You are on page 1of 15
Capitulo décimo terceiro Hans Georg Gadamer ea teoria da hermenéutica * Os intérpretes profissionais so os biblistas e 0s juristas, 05 problemas 0 criticos literarios e os epigrafistas. Contudo, nds todos inter- Ge uma pretamos quando ouvimos um discurso ou lemos uma pagina de teoria da um livro. E entao: o que significa interpretar um texto? E quando _hermenéutica podemos estar tranqililos sobre a adequagao de uma interpre- $1.1 tacdo nossa? A perguntas desse tipo responde a teoria da hermenéutica ou da interpreta- 0, cuja teoria encontra, em nossos dias, seu texto classico em Verdade e método é }960) do filésofo alemao Hans Georg Gadamer. * Enfrentamos um texto com 0 conjunto de expectativas ou pré-conceitos (Vor-urteile) que constituem nossa Vor-verstandnis ou pré-compreensio, E é em base a esta pré-compreensdo nossa que damos uma primeira interpretacao do texto; tal primeira interpretacéo do interpretacses texto nao é mais que conjetura nossa sobre amensagem ou con- & contvoles teido do texto, sobre aquilo que o texto diz; e 0 intérprete poe destas esta sua interpretacao ao crivo sobre o texto e sobre o contexto (0 _interpretagses contexto € qualquer informacao importante, apta a confirmar ou sobre o texto a enfraquecer a interpretacdo proposta), e se esse controle mostra ¢ sobre o que ha um choque entre nossa interpretacao e algum trecho do “ontexto texto ou do contexto, entdo devemos propor um esbogo posterior 5/26 de sentido, outra interpretasao a ser submetida, por sua vez, a0 10 do texto e do contexto. E se também esta segunda interpretacao resultar jadequada, experimentar-se-é uma terceira. E assim por diante, teoricamente ao infinito, ainda que de fato nos detenhamos naquela interpretagdo que, vez por ‘outra, nos aparecera como satisfatéria. E este, em poucas palavras, o circulo hermenéutico, o movimento do “com- preender”, o procedimento de qualquer atividade interpretativa nossa. * 0 produto nao ¢ 0 produtor. £ 0 autor de um texto é um elemento ocasional. Comefeito, depois de vindo ao mundo, um texto vive uma vida auténoma: produz seus efeitos. Assim, por exemplo, de uma teoria cientifica, com o tempo, se verso consequiéncias, erros, aplicacoes, desenvolvimentos, interpretagoes. Eclaroque ahistéria dos efeitos de um texto determina sempre mais plenamente seu significado. Disso resulta que quem interpre- 4 historia faum textoa distancia temporal donascimente dotexto tem pos- 2°! od sibilidades maiores de compreender mais plenamente seu sentido. 5 * 0s preconceitos que formam a pré-compreensao do intérprete séo fruto de elaboracdes do pasado; idéias e ideais s0-nos transmitidos pela tradic30. Quanto a tradigao, Gadamer: a) rejeita a atitude romantica feita de fé na autoridade; }) sustenta que a proposta iluminista de querer crivar todo e qualquer pre- conceito a luz da razdo é uma pretensao justa; 250 (0s iluministas erraram, mas (05 romanticos do tém razso 3 5ULt4 hy Origens e objeto da hermenéutica Ligada ao mbito da interpretagio dos textos sagrados, por um lado, e a0 campo da critica textual, por outro, a hermenéu- tica (ou teoria da interpretagao) tem longa historia. Sem falar das pistas identificaveis na antiguidade classica, e prescindindo até do mais breve aceno as concepcdes medievais dos varios “sentidos” que um texto sagrado possui, podemos dizer que a hermenéutica brota das controvérsias teoldgicas emergentes da Reforma e, pos- teriormente, se desenvolve tanto no campo da teologia como no ambito dos fldlogos, dos historiadores e juriseas, continuamente as voltas com questoes de interpretagio: 0 ue significa este texto sagrado? Qual foi a verdadeira intengao do escritor sagrado? Q que quer dizer esta ou aquela inscrigao? E justa ou equivocada a interpretagio usual deste ou daquele trecho? Como interpretar esta ou aquela norma juridica? Quando podemos estar seguros de que uma interpre- tagio qualquer € adequada ou nao? Pode haver interpretagao definitiva de um texto, ow a fungao hermenéutica é tarefa infinita? Essas s0 algumas das interrogagdes técni- as as quais a teoria da hermenéutica deve responder. ‘No romantismo, F. Schlegel ¢ F, Sch- leiermacher pretenderam dar & hermenéutica lugar de destaque na filosofia. Depois deles, W, Dilthey procurou estabelecer a herme- néutica como alicerce de todo o edificio das “cigncias do espirito” Para dizer a verdade, Dilthey con- cebia a hermenéutica nao Somente como Conjunto de questées técnicas, isto é, me- I. Estrutura da hermenéutica Terceira parte - Fenomenolegia, Existencialismo, Hermendutica todolégicas, mas também como perspectiva de natureza filosofica que servisse de base da consciéncia histOrica ¢ da historicidade do homem. Entretanto, foi Heidegger quem com- preendeu o estatuto filosofico das concep- goes de Dilthey, no sentido de que viu a hermenéutica ou “o compreender” nao tanto como instrumento 4 disposicao do homem, ¢ sim muito mais como estrutura constitutiva do Dasein, como uma dimensio intrinseca do homem.. O homem cresce sobre si mesmo, é um novelo de “experiéncias”. E cada nova experiéncia € uma experiéncia que nasce sobre o fundo das anteriores ¢ as reinterpreta why O ane 0 “circulo hermenéutico” Aluno de Heidegger, Hans Georg Gada- mer (1900-2002) — professor em Leipzig, depois em Frankfurt ¢, por fim, em Heidel- berg —, intérprete refinado ¢ arguto, so- bretudo da filosofia antiga, mas também de Hegel e dos historicistas, publicou em 1960 uma obra hoje considerada classica para a teoria da hermenéutica, Verdade e método, onde tanto as questes técnicas como as erspectivas filoséficas da hermenéutica jundem-se em um todo coerente. Gadamer parte da descrigao que Martin Heidegger, em Ser e tempo, faz do circulo hermenéutico: “O circulo nao deve ser degredado a circulo vitiosus e tampouco considerado inconveniente ineliminavel Nele se oculta uma possibilidade positiva do conhecer mais originério, possibilidade Capitulo décimo terceiro que s6 pode ser captada de modo genuino se a interpretagio compreende que sua funcio primeira, permanente e iltima & a de nao se deixar nunca impor pré-lisponibilidade, pré-vidéncias e pré-cognigdes do caso ou das opinides comuns, mas fazé-las emergir das proprias coisas, garantindo assim a cienti- ficidade do prdprio tema”. (IIHT) pBy © Procedimento hermenéutico como ato interpretative @ seu esquema de fundo Esta, comenta Gadamer, é uma descri- ¢do extremamente concisa do circulo her- menéutico. Mas nela j4 se entrevé com cla- Hans Georg Gadamer 2 teoria da hermenduticn, 251 reza o esquema de fundo do procedimento hermenéutico, ou seja, do ato interpretati- vo. Existem textos providos de sentido que, por seu turno, falam de coisas; 0 intérprete se aproxima dos textos nio com a mente semelhante a uma tabula rasa, mas com sua pré-compreensio (Vor-verstindnis), isto é, com seus pré-juizos | Vor-urteile) stias pré- suposigdes, suas expectativas; dado aquele texto e dada a pré-compreensiio do intérpre- te, este esboca um significado preliminar de tal texto, tendo-se esse esboco precisamente porque 6 texto é lido pelo intérprete com certas expectativas determinadas, que deri- vam de sua pré-compreensio. E 0 trabalho hermenéutico posterior consiste todo na elaboragao daquele projeto inicial, “que é revisto continuamente com base no resultado da penetragao ulterior do texto” ttico. O intérprete ¢ um individuo que no decorrer de’sua vida absorveu (da linguagem comum, das leituras, de conversas, do que ouviu de ‘outros, dos professores etc.) um patriménio cultural, talvez reelaborando-o aqui € ali, Este patriménio é aquilo que Gadamer chama de Vor-verstandnis ou pré- ‘compreensio; pré-compreensao entendida como tecido das idéias, pressuposicbes, teorias, mitos etc, tecido, portanto, de Vor-urteile ou pré-conceitos (entendendo ‘este Gitimo termo sem a conotagao depreciativa atribuida pelos iluministas). Pois bem, 0 intérprete coloca-se diante do texto com sua pré-compreensao e, “com base no sentido mais imediato que o texto Ihe exibe, ele esboca preliminarmente tum significado do todo”, ou seja, esboca uma primeira interpretacdo sua. Este projeto inicial, porém, pode ser revisto se ndo encontrar confirmac5o no texto e no contexto, isto é, caso se choque com alguma parte de texto ou de con- texto. Com efeito, “quem procura compreender esta exposto aos erros derivados de pré-suposicées que nao encontram confirmacao no objeto”. E se ¢ isso que ocorre, seré preciso entao propor outro projeto de sentido, que, por sua vez, serd criado sobre 0 texto e sobre o contexto. E assim por diante, uma vez que a tarefa hermenutica ¢ tarefa possivel e infinita. “Tarefa permanente da compreenséo 6 a elaboracdo € a articulacao de proje- tos corretos, adequados, os quais, como projetos, séo antecipagdes que podem ‘comprovar-se apenas em rela¢ao 20 objeto |... O que é que distingue as pré-su- posigdes inadequadas sendo 0 fato de que, desenvolvendo-se, estas se revelam inconsistentes?* ‘0 procedimento descrito é, exatamente, 0 circulo hermentutico: a compreensao | de um texto realiza-se propondo hipdteses sobre aquilo que o texto diz, sobre seu significado ou mensagem; hipéteses a serem colocadas no crivo sobre o texto ‘© 0 contexto; e se nossa interpretacao se choca com o texto ou o contexto, isto 6, $e for contradita por alguma parte do texto ou do context, devermos propor Outra; ¢ assim por diante, teoricamente ao infinito, mesmo que na pratica nos _ detenhamos, vez por outra, na interpretacdo que parece adequada, de acordo ‘com 0s fatos conhecidos.

You might also like