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A HISTÓRIA DA IGREJA PRIMITIVA E ANTIGA

Karl Josef Romer – 2014

Tema 3: As primeiras heresias

3) Surgimento das primeiras heresias


Muito cedo surgia a pergunta se o batismo dado por heréticos era válido.
Tertuliano, grande teólogo, pronunciou-se contra a validade daquele batismo.
Dada a estima altíssima de que gozava Tertuliano, vários sínodos de Bispos
seguiam esta teoria. O Papa Estevão (+257) exigia o reconhecimento do batismo
dado por hereges e ameaçou de excomunhão os Bispos que não seguissem sua
doutrina. Cipriano, Bispo de Cartago, está do lado do Papa, mas, sob a pressão de
seitas radicais, ele começa a duvidar se os hereges, que não possuíam nem a
graça nem o Espírito Santo, podiam dar as duas coisas. No dia 19 de setembro de
258, Cipriano, Bispo e mártir, é decapitado em Cartago.
O monoteísmo judeu está no fundamento da fé cristã. Mas esta, segundo a
orientação batismal de Jesus (Mt 28,19), abre a fé no Deus uno e trino. O Credo
(muito cedo chamado apostólico) confessa a fé em Deus Pai, em Jesus Cristo, no
Espírito Santo, na Igreja e no perdão dos pecados e na vida eterna.
Já a primeira geração conhece os perigos das deturpações doutrinárias, as
seduções dos incautos e sua confusão. “Cuidado com os cães, cuidado com os
maus operários, cuidado com os falsos circuncidados”, clama Paulo (Fil 3,2). E
na carta aos Colossenses ele repete: “Que ninguém vos engane com argumentos
capciosos.(8) Tomai cuidado para que ninguém vos escravize por vãs e
enganosas especulações da ‘filosofia’, segundo a tradição dos homens” (Cl
2,4.8).

3.1 As heresias judaizantes


A controvérsia de Paulo com Pedro parece mostrar uma questão mais
prática do que doutrinal. De um lado, Pedro, após iniciais resistências suas, vai à
casa do centurião romano (At 10,1-33ss). De outro lado, Paulo aplica a Timóteo,
filho de pai grego e piedosa mãe judia, a circuncisão, “por causa dos judeus que
havia naqueles lugares; e que todos sabiam que seu pai era grego” (At 16,1-3).
Na prática, a Igreja precisava de certo tempo para identificar o comportamento
mais acertado, sem com isso questionar a verdade dogmática.
Havia, entre os judeus convertidos ao cristianismo, duas tendências: os
judeus batizados que para si pessoalmente continuavam a observar a lei de
Moisés, e o grupo mais radical que queria impor isto a todos os cristãos, também
aos de origem pagã. O Concílio de Jerusalém, no ano 50, condenou essa
tendência radical.
Entre os hebreus (cristãos) observadores da lei mosaica formou-se um
grupo coeso, chamado por Irineu de “Ebionitas” (pobres). Acusavam a Paulo
como apóstata. Usavam um evangelho de Mateus próprio, “purificado”, em
língua siro-cadaica ou aramaica (chamado pelos Padres da Igreja “evangelho dos
hebreus”). Sua fé se expandia na Transjordânia e na Síria, e se manteve até o
século V. – Sobre outros grupos que misturavam elementos evangélicos com o
judaísmo (ou com a gnose), veja Bihlmeyer- Tüchle I, 146.

3.2 A Gnose, perigo para o cristianismo e ameaça à doutrina da Igreja1

a) O conceito da Gnose e seu possível valor cristão

Esta gnose cristã, em visão teórica, sem uso na prática, é o progredir da fé


em crescente intimidade (compreensão) do mistério do amor de Deus revelado,
acolhendo o amor de Deus com nosso amor total2.

b) Gnose, no sentido heterodoxo

1
Schlier H. Gnose in: Heinrich Fries, Dicionário de Teologia 2, 240-254.
Bihlmeyer-Tüchle (existe tradução portuguesa), Kirchengeschichte (História da Igreja), I. vol., Primo
Período, cap IV§ 29, § 30 (sucinto e bastante claro).
Hubert Jedin, Manual de Historia de la Iglesia I. 284-303.
Karl Rahner, Gnosis in: LThK IV,1019-1021
2
Karl Rahner, Gnosis in: LThK IV,1019-1021, oferece uma síntese dos aspectos de uma Gnose
verdadeira e uma outra heterodoxa (cf. Schnackenburg no mesmo LThK III,996-1000; aqui: 998). Rahner
e Schlier pensam aqui no eminente texto de Paulo em Ef 3,10-21
Além do “judaísmo”, a ameaça mais dura e mais abrangente vinha para a
Igreja da parte da Gnose, Gnosticismo de pagãos convertidos que tendiam a
dissolver a fé em especulação filosófica. – A Gnose concentra-se absolutamente
no conhecer humano (e religioso):
1º esse conhecer surge apenas de uma potencialidade do indivíduo (“iniciado”,
privilegiado etc.).
2º não surge nem de uma revelação, nem de uma graça, mas surge da essência do
sujeito na procura de si mesmo. É autoconsciência, não é audição obediente da
palavra de Deus, não é fé.
3º O conhecimento da gnose, pretende ser salvífico por si só, sendo que o amor
não faz parte dela; pode ser sua eventual conseqüência.

Tais formas de “autoconsciência sublime” eram cultivadas em esoterismo


e em “cultos místicos”. Em última instância não se trata de encontrar Deus, mas
encontrar o seu próprio Eu, entulhado sob os escombros da sua própria história
sofrida ou sob os erros da cultura. Encontrar seu Eu, ser homem pleno, é
salvação. Esta salvação não é recebida (dom, graça do Redentor), mas é produto
do homem.

c) O Gnosticismo, em sua forma radical, estabelece 2 últimos princípios


ontológicos igualmente originais e absolutos: do Bem e o Mal. No Maniqueísmo,
Parsismo3 e Mazdaísmo4 o princípio bom terá a vitória final.
Dualismo em senso mais amplo, não ontológico absoluto, seriam situações
onde dois entes (ou grupos) supremos se contrapõem, seja como complementares
(feminino – masculino), seja como cosmicamente ou eticamente inimigos (luz –
trevas, vida – morte, útil – nocivo). São amiúde elementos vindos de diversos
povos (religiões). Por exemplo: Marduk, contra as divindades caóticas de
Thiamat; Zeus contra os seres titânicos.
A doutrina cristã da criação universal elimina definitivamente a ideia de
um caos (Thiamat) como último princípio.
No judaísmo tardio pode haver influência relativa de tendências
dualísticas, facilitando a receptividade acrítica, por parte de grupos de cristãos,
daquele “movimento, que no início do 2º século irrompeu poderosamente e com
3
Parsismus chama-se a transformação definitiva da religião de Zaratustra, que, no 8º século, sob a
pressão do Islam, emigrou para a Índia (hoje cerca de 130 000 em Bombay). No Iran somente em grupos
muito pequenos.
4
Segundo W. Schatz, Mazdaismus, in: LThK VII,217s, trata-se da doutrina de Zaratustra, resultado da
transformação da religião popular primitiva do Iran. Degrada as antigas divindades do Iran ao nível de
demônios (angra maíngu, Ahriman) e atribui a Ahura Mazda, criador, senhor e juiz a função dominante
que, interinamente, está dificultada pela existência do Espírito Mau. Ahriman torna-se então adversário e
rival de Ahura Mazda. Após o quinto século a. C., tornou-se a religião de Estado.
todos os meios de propagação (apócrifos, hinos, romances religiosos, formação
de comunidades)” e trabalhava com especulações pseudo-místicas, e com uma
práxis de culto soteriológico (“iniciações”), com uma nova cosmo-visão e com
experiências humanas espiritualistas, revestindo tudo com “trapos” tirados de
doutrinas cristãs” (cf. Rahner Hugo, Christlicher Gnosticism, in: LThK
IV,1028s).
Esta cosmo-visão nova exercia enorme força de atração e convencimento.
Quanto mais se servia de elementos cristãos, tanto mais “perigoso era este
movimento no âmbito do cristianismo primitivo” (ibd.).
Assim, rapidamente formam-se escolas “cristãs” gravemente ambíguas.
Satornil (120) ensina em Antioquia que Jesus Cristo tem um corpo somente
aparente (docetismo). A nossa volta a Deus exige uma radical saída de tudo o
que é mundo, com um radical anti-sexo.
Basílides (120-145) promove em Alexandria perigosamente “a
cristianização” do Gnosticismo através de interpretações gnósticas dos
Evangelhos, composição de hinos e formação de comunidades.
Valentinos (em Roma 145-160), o mais genial e mais perigoso dos
gnósticos cristãos, traduz um gnosticismo helenístico mitigado em um mito da
redenção com ricas características bíblicas e eclesiais. Suas poesias (hinos) são
de impressionante beleza e profundidade. – Valentinos tem sua origem no Egito.
Após 135/140 encontra-se em Roma. Por sua doutrina radical, separa-se da
Igreja. No ano 160 retira-se para o Chipre. Escreve o “Evangelium veritatis” (o
verdadeiro evangelho). O único Deus deixa surgir “eones” em pares, intelecto –
verdade (no/uj alh,qeia), luz – trevas etc. Todos os pares de “eones” perfazem a
plenitude (to. plh,rwma). Pela queda da Sophia, a última dos eones, surge o
Demiurgo (criador demoníaco). Este cria o universo material, “pléroma” falso,
imitação maligna daquele pléroma que o único Deus tinha criado.
Jesus, em seu batismo, recebe de cima o “eon-Cristo”. Assim ele consegue
libertar a “semente” divina, inclusa na matéria. Agora, pela gnose, o homem
pode-se libertar e fazer a ascensão para o Pléroma verdadeiro. “Na base disto está
uma psicologia que, através desses mitos, exprime a libertação do medo”
(Camelot, em LThK X,602).
O “eon-Cristo”, libertando a semente de gnósis escondida na matéria,
devolve-nos a capacidade de nossa auto-redenção. O gnosticismo, pelo
“conhecer/saber” (gr. gignósko, gnósis), substitui a redenção operada por
Cristo. Destrói a fé na Santíssima Trindade (dissolvendo-a em especulações
aéreas); a Igreja, corpo de Cristo, é espiritualisticamente reduzida a aspirações de
“iniciados”, a Tradição apostólica e o cânon bíblico são sacrificados à
sublimidade do “saber” de poucos privilegiados. A matéria é má; a
ressurreição não existe no sentido real; a salvação não tem dimensão
histórica, mas só especulativa e idealística. – Sob a linguagem essencialmente
ambígua, usando nomes e palavras cristãos, e sob a beleza da retórica e aspiração
“espiritual”, os cristãos menos avisados tornam-se facilmente vítimas.
Segundo Prümm K. (em LThK IV,1021s), em base ao que Clemente de
Alexandria5 fala sobre o gnóstico Theodotos6, aluno de Valentinos, podemos
sintetizar a doutrina da Gnose (ou melhor: de certas correntes dela): não é o
batismo que salva, mas o saber sobre três questões: De onde vem o homem? Que
é o ser humano? Para onde vai o homem? A gnose de baixo nível praticava
magia e cultos de mistérios pagãos. A divindade, mais ou menos impessoal, é
considerada transcendente e está na raiz desse sistema. As “emanações” da

5
Clemente de Alexandria (140/150 até mais ou menos 216?), nato em Atenas, talvez sacerdote, é de
excelente formação filosófica, literária, bíblica e teológica. Pelo ano 200, já tem a sua escola privada.
Com grande simpatia, considera a cultura e filosofia gregas um verdadeiro dom de Deus, parte do Logos
presente no Universo, uma preparação à revelação divina, uma ajuda para o conhecimento na fé (P. Th.
Camelot, Klemens Titus Falvius v. Alexandrien, in: LThK VI,332). – Ele traz em si o imenso desejo de
sabedoria e conhecimento superior (Gnósis no sentido verdadeiro), e quer opor esta verdadeira sabedoria
à gnose herética.
6
Segundo H. Jedin I,284, Theodotos oferece-nos uma espécie de definição do gnosticismo. Gnose é
conhecimento a respeito das seguintes questões: “Que coisa éramos? Que é que nos tornamos (que
somos?) Onde estávamos? Para onde vamos? De que nos libertamos? Que coisa significa nascer? Que
significa renascer?” O mais íntimo do homem impulsiona-o a unir-se com o deus verdadeiro e perfeito,
mas desconhecido. Agora sim, o homem, por um destino especial, foi arrancado deste mundo imperfeito,
que não pode ser obra de Deus, mas que é a criação de um ser inferior e imperfeito, que domina o mundo
com a ajuda de poderes malignos. O homem só se liberta, se conhece bem a si mesmo e reconhece que
está de fato separado de Deus. Somente este conhecimento permite o retorno ao mundo luminoso e
superior do deus verdadeiro. Diversas fontes concorrem pra essa doutrina, inclusive certos elementos do
cristianismo. – Como a grande massa dos cristãos tinha alcançado a salvação somente mediante a fé e
mediante boas obras, (e não pelo conhecimento mais profundo, gnóstico), esses eram vistos como fixados
para sempre no nível inferior dos “psíquicos”.
Certos grupos gnósticos apresentavam-se como se fossem cristãos. Justino e Irineu lutam contra.
divindade perdem gradativamente, na medida de sua sucessão, sua semelhança
com a divindade. Assim, a criação do mundo é uma emanação muito tardia, e por
isso, às vezes, é visto como inimigo do divino. O corpo é mau!

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