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Agência de Jornalismo Investigativo

REPORTAGEM

No Amapá, a PM que mais mata é também a


que menos morre
Je erson Rodrigues/Agência Pública
Cenas forjadas e impunidade parecem
REPORTAGEMser a regra da polícia
  que
  mais
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matou nos últimos três anos no Brasil

23 de agosto de 2018 Abinoan Santiago, Denise Muniz

Adriano Fortunato da Silva, 30 anos, dois filhos, foi morto em abril de 2017, ao
ser confundido com um bandido na sede da Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB) do Amapá, no centro de Macapá.

Vigilante da OAB, Adriano desejava tornar-se policial militar, mas ironicamente


foi morto por um durante o trabalho. Adriano estudava para prestar concurso
público para servir à corporação. Naquela madrugada de 10 de abril, seus livros,
apostilas e o notebook ficaram jogados junto ao seu corpo.

“Um tiro foi no braço, por trás, disparado pelos policiais que cercavam a OAB
pelos fundos, e os outros dois pegaram no peito, pelos policiais que estavam na
frente do prédio”, lembra o irmão Renan da Silva Alves, de 29 anos.

No dia anterior, o vigia “fez o que mais apreciava”, lembra o irmão. “Passou o
domingo com os irmãos, pais, amigos e passeou com as filhas e a esposa pouco
antes de ir ao trabalho. Parecia uma despedida”, recorda.

Adriano morreu ao sair do posto para ver o que acontecia no lado de fora da
OAB. Momentos antes, um grupo havia tentado roubar uma agência bancária,
que fica localizada nos fundos do mesmo prédio. A quadrilha se escondeu da
polícia nas dependências do edifício.

Adriano saiu do prédio e acabou confundido com um dos bandidos. Ele havia
levantado os braços e informado que era funcionário da OAB, relata a família.
Não adiantou: os três tiros o mataram na hora.

O sonho de ser policial


 REPORTAGEM      

Denise Diniz/Agência pública

O filho de Adriano, André Kayke Silva e a mãe, Ângela Fortunato.

Adriano trabalhava havia mais de três anos como vigilante na OAB mas sonhava
em ser policial militar. A prova estava marcada para o segundo semestre de
2017.

“Seis meses antes de morrer, ele decidiu largar qualquer tipo de lazer para se
dedicar aos estudos, com o sonho de ser policial. Ele levava a mochila com os
livros e apostilas para a OAB e ficava estudando à noite. Pela manhã, seguia
direto para o cursinho preparatório e, à tarde, para outro”, disse o irmão.

A família soube de sua morte em grupos de redes sociais. Os irmãos da vítima


acreditam que os policiais forjaram a cena do crime para indicar uma possível
troca de tiros. O vigilante não trabalhava armado.

“Quando viram que era vigia da OAB, os policiais ficaram desesperados. As


câmeras de segurança da OAB foram quebradas pelos policiais. Colocaram arma
na mão dele, falaram que estava no meio, e, no outro dia, ele saiu como bandido
na imprensa. […] O próprio delegado viu que não tinha nada a ver quando abriu
ocelular e o computador dele e se deparou apenas com livros e apostilas”,
REPORTAGEM     diz
 
Renan. Depois de presos, os suspeitos de assaltar o banco também disseram não
conhecer Adriano.

No dia 12 de abril do ano passado, a OAB do Amapá informou que buscaria


responsabilizar os policiais envolvidos na morte do vigia, mas até o momento
nenhum policial foi preso. “A mamãe até hoje ainda não compreendeu. Ela
entrou em depressão. Acabaram com a vida dela. Ainda anda muito abatida. Ela
era uma pessoa muito alegre, gostava de festas. Agora, vive chorando, chama
por ele, tem crises, dizendo que não tem mais vontade de viver”, explica Renan.

A que mais mata no país desde 2015

A morte do vigilante integra uma dura estatística que afeta a imagem da Polícia
Militar amapaense desde 2015, considerada uma das mais respeitadas
instituições do estado, que abriga quase 800 mil habitantes, segundo o IBGE.

Conhecida por “briosa”, “aguerrida” e “valente”, a PM do Amapá liderou, em


termos populacionais, como revelou com exclusividade a Pública, as mortes em
decorrência de intervenção militar em todo o país nos últimos três anos.

Dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) mostram que entre
2015 e 2017 a PM amapaense matou mais do que o divulgado pelo Anuário
Brasileiro de Segurança Pública. Segundo o anuário, foram 132 mortes no
período, mas os dados corretos indicam 184 homicídios.

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública – que elabora o anuário – informou


que os dados do Amapá foram fornecidos pela secretaria estadual de Segurança
Pública (Sejusp). No entanto, os dados repassados se referem apenas à capital,
Macapá. A metodologia utilizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública
calcula indicadores estaduais, mas a pasta do Amapá não soube informar o
motivo de não contabilizar as mortes nas demais cidades do estado ao repassar
esses dados.
Na
 contramão dessa estatística, a PM do Amapá é a que menos sofre
REPORTAGEM   em
   
decorrência de ação de criminosos. Os militares amapaenses são os que menos
morrem durante o serviço ou em situações relacionadas à profissão, conforme
atestam os anuários de 2015, 2016 e 2017. Não houve registro de nenhum caso
de óbito nesses três anos.

A corporação avalia essa disparidade como reflexo de treinamento e de


preparação dos policiais. “Quando se é bem treinado, não é surpreendido”,
assegurou o comandante da polícia, coronel Rodolfo Pereira.

Segundo os dados obtidos via LAI, o batalhão mais letal é o de Operações


Especiais (Bope), criado em 2002, e considerado a elite da corporação
amapaense, com 147 homens divididos em quatro companhias. Os militares
desse destacamento foram responsáveis por 78 mortes entre 2015 e 2017 e
outras três em 2018.

Em segundo lugar, está o Batalhão de Rádio Patrulhamento Motorizado


(BRPM), que, criado em outubro de 2008, conta com 116 homens. Entre 2015 e
2017, o BRPM foi responsável por 59 mortes. Em 2018, são cinco homicídios.

Para o comandante-geral da PM do Amapá, coronel Rodolfo Pereira, quando se


fala nesses índices, é necessário utilizar parâmetros para um conhecimento,
segundo ele, “sensato”.

“Quando falamos em números absolutos, ele pode parecer alto, mas, quando a
gente faz um parâmetro, por exemplo, nós temos neste ano um número de
apreensão de 193 armas de fogo, ou seja, a Polícia Militar se deparou 193 vezes
com meliantes armados. Daí, se você for usar o número de mortes por
intervenção policial, você vai ver que é bastante reduzido”, falou, referindo-se à
quantidade de mortos em 2018.
 REPORTAGEM      

Denise Muniz/Agência Pública

Coronel Rodolfo Pereira: quando se fala nos índices é preciso usar parâmetros para um conhecimento
“sensato”

Segundo o comandante, a diferença entre apreensões de armas e a intervenção


policial é a reação do meliante. “O final da ocorrência depende totalmente do
comportamento do meliante”, completou.

Procurada, a Secretaria de Estado da Segurança Pública do Amapá designou ao


Comando-Geral da PM todos os esclarecimentos. Mas, em entrevista a um
programa de rádio local, no dia 11 de junho de 2018, o comandante do Bope,
coronel Paulo Matias, deu o tom das ações: “Não vamos perder a guerra para os
bandidos”.

Segundo o oficial, para os policiais “não é motivo de orgulho” eles serem


considerados os mais letais do país. “Gostaríamos que fosse diferente, que
pudéssemos chegar e prender os bandidos e deixar a questão para a Justiça”,
destacou o oficial do Bope.

O bairro líder de ocorrências da PM com mortes é o de Congós, na zona sul de


Macapá, com 15 homicídios entre 2015 e julho de 2018, caso de Willian
Natividade Silveira, morto aos 27 anos (parte 2 da reportagem). Caracterizado
por
 ter casas em regiões alagadas, Congós e outros bairros com características
REPORTAGEM      
similares – conhecidos como “áreas de ponte” – têm os maiores índices de
letalidade policial, segundo a própria PM.

Mil denúncias e nenhuma punição

Gilvana Santos/Agência Pública

O promotor Eli Pinheiro, que passou a sofrer ameaças desde que começou a investigar a PM amapaense.

Uma das causas que justificam os homicídios cometidos por policiais militares é
a impunidade, avalia o Ministério Público (MP) amapaense. Ao serem
apontados como autores de um crime durante as ocorrências, os militares
poderão ser julgados em duas esferas. Além de responderem na Justiça, eles têm
de passar por investigação interna na Corregedoria da PM.

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mas a rmam que foram ameaçados
após denúncias à Corregedoria

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blicado no início deste mês, coloca o
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ormação enviada pela Secretaria de
egurança Pública do Amapá estava
ncompleta; dados de 2015 e 2016
também estão equivocados

Os Inquéritos Policiais Militares (IPMs), de acordo com o MP, se mostram tão


alinhados à defesa dos acusados, que servem de elemento para ações criminais
promovidas pelos promotores de justiça.

“Temos percebido que até em casos mínimos as corregedorias da polícia


concluem pela inexistência de crime por policiais pelo corporativismo negativo
dentro das corporações. Normalmente, os IPMs são realizados para emplacar a
versão dos policiais, e isso de certa forma serve de estímulo para aqueles
policiais”, avalia o promotor Eli Pinheiro, que passou a sofrer ameaças desde
que começou a investigar a PM.

Segundo o MP, a forma como os IPMs são elaborados é equivocada. Além de os


policiais não serem investigados por um corregedor de carreira, os inquéritos
deixam de cumprir algumas etapas, como ouvir testemunhas que possam se
contrapor à versão dos denunciados.

Dados obtidos pela Agência Pública por meio da LAI mostram que não há
punição na polícia como resultado de instauração de IPMs.

Entre 2015 e julho de 2018, a Corregedoria da PM recebeu 1.171 denúncias no


total. Destas, somente quatro sindicâncias foram instauradas e nenhuma
resultou em punição. Além de homicídios (3), existem denúncias de abuso de
autoridade
 (210), tentativa de homicídio (3), violação de domicílio
REPORTAGEM  (147),
  tortura
 
(5), lesão corporal (269), ameaças (203 denúncias) entre outros.

Para Eli Pinheiro, o que poderia inibir esse número expressivo de mortes por
PMs seria a própria corporação auxiliar em dar celeridade às investigações e
punições aos maus policiais, sem esperar que a Justiça comum tome alguma
medida. “Bandido bom é bandido preso e julgado”, opina.

Outro fator que colabora para a incidência de crimes cometidos por PMs
durante intervenções é a imagem dos próprios policiais criada pelos moradores
das regiões onde os crimes ocorrem e a banalização da violência, avaliam Ana
Bonfim Pereira e José Luís Leal, cientistas sociais com estudos sobre a temática
de domínio público pela Universidade Federal do Amapá (Unifap).

Ambos analisaram a atuação do Bope em intervenções na Baixada do Ambrósio,


em Santana, lugar conhecido por ser uma “área de ponte” perigosa.

“A forma como o Bope atua nessa área é vista como um espetáculo. A entrada é
sempre triunfal, com arsenal de armamentos, um cenário de guerra, do Estado
contra o tráfico de drogas. O que rende a fama a esses policiais de “heróis” que
lutam contra a criminalidade”, analisa Pereira.

O culto à imagem de herói faz as mortes em intervenções serem tratadas como


uma ação normal por esses moradores, acostumados a conviver com a ronda do
Bope. O cientista social José Leal frisa a maneira como os policiais escolhem
seus alvos nas ocorrências. Segundo ele, as abordagens de suspeição são sobre
as pessoas com estereótipos subjetivos, vagos e fundados em eventuais
preconceitos.

“A grande preocupação está voltada para a subjetividade da fundada suspeita,


que ainda se apresenta como vaga, dependendo, em larga escala, do ponto de
vista e da ação do policial efetuando sobre os indivíduos um prejulgamento
relacionando à figura do criminoso”, avalia.

Cenas forjadas
Para
 o advogado Maurício Pereira, estudioso
REPORTAGEMe membro da Comissão
  Nacional
   
de Direitos Humanos da OAB, alguns policiais estão desvalorizando a vida,
colocando, muitas vezes, o patrimônio acima da vida, ou prejulgando os que
estão sofrendo intervenção policial. “Assim, surgem essas intervenções
desastrosas, com mortes de civis”, observou. Segundo ele, via de regra, essas
ações vêm depois com uma camuflagem.

“Eles tentam dar àquela cena a conotação de que houve um embate entre o
suposto meliante e a guarnição policial. Vários dos casos concretos que tenho
acompanhado e tenho estudado mostram isso, que a cena do crime é
adulterada”, disse, reforçando a existência da prática de colocação de arma na
mão da pessoa morta, inclusive, com o disparo de tiro para que fiquem os
resíduos.

Por causa de alterações de cenas de crimes, o MP do Amapá emitiu


recomendação, em dezembro de 2017, orientando os militares a não levar na
viatura vítimas de intervenção para os hospitais de Macapá. “Após a execução
das vítimas, eles levam para o pronto- socorro. Tem o Samu para isso. Não é o
policial que atira e fere o civil quem vai prestar socorro”, justificou o promotor
Eli Pinheiro.

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publicado no início deste mês, coloca o
Rio de Janeiro em primeiro lugar, mas
informação enviada pela Secretaria de
 Segurança Pública do Amapá estava
REPORTAGEM      
incompleta; dados de 2015 e 2016
também estão equivocados

De acordo com o comandante-geral da PM, coronel Rodolfo Pereira, a violação


de local de crime é prevista em lei, no Código de Processo Penal Brasileiro, e o
policial está ciente disso. “A cena do crime tem que ser preservada. Isso é uma
preocupação nossa também, mesmo sendo previsto em lei, colocamos em nossas
doutrinas. Se o policial violar ou alterar o local do crime, ele certamente vai
responder na Corregedoria”, garantiu.

Para Maurício Pereira, o número significativo de mortes por policiais não é fruto
de despreparo. “A polícia do Amapá é bem preparada, bem equipada e bem
remunerada. Não justificaria essas ações tão violentas”, acredita.

Um ponto que pode estar relacionado ao alto índice, sugere Pereira, é a forma
como as autoridades vinham tratando esse tipo de caso, com omissão, segundo
ele, na apuração onde há o envolvimento de policiais. “Mais recentemente, o MP
vem fazendo um trabalho para reverter isso, e alguns agentes já estão sendo
condenados”, lembrou.

Em contato com a Pública, o MP informou que não dispõe do detalhamento de


ações criminais ofertadas, aceitas pela Justiça e que resultaram em condenações
nos últimos três anos contra militares. O Tribunal de Justiça do Amapá também
não possui levantamento de quantos réus foram condenados em decorrência de
homicídios por intervenção policial.

Assim como opinaram os cientistas sociais, Maurício Pereira também acredita


que os aplausos da população para essa política do “bandido bom é bandido
morto” contribuem para esses resultados.

Tal apologia acaba sendo endossada pelos próprios PMs em redes sociais. Em
grupos de WhatsApp locais, eles expõem um enaltecimento aos crimes
cometidos contra suspeitos por colegas de farda. Frases como “vag… tem que
morrer” ou ofensas ao MP e Comissão de Direitos Humanos são comuns.
“A
 Polícia Militar, como instituição,REPORTAGEM
tem que atuar com documentos
  oficiais.
   Se

você me fala que em grupo de WhatsApp, está ocorrendo esse tipo de


manifestação, não tem nada que chegue à Polícia Militar. Toda denúncia de má
conduta de policial é apurada. Nossa corregedoria é uma das mais rigorosas do
país”, disse o coronel Rodolfo Pereira.

Este texto é resultado do Concurso de Microbolsa de Reportagem


Violência Policial e Intervenção Militar, realizado pela Agência
Pública em parceria com a Conectas Direitos Humanos.

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