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Resumo: Interessado pelas manifestações da cultura oral, Paul Zumthor percorreu um caminho teórico,
situado no recorte temporal que abrange a Idade Média de onde surgem as reflexões sobre produção
trovadoresca. No que diz respeito, ao seu interesse pela poesia medieval daquele período, se ateve aos
estudos historiográficos no intuito de remontar às diferentes manifestações culturais no contexto da
sociedade antiga. Daí em diante, a sua reflexão se dirige aos novos fenômenos da cultura até meados
do século XX, cenário onde estuda processos de comunicação em diferentes instâncias. Entre os
variados conceitos zumthorianos, dois deles, de forma interdependente, se ligam as mais variadas
formas de transmissão oral por vias da performance e da recepção. O primeiro conceito se volta para a
relação entre voz e corpo, o segundo, corresponde às reações do ouvinte/leitor em situação de um
narrador/contador. Nesse percurso, todo gesto performático culmina na receptividade de outrem, assim,
narrador e recebedor vivificam o texto oral no sentido de atualizar processos narrativos no presente.
Todavia, refletir sobre a interdependência de ambos os conceitos – performance e recepção – no
espaço oral é o principal interesse do estudo aqui proposto.
1 Introdução
A ideia de performance sempre esteve no centro da teoria do texto poético oral
cunhada e difundida por Zumthor. Resulta daí, um interesse particular por oralidades
diversas em diferentes espaços/tempos de que vem se ocupando, por sua vez, os novos
pesquisadores da chamada literatura oral. Vista desse modo, a performance tornou-se, ao
longo dos tempos, importante fenômeno de comunicação em toda e qualquer manifestação
de linguagem, seja ela oral ou escrita.
A performance está para narrador da mesma forma que a voz está para o “ouvinte
cúmplice”1 ao passo que, a narrativa oral em presença, não se desvencilha do corpo no ato
1
A presente expressão encontra-se na abertura do capítulo 11 – A performance – da obra A letra e a voz
(1993), de Zumthor.
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SEPesq – 20 a 24 de outubro de 2014
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de sua transmissão. A voz está no corpo e o corpo está voz, assim dirá Zumthor (2005, p.
89): “A voz emana do corpo, mas sem corpo a voz não é nada”. Nessa permuta, voz e corpo
vivem juntos. O corpo é o condutor vivo e voraz onde se inscrevem todos os movimentos,
cores, gestos, e sensações de toda narrativa. O sopro de vida das águas primordiais vibra
no corpo através de palavras. No corpo se ouve a voz de todas manifestações e extensões
do plano material e imaterial.
Quanto à presença, não somente a voz, mas o corpo inteiro está lá, na
performance.2 O corpo, por sua própria materialidade, socializa a performance, de
forma fundamental [...] A performance é uma realização poética plena: as palavras
nela são tomadas num único conjunto gestual, sonoro, circunstancial tão coerente
(em princípio) que, mesmo se distinguem mal palavras e frases, esse conjunto como
tal sentido (ZUMTHOR, 2005, p. 86-7).
2
Destaque no autor.
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1. comunicação (portanto produção e recepção) original (geralmente fora do alcance de nosso olhar),
2. comunicação mediatizada I (produção e recepção do ou dos manuscritos), [espaço cronológico,
geralmente muitos séculos, no curso dos quais pode intervir um número indeterminado de
comunicações sócio-historicamente diferentes dos números 1, 2, 3 e 4],
3. comunicação mediatizada II, (produzida pelo erudito, recebida por uma clientela especializada (fase
típica do ensino),
4. comunicação colocada sob a forma consumível hoje (tendo em vista uma recepção por parte de
todo indivíduo interessado).
Nesse percurso, o autor instaura a partir de suas pesquisas, uma forma de romper
com o antigo modelo da comunicação. Esse antigo molde, a seu ver, culmina na
“contracena” do ouvinte no chão da performance: “batizava-se o leitor como o abstrato” ou
mero “destinatário da tradição semiológica” (ZUMTHOR, 2000, p. 22).
A partir de Performance, recepção, leitura, encontramos um novo modelo de
circulação da literatura onde, importa para esse processo, não só a figura do autor, mas a
do leitor responsável por atualizar os textos intensificando os sistemas literários. Não
podemos esquecer que essa prerrogativa também se liga aos estudos da corrente de crítica
alemã chamada Estética da Recepção. Para os estudos da Estética da recepção, no
entender do mesmo Zumthor, a obra La subersion De discours rituel (1985), de Antonio
Gómez-Moriana, foi fundamental para dar continuidade a formulação teórica da corrente de
crítica alemã. Como síntese do pensamento estabelecido por este último foi que se
ingressou às teorias do campo da literatura as quatro instâncias propostas por Gómez-
Moriana: “contexto, autor, texto e leitor. Assim profere Zumthor (2000, p. 27):
admitamos, como maior parte dos autores, que um texto só existe, verdadeiramente,
na medida em que há leitores (pelo menos potenciais) aos quais tende a deixar
alguma iniciativa interpretativa; tendência crescente, na medida em que diminui a
função informativa ou imperativa do texto em causa.
Por outro lado, proposto o modelo a ser seguido pela corrente alemã, Zumthor nos
chama a atenção para a severidade da proposta: “essa operação comportaria o perigo de
nos conduzir ao indivíduo, por via dedutiva, e de apagar aquilo que justamente o torna
indivíduo”. (ZUMTHOR, 2000, p. 27-8).
Nessa perspectiva, o teórico propõe um movimento inverso que objetiva
empiricamente observar os pontos iniciais da percepção sensorial do texto literário em
busca da “natureza do poético”. Adiante, o estudioso procura uma melhor definição para o
termo performance e interroga-se sobre “o papel do corpo na leitura e na percepção:
ao contato saboroso dos textos que amo, ele vibra em mim, uma presença que
chega à opressão. O corpo é o peso sentido na experiência que faço dos textos. Meu
corpo é materialização daquilo que me é próprio, realidade vivida e que determina
minha relação com o mundo. Dotado de uma significação incomparável, ele existe à
imagem de meu ser: é ele que eu vivo, possuo e sou, para o melhor e para o pior.
Conjunto de tecidos e de órgãos, suporte da vida psíquica, sofrendo também as
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O autor chama a atenção para as “transmissões orais da poesia” em que corpo e voz
formam o par indissociável: “O tempo da poesia oral é, por assim dizer, corporalizado. É um
tempo vivido no corpo”. (ZUMTHOR, 2005, p. 89).
De certo, é verdade que existe a magia de uma linguagem que se dá no plano de toda
performance, uma relação harmônica e sedutora da voz que enreda e envolve o ouvinte3.
Em princípio, a formulação do termo performance parece está ligada as primeiras
passagens do oral, ou seja, as primeiras experiências sensoriais e lúdicas da infância. Em
3
Nos acercaremos termo “ouvinte” porque este parece mais apropriado uma vez que estamos tratando da
figura do ouvinte nos processos de transmissões orais.
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torno das ideias do ato perfomártico, Zumthor comenta um fato marcante em sua história de
vida, recorre a esse acontecimento para explicar como e quando passou a perceber a
performance como sinônimo de poética instaurada pela/na voz.
Ao recobrar as suas memórias de infância na cidade de Paris, Zumthor recorda dos
cantores de rua daqueles tempos. Aliás, foi ainda na infância que surgiram os primeiros
sinais de seu profundo interesse pelas manifestações orais. As expressões de seu tempo
ficariam marcadas em seu corpo, e mais tarde, se imprimiriam na gênese de suas principais
reflexões teóricas. Desde criança, reconhece todas as vibrações em seu corpo provocadas
pelo som de canções entoadas nas ruas e becos parisienses. O menino de ouvidos
aguçados a tudo ouvia com muita atenção – o amontoado de imagens, cores, ritmos,
movimentos e vozes estimulavam-lhe as mais variadas experiências sinestésicas.
Estimulado e seduzido pelas imagens de seu tempo, coleciona as primeiras letras
impressas em revistas e papeis avulsos das canções ouvidas. Com o tempo, sentiu a
necessidade de ouvir as velhas canções entoadas, mas o tempo é outro, o da velocidade
que comanda a grande metrópole parisiense e os cantos não estão mais ali, entoados da
mesma forma:
Era a canção. Ocorreu-me comprar o texto. Lê-lo não suscitava nada. Aconteceu-me
cantar de melodia a melodia. A ilusão era um pouco mais forte, mas não bastava
verdadeiramente. O que eu tinha então percebido, sem ter a possibilidade intelectual
de analisar era, no sentido pleno da palavra, uma “forma”: não fixa nem estável, uma
forma-força, um dinamismo formalizado; uma forma finalizadora (ZUMTHOR, 2000,
p. 33).
As questões de ordem estética não podem ser apreendidas unicamente pelo aspecto
formal, como muitas vezes se faz na literatura escrita. A forma de narrar é, por
excelência artesanal. E isso não quer dizer que a palavra esteja totalmente despida
de uma estética, ao contrário, aqui a apreensão do belo torna-se mais facilmente
compreendida pela transmissão de saberes e de coisas simples do dia-a-dia
(FERNANDES, 2002, p. 15).
2 Conclusão
Como foi visto, procuramos neste trabalho desenvolver um estudo acerca do conceito
de performance à luz da teoria de Zumthor. Para tanto, elaboramos um diálogo com as
principais obras onde se encontram tais conceituações, buscando em muitos momentos,
tecer um diálogo em tons de respostas entre as obras, pois em sua dinâmica interna, toda a
teoria zumthoriana conversa entre sim, e nesse sentido, não encontramos, em suas
formulações, ideias contraditórias. Em muitos momentos, e isso se mostra evidente,
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Referências
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. Trad. de Amálio Pinheiro; Jerusa Pires Ferreira. São
Paulo: Companhia das Letras, 1993.
______. Tradição e esquecimento. Trad. de Jerusa Pires Ferreira; Suely Fenerich. São
Paulo: Hucitec, 1997.
______. Performance, recepção, leitura. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
______. Escritura e Nomadismo: Entrevistas e Ensaios. Trad. Jerusa Pires Ferreira; Sonia
Queiroz. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.
______. Falando de Idade Média. Trad. Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Perspectiva,
2009.
______. Introdução à poesia oral. Trad. de Jerusa Pires Ferreira (et all). Belo Horizonte:
Editora: UFMG, 2010.
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