You are on page 1of 7

PROBLEMÁTICA DA DESERTIFICAÇÃO

E DA SAVANIZAÇÃO NO BRASIL
INTERTROPICAL

Aziz Nacib Ab’Sáber

1977. Problemática da desertificação e da A documentação disponível, para um relato minu-


savanização no Brasil intertropical. cioso sobre as feições de desertificação, ainda é muito limi-
São Paulo, IGEOG-USP, Coleção tada. Tanto no que se refere a processos de desertificação
Geomorfologia, 53:1- 19. antrópica, como sobretudo no que diz respeito a possíveis
ampliações da semiaridez, através de variações climáticas re-
centes e quase que imperceptíveis, pairam sérias dúvidas e
justificadas restrições.
Bibliografia No presente relato, entenderemos como processos
parciais de desertificação todos aqueles fatos pontuais ou
areolares suficientemente radicais para criar degradações
irreversíveis da paisagem e dos tecidos ecológicos naturais.
Nesse sentido, o território brasileiro, em seu conjunto, exibe
um dos mais impressionantes quadros de modificações eco-
lógicas sutis – às vezes irreversíveis – incidindo sobre quase
todos os seus grandes domínios paisagísticos.
Do ponto de vista climático, o território brasileiro
constitui-se numa das grandes áreas úmidas do mundo: 90%
do universo paisagístico do país está condicionado a climas
chuvosos tropicais e subtropicais, com precipitações médias
anuais sempre superiores a 1.000 mm. No interior do espaço
geográfico restante - os 10% correspondentes ao Nordeste
interior - ocorrem climas semiáridos subequatoriais e tro-
picais de exceção, com precipitações variando entre 280 e
700 mm em média, contrapondo-se a temperaturas médias
anuais muito altas, da ordem de 25-26°. Não fossem os altos
níveis térmicos a que estão sujeitas as terras nordestinas, o
quantum de precipitações seria suficiente para caracterizar
uma situação de climas tropicais subúmidos ou quando
muito semiáridos moderados. Entretanto, trata-se de legí-
timos ambientes semiáridos, com fortes deficiências hídricas
sazonárias nos rios e nos solos, e dramáticas irregularidades
de precipitações ao longo do espaço e do tempo. Nota-se, por
outro lado, que muito embora reduzida em relação ao con-
junto do território brasileiro, esta região quente e semiárida
estende-se por um espaço superior a 750.000 km, em sua
porção nuclear. Tal fato equivale a dizer que ela é superior
a três vezes ao espaço geográfico do Estado de São Paulo, o
que nos dá uma ideia de sua ordem de grandeza espacial.
Nossa área semiárida - o domínio das caatingas -
tem sido concebida como uma região semiárida de longa
permanência e prolongada adaptação de seus componentes

2
A Obra de Aziz Nacib Ab'Sáber

fitogeográficos nos ambientes secos. Isso equivale a mentáveis distúrbios ecológicos, através de mudanças
dizer — ao contrário do que nós mesmos julgávamos irreversíveis no suporte geoecológico. Daí porque não
de início (Ab’Sáber, 1956) — que o Nordeste seco teve se deve permitir grandes desmatamentos e sobretudo
condições semiáridas, mais fortes ou mais fracas, por efetuar a coalescência de pastagens nessa área sujeita a
um demorado espaço de tempo dentro do Quater- um tipo incontrolável de “savanização”.
nário. No entanto, três séculos de atividades agrárias
rústicas, centradas no pastoreio extensivo, e, algumas Degradação dos tecidos ecológicos e pontos de
décadas de ações deliberadas de intervenção antrópica, desertificação no interior do Nordeste seco
com acentuado crescimento demográfico paralelo,
terminaram por acrescentar feições de degradação Entre todos os domínios paisagísticos inter e
pontuais, de fácil reconhecimento nas paisagens serta- subtropicais do Brasil, o único a apresentar paisagens
nejas, sob a forma de ulceração dos tecidos ecológicos e ecologias peculiares às regiões semiáridas quentes é
regionais. Ainda uma vez, sem que tenham ocorrido o Nordeste seco. Nesta área, conhecida pelo sugestivo
mudanças climáticas recentes, processaram-se efe- nome de região ou domínio das caatingas (matas es-
tivos quadros locais ou sub-regionais de desertificação branquiçadas, em língua tupi-guarani), ocorrem de-
antrópica. Para eles voltaremos nossas vistas. pressões interplanálticas quentes e secas, mal servidas
A rigor, entre nós, as áreas e as faixas de tran- por chuvas tropicais. As precipitações regionais são
sição entre as regiões úmidas e as regiões secas do relativamente e muito irregulares no espaço, e, sobre-
Nordeste sofreram mais processos de degradação am- tudo, no tempo, comportando variações imprevisíveis
biental e “savanizaçao” em sentido abrangente do que de ano para ano.
a própria área nuclear das resistentes caatingas – eco- A incidência de anos secos, parciais ou totais, a
logicamente, resistentes caatingas. curto intervalo de tempo, e sem periodicidade regular,
Por todas essas razões, não basta efetuar obser- levou os primeiros observadores do espaço climático
vações sobre processos de desertificação, tendo apenas e ecológico regional a designar o conjunto espacial da
como área-laboratório o Nordeste seco. Do Mara- área sob o sugestivo nome de “Polígono das Secas”.
nhão e Sudeste da Amazônia até ao Rio Grande do Na realidade, o setor semiárido brasileiro é um dos
Sul podem ser encontrados pontos — e, até mesmo, diversos polígonos paisagísticos ecológicos do Brasil,
pequenas áreas — de ocorrência de fácies de desertifi- segundo o modelo espacial das áreas nucleares (ou core
cação antrópica, direta ou indiretamente ativados por áreas), conforme proposição feita por Ab’Sáber, desde
ações antrópicas predatórias. Torna-se, pois, obriga- há muitos anos. Esse núcleo de terras sujeitas a um
tório, sondar o comportamento dos diferentes padrões clima subequatorial e tropical semiárido é revestido
de paisagem e tecidos ecológicos — pertencentes aos por matas ralas, caducifólias, muito resistentes, adap-
próprios domínios morfoclimáticos e fitogeográficos tadas a um ambiente quente e seco, e dotado de fortes
mais úmidos do país — para se entender os diferentes deficiências hídricas. Condicionado a um magro ritmo
esquemas de degradação ambiental e a verdadeira “de- pluvial, descontínuo no espaço e no tempo, a região
sertificação” antrópica. Nas áreas úmidas não existem possui uma drenagem intermitente estacional, assim
perigos extensivos de desertificação, e nem tão pouco como solos típicos de regiões secas (vertissolos). No
ocorrem ameaças de modificações das condições cli- entanto, todas as suas bacias de drenagens, autóctones,
máticas gerais. No entanto, de há muito, já se vem no- são organizadas de tal modo que atingem sempre o
tando, devido a exploração econômica mal orientada, mar. Trata-se de um dos raros casos de grandes áreas
perigosíssimos quadros de degradação de paisagem e secas do mundo dotadas de drenagens abertas para
solos, incluindo modificações na ecofisiologia dos es- o mar, ou sejam, drenagens exorreicas intermitentes.
paços naturais e sutis modificações hidrológicas areo- Disso decorre uma limitação, altamente desejável, no
lares. Para não falar nos sérios casos de lesionamento que diz respeito à salinização dos solos. Efetivamente,
locais e sub-regionais das paisagens morfológicas e da o Nordeste seco se comporta como uma das áreas
epiderme das terras. secas menos salinizadas do mundo, razão pela qual
Na margem sul da Amazônia, na área das possui dimensões relativas para atividades agrárias, e
primeiras faixas florestais de matas pré-amazônicas para suportar um stock humano, de razoáveis propor-
e amazônicas tem sido observado uma fragilidade ções demográficas.
particular dos ecossistemas equatoriais úmidos bra- A despeito da rusticidade das condições semi-
sileiros. Eliminadas as florestas por grandes espaços, áridas predominantes, não há como reconhecer no
tem origem um quadro lamentável de matas secun- conjunto das depressões interplanálticas quentes e
dárias, dominado por cecrópias (embaúbas). Numa secas do Nordeste aquele conjunto de condições pe-
segunda fase de agressão, quando se fazem desmata- culiares aos desertos áridos, propriamente ditos. As
mentos por grandes espaços, com eliminação de flo- precipitações médias recebidas pela região giram, no
restas e matas secundárias (e tentativa de formação de conjunto, em torno de 400 a 600 mm anuais, fato que
pastos extensivos e monótonos), tem sido criados la- seria considerado, em outras faixas térmicas do globo,

3
como pertencentes ao subúmido, não fosse a des- altos de sais impediram completamente a penetração
compensação do balanço hídrico relacionado aos ele- das caatingas e dos carnaubais-galerias, favorecendo
vados índices térmicos regionais, que se situam entre apenas a instalação de vegetação rasteira halófila.
os mais quentes da terra (25 a 27° de temperaturas Ações antrópicas diversas têm acentuado o caráter
médias anuais). As fortes deficiências hídricas sazo- árido local de tais paisagens, reconhecidas como “sa-
nárias fazem com que o período úmido seja de tipo lões”, e, eventualmente, sob a sugestiva designação de
subúmido, e que o período seco seja quase totalmente “barro branco”. Principais áreas de ocorrência: várzeas
árido, implicando no corte da correnteza dos rios re- do Baixo Mossoró e Baixo Apodi, próximo ao mar, na
gionais, numa decomposição química bastante fraca, região onde se instalaram as salinas do Rio Grande
e no aprofundamento dos lençóis d’água subterrâneos do Norte (área de Grossos e Areia Branca). Espaços
superficiais, por um período de cinco a sete meses, abrangidos: algumas centenas de metros até alguns
cada ano. Somando-se a isso o caráter do período es- quilômetros quadrados de área, em manchas descon-
tacional das drenagens, obtém-se uma conjuntura pai- tínuas.
sagística, e, sobretudo, uma “fisiologia” de paisagem, 3. Vales e encostas secas. Setores locais de caa-
típica de regiões semiáridas ou subdesérticas. tingas esparsas em vales mal servidos por unidades,
Entretanto, no interior da área nuclear do do- ou encostas de escarpas ou serras situadas a sotavento.
mínio das caatingas ocorrem pontos, pequenas áreas Setores de relevos de cuestas com chão pedregoso e
e agrupamento de pontos filiados a processos locais baixo nível de alteração de rochas. Enclaves de caa-
de desertificação. Ainda que não possam ser mape- tingas no meio de áreas de cerrados, em encostas pai-
ados em termos de uma cartografia de pequena escala, sagisticamente muito degradadas. Áreas de ocorrência:
podem ser reconhecidos como modelos locais, na ca- centro-sul do Piauí, sudeste da escarpa do Ibiapaba,
tegoria de verdadeiros geotopos áridos. Em sua gênese, cuesta do Apodi. Espaços abrangidos: áreas de alguns
muito variável, tais pontos de desertificação incluem quilômetros a dezenas de quilômetros quadrados.
fatos ligados a uma predisposição da estrutura geo- 4. Lajedos, mares de pedra, patamares de
ecológica, na maior parte das vezes acentuadas por inselbergs, inselbergs e campos de inselbergs. Pequenas
ações antrópicas diretas ou indiretas. Nesse sentido, áreas com aridez rochosa definida, sublinhadas por
os principais casos são os que se seguem: degradações do entorno, em função de ações antró-
1. “Altos pelados”. Interflúvios, desnudos de rasas picas predatórias. Sertões de Paulo Afonso, Milagres,
colinas sertanejas, sujeitas a fortes dessolagens, com Quixadá, Patos e Arcoverde. Áreas de centenas de
remoção de mais de 80% da biomassa das caatingas, metros até quilômetros quadrados, popularmente de-
e redistribuição de fragmentos de quartzo sobre o nominadas “lajeiros”, lajedos ou “pedrejeiros”.
chão da paisagem. Os “altos” são desnudos, devido 5. Áreas de paleodunas quaternárias. Campo de
ao acentuado grau de remoção da cobertura vegetal dunas de Xique-Xique. Velhas dunas relacionadas
primária da região: daí a designação popular de “altos com processos eólicos restritos, no médio Vale do
pelados”. Em alguns dos “altos pelados”, mais típicos, São Francisco (região de Xique-Xique). Embrião de
predominam condições geológicas especiais, tal como campo de dunas, fixadas recentemente pela vegetação,
faixas de filitos sujeitos a um intemperismo químico e e sujeitas a uma espécie de redesertificação por ações
a uma pedogênese de escala “0” (zero). Os fragmentos antrópicas. Acentuação do fácies desértico pela ação
liberados dos diques de quartzo, que cortam os xistos predatória do gado de pequeno porte e pela ação de
argilosos, são esparramados nos altos e encostas das travessia (gado, vaqueiros e retirantes). As areias in-
colinas, devido à ação da gravidade, das enxurradas consolidadas desse velho campo de dunas quaternárias
estivais, e pela ausência de cobertura vegetal contínua. são susceptíveis de fácil remobilização, por influências
O pastoreio de pequenos animais (cabritos) — como diretas ou indiretas do homem. As dunas de Xique-
acontece em muitas outras áreas semiáridas — con- Xique constituem um documento importante de um
tribuiu para acentuar a desertificação local, nas áreas episódio paleoclimático moderno, criador de manchas
de “alto pelados”. Principais áreas de ocorrência: alto de aridez mais acentuadas do que aquela hoje exis-
Jaguaribe (fronteira do Ceará com a Paraíba), Vale tente nos sertões secos semiáridos. Daí porque deve-
do Vaza Barris (região de Canudos, Bendengó-Um- riam ser resguardadas, como amostra e documento de
buranas, no norte da Bahia). Espaços abrangidos: de uma paisagem do passado recente da região nordestina
alguns quilômetros a algumas dezenas de quilômetros interior. Dezenas de quilômetros de extensão, com
quadrados de área. facilidades de mapeamento em diversas escalas. Em
2. “Salões”. Planícies aluviais, de baixos vales, Sergipe, nas encostas da Serra de Itabaiana, ocorrem
em áreas onde a semiaridês chega até à costa (como pequenas dunas interiores, com areias inconsolidadas,
é exemplo típico o litoral do Rio Grande do Norte). também muito susceptíveis de degradação por ações
Zonas de forte incidência de salinização local em antrópicas, mensuráveis nas escalas métricas e deca-
áreas de planícies de fundo de estuários colmatados. métricas. Tal como as de Xique-Xique, constituem
Áreas de várzeas salinas, onde os teores relativamente casos de estudos, para avaliação de condições paleo-

4
A Obra de Aziz Nacib Ab'Sáber

climáticas mais secas do que as atuais. Feições de desertificação antrópica do domínio dos
6. Áreas de topografias ruiniformes e cornijas ro- cerrados
chosas desnudas, com aridez rochosa característica. Topo-
grafias ruiniformes, às vezes espetaculares, como é o Os conhecimentos sobre processos de deserti-
caso das “Sete Cidades de Piracuruca”, no nordeste ficação pontuais ou areolares no interior do domínio
do Piauí, e, dos afloramentos rochosos talhados em morfoclimático e fitogeográfico dos cerrados são
arenitos, relacionados à Formação Cabeças (Devoniano muito escassos e controvertidos. Em nosso modo de
Médio), situadas à frente ou na base de morros teste- entender, salvo os casos de pontos de lesionamento de
munhos e escarpas estruturais, mantidas por arenitos. paisagens por efeito de exploração mineral, os fácies
Áreas de alguns quilômetros quadrados até algumas de desertificação antrópica são praticamente nulos no
centenas de metros de extensão. Casos de aridez ro- domínio dos cerrados. A grande resistência e o alto
chosa com pouco ou nenhuma interferência antró- grau de adaptação da vegetação regional às condições
pica. ecológicas têm possibilitado uma reversão habitual da
7. Áreas de revolvimento anômalo da estrutura flora, após desmatamentos para pastagens e eventuais
superficial da paisagem. Colinas sertanejas, superfi- culturas. Não sabemos, é certo, o que poderá acon-
cialmente degradadas, com exposição de cabeços tecer com aquelas áreas atualmente ocupadas pela
rochosos subsuperficiais e remoção parcial dos solos silvicultura extensiva ou pela rizicultura em expansão.
rasos. Pequenas extensões de terras, transformadas A experiência geral, digna do maior crédito, é a de
em um tipo regional de “bad-lands”, estabelecidas em que há retorno de cerrados onde houve cerradões des-
faixas de ectinita-xistos, no interior das depressões in- matados, assim como onde ocorrem pastos sujos, em
terplanáltica regionais. Solos revolvidos por um ma- abandono. Nesse sentido, pensamos que os cerrados
nejo inadequado em áreas predispostas a uma forte se comportam como a vegetação mais resistente e na-
erodibilidade da arquitetura superficial na paisagem. turalmente reconstrutível do país, sobretudo no que
Fácies particular de terras retalhadas – um bad-land diz respeito à sua área de ocorrência. O reconheci-
nordestino – não relacionado com ravinamentos de mento dessa preliminar não implica em dizer que o
tipo tradicional. Protótipo localizado nos arredores planejamento regional da área possa partir apenas de
de Sertânia (Pernambuco), com algumas centenas de uma premissa tão genérica. Pelo contrário, a região dos
metros até quilômetros quadrados de área. cerrados é susceptível a todos os tipos de degradação
8. Malhadas ou chão pedregosos. Diferentes e lesionamento de paisagens conhecidos nas regiões
tipos de chão pedregosos, oriundos da liberação de tropicais úmidas do Brasil.
fragmentos de quartzo a partir de cabeços de diques Nosso conhecimento de campo, na área dos
ou veios, ou a partir da desagregação de antigos cas- cerrados, permite-nos citar alguns poucos casos de
calheiros de as mais diferentes origens. A expressão pontos de desertificação e savanização local ou sub-
malhada, utilizada na Bahia para designar as manchas regional restritas, no interior desse resistente e arcaico
de maior pedregosidade das colinas sertanejas, tem domínio ecológico.
um valor descritivo e pragmático. Procura indicar, a 1. Morrotes semidesnudos de vegetação, com
um tempo, o caráter pontilhado das ocorrências de chão pedregosos oriundos de redistribuição de seixos
fragmentos ou seixos esparsos, assim como a sua con- de antigas cascalheiras desagregadas. Áreas de cerra-
dição de área imprestável para atividades agrárias tra- dinhos “esparsos” e descontínuos, oriundos da própria
dicionais. Até certo ponto de vista, a região dos “altos degradação dos tecidos ecológicos, em nível local
pelados”, do extremo norte da Bahia (área de Umbu- (áreas de chapadões dissecados entre Anápolis e Bra-
ranas-Bendegó), poderia ser considerada o maior setor sília). Ocorrências em faixas pequenas de algumas
de ocorrência de “malhadas”, já que ali elas atingem centenas até quilômetros de extensão.
algumas dezenas de quilômetros quadrados de área. 2. Cerrados ralos e campestres, situados em inter-
Existem, entretanto, numerosos casos de malhadas no flúvios mantidos por espessas crostas de laterita. Lo-
Ceará, em Pernambuco e Paraíba. cais sujeitos as limitações ecológicas primárias, devido
9. Áreas degradadas por raspagem ou emprés- à presença de velhas crostas de lateritas. Em alguns
timos de terra. Faixas de forte degradação local de setores, após uma espécie de “deslaterização” natural
horizontes superficiais dos solos, que favorecem a ex- recente, o manejo inadequado de passagens reacen-
pansão e concentração linear das cactáceas, à margem tuou a degradação dos cerrados (tal como acontece
dos caminhos e rodovias, em alguns tipos de caatinga. nos chapadões de topo plano, mantidos por grossas
Trata-se de uma espécie de degradação linear, predo- crostas de laterita, na região de Anápolis).
minantemente viária, relacionada com a raspagem de 3. Paleoinselbergs, vinculados ao pediplano cuia-
solos e os empréstimos de terra para construção de bano, atualmente dotados de chão pedregoso grosseiro,
aterros e barragens. É muito significativa a rapidez sob a forma de cabeços rochosos e lascas de rochas
com que as cactáceas invadem preferencialmente estas quartzírticas, e vegetação de cerrados degradados.
faixas de lesionamento dos solos das caatingas. 4. Campestres inférteis, sob a forma de campos

5
limpos tipo “savana”, existentes no reverso das altas tores dos morros, a partir sobretudo da introdução
cuestas do Sudoeste de Goiás (área dos altiplanos de da cafeicultura, que aí se iniciou por volta de 1800-
Rio Verde e Jataí, no Sudoeste de Goiás). 1830, quebrou-se a funcionalidade do ecossistema
5. Campestres dos altos chapadões quartzíticos regional, em numerosos pontos e subáreas. Inicial-
e de encostas de cristas, com ou sem aplainações de mente o café foi uma cultura eminentemente de ver-
cimeira, no centro-sul de Goiás (e arredores de Bra- tentes de morros. O sistema inadequado de plantar os
sília). cafeeiros de baixo a alto, nas encostas arredondadas
6. Cerrados ralos das altas encostas subúmidas dos morros, através de fileiras sucessivas, separadas
da Chapada do Araripe, em áreas de cabeceiras inter- entre si por carreadores para facilitar o trabalho dos
mitentes de drenagem. muares de serviço — modo tradicional de transportar
7. Pequenas áreas de cerrados naturalmente de- os grãos colhidos — facilitou ao máximo a ação das
gradados, dos baixos chapadões cuestiformes do águas pluviais, ao longo das vertentes.
Centro do Piauí, dotados de chão pedregoso. De certa forma, criou-se nas vertentes dos
8. Manchas de cerrados com chão pedregoso — morros uma rede de sulcos suficiente para concentrar
incluindo seixos retrabalhados — dos remanescentes diferencialmente os lençóis d’água pluviais. Com a
do pediplano cuiabano, no Oeste Mato-Grossense (a progressiva decadência dos cafezais de morros, num
noroeste de Cuiabá). intervalo de tempo de 50 a 80 anos, após o início das
A despeito dessas ocorrências de pontos e man- culturas, processaram-se numerosos ravinamentos nas
chas de degradação dos tecidos ecológicos das áreas de ruas internas dos cafezais. Ainda que percentualmente
cerrados, não se pode avalizar a ideia de que toda a faixa a grande maioria dos sulcos fosse de tipo contido, em
de formações abertas, que se inicia na área de caatingas um ou outro caso, de espaço a espaço, foram estabe-
e se estende para sudoeste até o domínio dos cerrados, lecidas ravinas profundas e lesionantes. Nem todas as
esteja sofrendo de processos generalizados de “deser- rochas decompostas que constituíam os morros, e nem
tificação”. Além do evidente exagero que fomentou tal todas as estruturas superficiais de paisagens, apresen-
ideia, existe um defeito de visualização, relacionado taram condições similares para o desenvolvimento de
à falta de consideração do caráter sazonário da vida ravinas ativas. As grandes boçorocas existentes nos
vegetal do domínio dos cerrados. Há uma época em arredores de Vassouras e Barra Mansa, no Estado do
que as caatingas estão no “verde”; com muito mais Rio de Janeiro, são testemunhas dessa ação exagera-
razão – ainda que por processos de fisiologia vegetal damente ativas dos lençóis d’água concentrados.
diversos – os cerrados têm o seu próprio período de
enverdecimento generalizado. A ideia de um domínio Considerações finais
do cerrado em processo generalizado de desertificação
– em prolongamento à semiaridez das caatingas – é A verdadeira degradação da natureza tropical
um esforço de generalização inconsistente. é de difícil avaliação direta. Ela não pode ser medida
apenas pelos casos locais de lesionamentos ou des-
Lesionamentos e ravinamentos selvagens no figurações berrantes. Pelo contrário, os mais sérios
domínio dos morros processos de degradação das condições naturais, via
de regra, são bastante camuflados e sutis. Considera-
No domínio dos “mares de morros” e paisagens se uma violentação efetiva das condições naturais,
correlacionadas, do Sudeste e Centro-Sul do país, por ações antrópicas, aquela que resulta em uma rá-
registraram-se os maiores problemas de erosão dos pida e irreversível modificação dos tecidos ecológicos,
solos e lesionamento da paisagem de todo o Brasil. a nível regional.
Muitos fatos respondem por esta fragilidade No Brasil, um pouco por toda a parte — ainda
do suporte geoecológico regional: o caráter rugoso e que extremamente ameaçadas pela intervenção hu-
mamelonizado da topografia dos morros, a profunda mana — sobre-existem paisagens naturais remanes-
e quase universal decomposição das rochas cristalinas centes, suficientes para que se possa avaliar o grau e a
(granitos, gnaisses, xistos), e, sobretudo, a existência de intensidade das modificações fisiográficas e ecológicas
uma cobertura vegetal primária, densa e contínua. sofridas pelas grandes áreas extensivamente devas-
Um tal quadro paisagístico, sujeito a uma evo- tadas. Temos padrões de medida para avaliar, razoa-
lução integrada complexa, comportou sempre um velmente, o teor das modificações introduzidas pelas
paradoxo: tratava de um quadro natural típico de ações antrópicas não racionais.
biostasia, e, entrementes, permanentemente sujeito No cinturão intertropical do globo, todos os
às ameaças de uma resistasia antrópica. Mais do que processos de degradação que ultrapassam o limiar da
qualquer outro domínio morfoclimático e fitogeográ- irreversibilidade podem ser considerados violentos e
fico, esta foi a área menos resistente às ações antró- irracionais. E, todos eles, iniciam-se por desmanta-
picas predatórias, imediatistas e pouco racionais. mentos extensivos, debaixo de modelos geométricos
Removida a cobertura vegetal de grandes se- e predatórios.

6
A Obra de Aziz Nacib Ab'Sáber

Em todos os casos, as degradações mais graves apresentam lesionamentos a olhos vistos na paisagem,
são exatamente aquelas que atingem à própria fun- destacam-se os morros da área de Vassouras-Barra
cionalidade dos ecossistemas regionais, determinando Mansa-Volta Redonda, as colinas e baixos morros das
processos de aguda desintegração das condições eco- faixas de terrenos xistosos e calcáreas do planalto do
lógicas: erosão laminar excessiva, desperenização dos Alto Rio Grande, entre Lavras, São João del Rey e Ti-
mananciais, eliminação dos horizontes superficiais radentes (Minas Gerais), e o extremo Norte-Noroeste
dos solos, dessoalagens, ravinamentos, e, por fim, reta- do Paraná, na região onde predominam formações
lhamentos de terras. sedimentares areníticas, conhecidas como arenito
No Sul da Amazônia, na faixa de contato entre Caiuá.
a Hyloea e as matas pré-amazônicas — sem qualquer Não caberia aqui fazer considerações sobre o
sinal de violência ou lesionamento visível — tem estado de degradação das regiões periurbanas metro-
ocorrido uma efetiva desperenização dos mananciais politanas do Brasil de Sudeste. A complexidade dos
e uma savanização, até o nível do irreversível. Nesse problemas ecológicos e fisiográficos, oriundos das in-
sentido, ali, muito mais do que em setores do domínio terferências da urbanização intensiva e extensiva, des-
dos cerrados, grandes áreas tem sido "violentadas" em lanchada pela industrialização, exigiria um tratamento
sua ecofisiologia (a partir de uns quinze quilômetros em outras escalas, obrigando a numerosos enfoques
ao norte de Imperatriz, tendo por eixo a Belém-Bra- particulares. E, isto, escaparia aos limites e objetivos
sília). do tema a que nos propusemos.
Por todas essas razões, os esforços de planeja- As principais formas rotineiras de uso dos
mento regional, a nível do real, devem ser dirigidos solos no Brasil têm sua origem nos sistemas agrí-
para a preservação ao máximo da própria fisiologia da colas implantados no espaço geográfico brasileiro,
paisagem. Somente deveriam ser aprovados projetos nos séculos XVI e XVII: agricultura de plantações
de empresas agropecuárias que tivessem a garantia tropicais, com base no escravismo, e agricultura iti-
básica de boas diretrizes em termos de uma organi- nerante ancilar, extravasada para pequenos grupos de
zação interna racional dos espaços a serem compro- roceiros caboclos e escravos foragidos. Desde cedo,
metidos por desmantamentos. Para tanto, será neces- grandes e pequenos proprietários de terras se viram
sário, sempre, uma criteriosa seleção de áreas para a às voltas com o dilema fundamental das regiões tro-
eliminação parcial e contida das coberturas vegetais, picais úmidas florestadas: para obter espaços cultivá-
evitando-se sobretudo interferir nas cabeceiras dos veis era necessário suprimir tratos, cada vez maiores,
mananciais, nas encostas de declividade acentuada, da cobertura vegetal primária. Derrubadas e quei-
nos setores corrugados da topografia, e nos ressaltos madas, nas vertentes dos morros baixos, planícies e
do baixo relevo regional, entre outras medidas (em se terraços da zona da mata nordestina, constituíram o
considerando especificamente o caso da Amazônia). primeiro modelo de obtenção de espaços agrícolas,
Cada área e cada gleba tem os seus próprios pro- no entremeio da natureza tropical brasileira. Entre-
blemas de preservação e manejo racional do espaço. mentes, temos provas de que esse início de utilização
Razão porque cada caso é um caso, do ponto de vista dos solos tropicais brasileiros foi bastante comedido,
da organização agrária e proteção dos tecidos ecoló- não representando, a rigor, uma depredação extensiva
gicos. Nesse sentido, é inútil, para não dizer crimi- e irreversível, válida para toda a zona da mata. Para-
noso, copiar receitas empíricas ou encontrar modelos doxalmente, o saldo de atividades, ligado ao sistema
de tipo polivalente, para explorar o espaço, sem o risco colonial, foi menos predatório do que as empreitadas
de degradação. das gerações responsáveis por atividades agrárias nos
As áreas mais atingidas pelos processos de de- séculos XIX, e, sobretudo no século XX.
gradação da paisagem natural, em consequência de Julgamos que, comparado com as áreas utilizadas
desmatamentos excessivos, são aquelas pertencentes no passado, o comprometimento dos espaços natu-
ao domínio dos "mares de morros", na área tropical rais, por atividades agrárias extensivas, tem sido muito
atlântica do Brasil Sudeste: Rio de Janeiro, Espírito mais grave e radical, e, além de tudo, injustificável. Os
Santo, Minas Gerais e São Paulo. Mais recentemente, recursos materiais para efetuar derrubadas, queimadas
por razões ecológicas diferentes, tem havido uma forte e desfolhamentos, crescem com o tempo, enquanto
e perigosamente rápida degradação das condições na- que o respeito e a compreensão pelos fatos ligados à
turais, na faixa ecológica crítica das margens da Ama- funcionalidade dos sistemas ecológicos continua pre-
zônia Oriental, entre o Sul do Pará e o W-SW do dominantemente na estaca "0". No século XIX, por
Maranhão. desconhecimento das aptidões dos diferentes padrões
Em diversos outros subsetores do Brasil de Su- de paisagem e ambientes, aplicaram-se, em áreas de
deste, ocorrem feições mais radicais de depredação relevo e solos muito diferentes, processos indiferen-
de solos e da natureza, devido a questões especiais, ciados e rotineiros de preparo da terra, acompanhados
ligadas à estrutura superficial da paisagem e à fragili- de devastação de áreas críticas para a manutenção da
dade diferencial dos solos. Entre as muitas áreas que funcionalidade das condições naturais.

7
Daí porque alguns de nós pensamos que, se al- preparadas para um planejamento agrícola e regional
gumas gerações de empresários agrícolas não têm tido integrados, e dotadas de mais espírito e técnicas racio-
capacidade para tratar melhor a natureza e bem ma- nais de utilização do solo.
nejar os espaços agrícolas, seria de todo conveniente De qualquer forma, todas as melhores ca-
proibir a repetição de uso de modelos duvidosos e beças da ciência brasileira, voltadas para as sé-
inseguros, para com áreas dotadas de fortes limita- rias questões do uso nacional do espaço total, são
ções ecológicas para atividades agrícolas e agrárias, unânimes em exigir um melhor tratamento das
tal como é o caso da Amazônia, tomada em relação variáveis ecológicas na organização e ordenação espa-
à sua área nuclear. Isto, até que surjam gerações mais ciais, em todas as escalas.

You might also like