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A materialidade das sombras.

Ou, sobre a exposição Contraarquitetura, de


Juliano Morais

Um amigo de facebook, que na verdade eu nem conheço, chamado Rodrigo


Lucheta, escreveu em sua timeline que o inconsciente é uma construção, tal qual
a consciência. E não algo dado, que pode ser naturalizado, como a imagem de
um sótão ou um poço sem fundo. Não. Não é uma massa amorfa onde tudo se
mistura. O desconhecido é reconhecido no seu desconhecimento. Eu posso não
saber o nome de uma planta e nem para o que ela serve, mas sei que já a vi em
outro lugar e posso distingui-la das outras que eu também não conheço.

A sombra me traz indícios da passagem das coisas pelos lugares. Ela prolonga
os objetos no espaço. Ela se materializa como lugar que não é ocupado por
nada, além da ausência de luz. Mas ela não é só isso. Nela repousa também o
ao redor do mundo, que se conscientiza de sua presença graças ao poder do
rastro, da marca, do indicial que todo signo deseja pertencer. Através do indício
sabemos de um evento que não está ali, naquele momento, mas é possível saber
de sua existência.

Assim é um texto sobre outra coisa senão sobre o próprio texto. Assim é um
documento. Assim é uma foto: ela conserva a luz do que já morreu. E, no entanto,
ao apontar para uma situação passada, para um evento ocorrido, ela o refaz,
primeiro na memória e, em seguida, no próprio método usado para que aquela
sombra possa se prolongar a partir de um anteparo no espaço.

Alguns artistas são reconhecidos pela sua capacidade técnica, pela sua
obsessão pela manufatura, pela disciplina aplicada ao seu material de trabalho.
Não são poucos os esforçados. Eles passam anos fazendo a mesma coisa,
produzindo o mesmo trabalho, com variações mais ou menos previsíveis.
Evoluem à medida em que dominam suas ferramentas de trabalho. Fazem séries
intermináveis. O artesanato neles, é impecável. E, em muitos artistas, essa
obsessão pela técnica também reverbera, enquanto linguagem, na parte
conceitual de sua obra, tornando-a extremamente potente.
Mas há outros em que a técnica não interessa tanto. O artesanato existe mais
para estruturar as ideias. A obsessão, nesses caso, está mais relacionada às
ideias. O atelier deles é a própria cabeça, que mais se assemelha à uma usina
do que a uma oficina. Ficam anos sem produzir obras e, de repente, como que
do nada, nos assombram pela capacidade de articular matéria e pensamento.

Claro que esse esquematismo apenas serve para um discurso sobre polos
opostos que, em verdade, os artistas, de forma geral, estão poucos preocupados
em mantê-los, em sua rigidez maniqueísta. Duchamp era um habilidoso artesão.
Picasso simplesmente foi um dos pais do Cubismo, que deu origem a todos os
movimentos de vanguarda do século 20. Quando Volpi foi descoberto pelos
Concretistas, em São Paulo, ele era um dos pintores do grupo Santa Helena e
ponto final. Depois tornou-se um pintor de formas, planos, cores...

Além disso, este texto não se refere a nenhum artista modernista, mas a um
artista contemporâneo, cuja exposição findou-se a pouco no Museu do Centro
Cultural Oscar Niemeyer, em Goiânia. Juliano Morais, para mim, está mais para
o primeiro grupo citado do que o segundo. Esse texto é uma sombra que se
alonga a partir dos objetos de sua exposição Contraarquitetura.

Para começar, o título em questão não é uma negação da arquitetura. Mas –


como nos mostrou o artista pelas suas obras – cria uma tensão entre espaço e
lugar. Ao invés de negar a arquitetura, usa-a como suporte e estrutura para sua
obra. Suas peças ficam incomodadas com o lugar, porque querem mais do que
ele pode dar. Mas não por deficiência do museu, apenas porque o espaço é
provocado em sua afirmação arquitetônica.

Já em seus trabalhos de 1998, contando apenas com 18 anos, isso estava


colocado. A placa de ferro pintada de preto fosco colocada na parede da Casa
das Rosas, em São Paulo, criava como que um buraco negro que sugava toda
a matéria para dentro de seu imenso espaço vazio (imagem da obra). Ao invés
da matéria, a antimatéria. Só que essa antimatéria também não era uma não
matéria, mas uma pesada placa de metal presa na parede da sala onde seu
trabalho era exibido.

O que ele faz também não é um “não-objeto”, no sentido conceituado por Ferreira
Gullar, porque as peças de Juliano não se esgotam no objeto. Elas são um
“quasi-não-corpus”, fazendo oposição à ideia de Gullar de que a obra dos
Neoconcretistas brasileiros estaria entre a máquina e um ser vivo. As do artista,
eu diria, estão entre o tempo e o espaço. Elas habitam tanto nossa produção de
consciência quanto de inconsciência.

Talvez seja por isso que ele pode ousar fazer uma mostra tão cheia de trabalhos
desiguais e, no entanto, eles se completam. Figuração e abstração não são
fronteiras para sua produção. Nesta ocupação do Museu do CCON, coabitam
um cavalo de madeira com fios de cobre dançando no espaço. Uma chapa de
madeira recortada representa um líder diante das massas (ou eu achei que era
isso), apontando o dedo, em riste, como que indicando um caminho. O objeto
repousa ali, no centro da sala inferior do grande espaço do museu. À sua volta
apresentam-se dois vulcões de porcelana, um corrimão de escada que se torna
uma espécie de fita de moébius, além de outras peças, num jogo emaranhado
de signos.

Há uma dubiedade. Ela me parece ser proposital. Como se, para a obra existir,
ela necessariamente devesse passar pela imaginação do espectador,
completando seu sentido. Você se pergunta: “mas o que quer dizer um chão de
gramíneas tendo um óleo sujo jogado por cima delas?”. Juliano, me parece, não
está preocupado em denunciar a devastação da natureza. Sua referência é
outra. É um grande leitor de Lacan. É mais provável que a grama sugira forças
que se levantam do chão (do subconsciente?) desafiando o mundo subterrâneo,
enquanto o óleo pode ser aquilo que pesa sobre esta tentativa de lucidez
(procura por luz), chegando até ao interior da própria terra de onde germina o
vegetal.

Um trabalho, particularmente, que fala dessas “sombras” com as quais eu


comecei o presente texto, é aquele com muitos pedaços de carvão lapidados
como se fossem diamantes, soltos pelo chão. Não posso deixar de lembrar da
poeta paranaense Helena Kolody, que escreveu: “Do longo sono secreto/ na
entranha escura da terra/ o carbono acorda diamante”.

Como já disse, também, Juliano é um artista menos dado ao desenvolvimento


técnico do trabalho do que ao lado cerebral que a obra pode evocar. Não é um
artista de produção constante e intensa. Assim como outros – Mallarmé,
Mondrian, Augusto de Campos, Fernanda Gomes – para ele, menos pode ser
mais. Com o perdão da indiscrição, Juliano dá um chute de primeira e faz um
golaço. Toma para si o espaço do Museu do CCON desde sua fachada,
adicionando a ela um elemento preto que lembra um quisto, ou uma ferida
naquele enorme edifício modernista branco, de linhas curvas elegantes.

Mas aí, também, se mostram algumas questões em que podemos pensar tanto
na elaboração do objeto quanto as referências que Juliano usou na feitura de
sua exposição. Segundo o filósofo Jacques Rancière, a arte moderna não foi
feita por oposições e negações, mas sim como continuidade descontínua.
Quando nos apropriamos da arte de outros artistas o fazemos como uma
homenagem, ainda que, muitas vezes, em contraste ao que o outro está
mostrando ou dizendo. O compositor Belchior quando canta “Veloso, o sol não
é tão bonito pra quem vem do norte e vai viver na rua” ele o faz de um modo a
reverenciar a obra do artista baiano, Caetano Veloso, que compôs uma música
onde diz que “o sol é tão bonito, nas bancas de revista”.

Assim, aquele enorme “formigueiro” – tão comum em nossa paisagem do


cerrado – exposto como uma ferida na carne da arquitetura do mais notável
arquiteto do país, na fachada do museu, remete minha memória a um dos
trabalhos do artista austríaco Erwin Wurm – que colocou uma casa inclinada na
fachada do Museu de Arte da Fundação Stiftung Ludwig, em 2008, na mesma
posição da obra do artista goiano. Só que no caso da obra exposta no MON,
tanto a figuração quanto a abstração são possibilidades de leitura. O que é
aquilo? Aquilo pode não ser nada, também, além de ser o que é. Ou melhor, não
representa nada. Pode ser tanto um formigueiro, quanto uma cicatriz, quanto um
volume preto, de forma quase orgânica, que se destaca da geometria exata e
monumental do arquiteto modernista.

Um outro questionamento que continuo a me fazer é sobre os quadros


emoldurados e pendurados na parede, no andar de cima do museu. Por mais
que eles reflitam o que é a exposição em seu todo, parecem-me, em seu
conjunto, que esses trabalhos mais comentam a exposição do que a compõem.
Por mais que as soluções plásticas sejam pertinentes, como as sobreposições
de papel celofane, os rasgos na superfície das folhas de papel e as rasuras
deliberadas, a solução me lembra um desfile prêt-à-porter. Há pouca alternância
entre um e outro trabalho, como se, ao chegar a um resultado, esse fosse
repetido com o fim de se criar uma série. E não como um esforço para se chegar
a uma solução própria a eles, caso a caso. Voltar à parede me pareceu – e eu
posso estar enganado – uma representação literal da ideia proposta pelo título
da exposição. A arte e o pensamento contemporâneo – a partir do pós-
estruturalismo – propõe a individualização dos elementos dentro do conjunto,
criando relações entre eles, sem a preocupação de estabelecer unidade.

O mais importante, para mim, porém, nessa exposição, é o modo como Juliano
cria tensões entre forma e conteúdo. Se o neo-expressionismo dos anos 1980,
buscava fazer emergir o inconsciente para a consciência, com gestos
“espontâneos e naturais”, aqui as problematizações vão além. Não se trata de
fazer emergir o inconsciente para a consciência, penso eu, mas de usar a
inconsciência como material de produção artística e poética. Poderíamos, por
exemplo, aproximar a ideia do jorro com o gesto do gozo. Enquanto no primeiro
caso os artistas promoviam uma espécie de catarse com os materiais, no
segundo caso, os artistas levam em consideração os dispositivos onde operam
suas ações. Juliano mantém o jorro e até o exibe – como no caso dos 2 vulcões
de porcelana, do caminho de grama com graxa; do óleo acumulado em uma
peça de argila – mas o gozo é metafórico pois, assim como em “A noiva despida
pelos seus celibatários, mesmo”, mais conhecido como “O grande vidro” (1915-
1923), de Marcel Duchamp, os personagens da obra vivem seu moto contínuo,
girando eternamente a máquina/noiva, sem tocá-la.

Assim, não é de se estranhar certa estratégia surrealista nesse conjunto de obras


díspares apresentadas no MON, que vão da grama ao cobre. Da madeira
carbonizada ao som. Juliano é cioso do fato de que sua obra é gestada no
coração do Centro-oeste brasileiro, esse lugar onde o silêncio do cerrado e sua
interminável linha do horizonte tornam seus habitantes tanto “ouvintes do
silêncio”, quanto abertos a todo tipo de ficção e fabulação.

Assim, ao pedir a participação do espectador através da imaginação, a obra


impede que as forças baixas do conformismo e da classificação naturalizada dos
termos se sobreponham à inquietação e ao posicionamento constante do público
diante da obra. Se insisto, em meu texto, em atualizar um acontecimento
passado, não é porque ele tenha morrido, mas ao contrário, porque suas
sombras se estendem até agora sobre mim, tornando meu corpo pesado demais
para continuar contendo tanta gravidade.

Goiânia, 23/11/2017

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