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Entre colchetes [ ], a paginação original.
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Todo o sistema institucional já existe, entre nós, aqui e agora, Ele existe na
disposição material dos lugares e dos instrumentos de trabalho; nos horários, nos
programas, nos sistemas de autoridade. O poder do Estado está presente, embora
encoberto, na oficina e na sala de aulas. É nesse mesmo nível de base que cabe situar a
família, a instituição da afetividade e da sexualidade, a organização exogâmica dos sexos,
a primeira divisão do trabalho, a primeira forma da relação entre as idades, entre as
gerações. O grupo familiar constitui o cimento mais firme da ordem social estabelecida, o
lugar em que se efetua, como o mostra Freud, a interiorização da repressão que continua
na escola. Eis a base do sistema.
O segundo nível é o da organização. É o nível da fábrica em sua totalidade, da
universidade, do estabelecimento administrativo. É a esse nível da organização, grupo dos
grupos que se rege ele próprio por novas normas, que se faz a mediação entre a base (a
"sociedade civil") e o Estado. Para nós, é um segundo nível institucional: nível de
aparelhos, de ligações, da transmissão de ordens; nível da organização burocrática. Nesse
segundo nível as instituições já apresentam formas jurídicas. É assim, por exemplo, o
nível da propriedade privada dos meios de produção.
O terceiro nível é o da instituição. desde que se mantenha para esse termo a sua
significação habitual, a qual limita o seu uso ao nível jurídico e político. A sociologia
clássica, no entanto. sobretudo depois de Durkheim, já ultrapassou essa significação
restrita: para Durkheim e para os sociólogos que o seguiram, as instituições definem tudo
o que está "estabelecido", quer dizer, em outras palavras, o conjunto do que está
"instituído". O terceiro nível, na realidade, é o nível do Estado, que faz a Lei, que confere
às instituições força de lei. Assim, na sociedade que ainda é a nossa, o que "institui" está
do lado do Estado, no topo do sistema.
A "base" desse sistema é, ao contrário, instituída pela cúpula, com exceção dos
períodos de crise revolucionária. Quando se suspende a repressão da cúpula sobre a base,
a capacidade instituidora desperta nas unidades de base. Liberta-se a palavra social.
Torna-se possível a criatividade coletiva. Inventam-se em todo lugar novas instituições
que já não são, ou não são ainda, instituições dominantes, [15] marcadas pelo domínio do
Estado. Eis o esquema ao mesmo tempo anatômico e dinâmico do sistema aqui descrito
sob os lermos de "grupos, organizações e instituições". Esse esquema geral deve poder
aplicar-se à análise de qualquer sistema: uma empresa, uma igreja, um banco, um
hospital, uma escola. Darei aqui apenas um exemplo, o da escola, com o único objetivo de
ilustrar o que talvez tenha parecido um tanto abstrato em sua generalidade.
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A análise institucional deve procurar explicar esse desconhecimento, não por uma
simples ignorância das estruturas e do funcionamento social, mas por um mecanismo
coletivo de repressão. Ela fará a hipótese de que o sentido está reprimido, que nós não
podemos dizer. ou sequer pensar o verdadeiro, porque uma repressão social proíbe-nos
permanentemente o acesso à verdade sobre a nossa situação e sobre o conjunto do
sistema. A repressão constante da palavra social, aquilo que não se diz nos grupos
decorreria. portanto, em última análise. da repressão permanente do [22] sentido em
nossa sociedade. Essa repressão encontra a sua origem no domínio mantido pelas classes
dirigentes e por seu instrumento de repressão, o Estado. O Estado cumpre essa função de
encobrimento "ideológico" através das mediações institucionais que penetram em toda a
sociedade.
O Estado controla a educação, a informação e a cultura. O Estado mantém o que
não é dito, suscitando em todo lugar na imprensa, nas conversações quotidianas .a
autocensura, as normas que proíbem a verdadeira comunicação. A contraprova disso é a
libertação da palavra na crise revolucionária, quando se suspende a repressão.
O que é mais reprimido é a Revolução. É para evitá-la que as ideologias e as
instituições dominantes funcionam e mantêm a adesão coletiva ao domínio. ao mesmo
tempo em que evitam o conflito e a luta que poderiam pôr termo à dominação.
Em tal conflito, o sociólogo não é neutro. O seu papel habitual é forjar uma
ideologia, é preencher o silêncio da sociedade por meio de um discurso falso sobre esse
silêncio, -cobrir permanentemente o "vazio" das significações sociais, produzir
"significações" para eliminar o sentido. Por isso, a 'Sociologia é um sintoma da sociedade.
É por esse motivo que a contestação da Sociedade moderna implica que os 'Sociólogos se
contestem a eles próprios.
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Essa crise foi provocada e animada pelos jovens. Através de sua intervenção direta
e decisiva na desordem política verificamos o que significa a "instituição do adulto", e a
sua função repressiva. A integração no sistema de vida dito "adulto", com as suas normas,
os seus mitos, os seus privilégios e as suas servidões, constitui um dos mais eficazes
instrumentos do "controle social" quer dizer, da contra-revolução permanente em nossa
sociedade. No momento de ingressarem na vida, os jovens descobrem esse horizonte da
repressão, que será o horizonte de toda a sua vida. Eles o recusam - e recusam assim o
sistema social inteiro. Apesar das diferenças de classe que opõem e que separam os
estudantes e os jovens operários, essa solidariedade institucional faz com que a "classe de
idade" sirva de mediação evidente nas fases em que se declaram progressivamente as
lutas. [24] O conflito central, em nossa sociedade, não é "conflito de gerações”: é a luta
de classe. A recusa de integração social pela jovem geração torna-se, no entanto, ou
melhor, já é uma recusa da sociedade de classes, descoberta e rejeitada numa instituição
social específica. Nessas sociedades, os jovens são dominados. É deles, e mediante a sua
recusa, que pode vir uma verdadeira transformação do sistema de formação e de
enquadramento dos jovens.
A crise das instituições atingiu, por meio dos jovens, as organizações capitalistas
da produção, mas também, ao mesmo tempo, as organizações da classe operária, cuja
função institucional foi contestada pelos trabalhadores. Os operários recusaram as
negociações de cúpula. Eles entraram em greve sem aviso prévio. Alguns entre eles,
sobretudo os. jovens, reencontraram a eficácia da ação direta, da transgressão das
normas instituídas. A ação direta tornou-se novamente uma prática subversiva cuja
eficácia foi verificada. Essa crítica das instituições universitárias, econômicas, sindicais,
por meio de ações diretas, por meio de atos (greve selvagem, ocupações e autogestão
como forma da greve' ativa), é infinitamente mais profunda, mais significativa do. que a
crítica que se faz, habitualmente, da burocratização dos estabelecimentos e dos aparelhos.
Na crítica tradicional, os sociólogos mostram os defeitos burocráticos das organizações; os
teóricos políticos da burocracia denunciam a "traição dos dirigentes". Essas críticas, muito
conhecidas' hoje em dia, já as havíamos examinado na primeira ediçãodesta obra. A
crítica ativa foi, no entanto, mais longe.
Hoje em dia, as regras institucionais fundamentais de nossa sociedade são
criticadas em todo lugar. A função integradora das instituições, a tarefa permanente de
evitar conflitos e de dissimulá-los aparecem aos olhos de todos. O que se chama algumas
vezes de "crise" de "civilização'" é, em primeiro lugar e antes de mais nada, a crise das
instituições que fundamentam e protegem essa civilização, que asseguram a difusão de
suas mensagens, que transmitem as: ideologias dominantes, que asseguram a
estabilidade e a manutenção da ordem. Atrás dessa ordem, há sempre as: forças de
repressão. As instituições dominantes, numa sociedade de desigualdade e de domínio. são
sempre aliadas: da repressão são elas próprias repressivas. Um sociólogo, Max Weber,
já o sublinhava: as instituições não precisam, [25] para existir, do consentimento dos
"participantes" do .consenso. Basta-lhes estarem fundadas no poder do Estado. Elas se
mantêm pela ameaça.
Os acontecimentos de maio foram para nós uma confirmação e uma refutação de
tudo o que havíamos podido produzir, e, portanto, deste livro. Uma confirmação, ao que
parece, se considerarmos a importância que assumiu no curso desses acontecimentos a
ideologia da dinâmica de grupo modificada, que assumiu a crítica da burocracia, que
assumiram as primeiras tentativas de autogestão pedagógica. Ao mesmo tempo, no
entanto, o acontecimento refutou, C0mo já se disse acima, a ilusão que consiste em
esperar demais do trabalho dos educadores autogestionários, dos animadores sociais, dos
psicossociólogos da intervenção. Dizíamos já que o nosso trabalho era ambíguo, que a
prática dos socioanalistas era reformista, mesmo se ela fazia algumas vezes aparecer, em
filigrana, a contestação informal na base da sociedade e o nascimento de uma sociedade
selvagem. Não havíamos admitido suficientemente que a suspensão da repressão que
liberta as possibilidades e as reivindicações de instituir nos grupos, ao mesmo tempo em
que liberta a verdadeira palavra social só podia resultar da intervenção direta dos
dominados nas escolas, nas fábricas, no conjunto da sociedade, e não podia resultar da
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estivesse por trás disso. estivesse na tomada do poder, no momento ideal do Estado. Para
Sartre,.esse momento da palavra social libertada em todo lugar, momento em que "cada
um é orador" (segundo a expressão de Montjoie, retomada na Crítica da razão dia/ética)
"significa", simplesmente, a revolução. A palavra social libertada é para ele um
significado, não o significante revolucionário central. Além disso, Sartre não mostra que
nesse momento do grupo (as Assembléias da soberania, os clubes, todas as reuniões
revolucionárias são, na realidade, grupos de fusão) já existe a instituição: em primeiro
lugar, como movimento daquilo que institui; em seguida, porque esse movimento se
efetua em grupos institucionais novos; finalmente, porque a "multidão" em transe é, ela
própria, "institucional". Sartre está muito próximo das análises psicossociológicas, e é bem
assim que o havíamos interpretado neste livro, acentuando, mesmo, esse aspecto. Na
Crítica da razão dia/ética, o ator da história é o povo em insurreição. Mas à luz da
dinâmica de grupo e de sua utilização pedagógica, no entanto, havíamos concedido essa
função de revelação social (que Sartre atribui à multidão em fusão) a um novo tipo de
animador. Em lugar de querer utilizar Sartre para salvar os psicossociólogos, deveríamos
ter [30] mostrado nulo que a sociologia dos grupos e das organizações é apenas um dos
sinais enviesados, deformados pela ideologia, do projeto revolucionário, dissimulado na
desordem do Estado, do sistema de produção, da organização capitalista. A
psicossociologia anunciava o projeto ainda vago, muito mal formulado e encerrado em
experiências muito artificiais de uma forma nova, ou, mais exatamente, a ser
reencontrada e redescoberta, da soberania popular. Em resumo, em lugar de se deter nos
"problemas" do regulamento, e em novas receitas, teria sido preferível analisar a
contestação. Institucional contida na experiência dos grupos. O movimento de Maio
desenvolveu essa contestação com uma eficácia muito maior. Na crise de Maio,
encontramos novamente não só a ideologia já difundida na experiência limitada dos
seminários, mas sobretudo a prática do GovernO' direto: era a crítica em ação dos
modelos habitualmente acatados da delegação do poder.
É certo que já conhecíamos e que já havíamos descrito aqui mesmo, neste livro, a
partir de certas experiências ativas da dinâmica dos grupos, os grandes temas de maio de
1968: a palavra social libertada, a decisão coletiva, a crítica permanente do poder oriundo
dos grupos, a busca da verdadeira comunicação. Em certas publicações do 22 de março
em Ce n'est qu'un. début..., por exemplo encontram-se os termos que havíamos
utilizado, mas empregados nessa oportunidade para descrever, não o que se passa num
Seminário de psicossociologia, mas o que se passou na rua. Foi dito que o país inteiro -
digamos, ao menos, Paris - se havia então transformado num imenso "grupo. de base".
Será necessário concluir que os psicossociólogos dos grupos prepararam a crise, ou, ao
menos, que eles lhe' forneceram uma linguagem e uma ideologia? Isso não está provado.
É verdade que se descobrem na experiência de Maio, e nos textos que dela resultaram,
esquemas e uma linguagem que fazem lembrar, não os laboratórios da dinâmica dos
grupos no sentido estrito, mas a ideologia que se havia difundido nas experiências
pedagógicas dos pequenoS" grupos. É preciso, no entanto, quando isto é sublinhado,
observar logo que essa libertação da palavra social ocorreu na rua, sem monitores, sem
ordens que instituíssem a [31] experiência. Se, portanto, encontramos semelhanças é
porque as duas situações o Seminário e a Revolução têm como traço comum o fato
de que se desenvolvem num .certo espaço livre, a partir de uma supressão da repressão.
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tão diferentes como um T. Group e uma crise do tipo revolucionário é o próprio produto da
crise. O T. Group institui uma situação microssocial na qual um certo número de
estruturas são artificialmente abolidas; o que se passa então lembra, com efeito, um
momento nascente da história. Daí procedem as semelhanças.
A diferença fundamental provém da falta de monitores no T. Group da Revolução.
O estopim aqui não é mais aquilo que os psicossociólogos chamam de uma "intervenção";
é a ação direta como prática revolucionária. Essas duas práticas sociais, a saber, a prática
das equipes de psicossociólogos intervencionistas e a prática dos movimentos
revolucionários, não são assimiláveis. A ação dos psicossociólogos não-diretivos mantém
uma relação pedagógica que é uma relação de poder. A ação revolucionária visa, ao
contrário, a acabar com as diferenças, a abrir simplesmente a brechaii que permitirá aos
grupos conduzir-se eles próprios e analisar-se sem o sustentáculo dos animadores que se
encarregam, ao mesmo tempo, da análise e do "serviço de ordem" nos grupos em
formação. [32]
Eis um livro ambíguo.
A publicação de uma obra sobre esses domínios ainda incertos justifica-se
essencialmente por sua capacidade de provocação ainda mais do que por sua função de
informação. Em termos mais tranqüilizadores, dir-se-á que tal obra, de intenções
essencialmente críticas, justifica-se basicamente na medida em que pode provocar
mudanças.
O futuro dirá se essa função ainda lhe cabe ou se devemos considerar este livro e,
sobretudo, aquilo de que trata, como a expressão de uma etapa já ultrapassada na
história de uma crise da qual conhecemos apenas os pontos iniciais. [33]
Janeiro de 1970
Georges Lapassade
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Bass Bernard M.: "The anarchist movement an the T. Group: some possible lessons for organizational
development", 1. Appl. Behav. Sei., 1967, n. 2, pp. 211-227, citado por Pages Robert em "L'analyse
psychosociologique et le mouvement de mai 68", Communications, 1969, n. 12, pp. 46-53. Nesse mesmo artigo,
R. Pages desenvolve um ponto de vista próximo do nosso: "Seria ingênuo acreditar que a experiência técnica
psicossocial vivida no meio estudantil há alguns anos tenha podido representar um papel propriamente causal.
No máximo, ela pôde conferir certas formas novas ao movimento atual".
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Dizíamos: "O pessoal que foi à manifestação sabe como se defender", e havíamos decidido que no 10 de Maio
não haveria serviço encarregado de manter a ordem, para que cada um se encarregasse disso. Dany se havia
colocado com dois colegas na esquina do Boulevard Saint-Michel e do Boutevard Saint-Germain, dizendo:
"Cortem as cadeias, nada de cadeias laterais, para que a população possa entrar na multidão. ., todo o mundo
toma-se o seu próprio serviço de manutenção da ordem etc...” Em "Mouvement du 22 Mars", Ce n'est qu'un
début, continuons le combat, F. Maspero, 1968, p. 7
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