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JOSÉ DE ALENCAR1
Valeria De Marco*
Como a grande maioria dos narradores do Roman- questão. Ora a História é vista como fonte inspiradora dos
tismo, José de Alencar (1) explorou o romance histórico e romances; ora estes dão a ela uma feição poética. Tendo em
deu a essa forma particular do gênero uma função extre- conta a especificidade do gênero literário, alguns atribuem
mamente relevante para a formação da literatura brasileira. ao nosso autor o mérito de ter realizado com êxito o roman-
Para dimensionar o papel fundador de sua obra na nossa ce histórico; outros julgam inadequado aplicar este conceito
tradição literária é preciso compreendê-la na trajetória deste a qualquer obra de Alencar.
intelectual cujos traços singulares podem contribuir para es- É importante considerar que este ângulo permanente
boçar um modelo de pensamento conservador tão marcante na crítica foi inaugurado pelo olhar do próprio autor não só
nas elites ilustradas do Brasil ao longo de toda sua história. sobre sua obra, mas também sobre a produção literária e o
A vida de José de Alencar caracterizou-se pela es- debate cultural do seu tempo. Já em seu primeiro texto, o
treita vinculação entre as diversas atividades a que se de- ensaio O estilo na literatura brasileira (1850), Alencar de-
dicou: romancista, crítico literário, jornalista, teatrólogo, dica-se a refletir sobre a feição da literatura nacional vincu-
cronista, deputado, ministro e autor de textos e panfletos lando sua construção à busca de uma linguagem adequada
políticos. Foi um militante da pena e, explorando tão di- para expressar a conformação social brasileira. Até o final
versas frentes de atuação, formulou em seu trajeto não só da vida, abordando múltiplos aspectos da produção literá-
uma proposta literária, mas também um projeto político e ria, desenvolveu esta reflexão em prefácios, polêmicas ou
cultural para o Brasil. Seus textos críticos, as obras para o ensaios em forma de cartas, sempre publicados nos jornais
teatro e, em especial, os romances catalisam uma discussão do Rio de Janeiro.
decisiva sobre a produção cultural brasileira, qual seja, a Homem inquieto e irreverente, Alencar passou
construção de uma identidade para um país que até 1822 a vida polemizando. Como um franco atirador voltava-
tivera o estatuto de colônia de Portugal. Alencar foi o pri- se contra a censura do jornal e do Conservatório, contra
meiro intelectual brasileiro a elaborar uma reflexão original o Imperador e seu cenáculo, contra críticos anônimos ou
sobre essa questão, tendo dedicado sua vida a debater o cer- Franklin Távora e Joaquim Nabuco, contra os pretensos
ne do problema - o da dependência cultural - ainda que para mestres do romance português e o dicionário do coloni-
isso tenha utilizado categorias tão ideologizadas como “o zador, contra a moda francesa no trajar e dançar e contra a
nacional” e “o estrangeiro”. Mas, afinal, deve-se considerar maneira inglesa de gerenciar as finanças. Com olhar curio-
que este era o instrumental teórico oferecido pelas correntes so encarava de frente seu tempo. Por isso sua trajetória crí-
ideológicas hegemônicas da época: o nacionalismo político tica está marcada por um permanente retomar e repropor
e o liberalismo econômico. alguns problemas centrais da literatura brasileira. Por isso,
Para compreender a obra de Alencar é imprescindí- como crítico, passou vinte anos dedicado à indagação e à
vel levar em conta o diálogo que ela mantém com a História pesquisa, adotando só no fim da vida a forma da sistema-
do país. Grande parte dos estudiosos do autor consideram, tização (“Benção paterna”, 1872) e a frase afirmativa (na
com maior ou menor ênfase, aspectos vinculados a esta polêmica com Nabuco, 1875).
* Doutora em Letras – Teoria Literária e Literatura Comparada; Livre Docente da Universidade de São Paulo – USP.
1 Este texto é síntese de um ensaio bastante mais extenso que ficou entre os finalistas do Premio Casa de las Americas – 1993 – na categoria
de ensaio. Foi publicado em português: MARCO, Valeria De. A Perda das Ilusões: O Romance Histórico de José de Alencar. Campinas-
SP: Editora da UNICAMP, 1993, 251pp.