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PRÓLOGO PARA A SEGUNDA EDIÇÃO*


G. Lapassade
In: LAPASSADE, G. Grupos, organizações e instituições. Rio de Janeiro: F. Alves, 1977, p. 13-34.

Este livro sobre os grupos, as organizações e as instituições nasceu de


preocupações que decorrem, no essencial, de minha experiência na psicossociologia. Essa
experiência me havia conduzido a constatar e a demonstrar, por meio ,de experiências
instituídas, que a origem e o sentido do ,que se passa nos grupos humanos devem ser
buscadas apenas no que aparece no nível visível do que se chama a dinâmica do grupo.
Nesses grupos, sejam eles reunidos para :a formação de homens ou para a experiência e
a pesquisa .de "leis", há uma dimensão oculta, não analisada e, portanto, determinante: a
dimensão institucional. Eu propus então (em 1963) chamar de "análise institucional" o
método que visa a revelar, nos grupos, esse nível oculto de :sua vida e de seu
funcionamento.
Este trabalho, preparado a partir de uma experiência -pedagógica e
psicossociológica, me havia levado a conclusões muito próximas das teses desenvolvidas
pela corrente da psicoterapia institucional. Do trabalho dessa corrente, havia-se, de fato,
conservado o fato de que os psicoterapeutas institucionalistas mostraram que a terapia de
grupo praticada em coletividade hospitalar não tem efeitos decisivos desde que não se
leve em consideração a dimensão institucional dessa coletividade. Para levá-la em
consideração, é preciso agir sobre a própria instituição  é preciso tratar a instituição.
Essa observação é excessivamente breve para que se diga. com algum rigor, o que têm
sido, até hoje, as contribuições decisivas dessas escolas. Essas contribuições bastam-nos,
no entanto, para indicar como os [13] pesquisadores e aqueles que se ocupam da prática
foram levados, no curso dos últimos anos, a decidir, de forma definitiva, que um "grupo"
 e eu também compreendo. como "grupo" uma "organização social"  é sempre de-
terminado por instituições. Se quisermos analisar o que se passa num grupo, quer seja
"natural" ou "artificial", pedagógico ou experimental, é preciso admitir como hipótese:
prévia que o sentido do que se passa aqui e agora nesse grupo liga-se ao conjunto da
contextura institucional de. nossa sociedade.
Existe assim uma relação de interdependência entre os conceitos de grupo, de
organização e de instituição, assim como existe tal relação entre os níveis da realidade
social que esses conceitos visariam a definir.
De um ponto de vista "tópico", as noções de grupo, de organização e de instituição,
que permitem, na linguagem de todos os dias, nomear três níveis do sistema social,
podem igualmente servir para determinar três níveis da análise institucional (ou
socioanálise institucional).
O primeiro nível é o do grupo. Definir-se-á assim o.nível da "base" e da vida
quotidiana. A unidade de base é a oficina, o escritório, a classe. É nesse nível que se situa
a prática socioanalítica da análise e da intervenção. Nesse nível do sistema social, já
existe a instituição: horários, ritmos, normas de trabalho, sistemas de controle, estatutos
e papéis cuja função é manter a ordem, organizar o. aprendizado e a produção. Essas
normas de trabalho, na oficina, exprimem diretamente, como o diz Marx, o comando do
Capital na empresa.
O que se passa nessas unidades de base, nesses grupos reais  e também nos
grupos artificiais reunidos em seminários de formação  não pertence apenas à análise
psicossociológica, desde que se entenda por esse termo a tentativa de reduzir o sistema
social à soma das interações internas que nele se produzem. É preciso dizer, ao contrário,
com Kurt Lewin, que a análise de campo do grupo implica a análise do campo social em
seu conjunto  que a análise de grupo só é verdadeira desde que se fundamentena
análise institucional. Na base da sociedade, as relações humanas são regidas por
instituições: sob a superfície das; "relações humanas" (e desumanas) há as relações de
produção, de domínio, de exploração... [14]

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Entre colchetes [ ], a paginação original.

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Todo o sistema institucional já existe, entre nós, aqui e agora, Ele existe na
disposição material dos lugares e dos instrumentos de trabalho; nos horários, nos
programas, nos sistemas de autoridade. O poder do Estado está presente, embora
encoberto, na oficina e na sala de aulas. É nesse mesmo nível de base que cabe situar a
família, a instituição da afetividade e da sexualidade, a organização exogâmica dos sexos,
a primeira divisão do trabalho, a primeira forma da relação entre as idades, entre as
gerações. O grupo familiar constitui o cimento mais firme da ordem social estabelecida, o
lugar em que se efetua, como o mostra Freud, a interiorização da repressão que continua
na escola. Eis a base do sistema.
O segundo nível é o da organização. É o nível da fábrica em sua totalidade, da
universidade, do estabelecimento administrativo. É a esse nível da organização, grupo dos
grupos que se rege ele próprio por novas normas, que se faz a mediação entre a base (a
"sociedade civil") e o Estado. Para nós, é um segundo nível institucional: nível de
aparelhos, de ligações, da transmissão de ordens; nível da organização burocrática. Nesse
segundo nível as instituições já apresentam formas jurídicas. É assim, por exemplo, o
nível da propriedade privada dos meios de produção.
O terceiro nível é o da instituição. desde que se mantenha para esse termo a sua
significação habitual, a qual limita o seu uso ao nível jurídico e político. A sociologia
clássica, no entanto. sobretudo depois de Durkheim, já ultrapassou essa significação
restrita: para Durkheim e para os sociólogos que o seguiram, as instituições definem tudo
o que está "estabelecido", quer dizer, em outras palavras, o conjunto do que está
"instituído". O terceiro nível, na realidade, é o nível do Estado, que faz a Lei, que confere
às instituições força de lei. Assim, na sociedade que ainda é a nossa, o que "institui" está
do lado do Estado, no topo do sistema.
A "base" desse sistema é, ao contrário, instituída pela cúpula, com exceção dos
períodos de crise revolucionária. Quando se suspende a repressão da cúpula sobre a base,
a capacidade instituidora desperta nas unidades de base. Liberta-se a palavra social.
Torna-se possível a criatividade coletiva. Inventam-se em todo lugar novas instituições
que já não são, ou não são ainda, instituições dominantes, [15] marcadas pelo domínio do
Estado. Eis o esquema ao mesmo tempo anatômico e dinâmico do sistema aqui descrito
sob os lermos de "grupos, organizações e instituições". Esse esquema geral deve poder
aplicar-se à análise de qualquer sistema: uma empresa, uma igreja, um banco, um
hospital, uma escola. Darei aqui apenas um exemplo, o da escola, com o único objetivo de
ilustrar o que talvez tenha parecido um tanto abstrato em sua generalidade.

A prática pedagógica estabelece-se em três níveis: o primeiro nível é o da unidade


pedagógica de base. É o nível da "classe", da prática do ensino. Na pedagogia tradicional,
é o curso que domina, é o ensino professora!. As reformas introduzem trabalhos dirigidos,
exercícios práticos, seminários, sobretudo no ensino superior. Nessas novas disposições,
no entanto, a relação entre professores e discípulos mantém a sua estrutura de poder
fundada na assimetria que opõe o "saber" e o "não saber", Concordemos em dizer,
provisoriamente, que é o nível do grupo "professores-alunos". Ele é geralmente
considerado como tal, e não se percebe que já existe, nesse grupo, coisa instituída. Não
se vê que a instituição determina radicalmente a relação entre professor e aluno, a relação
de formação em seu elemento vivido.
O segundo nível é o do estabelecimento: a escola, o liceu, a Faculdade. Nesta obra
eu o chamei de sistema das instituições externas.
O estabelecimento é chamado algumas vezes de "instituição". (A Lei de orientação
define "Instituições universitárias", que são precisamente as Universidades, divididas em
Unidades de ensino e de pesquisa. O termo "instituição" designou igualmente, em
algumas ocasiões, estabelecimentos de ensino.)
Esse nível é, em primeiro lugar, o da organização. A estrutura de administração
universitária é tradicionalmente autoritária, quer essa autoridade resulte de uma eleição,
como no caso de diretores de faculdades, na França, quer resulte de uma nomeação,
como no caso do Diretor de um Liceu. Os discípulos não participam (sempre no caso da
fórmula tradicional) do poder administrativo; antes de [16] Maio de 68. nas Faculdades,

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as decisões do Diretor só eram submetidas ao controle de seus pares, os professores


titulares de cátedras (no Conselho da Faculdade) e os professores titulares (na Assembléia
da Faculdade), Esse controle, mesmo reduzido, da decisão era ainda limitado pelo fato
que o Diretor se encontra em relação direta com o poder central, poder que ele representa
na Faculdade, e de que ele é o único árbitro da gestão quotidiana do Estabelecimento.
Finalmente, não cabe a essas instituições modificar de motu propriu as suas estruturas; a
reforma só pode advir do poder do Estado. Isso acaba de ser visto com a aprovação de
uma "Lei de orientação" que, do alto, decreta a assim chamada autonomia das
Universidades.
O Estado  terceiro nível  define as normas gerais da Universidade (os
concursos, as linhas gerais dos programas, as listas de aptidão ao ensino superior). Ele já
está diretamente presente, no entanto, como acaba de ser visto, no segundo nível
(mesmo se não pode nomear, nesse nível, o seu representante, o Diretor) - e está
presente no primeiro nível, uma vez que os professores controlam ali a aquisição de
conhecimentos. Na medida em que outorgam diplomas, os professores são, visivelmente,
os representantes da autoridade do Estado na unidade pedagógica de base.
Essa descrição só é institucional num nível diretamente observável: o nível do
poder, da organização, dos controles. Esses critérios, no entanto, não esgotam em
absoluto a lista de normas às quais devemos reconhecer um caráter institucional: essas
normas são aquelas que, no nível do "grupo-classe", definem os procedimentos do ensino,
o seu ritual, a sua instalação no espaço pedagógico. a escolha dos horários, as relações de
formação em sua extrema complexidade, o desconhecimento completo do estudante
anônimo nos anfiteatros, as relações pessoais, as orientações de trabalhos; a instituição
dos conteúdos como sendo "aquilo que deve ser retido para o dia do exame": o caráter
específico da relação pedagógica; o exame...

No caminho da análise institucional encontra-se, de forma necessária, o Estado de


classe e, por seu intermédio, a estrutura de classe de uma formação social dada. Assim, a
partir de um grupo submetido à análise, dever-se-ia encontrar, [17] desde que essa
análise penetrasse bastante, o sistema das classes sociais e suas relações. É a isso que
nos conduzia,.há pouco, o exemplo do sistema universitário. Reconhece-se, hoje em dia,
que a instituição universitária é uma instituição de classe. Compreende-se por isso, no
entanto, limitando-se alguns a esse ponto de análise, a segregação social efetuada pela
escola, pelo sistema de exames e de concursos, pelo idioma, por tudo aquilo que, a partir
da desigualdade cultural, explica a desigualdade real, encoberta por uma igualdade
formal, das crianças e dos estudantes colocados frente' ao sistema de ensino. Eis como se
estabeleceu que a universidade é, na realidade, uma instituição de classe e nãouma
instituição neutra do saber, aberta a todos, ao abrigo dos conflitos de classe, como o seria
a Ciência.
Essa análise não é falsa, mas é incompleta. É 'preciso' ainda mostrar que o sistema
hierárquico na Universidade, tal como se reproduz sob o controle direto do Estado, liga-se
imediatamente à função de dominação que se atribui ao Saber na divisão do trabalho. A
escola habitua os homens a acreditar que o pretenso "saber" confere um poder de
dominação e de exploração. Não se diz nada de novo ao afirmar que o sistema burocrático
encontra um de seus fundamentos essenciais nos mistérios do conhecimento. Marx definia
o exame como o batismo burocrático do Saber. Com efeito, a posse do Saber é o produto
de uma iniciação que o faz passar para o lado daqueles que dominam a Sociedade, ou
que, ao menos, o põe a seu serviço. Em resumo, a Universidade é uma instituição de
classe justamente na medida em que ela tem essa função de manter as hierarquias em
nossa sociedade. Feita para reproduzir o sistema de' dominação, ela própria é uma
instituição dominante.
Ora, não se poderia manter o Estado de classe desde' que ,ruísse por terra o
conjunto das instituições dominantes, como acontece em toda crise revolucionária. Antes
de mostrá-lo, necessário nos é sublinhar ainda um ponto essencial para a teoria das
instituições.

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Situa-se de forma espontânea o sistema das instituições' num nível da estrutura


social. Assim, toda sociologia tende hoje em dia a distinguir entre infra-'estrutura e
superestrutura (na linguagem marxista) ou entre a base morfológica' e os sistemas
institucionais (na linguagem da sociologia que vem de Durkheim). Nessa descrição.
colocar-se-iam as [18] instituições no nível da "superestrutura". É esquecer, no entanto,
que, por exemplo, as relações de produção são Instituídas.
Sobretudo, se voltamos ainda uma vez ao exemplo do sistema universitário,
verificamos logo que só se pode compreender essa instituição como um lugar onde se
encontram a dimensão econômica (a Universidade tem uma função econômica que
decorre de seu lugar na produção), a dimensão política (vimos a sua ligação com o
Estado), a dimensão ideológica (sabemos hoje em dia como a universidade produz e
difunde uma ideologia. ao afirmar, em geral, que essa ideologia é a Ciência). Podemos
generalizar esse' exemplo da Universidade e dizer que uma instituição não,' é um nível ou
uma manifestação de um modo de produção.. ou de uma formação social. Empregando a
linguagem marxista, a instituição não é uma superestrutura. O que se; encontra na
superestrutura de um sistema é apenas o aspecto institucionalizado da instituição. É a lei,
é o código, é a regra escrita. É a constituição. Admitir-se-á que o sistema das instituições
políticas, do jogo político. dos partidos, não se limita a seu aspecto institucionalizado,
cristalizado nas leis escritas. Também há coisas instituídas, não visíveis imediatamente, e
que fazem igualmente parte da instituição. Isso conduz a colocar como princípio que a
instituição não é um nível, ou uma manifestação da formação social, mas ê. um produto
do encontro desses níveis. ou dimensões. Esse produto de um encontro de dimensões é
superdeterminado pelo conjunto do sistema. através da mediação do Estado,

Na origem das grandes civilizações. desde que se organiza a produção em grande


escala. forma-se o Estado. Aparece ao mesmo tempo. nos sistemas de "despotismo
oriental", a primeira classe dominante. Mais tarde, uma civilização libertou-se do Estado
oriental: na aurora grega das sociedades ocidentais, o Estado e a classe dominante'
deixaram de coincidir inteiramente. A nova classe dominante estabelece o seu domínio na
propriedade privada, e o Estado torna-se seu "instrumento". No curso da história ocidental
 uma história específica, que rompeu o seu laço original com o "modo asiático de
produção  as classes dominantes mudam ao mesmo tempo em que mudam os [19]
Estados. A ambição da classe ascendente é sempre, no entanto, o controle do aparelho do
Estado.
Isso se toma particularmente claro na passagem da sociedade feudal para a
sociedade burguesa. O Estado estabelece-se então num compromisso da luta de classes
até o momento em que, com a Revolução francesa, ele muda aquilo que é para nós, hoje
em dia: o Estado burguês. Marx e Lênin depois mostraram esse nascimento e essa função
do Estado, ponto em que se explica o modo de produção. Isso é importantíssimo para o
movimento revolucionário, a um ponto tal que, há perto de um século, a análise política e
a ação só atingem o seu verdadeiro "nível de legitimidade" se o Estado, com sua po1fcia,
o seu exército, a sua burocracia  se apresenta visivelmente como sujeito primeiro da
crítica e como aquilo que deve ser destruído.
É verdade, com efeito, que o segredo da mudança revolucionária consiste na
destruição do aparelho do Estado burguês. A sociedade capitalista e burguesa só deixará
de existir efetivamente quando houver perdido a cabeça, quando houver sido decapitada.
Um Rei decapitado: eis o símbolo mais direto da revolução. A revolução não é o golpe de
Estado. É por ironia e por mistificação que aqueles que chegam ao poder por esse
caminho se proclamam, algumas vezes, revolucionários. Uma revolução popular é sempre
um processo que começa a substituir o Estado por uma sociedade polimorfa, por um novo
sistema institucional que não seja mais submetido ao domínio central. e no qual as
instituições da Sociedade deixam de ser instituições dominantes. Gramsci escreve que a
conquista do aparelho do Estado será possível quando os operários e os camponeses
houverem formado um sistema de instituições capaz de ocupar o lugar do atual sistema.
Desde o começo da revolução, novas instituições, suscitadas pelo próprio
desenvolvimento do processo revolucionário, prefiguram o que poderia ser a nova

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sociedade. As instituições da revolução são os clubes, as associações e, de maneira geral,


tudo o que permite a expressão e o exercício da soberania coletiva. Em todos os
momentos revolucionários que conhecemos (para limitarmo-nos aos mais clássicos: 89,
em 1848, em 1871, em 1917), em cada oportunidade, vemos surgir Assembléias gerais
permanentes que exprimem a libertação [20] daquilo que era objeto de Instituição na
sociedade, que instituem novas formas da vida social e inventam, de maneira coletiva,
novas formas de regulação.
Ao mesmo tempo, trava-se uma luta entre a Revolução oficial e a "revolução na
revolução". Desde 1790, denunciam-se ao mesmo tempo aqueles que defendem o regime
anterior à revolução e os que defendem a anarquia, os "esquerdistas" e os "direitistas".
Em concorrência com as instituições revolucionárias, constroem-se, na nova legalidade,
instituições que se originam na Revolução. E já se presencia o refluxo. Descreveu-se
muitas vezes, depois de Trotski, essa dialética interna do processo revolucionário. A
revolução permanente deveria significar que a revolução não poderá, em realidade, jamais
produzir instituições acabadas  mas, ao contrário, instituir coisas que instituam, fazer
com que a soberania coletiva não se aliene mais em instituições que, novamente, se
tomam autônomas.
As instituições tendem a tomar a forma de Estado ao mesmo tempo em que a
revolução começa peja abolição do Estado; as instituições tendem a tornar-se autônomas,
e, assim, novamente, dominantes  quer dizer, a serviço da nova alasse dominante. O
processo de instituir participa então da construção da nova classe. As instituições tomam-
se instituições dessa classe. É certamente por um processo semelhante que se constitui a
nova ideologia. Em 89, as idéias de liberdade, de igualdade são partilhadas por todos e
têm um alcance universal. Elas são em seguida distorcidas  "recuperadas"  pela classe
dominante, tornando-se a liberdade a sua liberdade. Restrições e arranjos paralisam, na
Declaração dos Direitos do Homem, desde os primeiros textos, a subversão ideológica, e
fazem servir os mesmos termos para encobrir, e, ao mesmo tempo, justificar a nova
dominação. No próprio interior da ideologia revolucionária travou-se uma luta para
distorcer o sentido, e para transformar um discurso verdadeiro sobre a sociedade em
ideologia dominante.
Distorcer as instituições, distorcer as ideologias: esses dois movimentos, solidários,
são o produto da crise revolucionária. A ideologia e as instituições tornam-se novos
diques, novas formas de repressão social. Então, o novo Estado mantém-se ao penetrar
em todos os poros da sociedade, ao habituar os cidadãos à obediência, ao controlar a [21]
informação, a moral pública, as maneiras de agir e de pensar, ,tudo aquilo que os
sociólogos da escola de Durkheim, servidores ideológicos do Estado, chamaram
precisamente, no .começo do século, de instituições. A análise institucional :propõe-se
revelar esse duplo jogo institucional, essa luta do que institui e do que é objeto de
instituição, propõe-se remontar ao Estado a partir das instituições dominantes presentes
em nossa experiência, aqui e agora.
A ideologia é um processo de desconhecimento social. Ela impede o acesso à
verdade, ao conhecimento efetivo da sociedade. Uma análise das ideologias  e das
instituições que a suportam  só pode ser empreendida a partir .de uma hipótese sobre o
que é dito. Por que motivo existe ;aquilo que não é dito, aquilo que é secreto, nos grupos?
A análise sociológica tradicional faz uma hipótese aparentemente próxima sobre aquilo
que não se sabe na sociedade. Essa análise supõe, com efeito. que as pessoas não ~abem
o que são e o que fazem quando ouvem o rádio, quando compram, quanto votam, quando
julgam a sociedade e o seu lugar nessa sociedade. A sociedade implica sempre, para os
seus membros, um desconhecimento do sentido estrutural de seus atos, do que determina
as suas opções, de suas preferências e de suas rejeições, de suas opiniões e de suas
aspirações. Ao revelar os parâmetros da estrutura social, o sociólogo mostra por que
motivo se escolhe tal profissão, por que motivo se decide seguir tal tipo de estudos.
Mostra, ao mesmo tempo, que essa análise não pode ser imediata, que as pessoas
interrogadas não podem distinguir espontaneamente o que as determinou. É uma crítica
das possibilidades de uma verdade espontaneamente reencontrada: não se diz, no
entanto, por que motivo essa espontaneidade não se pode manifestar.

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A análise institucional deve procurar explicar esse desconhecimento, não por uma
simples ignorância das estruturas e do funcionamento social, mas por um mecanismo
coletivo de repressão. Ela fará a hipótese de que o sentido está reprimido, que nós não
podemos dizer. ou sequer pensar o verdadeiro, porque uma repressão social proíbe-nos
permanentemente o acesso à verdade sobre a nossa situação e sobre o conjunto do
sistema. A repressão constante da palavra social, aquilo que não se diz nos grupos
decorreria. portanto, em última análise. da repressão permanente do [22] sentido em
nossa sociedade. Essa repressão encontra a sua origem no domínio mantido pelas classes
dirigentes e por seu instrumento de repressão, o Estado. O Estado cumpre essa função de
encobrimento "ideológico" através das mediações institucionais que penetram em toda a
sociedade.
O Estado controla a educação, a informação e a cultura. O Estado mantém o que
não é dito, suscitando em todo lugar  na imprensa, nas conversações quotidianas .a
autocensura, as normas que proíbem a verdadeira comunicação. A contraprova disso é a
libertação da palavra na crise revolucionária, quando se suspende a repressão.
O que é mais reprimido é a Revolução. É para evitá-la que as ideologias e as
instituições dominantes funcionam e mantêm a adesão coletiva ao domínio. ao mesmo
tempo em que evitam o conflito e a luta que poderiam pôr termo à dominação.
Em tal conflito, o sociólogo não é neutro. O seu papel habitual é forjar uma
ideologia, é preencher o silêncio da sociedade por meio de um discurso falso sobre esse
silêncio, -cobrir permanentemente o "vazio" das significações sociais, produzir
"significações" para eliminar o sentido. Por isso, a 'Sociologia é um sintoma da sociedade.
É por esse motivo que a contestação da Sociedade moderna implica que os 'Sociólogos se
contestem a eles próprios.

Antes da crise de maio, as nossas pesquisas institucionais chegavam a um


impasse. Há muito tempo já procurávamos em vão ultrapassar, a partir do interior, os
pontos de estrangulamento das "ciências" sociais, em particular, da psicossociologia dos
grupos, das organizações e das instituições. Queríamos ao mesmo tempo, com uma
pequena minoria de professores, desenvolver as técnicas da pedagogia institucional e da
autogestão. O empreendimento, ao mesmo tempo teórico e prático, tornava necessária a
reconstrução do conceito de "instituição". Embora numerosos sociólogos, na trilha de
Durkheim, tenham colocado esse conceito no centro da teoria sociológica, havíamos
descoberto, a partir de certas práticas psicossociológicas e pedagógicas, o encobrimento
fundamental e permanente da dimensão institucional no "aqui-agora" das relações de
produção, de formação, de tratamento... [23]
Depois de uma redes coberta laboriosa dessa "dimensão institucional" na prática e
na análise, alguns entre nós pensavam que era possível transformar radicalmente a
educação, a classe, a universidade, e talvez mesmo o Estado pela introdução "subversiva"
de novas instituições no grupo  classe - isso à luz das tentativas paralelas dos
psiquiatras "institucionalistas" que inventam novas instituições terapêuticas para as
necessidades do tratamento. Descobrimos, no entanto, progressivamente, que esse
projeto era profundamente utópico.
A crise de maio dissipou as ilusões e os mal-entendidos. Depois da crise, o
problema das instituições tornou-se evidente em todos os níveis do nosso sistema social.
É certo que as instituições universitárias se mantêm, "reformadas" apenas: É, no entanto,
uma pura fachada. Atrás dela não há mais do que o vazio: as regras substituíram as
tarefas de aprendizado; todas as finalidades são contestadas; ninguém pode mais crer na
validade dessa velha instituição. Só o medo a mantém. Não se poderá mais impedir que
todos, professores e alunos, tomem consciência do que significam realmente as
instituições do saber, da cultura, do aprendizado. Tudo se revelou: relações assimétricas
entre professores e alunos, controle dos conhecimentos e colação de grau, formas
autoritárias de nomeação dos professores. Tudo isso foi posto em questão pela crise. A
paralisação política, provisória, dessa crise não paralisou a desagregação do sistema de
ensino.

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Essa crise foi provocada e animada pelos jovens. Através de sua intervenção direta
e decisiva na desordem política verificamos o que significa a "instituição do adulto", e a
sua função repressiva. A integração no sistema de vida dito "adulto", com as suas normas,
os seus mitos, os seus privilégios e as suas servidões, constitui um dos mais eficazes
instrumentos do "controle social"  quer dizer, da contra-revolução permanente em nossa
sociedade. No momento de ingressarem na vida, os jovens descobrem esse horizonte da
repressão, que será o horizonte de toda a sua vida. Eles o recusam - e recusam assim o
sistema social inteiro. Apesar das diferenças de classe que opõem e que separam os
estudantes e os jovens operários, essa solidariedade institucional faz com que a "classe de
idade" sirva de mediação evidente nas fases em que se declaram progressivamente as
lutas. [24] O conflito central, em nossa sociedade, não é "conflito de gerações”: é a luta
de classe. A recusa de integração social pela jovem geração torna-se, no entanto, ou
melhor, já é uma recusa da sociedade de classes, descoberta e rejeitada numa instituição
social específica. Nessas sociedades, os jovens são dominados. É deles, e mediante a sua
recusa, que pode vir uma verdadeira transformação do sistema de formação e de
enquadramento dos jovens.
A crise das instituições atingiu, por meio dos jovens, as organizações capitalistas
da produção, mas também, ao mesmo tempo, as organizações da classe operária, cuja
função institucional foi contestada pelos trabalhadores. Os operários recusaram as
negociações de cúpula. Eles entraram em greve sem aviso prévio. Alguns entre eles,
sobretudo os. jovens, reencontraram a eficácia da ação direta, da transgressão das
normas instituídas. A ação direta tornou-se novamente uma prática subversiva cuja
eficácia foi verificada. Essa crítica das instituições universitárias, econômicas, sindicais,
por meio de ações diretas, por meio de atos (greve selvagem, ocupações e autogestão
como forma da greve' ativa), é infinitamente mais profunda, mais significativa do. que a
crítica que se faz, habitualmente, da burocratização dos estabelecimentos e dos aparelhos.
Na crítica tradicional, os sociólogos mostram os defeitos burocráticos das organizações; os
teóricos políticos da burocracia denunciam a "traição dos dirigentes". Essas críticas, muito
conhecidas' hoje em dia, já as havíamos examinado na primeira ediçãodesta obra. A
crítica ativa foi, no entanto, mais longe.
Hoje em dia, as regras institucionais fundamentais de nossa sociedade são
criticadas em todo lugar. A função integradora das instituições, a tarefa permanente de
evitar conflitos e de dissimulá-los aparecem aos olhos de todos. O que se chama algumas
vezes de "crise" de "civilização'" é, em primeiro lugar e antes de mais nada, a crise das
instituições que fundamentam e protegem essa civilização, que asseguram a difusão de
suas mensagens, que transmitem as: ideologias dominantes, que asseguram a
estabilidade e a manutenção da ordem. Atrás dessa ordem, há sempre as: forças de
repressão. As instituições dominantes, numa sociedade de desigualdade e de domínio. são
sempre aliadas: da repressão  são elas próprias repressivas. Um sociólogo, Max Weber,
já o sublinhava: as instituições não precisam, [25] para existir, do consentimento dos
"participantes"  do .consenso. Basta-lhes estarem fundadas no poder do Estado. Elas se
mantêm pela ameaça.
Os acontecimentos de maio foram para nós uma confirmação e uma refutação de
tudo o que havíamos podido produzir, e, portanto, deste livro. Uma confirmação, ao que
parece, se considerarmos a importância que assumiu no curso desses acontecimentos a
ideologia da dinâmica de grupo modificada, que assumiu a crítica da burocracia, que
assumiram as primeiras tentativas de autogestão pedagógica. Ao mesmo tempo, no
entanto, o acontecimento refutou, C0mo já se disse acima, a ilusão que consiste em
esperar demais do trabalho dos educadores autogestionários, dos animadores sociais, dos
psicossociólogos da intervenção. Dizíamos já que o nosso trabalho era ambíguo, que a
prática dos socioanalistas era reformista, mesmo se ela fazia algumas vezes aparecer, em
filigrana, a contestação informal na base da sociedade e o nascimento de uma sociedade
selvagem. Não havíamos admitido suficientemente que a suspensão da repressão  que
liberta as possibilidades e as reivindicações de instituir nos grupos, ao mesmo tempo em
que liberta a verdadeira palavra social  só podia resultar da intervenção direta dos
dominados nas escolas, nas fábricas, no conjunto da sociedade, e não podia resultar da

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intervenção daqueles cuja condição de formadores ou de analistas separados situa, em


geral, no lado da repressão.
Utopia, reformismo, ilusões quanto às possibilidades da intervenção socioanalítica:
eis o que se tornou evidente quando a transformação que pensávamos preparar com a
nossa prática institucional veio de outra parte, de outra origem  quando outros
descobriram a primeira brecha. A nossa contestação permanecia encerrada em artigos,
em livros, em seminários, nos guetos dos ideólogos e dos que se ocupam da prática,
nossos colegas, que a tratavam, aliás, como uma aberração  até o dia em que os
controles institucionais estouraram no nível de um poder que as nossas intervenções não
chegavam jamais a atingir. Quando os estudantes e os operários praticaram a ação direta
e a ocupação dos lugares institucionais do poder, a libertação da criatividade de instituir,
em vão esperada nos grupos de análise, invadiu a vida de todos os dias. [26]
Será preciso, assim, opor a ação direta e revolucionária à análise institucional?
Será preciso renunciar a tudo o que propõe este livro? Não se poderá, ao contrário,
reinventar ,a análise  admitindo que a sua função é vicária enquanto for separada, e que
a análise só é realmente realizada quando toda a sociedade entra em análise e conduz
essa análise? Se quisermos a qualquer preço salvar a análise, será necessário, em todo
caso, examinar novamente a regra analítica fundamental, importada da psicanálise, e que
opõe a análise à ação, excluindo a passagem ao ato no interior do trabalho analítico. De
que utilidade pode ser uma atividade socioanalítica de formação e de intervenção se nada
muda realmente? Eis a questão que se coloca mais claramente para os analistas de hoje
em dia.
Certos psicólogos já responderam que uma "ação analítica" continuada, mas
progressiva e "prudente", introduz na sociedade modificações que começam por ser
imperceptíveis, mas que se tornam eficazes, a longo prazo, por seu efeito cumulativo. De
que tipo de "transformação" se quer, 'no entanto, falar? Em benefício de quem? Será que
essa descrição não implica uma opção reformista não analisada  que constitui o ponto
obscuro, cego da análise  transportada para a análise social? E além disso: será
necessário continuar a opor, como o fazem os teóricos da intervenção prudente e bem
controlada, a análise e a ação selvagem? Vimos, ao contrário, que uma ação direta pode
ter lIma eficácia analítica maior do que as nossas intervenções 'analíticas. Não é preciso,
para levar a bom termo uma análise social, ser um analista com diploma, reconhecido,
prático no manejo da língua esotérica da profissão. Um animador do tipo revolucionário
pode exercer na ação uma 'função analítica reconhecida, pode facilitar com as suas
,opiniões e com as suas ações a revelação das significações, pode mostrar as instituições
na sua verdade e obrigá-las a .dizer o que são. Sobretudo, uma prática revolucionária
eficaz pode chegar a mostrar todos os níveis no sistema institucional que havíamos
descrito neste livro.
Havíamos descoberto novamente em Maio, à luz do acontecimento, que o Estado
não é nada, desde que não encontre apoio nas "instituições dominantes"  e havíamos
novamente descoberto que essas instituições só se mantêm por meio de sustentáculo do
Estado e de seu aparelho de [27] repressão. Assim, por exemplo, quando a instituição
universitária não pode mais garantir a ordem interna das universidades, a Polícia do
Estado toma imediatamente o lugar de todas as polícias culturais em crise.
O Estado mantém as instituições pelo medo dos cidadãos. Ao mesmo tempo, essas
instituições consolidam o Poder do Estado e, por meio disso, o poder das classes
dominantes, no conjunto da sociedade. Basta, aliás, ler Durkheim para compreender isso.
Essa compreensão, no entanto, era apenas teórica e, sobretudo, ia no sentido de uma
certa legitimação. Durkheim era um homem da ordem. Ele amava o que é "instituído". A
ordem institucional descrita pelos sociólogos parecia quase "natural", necessária,
indispensável. Havíamos. esquecido Marx.
A crise geral das instituições, a contestação institucional visível em todo lugar
depois dos acontecimentos de Maio, a volta à ordem instituída revelou na prática o que
pesquisas mais teóricas e experiências mais limitadas  como a autogestão pedagógica,
por exemplo  nos haviam feito entrever. Algumas tentativas experimentais limitadas às
dimensões dos Seminários de formação e das intervenções socioanalíticas já sugeriam que

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as sociedades poderiam e deveriam ser o contrário rigoroso do funcionamento social


habitual. A percepção experimental dessas possibilidades era, no entanto, reprimida por
todo o aparato técnico e conceitual das ciências e de suas aplicações práticas. Viu-se isso
muito bem, quando as primeiras tentativas de autogestão pedagógica se chocaram com a
burocracia universitária. Cinco anos depois, nas Faculdades ocupadas, a autogestão
tornou-se o programa aceito por todos..., durante os meses de ocupação. Ao mesmo
tempo, experimentava-se a autogestão nas fábricas. Em todo lugar, a ordem burocrática
era ameaçada.
Nesse mês de maio de 1968, recusamos coletivamente a prática das decisões
reservadas a instâncias separadas e protegidas pelo segredo das deliberações.
Redescobrimos e experimentamos o que significava "a volta à base", não mais na
linguagem burocrática da consulta ou da eleição, mas como uma prática de todos os dias,
que situa na "base" a fonte única de soberania. Rejeitou-se assim a instituição da
separação em todos os níveis da vida social e política. A partir daí, a alienação da
soberania popular em favor de [28] um pequeno número de eleitos não apareceu mais
como uma evidência, como uma necessidade natural. Aprendemos a ver nela apenas uma
forma de organização característica de um certo tipo de sociedade. Marx mostra que a
burguesia considera como contingentes e como perecíveis as instituições do feudalismo,
mas considera naturais e eternas as suas próprias instituições. A entrada na revolução
significa a contestação ativa dessas instituições tidas, comumente, como insubstituíveis.
Ainda não sabemos, exatamente, como poderíamos substituí-Ias. Já sabemos, no entanto,
que a sua destruição é a condição prévia necessária para a invenção .de outras. Uma
outra crítica, ainda ontem limitada a alguns pequenos grupos experimentais, generalizou-
se: é a crítica ao voto, encarregado de dizer a verdade sobre a vontade dos grupos,
fazendo aparecer a orientação da maioria. Sabíamos já que essa maioria não é
necessariamente democrática, mas o movimento de maio revelou mais do que isso: uma
minoria pode ser a expressão verdadeira de uma maioria incerta, funcionar como
revelador analítico, e, mediante li sua prática social, criar um novo consenso.  É isso,
aliás, o que se passa e o que já se passou em cada revolução.
Em 1871, durante a Comuna de Paris, os parisienses inventaram uma nova vida,
novas instituições: as velhas instituições do Estado (o Estado burguês com o seu exército,
a sua polícia, a sua burocracia) eram progressivamente abolidas, durante essa primavera
em que Paris foi livre. A Comuna já era a verdadeira "participação": ao mesmo tempo, o
Governo direto e a festa. Todas as significações  econômicas, políticas, lúcidas - da
"participação" direta de todos na vida social misturaram-se nesses momentos da
Revolução.
A entrada na Revolução (o "grupo em fusão") implica sempre essa ruptura, essa
quebra no sistema e esse despertar da invenção política coletiva: 1789 é o Contrato Social
em ação; a soberania da Assembléia Geral que instituía; o enfraquecimento, já, do poder
central (os departamentos são dirigidos por Assembléias eleitas, e sem representante do
Governo central). Nos clubes, nas igrejas, em lugares múltiplos, as pessoas se reúnem
todos os dias para contestar o Poder. 1848: é o mesmo despertar da palavra coletiva, nos
clubes, nas Assembléias, e isso é muito mais significativo para compreender o processo
[29] revolucionário que as leis sobre a organização do trabalho, as oficinas, as reformas, a
nova Constituição. 1871  a Comuna: três meses ainda de debates políticos nas novas
instituições; da soberania. 1917  os sovietes: o "sistema" da Assembléia Geral
permanente surge novamente nas fábricas, nos navios, nas casernas. O que se descobre
 e volta-se redescobrir  em cada nova oportunidade é uma nova relação com a
política, com o conjunto do sistema institucional: novas formas, novas instituições
também para a vida' quotidiana. Quando isso termina, é a própria Revolução que é
suspensa: em 1794, em junho de 1848, em maio de 1871, em 1918, a partir do momento
em que os Conselhos. começam a ceder a sua função de instituir e o seu poder ao novo
Estado.
Essa soberania coletiva e instituidora foi descrita por Sartre como o momento do
"grupo em fusão". Ele vê nela. uma expressão da Revolução e tende a apresentá-la em
termos bastante próximos da psicologia das massas, como se a Revolução efetiva

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estivesse por trás disso. estivesse na tomada do poder, no momento ideal do Estado. Para
Sartre,.esse momento da palavra social libertada em todo lugar, momento em que "cada
um é orador" (segundo a expressão de Montjoie, retomada na Crítica da razão dia/ética)
"significa", simplesmente, a revolução. A palavra social libertada é para ele um
significado, não o significante revolucionário central. Além disso, Sartre não mostra que
nesse momento do grupo (as Assembléias da soberania, os clubes, todas as reuniões
revolucionárias são, na realidade, grupos de fusão) já existe a instituição: em primeiro
lugar, como movimento daquilo que institui; em seguida, porque esse movimento se
efetua em grupos institucionais novos; finalmente, porque a "multidão" em transe é, ela
própria, "institucional". Sartre está muito próximo das análises psicossociológicas, e é bem
assim que o havíamos interpretado neste livro, acentuando, mesmo, esse aspecto. Na
Crítica da razão dia/ética, o ator da história é o povo em insurreição. Mas à luz da
dinâmica de grupo e de sua utilização pedagógica, no entanto, havíamos concedido essa
função de revelação social (que Sartre atribui à multidão em fusão) a um novo tipo de
animador. Em lugar de querer utilizar Sartre para salvar os psicossociólogos, deveríamos
ter [30] mostrado nulo que a sociologia dos grupos e das organizações é apenas um dos
sinais enviesados, deformados pela ideologia, do projeto revolucionário, dissimulado na
desordem do Estado, do sistema de produção, da organização capitalista. A
psicossociologia anunciava o projeto  ainda vago, muito mal formulado e encerrado em
experiências muito artificiais  de uma forma nova, ou, mais exatamente, a ser
reencontrada e redescoberta, da soberania popular. Em resumo, em lugar de se deter nos
"problemas" do regulamento, e em novas receitas, teria sido preferível analisar a
contestação. Institucional contida na experiência dos grupos. O movimento de Maio
desenvolveu essa contestação com uma eficácia muito maior. Na crise de Maio,
encontramos novamente não só a ideologia já difundida na experiência limitada dos
seminários, mas sobretudo a prática do GovernO' direto: era a crítica em ação dos
modelos habitualmente acatados da delegação do poder.
É certo que já conhecíamos e que já havíamos descrito aqui mesmo, neste livro, a
partir de certas experiências ativas da dinâmica dos grupos, os grandes temas de maio de
1968: a palavra social libertada, a decisão coletiva, a crítica permanente do poder oriundo
dos grupos, a busca da verdadeira comunicação. Em certas publicações do 22 de março 
em Ce n'est qu'un. début..., por exemplo  encontram-se os termos que havíamos
utilizado, mas empregados nessa oportunidade para descrever, não o que se passa num
Seminário de psicossociologia, mas o que se passou na rua. Foi dito que o país inteiro -
digamos, ao menos, Paris - se havia então transformado num imenso "grupo. de base".
Será necessário concluir que os psicossociólogos dos grupos prepararam a crise, ou, ao
menos, que eles lhe' forneceram uma linguagem e uma ideologia? Isso não está provado.
É verdade que se descobrem na experiência de Maio, e nos textos que dela resultaram,
esquemas e uma linguagem que fazem lembrar, não os laboratórios da dinâmica dos
grupos no sentido estrito, mas a ideologia que se havia difundido nas experiências
pedagógicas dos pequenoS" grupos. É preciso, no entanto, quando isto é sublinhado,
observar logo que essa libertação da palavra social ocorreu na rua, sem monitores, sem
ordens que instituíssem a [31] experiência. Se, portanto, encontramos semelhanças é
porque as duas situações  o Seminário e a Revolução  têm como traço comum o fato
de que se desenvolvem num .certo espaço livre, a partir de uma supressão da repressão.

A diferença consiste em que a supressão da repressão é muito mais limitada, muito


mais ambígua na prática dos -seminários. Se é verdade  como recentemente foi
observadoi  que o T. Group foi influenciado por certas .correntes do pensamento
anarquista, os animadores dos T. Groups não são em geral anarquistas. É sem
participação da vontade que certas aspirações do tipo anarquista se revelam no espaço de
relativa liberdade que implica a experiência. Essas aspirações encontram, então, na
linguagem contemporânea, certas formas de expressão que tornamos a encontrar num
movimento em que os anarquistas militantes representaram um papel importante, ao
difundir uma ideologia através de uma prática. É preciso ir mais longe: essa afirmação de
um pensamento anarquista transformado que encontramos em experiências, no fundo,

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tão diferentes como um T. Group e uma crise do tipo revolucionário é o próprio produto da
crise. O T. Group institui uma situação microssocial na qual um certo número de
estruturas são artificialmente abolidas; o que se passa então lembra, com efeito, um
momento nascente da história. Daí procedem as semelhanças.
A diferença fundamental provém da falta de monitores no T. Group da Revolução.
O estopim aqui não é mais aquilo que os psicossociólogos chamam de uma "intervenção";
é a ação direta como prática revolucionária. Essas duas práticas sociais, a saber, a prática
das equipes de psicossociólogos intervencionistas e a prática dos movimentos
revolucionários, não são assimiláveis. A ação dos psicossociólogos não-diretivos mantém
uma relação pedagógica que é uma relação de poder. A ação revolucionária visa, ao
contrário, a acabar com as diferenças, a abrir simplesmente a brechaii que permitirá aos
grupos conduzir-se eles próprios e analisar-se sem o sustentáculo dos animadores que se
encarregam, ao mesmo tempo, da análise e do "serviço de ordem" nos grupos em
formação. [32]
Eis um livro ambíguo.
A publicação de uma obra sobre esses domínios ainda incertos justifica-se
essencialmente por sua capacidade de provocação ainda mais do que por sua função de
informação. Em termos mais tranqüilizadores, dir-se-á que tal obra, de intenções
essencialmente críticas, justifica-se basicamente na medida em que pode provocar
mudanças.
O futuro dirá se essa função ainda lhe cabe ou se devemos considerar este livro e,
sobretudo, aquilo de que trata, como a expressão de uma etapa já ultrapassada na
história de uma crise da qual conhecemos apenas os pontos iniciais. [33]

Janeiro de 1970
Georges Lapassade

i
Bass Bernard M.: "The anarchist movement an the T. Group: some possible lessons for organizational
development", 1. Appl. Behav. Sei., 1967, n. 2, pp. 211-227, citado por Pages Robert em "L'analyse
psychosociologique et le mouvement de mai 68", Communications, 1969, n. 12, pp. 46-53. Nesse mesmo artigo,
R. Pages desenvolve um ponto de vista próximo do nosso: "Seria ingênuo acreditar que a experiência técnica
psicossocial vivida no meio estudantil há alguns anos tenha podido representar um papel propriamente causal.
No máximo, ela pôde conferir certas formas novas ao movimento atual".

ii
Dizíamos: "O pessoal que foi à manifestação sabe como se defender", e havíamos decidido que no 10 de Maio
não haveria serviço encarregado de manter a ordem, para que cada um se encarregasse disso. Dany se havia
colocado com dois colegas na esquina do Boulevard Saint-Michel e do Boutevard Saint-Germain, dizendo:
"Cortem as cadeias, nada de cadeias laterais, para que a população possa entrar na multidão. ., todo o mundo
toma-se o seu próprio serviço de manutenção da ordem etc...” Em "Mouvement du 22 Mars", Ce n'est qu'un
début, continuons le combat, F. Maspero, 1968, p. 7

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