituação dos termos, segundo os próprios autores
antigos.
20
Segundo o que se lê no epigrama V, 34, seus pais foram Frontão e Flacila. Neste
poema, o poeta narra a morte de alguém muito querido e pede que seus pais cuidem da alma
1
Seu nome sugere ser realmente de um cidadão romano, mas o poeta fala que é descendente dos celtas e iberos e
que sua aparência era de um homem com feições duras com cabelo hispânico, em X, 65,7. É preciso lembrar que
a obra do poeta não é biográfica, por isso as informações sobre a vida de Marcial pode não ser tão precisas e
verdadeiras.
2
Originalmente, os romanos comemoravam o ano novo e a posse de um novo cônsul nesta data como também
indicava o retorno às atividades normais. LEWIS (1890, p. 453) aponta que era no mês de março que ocorriam
as festividades para as mulheres casadas, as Matronalia.
21
de Erócio3 a pequena escrava que trabalhava na casa do poeta e que faleceu muito jovem, aos
seis anos de idade. Alguns estudiosos questionam a veracidade da informação, pois acreditam
que Frontão e Flacila são pais da menina e não do poeta4.
Marcial relata que foram os seus pais que lhe ensinaram o caminho das letras 5, uma
profissão onde não se veem muitos lucros quando comparada a outras profissões, que buscam
o enriquecimento a qualquer custo.
O poeta chegou a Roma no ano de 64, época do grande incêndio da cidade, ficando
sob a proteção do Círculo de Sêneca, onde permaneceu durante trinta e quatro anos, como
deixa a entender em X, 103.
3
Marcial dedica três epigramas à menina, são eles V, 34; V, 37; e X, 61. Nos três percebe-se uma ternura para
com a menina não muito comum nos textos do poeta, que estava acostumado a atacar os vícios de seus
personagens.
4
Bell (1984, p. 21-24) confirma a informação que Frontão e Facila são pais do poeta e não da escravinha morta,
mas aponta que a menina pode ser filha do poeta, fato que carece de confirmação.
5
IX, 73, 7: at me litterulas stulti docuere parentes – “a mim, meus pais, tontos, me ensinaram as letrinhas” –
tradução nossa.
22
Não se sabe muito detalhes de sua vida durante os primeiros vinte anos após sua
chegada à Vrbs. Após a conjuração dos Pisões (em 65), Marcial perde o apoio do Círculo de
Sêneca e procura um novo esteio nos patronos e passa a vender suas poesias. O poeta nada
publicou durante seus primeiros dezesseis anos na Urbe, seu primeiro livro de epigramas não
foi publicado antes do ano 80. Em II, 90, o poeta justifica a Quintiliano o motivo de não
advogar, uma vez que teria estudado para isso, o que dificultou seu sustento em Roma,
ficando destinado à condição de cliens:
Aos poucos, o poeta sente falta de sua terra natal, Roma não tinha mais atrativos que
prendessem o poeta. Desiludido regressa a Bilbilis, por volta do ano 98/99. Lá, o poeta
encontrou ajuda em uma espécie de patrona, Marcela, que oferece uma propriedade rural,
onde o poeta pôde desfrutar do descanso do campo. Mas o poeta sente falta da barulhenta
Urbe, como narra no prólogo do livro XII.
A sua morte ocorre em 103/104, em Bilbilis e é anunciada por Plínio, o Jovem, na
epístola III, 21, escrita para Cornélio Prisco. Plínio descreve que ofereceu os recursos
necessários a Marcial para que voltasse para Bilbilis, como recompensa pelo epigrama X, 20,
em que foi homenageado: Audio Valerium Martialem decessisse et moleste fero. Erat homo
ingeniosus acutus acer, et qui plurimum in scribendo et salis haberet et fellis nec candoris
minus. – “Ouço e aflijo-me, pois, Valério Marcial morreu. Era um homem espirituoso,
aguçado, ácido e que, escrevendo, possuía muitíssimo de fel e sal e não menos de candura.”.
Os epigramas de Marcial visam os ataques impessoais principalmente, para isso
recorre ao uso de nomes fictícios, segundo o próprio poeta. Observa-se, entretanto que estes
nomes poderiam ter algum significado, pois sua escolha poderia realçar alguma característica
que estava sendo descrita. Ao criticar os vícios da Urbe do século I, fazia uso da ironia, do
humor e da mordacidade, elementos típicos da escrita epigramática. Todo tipo de anomalia
social é observada nos versos do poeta.
Em contrapartida, quando o poeta elogiava alguém, ele usava o nome verdadeiro,
como maneira de imortalizar a pessoa digna de homenagem, além disso, estava sempre em
busca de alguma recompensa, como algum apoio de um patrono, que lhe garantisse a
sobrevivência na agitada Roma. A poesia de Marcial agradava a quaisquer tipos de leitores,
pois ali era encontrada uma vivacidade palpável e uma poesia que se opunha aos gêneros
maiores – gêneros em que se produziam textos que, segundo o poeta, eram pouco lidos, como
se percebe em IV, 49, 9-10:
Era na época das Saturnais6 que Marcial revela ao público os seus livros. A sua criação
literária se igualava aos festejos, pois ela se despia de toda a aparência e austeridade assim
como a época das festas.
Com o ofício de poeta, Marcial não obteve muito retorno financeiro. Então, para
sobreviver, viveu como cliens, fazendo o que não lhe agradava, uma vez que havia muitas
obrigações e muitos patronos ingratos. Mas o seu ofício lhe rendia algum fruto, ao vender
seus livrinhos aos livreiros e editores da época. Em I, 3 cita a loja de Argileto, onde seus
livros eram vendidos:
Os epigramas de Marcial se dividem entre quinze livros: o primeiro conta com trinta
composições, Liber Spetaculorum, contendo os relatos de diversos espetáculos realizados
durante a inauguração do Anfiteatro Flávio, o Coliseu, no ano 80, sob o comando do
6
As Saturnais consistiam em um festival em honra a Saturno e ocorria no mês de dezembro – entre os dias 17 a
23, no solstício de inverno. O festival se iniciava com grandes banquetes e sacrifícios. Um costume comum na
Saturnália era visitar os amigos e trocar de presentes.
25
imperador Tito. Em seu repertório, Marcial se apresenta como um espectador atento dos
espetáculos, entregando aos seus leitores uma grande contribuição documental sobre o que
ocorria dentro da arena durante os cem dias de festa.
Acompanhando uma ordem de publicação, logo após o Liber Spetaculorum, o poeta
publica por volta de 83/84 o Xenia (numerado em sua coletânea como o livro XIII), 127
dísticos elegíacos que vinham acompanhando pequenos presentes nos festejos das Saturnais.
Em 85, Marcial publica os Apophoreta (numerado em sua coletânea como o livro XIV), 223
dísticos que tratam dos alimentos ofertados e consumidos nos festejos, os versinhos eram
sorteados nos banquetes e as pessoas os levavam pra casa.
Há um conjunto de epigramas, os chamados Epigrammata, que representam a maioria
dos textos do epigramista. A obra é composta por doze livros, publicados a partir de 86.
Seguindo a ordem dada por estudiosos do poeta7, os livros I e II foram publicados em 86; o
livro III8, no final de 87; o IV, em 89; em dezembro de 90, foi publicado o livro V; o VI, em
dezembro de 91; o VII, em dezembro de 92; em dezembro de 94, o livro VIII; o IX, na
primavera de 95; o X, em dezembro de 95 – a primeira edição e a segunda edição, em meados
de 98; o XI, em dezembro de 96; e entre 101/102, o livro XII. Os textos reunidos no conjunto
possuem uma variedade temática fabulosa, ali, o poeta soube transmitir o passear nas ruas
romanas, os jantares, os banhos, os costumes daquele povo multifacetado do final do século I.
CESILA (2004, p.33) aponta que, “na maioria dos epigramas, no entanto, a linguagem
empregada é mais próxima da do dia-a-dia, em consonância com o aspecto fortemente realista
da poesia de Marcial. As características de seu estilo – os temas, a linguagem, os metros e
técnicas utilizados, etc.”.
No decorrer da leitura, o leitor esbarra com inúmeros tipos de personagens que foram
compostos pelo poeta. Marcial parece sentir alguma atração pelo grotesco e pelo diferente,
pois aborda todo tipo de comportamento e, sobretudo, escreve sobre uma Roma viva, que
apesar de está presa em um passado glorioso, corre a passos largos para o futuro. O
epigramista faz uso dos mecanismos jornalísticos para noticiar o aqui e o agora dos romanos,
tornando-se um cronista de hoje na Roma de ontem9.
7
CESILA (2004, p.32), comenta: “A atual ordenação da obra completa de Marcial – derivada, segundo Conte
(1994), de uma edição feita após a morte do poeta – numera as coleções dos Xenia e dos Apophoreta como os
livros XIII e XIV, ficando à parte, sem numeração, o Liber Spectaculorum”.
8
Na época da publicação do livro III, o poeta não se encontrava em Roma, estava no Fórum de Cornélio.
Marcial já se mostrava cansado da falta de recursos e da recepção desgastada de seus livros. (Cf. CESILA, 2012,
p. 5)
9
(PIMENTEL, 1992, p. 165-186.)
26
Além das vantagens do ius trium liberorum, foram concedidos ao poeta os títulos de
tribunus e eques, como é narrado em III, 95. Citam-se deste epigrama os versos 1 a 9:
10
(FITZGERALD, 2007, p. 12 e p. 136.)
11
A lei foi introduzida pelos cônsules M. Papius Mutilus e Q. Poppaeus Secundus. (SMITH, 1859).
12
Ver também: II, 91.
27
13
Acrescente-se que não foram publicados durante o governo de Domiciano os epigramas do Liber
Spetaculorum, escritos durante o governo de Tito. Além deste, a reedição do livro X e o livro XII foram
publicados sob o principado de Trajano e o livro XI sob o governo de Nerva.
14
(PIMENTEL, 2004, p.22.)
28
quinta em Nomento, a 23 km da Urbe, dada possivelmente por Polla, viúva do poeta Lucano,
como ele narra em VI, 4315.
Marcial narra que viveu por muitos anos sendo cliens de algum patrono abastado e
influente. Segundo VENTURINI (2008), o sistema patronal se apresentava como reprodutor
da estrutura de poder no qual era essencial que o patrono demonstrasse sua habilidade para a
aquisição de clientes. E o sistema era marcado pela ambiguidade, onde havia direitos e
deveres para ambos os envolvidos e flexibilidade no acesso do cliente para as pessoas
influentes daquele tempo, pois cabia ao patrono apresentar seu cliente a um determinado
círculo político e/ou literário16. LEITE (2003, p. 26) aponta que durante o Império, o
patronato representava a solução para a necessidade de manutenção e reprodução de poder:
“O patronato criou as condições necessárias para que o poder central do Imperador fosse
sentido em todos os pontos do Império, de forma rápida e sutil.”.
O patrono e o seu cliente tinham seus direitos e deveres. Cabia ao patrono ser
mediador de seu protegido, garantindo-lhe o acesso aos bens que o indivíduo, sem o apoio do
senhor, não conseguiria e também estabelecia a ponte para a integração social. Ainda cabia ao
senhor defender seu protegido em questões financeiras e/ou jurídicas. Em II, 13, Marcial narra
a função de advogado que o patrono deveria exercer:
Cabia igualmente ao patrono outorgar uma toga aos seus clientes para que se
apresentassem conforme a ocasião e o estatuto. Inclusive os artistas, principalmente os que
praticavam as artes escrita, poética ou histórica, procuravam um patrono que os apoiasse e
financiasse, em verdadeira relação de mecenato.
Os clientes também tinham seus deveres – officium. Logo pela manhã, os clientes
faziam visitas ao patrono, vestidos de toga e eram recebidos mediante a uma ordem de
hierarquia, a saudação era denominada salutatio. Também era dever do cliente recomendar o
patrono – commendatio e dar apoio através do voto ao patrono – suffragatio, o que não
ocorria mais no principado. Sobre a saudação matinal, Marcial narra em V, 22:
15
Ver também sobre esse assunto os epigramas I, 117 e II, 38.
16
(2001, p.222).
29
Em III, 46, cansado de suas obrigações como cliente, Marcial envia um liberto para
saudar seu patrono Cândido, diferentemente do que fizera em III, 4, quando manda que seu
livro vá cumprir suas tarefas em seu lugar. O poeta, na ocasião da publicação de seu terceiro
livro, se encontrava em outra cidade – sua saída da Vrbs reflete a sua insatisfação com a sua
condição de cliente.17 Segue o epigrama III, 4:
17
Sobre este tema e a insatisfação do poeta têm-se os poemas X, 70 e XI, 24: as obrigações eram tantas que o
poeta não tinha tempo para escrever seu livro. Em X,74, Marcial já está cansado de tantas obrigações como
cliente.
30
Havia na Urbe todo tipo de cliente, como Marcial, havia aquele que precisava da
sôfrega sportula para sobreviver, que originalmente seria uma cesta de refeição para se
substituir o hábito de oferecer um jantar aos clientes, durante a época imperial, passou a ser
uma quantia em dinheiro, em substituição do convite para jantar – o que não retirava
totalmente a obrigação de se oferecer um jantar ao cliente, uma vez que, nos locais onde se
oferecia o jantar, criava-se um ambiente para novas possibilidades de contatos entre as
pessoas, além de representar um símbolo de prestígio para os clientes. Para Marcial, um
ambiente de observação para a composição de novos epigramas. Note-se, contudo que nos
jantares havia uma discrepância entre o que era ofertado ao patrono e o que era oferecido ao
cliente, sempre visando o prejuízo do último. O cliente vive na penúria e precisa sobreviver
com a mesquinharia do patrono. Em I, 43, por exemplo:
O epigrama clássico e arcaico, tratado dentro da história dos gêneros literários, pode
ser considerado um tipo de literatura menor e paralela a uma antiga literatura oral, que advém
de suas primeiras aparições, incrustadas nas pedras. Estas inscrições ficaram excluídas do
aparato de um discurso oral próprio dos grandes gêneros, assim o epigrama se comportou
como um gênero marginalizado, uma vez que não precisava de uma coletividade para ser lido.
Talvez, ao se pensar o gênero como algo menor, se leve em consideração a forma em que os
poemas eram escritos, talhados em algum tipo de material duro, o que os exclui do que seria
comum na literatura daquele período, as performances das poesias épica e lírica diante da
coletividade.
Aos poucos, a forma das inscrições epigramáticas se assemelhava com a forma dos
poemas elegíacos, dado que o metro escolhido para compor as inscrições era o dístico
elegíaco. As inscrições passam a ser reconhecidas como um tipo de poema e, em
consequência disso, surge uma confusão entre o que seria epigrama – retirado das pedras e o
que seria elegia, muitos autores elegíacos da época, como Simônides e Anacreonte se
lançaram a escrever o gênero (Cf. FEREZ, 1988). Segundo AGNOLON (2009, p.2), o uso do
dístico elegíaco conferia ao epigrama a melodia melancólica destinada aos versos fúnebres.
Logo, quem quer que escreva em dísticos elegíacos fazia uso da economia verbal, do tom
sentencioso e solene. Para SILVA,
18
Guerras Médicas ou Guerras Greco-Persas foram alguns conflitos bélicos entre os antigos gregos e o
Império Aquemênida (Império Persa) durante o século V a.C.
34
que foi encontrado em um relevo de mármore na Estela Tumular de Polixena, nos anos de -
380 / -360 a.C.:
Outros autores foram importantes para o gênero durante o período arcaico. Por
exemplo: Arquíloco (700 – 650 a.C.), o primeiro poeta a escrever com o dístico elegíaco e em
pequenas estrofes, mas não se pode afirmar a veracidade da autoria dos epigramas atribuídos
ao poeta. Neste epigrama, Arquíloco aconselha que o leitor enfrente as tempestades da vida e
aprenda a reemergir em oposição aos obstáculos que os inimigos lhe possam afligir.
19
Texto original e tradução diponivel em: RIBEIRO JR., W. A. Estela tumular de Polixena. Portal Graecia
Antiqua, São Carlos. Disponível em: greciantiga.org/img.asp?num=0147, acesso feito em 06/01/2016.
20
(MOLYNEUX, 1992, p. 300.)
21
Texto original e tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, in Hélade, 6.ª ed., Coimbra, FLUC, 1995, p. 148.
35
Anacreonte (570 – 488 a.C.) escreveu sobre os prazeres da vida e segundo a tradição,
foi o primeiro poeta a falar do sentido do carpe diem. Seus escritos trouxeram graça, frescor e
elegância aos epigramas gregos através de seus versos festivos e laudatórios. Segue um
exemplo da Antologia grega (VII, 160), com tradução de José Paulo Paes:
Para que o epigrama se convertesse em gênero poético era necessário que o seu
suporte material deixasse de ser a pedra tumular ou o objeto votado a um Deus; e
sua fruição, por seu turno, não fosse mais determinada pela realidade da morte ou
das práticas rituais, mas, agora na qualidade de poesia, se subordinasse à mímesis.
Embora seja muito difícil determinar com precisão o momento exato deste
desenvolvimento, ou mesmo quem teria sido o primeiro a fazê-lo, é certo, todavia,
que os poetas gregos do século IV a.C. e os helenísticos do seguinte foram os
22
Tradução de Rafael Brunhara. Texto original e tradução disponível em primeiros-
escritos.blogspot.com.br/2008/07/arquloco.html, acesso feito em 06/01/2016.
23
Texto original disponível em: perseus.tufts.edu, acesso feito em 06/01/2016. Tradução de PAES,1995, p. 13.
36
Os helenistas não queriam competir com os clássicos gregos, mas procuraram meios
alternativos para se expressarem, usando o que tinham das velhas formas, inovando,
transpondo os temas comuns para um novo gênero. Logo, o epigrama saiu do status de uma
literatura marginalizada para adentrar no meio dos gêneros literários grandes, tal qual a
tragédia e a epopeia. A engenhosidade, a agudeza e a brevidade das inscrições contribuíram
para a fluidez da linguagem epigramática e na transformação literária do gênero. As
características listadas mais o caráter picante, jocoso e mordaz nos escritos se consolidarão
como unidade básica para a invenção de novos epigramas.
Segundo SILVA (2014), os poetas desse período não estavam em busca de uma
competição literária com os seus antecessores, mas buscavam novas formas de expressão,
lançando mão de seus modelos anteriores. Assim, pode ser encontrado em seus escritos um
absoluto rigor formal, ligado ao conhecimento de uma tradição, mas em utilização nos
assuntos corriqueiros e inusitados. A oralidade, item importante para a comunicação poética e
para a transmissão dos textos da tradição, agora divide espaço com os textos epigramáticos. O
texto epigramático tem fácil recepção, já que trata do indivíduo em sua particularidade, no
momento em que está inserido dentro de suas relações sociais e nas situações cruciais de sua
vida. Conforme GUTZWILLER (1998, p.53), o que diferenciava o epigrama helenístico da
elegia antiga seriam a brevidade e a formalidade ao se tratar de assuntos corriqueiros.
Para entender melhor este período, é preciso conhecer um pouco da história. Sabe-se
que a literatura helênica se desenvolve após a Batalha de Queroneia, em 338 a.C., disputada
por Filipe II, rei da Macedônia, contra o exército formado pelos cidadãos de Atenas e Tebas,
acarretando a vitória da Macedônia. Depois disso, as cidades gregas se aliaram ao rei Filipe II
para que se conservasse a independência. Após a morte do rei, seu filho, Alexandre, assumiu
o trono, efetivando a dominação sobre a Grécia. Após a morte de Alexandre (323 a.C.),
depois de doze anos de constantes guerras, sobrou um vasto império que compreendia a
Grécia e a África Setentrional. Como não deixou herdeiros, rapidamente o território
conquistado foi dividido em inúmeras partes, inicialmente ficando sob a tutela de seus
generais. Então o vasto Império ficou assim dividido: os Ptolemeus, no Egito, os Selêucidas,
na Mesopotâmia e Ásia Central, os Atálidas, na Anatólia e os Antigónos, na Macedônia.
Apenas um reino obteve sucesso, durante dois séculos: o reino de Ptolomeu, no Egito,
importante centro da cultura grega, que tinha como capital a célebre cidade de Alexandria.
37
E quanto aos elementos legados aos poetas seguintes, comenta Alexandre Agnolon:
É só no começo do século III a.C. que o epigrama assume forma de gênero autônomo
e poético. É neste período que se tem os escritos de Calímaco de Cirene (300 a.C. - 240 a.C.).
38
Seus textos foram fontes de inspiração para alguns poetas romanos como Catulo e Ovídio. O
poeta ainda tinha um duplo ofício, pois era poeta e bibliotecário da Biblioteca da Alexandria,
incorporando ao seu fazer poético todo um repertório de uma tradição, mantida em diversos
rolos na biblioteca. Com este enorme contato, Calímaco pôde incorporar em sua poesia
diversos ideais importantes dentro da cultura helenística, refletindo em seus versos sobre o
fazer literário e o fazer de uma grande tradição. São de sua autoria os Aítia (As causas), que
influenciou Ovídio na composição de suas Metamorfoses e alguns epigramas.
O exemplo, que será apresentado a seguir, apresenta um tom que seria próprio de um
texto tumular, comum nos epigramas arcaicos, uma vez que o papel faz a vez do túmulo. Mas
o que o diferencia das antigas inscrições é que agora o poeta não vivenciou o acontecimento,
este acontecimento narrado é fictício. O texto não é apenas informativo, ele possui elementos
que o definem como pertencente a um gênero poético propriamente dito. Segue o epigrama
18, com tradução de João Angelo Oliva Neto:
Leônidas de Tarento é outro autor que merece destaque, uma vez que demonstra uma
grande habilidade técnica e elegância ao tratar de termos populares. A maioria dos seus
escritos se encontra na Coroa de Meleagro de Gádara. A seguir o texto retirado da Antologia
Palatina (VII, 198), onde Leônidas dá voz a um grilo, que ficou durante dois anos sendo
amado e cuidado por Filênis. O autor a elogia, pois o carinho que a mulher tinha pelo bicho
estava fincado na doçura que este tinha ao cantar. O epigramista teatraliza diversas
características que possam passar pela temática erótica, mas que estava presente dentro do
universo dos poetas helenísticos.
24
Texto original disponível em: perseus.tufts.edu, acesso feito em 06/01/2016. Tradução de CATULO, 1996,
p.33.
39
(Preservas a virgindade.
Mas o que ganhas, menina?
Quando chegares ao Hades,
não hás-de encontrar amantes.
Entre os vivos as delícias
da Cípria. Lá no Aqueronte,
oh virgem, nós jazeremos
apenas ossos e pó.) 26
25
Original e tradução de Agnolon (2013, p. 63), In. Filênis, de belle de jour à alcoviteira: matéria erótica na
antologia grega, disponível em: revista.classica.org.br/classica/article/viewFile/60/60, acesso feito em
06/01/2016.
26
Texto latino disponível em: loebclassics.com, acesso feito em 06/01/2016. Tradução de SILVA, 2008.
40
No século III a.C. muitos poetas faziam antologias com seus próprios escritos e com
os de outros no intuito de conservar o acervo de epigramas. Então os epigramas eram
arranjados por uma ordem semântica e lexical, através de temas e léxicos comuns. Alguns
autores são considerados como organizadores e autores da Antologia Palatina, como
Arquíloco, Anacreonte e Safo. Meleagro de Gádara destaca-se como redator de uma antologia
epigramática denominada Guirlanda.
Havia duas principais antologias que circulavam na época helenística, as de Meléagro
de Gádara e a de Filipe de Tessalônica, que contribuem para o conhecimento de inúmeros
epigramas gregos. A Antologia (Guirlanda) de Meléagro foi compilada em torno de 95/96
a.C. e reuniu mais de 800 epigramas. Meléagro restringiu o termo epigrama para aqueles
textos breves, afirmando a brevidade como característica primordial do gênero. A Antologia
de Filipe seguiu o modelo de Meléagro, os textos dali são exclusivamente escritos em dísticos
elegíacos.
A poesia epigramática não se restringiu ao mundo grego. A partir do momento em que
a Grécia expande seu domínio, a sua literatura também se expande e chega a Roma. Logo o
epigrama foi importado e cultivado na Vrbs. Mas o gênero não teve grande tradição na
literatura latina, alguns autores citados por Marcial se perderam com o tempo, ou muito pouco
resta dos escritos epigramáticos. O único autor citado pelo poeta cuja obra está preservada em
sua totalidade é Catulo, apesar de seus textos não serem exclusivamente epigramáticos.
27
Texto original disponível em: perseus.tufts.edu , acesso feito em 06/01/2016. Tradução de SILVA, 2008.
41
28
(2006, p. 110).
42
Plínio, o Jovem, oferece uma lista de autores que se lançaram a escrever o gênero,
tanto na República quanto no Império, em Ep. V, 3,5. Esses poetas compuseram epigramas,
mas sempre como uma atividade secundária, sem a preocupação de redigir um texto
esteticamente epigramático e sem a ambição de publicá-los; então escreviam como atividade
do otium.
(Ou será que devo temer (não nomearei ninguém que esteja vivo, para não cometer
algum tipo de adulação), será que devo temer que não me seja decente o bastante o
que foi decente a Marco Túlio Cícero, Caio Calvo, Asínio Polião, Marco Messala,
Quinto Hortêncio, Marco Bruto, Lúcio Sula, Quinto Catulo, Quinto Getúlico, Aneu
Sêneca, Aneu Lucano e, mais recentemente, Vergíneo Rufo, e – se o exemplo de
personalidades da vida privada não basta – o divino César, o divino Augusto, o
divino Nerva, Tibério César?29).
Com a chegada dos poetae novi, o epigrama passa a tratar de temas do quadro político
daquele momento. Os poetas novos empregavam alguns preceitos helenísticos como a
brevidade, gracejo e a leveza em seus escritos rompendo com a austeridade, a virtude e a
gravidade do mos maiorum. Deste período, merece destaque como cultor do gênero, Catulo
(provavelmente, 87/84 a 57/54 a.C.), o poeta soube imprimir em seus escritos epigramáticos
um novo significado e um novo valor que foram partilhados por outros autores do gênero,
principalmente Marcial. Mesmo tratando de temas de ocasião, Catulo exprime em seus versos
os seus sentimentos e os sentimentos de uma coletividade, apresentando, em alguns
momentos, alguns pedaços de sua vida particular, como quando o poeta escreve sobre seus
sentimentos por Lésbia.
No prólogo de seu primeiro livro, Marcial apresenta três autores, além de Catulo, que
também, escreveram no gênero epigramático: Domício Marso, Albinovano Pedão e Gneu
Cornélio Lêntulo Getúlico.
29
Tradução dipsonível em: AGNOLON, Alexandre. Uns epigramas, certas mulheres: a misoginia nos
"Epigrammata" de Marcial (40 d.C - 104 d.C). Dissertação de Mestrado. São Paulo: USP, 2007.
30
Marcial faz referência a Pedão em II, 77 e V, 5; a Marso em II, 77; V, 5; IV, 29; e VII, 29 e 99.
43
31
Sua. 1,15.
32
Marcial escolhe o termo epigramma dentre tantas outras expressões como nugae, lusus e ioci, para designar a
sua coleção de poemas. Embora lance mão dessas expressões para designar seu próprio livro, o poeta é
categórico ao inserir o seu livro em um estilo de escrita, em quase 1500 textos. Marcial escreveu
predominantemente epigramas, como deixa a entender na abertura de seu primeiro livro: argutus epigrammaton
libellis, I, 1,3.
44
inovações do poeta, mas características de uma tradição começada na Grécia Arcaica, Marcial
lançou mão delas para a produção de sua extensa obra.
A maior contribuição do poeta seria o aperfeiçoamento dessas características na
confecção da escrita epigramática e o uso da técnica de produção do humor e graça dos
epigramas, que já fora usada por Lucílio, por exemplo. Tal técnica contribui para a estrutura
do epigrama, que se estruturava da seguinte maneira: a primeira parte mais extensa, onde a
situação é elucidada para o leitor. Nos versos cria-se uma expectativa que será desfeita na
segunda parte do epigrama, que geralmente, são os últimos versos ou últimas palavras do
poema, onde escreve uma frase picante, um questionamento, um dito mordaz, algum
comentário irônico ou espirituoso que dá a graça no epigrama (Cf. CESILA, 2004).
Mesmo que o gênero epigramático não fizesse parte dos gêneros nobres da literatura
latina à época, como a tragédia e a epopeia, Marcial agradava aos seus leitores, por causa da
vivacidade de seus escritos e da facilidade de leitura, ocasionada pela menor extensão de seus
versos, em contraposição àqueles que eram admirados, mas pouco lidos. O poeta atesta que
era conhecido em todo o orbe, como se observa no epigrama I, 1:
Marcial contraria o seu modelo: Catulo, que ao falar e a criticar os vícios recorre aos
nomes reais, ao usar nomes fictícios, como em Calímaco, transportando os versos para o
terreno ficcional. Porém ao fazer uma homenagem ou bajular o imperador e sua corja, Marcial
usa os nomes reais. O poeta se empenha em não atacar as pessoas diretamente, ele se lança a
criticar apenas os vícios, sem qualquer preocupação moralizante, mas com ironia, humor e
mordacidade, características próprias do gênero, como afirma em X, 33. A preocupação não
era reprovar ou condenar algo, até porque o poeta diz que também pode cometer alguns
vícios.
33
Quanto ao vocábulo mattea, ae, tem-se, em GAFFIOT,a seguinte definição “algo delicado, petisco”. Ver
também o vocábulo em Sêneca, Cont., 9, 4, 20.
34
De acordo com a religião romana, os penates são deuses do lar, responsáveis pelo bem-estar e prosperidade de
uma família. O culto aos penates estava ligado à deusa Vesta e ao deus Lar.
46
Em V, 15, diz que seus versos não podem ofender a ninguém, pois ele, como escritor
prestigiado, contribui para a fama da pessoa que se torna personagem de seus escritos:
35
Endymion: era um belo jovem que causou o amor de Diana que pediu a Júpiter para colocá-lo em um sono
profundo para poder observá-lo.
36
Chartae: uma variante vocabular que o autor usa para se referir ao livro.
48
O termo imitatio foi muito utilizado pelos teóricos latinos da retórica clássica, como
Quintiliano e também por Horácio, para caracterizar o processo de produção de um novo
texto. O termo hoje apresenta uma característica pejorativa, ligado ao conceito de plágio,
assunto para o próximo capítulo. Antes atenta-se que o termo imitatio nada tem com a noção
de copiar alguém ou alguma coisa e sim com o próprio fazer literário na Antiguidade.
O processo de imitatio, que hoje os estudiosos denominam, sem chegar a um real
consenso, intertextualidade, para os antigos gregos, a mímesis, estava relacionada com a arte
poética e o estudo da retórica, os retóricos antigos costumavam se valer da mímesis para
descrever os tipos de atividade humana e não a imitação de uma tradição e/ou autor37.
Aristóteles, no quarto livro da Poética, conceitua que a origem da poesia é interligada ao uso
38
da mímesis e que esta imitação é algo congênito ao ser humano, o que o faz diferente dos
outros animais, pois, desde a infância, participa do mecanismo de imitação. A imitação seria
então algo natural e inerente ao ser humano.
O ato de imitar se constitui em um ato positivo, diferente da ideia que se tem de
imitação ser algo ligado ao plágio, uma vez o ato está presente em diversas nuances humanas
e o filósofo se mostra interessado em observar o processo dentro da ótica da produção
artística, em especial, a poesia. Imita-se então a natureza humana em seus atos e
comportamentos, excluindo aqueles poetas que tratam de temas ligados à física e medicina,
que, sob os olhos do poeta, não constituíam temas para serem imitados.
É importante lembrar que antes que se tivesse o advento da escrita, a poesia grega era
essencialmente baseada no discurso oral que se nutria de outros discursos. A imitação ocorria
através da memória dos textos poéticos dessa tradição oral, à época do filósofo a escrita já
37
(RUSSEL, 1979)
38
O vocábulo grego designa a ação de imitar; cópia, reprodução ou representação da natureza, o que constitui, na
filosofia aristotélica, o fundamento de toda a arte. Heródoto foi o primeiro a utilizar o conceito e Aristófanes, em
Tesmofórias, já o aplica.
39
In: PONTES. In: jornaldepoesia.jor.br/carlosgildemar7.html, acesso feito em 06/01/2016.
50
tinha seu desenvolvimento e as primeiras obras tinham seu campo de atuação, e assim, para
Aristóteles, a imitação estava relacionada à obra e ao seu receptor. Para SILVA (2009, p.22):
Para os antigos, a imitação é parte integrante de todo aparato clássico que alcançou
enorme respeito na consolidação do passado. Ela se deu em diversos aspectos, como a
utilização do recurso em exercícios retóricos, onde havia cópia de trechos conhecidos,
assimilando as qualidades dos modelos literários. Imbuídos de um espírito de conquista
natural do povo romano, os autores latinos se apropriavam das obras de seus predecessores
gregos.
Apesar de o termo ter sido definido de várias maneiras com os autores modernos, para
os antigos, a ideia de imitação da natureza (mímesis/ imitatio/ imitação), como fator
determinante para elaboração de certo texto, vinha acompanhada da observação e imitação de
textos de mesmo gênero, anteriores àquele que se estava construindo. Não bastava o autor
imitar a natureza, também se fazia como outros autores de mesmo gênero já tinham
procedido, utilizando, por exemplo, os mesmos lugares-comuns e os mesmos mecanismos
compositivos específicos de cada gênero.
A multipluralidade do processo imitativo foi comparada a uma colmeia de abelhas por
Petrarca, para transpor o fato de que a tradição da literatura Greco-Latina oferecia aos novos
autores os mais variados exemplos de imitação, o que levou a ser um processo indissociável
ao processo de produção de texto. Segue o trecho referente de Petrarca e a tradução feita por
MORGANTI (2014, p. 70):
Michi quidem, fateor, de hac re non amplius quam unicum consilium est; quod si
fortassis inefficax experimento deprehenderis, Senecam culpabis; at si efficax, sibi
non michi gratiam referes; denique, in omnem eventum, illum habeas velim consilii
huius auctorem. Cuius summa est: apes in inventionibus imitandas, que flores, non
quales acceperint, referunt, sed ceras ac mella mirifica quadam permixtione
conficiunt40.
(Confesso que, para mim, não há mais que um único conselho a respeito disso; este
conselho, se talvez julgares ineficaz à sua experiência, deverás culpar Sêneca; se o
julgares eficaz, deverás agradecer a ele e não a mim, e assim, em todo caso, eu
gostaria que o considerasses o seu autor. A síntese desse conselho é a seguinte: nas
invenções, devem ser imitadas as abelhas, que não restituem as flores tal qual
tomaram, mas produzem cera e mel por meio de uma admirável mistura).
40
Fam. I, 8, 2.
51
Nas Epistolae I, 19 (vv.19 - 20), o poeta nomeia os maus imitadores como seruum
pecus, condenando uma imitação servil, aquela que é fiel a um modelo sem qualquer
inovação, sendo uma imitação mal sucedida. Portanto, para que a imitação seja feita
corretamente, é preciso que o imitador tenha consciência e saiba escolher os modelos que
sejam imitados.
Em linhas práticas, o autor deveria imitar os grandes modelos do passado, não copiar
palavra por palavra – ipsis litteris, e sim, imitava-se a essência criativa, o conteúdo temático,
competindo com os modelos escolhidos, tentando, se possível, superá-los. Daí se tem a
aemulatio, conceito indissociável ao processo imitativo, que se define como uma
“competição” entre o autor e o seu modelo escolhido e com a tradição que este se insere.
Conclui-se que apesar de o processo imitatio adquirir certo sentido pejorativo ao longo dos
anos, este processo se relaciona com o próprio processo de criação literária dos antigos e
ainda contempla o processo de aemulatio, “uma vez que as ‘imitações’ eram vistas como
forma de rivalizar com os predecessores, bem como ornamentos que engrandeciam a obra e
homenageavam os autores considerados dignos de citação” (PRATA, 2002, p. 31 e 32).
REZENDE diz que estes dois conceitos são indissociáveis, pois o processo emulativo
está inserido dentro do processo imitativo. Para o autor, aemulatio é
41
(HORÁCIO, 2001)
42
(HORACE, 1978) – tradução nossa.
52
Quintiliano diz
Quid? in verbis, sententiis, figuris, dispositione totius operis nonne humani ingenii
modum excedit? - ut magni sit viri virtutes eius non aemulatione, quod fieri non
potest, sed intellectu sequi.
(Ainda mais? Nas palavras, nas sentenças, nas figuras, na organização da obra como
um todo, não é verdade que excedeu a medida do talento humano? Em consequência
disto, há que haver nos homens que se queiram grandes a competência para seguir as
qualidades dele, não pela emulação, pois que isso não se pode fazer, mas pela
compreensão intelectual apenas.) 43
Postea mihi placuit, eoque sum usus adulescens, ut summorum oratorum Graecas
orationes explicarem. Quibus lectis hoc adsequebar, ut, cum ea quae legeram
Graece, Latine redderem, non solum optimis verbis uterer et tamen usitatis, sed
etiam exprimerem quaedam verba imitando, quae nova nostris essent, dum modo
essent idonea45.
43
Inst . X, 1, 50 – (tradução de REZENDE, 2009, p. 115.)
44
Cic. De Orat. II, 90-96.
45
Cíc., De Orat. I, 155.
46
Rhet. ad Her. , 1,3.
53
Haec omnia tribus rebus adsequi poterimus: arte, imitatione, exercitatione. Ars est
praeceptio, quae dat certam viam rationemque dicendi. Imitatio est, qua impellimur
cum diligenti ratione ut aliquorum similes in dicendo valeamus esse. Exercitatio est
adsiduus usus consuetudoque dicendi.
(Tudo isto poderemos alcançar por três meios: arte, imitação e exercício. Arte é o
preceito que dá o método e sistematização ao discurso. Imitação é o que nos
estimula, com método cuidadoso, a que logremos ser semelhantes a outros no dizer.
Exercício é a prática assídua e o costume de discursar.) 47
No entanto, desejando mostrar quão grande proveito tirou o nosso Virgílio da leitura
de seus predecessores e que flores e que ornamentos colheu de todos eles, de partes
diversas, a fim de embelezar seu poema, receio oferecer aos ignorantes ou aos
maldosos pretextos para criticá-lo repreendendo em tão grande homem a usurpação
do alheio, sem considerar que tal é o fruto da leitura - tentar igualar o que nos outros
se aprova e usar em benefício próprio do que mais se admira na obra dos outros; foi
isso que fizeram amiúde não só os nossos, tanto entre si quanto tomando emprestado
dos gregos, como os melhores dentre os gregos entre si. 49
47
Original e tradução de: CÍCERO, 2005.
48
(REZENDE, 2009.)
49
(VASCONCELLOS, 1998).
54
(...) a imitatio é uma arte poética sutil, criadora de sentido, amplamente praticada e
especialmente evidente na poesia latina. Até o momento, só é encontrado nos
antigos as referências ao caráter emulativo da imitação e especialmente a sua função
de ornamento, como se citar um predecessor ilustre significasse nada mais que
emprestar algo do seu brilho e excelência ou medir forças com ele.
50
De Sublime XIII, 85, 86.
51
(HALICARNASSO, 1986).
52
“O imitador é direcionado para os grandes modelos através de admiração ou de emulação (zelos) e recebe a
impressão do modelo através da imitação (mimesis), enquanto o examina em profundidade” - tradução nossa.
55
(...) in poesia culta, dotta io ricerco quelle che da qualche anno in qua non
chiamo più reminiscenze, ma allusioni, e volentieri direi evocazioni e in certi
casi citazioni. Le reminiscenze possono essere inconsapevoli; le imitazioni, il
poeta può desiderare che sfuggano al pubblico; le allusioni non producono
l’effetto voluto se non su un lettore che si ricordi chiaramente del testo cui si
riferiscono…53
53
(PRATA, 2002, p.32) “(...) em poesia culta, douta, eu procuro o que de uns anos para cá não chamo mais
reminiscências, mas alusões, e de bom grado diria evocações e, em certos casos, citações. As reminiscências
podem ser involuntárias; as imitações, o poeta pode desejar que passem despercebidas ao público; as alusões não
produzem o efeito desejado senão sobre um leitor que se recorda claramente do texto ao qual se refere.” –
tradução nossa.
56
54
Dicionário eletrônico Houaiss. Disponível em houaiss.uol.com.br/, acesso feito em 06/01/2016.
57
O autor, segundo PRATA (2007) não é foco, ele apenas cria e põe em funcionamento
o jogo alusivo de forma consciente e intencional para que, no final, o leitor esteja apto para
reconhecer o emaranhado de citações – diretas ou indiretas.
SILVA (2005, p. 26) diz
Allusion was figured as an ‘extra’, a bit added to special types of text by an author
who wanted to make a special point: intertextuality, on the other hand, is simply the
way in which texts – all texts – mean. The textual system exists before any text, and
texts are born always already situated within that system, like it or not. Just as no
person can escape her or his historical situatedness, so no text can exist except
against the matrix of possibilities created by those pre-existing texts.56
55
(SILVA, 2006, p. 25-33.)
56
(FOWLER, 2000, 119.) “A alusão era representada como um “acessório”, adicionado a tipos especiais de
textos por um autor que quisesse apontar um ponto especial; a intertextualidade, por outro lado, é simplesmente a
forma na qual os textos – todos os textos – significam. O sistema textual existe antes de qualquer texto, e os
textos nascem sempre dentro desse sistema, queira ou não. Assim como ninguém escapa de sua situação
histórica, nenhum texto pode existir, exceto se estiver de acordo com as matrizes de possibilidades criadas por
aqueles textos pré-existentes.” (PRATA, 2007, p. 43).
58
entende-se que o texto codificado é uma recriação de um modelo anterior que se confronta
com o texto atual.
Segundo HINDS (1998), o poeta ao recorrer a um predecessor, faz com que haja um
remanejamento de uma tradição, o artista é influenciado por esta tradição e a reescreve. Este
processo é utilizado por Marcial em favor de um lugar na tradição, ao criar inúmeras
expectativas próprias do gênero em que escreve, mas o poeta não se engessa na tradição
epigramática, já que o poeta inova em suas linhas, alterando a percepção que o leitor terá do
gênero epigramático.
Por fim, a imitatio (intertextualidade, alusão, arte alusiva) é base condicional para a
existência de um texto, contudo, para a realização do estudo proposto, volta-se à noção
primeira daquilo que os antigos entendiam como imitatio, ou seja, uma referência explícita ou
implícita de uma obra que servirá de comparação e associação de ideias por parte do leitor. A
imitação está ligada a uma tradição que representa um tipo de pensamento ou corrente
literária, todavia a imitação só será reconhecida e identificada por um leitor conhecedor do
contexto em que a imitação está inserida.
57
(CESILA, 2008, p. 135).
59
Dos poetas que Marcial citou como modelos para a sua escrita epigramática, Catulo
foi quem lhe serviu de maior inspiração. A obra de Catulo (aproximadamente 87/84 – 54/52
a.C.) é caracterizada por uma extensa variedade temática e estilística. Ao todo chegaram até
nós 116 carmina que foram dedicados a Cornélio Nepos, historiador contemporâneo ao poeta.
Catulo rompe com as tradições dos autores antigos, tais como Ênio e Ácio e apresenta uma
nova abordagem aos temas da literatura, fazendo parte de um grupo de poetas, nomeados por
Cícero como poetae novi, uma expressão que parece contar com certo matiz pejorativo.
Segundo CARDOSO (2003), mesmo que não fosse a divisão feita pelo poeta, a obra
catuliana é dividida em três grupos. O primeiro grupo (poemas 1 a 62) compreende a
pequenos textos de metragem variada, escritos em um tom jovial e alegre, sendo considerados
poemas de amor ou circunstância. Nestes poemas, Catulo se dirige a Lésbia, sua musa
inspiradora. Ao dedicar os poemas a ela, Catulo ora apresenta um tom alegre e
despreocupado, ora amargurado e triste, ora irônico. O segundo grupo (poemas 63 a 65)
compreende a oito poemas longos com uma linguagem ornada, repleta de figuras e requinte.
O último grupo (poemas 69 a 116) apresenta quase a mesma temática do primeiro grupo, onde
é empregada uma variedade de metros, inspirados nos líricos gregos, como Safo. Além disso,
o poeta apresenta alguns epigramas escritos em dísticos elegíacos. Nestes últimos, Catulo se
dirige aos seus amigos e conhecidos e apresenta a sociedade romana à época com um tom
irônico, picante e mordaz. Deste modo, os escritos catulianos são referência para a construção
epigramática de Marcial, uma vez que este assimila o tom jovial, irônico, picante e por vezes
mordaz dos textos de Catulo, mas sem atacar diretamente as pessoas que fossem retratadas
nos textos, como fez o veronês. É de herança catuliana ainda a variedade métrica e temática
de Marcial, tendo como preferência, dístico elegíaco.58
A temática principal da obra de Catulo é o seu caso de amor com Lésbia.59 A paixão
de Catulo o levou a ter uma vida agitada por conta dos contrastes que esse sentimento lhe
dava, o poeta morre precocemente em seus trinta anos. E em toda obra catuliana pode-se
perceber que o relacionamento do poeta com a mulher não é linear, ou o poeta está
perdidamente apaixonado, ou a odeia perdidamente. Como exemplo deste amor desmedido,
pode-se destacar o poema V, onde Catulo pede a Lésbia que ela viva o amor ao seu lado.
Marcial, em VI, 34, traz à lembrança o poema VII de Catulo, quando questiona a
Díndimo quantos beijos o rapaz daria. O epigramista descreve que os beijos do rapaz seriam
58
Marcial, em seus epigramas, descreve Catulo como tener (IV, 14, 13); tenuis (X, 103,5) e doctus (VII, 99, 9),
em uma referência à tenacidade e à doutrina catuliana.
59
Ovídio aponta que Lésbia pode ter sido um cognomen de uma mulher. Ver Tristes. II, 427-428.
60
maiores do que aqueles que são oferecidos por Lésbia, como as conchas, as ondas, as abelhas
e os aplausos, superando o seu antecessor.
No poema VII de Catulo, o poeta quer saber quantos beijos à amada pode oferecer a
ele. Por meio de metáforas, o poeta diz que os beijos de Lésbia são incontáveis como as areias
do mar e as estrelas do céu - até as pessoas maldosas não puderam contar a quantidade de
beijos. Segue o poema de Catulo:
60
Continente africano.
61
Esse tipo de planta também era usado como contraceptivo feminino.
61
Passa-se ao poema III. Neste, Catulo escreve uma ode fúnebre sobre o pequeno animal
de Lésbia que veio a falecer:
62
de Catulo, funcionando como um mero detalhe, um parêntese dentro do julgamento que faz o
epigramista. Marcial decreta que o primeiro tem mais importância do que o segundo, já que a
pomba de Estela é maior do que o pardal de Catulo. Marcial escreve um poema com apenas
uma finalidade, louvar o talento poético de seu patrono e amigo.
62
WILLS (1996, p. 398) aponta que por iniciar cinco versos consecutivos com o uso da anáfora, Marcial evocou
a anáfora catuliana de passer em 3, 3- 4: “passer mortuus est meae puellae,/ passer, deliciae meae puellae”.
63
Merece comentário o uso do vocábulo Venerem em clara alusão ao Veneres de Catulo – 3,1.
64
Ver também CESILA (2008)
64
faz uso da aliteração nos versos 9-10 do carmen 3: sed circumsiliens modo huc modo illuc/ ad
solam dominam usque pipiabat (Cf.VASCONCELLOS, 1991). Em seguida, tem-se o poema
na íntegra:
65
Marcial faz uso do mesmo vocábulo que Catulo usou em Carmen VII, 14, 4: Lesbia, nequitiis passeris orba
sui. É interessante notar que a leitura dos textos podem trazer uma dúbia interpretação, acarretando uma leitura
sexual tanto no epigrama quanto no poema.
65
e risos – vino et sale et omnibus cachinnis. O poeta ainda avisa que em sua carteira só o que
encontrará são teias de aranha (v.8) e só poderá oferecer-lhe sua amizade e um perfume igual
ao que foi dado por sua amada.
67
Provavelmente obra escrita por Júlio Cerial.
68
Assim como Catulo aconselha Fabulo a trazer a bona atque magnam cenam (vv.3-4),
o amigo de Marcial trará a magna supellex (v. 3) para ele. Além dessa alusão, FEDELI
(2004), aponta que, em Catulo o uso da conjunção explicativa nam, serve para introduzir a
justificativa de sua pobreza (vv.7-8), em Marcial, introduz a justificativa de extrema pobreza,
pois seus bens foram leiloados (v.4).
Em III, 12, Marcial destina o epigrama a Fabulo, mesmo destinatário do poema
catuliano, mas o poeta se comporta de maneira contrária a forma com que Catulo se
comportou, Marcial mostra qual seria o comportamento certo no caso do convite de Fabulo. O
anfitrião deu aos seus convidados um vidrinho de perfume, mas em troca deixou seus
convidados morrerem de fome.
No poema XIII, Catulo é o anfitrião de um banquete e convida Fabulo para cear, mas o
poeta vive em uma elegante pobreza e não tem dinheiro para oferecer o banquete ao seu
convidado, por isso pede que este trouxesse algumas coisas ao jantar, já que sua carteira está
repleta de teias de aranha. Ao aludir ao poema catuliano, Marcial inverte a situação, Fabulo
não é mais o convidado e sim o anfitrião mesquinho do jantar e o poeta, o parasita, é
convidado para a ceia (vv.1-8). O epigramista traz de volta o fato de que Fabulo recebeu de
Catulo um vidrinho de perfume como presente (v.12), já o anfitrião, Fabulo, oferece um
perfume, mas se esquece de oferecer alguma comida (vv.1-2).
Observa-se, em Marcial como já se apontou anteriormente, a alusão aos mais diversos
assuntos tratados por Catulo. E a referência clara a um dos poemas mais famosos de Catulo, o
poema LXXXV, surge no epigrama I, 32,68 por exemplo. Nota-se a mesma estrutura e a
recuperação do odi como quase sinônimo de non amo te que abre e fecha o epigrama de
Marcial.
68
Ver também V, 83; XII, 46.
69
Ver também CATULO LXV e LXVIII B.
70
Em I,88, Marcial escreve um epitáfio para o jovem Alcimo, um escravo que foi
sequestrado no auge de sua juventude. Repara-se que o poeta deixa transpor em seus versos
todo o sentimento pela morte do rapaz. Volta-se ao poema catuliano, onde o poeta tenta
compreender a morte de seu irmão (vv.5-6), mesmo que ele seja contra o destino que o levou.
Marcial resume suas condolências, pois o rapaz foi sequestrado; o que em Catulo representa
as lágrimas, em Marcial é apenas a dor da perda, uma dor genérica, mas o gesto é idêntico,
começando com o mesmo imperativo – accipe.
Em VI, 85, Marcial escreve um epitáfio a Camônio Rufo, morto durante uma viagem à
Capadócia. O epigramista faz uma analogia com a morte do irmão de Catulo, também morto
em terras distantes e espera que sua poesia possa substituir os incensos funerários.
Pode-se concluir através dos exemplos apresentados que Marcial realmente bebeu e se
esbaldou nas águas catulianas. O poeta não foi um mero imitador, mas soube tirar proveito
dos motes criados pelo veronês, superando-os com maestria. Cabe ao leitor da obra do
epigramista entender as alusões que ora estão explicitas no texto, como em nomes de
personagens e situações, ora alusões estruturais, ora apenas apresentadas em um vocábulo,
como por exemplo, quando Marcial nomeia seus textos como ninharias e seus livros como
livrinhos sem importância, trazendo à lembrança o carmen 1 catuliano. Neste, o veronês
72
oferece seu livrinho ao seu amigo e patrono Cornélio Prisco e o nomeia como libellum e
nugae.
Outro mestre nomeado por Marcial – com o qual exercita a imitatio – foi Horácio.
Foram selecionados neste trabalho alguns epigramas em que Marcial apresenta a temática do
carpe diem horaciano. Sabe-se que Horácio (65 – 8 a. C.) era contemporâneo de Virgílio e
surge no cenário literário romano por volta de 35 a.C., só depois de ter sido apresentado por
Virgílio a Mecenas e publicar o livro I das Sátiras – Sermones. Além destes, publica os
Epodos – 17 poemas com origem relacionada à poesia iâmbica –, Epístolae, entre elas a
Epístolas aos Pisões, Canto Secular e os quatro livro das Odes. A obra de Horácio é marcada
por uma variedade métrica e temática. O poeta trata da juventude, do amor, dos prazeres do
vinho, da alegria da vida, dos deuses e de temas mitológicos, além disso, trata do espírito
cívico e patriótico.
Nota-se que frequentemente Marcial expressa a ânsia da libertação do Homem do jugo
que o domina em seus escritos (Cf. BRANDÃO, 1998, p.151), visando principalmente a
felicidade plena, o grito pela liberdade frente ao que o poeta encontrava em Roma, cidadãos
influenciados pelos costumes nefastos advindos da urbanidade, da vida social e profissional.
O cinismo, o estoicismo e o epicurismo tentavam propor saídas para o sentimento de
aprisionamento do ser humano, indicando um caminho para essa tal liberdade, mas Marcial
nada contra as correntes filosóficas desprezando-as e ironizando-as, exceto por alguns
ensinamentos epicuristas como o carpe diem e a vita beatior, presentes em alguns de seus
epigramas.
Com Horácio, a poesia do carpe diem (expressão, aliás, criada por ele) achou morada
em Roma. O “poeta do meio termo” foi o grande propagador das doutrinas filosóficas daquele
tempo. Seus poemas são considerados o ponto culminante de seu esforço lírico, neles o poeta
canta os prazeres e a alegria de se viver a vida. O tema é representado na ode I, 11:
A ode em questão é uma das mais breves composições líricas horacianas e apresenta
temas relativos à fugacidade do tempo, à urgência de viver o presente, ao fruir da vida e ao
carpe diem. Horácio inicia a ode com a incerteza em relação ao que futuro reserva, não é
possível sondar os intuitos divino, nem mesmo prever o dia de amanhã, mais do que um ato
inútil, isso é algo nefasto.
Horácio descreve a incerteza do amanhã com serenidade, uma vez que o homem não
tem qualquer poder de manipulação do porvir. Qual seria, portanto o motivo de se preocupar,
se o homem pode desfrutar do hoje vivendo um dia de cada vez sem excessos? Como
aproveitar os prazeres cotidianos, como o vinho, tão comum na sociedade em que o poeta
transita? O sentimento “carpediano” nasce da consciência de que o tempo devora tudo. O deus
Cronos ou Saturno,70 na mitologia, o deus que devora seus filhos para que nenhum deles o
destronem. É o criador do tempo e de tudo que nele existe, tudo e todos seriam mais cedo ou
mais tarde devorados pelo tempo.
Geralmente, o verbo carpĕre – no imperativo, no v. 8 – tem acepções associadas ao
fruir e gozar. É visto no poema um sentido de separar uma parte do dia para aproveitar o
tempo, o que significa não adiar o tempo e suas escolhas, mas também não o antecipar ou
precipitar. Spatio brevi (v.6) é outro indicador de efemeridade no texto. Sua construção em
ablativo de lugar conota tempo, significando o espaço breve que logo pode acabar, uma
espécie de metáfora espacial que denota a condição geral da própria existência humana71.
Horácio retoma a temática na ode II, 5, 12-14. Esta, que é considerada uma ode
erótica, é destinada a uma personagem anônima apaixonada por Lálage, que tem como
empecilho para a concretização do amor, a pouca idade da jovem, por isso o poeta aconselha
o apaixonado a deixar amadurecer:
70
Sobre a ideia do tempo como devorador, tem-se, por exemplo, em Ovídio: Tempus edax rerum, tuque
invidiosa vetustas / omnia destruitis, vitiataque dentibus aevi / paulatim lenta consumitis omitia morte.(Met. XV,
234-236) – “Ó tempo devorador das coisas e tu, detestável velhice, vós tudo destruís. Com os dentes do tempo
consumis tudo pouco a pouco, com uma lenta morte”).
71
ANDRÉ, Carlos Ascenso. A mestria do poeta lírico: notas sobre Horácio (8). Boletim de Estudos Clássicos.
Vol. 52, 2009, p. 43-49.
74
No próximo epigrama, X, 47, Marcial encontra-se de partida para sua terra natal,
Bilbilis. Assim propõe ao seu amigo, Júlio Marcial, que viva uma vida mais feliz – vita
76
beatior, em seu uso no acusativo (v.1), elencando várias situações de que se pode aproveitar
na vida. A vida pública desgastante é representada pela toga rara (v. 5), um impedimento
para o poeta realizar os seus desejos. Aproveitar a vida é ter uma existência isenta de causas
e, se antes, com as inúmeras obrigações como cliens, a mente ficava agitava, com uma vida
mais feliz, a mente se aquieta – mens quieta (v. 5). O espírito quieto acarreta a melhora da
saúde – salubre corpus (v. 6), em uma vida mais simples – prudens simplicitas (v. 7) e em
uma amizade sem interesses – pares amicis/convictus facilis (v. 7-8), tão diferente da amicitia
do patronato. O aproveitar a vida ainda acarreta uma vida longe dos banquetes requintados,
das bajulações excessivas e do esbanjar da bebida. O poeta deseja uma noite de sono sem
maiores preocupações – soluta curis (v. 9), pois como em sua condição de cliens, uma noite
só o faz lembrar-se das obrigações que lhe esperavam no próximo dia.
melhores dias, mesmo que esteja próximo de completar sessenta anos. Assim Marcial
recomenda a Júlio que não adie mais as alegrias, já que elas passam voando – gaudia non
remanent, sed fugitiva volant (v. 8) –, esperando um futuro que nunca chega. O poeta parece
se lembrar dos versos horacianos: Dum loquimur, fugerit invida/ aetas: carpe diem, quam
minimum credula postero (“Enquanto falamos, fugirá o tempo cruel: colhe o dia, confiando o
mínimo no amanhã”), ode I, 11, 7-8, quando Horácio, nos últimos versos, aconselha ao seu
amigo que se agarre no que o hoje apresenta antes que seja muito tarde. Segue o epigrama
mencionado:
72
Quanto ao verso O mihi post nullos, Iuli, memorande sodales, ver também, em Ovídio, Tristia 1, 5,1.
73
Fides cana: a boa fé nos tempos de outrora, a antiga boa fé (cf. Virgílio. Aen. I, 296).
74
Catenatus: “encadeado”, “acorrentado”. Quanto a Catenatique labores: “provas”, “experiências encadeadas”.
(SARAIVA, 2006).
75
Fugitiua: o vocábulo escolhido para tradução (“passageira”), teve como base o significado do vocábulo
fugituus para Marcial: “que dura pouco”, “passageiro”, “caduco”. (SARAIVA, 2006)
78
tinha amizade com os poetas Macer, Propércio e Horácio76. Ovídio soube muito bem manejar
o verso típico da elegia e metro de predileção do epigrama, o dístico elegíaco. Em Amores,
Ovídio canta o seu amor por Corina, em Ars Amatoria, ensina aos cidadãos romanos a
conquista amorosa. O poeta versa também sobre a mitologia em Metamorfoses e Fastis.
Durante o período do exílio, Ovídio escreveu duas obras – Tristia e Epistulae ex Ponto –
nestas, Ovídio transcreve a sua memória de uma vida anterior e de seus entes queridos. Deixa
transparecer toda a sua dor e apela a quem puder ler que seja lhe dado o perdão para que sua
sorte possa, um dia, mudar. Nota-se que o poeta combina o tom do gênero elegíaco com as
características da correspondência que é percebida nas suas linhas, e ainda percebe-se uma
infinidade de descrições e narrativas. É em Tristia que o poeta consegue transmitir todo o seu
sentimento. Não só sua esposa é tirada dele, agora o poeta está separado de sua Urbe e sente a
dor da separação dos seus amigos, de sua biblioteca e da corte77.
Marcial possui uma experiência de vida semelhante à de Ovídio. Os dois afastaram-se
de Roma e foram incapazes de retornar. Embora as causas do afastamento fossem diferentes,
os autores possuíam o mesmo sentimento, o desejo permanente e a memória idealizada da
pátria. Marcial também se sente como um exilado e o termo usado por ele carrega a amplitude
do significado, ligado à saída do país, voluntariamente ou imposta, como uma punição
resultante de uma infração. Os dois autores tentam que seus escritos não sejam esquecidos
pela população romana, dada às circunstâncias. Assim o livro se torna o embaixador do poeta,
em razão da impossibilidade de retorno78.
Nada se sabe por parte dos biógrafos e historiadores sobre a causa do exílio de Ovídio,
mas o pretexto oficial seria a acusação de imoralidade do livro Ars Amatoria. Ovídio apenas
confessa um carmen et error que teria desencadeado a ira do princeps. Sobre o carmen,
especula-se que foi o livro já citado e sobre error, indaga-se que seja algo que o poeta tenha
visto.79
Em dois momentos durante a sua vida, Marcial escolhe se isolar da Urbe. No ano de
87, época da publicação de seu terceiro livro de epigramas, quando se encontrava no Fórum
Cornélio, e em 101/102, época da republicação do seu décimo segundo livro de epigramas,
quando o poeta já se encontrava em Bilbilis, sua terra natal. Marcial retorna a sua cidade por
76
Cf. Trist. IV, 102.
77
Além das obras citadas, Ovídio escreve ainda Remedia amoris, De medicamine faciei feminae, Medea (na
verdade, têm-se deste último apenas dois versos).
78
Trist. I 1.1-2: Parve -nec invideo- sine me, liber, ibis in urbem, ei mihi, quod domino non licet ire tuo –“ Ó
meu pequeno livro - e não invejo - irás a Roma sem mim/ Aonde, ai de mim!, a teu senhor não é permitido ir”.
As traduções de Tristia, que se seguirão, são de autoria de PRATA, Patrícia, O caráter intertextual dos
tristes de Ovídio: uma leitura dos elementos épicos virgilianos. Tese de doutorado, UNCAMP, 2007.
79
Trist. II, 78 -103.
79
causa de dificuldades financeiras, mas causam aversão ao poeta à obrigação maçante do ofício
de cliens, a ingratidão e a avareza dos patronos e a pouca valorização de sua escrita, além
disso, a Vrbs era muito agitada e barulhenta. Ao longo dos seus últimos livros, percebem-se
momentos de queixas constantes do poeta. Mas apesar de buscar a paz e a tranquilidade em
Bilbilis, Marcial sente falta da agitação da caput mundi, sente falta da vida cultural e social da
cidade, pois é lá que seus maiores leitores se encontram e é lá que se encontrava a fonte para
os seus escritos. Em XII, 2, Marcial se sente em um país estrangeiro apesar de estar na terra
em que nasceu.
O exílio de Marcial difere do que ocorreu com Ovídio, uma vez que o epigramista se
exilou voluntariamente em Bilbilis. É importante ressaltar que Marcial sai de sua terra natal,
no ano de 64 e vai à Urbe na esperança de fazer fortuna e alcançar a fama literária. Durante
trinta e quatro anos, o poeta tentou com afinco alcançar os seus desejos. Teve uma relativa
fama literária, como ele mesmo mostra em diversos epigramas, por exemplo, os epigramas I,
1 e V, 60, mas ainda não tinha alcançado uma estabilidade financeira. Então, como já foi
comentado anteriormente, para conseguir sobreviver na cidade, se tornou um cliente, em
busca dos favores de patronos benevolentes. A decisão de se autoexilar se deu por conta da
insatisfação sobre a sua situação financeira. Ademais, a insatisfação quanto às suas finanças e
os atrativos da cidade se tornou latente após o assassinato do Imperador Domiciano em 96.
Assim, sem seu principal patrono, o poeta se vê retornando a sua cidade natal, assumindo os
mesmos sentimentos ovidianos.
Em alguns epigramas percebe-se uma alusão direta a Ovídio e ao modelo que o
elegíaco segue, por vezes Marcial reproduz sentenças inteiras de seu antecessor, as adaptando
ao contexto epigramático, um contexto um tanto frívolo e sem muito sentimento, mas sempre
com o respeito e o cuidado com a forma. O contexto em que Marcial faz referência a Ovídio é
variado. O epigramista cita a cidade em que o elegíaco nasceu e fala da fama que Ovídio
ganhou postumamente, por exemplo.
No epigrama I, 61,80 Ovídio é mencionado junto a outro viés alusivo da obra de
Marcial, Catulo. Embora os dois poetas estejam em um mesmo plano, Marcial parece fazer
uma comparação entre os dois autores. Os arcabouços artísticos utilizados por Catulo são
mais apreciados do que aqueles usados por Ovídio, o elegíaco é lembrado pela sua grandeza
poética.
80
Ver também XII, 44
80
Marcial narra que a glória de cada personagem deve ser motivo de orgulho na cidade
em que cada poeta nasceu. Ovídio, em Am. III, 15,7-10, faz uso da mesma forma de escrita
para falar de alguns poetas, inclusive cita Catulo.
Ainda sobre o epigrama I, 61, note-se que Marcial aponta que Verona ama os versos
de Catulo e orgulha-se de sua poesia assim como Mântua se orgulha e se alimenta da arte
81
virgiliana e Sulmona goza da notoriedade de Nasão. Percebe-se que todos os poetas são
nomeados e somente Ovídio é descrito pelo seu cognomen 81.
Acrescente-se o epigrama VIII, 73. Neste, Marcial cita outros poetas que o
antecederam e que bem poderiam ser considerados mestres e onde, curiosamente, traz uma
nova insatisfação: a falta de um personagem – amado ou amante – que sirva de inspiração à
composição. A persona poética de Marcial se queixa de que sua poesia é sem força, visto que
não tem uma musa para amar. O epigramista então destaca alguns poetas que tiveram êxito
em sua poesia, pois estavam apaixonados, como Propércio, Tibulo, Virgílio, Catulo que são
nomeados diretamente e Ovídio que é citado indiretamente pelo nome da amada, Corina.
81
Geralmente é o terceiro nome de um cidadão romano, passou a denominar uma espécie de apelido, um
exemplo disso é Pompeu, que passou a ser chamado de Gnaeus Pompeu Magno, tendo como cognomen Magnus,
relacionado com as suas vitórias militares. No caso de Ovídio, seu cognomen é relacionado com o seu nariz.
82
Ver também o epigrama V, 10. Neste, o poeta fala com certa amargura sobre a falta de reconhecimento em
vida.
82
Tal sistema não mais existe e na cabeça do poeta se tornou apenas uma utopia, vide a sua
situação econômica, dependente da bondade dos patronos mesquinhos.
com regra”. Spectantem specta, ridenti mollia ride (Ars. III 513) – “Olhai a quem vos olhe, e
ride a quem vos ria83”.
Observa-se que no texto ovidiano o leitor recebe um conselho de um amigo, uma
pessoa mais experiente, entretanto, em Marcial, o leitor é incitado a rir e aproveitar a vida,
quase como se fosse um ensinamento horaciano. Em outro momento, Ovídio recomenda que
não se coma arroz para que não se suje os dentes da menina, em contrapartida, Marcial
constrói um emaranhado de comparações grotescas para descrever uma mulher. A
insensibilidade de Marcial se dá no último verso do epigrama: plora, si sapis, o puella, plora
– “chora, se souberes, ó menina, chora”, em uma forma inversa daquela que aparece o
primeiro verso. Ovídio narra que chorar é uma arte em Ars III, 291-292: Quo non ars
penetrat? discunt lacrimare decenter,/ Quoque volunt plorant tempore, quoque modo – “Até
no choro entra a arte, aprende-se a maneira de chorar com agrado e como que se queira”84.
83
A tradução destes versos, bem como o verso seguinte, é de OVÍDIO. Obras: os Fastos, os amores, a arte de
amar. Trad. Antônio Feliciano de Castilho. São Paulo: Edições cultura, 1943, [?]p.
84
Tradução em NASÃO, Ovídio Publio. Arte de Amar. Tradução de: Antônio Feliciano de Castilho. Rio de
Janeiro: Editores Eduardo e Henrique Laemmert, 1862, [?]p.
85
Cretata: “que pôs cor branca no rosto”. (SARAIVA,2006).
86
Cerussata: “branqueada com alvaiade”. Cerussa: “carbonato de chumbo”. (SARAIVA,2006)
87
Coniunx Priami: Hécuba, mãe de Heitor, Páris e Cassandra. Segundo o mito, foi transformada em cadela.
84
Marcial cria uma rede de sentimentos que parecem ser roubados de Ovídio. Em XII, 2,
o poeta apresenta o livro como peregrino, visto que ele mesmo não pode – ou não quer – sair
de seu exílio. Marcial recorda os versos de Ovídio no prefácio de Tristia (I. 1. 1-2): Parve—
nec invideo—sine me, liber, ibis in urbem:/ ei mihi, quod domino non licet ire tuo! – “Ó meu
pequeno livro - e não invejo - irás a Roma sem mim: / Aonde, ai de mim! A teu senhor não é
permitido ir”. Como Ovídio, Marcial está distante de sua casa, a expressão ab Urbe... íbis
(v.1) retoma a frase que abre os Tristia. O sutil jogo imitativo permite que o epigramista
brinque com as palavras. O acusativo em Ovídio – in urbem –, em Marcial é substituído por
Romam, trazendo ao leitor um paralelo entre a situação dos dois poetas, mesmo que em uma
delas fosse fictícia. Marcial deixa claro que seu trabalho não é um trabalho qualquer (vv.5-6),
tenta apresentar ao leitor uma nova interpretação sobre o tema e espera que seu trabalho seja
reconhecido, mesmo que ele esteja fora da cidade (vv.16-17). Uma vez que não está mais em
Roma, começa a sentir-se nostálgico, lembrando-se dos anos que passou a observar os
caracteres romanos, do ponto de vista artístico, pois o poeta não se mostrava satisfeito em face
de sua situação econômica. Ele esperava que a vida no campo lhe trouxesse tranquilidade.
Tanto Marcial quanto Ovídio esperavam que seus livros fossem lidos e tivessem
audiência. Assim como Ovídio em Trist. I, 1,7: nec titulus minio, nec cedro charta notetur –
“Nem o título de vermelho seja adornado nem de cedro, o papel”. Marcial (vv.17-18) coloca
que seu livro não precisa de um título, seus leitores o reconhecerão apenas lendo as primeiras
linhas.
Deve-se acrescentar que, ainda em relação à questão do exílio, do mesmo jeito que
Ovídio descreve Tomos, Marcial descreve a Bilbilis. Mas, para este, a cidade é grosseira,
rude, bárbara e nociva para a sua criação poética – os sentimentos evocados pelo epigramista
parecem um tanto superficiais, se comparados aos evocados por Ovídio. Com relação a
86
Ovídio, o sentimento parece ser mais dramático e lamentoso, visto que o elegíaco foi
realmente para o exílio, longe de tudo o que lhe era querido e não escolheu se retirar da Urbe,
como no caso de Marcial. Ovídio e Marcial, entretanto mostram que o afastamento prejudica
a criação literária, por exemplo, em Ovído, Tristia IV, 1 e V, 12.
De forma distinta da que ocorre no epigrama anterior (XII, 2), em I, 70, o livro é
personificado por Marcial para que vá saudar em seu lugar, Gaio Lúlio Próculo, um rico
patrono do poeta. O objetivo do epigrama é saudar o patrono de Marcial, que parece ser um
homem culto e douto, mas o que chama a atenção é o modo como o poeta descreve a cidade e
suas ruelas. Ele encaminha o seu libellus por entre os templos dos inúmeros deuses da Urbe,
aludindo às estátuas construídas durante o reinado de Domiciano e o próprio culto ao
princeps, incorporando nos versos um viés épico, como o explorado por Virgílio na Eneida,
mostrando que Próculo e Domiciano tem suas virtudes endeusadas – como o Enéias de
Virgílio, o pius. Assim Marcial eleva o tom do epigrama e consegue trazer à memória ecos da
própria epopeia.
88
Referência a uma estátua de Nero que media cem pés de altura (cerca de trinta metros), posteriormente,
Vespasiano substituiu a cabeça de Nero pelo sol, coroado de raios. A estátua era maior do que o Colosso de
Rodes – que é considerado uma das sete maravilhas do mundo antigo.
89
O culto a Cibele, deusa da fertilidade. O culto a deusa chega a Roma na época das Guerras Púnicas e ocorria
no templo no Palatino, lá ocorriam manifestações orgiáticas e era celebrado com curetes e os coribantes.
90
Dançarinos da deusa Cibele, ornados de capacetes que seguiam o ritmo de um pandeiro, flautas ou címbalos
(Lucr. II. 600-643). Também é o nome das dançarinas do culto de Baco.
87
O epigrama lembra uma das elegias dos Tristia, de Ovídio, a III, 1, em um primeiro
momento, mas, ao longo da obra do elegíaco, há várias referências para que o livro visite a
Urbe, já que o poeta, neste caso, está impossibilitado de ir, como em Tristia III, 7, o poeta está
em Tomos e pede que seu livro vá a Roma sozinho. No epigrama, Marcial pede que seu livro
vá saudar Próculo, em uma intenção direcionada ao patronato. Ovídio pede que seu livro vá
saudar sua sobrinha Perila91, que também, como o patrono de Marcial, possuia algum
interesse pela poesia. O elegíaco tece algumas considerações sobre a poesia e aos dons do
engenho que são bens intransferíveis e que não podem ser tirados do poeta. Seguem os versos
1 a 10, de Trist. III, 7:
91
Filha de Fábia, terceira mulher do poeta; assim como Ovídio, dedicava-se à poesia.
88
É de conhecimento que Ovídio não praticou o patronato, nesta elegia o poeta saúda
sua enteada e não a um patrono, mas Perila e Próculo possuíam algum interesse em poesia.
Ovídio discursará sobre a importância da poesia e lembra que o dom do engenho é algo
intransferível e mesmo estando longe, ainda possui capacidade de escrever seus textos (cf. v.
43 e seguintes). Jocosamente, Marcial diz ao seu patrono que não poderia entregar bons
poemas, se tivesse que cumprir as suas obrigações como cliente. Segundo CESILA (2007),
Ovídio se preocupa com a qualidade poética de seus textos quando estes chegarem a Perila
(vv.21-22 e 31-32). Marcial também se inquieta com a qualidade de seus escritos, face às suas
obrigações de cliente, uma vez que estas prejudicam o seu labor literário. Em Vade salutatum
pro me, liber: ire iuberis (v.1) contém alusões claras ao texto ovidiano. A substituição do
poeta pelo livro é marcada pela expressão pro me – “em meu lugar” – tu tamen i pro me, tu,
cui licet, aspice Romam. (Trist. I, 57) – “Mas tu, vai em meu lugar, e tu, a quem é permitido,
visita Roma”.). Ovídio apresenta a substituição, já que se vê impossibilitado de visitar Roma
por causa de seu exílio imposto por Augusto.
Em I, 3,92 em um tom afetuoso, Marcial ainda alude a temática do exilado. O poeta
pede que a plateia seja benevolente, Marcial teme a incompreensão dos críticos e a
inconstância do público romano, em comparação aos outros poetas. Cabe destaque o prefácio
dos Tristia, de Ovídio. A relação entre o livro e Ovídio é única, visto que o livro renuncia aos
adornos que ficariam em seu exterior, tendo como foco a redenção perante a Urbe. A situação
entre o epigramista e o elegíaco é diferente. Marcial ainda está na cidade, mas se sente exilado
na cidade que escolheu como lar, em contrapartida, Ovídio está realmente exilado, longe de
Roma, não se permitindo que ele se comunique com o seu público na Urbe. Logo o livro é a
única opção de contato do autor com seus leitores. Apesar da relativa vantagem, no que se
refere à situação de seu antecessor, parece que Marcial anseia viver o exílio em sua plenitude,
como o poeta elegíaco viveu. Nota-se uma mistura de nostalgia e medo, diante da
inadequação e da dificuldade de estar em um local estrangeiro.
Percebe-se que o livro é personagem principal também no epigrama III, 4:
92
O epigrama foi citado integralmente, no original, seguido de tradução, no primeiro capítulo desta Dissertação.
89
(Vai, livro, e saúda com minhas palavras os lugares que me são caros!
Tocá-los-ei, indubitavelmente, pelo pé que me é permitido.
Se lá existir alguém, em meio a tanta gente, que se lembre de mim,
Se por acaso alguém quiser saber o que estou fazendo,
Dirás que vivo, que esteja bem, todavia, negarás,
E até mesmo isso, o fato de viver, é dádiva de um deus.
E então tu, silencioso - deve ler quem procura saber mais -
Acautela-te de falar casualmente o que não é necessário!
Imediatamente, advertido, o leitor recordará meus crimes
E serei condenado como réu público pela boca do povo.)
90
Percebe-se que o mar é o fio que liga a elegia de Ovídio ao epigrama de Marcial. Para
Ovídio, o mar não lhe traz calma e tranquilidade, por exemplo, Et mea cumba, semel vasta
percussa procella, / Illum, quo laesa est, horret adire locum (Trist.I, 1, 85-86) – “E minha
barca, uma só vez golpeada pela terrível tempestade, tem horror de ir àquele lugar em que foi
danificada”. Em muitos trechos, o mar é a causa mortis, o causador de uma sensação de
sufocamento, já que a imensidão do mar engole a vida e lhe tira o fôlego.93 Em Marcial, o mar
é a porta de saída do livro, que parte para Urbe e as ondas e os ventos marítimos são
favoráveis para que o livro possa viajar em paz. A forma como Marcial constrói o epigrama
recorda ao leitor a forma como Ovídio construiu a elegia, pois assim como o elegíaco, o
epigramista se atenta às condições climáticas. Não é algo aleatório no epigrama, a
preocupação de Marcial com as condições do tempo. O poeta assume, mais uma vez, uma
atitude protetora para o seu livro (v.14).
Já no epigrama III, 2, o livro assume o papel de mensageiro e o poeta constrói o seu
texto em um tom amigável e cortês, sem a usual ironia:
95
Segundo CAIROLLI (2014, p. 214): cochonilha que produz uma tinta de cor escarlate.
93
Ovídio precisa que seu livro tenha uma capa preta e triste (v.8), Marcial entrega a sua
obra para algum patrono para que o papel deste se livre da fumaça de uma cozinha escura e do
destino infame de servir de embrulho para peixe, ficando impregnado de cheiros
desagradáveis (vv. 2-5). Ovídio espera que sua obra tenha um tom mais humilde, Marcial quer
que seu trabalho seja brilhante, com enfeites exagerados (v.8). Parece dessa forma que
Marcial possui certa vantagem sobre o seu antecessor. O livro do epigramista tem um
destinatário que possa distribuí-lo na cidade, enquanto Ovídio não possui um destinatário
específico. Talvez o livro do elegíaco encontre alguma dificuldade pelo caminho: qui mihi
monstraret, uix fuit unus, iter (Cf. Trist. III. 1, 22) – “Houve apenas um que me mostrasse o
caminho”.
Ainda em relação ao epigrama III, 2, percebe-se que Marcial recupera alguns
vocábulos usados por Ovídio pra criar uma situação completamente nova. Como no v. 2, o
livro é um fugitivo – vindicem parare -, Faustino é o único que lhe pode conceder a salvação
e a defesa a quaisquer críticas – illo vindice nec Probum timeto (v.12). O livro de Ovídio não
tem certeza de que será bem recebido na Urbe, o poeta se encontra sozinho e distante.
Finalmente, é de relevância a presença dos mitos nos escritos de Marcial, mesmo que a
intenção do poeta não seja tratá-los com seriedade, ele perfaz os caminhos dos mitos para
construir alguns de seus textos. O tratamento mitológico nos epigramas de Marcial é bem
variado: ora trata o mito a partir de alusões irônicas, ora ele é utilizado em contextos
diferentes – talvez tenha sido influenciado pelas sátiras de Lucílio. Mas não se pode ignorar a
influência ovidiana quanto ao trato do tema, uma vez que o elegíaco foi o primeiro a romper
com a tradição mitológica, produzindo uma série de escritos baseados na reunião do que é real
e do que seria de natureza fictícia. Marcial recupera a capacidade de manipular o mito em
favor do texto, agora incluindo o mito no viés epigramático com notas irreverentes e irônicas.
Dentre inúmeras referências mitológicas, tem-se o epigrama X, 4, já traduzido no
primeiro capítulo. Quanto a Ovídio, segue a passagem de Trist. II, 1, 395-406.
Tanto Ovídio quanto Marcial faz uma espécie de catálogo de personagens mitológicos.
O epigrama é destinado a Mamurra e apresenta um diálogo íntimo sobre a própria inventiva
epigramática (v.8), sobre a condição humana (v.10) e sobre o autoconhecimento (v.12).
Ovídio tenta banalizar o assunto com uma pergunta retórica, apontando para a futilidade dos
recursos mitológicos, a fim de treinar o leitor. A recuperação dos personagens literários
aparece como forma de um jogo – muito inteligente – de notações.
O termo Colchidas (v.2 do epigrama) parece ter sido tirado das Metamorfoses de
Ovídio (VIII, 6-151), onde o poeta descreve o retrato da figura mitológica. Parece que todos
os personagens retratados por Marcial se encontram unidos pelos crimes que cometeram
contra algum ente próximo. Nota-se que Édipo está ligado a Scylla, pois ambos mataram seus
pais, enquanto Medeia e Thyestes se interligam, já que ambos atentaram contra a vida de
crianças. Ovídio cita o mito de Hylas (v.406), Marcial também faz menção ao personagem
(v.3), companheiro de Hércules durante a expedição dos Argonautas, que fora sequestrado
pelas ninfas96.
Outros nomes são mencionados por Marcial e que estão ligados ao excerto
apresentado de Ovídio, como a menção a Hermafrodito, filho de Afrodite e Hermes,
transformado em um ser andrógeno por uma ninfa. Ovídio, em Met. IV, 285-388 narra a
metamorfose do personagem. O mito retorna em Apo. 174, onde o epigramista reformula o
que foi contado por Ovídio, em Met. IV, 378-379: nec duo sunt et forma duplex, nec femina
dici / nec puer ut possit, neutrumque et utrumque videntur – “se uniram, não são dois, mas
uma forma dupla,/ nem rapaz, nem mulher, e que a um ou outro parece”.
96
Ver também Georg. 3, 6.
95
Com os egípcios, começa a produção do papiro (papyrus) para a confecção dos rolos,
volumen - onde eram escritas as obras literárias, por volta de 2500 a.C. Confeccionava-se o
papiro com a parte interna – branca e esponjosa – da planta Cyperus papyrus. Cortava-se o
material retirado em finas tiras que eram mergulhadas em uma solução de vinagre e água,
depois eram sobrepostas e cruzadas em uma superfície lisa para que fossem prensadas e
regadas no Nilo por seis semanas, formando um papel fino. A seiva da planta servia como
cola, unindo as tiras, formando um papel compacto. O volumen era formado de seis a dez
metros de comprimento e dividido em colunas verticais – paginae.
O volumen era enrolado em uma vareta de madeira ou marfim, criando um rolo,
visando o melhor armazenamento. A escrita ocorria em paralelo às fibras do papiro. Para que
o leitor pudesse ler o rolo, era necessário que usasse as duas mãos para desenrolá-lo –
evoluere - e desdobrasse-o – explicare - enquanto lia. As bordas do papiro, que eram
chamadas de umbilici ou cornua, precisavam ser reforçadas para que não ocorresse desgaste
do material. Ovídio se refere às Metamorfoses como um trabalho de quinze volumina: Sunt
quoque mutatae, ter quinque volumina, formae, carmina de domini funere rapta sui (Trist. III,
14, 19-20) – “Há também quinze volumes das Metamorfoses,/ Versos arrancados ao funeral
de seu dono”.) 97
A falta de uma palavra que definisse o livro propriamente fez com que os autores
abrissem mão de expressões perifrásticas para que houvesse uma identificação com o que se
conhece modernamente por livro. Para isto, fez-se uso de expressões como versus, carmen,
poemata, commentarii, epistulae, ou o diminutivo de liber – libellus-, expressão utilizada
principalmente na poesia.98 Marcial lança mão de outros termos para designar o seu livro,
assim como o diminutivo de liber: opus, charta, membrana (o caderno de pergaminho),
versus ou carmen.
Com o passar do tempo, a utilização do papiro se tornou impraticável, visto que os
volumes eram muito grandes e de difícil escrita quando havia alguma anotação para se fazer.
Ademais, o material era escasso e o preço muito alto. Para reverter esta situação, no século III
a.C., o povo de Pérgamo, na Ásia Menor, substituiu o material pelo pergaminho.
O processo de formação do pergaminho ocorria da seguinte maneira: em uma solução
de hidróxido de cálcio, eram postos pedaços de pele de animais, geralmente de cabra,
97
Tradução: Prata, 2007
98
Ver, por exemplo, em Catulo, 1 (v. 1-2): Cui dono lepidum novum libellum/ arida modo pumice expolitum? –
“A quem dou um belo e novo livrinho/ há pouco árido polido com pedra-pomes?”; e em Marcial, Ep. I pref.:
Spero me secutum in libellis meis tale temperamentum ut de illis queri non possit quisquis de se bene senserit –
“Eu tendo seguido tamanha moderação nos meus livrinhos, espero que qualquer um que se sinta bem consigo
não possa reclamar deles” – tradução nossa.
97
carneiro, cordeiro ou ovelha. Com a pele úmida, limpava-se com uma espécie de foice para
que o produto ficasse liso. Após o processo, o pergaminho era posto para secar, esticado em
uma moldura e banhado em outro tipo de solução para que nada lembrasse uma pele de
animal. O vellus era um tipo de pergaminho bem tratado. Estas peles tratadas davam um
material de escrita fino, macio e claro, usado para documentos e obras importantes.
Para escrever era preciso o uso de graphium ou calamus, que possuía uma ponta
transversal que conferia à escrita uma caligrafia elegante, dependendo da finura da ponta,
feitos com junco e mergulhados em tinta, que consistia em uma mistura de carvão à qual que
se adicionava goma, ou algumas substâncias metálicas para que se tivesse fluidez e
consistência.
Marcial é o primeiro poeta a falar sobre o uso do pergaminho para a confecção de uma
obra literária, conforme XI, 1, por exemplo:
99
Sidon: cidade fenícia, famosa pela produção de púrpura.
100
A acepção escolhida para esta tradução se deve ao uso do vocábulo em Suetônio, com o significado, no
plural, de petições ou requerimentos (cf. SARAIVA, 2006.)
98
Na Roma Antiga, havia outros tipos de formatos e materiais para a escrita, como os
lintei, tiras de linho que eram usados em assuntos ligados à religião, por exemplo, o registro
de hinos. Havia as tabellae, material popular que consistia em tábuas de madeiras que
poderiam ser cobertas ou não por cera. Para escrever nas tábuas, seria necessário o uso de
stylus, uma espécie de caneta de metal ou de madeira com ponta aguda que servia para
escrever sobre a cera, ou de ponta redonda para apagar o que foi escrito. As tabellae se
assemelham ao caderno moderno e poderiam ser reutilizáveis (Cf. LEITE, 2013). Observem-
se, por exemplo, os materiais, nos Apophoreta: em XIV, 3 “Tabuinhas de cedro”; em XIV, 5,
“Tabuinhas de marfim”; e, em XIV, 7, “Pergaminho”. Seguem os exemplos citados:
Outros termos são importantes: scrinium, um estojo cilíndrico com uma tampa
superior, que servia para guardar o rolo de papiro ou pergaminho, em um tamanho menor este
rolo era chamado de capsa. O termo bibliotheca designava uma estante em que se guardavam
os volumes, mais tarde o sentido se ampliou para significar uma coleção de livros em um
determinado cômodo.
O uso do pergaminho também se tornou obsoleto, o que permitiu o aparecimento do
códice, o livro tal qual se conhece hoje, em que as folhas eram costuradas em forma de
caderno. O codex era um tipo de tabuinha de madeira, o termo designava o conjunto de
tabullae enceradas, unidas por um cordão, permitindo que se folheasse a obra em quaisquer
seções sem a obrigação de ler continuamente, conferindo mobilidade e portabilidade.
Pouco se sabe sobre a circulação e o comércio de livros romanos na Antiguidade, mas
é sabido que a atividade editorial, no findar da República, era muito significativa. As obras
literárias circulavam em determinados círculos sociais, influenciados pelos interesses
literários, pelo status social e pelo círculo de amigos que regulavam os critérios de amizade
do mundo antigo.
É relevante estudar o processo de publicação de uma obra na Antiguidade, tendo em
vista as dificuldades que o escritor do século I d.C. enfrentava para que a sua obra fosse
divulgada. Cabia ao autor a inspiração para escrever a sua obra. Após a confecção, o escritor
tinha três meios para que sua obra fosse divulgada. Ele poderia enviar uma cópia de sua obra
para algum amigo de confiança para que este fizesse seus comentários e críticas. As cópias
enviadas eram feitas ou pelo próprio autor, ou por algum escravo copista. Cícero, por
exemplo, pedia conselho a Ático, célebre editor e patrono das letras. Ao ler os escritos de
Cícero, Ático marcava os trechos que necessitavam de revisão com pedaços de cera101.
Horácio aconselha que, antes de mostrar o seu livro aos amigos, é preciso que o autor revise
os seus escritos, pois nescit vox missa reverti (Ars. 390) – “a palavra expressa não pode
voltar”.
O autor também poderia chamar seus amigos para a recitação de sua obra a fim de
suscitar comentários e reações. Só os amigos mais próximos poderiam participar da recitação
e nesta incluía os patronos e clientes.
Na Grécia Antiga, surgem os primeiros relatos de transmissão oral de uma obra
literária, mais tarde os textos recitados se transpõem para a transmissão escrita. Já em Roma,
Asínio Polião, patrono de Virgilio, foi criador do processo de recitatio, na época imperial,
101
Att. XV, 19, 27 e XVI, 11.
100
102
Ver, por exemplo, Ex Ponto IV, 13.
101
O poeta acusa Céler de querer copiar os seus versos enquanto este recita em voz alta,
mas o epigramista logo recusa o pedido de Céler. Também é possível interpretar de outra
forma: é melhor recitar para que Céler ouça do que ouvir a Céler recitando algo ruim.
Em VII, 51, Marcial toma para si as relações sociais que envolvem o processo de
recitação ao sugerir que Úrbico convide para jantar Pompeio Aucto, que recitará os versos do
poeta de cor. Marcial quer ver como se sairá o mau recitador.
A liberação da obra para as outras pessoas, que não faziam parte do seu círculo de
amigos e patronos, indicava que a obra já estava pronta e o livro já não teria o controle de seu
autor. Em IV, 72, Marcial envia o seu livro à livraria para que não gastasse seu dinheiro com
as cópias que seriam dadas de presentes aos seus amigos:
Os autores não tinham, como os livreiros, relações comerciais para vender e espalhar
as obras por Roma e suas províncias. Também não tinham condições de reproduzir
as obras, o que demandava trabalho enfadonho e, às vezes, necessitava de um
copista com tal instrução que não era fácil encontrar. Isso sem falar na adulação e no
servilismo, especialmente diante dos imperadores, o que acabava por ofuscar, muitas
103
Muitos bybliopolae e librarii eram de origem grega, como por exemplo, Trífon, livreiro de Marcial.
103
vezes, o gênio de muitos artistas romanos, que não podiam criar com
independência104.
104
(ZANINI, 2013, p. 124.)
104
105
O modo como os livros ficavam dispostos, nos umbrais das portas, facilitou, de certa forma, a proliferação de
gêneros literários de rápida leitura, dos próprios epigramas. Além deste fator, as recitações públicas também
foram responsáveis pela popularização dos epigramas.
106
Cf. também Horácio, em Sat. I, 4, 72-73: nulla taberna meos habeat neque pila libellos,/ quis manus insudet
volgi – “Nenhuma taberna, nenhuma coluna terá meus livros/ Para que a mão do povo os molhe com seu suor”.
105
Os autores não obtiveram lucros com o comércio livreiro: foram os livreiros que
lucraram. Embora não enriquecesse, um autor possuía um benefício mais duradouro e
estimado: a glória da imortalidade de seus escritos. Segundo Pereira,
Com efeito, enquanto o nome de um indivíduo ficar gravado e for recuperado pelos
seus semelhantes, por força das suas obras, atitudes, vícios ou virtudes, a sua
existência nunca findará por completo. Disso tinha consciência Ovídio. Condenado
ao exílio, vê na escrita uma forma de expressar um pouco da sua dor, não um mero
meio de obter glória. Aproveita para, na sua obra Tristia, ofertar à sua tão amada
esposa os seus versos. Julga de esse modo estar a dar-lhe o maior dos presentes,
superior a qualquer dádiva material (“Non ego diuitias dando tibi plura dedissem”):
a fama imortal (“Perpetui fructum donaui nominis”), o que, juntamente com a sua
virtude, comparável à de Penélope, Alceste, Andrómaca, Evadne, será motivo de
inveja (“inuideantque tibi”). O seu nome será lembrado enquanto os versos forem
lidos (“dumque legar, mecum pariter tua fama legetur”)107.
Além disso, um bom autor possuía a proteção de pessoas influentes, em uma espécie
de mecenato literário. Destaca-se que na Antiguidade não havia quaisquer direitos autorais e
garantias jurídicas contra as cópias indevidas e a circulação dos livros de forma não
autorizada. Ainda não havia uma maneira de limitar a circulação de uma obra, visto que, após
a venda do manuscrito, o autor não detinha mais a posse de sua obra, deixando espaço para
uma ameaça pungente em qualquer processo literário: os plagiadores.
107
(PEREIRA, 2012).
106
direito romano, o vocábulo grego traz o sentido de que era algo que não era certo fazer.
ERNOUT; MEILLET (1951) apontam que o termo, etimologicamente, tem sentido de algo
que seduz e induz. Ainda comentam que o termo foi usado pela primeira vez, como tal se
conhece, por Marcial: “Plagium: vol d'homme, plagiat. Emprunt du gr. plágion. plagiarius
(clas.) qui mancipium vel pecus alienum distrahit seducendo (...); qui induce pueros et seducit
servos. Le sens de ‘plagiaire’ apparait dans Martial I, 53.”108
Já CESILA (2004) comenta que o plagium estava ligado ao furto, que em grego era
representado pelo vocábulo κ οπή, “furto”, “roubo”, “rapto”, relacionado com o furtum
latino, este derivado de fur, “ladrão”. Em grego, o plagiário seria o κ οπή όγος, “o roubo de
palavra” – furtum uerbum.
Conforme CHRISTOFE (1996), a primeira vez que a palavra plagium109 aparece no
direito Romano ocorre no século I a.C. através da Lex Fabia Plagiariis. Tomando como base
o direito romano, o crime de plagium se qualificava como o sequestro e/ou apropriação de um
homem livre para fazê-lo como escravo, como também sequestro de um escravo de outrem
sem autorização do dono. A Lex Fabia Plagiariis foi instituída em 209 a.C., por Fabius
Verrucosus e dizia sobre o direito de propriedade e crime de violação de liberdade. As
sanções eram pecuniárias, mas, com o passar do tempo, a condenação poderia ser trabalhos
forçados ou confisco de bens, por exemplo.
Salienta-se que a sociedade romana era dividida em duas camadas: os patrícios –
classe privilegiada e os plebeus – os clientes e os libertos que dependiam da primeira classe.
Dito isto, em que classe se inseriam os escravos? Em nenhuma, uma vez que não eram
considerados pessoas reais e sim um bem, um objeto ou propriedade de alguém. Logo, o
escravo não tinha nenhum direito, mas se constituía um objeto jurídico.
Em vista disso, o plagium era algo simulado, corruptivo, que poderia ocorrer por
inúmeros motivos e de diversas formas. Tanto quem escravizava e quem deixava se escravizar
seriam culpabilizados, dependendo da intenção criminal. Como punição pagava-se uma multa
108
“Plagium: crime de plagiário; plágio. Emprestado ao grego plágion. plagiarius (clas.), qui mancipium vel
pecus alienum distrahit seducendo (...); qui induce pueros et seducit servos.O sentido de “plagiador” aparece em
Marcial, I, 53.” – tradução nossa.
109
Observem-se os verbetes plagium e plagiarius, por exemplo, nos seguintes dicionários: 1) SARAIVA (2006),
plagium, ii, “crime de plagiário”; plagiarius, “plagiário”, “o que estraga, desencaminha e dá refúgio a escravos
alheios”, “o que desencaminha pessoas” e, em Marcial, “ladrão literário”; 2) ALMEIDA (2001), plagium,
“roubo de escravos”, “plágio”; plagiarius, “aquele que rouba os escravos de outros ou compra ou vende como
escravo uma pessoa livre”, “plagiário”; 3) TORRINHA (1983) plagium, “roubo de pessoa”, “plágio”; plagiarius,
“aquele que rouba escravos alheios ou que secretamente os acolhe”, “o que desencaminha ou rouba pessoas”,
“plagiário”.
107
110
Justiniano, Institutiones I, 5.
108
Segundo ZANINI (2013), na Grécia, em 330 a.C., havia uma lei que ordenava um
depósito de cópias exatas das obras clássicas nos arquivos estatais. O copista e o autor teriam
que respeitar os arquivos depositados. É também na Grécia, em 650 a.C., que alguns pintores,
para que a autoria de seus vasos fosse reconhecida, assinavam o objeto, preservando o direito
de paternidade. No século VI a.C., Teógnis de Mégara menciona que criou um selo autoral,
um tipo de assinatura – sphragís (σφραγίς), que tinha como função prevenir o roubo de sua
obra literária.
Então, percebe-se que já na Grécia daquele tempo havia acusações de plágio. ROCHA
(2001) conta que Philostráto de Alexandria acusava Sófocles de ter plagiado Ésquilo, que
plagiou Frínico e este a algum antecessor. Platão acusava Eurípedes de ter reproduzido
integralmente a Anaxágoras, por exemplo. Na Roma antiga, o direito do autor era transferido
ao livreiro da época, pois ele detinha os direitos de reprodução de uma obra literária, mas o
direito de publicação ainda era do autor. Para Ático, Cícero questionou se seria justo que um
livro fosse publicado sem o seu consentimento. Virgílio foi constantemente acusado de
plagiar a Homero com a Eneida, obra que foi construída através do processo imitativo de duas
obras homéricas – Odisseia e Ilíada.
Antes de seguir com esta explanação, é preciso que se faça uma diferenciação entre
que seria o plágio e o que seria o processo de imitatio. O processo imitativo, como já se falou
no capítulo terceiro, era um processo de imitação de um modelo vinculado a uma tradição,
não se tratando de uma cópia ipsis litteris, mas um exercício para se chegar a excelência
literária, ligado ao processo de aemulatio, o desejo de superação da obra imitada. A diferença
entre o plágio e a imitatio reside no fato de que o processo imitativo está relacionado com o
processo criativo do autor antigo e o desejo de superá-lo, enquanto o plágio é apenas a
imitação servil.
Dito isto, volta-se a explanação do tema. De acordo com PEREIRA (2012), nem
sempre a memória de um texto conferia autenticidade do nome dos verdadeiros autores ou,
em algumas ocasiões, o estilo e a linguagem se aproximavam do estilo de um determinado
autor ao qual era conferida a autoria, sem que essa fosse verdadeira. Havia ainda os casos de
pseudônimos, que também dificultavam o reconhecimento autoral. Em casos escassos, os
pseudônimos conferiam certa autoridade ao texto.
Assim, resumidamente, conforme SCHNEIDER (1990, p.48), plágio poderia ser
conceituado como
109
O plágio não espelhava apenas um roubo autoral, com todas as implicações que o
acto detinha para a preservação do nome do seu autor, para além da sua morte.
Tratava-se igualmente de um latrocínio de lucros passíveis de obter pelo seu
compositor, através da sua venda. Tal revelava-se gravoso para figuras como
Marcial, que não apresentava grandes recursos, como se depreende numa das suas
composições.111
111
(PEREIRA, 2012).
112
Informação disponível em: thajardes.jusbrasil.com.br/ , acesso feito em 06/01/2016.
110
a noção de assegurar a proteção autoral tutelada pela actio iniuriam e mais tarde com a Lex
Fabia Plagiariis.
No período medieval, a produção cultural se encerrava dentro dos monastérios. Com o
advento das universidades, cresce a demanda de produção e reprodução de obras literárias.
Talvez a invenção de um modo mais rápido de imprensa tenha facilitado a proliferação de
plagiários e consequentemente da busca de alguma lei que assegurasse o direito dos autores.
Logo, seria necessário pensar em um modo para proteger os trabalhos impressos bem como os
autores. Os ideais Iluministas serviram para construir o que hoje se conhece como direito
autoral de obras impressas e musicais, sobretudo.
No século XVIII, o termo originalidade está associado ao que se entendia como autor.
Ligado à propriedade literária, o autor seria o inventor/dono de um texto original. Em 1710,
na Inglaterra, no período da rainha Ana, foi assinada a primeira lei específica para os casos de
plágio, visando proteger as obras literárias, denominada de Copyright Act. A lei tinha como
principal função proteger o direito de cópia ilegal, sem autorização do autor do manuscrito,
oferecendo a tutela de 21 anos de uma determinada obra aos editores. Porém, a lei não dava
conta da venda clandestina dos livros. Em 1791, durante a Revolução Francesa, houve dois
decretos que diziam respeito ao direito exclusivo do autor de reprodução de sua obra. Em
1886, promulgou-se a Convenção de Berna, onde se dispuseram as leis sobre os direitos
materiais, com abrangência em todo mundo, influenciando inclusive a legislação brasileira,
conferindo o direito do autor durante 50 anos.
No Brasil, durante o Império, não houve quaisquer tratamentos sobre o direito autoral.
Havia uma lei da época que garantia o privilégio de 10 anos para os editores de livros sobre os
textos produzidos. Somente em 1830 que o plágio se configurou como crime propriamente
dito, com o código criminal daquele ano, que impôs sanções sobre quem gravasse ou
imprimisse quaisquer tipos de escritos que tivessem sido feitos ou traduzidos por brasileiros,
que estivessem vivos ou com menos de dez anos de morte, se estes tivessem herdeiros. Em
1891, os autores de obras de qualquer natureza tinham o direito exclusivo sobre a sua obra e
podiam reproduzi-la da maneira que julgassem conveniente. A lei Medeiros e Albuquerque,
de 1898, foi a primeira lei conhecida sobre os direitos autorais, encarados como privilégio de
cinquenta anos após a publicação de uma obra, tendo a proteção da Biblioteca Nacional. O
Código Civil de 1916 veio a substituir as disposições da Lei Medeiros e Albuquerque.
Todavia, com o advento dos meios de comunicação, a lei foi editada para solucionar os
conflitos de reprodução de uma obra, culminando na Lei nº 5.988 de 14.12.1973, com 134
artigos, que instituíam as regras sobre o sistema autoral brasileiro, constituído no Conselho
111
Nacional de Direito Autoral (CNDA), nas Associações de Defesa dos Direitos Autorais e no
Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD). Com a promulgação da
constituição de 1988, foi incluída a lei 9610/98,113 que resguarda os direitos de uma obra
intelectual, artística, comercial ou tecnológica, punindo todo aquele que se aproprie
indevidamente da obra, ficando sujeitos às sanções civis e penais cabíveis.
Se nos dias atuais, a questão é latente e tem-se muitos meios para denunciar a
apropriação intelectual, na Antiguidade, a denúncia não era tão fácil. Deve ser por isso que
Marcial se irritava frente aos plagiários que insistiam em se apropriar dos seus versos. Aliás,
Marcial, como já se comentou, foi o primeiro escritor a utilizar o termo tal qual se conhece
hoje 114. Como exemplo, em I, 52:
Na época em que viveu Marcial não havia nenhum tipo de direito autoral. Como já se
comentou, o poeta vendia a sua obra ao editor ou livreiro, que mandava copiar e vender a obra
da maneira que quisesse. O autor teria apenas o valor da venda ao livreiro e, se conseguisse, o
113
A lei está disponível em planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9610.htm, acesso feito em 06/01/2016.
114
Cf. VANDENDORPE (1998) “Marcial é o primeiro a aplicar o termo em um sentido figurado para designar
alguém que tinha se apropriado de seus versos (I, 52, 9).”. Disponível em: uot-tawa.ca/a- ca--demic/arts-/let-
tres/p-la-giat.htm, acesso feito em 06/01/2016.
115
Também é lembrado em V, 18.
116
Adsertor/assertor: “o que liberta, alforria”, “libertador”, “defensor”, “vingador”, “o que reclama alguém
como escravo, ou afirma que o é” (Cf. SARAIVA, 2006).
112
117
MCGILL (2012) diz que Marcial constrói o ciclo ao personagem, ao dirigir alguns epigramas ao plagiário. É
interessante pensar na origem do nome FIDENTINO, talvez esteja relacionado ao substantivo fides, “fé”,
“confiança”, “boa-fé”, e em seu particípio presente, fidens: “aquele que confia”, “que tem confiança”. Pressupõe-
se assim que Fidentino seria alguém digno de confiança, o contrário daquilo que Marcial apresenta. Para o poeta,
Fidentino é alguém impertinente, insolente, impetuoso, imprudente e cínico.
118
CAIROLLI (2014, p.174) traduz assim a sentença: Fama refert como “Diz a lenda”.
119
Fama: do grego φήμη (phêmê)/ φαναι (pnánaí).
114
121
Manto com capuz, originário da do povo celta da Gália.
122
Vasos comuns da cidade etrusca de Arezzo, na Toscana, de argila bem fina de cor avermelhada, sobre eles
tem-se Plínio, Hist, XXXV, 160; Marcial, Ep. I, 53, e XIV, 98.
123
Na mitologia grega, Leda era rainha de Esparta, esposa de Tíndaro. Zeus transformou-se em um cisne e
seduziu-a. Dessa união, Leda chocou dois ovos, e deles nasceram Clitemnestra, Helena, Castor e Pólux. Helena e
Pólux eram filhos de Zeus, mas Tíndaro os adotou, tratando-os como filhos de sangue. Cf., por exemplo,
Marcial, Ep. I, 36, e Ovídio, Metamorforses II, 252 e segs., e V, 386.
116
Aqui o epigramista deixa a entender que seus livros são facilmente encontrados nas
livrarias e com os livreiros, visto que, em outro momento (Ep. I, 1, por exemplo), mostra que
é lido por toda Roma. Talvez isso facilite o trabalho do plagiário, que, com algumas moedas,
consegue um livro do poeta. Mas uma boa recitação de uma obra não pode ser comprada.
Mesmo que o livro seja “sequestrado”, o nome do autor não muda.
Marcial lança mão do vocábulo fur (v.1) para designar aquele que comete o crime de
plágio. O ávido ladrão quer comprar os escritos de Marcial para se tornar um poeta, mas os
aplausos não vêm com a compra de um rolo barato (vv.3-4). O poeta aconselha que o ladrão
procure aqueles textos que ainda não foram publicados (vv.7-8). Não basta ao ladrão ter o
meio para a publicação do livro, se não tiver o talento. Aqui, o poeta apresenta um vislumbre
de como os livros eram armazenados e escritos: em folhas de papiro ou pergaminho, que eram
coladas umas às outras e enroladas e em suas extremidades, havia um cilindro de metal ou um
pedaço de marfim que auxiliava a leitura do livro. O livro que o plagiário quer não se pode
comprar, pois os escritos de Marcial são conhecidos em todo o Império e são constantemente
lidos (v.9). Ainda neste mesmo verso, o poeta utiliza o vocábulo dominus mais uma vez
comparando seus livros a escravos através da ideia de posse que o vocábulo traz. Marcial faz
referência aos rascunhos do livro que não passara por nenhum acabamento (vv.10-12). Depois
de concluído, o livro passa por inúmeros processos para que se torne um volumen
comercializável, como o polimento das bordas com pedra pomes – pumicata (v. 10). Para
retirar as falhas da folha, alguns livros recebiam um fino trato, uma capa protetora ou uma
117
pintura de cor púrpura (v.11). Marcial aconselha que o ladrão compre estes livros que ainda
não foram polidos e finda o epigrama, sentenciando que, se o plagiário não quer ser pego, ele
deve comprar não só a obra, mas também o silêncio do verdadeiro autor (v.14).
Fidentino é personagem de mais um epigrama. Em I, 72, o personagem acredita ser
um bom poeta (vv.1-2), mas o problema é que os versos que Fidentino diz serem seus, na
verdade, pertencem a Marcial. Logo, o poeta se lança a comparar: Egle tentava convencer que
possui dentes, mas ela comprou ossos e presas, usadas para fins estéticos, que precisavam ser
retirados antes das refeições para que desse lugar aos seus dentes caídos (vv.3-4) e, o pior, os
dentes eram mais negros do que uma amora madura (v.5). Lycoris acredita ser bonita, mas
possui o rosto todo coberto de pó branco, costume comum em Roma (v.6), ou seja, ela só se
acha bela por causa do uso de cosméticos. Fidentino só é poeta por causa dos poemas de
outros, assim como um careca pode ter cabelo, usando peruca (vv.7-8). Marcial utiliza
analogias para desqualificar Fidentino, que, para o poeta, se comporta como um desdentado
que compra um dente ou um careca que acredita ter cabelos.
Em II, 20, o poeta apresenta a figura de Paulo. Marcial brinca com a noção de posse –
iure possis (v.2) quando narra que Paulo recita os poemas que compra. Assim torna-se dono
deles, pois Paulo não tem engenho suficiente para escrever os seus próprios poemas:
Nota-se o epigrama VII, 77. Tuca exige que o poeta o presenteie com os seus livros,
mas o rapaz quer agir de má-fé: não quer os escritos de Marcial apenas para ler e sim para
vendê-los como seus.
De forma jocosa, em X, 102, Marcial apresenta o personagem Fileno, que quer saber
como se tornou pai, sem ter quaisquer relações. O poeta explica: Fileno é pai do mesmo modo
que Gaditano é poeta. Este copia os poemas alheios e depois diz que são seus. Fazendo assim
uma forma de analogia entre a paternidade biológica e a paternidade intelectual. Assim tanto
Fileno quanto Gaditano são pais.
124
Ladas: corredor a serviço de Alexandre, o Grande, famoso por sua rapidez (HARVEY, 1998, p. 301).
119
Deixando clara uma reflexão a respeito de questões morais e religiosas, em XI, 94,
Marcial se dirige a um poeta judeu, que, além de ser um plagiário e de criticar os versos de
Marcial, ainda possui um comportamento libidinoso, que parece chocar o epigramista, devido
aos princípios morais judeus. O poeta diz que não se importa que seus versos sejam plagiados,
mas se importa quando o plagiário tem relações libidinosas com o seu escravo. A repetição do
vocativo verpe poeta evidencia a ironia de Marcial frente ao comportamento do plagiador:
Mais adiante, em XII, 63, Marcial volta a fazer algumas comparações entre os bons e
os maus poetas:
125
Lúcio Estertínio Avito, poeta e amigo de Marcial, foi consul suffectus, em 92 .
126
Jerusalém, cidade que é sagrada para os judeus e cristãos, mais tarde se tornou sagrada também para os
muçulmanos.
127
Cidade da província romana da Hispânia Citerior ou Bética, no sul da Península Ibérica.
120
Note-se que o epigramista fala da produção de azeite de boa qualidade (vv.1-2) como o as
cidades de Córdoba, cidade à qual se dirige no epigrama, e Venafro, mas os produtos que os
habitantes de Ístria vendiam não eram fabricados na cidade, ali eles os revendiam, como se
fossem deles, em ânforas de fabricação local. Córdoba também era famosa pela produção de
lã, que possuía uma tonalidade toda especial (v.5). O poeta acusado de plágio provavelmente
é nascido em Córdoba e teria copiado os poemas de Marcial. Este não deixa por menos e diz
que o plagiador é um mau poeta (v. 13). O epigramista é taxativo ao indicar que, se alguém
quer copiar os seus escritos, que seja pelo menos um bom poeta. Marcial compara os poemas
do plagiador a um cego que não pode se valer da lei do “olho por olho”, assim o plagiador não
poderá ser punido, já que é um mau poeta. Ao final, tem-se a ideia de que, por se tratar de um
mau poeta mesmo, não vale a pena puni-lo.
128
Cidade de origem grega que ficava próxima ao delta do Danúbio.
129
Rio que banhava Tarento (atual Taranto), na Calábria (sul da Itália).
130
Provavelmente diz respeito a lex talionis, que consiste na reciprocidade do crime e da pena, o que pode ser
chamado de retaliação ou com a máxima: “olho por olho, dente por dente”.
121
VI – CONCLUSÃO
poderia ser concluída se houvesse um leitor douto e capaz. Deixando de lado a exaustiva
explicação de CONTE; BARCHIESI (2010), a imitatio – ecos alusivos/ arte alusiva– está
ligada à paixão e à memória. É certo que os autores antigos tinham um apego aos seus
antecessores, do contrário, não seria válido imitá-los e muito menos escrever um gênero que
não lhes era querido. Os estudiosos ainda apresentam um dado importante sobre o conceito: a
imitatio une o autor e o leitor, uma vez que o autor também já foi um leitor em algum
momento e, por ter lido uma obra literária e gostado dela, ele se lançou na escrita de uma obra
que poderia ser melhor do que a sua antecessora. Assim, para que o processo imitativo seja
reconhecido como tal e não como uma mera cópia ipsis litteris, é preciso que o escritor nutra
um desejo de superação do modelo escolhido, daí o nome aemulatio.
E partindo da definição de Kristeva para imitatio – intertextualidade –, os textos
apresentados de Marcial, na segunda parte do terceiro capítulo, são textos construídos dentro
de um mosaico de citações, em um movimento de absorção e transformação de outro texto.
Dito isto, é de conhecimento daqueles que estudam o gênero epigramático em Marcial, que
Catulo foi a grande influência na escrita do epigramista.
Apesar de não escrever exclusivamente o gênero epigramático, Catulo foi um dos
precursores das nuances que serão trabalhadas em Marcial. Este assimila o tom jovial, irônico,
picante e mordaz dos textos catulianos, a exceção é que Marcial trabalha com nomes fictícios
e Catulo ataca diretamente as pessoas retratadas. Também é de herança catuliana a variedade
temática encontrada nos escritos de Marcial, que teve como preferência escrever em dístico
elegíaco.
Comumente Marcial é conhecido como um poeta irônico e satírico, mas, por conta do
enorme leque temático, podem ser encontrados importantes ensinamentos filosóficos em seus
escritos. Em alguns momentos Marcial parece se apropriar dos ideais epicuristas para
aconselhar ao seu amigo Júlio Marcial a aproveitar mais a vida, pois esta passa depressa.
Marcial se apresenta como um conhecedor da temática do carpe diem horaciano, quando, no
epigrama I, 15, por exemplo, diz a seu amigo que não desperdice os melhores dias de sua
vida, mesmo que Júlio Marcial esteja perto de completar seus sessenta anos. O poeta pede que
seu amigo não adie mais as alegrias de viver. Então parece que Marcial lembra-se dos últimos
versos da Ode I, 11, de Horácio, quando este aconselha ao amigo que se agarre ao hoje: Non
est, crede mihi, sapientis dicere 'Viuam'/ sera nimis vita est crastina: vive hodie (I, 15, 11-12).
Ainda no terceiro capítulo, foi interessante apresentar outras nuances temáticas da obra
de Marcial. É de reconhecimento que o poeta se cansa da vida que leva na cidade e se cansa
também de suas obrigações como cliens. E em uma atitude desesperada, se exila da Urbe, em
123
plagiá-lo, precisa non emere librum, sed silentium debet (I, 66), “não comprar os livros, mas
comprar o silêncio”, porque não adianta plagiá-lo, inserir escritos próprios dentro dos livros
de Marcial: quae tua traducit manifesto furto (I, 53), os (maus) poemas do plagiário o
denunciarão.
Logo, o poeta sentencia At chartis nec furta nocent et saecula prosunt,/ Solaque non
norunt haec monumenta mori (X, 2). Quanto aos seus escritos, nem os furtos os destroem,
nem o passar dos séculos os consomem, e seus versos são os únicos monumentos capazes de
resistir à morte.
125
VII – BIBLIOGRAFIA
Dicionários utilizados:
MARTIAL. Epigrams Book Two. Edited with Introduction, Translation, and Commentary by
Craig A. Williams. Oxford: Oxford University Press, 2004, 303p.
MARTIAL. Epigrams. Vol. 1, 2, 3. (Loeb Classical Library) Edited and translations by D. R.
Sacleton Bailey. Londres: Harvard University Press, 1993, [? p.].
MARTIALIS. Epigrammata. Edited by Lindsay. W.M. Oxford: Oxford University Press,
1959, [? p.].
MARZIALE. Epigrammaton liber primus. Introduzione, Testo, Apparato critico e commento
a cura di Mario Citroni. Firenze: La Nuova Italia, 1975, 390p.
126
Referência Bibliográfica: