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O que um absolutista pode nos

ensinar sobre a democracia


No século XVII, quando o debate entre absolutismo e liberalismo ainda estava em
seu auge, uma figura intelectual foi de extrema importância para o curso da
história política mundial: Robert Filmer. Ferrenho defensor do direito divino dos
reis ao poder absoluto, a influencia de Filmer não termina nos extintos
partidários do Antigo Regime. A sua magnum opus, “Patriarcha”, suscitou tantas
polêmicas e réplicas que Filmer terminou sendo ofuscado, ao longo da história,
pelos seus rivais intelectuais. O primeiro dos “Dois Tratados sobre o Governo
Civil”, a obra de John Locke considerada a pedra angular do ideário liberal, não
é mais do que uma resposta à obra de Filmer.

Em sua obra, usando como base a Bíblia Sagrada, a história universal e uma lógica
um tanto quanto questionável, Filmer defende o “direito divino dos reis” ao poder
absoluto sobre os súditos. Basicamente ele sustentava que Adão foi o primeiro
monarca (e patriarca) da Humanidade porque Deus lhe concedeu poder absoluto
e unilateral, inclusive de vida e morte, sobre seus filhos. Como todo monarca
descende e é sucessor de Adão, herda este mesmo poder. Uma premissa embutida
no raciocínio é que o poder adâmico foi concedido em caráter hereditário, o que
o autor trata de provar recorrendo a passagens bíblicas. Para o incrédulo que não
se contente com as passagens bíblicas, Filmer recorre a exemplos históricos,
demonstrando que ao longo de toda a História da humanidade a democracia
sempre foi uma exceção, prevalecendo sempre o governo monárquico, o que
provaria que esta é a forma de governo “natural” dos homens.
No debate sobre a primazia do poder Parlamentar sobre o poder Real, Filmer
afirmava que o Parlamento só existe como um poder delegado pelo próprio Rei,
atuando em qualidade de procurador e suplente, estando sujeito a ele e podendo
ser revogado a qualquer momento. Para provar a afirmação, Filmer recorre a
trechos de proclamações, leis e estatutos históricos da Inglaterra. Basicamente,
segundo as provas reunidas, o Rei é o Soberano, o árbitro último e final de todas
as questões, de onde todo o poder emana e para onde inevitavelmente sempre
retorna. Juízes, magistrados e parlamentares só atuam como seus suplentes e
delegados temporários, devido à impossibilidade física de que o Rei comunique
sua vontade à todos os súditos em todos os lugares. E é aqui onde a coisa começa
a ficar interessante. Contra-argumentando os defensores da teoria da Soberania
Popular (democracia), Filmer lança a seguinte observação:

“Jamais ouvi falar de que o Povo, por cujas Vozes os Cavaleiros e Burgueses são
eleitos, tenha chamado a prestar contas aqueles a quem Elegeu; nem jamais lhes
dá Instruções ou Direções sobre o que dizer, ou o que fazer no Parlamento… [O
Povo] está tão longe de punir que antes acaba ele mesmo punido por intrometer-
se em Assuntos Parlamentares; a ele só compete escolher…”

Ou seja, na prática, os que supomos ser “representantes” do Povo é que mandam


nele, e não o contrário. Segundo Filmer, portanto, os parlamentares e
aristocratas, longe de ser delegados do povo, não eram mais do que usurpadores
de uma prerrogativa do rei que era mandar no Povo. Este é um dado da realidade
que se evidencia até hoje nas nossas democracias atuais: se trocamos Cavaleiros
e Burgueses por Vereadores, Senadores e Deputados, veremos como esta
afirmação se mantém verdadeira até os dias de hoje em nossos governos
autoproclamados democráticos, pois o Povo responde aos legisladores, mas os
legisladores não respondem ao Povo.
Em outra passagem, Filmer questiona o Poder Popular desde o aspecto teórico:
porque o Poder Popular deveria ser sempre delegado em representantes e
devolvido ao Povo somente para que ele escolha novamente outros
representantes? Se o Povo é realmente soberano, de onde emana todo poder e
autoridade, etc., então porque ele sempre delega o poder e jamais o exerce? Isto
nos coloca a pensar: se o Povo é soberano, como antes o era o monarca absoluto,
ele faz as leis mas não está sujeito a elas. O Povo pode desobedecer toda e
qualquer lei que julgar dispensável, e desfazê-las e alterá-las todas como e quando
determinar sua Vontade. Tampouco deve obediência alguma aos seus
representantes, sejam eles reis, nobres, políticos ou juízes, pois eles estão lá para
fazer o trabalho que ele não pode e não quer fazer, não para lhe dar ordens. O
Povo também está no direito de remover os seus representantes no momento em
que quiser, sem se ater a formalidades e procedimentos estabelecidos. Ele pode
puni-los, despojá-los de toda propriedade e até mesmo recorrer à violência se
achar conveniente.

Filmer se deu conta do que escreveu nas entrelinhas: uma visão completamente
radical da democracia. Para ele, todas estas prerrogativas pertenciam ao
monarca unicamente. O que ele pretendia era lançar um desafio aos defensores
da Soberania Popular, desafiá-los a que se atrevessem a levar a democracia à sua
última consequência lógica: a admissão de que o Povo soberano exerce poder
absoluto sobre todos, inclusive de vida e morte, sem jamais responder a qualquer
critério externo de arbitragem e justiça além de Deus. Ou seja, Filmer queria
demonstrar que as duas opções disponíveis eram a tirania de um homem só e a
tirania da multidão, e ele defendia abertamente a primeira contra a segunda.
Ambas as alternativas são puramente teóricas, pois na prática sempre primou a
vontade de quem tivesse mais poder, fosse o Monarca, a Nobreza ou o Povo, e
sempre houveram poderes intermediários capazes de colocar freio à qualquer
ideia de poder ou vontade absoluta. Mas esta ideia do poder e da autoridade como
algo que é delegado de maneira temporária e reversível é uma ferramenta muito
útil para analisar uma democracia contemporânea.
Apesar de recusarmos ambas as alternativas (ditadura do tirano e ditadura das
massas), o desafio de Filmer nos coloca a pensar sobre o excesso de poder que
temos dado aos nossos “representantes” hoje em dia, pois não estamos fazendo
uso da prerrogativa popular não só de destituir representantes, mas também de
revogar parcial ou totalmente os poderes a eles delegados. Ou seja, é prerrogativa
do cidadão de uma República não só colocar ou remover pessoas de um
cargo público, mas também colocar e remover atribuições do cargo em si.

Karl Popper e a liberdade


econômica irrestrita
Acredito que o aspecto injusto e desumano de um ‘sistema capitalista’ irrestrito
como o descrito por Marx é inquestionável. Mas isto pode ser interpretado à luz
do que chamamos, no capítulo anterior, de paradoxo da liberdade. Vimos que a
liberdade acaba consigo mesma se for ilimitada. Liberdade ilimitada significa que
o forte é livre para agredir o fraco e roubar sua liberdade. Por isto que exigimos
que o estado limite a liberdade até certo ponto, para que a liberdade de todos seja
protegida pela lei. Ninguém deveria estar à mercê dos outros, mas todos
deveríamos ter o direto à proteção do estado. Acredito que estas considerações,
originalmente aplicadas ao contexto da força bruta e da intimidação física, devem
ser aplicadas também ao contexto econômico.

Mesmo que o estado proteja seus cidadãos de sofrer agressão física (como de fato
se protege, em princípio, sob um sistema de capitalismo irrestrito), seria
contraproducente se ele falhasse em protegê-los do abuso de pdoer econômico.
Nesta condição, o economicamente mais forte continua livre para agredir o
economicamente mais fraco, e roubar sua liberdade. Sob estas circunstâncias, a
liberdade econômica irrestrita é tão contraproducente quanto a liberdade física
irrestrita, e o poder econômico pode ser tão perigoso quanto a violência física,
pois aqueles que possuem um excedente de comida podem forçar os famintos a
aceitar ‘livremente’ a servidão sem precisar recorrer à violência. E assumindo que
o estado limita suas atividades à supressão da violência (e a proteção da
propriedade), uma minoria economicamente forte pode assim explorar a maioria
dos economicamente fracos.

Se esta análise está correta, então a solução é clara. A solução deve ser política:
uma solução similar à que adotamos contra a violência física. Devemos construir
instituições sociais, reforçadas pelo poder do estado, para a proteção dos
economicamente fracos frente aos economicamente fortes. O estado deve
garantir que ninguém necessite entrar em um acordo desigual por medo da forma
ou da ruína econômica.
Isto, é claro, significa que o princípio da não-intervenção, de um sistema
econômico irrestrito, deve ser abandonado; se desejamos salvaguardar a
liberdade, devemos exigir que a política de liberdade econômica irrestrita seja
substituída por uma intervenção econômica planejada do estado. Devemos exigir
que o capitalismo irrestrito dê lugar a um intervencionismo econômico. E isto é
precisamente o que aconteceu.

Fonte:
Karl Popper, ‘The Open Society and Its Enemies’, capítulo 17.
Tradução livre de Renan Felipe dos Santos.

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