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Jul. 2018
O J O R N A L D E L I T E R AT U R A D O B R A S I L
ARTE DA CAPA: ALEXANDRE RAMPAZO
2 | JULHO DE 2018
translato
EDUARDO FERREIRA
ESQUECIMENTO
permite voltar a enxergar, através,
sentidos antigos e novos. Sentidos
que, largados à própria sorte, são
facilmente tragados pelo tempo e
pelo esquecimento.
O tradutor, para recuperar desde 8 de abril de 2000
significados, tem por vezes que
A
tradução é o remédio pido da mente, perdura muito carregar na intensidade da expres- Rascunho é uma publicação mensal
contra o esquecimento mais no papel, sem dúvida. Mas são. Melhor fazer isso que se per- da Editora Letras & Livros Ltda.
do texto. Talvez o único também evapora do papel. Do der totalmente em explicações.
remédio. É a maneira de papel evapora sua porção inteligí- O leitor não precisa nem dese- Caixa Postal 18821
mantê-lo vivo e inteligível, mesmo vel. Sobram os esqueletos quebra- ja explicações, dispensa guias de CEP: 80430-970
dentro de uma mesma língua. Tal- diços. É só dar tempo ao tempo. leitura. Quer ser impressionado Curitiba - PR
vez especialmente dentro de uma Tudo vira pó. E ao pó tudo se po- pela leitura, simplesmente, como
mesma língua. Tradução e atuali- de perguntar, mas sempre em vão. o original poderia fazê-lo. Quer RASCUNHO@RASCUNHO.COM.BR
zação atuam em conjunto para sal- O texto, inicialmente carre- também esquecer do seu futuro WWW.RASCUNHO.COM.BR
var o texto do natural hermetismo gado de memórias e histórias, na- esquecimento — que certo virá,
TWITTER.COM/@JORNALRASCUNHO
que lentamente o recobre. turalmente sofre a decadência e a mais dia menos dia.
O remédio talvez não seja o tendência à insensibilidade. Vai-se Para driblar o esquecimen- FACEBOOK.COM/JORNAL .RASCUNHO
ideal. Tampouco será suficiente. A tornando insensível aos olhares, às to, há que dar nova potência à es- INSTAGRAM.COM/JORNALRASCUNHO
recuperação não será total. Mas é a leituras, às interpretações. Trans- critura. Potência suficiente para
opção que temos para revitalizar a forma-se em papel opaco e estéril. disparar a mesma enxurrada de
escritura perdida em si mesma, ca- Nesse mergulho no esque- ideias que o original poderia dis-
EDITOR
da vez mais cadaverizada pela pas- cimento, as palavras perdem pau- parar. Ou mais ainda, se possível,
sagem do tempo. latinamente o calor que antes com a ousadia de quem trama um Rogério Pereira
Tempo engendra esque- transmitiam ao leitor. Perdem pre- novo texto. O tradutor tem sem-
cimento. Palavras que se enrije- viamente o vigor e o viço. Frias, pre de trabalhar com uma reserva EDITOR-ASSISTENTE
cem pouco a pouco, assumindo perdem o dom de despertar sen- de rebeldia que lhe permita, se pre- Samarone Dias
forma estática e esvaziando-se de sações estéticas. Mortas, provocam ciso, dar o salto — e não estacar à
sentidos. A tradução, roçando ali o desencanto e o assombro da in- margem do precipício. Trabalhar
COMERCIAL
a casca oca, instila nova aragem compreensão. com o sangue misturado à tinta.
de vida, projetando a perpetua- Mais do que a má tradução, Tem que traduzir com os Light Direct
ção do original. a não tradução lança o texto nas olhos de um deus que tudo vê, que comercial@rascunho.com.br
O texto logo evapora da profundezas do silêncio. No poço tudo sente por meio dos sentidos
mente. Foi-se o tempo em que se do esquecimento. Nenhuma voz de todos os seres de todas as épo- COLUNISTAS
guardava a escritura no coração mais se ouve dali. Apagam-se as cas. A sensibilidade, enfim, tem de Alcir Pécora
— ou no cérebro, melhor dizen- várias línguas e vozes que atraves- estar aguçada e pronta para absor-
Eduardo Ferreira
do. Ou, ainda, em cada célula do savam a escritura. ver a irradiação antiga que ema-
organismo. Cada palavra decora- A tradução surge como tá- na do texto. João Cezar de Castro Rocha
da. Cada sentido gravado. E ainda bua de salvação. O velho ofício Infinitas são as interpreta- Jonatan Silva
assim, quem jamais resistiu à for- que frequenta os textos passados ções de um texto. Infinitas as for- José Castello
ça do tempo e do esquecimento? e os iça para novas leituras. A ope- mas de salvá-lo do esquecimento. Miguel Sanches Neto
A escritura, que evapora rá- ração que desbasta a folhagem e Sempre pela via da tradução. Nelson de Oliveira
Raimundo Carrero
Rinaldo de Fernandes
Rogério Pereira
Tércia Montenegro
rodapé Wilberth Salgueiro
RINALDO DE FERNANDES
COLABORADORES DESTA EDIÇÃO
Adriana Lisboa
UM ANÃO
furecido. Com extrema violência,
André Caramuru Aubert
o bancário mata o anão asfixiado
André de Leones
e depois o coloca dentro de uma
mala. Sem Sabrina, sem Paula, Celso Gutfreind
NA MALA (1)
no seu apartamento. Só ele e a Leandro Reis
mala contendo o corpo do anão. Lourenço Cazarré
Pelo visto, são quatro os persona- Marcio Renato dos Santos
gens que se destacam no conto: Rodrigo Gurgel
o bancário desempregado, Sabri- Sampurna Chattarji
na, Paula e o anão. Do bancário
falo mais adiante. Sabrina é pos-
O
ILUSTRADORES
anão, de Rubem Fon- com Sabrina, o bancário é apai- sessiva e agressiva, tenta contro-
Alexandre Rampazo
seca, é a história de xonado por Paula, que lhe deu lar o bancário, conduzir as ações
um bancário desem- atenção e lhe forneceu condições dele. Termina o sufocando. Pau- Aline Daka
pregado que, atrope- para o tratamento após o atrope- la demonstra culpa e compaixão Bruno Schier
lado por Paula, uma mulher rica, lamento. Um dia, decidindo sair pelo bancário que ela atropelou. Carolina Vigna
casada com um banqueiro, ter- com Paula, defronta-se, à entrada Tem posses e se utiliza de estrata- Fábio Abreu
mina sendo hospitalizado para do sobrado onde mora, com Sa- gema, de ardil, para pagar as des- Igor Oliver
serem postos pinos de metal em brina, que, investindo contra ele pesas do tratamento do bancário. Isadora Machado
uma perna lesionada no atrope- para tentar detê-lo, termina desa- Mantém uma relação extracon- FP Rodrigues
lamento. No hospital, o bancário bando na escada, vindo a falecer. jugal com o bancário e torna-se, Matheus Vigliar
conhece Sabrina, que ele acha ser O bancário inventa uma história mesmo, cúmplice dele no caso da Tereza Yamashita
uma servente que se finge de en- para o delegado e se safa de um morte de Sabrina. O anão é mui-
fermeira. Passa a manter relações processo. Ele e Paula passam a ter to pobre, tendo até mesmo que,
DESIGN
sexuais com ela. Sabrina é muito uma relação intensa, até que uma conforme diz o narrador, “uru-
possessiva e sente forte ciúme de foto nua de Paula cai nas mãos de buzar” o lixo. Malicioso, desleal, Thapcom.com
Paula, a quem chama de “ociosa um anão, o único amigo do ban- termina ludibriando o bancário
fútil” ou ainda “dondoca assassi- cário. O anão aí tenta extorquir ao tentar extorquir Paula. É mor- IMPRESSÃO
na”. Embora mantendo relações Paula, o que deixa o bancário en- to por vingança. Press Alternativa
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6
Entrevista
15
Inquérito
16
Paiol Literário
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Conto
Edgard Telles Ribeiro Flávia Lins e Silva Ruy Castro Lourenço Cazarré
FOTOS: DIVULGAÇÃO
a literatura na poltrona
JOSÉ CASTELLO
DENTRO
bem alto, em um lugar onde nin-
guém mais o ameaçasse com deci-
sões violentas e onde ele pudesse,
enfim, se dedicar a ser. Na verda-
de, uma fuga para dentro — o al-
to, ou o baixo, sendo apenas uma
circunstância banal.
E
spantados, presos a uma Desde então, a menina Mi-
agitação de imagens ce- chiko passou a levar para o topo
gas, de palavras discre- da árvore também seus livros de
pantes, de atos insanos, escola, e os dois iniciaram, qua-
sentimos que precisamos parar e se sem saber, um namoro delica-
nos entender. Mas parar onde? do, regido pela fuga e pelo fogo
Em que lugar podemos, realmen- da escrita. “Havia dias em que os
te, fazer isso? Parar, recolher-se, passarinhos vinham, ou ventos
voltar a si para, enfim, pensar e só passavam farfalhando as folhas”,
depois com novo fôlego seguir em descreve Kawabata. Para concluir:
frente é um sonho humano que “Não era muito alto, mas os pe-
vem desde a longínqua infância. quenos namorados sentiam que
Parar, mas como? Onde encontrar estavam num mundo comple-
abrigo? Mais uma vez, é na litera- tamente desligado da terra”. Es-
tura que encontro uma resposta. sa separação, esse desligamento,
Depois de muito rondar, deparo só através deles é possível chegar
com uma inspiradora pista na lei- a si. Só através deles, alguém —
tura de Em cima da árvore, conto um menino, uma menina, um
que o japonês Yasunami Kawaba- escritor, um homem qualquer —
ta escreveu em 1962. Um relato emerge de dentro de si e se afirma
discreto, muito breve, mas afiado no mundo. Tudo muito diferen-
que, transformando a escrita em te de nossos tempos convulsos,
vida, me empurra de volta à mi- em que todos nos enroscamos e
nha própria infância. nos movemos sempre em espiral,
No relato de Kawabata — sem sair do lugar, em uma agita-
que se inicia na página 451 dos as- ção inútil porque infértil.
sombrosos Contos da palma da Esse retorno ao primitivo, e
mão, editados pela Estação Li- ao primordial, já aparece, muitas
berdade, em tradução direta do páginas antes, no conto Oração em
japonês de Meiko Shimon — o língua materna. Kawabata come-
menino Keisuke, desgastado pelas ça narrando o caso de certo dou-
brigas intermináveis entre os pais tor Scandila, um italiano que foi
por causa de uma segunda mu- professor de italiano, francês e in-
lher, resolve se esconder no alto glês e que contraiu a febre ama-
de uma árvore, onde, sozinho, lê, rela. No dia em que adoeceu, ele
pensa e se protege. Mantém seu falou só em inglês. “Depois, na fa-
esconderijo em segredo, mas, um Ilustração: Bruno Schier se progressiva da doença, falou em
dia, ele o revela à amiga Michi- francês; e, no dia em que morreu,
ko, que, apesar do medo de cair, só falou italiano, sua língua mater-
passa a acompanhá-lo em seu re- na.” Como delirava a maior parte
fúgio. “Mit-chan, é segredo, es- do tempo, Scandila não estava em
tá bem?”, o garoto lhe pede, com condições de escolher consciente-
insistência. “Eu fico muitas vezes jardim. Uma escada de madeira, da caixa d’água eu tenha reli- mente cada uma dessas línguas.
aqui em cima. É segredo. Aqui em bamba e roída, estava sempre en- do, por várias vezes, o Robin- Alguma coisa o levou a refazer o
cima da árvore eu leio livros e es- costada a ele, dando acesso à caixa son Crusoe, de Defoe, e, em percurso de sua vida da frente pa-
tudo também. Não vai contar pa- d’água no topo. Aos sete ou oito um caderno escolar, em meio ao ra trás, até chegar a si mesmo e a
ra ninguém, promete?” anos de idade, aprendi que, subin- crepúsculo, tenha escrito meus sua origem italiana.
Para um velho leitor, é ine- do essa escada, e me escondendo primeiros e deploráveis poemas “Estes exemplos são rela-
vitável lembrar, aqui, da torre de atrás do reservatório, eu ficava fora de menino, que depois perdi pa- tivos à língua. Mas o que repre-
Michel de Montaigne, localizada da vista de meus pais e de meus ir- ra sempre. Nada comparável, sentam esses estranhos fatos?” Os
no departamento francês da Dor- mãos e podia ali, do meu jeito tor- portanto, à torre de Montaigne psicólogos talvez os explicassem
donha, onde, no final do século to, no alto de uma torre instável e e à escrita de seus Ensaios, mas, como “uma anormalidade da me-
16, o filósofo se recolheu, cercado feia, simplesmente viver. ainda assim, um lugar secreto — mória”. Pergunta-se Kawabata:
de livros, para escrever os célebres Nos fins de tarde, em pleno como o do menino Keisuke, no “Orar em língua materna não se-
Ensaios. Desde então, escritores crepúsculo, eu tinha um segun- conto de Kawabata — onde eu ria uma prova de que as pessoas,
estão, quase sempre, em busca de do esconderijo, mais devassado: aprendi que era possível ser Um, amarradas pelas cordas de anti-
um abrigo onde possam desapa- ao lado da casa, havia um grama- e não só “mais um” em um longo gas tradições a ponto de ficarem
recer para ser. Na verdade, esse do solitário, em forma triangu- séquito de fantasmas familiares. sufocadas, em vez de tentarem se
desejo vem desde muito antes da lar e cercado por limoeiros, onde Volto ao relato de Yasuna- libertar da amarra, vivem se apo-
literatura, vem de muito mais lon- ninguém aparecia; um lugar pe- mi Kawabata que, devo registrar, jando nessa corda?”. Talvez pos-
ge. Enquanto lia a história de Ka- lo qual ninguém se interessava, é um de meus escritores favoritos. samos chamar de raízes o que o
wabata, logo me lembrei de dois mas onde eu me recolhia para es- Os motivos do menino, como já escritor japonês chama, aqui, de
esconderijos, bem menos român- perar a noite e sorver, mais uma disse, foram bastante circunstan- “tradições”. Como o menino que
ticos, que eu mesmo elegi em mi- vez, agora longe do sol, o gozo ciais. “O papai e a mamãe tiveram se refugia no alto da árvore para
nha infância. Na casa de meus pais da solidão. Não fiz nada de espe- uma briga terrível, e a mamãe dis- se agarrar melhor a si mesmo, to-
em Teresópolis, havia um banhei- cial em nenhum dos dois lugares: se que ia embora para a casa dos dos buscamos um ponto fixo des-
ro de reserva, isolado, entre aba- não escrevi um livro e nem tive vovós me levanto junto”. A amea- de o qual observar o mundo e,
cateiros e pereiras, nos fundos do ideias brilhantes, embora atrás ça de ser arrancado do lugar de enfim, respirar.
6 | JULHO DE 2018
entrevista
EDGARD TELLES RIBEIRO
DIVULGAÇÃO
ILUSÕES
bém trata de ilusões perdidas. “[Há] personagens que certa mobilidade ao protagonista
não são bem o que parecem ser, situações esquivas ou masculino (narrador), que já no
mal resolvidas, esperanças que se dissolvem face a rea- segundo capítulo volta suas aten-
lidades inglórias”, completa. ções para o antigo crime. E daí,
As mortes misteriosas de três personagens femi- aos poucos, vai se abrindo pa-
PERDIDAS
ninas perpassam Uma mulher transparente. “Chego ra outros mistérios. Mesmo por-
a achar que, em dado momento, as três mulheres de que vinte anos separam esses dois
certa forma empalidecem (como eixo central do dra- primeiros capítulos. E muito terá
ma), para ceder espaço à dúvida e ao desencanto”, co- ocorrido entre 1962 e 1982. Daí
menta Ribeiro. em diante, essa dinâmica permite
O escritor concedeu entrevista ao Rascunho por ao livro se reinventar a cada mo-
e-mail no fim de maio e — por meio da troca de men- mento, fazendo com que a histó-
Desencanto, tristeza e mistério dão sagens — falou, principalmente, sobre Uma mulher ria corra solta sobre trilhos que,
o tom ao romance Uma mulher transparente. A partir de questões do livro recente, Ri- por sua vez, também obedecem
beiro, de 73 anos, autor de 12 títulos (nove romances a percursos inesperados. E assim
transparente, de Edgard Telles Ribeiro e três coletâneas de contos), também comentou outros é que o mistério envolvendo uma
temas, entre eles, a morte da vereadora carioca Mariel- primeira mulher dá origem aos se-
le Franco (1979-2018). gredos de que é parte a segunda,
MARCIO RENATO DOS SANTOS | CURITIBA – PR até chegarmos ao enigma que pa-
• A morte da vereadora Marielle Franco dialo- rece pairar sobre a terceira — e...
ga com a morte de uma personagem baleada, em Melhor ficar por aqui.
maio de 1962, em Uma mulher transparente? Ca-
so sim, de que maneira? • Se o leitor não tem tanta cer-
Dialoga, apenas, pela vertente da impunidade. teza, a partir da página 50, fi-
U
ma mulher transpa- pano de fundo de mistérios de todo Sob esse prisma — o prisma de uma chaga que enver- ca mais claro, de maneira sutil,
rente, o mais recente tipo”, afirma Ribeiro, que acres- gonha nosso país, já que corrói qualquer expectativa de que Uma mulher transparente
livro de Edgard Tel- centa: “O narrador é vítima de sua justiça — as duas mortes teriam algo a ver. Vale lem- é um livro sobre a ditadura mi-
les Ribeiro, completa história. Ele nada planeja, é leva- brar, antes de dar sequência a minha resposta, que de- litar. Há outros livros, cada vez
uma trilogia sobre a temática da do pelo enredo. E o enredo vai se zenas de casos semelhantes ao de Marielle permanecem mais livros sobre o tema, publi-
repressão — os outros títulos são abrindo diante dele. Nosso ami- sem solução Brasil afora, dentro e fora da área dos di- cados recentemente no Brasil. O
O punho e a renda (2010) e Da- go limita-se a correr atrás de seus reitos humanos. Assim, ainda que os assassinatos dessa assunto, ditadura militar, preci-
mas da noite (2014). Mas o autor personagens, ou ser aspirado pe- jovem militante e seu motorista venham a ser esclareci- sa ser mais debatido, estudado?
faz uma observação: “Uma mu- los rodamoinhos por eles criados”. dos até a publicação da presente entrevista, as dezenas Falta falar, evidenciar muito so-
lher transparente também é um A Todavia, editora que pu- de crimes não solucionados continuarão a clamar por bre a questão?
livro sobre a ditadura militar. Mas blica Uma mulher transparen- soluções e alimentar nossa indignação. E haverá triste- Se você me permite um li-
nem de longe ‘apenas’ sobre ela”. te, justifica em seu site o motivo za maior do que saber que, para centenas de famílias, geiro reparo, eu diria, antes de
O romance é narrado por de ter viabilizado esta narrativa de reinará a impunidade? Voltando agora a sua pergun- mais nada, que Uma mulher
um escritor que elabora uma fic- Ribeiro: “Livro que trata de forma ta: excluído esse denominador comum, nada aproxi- transparente também é um li-
ção que se passa durante o golpe envolvente das cicatrizes políticas ma as duas mortes, na medida em que muito pouco vro sobre a ditadura militar.
militar de 1964. “Tanto o manus- e emocionais deixadas pela dita- une o Rio de Janeiro de 1962 (quando minha história Mas nem de longe “apenas” so-
crito redigido por meu persona- dura”. O autor diz que o comen- tem início) ao Rio de Janeiro do corrente ano de 2018, bre ela. (Não por acaso, no final
gem, quanto meu livro, lidam, tário é “bastante adequado”, mas quando Marielle foi vitimada. O que em 1962 pode- do livro, o narrador chega a ficar
sim, com a ditadura, mas como acrescenta que seu romance tam- rá ter chocado uma cidade e seus habitantes, por sua meio indignado quando seu edi-
JULHO DE 2018 | 7
O tesouro
peito de nossos dedicados generais? ciava.” Que fase se iniciou em
Execuções sumárias de prisioneiros 2002? Ainda vivemos algo que
acorrentados encontrariam respal- teve início em 2002?
do em algum manual da ESG [Es- Em fins de 2002 uma vas-
das histórias
cola Superior de Guerra]? ta maioria de nossa população (da
qual fiz parte) elegeu uma nova li-
• Há um fragmento de Uma mu- derança (que, no livro, não é no-
lher transparente que precisa ser meada por desnecessário — mas
mencionado, na íntegra, antes à qual você alude em sua pergun-
da pergunta. “É bom conversar ta). Liderança que abria perspecti-
com quem não me conhece — vas de mudanças reais para o país e CELSO GUTFREIND | PORTO ALEGRE – RS
prossegui. — As pessoas mais suas classes menos favorecidas. Li-
íntimas tendem a ficar atentas derança essa, reeleita mais adian-
a um lado autobiográfico, que te (com meu voto uma vez mais).
C
não existe. Erram em suas supo- Por isso escolhi esse marco para
sições, correm atrás do que mal concluir meu livro. Um livro que aco Ciocler, ator conhe- Zeide
vislumbram. Com isso, nem muito deve à tristeza e à desilusão. cido e documentarista, CACO CIOCLER
sempre veem o que escrevo. Já Não é à toa que é para um cemité- estreia no romance com Planeta
quem não me conhece.../ — Só rio que o narrador volta seu olhar Zeide. Zeide é avô em 240 págs.
vê o texto./ — Exatamente.” É ao tomar seu conhaque na página iídiche. Caco vem de uma família
uma conversa entre o narrador e final. Esperança, ele tem. Mas o judia e o livro aborda ficcional-
Gilda, na página 65, em que eles que paira a seu redor é a tristeza. mente a trajetória dessa famí-
falam sobre um texto literário. lia com o foco apontado para
O que está escrito também refle- • No site da Todavia, a editora o amor entre o neto e o avô. O
te seu ponto de vista sobre a re- que publica Uma mulher trans- zeide Sucher veio da Bessarábia
cepção de uma obra? Os amigos, parente, há uma justificativa pa- como tantos outros imigrantes
próximos do escritor, não con- ra a publicação da obra: “Livro na primeira metade do Sécu-
seguem ler o texto como o texto que trata de forma envolvente lo passado. Com passagem pe-
deveria ser lido? das cicatrizes políticas e emo- la Alemanha e sem poder ir ao da ao outro filho). Queria estar livre para ir ao cinema
Nem sempre conseguem — cionais deixadas pela ditadura”. Canadá que fechara as portas aos ou outra coisa qualquer, o que, depois de libertar-se do
se comparados aos leitores que nada O que acha da explicação? imigrantes, rumou para o Brasil compromisso, jamais fez. O espanto da criança diante
sabem de mim. Não digo que eles Bastante adequada, dadas as com dois irmãos. do mundo ou a necessidade de olhar o seu retrato jun-
“garimpem o texto”, com uma lu- exigências de síntese que o espa- O romance de Ciocler, co- to aos de outros netos no armário da casa do avô de-
pa, atrás de possíveis referências au- ço requeria. A expressão “cicatrizes mo a vida de seus antepassados nota a busca de uma identidade ou um pertencimento
tobiográficas. Mas ficam atentos. E, políticas e emocionais” me pareceu ou a de qualquer um de nós, não entre o sentido e o caos dessa história como, talvez, de
até onde imagino, isso deve atrapa- muito feliz. Acrescentaria apenas é linear e está repleto de diver- todas as outras.
lhar aquilo que todo autor espera que se trata, também, de um livro sas perspectivas ou focos narrati- Antes disso, outra cena pungente. Sucher rece-
de um bom leitor: imersão total na sobre ilusões perdidas. Personagens vos. E, sobretudo, de cenas. Uma be o diagnóstico de um tumor cerebral e está apático.
história sendo contada. Portas tran- que não são bem o que parecem a uma, elas também compõem a Seu sócio quer comprar a sua parte e tenta enganá-lo
cadas, celulares desligados e foco no ser, situações esquivas ou mal resol- base do romance, assim como a vi- nas contas. Mais forte do que a doença, Sucher volta
texto... Zero desvios que impeçam vidas, esperanças que se dissolvem da de um ator. das trevas das sequelas neurológicas para defender o
uma concentração total. (Disper- face a realidades inglórias... A viagem no porão do na- negócio e a família.
sões autobiográficas incluídas.) vio é uma delas, cena comoven- Caco se mostra um narrador de fôlego, legítimo
• Retomando a primeira ques- te na fome e na sede dos marujos herdeiro de uma cultura reunida em torno do livro
• Uma mulher transparente traz, tão após passar pelo enredo de alimentados pela esperança. Ou- e seu potencial narrativo com uma turma que inclui
entre os poucos cenários, todos seu livro: o que está por vir após tra é o casamento arranjado de Su- Scholem Alechem e Moacyr Scliar, entre tantos ou-
selecionados criteriosamente, a a morte de Marielle Franco? cher com Pina, hábito na cultura tros. Ele é capaz de criar uma estrutura cheia de idas e
Adega Pérola, no Rio de Janeiro: Futurologia não chega a ser judaica da época. Quando nasce vindas, onde assistimos ao desenvolvimento do bair-
“Para tapas e outras especialida- meu forte. Mas torço para que os Boris, o primeiro filho do casal, o ro Bom Retiro com a convivência harmônica entre ju-
des espanholas ou portuguesas, assassinatos de pessoas de bem — pai vai ao cartório e, na hora do deus e árabes. Detalhe: Jurandir Czakzles Chaves, o
não havia opção melhor no Rio seres que se dedicam de corpo e registro, não consegue informar o Juca Chaves, é amigo do jovem Sucher.
de Janeiro. As mesas estreitas, alma a agendas abnegadas — pa- nome completo da esposa, quase A memória de uma sinagoga tomada pelo bafo
cada qual cercada por seis ban- rem de se multiplicar, de modo a uma desconhecida para ele. Mãe e dos fiéis em meio ao jejum de Yom Kipur, o dia do per-
cos presos ao chão, respondiam estancar a sangria que não cessa de filho padecem problemas de saúde dão, põe em cena aquele humor judaico afiadíssimo em
pela intimidade austera do am- nos afligir e envergonhar. e Sucher vê-se obrigado a encon- resgatar a alegria na adversidade. Freud sempre pôs em
biente”. Além da Adega Pérola, trar uma ama-de-leite que é negra. destaque essa capacidade na vida mental das pessoas,
o Alvaro’s também é cenário na • Algum novo livro a caminho? A cena aqui, como tantas outras, independentemente de sua cultura. O mesmo Freud
narrativa. Por que citar, especifi- Estou sempre trabalhando. cria uma metáfora consistente em talvez dissesse que todo ator, com a parte da atenção
camente, os dois espaços? Mas minha prioridade atual tam- meio a uma linguagem banhada que recebeu dos pais, busca no público a parte que não
Porque são dois cenários bém é tentar resgatar do esqueci- pela poesia. Porque, no encontro teve. Caco descobriu o seu talento dramático ainda pe-
que frequento há anos, conheço mento minha obra anterior (onze do jovem judeu e seu bebê com queno, ao fingir um sequestro no condomínio onde
com muita intimidade, e conside- livros, entre oito romances e três co- a mulher negra, descortina-se um morava, quando quase matou do coração a mãe judia.
rei perfeitamente adequados para leções de contos, quase todos publi- pouco mais (ou muito) da alma De cena em cena, uma delas ganha destaque. Em
abrigar as cenas ali inseridas. (Ho- cados pela Companhia das Letras e brasileira, marcada por este mel- Santos ainda, pouco depois da chegada e já trabalhan-
je, por sinal, almocei no Alvaro’s Record), esquecimento esse devido ting pot cultural. do como caixeiro-viajante, Sucher é surpreendido por
com dois amigos...) Além desses ao fato de que essas obras foram pu- Novas cenas significativas um convite do irmão. Havia um tesouro escondido
cenários, me vali também da bi- blicadas entre 1991 e 2014 — e que vão se sucedendo nas mãos do em Ilhabela, com a promessa de um atalho para a for-
blioteca de uma residência parti- ao longo desses 23 anos eu passei hábil narrador entre as invarian- tuna. Ele, o irmão Sruel e Jacob, um companheiro de
cular (para situar certas conversas apenas dois no Brasil e vinte e um tes de uma comunidade judaica pensão, partem em busca do ouro e aparentemente o
entre o narrador e um dos perso- no exterior (por força de minha car- com suas marcas (o tino comer- resultado é desastroso: passam fome, frio, sede e pou-
nagens) e do escritório de uma reira diplomática, da qual estou hoje cial, a mãe judia) e as variantes co encontram. Pouco encontram?
enciclopédia, como palco da ce- aposentado). De modo que, ao lon- do encontro com a vida brasilei- Em torno de uma Ilhabela nativa, encontram
na que abre o livro. Fico achando go dessas duas décadas e tanto, eu ra. As famílias materna e paterna, pescadores repletos de histórias. Com a “fortuna”, Su-
que esses locais conferem à histó- vinha ao Brasil de férias, lançava o já em São Paulo, não frequentam cher consegue comprar uma bicicleta que incremen-
ria uma espécie de “adensamento livro em três cidades, dava uma en- o mesmo clube, porque há dois. ta os seus negócios. Mas nada foi mais valioso do que
espacial” que favorece a tal imer- trevista ou outra, partia — e o livro E nem a mesma sinagoga, porque as histórias que ouviu. Essas, sim, parecem a riqueza
são total a que me referi acima... afundava. Tanto assim que, ainda há duas, tema de uma anedota ju- maior e uma das grandes contribuições da cultura ju-
Esticando um pouco as analogias, hoje, apesar das premiações recebi- daica bastante conhecida sobre daica para o mundo desde o Antigo Testamento.
um pouco como ocorre no corpo das e dos livros editados no exterior, um judeu náufrago que construiu Mais do que tecidos, joias e roupas vendidas a
a corpo entre atores e espectadores quando alguém me apresenta em al- dois templos em uma ilha habita- prestação de bairro em bairro, elas, as histórias, são as
que o teatro proporciona. guma roda social como escritor, eu da só por ele. A função de um de- responsáveis pela sobrevivência de uma cultura tão per-
cumprimento a pessoa e vou logo les era, justamente, ele não entrar. seguida. A ficção, essa capacidade de criar relatos plenos
• Ao final do livro, já em 2002, o dizendo: “Muito prazer, eu sou o es- O neto de Sucher, o menino de imaginação, manteve acesa a esperança: “Fingir não
narrador observa que os tempos critor brasileiro mais desconhecido Caco, é incapaz de entender por é propor engodos, porém elaborar estruturas inteligí-
de ressentimento haviam chega- que você jamais conhecerá...” Todo que a mãe se revolta com a obri- veis”, escreveu Jacques Rancière, pensador da estética.
do ao fim. Era o começo da Era mundo ri. E, depois, todo mundo gação de receber o zeide todas as Caco Ciocler, com a sua narrativa, faz a gente
Lula. “Uma nova fase se anun- fica sério e muda de assunto. quintas-feiras (a terça era reserva- sentir isso.
A SESI-SP EDITORA terá uma casa na
25 a 29 de Julho
Rua Dr. Samuel Costa, 203
AUTORES JÁ CONFIRMADOS:
Jocy de Oliveira, Gabriela Greebe,
Juliano Pessanha, João Carrascoza,
Selma Maria, Cris Eich e Raquel Matsushita.
Até lá!
rascunho
10 | JULHO DE 2018
A VOLTA DO
CONTISTA
E
xistem os romancistas São relatos de momentos diferen-
que escrevem contos e tes, ligados a estes momentos, que
os contistas que escre- não fazem parte de um conjun-
vem romance. A ma- to pensado para figurar como algo
neira de escrever própria de um maior, interligado. As peças não
gênero se manifesta no outro, em repercutem umas nas outras, nem
deslocamentos que inovam as ar- como linguagem nem mesmo
tes de narrar. Há ainda aqueles quando o tema é próximo. Estes
autores que, mesmo praticando contos pertencem a uma rotina
dois ou mais gêneros, conseguem de escritor, convidado para pu-
uma alteridade formal, dando ao blicar ficção breve em jornais e
leitor a sensação de serem perso- revistas ou a participar de anto-
nalidades literárias distintas em logias. Poderíamos dizer que são
cada modalidade. pautados pelas demandas de um
Estreando na prosa com sistema literário em que o con-
duas coletâneas bem recebidas cri- to encontra mais público em re-
ticamente, Histórias de remorsos uniões temáticas.
e rancores (1998) e os sobrevi- Tirando Alegria, a maior
ventes (2000), Luiz Ruffato não narrativa do volume, que se alon-
seguiu na carreira de contista, em- ga em uma estrutura de novela, os
bora esta seja a sua vocação pri- demais contos são muito breves e
meira. E se fez romancista com alguns tendem para o circunstan-
eles eram muitos cavalos (2001), cial. Neste, há um investimento
uma narrativa longa obtida pela de linguagem, um clima tenso-
justaposição nervosa de episódios -onírico, que revela uma viagem
em torno da vida urbana na gran- lisérgica pelo interior da persona-
de metrópole brasileira. Este li- gem e do próprio país, em que a
vro é um conjunto de contos e de realidade apenas se insinua, em-
crônicas em funcionamento de ro- bora possamos identificar referên-
mance, o que permitiu que a es- cias à ditadura militar brasileira,
trutura fragmentada fosse uma com seus desregrados e seus bru-
“descrição” pela linguagem da ci- tos oficiais da ordem. A história,
dade de São Paulo, que só pode ser que coloca em conflito o mundo
percebida nesta velocidade e mul- das famílias e as comunidades vol-
tiplicidade de registros. tadas para o prazer, em um clima
A partir deste livro, o au- de liberação dos sentidos, é nar- se faz o grande tema do livro, também por gressores, gente pobre, adultos
tor se especializou em escrever rada por um jovem chapado, que ter uma presença no imaginário do opera- frustrados, trabalhadores, a legião
se valendo de tal procedimento, não percebe bem o que está viven- riado brasileiro, grupo social mais recor- convocada por Ruffato é uma es-
e reorganizou seus contos de es- do. A própria questão da alegria rente nos livros de Luiz Ruffato. colha ética de trabalhar com os
treia em estruturas maiores, apre- era uma bandeira da geração dos Alguns textos da coletânea derivam subalternos, enquanto a lingua-
sentadas como romances. Ruffato anos 60/70, época implícita nesta para a crônica, o que é sempre um risco gem é a da ruptura estética, uma
é um contista que escreve roman- ficção cifrada. O conto (datado de da escrita recolhida de publicações na im- fronteira entre o realismo poéti-
ce. Mais do que isso, um autor 2016) estaria dentro do calendá- prensa. Podem ser incluídas nesta cate- co, com diálogos e descrições, e a
que monta romances a partir do rio de comemoração dos 30 anos goria: ¡Gua! e O expositor, em que a nota linguagem de invenção. No todo,
entrelaçamento de histórias que do fim da ditadura (1964-1985), de registro se sobrepõe à linguagem e ao no entanto, temos um livro que
podem ser compreendidas de tendo portanto uma função histó- A cidade dorme enredo. Mas há também contrapontos, reforça o caráter político das es-
maneira autônoma. Este é um rica por repercutir uma efeméride. LUIZ RUFFATO textos em que os experimentos formais colhas do escritor, que conta suas
recurso típico das vanguardas Este contexto hippie é tra- Companhia das Letras crescem, tornando-se o centro da narrati- histórias a partir de trajetórias pe-
128 págs. va, como Kate (Irineia). Quando se conci-
do começo do século 20, usado tado de forma mais realista em riféricas, para as quais ele conce-
mesmo em um dos livros maio- Água parada, em que a viagem liam estes dois polos, um investimento de de um instrumento de expressão
res da ficção brasileira — Grande pelo interior do Brasil se dá no linguagem que funcione como narração, vanguardista. Ruffato é um expe-
sertão: veredas (1956), de Gui- plano geográfico e se interrompe surgem os pontos altos do livro, como o rimentalista politizado, correspon-
marães Rosa, o que localiza este- por uma acomodação do narra- conto que lhe dá título ou Minha vida, dendo a um perfil de intelectual
ticamente a ficção de Ruffato em dor, que acaba vivendo em Ilhéus As vantagens da morte e O dia em que en- brasileiro que voltou ao centro do
uma tradição de ruptura. (Bahia), lugar em que nunca de- contrei meu pai, momentos em que a no- campo do poder literário.
Neste ficcionista, o proce- sejou morar. Esta suspensão do ta memorialística estabelece uma empatia Se seus romances revelam
dimento chega ao ponto de ele movimento é simbólica, mostran- desolada com o que é narrado. “Eu era, eu uma força centrípeta, que solda
justapor também obras que são do o fim dos sonhos e o início da sou, um corpo encharcado de lembran- trajetórias e linguagens diferen-
a justaposição de narrativas, co- vida rotineira em uma cidade que ças”, diz um dos narradores. tes, o volume de contos aposta na
mo é o caso da pentalogia Inferno não foi de sua eleição. Há também outra forma de víncu- força centrífuga, criando, pela dis-
provisório, reunião dos romances Nesta ótica de que os con- lo. Com o objetivo de eleger o tipo de persão, um amplo painel de lin-
de histórias Mamma, son tanto tos remetem a episódios do calen- leitor desta matéria vária, Ruffato dedica guagem. O contista, dessa forma,
felice, O mundo inimigo, Vista dário recente do Brasil, podemos cada conto a um escritor amigo, meio que demite o romancista, para se co-
parcial da noite, O livro das im- ver também a força da copa do sugerindo que o conto está mais dirigido locar no lugar axial da autoria. O
possibilidades e Domingos sem mundo de 2014 por trás de algu- a estes companheiros de viagem do que contista quer ser lido como con-
Deus. O trabalho com a monta- mas narrativas. Naquela altura, o ao leitor comum. Enquanto o romance tista, na mudança de frequência
gem é uma das marcas do autor, autor publicou contos novos re- se faz aberto a um público maior, o conto das narrativas. A cidade dorme
que agora retorna à gramática da lacionados ao mundo do futebol é uma troca de senhas entre produtores. nos reconcilia com os dois pri-
história curta com um volume de ou republicou textos nesta linha já Assim, o texto vem com o seu destinatá- meiros livros do autor e nos faz
contos avulsos, acumulados em divulgados antes, respondendo à rio ideal, a reforçar as relações diretas com lembrar que o bom romancista
seu currículo de publicações a par- solicitação de matéria ficcional so- episódios históricos e pessoas. precisa ser um bom contista, mes-
tir de 2004 — A cidade dorme. bre este esporte. Assim, o futebol Crianças recordadas, jovens trans- mo que não publique contos.
GRANDES
DESCOBERTAS
PASSARAM
PELA
CURIOSIDADE
DE UMA
CRIANÇA.
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JULHO DE 2018 | 13
simetrias dissonantes
A CONCRETUDE
DOS MUNDOS REAIS
O
s primeiros parágra ção com as questões da sociedade
fos do Manifesto : atual, eu reitero a minha sugestão,
Convergência (ainda já abordada numa primeira carta
em progresso), publi endereçada ao Rascunho no final
cados na edição de fevereiro do do ano passado, de uma matéria
Rascunho, atraíram a reflexão de sobre a autoficção. Me espanta
outros escritores, compartilhada o número de livros que contam
nos números seguintes do jornal. aquilo que vive ou viveu o escri-
Recentemente, a escritora tor. Mais me espanta a ausência de
Ligia S. Ikeda, há dez anos mo- reflexão crítica quanto a tal gêne-
rando na França, enviou por e- ro literário. A construção de uma
-mail sua contribuição ao debate. reflexão sobre literatura e indivi-
Reproduzo abaixo os princi- dualismo, narcisismo, compadrio
pais trechos de sua carta aberta. O acadêmico e editorial, infantiliza-
texto integral será oportunamente ção cultural, falta de relevância do
publicado na web. escritor no contexto cultural na-
cional contemporâneo, ganharia
Duas dimensões se questionasse a produção expo-
Quando penso no papel da nencial de autoficções.
literatura nas questões levantadas, Enquanto mera leitora e
e na sociedade atual, duas dimen- amadora de literatura, vou tentar
sões, uma externa e outra interna, levantar alguns pontos sobre o as-
me ajudam a organizar algumas sunto. Certamente faltará rigor
proposições. acadêmico, citação, posicionamen-
Começo por uma constata- to. Mas a literatura não pertence a
ção, que trata da dimensão exter- ninguém. Não me acomodo com
na à literatura: o preço proibitivo as categorias popular e erudito, ain- romance epistolar… Formas que sente na realidade. A construção dessa nova teoria
do livro no Brasil. Os livros ditos da que não considere que um livro traduzem a experiência da realida- implica que o cientista faça uso da imaginação. Se
de bolso ou são baratos, mas de au- de Stephen King tenha o mesmo de. Mas para que tenham algum ele se contentasse em observar, descrever e testar a
tores antigos e mal traduzidos, ou valor que um livro de Dostoievs- valor, devem ultrapassar o âmbito realidade, confinado em ideias já postas, as ciências
são caros. Não se pode dizer de ki. Se esperamos que a literatura individual, para contar algo da ex- seriam inalteráveis. Segundo Nelson Goodman,
um livro de bolso que custa trinta tenha maior relevância, devemos periência universal. Da existência, em sua obra de 1978, Maneiras de criar mun-
reais que ele é acessível. No Brasil, ultrapassar tais categorias. do ser humano. dos: “Ficção, portanto, seja ela escrita ou pintada
quem não tem pelo menos qua- A princípio, um escritor de Nem toda autoficção é si- ou representada, não se baseia no nada ou em pos-
renta reais para gastar num livro autoficção trabalha sobre o limite nônimo de má leitura. Mas a síveis mundos diáfanos, mas, ainda que metafori-
não pode ler um autor contempo- entre a ficção e a realidade. Conta maioria é. Contam, através de camente, em mundos reais. (...) A ficção opera em
râneo. As editoras vão argumentar histórias, sensações, experiências uma forma cuidada da escrita, a mundos reais da mesma maneira que a não ficção”.
que muito pouca gente lê. Aí está próprias. Às vezes usa um perso- vida de um indivíduo, o escritor. Para preservar a riqueza da realidade e das coisas hu-
outro ponto da dimensão externa nagem, que o leitor sabe represen- A personalidade toma o lugar do manas, utopia e ficção são imprescindíveis.
à literatura na sociedade atual: a tar o próprio escritor. Às vezes está personagem. A anedota toma o
capacidade de ler e o hábito da lei- diretamente presente no texto. A lugar do texto. O particularismo, Ficção
tura são coisas que se aprendem. grande maioria usa a primeira pes- o lugar do universal. Algumas vi- Nessa semana eu li o conto Rolézim de Geo-
Leitura e literatura, como soa. Porém não podemos chamar das são extraordinárias, extrema- vani Martins. Parece que ele vem da favela, que fez
tantas outras questões no Bra- tais livros de autobiografias, por- mente interessantes, ainda que um monte de outras coisas antes de escrever. Não
sil, estão ligadas ao acesso. Acesso que utilizam a forma da ficção. In- particulares. Algumas experiên- sei se tem ou teve um irmão. O conto narra uma
cognitivo (aprender a ler, adqui- teressante seria aplicar o método cias reais só encontram expressão tarde de um personagem. É rico em detalhes, au-
rir o hábito da leitura, desenvol- de Foucault e, através da arqueo- por meio da ficção. Cabe ao es- dacioso na linguagem, bem ritmado. Lá fora um
ver uma cultura literária), e acesso logia do saber, identificar a emer- critor o olhar crítico sobre aquilo frio de primeira, e foi como se eu estivesse passan-
material (adquirir um livro, uma gência da autoficção. Em que que escreve. Às vezes, ambicioso do uma tarde no Rio de Janeiro. Isso, e mais. Dá
revista, se formar). Enquanto não momento se tornou uma forma é optar pela modéstia. matéria para pensar, provoca emoções. Ler uma his-
tomarmos a questão da distribui- literária aceita pelos leitores, e le- Para mim, se a autoficção tória dessas me interessa, o resto não.
ção de renda e da desigualdade so- gítima para os olhos eruditos? um dia questionou a ficção atra- Duas coisas me impressionam, e fazem com
cioeconômica como o problema Porém, se algum dia o fato vés da escrita, a grande quantidade que eu admire ainda mais Elena Ferrante, além da
central da sociedade brasileira, de desafiar a fronteira entre a fic- de autoficções é uma indicação do qualidade da escrita. (Para aqueles avessos à febre
qualquer solução será impossível. ção e a realidade foi vanguardista, papel atual da literatura na socie- Ferrante, um conselho: deixem o tempo passar.
Há de se dar mais valor às na sociedade atual tornou-se prá- dade. Mas não do papel que a lite- Um dia, suas obras sairão das vitrines das livrarias
iniciativas que já existem: associa- tica comum. Romancear a pró- ratura deve ter na sociedade atual. e das cadeiras de praia. Nessa hora, atirem-se!). Pa-
ções, fundações, cidadãos, profes- pria história. Colocar-se em cena ra a escritora, visivelmente, o valor da escrita está
sores que fomentam a dinâmica na literatura, como fazemos em Utopia no texto. A experiência literária não deve se mis-
da leitura e da literatura. Mas tam- todos os outros âmbitos da socie- Assim como acontece com turar à personalidade do escritor. Muito menos às
bém se deve ter em mente que é dade: nas redes sociais, na mídia, o projeto social, para que a lite- suas anedotas privadas. Trata-se de uma postura-
da responsabilidade do Estado e na política, no meio acadêmico… ratura tenha relevância é preciso -antídoto. Contra o individualismo, o narcisismo,
das empresas (porque também Mas quem escreve uma autoficção necessariamente do que você, Nel- o compadrio acadêmico, editorial e crítico, contra
elas têm um papel social!) parti- ainda busca intrometer-se nos es- son, chama de ilusão utópica. Eu o entretenimento: ideias são mais importantes do
cipar dessa dinâmica, por meio paços, ou o faz apenas porque prefiro me referir àquilo que é ine- que personalidades.
de subsídios e financiamentos de perdeu toda a capacidade imagi- xistente (ideal), mas serve de ins- A segunda qualidade extraordinária de Elena
bons projetos (das editoras, das as- nativa? E com ela a faculdade de trumento para pensar o que existe. Ferrante é o seu recuo diante da própria produção.
sociações, das escolas). observar e contar a realidade? Não De possibilidades não atualizadas. Parece que tem inúmeros textos prontos. Livros até.
é esse, afinal, o papel da literatu- Exatamente como acontece nas Mas não é porque a sua série napolitana virou uma
Autoficção ra, da arte? O romance histórico, ciências. Uma nova teoria cientí- febre que ela se pôs a publicar, deixando a quanti-
No que toca à dimensão a poesia, a epopeia, a narração jor- fica propõe uma nova explicação dade passar na frente da qualidade.
interna à literatura, e à sua rela- nalística, as crônicas de viagem, o do que existe, ou do que está pre- [Ligia S. Ikeda]
14 | JULHO DE 2018
Filosofia do
DIVULGAÇÃO
abandono
O sentido da vida nas ruas e a exclusão social são
temas de Nunca houve tanto fim como agora
O
que resta para as pes- vida daquela maneira. Em um dos trechos, ele diz O AUTOR seu modo de vida. Algo que também
soas que vivem em si- que a teologia, a filosofia, a sociologia e a psicanálise EVANDRO AFFONSO FERREIRA é determinante nesse ambiente: as li-
tuação de rua? Onde ainda não foram capazes de se aprofundar no tema mitações da saúde, da higiene. Além
ficam suas famílias, do abandono. Os pensamentos sobre o suicídio e a Nasceu em 1945 em Minas disso, embora vivam em comunida-
coisas e memórias? Essa parece ser morte percorrem todo o livro. Convive com eles a Gerais, e vive em São Paulo há de e tenham os mesmos hábitos, os
a inquietação dos personagens de ideia de antecipar o fim da vida. O abandono cansa. cerca de 40 anos. Também é personagens sentem nojo uns dos ou-
autor de livros como Eferuê,
Nunca houve tanto fim como Para os personagens, parece haver apenas duas op- tros. A condição toda da vida na rua
Minha mãe se matou sem dizer
agora, de Evandro Affonso Fer- ções: o suicídio, ou o que o narrador chama de “sui- os coloca próximos demais do corpo
adeus, Os piores dias da minha
reira, autor também de O mendi- cídio lento”, que não é tomar uma atitude rápida, vida foram todos e O mendigo
do outro. Ou seja, a “ferrugem” do
go que sabia de cor os adágios de mas descuidar de si mesmo, e mais, destruir-se de que sabia de cor os adágios de corpo, como diz o protagonista, os
Erasmo de Rotterdam. Neste no- outras formas, de maneira mais lenta: exagerar nas Erasmo de Rotterdam, romance transformavam internamente tam-
vo romance, Ferreira mantém uma drogas, por exemplo. A expectativa de vida na rua é vencedor do prêmio Jabuti. bém. São dores indissociáveis.
fidelidade ao estilo e repete fórmu- outra, muito menor.
las na linguagem já conhecidas pe- Modo geral nosso esconderijo era
los seus leitores. Como marca Memória e família nossa própria sujidade, nosso corpo fer-
principal, a inventividade no uso Não se sabe do passado do quinteto, nem co- ruginoso que nos dava outra pele, ou-
das palavras e um narrador com mo essas pessoas chegaram à condição de rua. No li- tra aparência: com o tempo íamos nos
pensamento acelerado e várias re- vro, conhecemos suas crises e as reações diante do tornando outros, interna, externamen-
ferências na memória. abandono que vem de tantos lados diferentes. A pri- te, impregnados de escamas fuliginosas.
Há uma velocidade própria meira crise que se pode apontar é a da memória. Depois de tantos anos vivendo na rua,
na escrita — um convite para uma Quais são as lembranças de quem mora na rua? On- não seríamos reconhecidos num átimo
leitura também ritmada. Ou seja: é de estão guardadas? Quem vive nas ruas não tem nem sequer pelos parentes mais próxi-
um livro para ler rápido, de uma só álbum de fotografias. Recria sua própria história, mos. Nem mesmo através deles, nossos
vez. Só assim é possível compreen- constrói suas lembranças de outras maneiras. olhares: senhas hieroglíficas.
der e se envolver na atmosfera dos Há ainda a exclusão da rotina da vida no ou-
personagens. Entre as duas obras tro lado da cidade, o lado dos que têm endereço. Geografia
do autor, o tema é outra caracterís- Um lado em que a população divide uma rotina O quinteto é parte da paisa-
tica em comum: o submundo. Nos em comum: visita da família aos domingos, festa gem da cidade. Os pedestres passam
dois casos, temos protagonistas que no Natal. Quem está na rua não tem essa rotina, e não reparam, ou fingem não ver.
moram nas ruas. Mas neste, há al- não tem data, não tem calendário. Por que nenhum A comunidade Relento perdeu tam-
go mais profundo. Discute-se tam- parente os procura? bém seu direito à cidade, não cabem
bém o sentido de comunidade das Nunca houve tanto na topografia. É nesse sentido que
fim como agora
pessoas que vivem em situação de Aos domingos nossas almas ficavam dia todo pe- Nunca houve tanto fim como ago-
rua e o abandono social, não ape- dindo misericórdia. Esse dia nos acabrunhava com seus EVANDRO AFFONSO FERREIRA ra entra num debate mais amplo so-
Record
nas a crise individual ou de relações marasmos. Ausência da família pesava mais aos domin- bre comunidade e exclusão social.
158 págs.
com o “mundo exterior”, como em gos, embora estivéssemos conscientes de que aquilo que Há uma forte reflexão filosófica nas
O mendigo que sabia... tivéramos antes não merecia o epíteto de família. Aos anotações de Seleno, mas há um ou-
Quem narra a história em domingos sentíamos saudade de um ajuntamento qual- tro campo de informações que en-
Nunca houve tanto fim como quer de pais, irmãos, avós. volvem outros temas.
agora é Seleno, protagonista de
um quinteto de moradores de rua, Existe um incômodo evidente entre os perso- Ensinávamos uns aos outros que
seres humanos “desprovidos do nagens a respeito do abandono familiar. Em algumas cidade sempre reduziria à impotência
olhar do outro”. Em tom de cader- situações, eles revelam ter saudade desse convívio, ou nossas vozes, estropiaria nossos passos,
no de memórias, escrito uma dé- ao menos de ter uma boa lembrança a qual se apegar. desguarneceria nossos gestos destroncan-
cada depois do convívio de Seleno Em função disso, o leitor entende que eles já soube- do nossas mímicas; e, se fosse possível,
com os demais, o livro apresenta ram o que é ter uma família, vieram de algum lugar. aboliria por decreto todas as sombras,
anotações e reflexões desse perso- Isso provoca ainda mais dúvida: estão na rua desde para que pudéssemos ter o mesmo des-
TRECHO
nagem, além das referências aos quando? Como foram parar ali? Onde está essa fa- fecho esmarrido ressecado de lagartixa
seus amigos — os mais citados são mília? O protagonista Seleno fala rapidamente sobre Nunca houve tanto morta exposta ao sol.
Eurídice e Ismênio, em claras refe- mãe e pai, mas pouco sabe sobre eles. fim como agora
rências à mitologia grega. A descri- No enredo em si, pouco acontece. Talvez se- A religião está ali também: o
ção desses companheiros é tão rica ja uma característica dos diários pessoais: mais refle- Era devastador ver moradores abandono não é apenas terrestre,
que é possível ao leitor enxergar sua xões e reminiscências do que grandes reviravoltas. O mas “celestial”. O protagonista sen-
(principalmente à noitinha)
individualidade. mundo exterior pouco importa. Ao longo da nar- te que há um Deus responsável pe-
rativa, o quinteto tem quase nenhum contato com indo para algum lugar e lo abandono. As mortes prematuras
Ismênio uma vez argumen- pessoas “de fora”, com esses transeuntes que não os perceber que não tínhamos dos companheiros o levam a ques-
tou: Quem colocou gente como nós enxergam. O foco do autor está no convívio en- lugar nenhum aonde ir — tionar, anos depois, onde estariam os
no mundo não sabe economizar — tre eles, esse mundo independente, com regras pró- amigos se tivessem seguido o mes-
quinteto desamparado de
gasta vida à toa. prias. Esse conjunto de abandonos parece ter feito mo caminho que ele. Mas o narra-
com que o próprio quinteto se enxergasse como um destino habitava cidade cujas dor nos deixa com uma impressão de
Comparado aos outros per- grupo de pessoas inferiores. ruas eram todas sem saída. continuidade. O recado é: indepen-
sonagens do livro, Seleno dá um Esse, digamos, desabraçar dentemente do destino que se tenha
passo adiante nas reflexões. Ele “Ranhos e remelas” depois de anos sobrevivendo ao Re-
citadino durou década inteira
tem essa vantagem do distancia- Ismênio repete o termo “ranhos e remelas” lento, sempre se faz parte dele. Algo
mento dos anos, da tentativa de uma infinidade de vezes. Isso pode representar, para para mim. Dez anos preso no do abandono é carregado com eles
compreender o que significou a além do dilema existencial, a condição fisiológica do visco do descaso. para onde forem.
JULHO DE 2018 | 15
DIVULGAÇÃO
inquérito
FLÁVIA LINS E SILVA
A DÚVIDA
• Quais são as circunstâncias ideais de • Que assunto nunca entraria em sua literatura?
leitura? Não gasto muito tempo com os nuncas...
Numa rede, de férias, em Boipe-
ba, na Bahia, ai que saudade desse tal • Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou ins-
F
lávia Lins e Silva nasceu no Rio de Janeiro • O que lhe dá mais prazer no processo dar para um café?
(RJ) em 1971. Formada em jornalismo, a li- de escrita? Convidaria um músico, que era um grande poeta:
teratura infantojuvenil é o centro da sua pro- Descobrir o que ainda não conheço, Tom Jobim.
dução literária. Como leitora, a poesia guia percorrer emoções ainda não navegadas.
seus dias. É autora, entre outros, de Diário de Pilar na • O que é um bom leitor?
Grécia, Diário de Pilar na Amazônia (ambos traduzi- • Qual o maior inimigo de um escritor? Aquele que lê com prazer.
dos para o alemão, espanhol, francês, chinês), Mururu Excesso de obrigações. Tempo é a ri-
no Amazonas, ganhador do prêmio de melhor livro queza que mais ambiciono. • O que te dá medo?
do ano, categoria juvenil, em 2011, pela Fundação Na- A intolerância.
cional do Livro. Flávia também escreve roteiros para • O que mais lhe incomoda no meio li-
cinema e televisão e criou o seriado Detetives do Prédio terário? • O que te faz feliz?
Azul para o canal Gloob. Atualmente, vive em Lisboa. Os desencontros. Tantas coisas... Ouvir a risada da minha filha Palo-
ma, caminhar perto da natureza, papear com os amigos,
• Quando se deu conta de que queria ser escritora? • Um autor em quem se deveria prestar ler ao lado de quem se ama, meditar, pedalar, mergulhar.
Ainda era adolescente e escrevia poemas e con- mais atenção.
tos, quando confessei pro meu diário. Tenho dois xodós que nem todos • Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
conhecem e que admiro muitíssimo: o Com certeza, muitas dúvidas. Elas são grandes guias,
• Quais são suas manias e obsessões literárias? italiano Antonio Tabucchi e o uruguaio não me deixam sossegar um só instante.
Sublinhar livros e anotar frases que me encantam Mario Benedetti.
em caderninhos. Amo caderninhos, não vivo sem eles. • Qual a sua maior preocupação ao escrever?
• Um livro imprescindível e um descar- Ser livre, cada dia mais livre por dentro.
• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia? tável.
Poemas são uma espécie de vitamina para quem Fico com os imprescindíveis: Gran- • A literatura tem alguma obrigação?
lida com as palavras. de sertão: veredas, do mestre Guimarães Nenhuma.
Rosa, e Livro do desassossego, de Fer-
• Se pudesse recomendar um livro ao presidente nando Pessoa. • Qual o limite da ficção?
Michel Temer, qual seria? Nenhum.
Fausto, de Goethe. • Que defeito é capaz de destruir ou
comprometer um livro? • Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me
• Quais são as circunstâncias ideais para escrever? Como diz o Manuel de Barros: o ao seu líder”, a quem você o levaria?
Adoro rascunhar ideias em bloquinhos, pela verbo tem que pegar delírio. Pra mim, Darcy Ribeiro.
rua, em jardins ou cafés. Mas na hora de escrever ficção também tem que pegar delírio pra
mesmo, preciso escrever em casa, seja lá onde for a decolar. Quando fica muito apegada à rea- • O que você espera da eternidade?
casa no momento. lidade, não me carrega. O éter...
16 | JULHO DE 2018
Paiol
Literário
PALCO DE GRANDES IDEIAS
O
escritor e jornalista Ruy
Castro abriu a temporada
2018 do Paiol Literário —
promovido pelo Rascunho,
patrocínio da Caixa Econômica Federal
e apoio da Fundação Cultural de
Curitiba. O bate-papo, que marcou
o início da nona edição do projeto,
aconteceu em 5 de junho, no Teatro
Paiol, em Curitiba (PR), com mediação
do jornalista Omar Godoy.
Mineiro de Caratinga, Ruy Castro
nasceu em 1948 e está radicado no Rio
de Janeiro (RJ) há mais de 60 anos.
Foi repórter do Correio da Manhã aos FOTOS: GUILHERME PUPO
Versão Positiva 3D
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com 75. Um cara extraordiná- época em que ele viveu. Como vo- biografias de pessoas importantes Versão Positiva 2D
tiva. Você esquece algumas coi-
Preferencial para materiais de consumo corporativo e
rio. Ele fez uma biografia clássica cê faz isso? Você tem que dar esse estejam em preparo e que sejam sas, a memória te conta as coisas
serigrafia;
Somente para materiais impressos;
Situações onde não é possível a impressão da versão
3D;
do Machado de Assis em quatro contexto todo, mas, se você tiver publicadas dentro de algum tem- de outras maneiras. Na verdade,
Permite impressões com as cores pantones;
Nunca pensei
Para fins de redução de custo o limitação técnica.
volumes, nos quais fica-se saben- que parar para ficar dando aulas po. O fato é que as editoras já não então, não deveria se chamar “au-
15 | CAIXA | Manual de Identidade Visual
do toda a história profissional do de história ao leitor, você está sain- em fazer outra coisa têm mais esse medo de que seus tobiografia”, e sim “memória”. E
Machado, todos os jornais em que do completamente do seu escopo. livros sejam processados, proibi- não tem o menor problema você
ele colaborou, os livros que escre- A maneira de você dar as informa-
da vida que não dos e recolhidos, como aconte- escrever suas memórias. Mas você
veu. E durante os quatro volumes, ções essenciais é conversar com as fosse trabalhar ceu com o livro do Paulo Cesar vai mentir, queira ou não, porque
ele não tem um ataque epilépti- pessoas, fazer com que seus infor- com a palavra.” de Araújo sobre o Roberto Carlos, a memória é trapaceira, mas não
co. O que, infelizmente, ele era mantes te deem uma ideia do co- e como aconteceu com o livro de importa. Você deixou um regis-
— epiléptico. Não é possível que tidiano delas, e ir jogando essas um biógrafo de São Paulo sobre o tro ali. No futuro, esse livro será
em quatro volumes, de 350 pági- informações no livro, na medida Raul Seixas, que não chegaria nem uma ajuda boa para quem qui-
nas cada, o personagem não tenha do possível, sem trair nunca a in- a ser publicado, porque a suposta ser fazer uma biografia de verda-
um ataque epiléptico. Isso foi uma formação, a clareza e a ordem da viúva de Raul Seixas ameaçou di- de da Rita Lee.
coisa que me frustrou muito. coisa. Quer dizer, um biografado retamente, dizendo que, se qual-
não pode passar mais do que duas quer editora aceitasse o livro, ela • BIOGRAFIA E
• CHEGA DE páginas fora do livro. meteria um processo. Qual edi- RECONSTITUIÇÃO
SAUDADE tora, naquela época, iria querer HISTÓRICA
Quando pensei em escrever • DOMÍNIO se meter numa dessas? Um livro Não tem me ocorrido nin-
o Chega de saudade, que é a his- DO FATO tirado de circulação dá um pre- guém que me apaixone de tal ma-
tória da bossa nova, na minha ca- Evidentemente, você aca- juízo enorme. Por causa do meu neira que eu queria abdicar da
beça, no fundo, era a história das ba aprendendo mais do que po- livro do Garrincha, fui processa- minha vida para me jogar na vida
pessoas que fizeram a bossa nova. de usar [ao apurar informações]. do. O livro foi proibido durante daquela pessoa. Ao mesmo tem-
Porque era um livro que não te- Você não precisa usar tudo. Es- um ano, depois foi liberado e o po, esses livros, que chamo de re-
ria análise de letras, não teria ne- se é um erro que alguns biógrafos dele?”. Eu falo logo de cara: ado- processo se arrastou durante 11 constituição histórica, que foram
nhuma consideração sociológica americanos cometem. De repente, raria, é uma honra, mas já estou anos. O livro do Paulo Cesar de os livros sobre bossa nova [Che-
ou econômica sobre a época, nem você fica sabendo cada minuto da ocupado. Geralmente é verdade. Araújo sobre Roberto Carlos foi ga de saudade], samba-canção [A
nada desse jeito. Seria a história vida do personagem, inclusive os Nunca estou desocupado. Mas a processado, foi proibido, foi re- noite do meu bem], o livro ago-
daquelas pessoas e como elas tran- minutos que não interessam. Vo- resposta verdadeira é que não pos- colhido e foi destruído o estoque. ra que estou fazendo sobre o Rio
sitaram naquele meio para fazer cê tem que ter domínio do fato. so pegar uma encomenda porque E o do Raul Seixas não chegaria dos anos 20. Eles são diferentes,
aquela forma de música, e tudo o Isso só acontece se você ler mui- esse biografável não fazia parte da nem a ser publicado. Nós estive- de alguma maneira, da biogra-
que apaixonou as pessoas naque- to material, conversar com muita minha cabeça até então. Teria que mos muito perto de uma ditadu- fia. A biografia é um mergulho
la época. Sempre o meu interesse gente, absorver o espírito da épo- estudar muito, que trabalhar mui- ra de uma meia-dúzia contra a na vida de uma pessoa. Um li-
é pelo ser humano. ca e do lugar em que o biografado to para chegar a um conhecimen- liberdade de expressão. vro de reconstituição é um voo
está se movimentando. to básico da vida dele que talvez rasante. Não quer dizer que se-
• APURAÇÃO outro biógrafo já tivesse. É um • COLEGAS ja mais fácil. Ao contrário, pode
A leitura de biografias ame- • ATMOSFERA trabalho muito complexo. Você DE PROFISSÃO ser até mais difícil. Na biografia,
ricanas e inglesas colaborou [para Esse trabalho é tão absor- não pode esperar que, de repente, Acompanho, leio e ajudo você não tem problema para de-
criar um estilo de biografia me- vente que você não quer ficar lon- aprenda tudo de uma hora para muitos biógrafos. Sempre me li- finir o que vai entrar no livro: seu
nos enciclopédica]. Ficava espan- ge dele. Então, por exemplo, todo outra. Cansaram de me convidar gam. Dou palpite, conselhos, personagem nasceu e morreu. Tu-
tando, pensando como é que esse dia à meia-noite eu fechava o com- para fazer a história da Semana de orientações. Gosto de biografias. do que acontecer nesse tempo, es-
cara sabe disso? Como é que ele putador, dava o dia por encerra- Arte Moderna. Não aceitava pelo Como não vou fazer todas, quero tá valendo. Você vai descobrindo,
sabe que o fulano de tal saiu e to- do, e ia assistir a um filme. Tenho seguinte: embora tivesse trabalha- ler a biografia de muitas pessoas. E vai preenchendo os buracos e a
mou o carro, foi não sei aonde, milhares de filmes em casa, DVD. do e morado em São Paulo du- quero que sejam bem feitas, bem história vai se contando sozinha.
chegou lá e deu um beijo na boca O que eu assistia? Os filmes mu- rante alguns anos, não conheço apuradas, bem escritas e tudo o Agora, quando você dá um voo
da fulana? No final do livro, você dos a que a Carmen Miranda as- São Paulo o suficiente para fazer mais. No que puder ajudar, aju- rasante sobre uma época, sobre
vê a quantidade de fontes que o sistia na época. Botava os filmes um livro como esse — o cenário, do. Acho que algumas têm sido um movimento, sobre um estilo,
biógrafo agradece. Ele agradeceu do John Gilbert, da Greta Garbo, o ambiente, o espírito da cidade muito bem-feitas. O Lira [Neto] ou seja o que for, é tanta gente em
a 300 pessoas que conversaram da Norma Shearer, e ficava ven- onde se passa a história têm que faz muita coisa boa. O Mário Ma- cena, entrando e saindo o tempo
com ele sobre o biografado. Ób- do aqueles filmes, à noite, até as ser meio da intimidade do autor. galhães faz coisas ótimas. Inclusi- todo, que você até fica com me-
vio ululante: você quer saber co- duas da manhã, sentando no so- Previamente. Eu ia perder muito ve outro dia liguei para ele, que do de não descobrir todos eles. Se
mo é que foi, você conversa com fá. Tinha até a sensação de que a tempo para aprender tudo sobre fez a biografia do Marighella, su- descobre 200 personagens impor-
pessoas que conviveram com o seu Carmen estava do meu lado, ven- São Paulo — daquela época, ain- gerindo uma personagem que me- tantes, você tem que decidir pelos
personagem. Isso aprendi desde o do o filme comigo. Para que isso? da por cima, algo que nem existe recia ser biografada e, na minha mais relevantes — qual vai entrar,
começo. Outra coisa importan- Para me impregnar dela. Parece mais. Prefiro fazer livros em que as opinião, só ele seria capaz de fazer qual vai ter mais peso. Será que al-
te para mim foi ler os fascículos uma coisa subjetiva. É claro que histórias se passem no Rio, porque — Inês Etienne Romeu, a mulher guém vai conduzir a história? Ou
da editora Abril sobre bossa nova. não vou ficar filosofando, na ho- pelo menos o cenário, não impor- mais torturada do Brasil. Alguns seja, você tem que tomar muitas
Um horror. Impressionante como ra de escrever, sobre o que aquilo ta a época, eu já conheço. fazem bem, outros nem tanto. O decisões à medida que trabalha. E
perdíamos tempo com aquilo an- representava na vida da Carmen fato é que esse mercado existe. você não pode trabalhar num li-
tigamente. Você tem o fascículo Miranda. Tenho de tratar de in- • LIBERDADE vro como esse por menos de dois
da bossa nova, por exemplo, em formações. Quando você trabalha DE EXPRESSÃO • AUTOBIOGRAFIA ou três anos, que é o que vai me
que, em duas ou três páginas, o ca- numa biografia, é preciso se mu- Um dos argumentos dos O livro da Rita Lee, por tomar esse livro [sobre o Rio mo-
ra está te dando uma aula sobre o dar para a vida do biografado. É inimigos da liberdade de expres- exemplo, a sua autobiografia. Es- derno dos anos 20] — três anos.
Brasil daquela época — uma aula muito rico o negócio. Então, você são — Roberto Carlos, Chico se livro não é uma autobiografia. É, por um lado, mais superficial,
que você não pediu para ter, e com acaba aprendendo realmente mui- Buarque, Caetano Veloso e ou- Autobiografia, na verdade, é um digamos assim, do que uma bio-
isso o personagem já foi esqueci- to mais do que você pode usar. tros, chefiados por Paula Lavigne conceito muito duvidoso. O que grafia, mas é tão mais abrangente
do. Já ficou para trás. Mas é claro Qual sua obrigação, na verdade? — é que, se não houvesse aquele seria uma autobiografia? O per- que se torna até mais difícil. Mas
que você tem que dar o contex- É aprender muito, mas espremer controle dos biografados, de apro- sonagem fazendo a biografia de é mais fascinante, porque eu pró-
to. A biografia não conta só a vida de tal maneira que você passe o var e autorizar previamente o que si mesmo, certo? Tudo bem. Ele prio, a cada dia, descubro, ma-
de uma pessoa. Você conta a vida essencial ao leitor. Você tem que se escreveria sobre eles, haveria um é o autobiógrafo. Só que o auto- ravilhado, que na área do teatro
dessa pessoa e a vida das pessoas fazer uma coisa que seja coeren- enxame de livros cheio de injúrias, biógrafo deveria trabalhar com as teve isso, na área da caricatura teve
mais íntimas em volta dela — dos te, sólida e, se possível, atraente. calúnias e mentiras sobre eles. Por mesmas ferramentas que o bió- aquilo, na área de sexo teve aquilo,
grandes amigos, que é um círculo isso precisava controlar. Bom, es- grafo trabalha, para fazer jus a na área de grandes construções —
um pouquinho mais largo; depois • ENCOMENDAS se controle acabou. Não existe esse nome. Que ferramentas são engenharia ou arquitetura — teve
tem um círculo ainda mais largo, Não aceito, nunca aceitei, mais. A Carmen Lúcia disse que essas? Você ouvir 200 pessoas. Na isso. Esse trabalho está me encan-
que são os conhecidos, os colegas encomendas de biografias. Tenho “cala a boca já morreu”, então os minha opinião, é o mínimo que tando todos os dias. Várias vezes
de trabalho; depois tem um círcu- uma lista. Cada pessoa que se ofe- biógrafos têm toda liberdade pa- você tem que ouvir para falar de por dia descubro uma coisa que
lo muito mais largo, que é o das rece — “Ruy, você não quer fa- ra trabalhar. E, apesar disso, vo- alguém. Agora, a Rita Lee ou- me deixa encantado.
pessoas que viviam no tempo de- zer um livro a meu respeito?”. Ou, cê não está vendo uma enxurrada viu 200 pessoas sobre ela? Não.
le; e um círculo gigantesco, que então, “meu avô era fulano de tal. de livros mentirosos nem calunio- Ela ouviu a si própria, com todos
é o do país onde ele morava e a Você não quer fazer uma biografia sos sobre ninguém. Acredito que os riscos de uma memória sele-
18 | JULHO DE 2018
Paiol
Literário
PALCO DE GRANDES IDEIAS
râneo bastante passivo, né? Já nos hoje perdem muito com essa fal-
anos 60, não. Eu já estava na pra- ta de convívio com os profissio- • VERACIDADE antecipadamente que não teriam era namorada desde de janeiro de
ça, de uma maneira ou de outra, nais mais antigos. DA INFORMAÇÃO a menor chance de ganhar, então 1962. E o Garrincha tomou a El-
como estudante, como uma pes- Não acredito em biografia não foram adiante. Mas todas as za do Milton Banana, que era ba-
soa que estava na rua fazendo coi- • TEMPOS feita em um ano. Ultimamente, irmãs do Nelson Rodrigues fica- terista de bossa nova.
sas, depois como jornalista. E dos MODERNOS nem em dois. Você tem que levar ram de mal comigo. Todas. Eu la-
anos 70 em diante já era um adul- Pensei que nunca ia con- mais tempo. Tem que se impreg- mentei muito. Aliás, essa história • BIOGRAFIA
to, com todos os comprometi- cordar com isso, mas começo a nar de tal maneira da vida do per- é engraçadíssima. As filhas do Gar- DOS VIVOS?
mentos normais de um adulto. Ao ver como inevitável — não ne- sonagem, à medida que você vai rincha, na verdade, não têm cul- Esse é o grande problema
mesmo tempo, como estava viven- cessariamente como algo ruim acumulando informações, que vo- pa de nada. Quem me processou [biografar personagem vivo]. A
do aquele período — 70, 80, 90, — o fato de que se vai deixar cê vai aprendendo sobre ele, de tal foram os dois advogados esperta- história do cara não acabou. E ele
décadas muito conturbadas — e de ler jornal de papel para ler maneira que, quando você conver- lhões das filhas do Garrincha. As vai te trair. Inevitavelmente. Você
tendo opiniões sobre fulano e bel- na tela. E vai continuar sendo o sa com pessoas que te dão certas filhas do Garrincha são pessoas ab- pega o Woody Allen, o cara mais
trano, não consigo me ver mergu- mesmo jornal. Ou deveria ser o informações, ou te dão uma cer- solutamente incapazes. Não sabem adorado do planeta. Todo mun-
lhando num personagem dessas mesmo jornal. Só que, no mo- ta visão da coisa porque a memó- ler, são mulheres doentes, alcoóla- do achava o Woody Allen mara-
décadas sem toda carga de concei- mento, não é ainda. É muito ria traiu, mentiu ou isso e aquilo, tras, pobres. Uma coisa muito tris- vilhoso, uma gracinha, as mães
tos e preconceitos que acumulei a mal feito. Impressionante. O ní- você já sabe que o cara está errado, te. As irmãs do Nelson ficaram de queriam ser sogras do Woody Al-
respeito deles. Realmente prefiro vel dos textos, de apuração, do que não é aquilo. Entendeu? Por- mal comigo. Acharam que prote- len e tudo mais. Aí o Eric Lax,
lidar dos anos 60 para trás, porque que se lê no on-line, é de chorar que não faz sentido, ou porque o gi a viúva do Nelson, e as irmãs — biógrafo americano, fez a bio-
aí me considero familiarizado com de ruim. Pegam a notícia e vão dado não bate. Você já sabe tanto, não só do Nelson como de todos grafia. Conviveu com o Woody
aquele universo — mas, ao mesmo acrescentando pequenas infor- e sabe até mais do que ele, porque os Rodrigues — tinham uma rela- Allen durante 20 anos e fez a bio-
tempo, virgem no sentido de achar mações para atualizar, mas a ba- você já levou muito tempo se im- ção quase incestuosa com seus ir- grafia. Esse livro saiu acho que em
se eu gosto ou não de cada um de- se da matéria continua igual. Já pregnando desse personagem. Os mãos e ódio a todas as cunhadas, em janeiro de 1993. Quatro ou
les enquanto trabalho. era ruim no começo, e vai fican- caras te dão opiniões sem o domí- naturalmente. Tanto que, se você cinco meses depois estoura aque-
do pior ainda à medida que a no- nio dos fatos. Aí, depois de certo ler as peças do Nelson, todas aque- le caso do Woody Allen com a fi-
• IMPRENSA tícia vai se desdobrando. tempo, você entende o tipo de ca- las tias virgens, solteironas e neuró- lha da Mia Farrow e aquela coisa
ARTESANAL ra que não entende nada. ticas são as irmãs dele. Hoje, com toda. O Woody Allen se tornou
Tive muita sorte de pegar • FALTA a nova lei, pode vir o processo do o cara mais odiado do planeta de
a última grande fase da impren- CURIOSIDADE • A IGNORÂNCIA mesmo jeito, mas o processo é em uma hora para outra. Injustamen-
sa artesanal. Aquela imprensa que Outra coisa também é a fal- DA FAMÍLIA cima do biógrafo. Isso está certo. te, na minha opinião. Acho que
obrigava o jornalista a ir à reda- ta de curiosidade do repórter. Rá- As famílias são as que menos Biógrafo tem que tomar cuidado, ele é uma vítima daquela maluca
ção todos os dias. O jornal era fei- dio, por exemplo. Ouço rádio e sabem. Conversei com os filhos do tem que fazer o trabalho direito. da Mia Farrow. Por mais que vo-
to dentro da redação, e as pessoas estou ouvindo que pegou fogo Nelson Rodrigues, conversei com Se não fizer, vai ser processado. cê trabalhe bem, faça uma coisa
iam à redação todos os dias. Não numa creche, não sei onde, e o a viúva dele, conversei com sobri- Mas o livro vai continuar circu- bem apurada, você conta a vida
importava se fosse um grande no- repórter está lá no meio da con- nhos, as irmãs. Quem era o Nelson lando. E, se você não gostou do do cara só até hoje. Aí o cara, da-
me ou não. Você ia nem que fosse fusão, falando com o titular do Rodrigues que os parentes conhe- que eu escrevi, você vai e escreva qui a um mês ou um ano, te pas-
para entregar o artigo. E os jornais programa que está em São Paulo. ciam? O que chegava em casa to- seu próprio livro. O meu livro não sa uma rasteira. De repente faz, ou
eram todos muito perto uns dos O repórter diz assim: “acabou de dos os dias, às cinco da tarde, com pode mais ser tirado de circulação. é acusado de fazer, uma coisa que
outros, então você, sendo repórter, sair o boletim, mas é inconclusi- O Globo debaixo do braço e 250 Esse foi o grande progresso. contraria tudo que você falou de-
saía à rua e convivia com repórte- vo. Não sabem se o fogo foi ateado gramas de manteiga na mão. Tira- le antes. Tira totalmente a credibi-
res de outros jornais. Havia uma de propósito ou se foi um aciden- va o paletó e ficava de suspensó- • ELZA SOARES lidade do biógrafo. Você só pode
comunidade de jornalistas mui- te. Morreram nove crianças”. Aí rio em casa, tomando sopa ou coisa Quando comecei a biogra- contar a vida de alguém conside-
to forte. O mais importante é que o titular pergunta: “mas você não parecida. Agora, essas pessoas não fia, tinha muita gente que ainda rando sua vida pessoal e profissio-
esses grandes nomes, que iam às sabe...?”. “Não. Eu estou esperan- conheciam o Nelson Rodrigues da acreditava que a Elza Soares tinha nal. Essa é a forma da biografia.
redações e escreviam dentro das re- do um novo boletim”. Ou seja, o redação d‘O Globo, o Nelson Ro- sido a mulher que destruiu o Gar- Não tem erro. Você vai contar a
dações mesmo, eram pessoas mui- repórter está lá pra esperar bole- drigues do Maracanã, o Nelson rincha. “Elza foi ao Chile, na Co- vida pessoal, depois a profissional
to acessíveis. Eram grandes nomes, tim, e não para sair perguntando, Rodrigues do botequim da esqui- pa do Mundo de 62, atrás do Pelé. e o entorno. Não pode fugir dis-
mas eram pessoas normais e aces- investigando por conta própria. na, o Nelson Rodrigues que andava Mas, como ele não deu bola pra so. Agora, essa pessoa já tem que
síveis, que davam muita conver- Isso é uma coisa que me deixa pelas ruas do Rio e conversava com ela, atacou o Garrincha.” Como é ter morrido para que a sua histó-
sa para focas — como eu era. Era impressionado, porque quando todo mundo, o Nelson Rodrigues que você sabe? “Todo mundo sa- ria esteja completa. E o pior: não
realmente espantoso para mim eu comecei no Correio da Manhã, que tinha namoradas. Como é que be.” Mas como é que você sabe? pode ter morrido ontem. Tem que
estar sentado ao lado do Moniz trabalhava lá ao lado daqueles me- a viúva do Nelson vai saber como “Foi no vestiário do Brasil.” Em ter morrido há mais de dez anos.
Vianna, que foi o grande crítico de ninos, caras que eram um pouco ele era dentro da casa da namora- qual jogo? “Não sei.” Você esta-
cinema de todos os tempos, sendo mais velhos do que eu, mas que já da dele? Tanto é que, quando você va no vestiário? “Não.” Conhece • BIOGRAFIA
ele 30 anos mais velho do que eu eram repórteres cascudos, aquele descobre e conta, as famílias ficam alguém que viu isso? “Conheço, SÓ DOS MORTOS
— e eu sentado lá na redação, na tipo de cara que sabe como chegar chateadas. Aí vinham os processos fulano de tal.” Então vou lá fa- A pessoa, logo depois que
reportagem, ao lado dele, discutin- na fonte, na informação, na notí- e aquela coisa toda. lar com fulano de tal. Estava lá? morre, deixa de ter defeitos. Você
do cinema. Impressionante. cia. É capaz de passar uma rasteira “Não.” Então, finalmente, descu- não consegue encontrar uma fon-
até na mãe do cadáver para rou- • PROCESSOS bro que a Elza já conhecia o Gar- te que diga “era um canalha, da-
• GRANDES NOMES bar uma foto na gaveta. Eu via is- Processo, para valer, só le- rincha seis meses antes e que, na va em cima da cunhada”. Não vai
Peguei a fase boa de você so acontecendo na minha frente. vei um. Os outros não acontece- verdade, ela foi à Copa do Mundo ter, entendeu? No dia seguinte à
conviver com os grandes nomes. Agora você espera o boletim. ram porque as pessoas já sabiam para ficar perto dele, de quem já morte do Tom Jobim, me ligaram
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PRÓXIMO ENCONTRO
3 DE JULHO
Sérgio Rodrigues
oferecendo biografia e dando seis so. Você não só tem o privilégio perguntando coisas a meu respeito lavras dos críticos, em relação a
meses de prazo, porque os ame- de conversar com uma pessoa que quando o importante era o perso- mim. São episódios envolvendo
ricanos queriam publicar. Falei: conviveu com o seu biografado, nagem. Vinte e tantos anos de- aqueles dramas de saúde. Esse li-
“fascinante, mas não vou acei- como, de repente, através dessa Quando a pessoa pois, não tem o menor problema. vro não fala da minha vida profis-
tar”. Entre outras coisas, está to- pessoa, você ouve a própria voz domina a palavra, O livro já seguiu a carreira dele, e sional nem da minha vida amorosa.
do mundo de luto pela morte do do biografado. essa minha própria história de al- Além disso, tem coisas ali que são
Tom, inclusive eu. Segundo, nes-
ela domina o coolismo deixou de ser segredo há inventadas. Tem um subtítulo —
te momento Tom Jobim não tem • ESCOLHENDO mundo. Passa milhões de anos. Nem havia mo- “quase romance”. Por exemplo, há
um defeito no mundo. Não fiz. O PERSONAGEM a fazer parte do tivo para ser. Só que na época eu momentos em que ela interrom-
O pior não foi nem o Tom. O re- É o personagem que me não queria que isso atrapalhasse a pe a narrativa. Tanto eu quanto ela
corde foi batido pelo José Wilker escolhe, na verdade. Parece de- mundo. É como se compreensão do livro. no livro somos chamados de o Ho-
— morreu no domingo de ma- magogia isso, mas é verdade. De estivesse nascendo mem e a Mulher. Não é pelo no-
nhã, já no domingo ao meio-dia repente, tenho aquele estalo. Te- • O OITAVO SELO me. Mas em alguns momentos ela
me ligaram. Ele estava ainda sen- nho admiração por Nelson Ro- de novo.” É um livro feito pela Heloisa interrompe a narrativa e faz decla-
do velado. Me ligou alguém próxi- drigues e tenho curiosidade sobre Seixas, minha mulher, que sentiu rações com o nome dela, e eu faço
mo dele, com o apoio da família. a vida dele. Que tal uma biografia? necessidade de contar essa história. declarações com o meu nome. Mas
Ele não tinha sido nem enterra- Ou então: gostaria de fazer um li- Ela teve uma ideia: a gente estava quem escreveu as minhas falas foi
do ainda. Isso contraria totalmen- vro sobre alcoolismo. Mas que li- assistindo ao filme do Bergman, O ela e atribuiu a mim. Ou seja, ela
te a minha opinião. Você só pode vro seria? Não sou ensaísta. Não sétimo selo — a história de um su- tomou liberdade de ficcionista com
biografar alguém que não só esteja quero fazer um tratado sobre o al- jeito que desafia a morte para uma um assunto que é 90% realidade.
morto como esteja morto há tanto coolismo. Quero contar a história partida de xadrez, de modo a ga- E são histórias que impressionam.
tempo que já está bem geladinho de um alcoólatra, e essa pessoa tem cionando por muitos anos. Vo- nhar tempo, adiar um pouco o seu Muitas impressionam até a mim.
ou virou farofa, senão não dá pé. que ser vitoriosa. Não quero con- cê trabalha, joga futebol. Aquilo fim. E ela, baseada em tudo que
tar a história de um perdedor, para não interfere decisivamente na sua nós já conversamos — nós já es- • O BIÓGRAFO
• CARMEN não dizerem “bebe porque foi um vida. Até certo momento. De re- tamos juntos há 29 anos — e de IDEAL
MIRANDA perdedor”. Não. Quero uma pes- pente, em algum momento, essa 10 ou 15 anos para cá ela própria É preciso ter uma trajetória
Sei o que me custa reunir soa vitoriosa que foi destruída pelo trajetória alcoólica que era de pra- foi testemunha das coisas que me de vida. Por sorte, como comecei
tantas informações de modo a pas- alcoolismo. Aí em 15 segundos o zer, de farra, quase esportiva, re- aconteceram — que me levaram a fazer biografia já relativamente
sar a ideia ao leitor de que aquilo nome do Garrincha aparece. Apa- creativa, como se diz, deixa de ser para muito perto da morte, in- velho, com 40 anos. Estava mui-
é a realidade, e na verdade é. Por rece junto com essa formulação isso para se tornar uma questão de clusive — e da maneira como su- to satisfeito com o que vinha fa-
exemplo, nas últimas páginas da toda. Ou então: já fizeram tantos saúde. Você começa a beber cada perei isso. E a maneira de superar zendo, até que tive umas ideias de
biografia da Carmen Miranda, livros sobre a Carmen Miranda, dia mais cedo, já de manhã, por- isso, em todos os casos, inclusive assuntos para tratar, que não te-
que morreu em agosto de 1955 — mas ninguém contou direito a que senão passa mal. Essa é a di- no começo, nas histórias que ela riam espaço em jornais nem em
fiz a biografia [Carmen — A vida história sobre a dependência quí- ferença entre você ser alcoólatra e não presenciou, mas que eu con- revistas — precisariam de um li-
de Carmen Miranda, a brasilei- mica dela. Ninguém levantou, ja- depende químico, dependente de tei a ela, estava em jogo a pala- vro. Começou com o Chega de
ra mais famosa do século XX] 50 mais, a vida brasileira dela. Ficam álcool. Então eu tinha que defi- vra. É como se eu tentasse driblar saudade. Tinha acabado de fa-
anos depois da morte dela — eu só contando a vida dela em Holly- nir a partir de quando o Garrin- a morte usando a palavra, usan- zer 40 anos. Hoje acho que foi
descrevo que ela fez aquele pro- wood — é mole, porque os arqui- cha deixou de beber por esporte do a linguagem. E ela achou que bom isso, porque o biógrafo pre-
grama de televisão com o Jimmy vos estão todos lá. Quero ver fazer para beber por obrigação, porque essa era uma história por ser con- cisa realmente ter experiência. O
Durante. Os amigos dela todos es- a vida dela aqui, né? Eu tenho es- se não bebesse, passaria mal. E por tada por ela como ficcionista. Per- biógrafo ideal deveria ser uma
tavam na plateia, aí acabou a fil- sas ideias. Então penso: se for fazer que bebe? No começo, você bebe guntou o que eu achava. Eu disse: pessoa que um dia, talvez, tam-
magem, foram para a casa dela, ela esse livro, o que tenho para come- para se sentir bem. Depois come- “isso aí é com você. Não vou dar bém devesse merecer uma biogra-
contou piadas, fez imitações, can- çar? Percorro as estantes, os livros, ça a beber para não se sentir mal. palpite nas suas decisões”. Agora, fia. E isso significa um cara que
tou, todo mundo dançando, ela se as coleções de revistas, discos, fil- Isso acontece com todas as dro- tem que deixar bem claro que is- viveu. Que andou na rua de ma-
sentiu meio cansada e disse: “olha, mes, aí descubro que tenho já um gas. É tudo igual. Essa informação so aí não é uma biografia. Entra drugada. Que viveu a noite. Que
macacada, vou subir. Ninguém vá material gigantesco sobre aquela não estava registrada em nenhum a coisa do [Carlos Heitor] Cony. se apaixonou, teve mulheres que
embora. Fiquem aí. Eu vou dor- pessoa. Como se tivesse me pre- documento médico, porque os Ele fez um livro chamado Quase se apaixonaram. Traiu, foi traí-
mir. Tchau, um beijo para vocês”. parando há trinta anos para fazer médicos infelizmente não enten- memória, que, na verdade, é um do. Levou borrachada da polícia,
Subiu as escadas, mandou outro aquele livro. Então, de certa ma- dem muito de alcoolismo. Como zero memória. Aquilo tudo é in- foi preso. Se meteu em peripé-
beijo. Aí o livro saiu. Alguém dis- neira, é o personagem que me es- foi feito? Conversei com cerca de ventado. A Heloisa tentou fazer o cias bem malucas. Que tenha ti-
se assim: “como é que você pode colhe. E o cenário é sempre o Rio, 50 ou 60 ex-jogadores de futebol contrário, uma ficção em que qua- do uma doença. Que tenha sido
garantir que ela subiu as escadas, porque é o que conheço. que tinham jogado com o Garrin- se tudo fosse verdade. E como foi pai. Acho importante o biógra-
mandou um beijo e falou assim, cha, que tinham viajado com ele, isso? Ela fez duas entrevistas co- fo ter certa história de vida —
assim, assado? Você não estava lá”. • GARRINCHA se hospedado nos mesmos hotéis migo, para eu contar as coisas do não para interferir na trajetória
Não estava mesmo, mas conver- E ALCOOLISMO e concentrações, dormido e acor- passado, e depois escreveu. Quan- do biografado, mas para facilitar
sei com duas pessoas que estavam. No caso do Garrincha, ti- dado com ele. Perguntava: quan- do ela já estava quase no final, fez o entendimento do biografado.
É sempre assim. Se você conversa nha e tenho certeza de que eu era a do vocês acordavam, como fazia? outra entrevista para arredondar
com as pessoas que presenciaram, única pessoa que estava equipada Tudo bem, a gente descia para to- algumas coisas. Escreveu o livro e • A CAMINHO
você tem uma visão bastante con- para fazer aquele livro, pelo fato mar café — fulano de tal, no ano me deu para ler. Fiquei espantadís- Estou fazendo um livro
fiável do que aconteceu. E aí co- de também ser alcoólatra. Quan- tal, jogou com Garrincha no ti- simo. São sete episódios em que nesse momento, trabalhando há
meçam a acontecer coisas lindas. do fiz o livro, eu não bebia há cin- me tal, descia para tomar café. A tive uma relação muito próxima um ano e meio, e vou trabalhar
Eu conversei com cerca de 80 ou co anos. Hoje não bebo há 30 partir de certo momento, a infor- com a morte, por vários motivos. mais um ano e meio para sair no
100 pessoas que conviveram dire- anos. Mas pelo fato de ser alcoó- mação passou a ser: não, o Mané Nesses sete, seis eu fui protagonis- final do ano que vem. É um li-
tamente com Carmen Miranda — latra e, depois de parar de beber e acordava, enfiava a mão debai- ta. Mas no sétimo, último e mais vro sobre o Rio moderno dos
conversaram com ela, trabalharam ter me dedicado a estudar o assun- xo da cama e tirava uma garra- grave, fui só uma vítima — não anos 20. Isso inclui tudo: polí-
com ela, a beijaram. Pessoas que to, eu me senti em condições de fa. Depois ele descia para tomar sabia o que estava acontecendo. tica, crença, caricatura, compor-
estiveram próximas dela em todos — através do meu conhecimento café. Então bebe de manhã, mas Estava inconsciente e a história tamento, sexo, drogas, música
os sentidos. Muitas dessas pessoas do assunto — conversar com as desce para tomar café. A partir de estava rolando em torno de mim, popular, teatro. E também lite-
reproduziam frases como se fosse a pessoas para entender a trajetória certo momento, já não desce para sem eu saber de nada. E por mais ratura. Então estou lendo a lite-
Carmen Miranda falando, aí vem alcoólica do Garrincha. Uma coi- tomar café. Só bebe. Aí sim: está que ela tenha me contado depois o ratura produzida no Rio dos anos
outra pessoa e faz a mesma coi- sa importante para levantar sobre estabelecida, a partir dali, a depen- que aconteceu, só tive ideia do que 20 para demonstrar como o Rio
sa. Na décima pessoa que fez is- a vida dele, que eu achava funda- dência química. E tudo isso coin- realmente havia acontecido quan- já era moderno, sem precisar ser
so, comecei a perceber que havia mental, era a seguinte: Garrincha cidindo com os altos e baixos da do li aquilo. Fiquei muito impres- modernista — porque se você
uma música peculiar no que elas nasceu bebendo, sempre bebeu. carreira dele. Agora, quando o li- sionado. É impressionante você ler é moderno, por que vai perder
falavam — quer dizer, estavam A família dele bebia. Passou a in- vro saiu, em 1995, mesmo duran- sobre sua vida, uma vida que vo- tempo sendo modernista? Estou
todas reproduzindo a maneira da fância bebendo, a juventude be- te a proibição, o processo e tudo cê não viveu, porque eu estava in- até voltando à literatura, porque,
Carmen falar, da maneira como a bendo, a adolescência bebendo, a o mais, não abri a informação de consciente naquelas horas todas. E de repente, também é uma infor-
Carmen falava, e todos falavam do maturidade. Sempre bebeu. Isso que também era alcoólatra. Pelo assim saiu o livro. Agora, não po- mação para mim. Preciso apren-
mesmo jeito. Comecei a ouvir a era fato. Mas uma coisa é você be- seguinte motivo: não queria que de ser nem de longe confundido der por que os escritores eram
voz da Carmen Miranda em todos ber em grande quantidade, como me confundissem com o perso- com uma biografia, porque se tra- modernos naquele tempo. Para
os informantes. Isso é maravilho- o Garrincha, mas continuar fun- nagem. Não queria que ficassem ta de um recorte, para usar as pa- isso, só lendo os livros deles.
20 | JULHO DE 2018
GENTE MIÚDA,
DE SÉRGIO VAZ
Daniel não tinha documentos, te — no sentido de que, como ra devastada pela canalhice”. A
RG, certidão ou carteira profissional. este mesmo Daniel, existe uma apropriação da imagem eliotia-
Não tinha sobrenome, incomensurável legião deles em na (The waste land) não se dá à
não tinha número, nem cidade natal. nossas ruas, bairros e cidades, ha- toa: ambos os autores brasileiros
Quase um bicho, dormia na rua sobre as notícias bitando sarjetas, calçadas e lixões, sabem a dificuldade que é culti-
e acordava na sarjeta, na calçada ou no lixo. becos, praças e marquises. À vis- var arte em terrenos pedregosos.
Os dentes, em intervalos, ta de todos, só são vistos, no en- Daí, a coletânea se intitular Co-
mastigavam as migalhas do mundo, tanto, quando de invisíveis e lecionador de pedras, nome de
as sobras do planeta. inofensivos (peças fora do siste- um dos poemas, que fala da vida
Era soldado ma produtivo) se tornam amea- dura — e pedregosa — de Pedro
das tropas dos famintos. ça à propriedade, à paz social do que, recebido “pelo destino/ com
Os trapos — fardas dos miseráveis — entorno, à ordem burguesa, ao quatro pedras na mão”, tinha na
cobriam-lhe apenas o peito, a bunda e o pinto. mercado. A motivação deste e de pobreza “a pedra de seu sapato”,
Sangrava de dia outros poemas o próprio Sérgio até se tornar um “pedregulho/ no
o açoite do abandono. Vaz declara em entrevista: “Eu rim do sistema”. Nesse contexto,
Amigos? Só os cães, quero fazer um livro só com es- o primeiro poema do livro, de
que o protegiam dos seres humanos. sas histórias, contar essas histórias apenas dois contundentes versos
Morreu de uma forma poética. O que eu redondilhos, funciona como uma
velho e abatido fiz? Eu peguei todas as biografias verdadeira profissão de fé: “As pe-
depois de viver, todos os dias, e transformei em poema. Então, dras não falam,/ mas quebram vi-
durante trinta e sete anos, por exemplo, Gente miúda”. draças”. Depois da pedra literal
como se nunca tivesse existido. Gente miúda tem eviden- e metafísica de Drummond, no
te parentesco (como apontaram meio do caminho dos poetas, e
artigo de Armando Gens, dis- da pedra política e crítica de Ca-
sertação de Lara Barreto e tese bral, a nos educar em novo tipo
Sérgio Vaz, desde o início de Colecio- de Márcio Vidal) com o clássico de polimento, temos agora a pe-
nador de pedras (2013), já se autodefine co- O bicho (1947), de Manuel Ban- dra-poema de Sérgio Vaz, demo-
mo um “artista cidadão, um artista a serviço deira, considerando parte da ce- lidora, direta e rascante, cidadã e
da comunidade, do país”. Por isso, talvez, ao na do poema de Vaz, que inclui solidária com este Daniel e com
longo dos 124 poemas do livro, haja tantos um homem em meio ao lixo, fei- todo Daniel que tem a vida da-
dedicados a pensar (homenageando) figuras to um animal. A despeito do tom nada, abandonada, danificada,
em geral anônimas, desfavorecidas econômi- coloquial e da aparente bandeiria- amiudada, abatida.
ca, social e culturalmente, como Pedro, Jamil- na simplicidade (coerentes com o No aforismo 145, Figu-
ton, Max, Rosa, Sebastião, Souza, Jorginho, projeto de arte popular e de resis- ra artística, de Minima mora-
Madalena, Bruno, Lourdes, Renilda, Rosen- tência de S. Vaz), o poema tem lia, Adorno elabora uma de suas
da, Patrícia, entre outros e outras. (Há, ainda, algumas outras tramas que, nu- mais aporéticas reflexões sobre a
poemas que recuperam as figuras conhecidas ma leitura apressada, podem não arte, quando diz: “A contradição
de João Cândido, o almirante negro, e de Sa- ser notadas. O verso 4, por exem- entre o que é feito e o existente é
botage, músico precocemente morto.) Os plo, arremata a sequência de ne- o elemento vital da arte e encer-
versos de Gente miúda se inserem nessa série, gativas (sem documentos, sem ra a lei do seu desenvolvimento,
ganhando o protagonismo trágico um sujei- identidade, sem sobrenome) com mas é também a sua miséria: ao
to chamado Daniel. a expressão “nem cidade natal”, seguir, embora de forma mediada,
O poema se faz no fluxo de uma estrofe antecipando o ciclo de sua breve o esquema preexistente da pro-
única com 22 versos, polimétricos, e livres de inexistência, no sentido de nos- dução material e ao ‘fazer’ os seus
um esquema rímico regular. No entanto, sem so dramático personagem não ter objetos, não pode iludir, como a
ortodoxia, o poema lança mão de rimas con- ciência nem mesmo de seu nasci- ela semelhante, a questão do pa-
soantes e toantes que — com o fato a mais mento. O verso 8 — “mastigavam ra quê, cuja negação é justamen-
de querer contar uma história de vida — lhe as migalhas do mundo” — ence- te o seu fito”. Noutras palavras,
dão certa cadência narrativa. Afora as rimas na sonoramente o movimento a transformação das “tragédias da
internas, ao fim de certos versos se destacam que os poucos dentes (“em inter- vida” em “obras de arte” não al-
rimas como “profissional/ natal” (versos 2 e valos”) de Daniel realizam, com a tera em nada a existência das tra-
4), “notícias/ lixo” (v. 5 e 6), “intervalos/ sol- incidência tripla do fonema /m/, gédias, embora estas sirvam de
dado/ miseráveis” (v. 7, 10 e 12), “famintos/ bilabial e oclusivo. Logo abaixo elemento para a composição da
pinto/ dia” (v. 11, 13 e 14) etc. Em síntese, (v. 11 e 12), as palavras “tropas” e forma estética, cuja existência,
o que o poema conta é a triste trajetória de “trapos” se aproximam pela alite- por sua vez, para Adorno, deve
um homem, miserável, invisível, morador de ração de base anagramática e, por servir para esclarecer os homens e
rua, sem identificação alguma, que, lutando extensão, pela semelhança semân- levá-los a lutar para o fim mesmo
pela sobrevivência, com “as sobras do plane- tica. Por fim, impactam os adje- daquelas tragédias. Poemas co-
ta” e “o açoite do abandono”, humilhado e tivos atribuídos a Daniel quando mo este, parece, sobrevivem nes-
ofendido, morre prematuramente, “velho e de sua morte, “velho e abatido”, sa tensa dialética entre silenciar
abatido”, com apenas 37 anos de idade. Não pois de imediato somos informa- ou dar forma a dramas que eles,
parece casual, no poema, que os versos mais dos de sua jovem idade (37 anos), poemas, jamais resolverão. Um
longos (5 e 6), com 14 sílabas cada, descre- assim como quedamos com o gos- verso que diz que alguém viveu
vam o ato — horizontal — de Daniel dormir to amargo do ambivalente “abati- e morreu “como se nunca tivesse
na rua: “Quase um bicho, dormia na rua so- do”, que remete a “cansado” mas existido” é um verso que não de-
bre as notícias/ e acordava na sarjeta, na cal- também a “assassinado”, como se veria — com o conteúdo de ver-
çada ou no lixo”; em oposição, o verso 18, o matam cotidianamente animais e dade que traduz — nunca existir.
mais curto (com duas sílabas) e vertical, re- seres humanos, como se matam Mas existe, e todos entendemos,
sume, sem enfeite, o destino cruel do “solda- cães e gente miúda. enquanto sentimos, o seu sentido
do” Daniel, maltrapilho e solitário: “morreu”. Na apresentação do livro, (talvez por conta do medo de ser-
Se este Daniel existiu, de fato, com es- Ferréz diz que Vaz quer “guer- mos, ou nos tornarmos, mais um
te nome, talvez nem seja o mais importan- rear pelas palavras (...) numa ter- Daniel qualquer).
JULHO DE 2018 | 21
Jorge
luzes do carrossel torturam o lei- com carinho. Como a uma mãe”.
tor: “Como as crianças, os gran- Um dos Capitães fala: “É como
des cangaceiros (…) acharam uma mãe… Como uma mãe,
belo o carrossel, acharam que mi- sim. Pra todos…” — e volta a di-
“Repetidor”
rar suas luzes rodando (…) era a zer: “É como uma mãe… Como
maior felicidade”; eles “gozam da- uma mãe…”. Para Pedro Bala, o
quela felicidade” que é “montar e chefe da gangue, Dora se transfor-
rodar num cavalo de madeira de ma em “esposa, irmã e mãe”, en-
um carrossel, onde havia música quanto outro personagem reitera:
Amado
de pianola e onde as luzes eram de “É como uma mãezinha”. E outra
todas as cores: azuis, verdes, ama- afirmativa ecoa: “É como mãe!”.
relas, roxas e vermelhas (…)”. Os Veja-se, no capítulo Refor-
Capitães também podem ver “de matório, a utilização iterativa de “a
perto rodarem as luzes de todas as liberdade é como o sol. É o maior
cores”. O narrador insiste nas “lu- bem do mundo”, proclamada nu-
zes do carrossel” que giram “lou- ma lenga-lenga que o autor deve
No romance Capitães da areia, a reiteração se camente”, assegurando-nos que ter considerado original. Nos ca-
torna um esquema de maçante previsibilidade “penduradas estavam as lâmpa- pítulos Noite de grande paz, Dora,
das azuis, verdes, amarelas, roxas esposa e Como uma estrela de loira
, vermelhas”. Passam-se algumas cabeleira, a expressão “paz da noite”
RODRIGO GURGEL | SÃO PAULO – SP horas e lá “estão as luzes do carros- — ou “a grande paz da noite” —
sel que rodam”, um poeta “faz um cria ladainha fastidiosa. São apenas
poema sobre as luzes do carrossel”, alguns exemplos desse estilo pau-
as crianças montam nos cavalos de pérrimo, ou melhor, verdadeiro an-
madeira, “as luzes girando, todas tiestilo, de assustador desmazelo.
A
biografia de Jorge Ama- do povo da Bahia”. Essas ideali- estranha”, namorados trocam bei- Sentimentalismo
do é indissociável do zações vêm sempre acompanha- jos quando “o motor falha e as lu- e doutrinação
comunismo, ideolo- das de sentimentalismo: todos se zes se apagam” — e Sem-Pernas Mas por que Jorge “Repeti-
gia política da qual foi amam ou se consideram irmãos, “só vê as luzes que giram com dor” Amado encanta o leitor co-
fidelíssimo seguidor, tendo rece- unidos pela falta de carinho e de ele”. Páginas à frente, o narrador mum? Porque sua escrita é um
bido, em 1951, o Prêmio Stalin, conforto. A tais fórmulas fáceis, o lamenta que “à tarde as luzes do pântano de sentimentalismo —
outorgado a figuras públicas que narrador acrescenta o mais bati- carrossel não estejam acesas. Não como toda subliteratura, reduz a
de alguma forma lutaram pela im- do dos esquemas sociológicos, se- era tão belo como à noite, as luzes consciência aos desejos, subjuga a
plantação do ideário esquerdista — gundo o qual a pobreza justifica o girando de todas as cores”. No fi- razão às emoções. Trata-se de um
ou, na linguagem de propaganda crime: “Sua vida era uma vida des- nal do capítulo, os Capitães “esta- método para simplificar a realida-
da antiga União Soviética, “em de- graçada de menino abandonado vam cheios de desejo de andar nos de — e utilizar essas simplificações
O AUTOR
fesa do fortalecimento da paz entre e por isso tinha de ser (grifo nos- cavalos, de girar com as luzes” — como forma de manipulação ide-
os povos”. Desde 1932 integrado so) uma vida de pecado, de fur- JORGE AMADO e surge o arremate piegas: “Esque- ológica. Tudo é óbvio e previsível
à Juventude Comunista, Ama- tos quase diários, de mentiras nas ceram tudo e foram iguais a todas no romance. Sem chegar à meta-
do ascendeu, em 1935, ao comi- portas das casas ricas”. Nasceu na Fazenda Auricídia, as crianças, cavalgando os ginetes de do livro, adivinhamos o des-
Itabuna (BA), em 1912, e faleceu
tê dirigente desse setor do partido, A sociologia rasteira polui, do carrossel, girando com as lu- tino dos principais personagens,
em Salvador (BA), em 2001.
quando atua na covarde Intentona, é claro, a psicologia dos persona- zes. As estrelas brilhavam, brilhava sabemos quem será o grevista
Bacharel em Direito, nunca
o que lhe garantiu seguidas prisões. gens: no capítulo Filha de Bexi- exerceu a profissão, optando pelo
a lua cheia. Mas, mais que tudo, profissional, o pintor famoso, o
Prolífico escritor, o primeiro perío- guento, por exemplo, Dora, órfã jornalismo e pela política. Em brilhavam na noite da Bahia as lu- sacerdote. Mas a fórmula não é
do de sua carreira literária é impres- de mãe e pai, obrigada a pedir aju- 1945 foi eleito deputado federal zes azuis, verdes, amarelas, roxas, gratuita: as repetições martelam
sionante: seis romances entre 1931 da a uma antiga freguesa de sua pelo Partido Comunista Brasileiro vermelhas (…)”. o sentimentalismo, enfatizam a
e 1937 — febre não só ficcional, mãe, é cobiçada pelo filho desta: (PCB). Por razões políticas, viveu Avançamos na leitura — e catequese comunista, até que o
mas principalmente política. “O vento levantou um pouco o exilado na Argentina e no Uruguai a reiteração se torna um esquema leitor aceite, sem contestar, as úl-
vestido dela. Ele teve pensamentos (1941 a 1942), em Paris (1948 a de maçante previsibilidade, pois o timas mentiras do livro: “a greve é
Antiestilo canalhas ao ver o pedaço de coxa. 1950) e em Praga (1951 a 1952). autor não dispõe de outros recur- a festa dos pobres” — e “compa-
Em 1937, chega às livra- Já se sonhava na cama, Dora tra- Deixou obra variada, incluindo sos. Amado não consegue superar nheiro” é “a palavra mais bonita
mais de vinte romances, além de
rias Capitães da areia, história de zendo o café pela manhã, a safade- seu limite nem mesmo num tre- do mundo”. Péssimo resultado es-
crônicas, contos e memórias.
uma gangue de meninos de rua za que se seguiria”. Duas páginas à cho de vinte linhas: no capítulo tético, a reiteração, contudo, serve
que aterroriza Salvador. A fim de frente, acolhida por membros dos Alastrim, o “padre José Pedro en- como pedra de moer consciências,
contextualizar o drama dos com- Capitães da Areia, o narrador en- trou na sala com o coração baten- reforçando, página a página, asso-
ponentes da quadrilha, Amado che-se de complacência pelos he- do muito”; a seguir, “o padre José ciações mentais enganosas.
elabora reportagens e cartas, pu- róis tão puros: “Mas não olhavam Pedro, enquanto esperava…”; “o Hugo von Hofmannsthal
blicadas em periódicos soteropo- nem os seios, nem as coxas. Olha- padre captara”; “o padre tivera de afirmou, em 1927, numa confe-
litanos, mostrando o debate que vam o cabelo loiro batido pela luz passar”; “o padre tivera que fazer”; rência pronunciada na Univer-
divide a sociedade: pessoas pobres das lâmpadas elétricas”. “o padre lembrou-se”; “o primeiro sidade de Munique, que “nada é
e caridosas defendem os crimino- Além desses problemas, a sentimento do padre”; e “o padre realidade na vida política de uma
sos; representantes da polícia e do indigência estilística predomina, José Pedro necessitava…”. nação que já não esteja presen-
Poder Judiciário só desejam opri- pois o autor é obcecado por repe- A ideia de que Dora se trans- te como espírito em sua literatu-
mir e torturar. Introduzido na tra- tições. Ao descrever o personagem forma na mãe dos Capitães da ra”. Se ele está certo, Capitães da
ma, o leitor conhece o armazém Gato, ele diz: “Uma noite (…) an- Areia vem anunciada desde as pri- areia contribuiu para o delírio e
que os delinquentes habitam. dava pelas ruas das mulheres, o ca- meiras palavras do capítulo Dora, o caos — econômico, político e
Enquanto surgem os perso- belo muito lustroso de brilhantina Mãe, mas é imprescindível repisar moral — que, graças à esquerda,
nagens, alguns de psicologia bem barata, uma gravata enrolada no a figura: primeiro, na imaginação vivemos hoje. Não é à toa que,
delineada, como o contraditório pescoço, assoviando como se fos- de Gato, a voz da menina soa co- no final do romance, Pedro Bala,
TRECHO
Sem-Pernas, sobressai a certeza se um daqueles malandros da cida- mo “a voz doce e musical de sua exaltado pelas crianças “de punhos
de que o narrador defende os cri- de”. Na página seguinte, parece ter Capitães da areia mãe”. Ele diz: “Você é a mãezinha levantados”, escuta o samba Com-
minosos, pois descreve-os segun- se esquecido dessas linhas e insiste: da gente agora” — e o narrador, panheiros, vamos pra luta. E, ainda
do a fórmula que se repetirá ao “Tinha o dom da elegância malan- contaminado, prossegue: “(…) pior, não é por acaso que, década
Lá fora é a liberdade e o sol. A
longo do romance: “Vestidos de dra, que está mais no jeito de andar, chamando-a de mãe, e ela sorrin- após década, este romancinho de
farrapos, sujos, semiesfomeados, de colocar o chapéu e dar uma laço cadeia, os presos na cadeia, a do com seu ar maternal de quase doutrinação política tem sido lei-
agressivos, soltando palavrões e fu- despreocupado na gravata que na surra ensinaram a Pedro Bala mulherzinha”; depois, “olhavam tura obrigatória nas escolas e nos
mando pontas de cigarros, eram, roupa propriamente”. Poucos pa- que a liberdade é o bem maior o rosto sério de Dora, o rosto de principais vestibulares do país.
em verdade, os donos da cidade, rágrafos depois, certo de que o lei- uma quase mulherzinha que os fi-
do mundo. Agora sabe que não
os que a conheciam totalmente, tor não tem memória, afirma, mais tava com carinho de mãe”, “(…)
os que totalmente a amavam, os uma vez, que o personagem coloca- foi apenas para que sua história eles todos gargalharam junto com
seus poetas”. Em vão o leitor bus- ra “brilhantina no cabelo e ia mar- fosse contada no cais, no Dora, e a olharam com amor. Co-
ca provas desse amor e dessa poe- chando com aquele passo gingado mo crianças olham a mãe muito NOTA
mercado, no Porto do Mar, que
sia, mas o narrador insiste que a que caracteriza os malandros”. amada”. A imagem se propaga sem Desde a edição 122 do Rascunho (junho
seu pai morrera pela liberdade. de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve
própria gargalhada dos Capitães, No capítulo As luzes do car- nenhum acréscimo metafórico:
emitida após cada crime bem- rossel, o problema alcança nível A liberdade é como um sol. É o “(…) agora falava como a uma
a respeito dos principais prosadores da
literatura brasileira. Na próxima edição,
-sucedido, soa como “um hino paroxístico. Em vinte páginas, as bem maior do mundo. mulher mais velha que o ouvia Vianna Moog e Um rio imita o Reno.
22 | JULHO DE 2018
tudo é narrativa
TÉRCIA MONTENEGRO
A VERDADE
FLUTUANTE
T
ive um desconforto, al- mais belo risco da ficção”. No
guns meses atrás, quan- seu livro Diante da imagem, a
do tentava organizar análise de um trecho branco de
minha biblioteca. Co- muro num afresco de Fra An-
loquei bem próximos Natalia e gelico é semelhante ao impacto
Carlo Ginzburg: havia motivos que Proust sente diante de Ver-
alfabéticos, familiares e nacio- meer: Didi-Huberman, a propó-
nais para isso. Mas eu não podia sito, também tem um trabalho
deixar de pensar que a vigilância sobre este pintor. A sua análi-
de Carlo, sua obcecada persegui- se, junto com o livro de Daniel
ção por uma fidelidade históri- Arasse, L’ambition de Vermeer,
ca entrava em descompasso com são obras-primas interpretativas.
os livros de sua mãe, reconhe- Aliás, Arasse em outros lugares
cida ficcionista. Eu poderia me igualmente se debruça sobre Fra
contentar com mais um curioso Angelico e della Francesca — o
caso de um filho que segue ca- que me põe novamente inquie-
minho contrário ao dos pais pa- ta, agora em busca de possíveis
ra afirmar a própria identidade nexos entre os artistas (e os pes-
— mas não achei que a coisa fos- quisadores). Mas isso é assunto
se tão simples. futuro. Por enquanto, tento cir-
Existe, afinal, algum tipo cular a ideia inicial. Didi-Huber-
de ficção que assombra o rela- man afirma que o passado está
to histórico de maneira inerente ligado ao impossível, ao impen-
mesmo, constitutiva? Será total- sável — o seu resgate, portanto,
mente utópico pensar num rela- envolve a ilusão “de que o discur-
to que não contenha qualquer so mais exato é necessariamente o
forma de invenção? Parti para mais verdadeiro”. Ginzburg tam-
uma pesquisa que aplacasse mi- bém chegou a comentar que “os
nhas dúvidas. mesmos ingredientes, cozidos em
Conversei com profissio- molhos hermenêuticos diferen-
nais da área, informalmente. E tes, resultam em pratos de sabores
busquei não só historiadores, mas no mínimo diversos”. Portanto,
também jornalistas. Dizem que o a tal verdade sobre um fato se-
Jornalismo é o rascunho da His- ria sempre utópica — ou relativa?
tória — e, óbvio, há aspectos si- Por mais que aceitemos es-
milares no método investigativo, se deslizamento, não creio que a
no tratamento dado ao fato. Mas completa confusão de fronteiras
(agora eu me inquietava) se qui- aconteça, até agora. Todo artista
sermos considerar um texto que oscila ou ocasionalmente mergu-
seja o contrário da ficção, qual se- lha em águas históricas, factuais
ria o mais propenso para isso — o — mas não se obriga ao teste-
histórico ou o jornalístico? Cada munho ou ao documento (um
pessoa me dava argumentos dis- tipo de “voz verídica”). O seu
tintos, indicava referências, em- pacto com o público é outro: a
prestava livros. construção do imaginário. O in-
O próprio Ginzburg, em ventado, o falso e a farsa terão
obra sobre Piero della Francesca, sempre a potência das possibi-
discute como a verdade pode ser Ilustração: Igor Oliver lidades — jamais o fechamento
flutuante. Ela envolve um proces- de um ato consumado.
so de adesão, confiabilidade. É um Existe, entretanto, um aler-
pacto que depende de várias cir- ta no parágrafo acima: pensamos
cunstâncias — mas, para o profis- na situação até agora. Imagino os
sional, deve estar na mira de uma historiadores daqui a um sécu-
disciplina implacável. lo, as dificuldades que terão pa-
Enquanto historiador, ra se debruçar sobre nossa época,
Ginzburg eriça-se diante de “sé- observa que todo elemento ico- para lembrar os também profun- tão farta de notícias e documen-
ries cronológicas relativas”, que nográfico é polivalente: “Co- damente modernos retratos de tos, sim — mas quais destes se-
são aquelas indicadas pelos méto- mo saber se, num determinado Frederico da Montefeltro e sua rão fake news? Com o surgimento
dos estilísticos. Critica severamen- quadro, uma ovelha, por exem- esposa, Battista Sforza: seus per- de uma sofisticada tecnologia de
te Roberto Longui, atribuindo-lhe plo, representa Cristo e a mansi- fis foram prenúncios importantes adulteração da realidade, capaz
“implicações divinatórias” na sua dão ou apenas uma ovelha?”. Às para o cubismo (e ao ler sobre is- de manipular áudios e vídeos,
atividade de conhecedor, sobre- vezes a verdade é improvável, e so entendi por que a visão destes o phishing via laser parece abrir
tudo por utilizar múltiplas séries somente pelo contexto pode ser pequenos quadros na galeria Uf- caminho para o chamado “In-
documentais — estilo, biografia, resgatada. Ginzburg se entrega fizi, muitos anos atrás, provocou focalypse”. Nessa altura, a inte-
molduras, iconografia etc. — pa- à extrema modernidade da Fla- dubiedades em mim). ligência artificial poderá mudar
ra resolver dilemas na datação de gelação de Piero, que coloca em Didi-Huberman, por sua bastante a maneira como recebe-
uma obra — no caso, a Flagela- primeiro plano três personagens vez, questiona a certeza do his- mos os fatos. A verdade por en-
ção de Piero della Francesca. misteriosos (cujas identidades toriador, proclamando um olhar quanto é flutuante — mas haverá
Considerando que “mes- provocaram inúmeros debates), sobre o não-saber, um olhar fe- um dia em que ela será engolida
mo o calendário é coisa arredia numa espécie de desinteresse nomenológico, experiência sen- pela correnteza? No futuro, tudo
às vezes”, o filho da romancista pelo tema principal. Aproveita sitiva que — ressalta — é “o será ficção? Quem sabe?
JULHO DE 2018 | 23
D
urante os meus estu- go. Dia após dia, tripulando sua
dos para a Oficina de pequena canoa. Ia pescar no Gulf
Criação Literária per- Stream. Mas nos últimos oitenta
manente que mante- e quatro dias não apanhara um só
nho no Recife, dei de cara com peixe. Nos últimos quarenta levara
Elogio da
disfunção
narrativa
A busca desenfreada (e empobrecedora) de
uma função narrativa na construção ficcional
I
ncomoda-me a noção de que, espécie de empatia falseável que Mas conceda-se ter sido isto necessário a Homero para do que deveria ser a obra da qual
em um romance (ou filme, ou está no cerne do jogo supracitado. se fazer compreender melhor pelo vulgo feroz e selvagem: se ocupará, mas não do que
série, ou o quê), cada cena, diá- Olhando por esse ângulo, porém, por muito bem-sucedido, pois tais comparações ela é ou pode ser, para o bem ou
logo ou passagem tem de, ne- penso que quem “aceita” ou “jus- são incomparáveis, não é certamente próprio de enge- para o mal; nesses casos, o exercí-
cessariamente, exibir uma “função tifica” o uso da violência em um nho familiarizado com alguma filosofia e por ela civili- cio da leitura se torna um exercí-
narrativa”. É um vício muito dis- determinado enredo (fílmico ou zado. Nem poderia nascer de um ânimo humanizado e cio de fechamentos, um joguinho
seminado pelas (más) oficinas (sic) literário) porque ela teria ali uma compadecido por alguma filosofia aquela truculência e por meio do qual se mensura o
de criação literária e que, em parte, “função narrativa” não raro está ferocidade de estilo com que descreve tantas, tão varia- quanto as expectativas do ava-
é responsável por essa miríade de imbuído de uma visão ideologi- das e sanguinárias batalhas, tantas, tão diferentes e to- liador foram ou não cumpridas,
narrativas com as quais nos depara- zante típica dos que apregoam que das de maneiras tão extravagantemente crudelíssimas joguinho cujas regras, não raro
mos por aí, romances engessados, a arte deve necessariamente “tomar espécies de matanças, que constituem particularmente contaminadas por aquela teia re-
com armas de Tchekhov dependu- uma posição” frente ao (e não ra- toda a sublimidade da Ilíada. lacional equivocada e/ou por uma
radas em cada mísera página, diá- ro contra o) mundo, mais do que carga ideológica cerceadora, estão
logos “funcionais”, capítulos como isso, uma posição predeterminada, Chega a ser divertido o tatear viconiano por (reitero, morrerei reiterando) es-
tijolos formando uma casa até vis- dogmática, estigmatizadora e, por uma luz teorética frente à extrema violência que salta tabelecidas de antemão, indepen-
tosa (quando vista de fora), mas tudo isso, viciada. das páginas da Ilíada, em sua (dele, Vico) busca pe- dentemente da obra a ser lida ou
cujos cômodos estão vazios ou são Segundo essa visão enferma, lo “verdadeiro Homero”. Mas, ainda que tal reflexão vista. Uma característica é encara-
inabitáveis e o teto, bom, quem típica de um ambiente político- sirva para estabelecer uma distinção importantíssima da como um “defeito” ou “proble-
precisa de um teto, não é mesmo? -cultural em que a ética (qualquer no corpo da Ciência nova, o filósofo não tergiversa: ma estrutural”, e muitos trabalhos
Pensava a respeito disso que seja) carece de um chão epis- a “sublimidade” do poema diz respeito precisamen- são condenados por não serem al-
quando li um trecho de O artis- temológico para se firmar, a vio- te às “tão extravagantemente crudelíssimas espécies go que, se analisados com um mí-
ta da pá, terceiro volume dos im- lência deve necessariamente ser um de matanças”, por mais que elas não sejam próprias nimo de atenção, jamais tiveram
prescindíveis Contos de Kolimá, recurso que desvele um “estado de “de engenho familiarizado com alguma filosofia e por a intenção de ser.
de Varlam Chalámov: “O leitor coisas”, uma ferramenta que ilu- ela civilizado”. Graças ao bom D’us, eu acrescentaria. Em um contexto tal, em-
deixa de confiar no pormenor li- mine aspectos da nossa “vivência Fechado o parêntese, parece-me que a noção pobrecido e empobrecedor, tal-
terário. O pormenor que não en- social”, um espelho que reflita a fa- aludida no primeiro parágrafo deste texto deriva de vez seja o caso de apelar para uma
cerra em si um símbolo parece migerada “luta de classes”, e por aí outra, mais abrangente, mas não menos desgracio- espécie de reinversão copernica-
desnecessário no tecido artístico afora. Vide, por exemplo, as más sa, de que a literatura “serve” para criar algum or- na. Dado o exercício doentiamen-
da nova prosa”. A rigor, a inves- leituras das narrativas brutalistas denamento frente ao caos que nos circunda, e/ou te cerceador, a indisposição para
tida de Chalámov vai noutra di- de Edyr Augusto, artigos e rese- para necessariamente “dizer” algo a respeito desse com quaisquer aberturas, a tara
reção, mas, como leitor, poucas nhas repletos desse vocabulário caos. Ora, também essa noção é típica dos (com a pelos fechamentos amparados nas
coisas me dão mais prazer do que forçosa e às vezes irrefletidamen- licença do jovem Nietzsche) “fisiologicamente re- mais variadas pseudices e nos mais
uma descrição tão bem feita quan- te “situador”, por meio do qual o gredidos, dos fracos”, não porque não haja (ou não diversos preconceitos, ideológicos
to “dispensável” (ou que até diga crítico busca “justificar” os ter- possa haver) alguma espécie de ordenamento, mas ou não, creio que não seja absurdo
algo da história e dos personagens, rores descritos naquelas páginas. porque este, no mais das vezes e nas melhores obras, deslocar o caráter disfuncional das
mas nunca, jamais, necessariamen- Quando não encontra uma “fun- não é verificável imediata e/ou imanentemente, e obras para o olhar de quem assim
te), um diálogo tão bem escrito ção narrativa” (para não dizer “so- muito menos conforme os filtros e predetermina- se dispõe a enxergá-las. Pois é pos-
quanto solto, sem rumo (de no- cial” ou “política”) para a violência ções de quaisquer visões de mundo que procuram sível que essas obras, com maior
vo: que até diga algo da história e descrita, seja em Augusto, seja em estabelecer, de antemão, como uma obra de arte po- ou menor sucesso, reflitam em ou
dos personagens, mas nunca, ja- qualquer outro autor, o crítico, de e deve se comportar — que o diga a leitura estú- por meio de sua violenta fragmen-
mais, necessariamente), digressões então, lança mão das obviedades pida da Educação sentimental, de Flaubert, feita tação algo da nossa vivência en-
e passagens esdrúxulas, quase des- empobrecedoras habituais: o au- pelo paupérrimo Jean-Paul Sartre. sombrecida, ainda mais nos dias
coladas do resto, e uma ou outra tor quer “chocar por chocar”, as Assim contaminadas por essas e outras noções, que correm. As disfunções narra-
dose gratuita de violência, até por- barbaridades não “contribuem” pululam “interpretações” obtusas, apressadas, engra- tivas seriam, assim, traduções im-
que a violência, quando nos atin- para o “avanço” da narrativa, a çadinhas, às vezes carregadas de um niilismo tão fá- perfeitas de algo que, em nós e
ge, é quase sempre um soco no violência ali nada “diz” sobre o cil quanto insubstancioso, “leituras” que se esforçam fora, no outro (esse monstro), jaz
escuro, isto é, absurda, gratuita. que quer que seja etc. No limite, para tecer uma teia desinformada de relações que como um resto irreparável. Mais
Sobre a violência, aquilo recorre a expressões como “rea- não são propriamente relações, mas meras reações do que nunca, a obra de arte seria
que nos mostra Michael Haneke cionário”, “fascista”, “pornógra- que redundam (quando muito) em associações tão tão grande quanto aquilo que ca-
em seu filme Funny games (ou Vio- fo”, “sub-Rubem Fonseca” e afins. livres quanto equivocadas. Acredito que a violência la e, assim abertos ao silêncio do
lência gratuita, como o rebatiza- Ainda no âmbito dessa dis- e os tempos mortos, em geral tidos como narrativa- que nos é disfuncionalmente co-
ram no Brasil) talvez sirva para o cussão, mas abrindo um parênte- mente “dispensáveis”, dizem bastante de nós, os que municado, talvez conseguíssemos
que procuro pontuar aqui. Tanto se, transcrevo o parágrafo 785 da (ainda) estamos vivos (ou quase), mas é triste cons- nos situar à sombra do outro e rea-
quanto qualquer outro elemento Ciência nova (tradução de Jorge tatar como a engenharia grotesca da funcionalidade prendêssemos a atentar para a mu-
narrativo no âmbito de uma obra Vaz de Carvalho, Fundação Ca- também condena de antemão qualquer objeto lite- dez essencial do mundo.
cinematográfica, a violência diz louste Gulbenkian), de Giambat- rário que não traga em si um maquinário previsível
respeito ao jogo do olhar e, en- tista Vico: ou cuja suposta imprevisibilidade seja imediatamen-
ANDRÉ DE LEONES
quanto tal, alimenta (e, no caso te digerível pelos intestinos sensíveis da inteligência.
de Haneke, questiona e explicita) Scalígero faz notar que qua- De um modo geral, parece haver certa indis- Nasceu em Goiânia (GO), em 1980.
É autor dos romances Eufrates e
a cumplicidade do espectador pa- se todas as comparações são tomadas posição à abertura, qualquer que seja: em tais cir- Abaixo do paraíso, entre outros.
ra com o que vê, ensejando uma das feras e de outras coisas selvagens. cunstâncias, o crítico tem uma ideia bastante clara Vive em São Paulo (SP).
JULHO DE 2018 | 25
A VIRADA ACADÊMICA
leque vertiginoso das compara-
ções, as questões da performan-
ce, do sagrado, da sexualidade, do
obsceno e da transgressão ainda
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JULHO DE 2018 | 27
Buscar o abismo
Ao se lembrar do sol da infân- vio com “pessoas primitivas”, isto
cia, cerrou os olhos e conjurou os es- é, os judeus da colônia onde mo-
píritos que lhe trouxessem a jovem rava. Impõe-se o momento de ir
que provinha daqueles povos anti- à escola, misturar-se aos Outros.
gos, a jovem que destinara para si, No primeiro dia, foi xingado e
descendente de Hera, de alvos bra- surrado pelos colegas por ser um
Minotauro, de Benjamin Tammuz, constrói-se de pistas ços; de Astarté, mãe das prostitu- apátrida, um não-judeu, mas le-
tas dos santuários; de Xarazade, a vantou-se de punhos cerrados,
falsas, alusões ambíguas, múltiplos pontos de vista mais suave das mulheres e dona de permaneceu de pé, sem lágrimas,
artifícios; de Sulamita, que despiu ferindo um dos agressores.
sua túnica e terá de vesti-la de no- Em casa, tentou ser dissua-
LEANDRO REIS | VITÓRIA – ES
vo, perfumada como mirra; de Lei- dido a regressar no dia seguinte.
la, a sonâmbula, cujo espírito paira Mas disse ao pai: “se eles voltarem,
sobre as aguas do rio. eu os matarei”. O alvo da vingan-
ça, Alexander não sabia, seria seu
Téa — deusa em grego — próprio corpo que se formava es-
É
DIVULGAÇÃO
conhecida a teoria de Nietzsche na qual é, de certa forma, Dionísio. Ela culpido em rocha. Voltou às aulas,
uma existência livre deve receitar-se para representa esse ponto perigo- aceito à força pelos colegas como
si apenas pequenas doses de saúde. É ne- so, fonte de um conhecimento parte do grupo.
cessário adoecer lentamente, livrar-se do antinatural. E, agora, como re- Ainda na infância, assis-
organismo e viver a vida como uma obra de arte. gressar à vida normal depois de tiu aos árabes atacarem sistema-
Nietzsche chama de espírito livre esse corpo que exis- se deparar com uma beleza in- ticamente as colônias judaicas.
te a título de experiência. suportável? Para não sucumbir, Aprendeu a odiá-los, generalizá-
Para Gilles Deleuze, a própria escrita consistiria Alexander mantém distância. -los, e assim despi-los de huma-
nisto, em dar em sacrifício o próprio corpo e regressar Concebe uma maneira de viver a nidade. Numa das incursões dos
do abismo com os olhos vermelhos e os tímpanos per- vida de Téa sem tocá-la. Descobre árabes, o pai de uma colega de
furados para transmitir esse conhecimento. É Odisseu seu passado, seu nome, endereço, classe foi assassinado. Alexander
no Hades, encontrando sua mãe e o amigo Aquiles, hábitos, desejos. Sob as coorde- jurou vingar sua morte quando
voltando para restituir seu reinado em Creta. nadas do espião, o casal passa a crescesse e tivesse meios para isso.
A proposição nietzschiana não descarta, porém, se comunicar por meio de cartas, A chance logo se apresentaria, e,
o paradoxo da prudência — ao contrário, sustenta-se deixadas em pontos estratégicos na juventude, percebeu-se em ci-
nele. Para evitar a queda, a fraqueza deve virar potên- para evitar que os dois se aproxi- ma de um beduíno, com as mãos
cia. Uma outra vitalidade nasce do contato com aquilo mem. Passam os anos. em volta de seu pescoço morto.
que é pesado demais: resiste-se para reportar o abismo. Como a própria tragé- Já se formara soldado.
É no centro do labirinto que está o guardião des- dia pressupõe a cegueira do he- Na Segunda Guerra Mun-
se Conhecimento —– o Minotauro. A primeira apli- rói prestes a cair, o labirinto que dial, tornou-se militar experiente
cação, e mais óbvia, do mito homônimo ao livro de Alexander constrói aprisiona Téa. apesar da pouca idade. Acompa-
Benjamin Tammuz é a teoria musical do personagem Venerada de longe, como se o in- nhamos o processo de endureci-
Alexander. Para penetrar no cerne da música é preci- O AUTOR
terior de seu quarto vigiado por mento inescapável de Alexander,
so romper os círculos do entendimento. A música é Alexander fosse um altar, a jovem desde a infância: o ódio não é en-
uma fala, mas uma fala particular: “os sinais atingem BENJAMIN TAMMUZ tem a identidade esvaziada por- sinado, antes se apresenta como
somente quem sabe decifrá-los”. Música não se trata Nasceu na Rússia, em 1919, e
que idealizada; sua santificação, um modo de vida; na guerra, a
de ideias: ela é um exercício inconsciente, diz Scho- emigrou para a Palestina aos cinco embora sirva por um lado a es- identidade se define pela rejeição
penhauer, porque é uma cópia da própria Vontade. anos de idade. Estudou Direito e se amor antigo e tradicional, tor- desse outro anônimo, desse ou-
Alexander pondera: é possível sobreviver ao Mi- Economia na Universidade de Tel na sua existência tão objetificada tro que é tão mais odiável quanto
notauro? Sua teoria musical levaria a um saber exces- Aviv. Em Paris, na Sorbonne, cursou quanto a coisificação mais rasteira. mais imerso no escuro. A tradi-
sivo para quem o experimenta: História da Arte. Foi escultor, pintor, E Téa não é encarcerada ção de violência impõe seu cará-
romancista, jornalista e crítico apenas pela visão desse admira- ter naturalizado.
Mas eu penso que esse centro não é somente um literário. O autor passou quatro anos dor-controlador secreto. Surge
local secreto, mas também perigoso. É um universo tão como adido cultural da Embaixada em sua vida o jovem G. R., que Aqueles árabes que eu, na
de Israel em Londres. Seus contos
bonito, tão puro, que, se a pessoa penetra nele, tem dois ocupará papel central na narra- prática, maltrato, porque caí-
e romances foram traduzidos para
problemas. O primeiro: como suportará toda essa beleza vários idiomas. Publicado pela
tiva de Tammuz, sobretudo nos ram nas minhas mãos algemados
e permanecerá vivo? E o segundo: como poderá sair dali primeira vez em 1980, Minotauro
jogos de cena propostos pelo e derrotados, quem são eles senão
e continuar a viver no mundo normal? foi adaptado para o cinema em narrador a fim de deixar o leitor os mesmos que trabalhavam no pá-
1997, pelo filho do autor, Jonathan à deriva. G. R. emula um senti- tio de nossa casa; aqueles mesmos
A teoria de Nietzsche sobre a tragédia grega recai Tammuz. Benjamin Tammuz mentalismo tão estranho a nós, e árabes em cuja companhia per-
sobre uma contraposição fundadora: Apolo, a aparên- morreu em 1989, em Tel Aviv. também por isso não deixa de ter segui lebres; aqueles árabes cujas
cia, a ordem, o mundo cognoscível; Dionísio, o exces- seu encanto. Mas isso não servi- mães trabalhadoras me seguravam
so, a fuga da representação. Se a linguagem não passa rá a Téa, como ficamos sabendo secretamente à sombra do galpão
de uma simulação, é entrave para o conhecimento. logo de início. e cobriam meu rosto de beijos; as
Aprisionado no círculo inerte da representação, deba- Dissemos jogos de cena primeiras mulheres de quem ouvi,
te-se Dionísio: nele se encontra a matéria-prima do es- porque o próprio livro se cons- quando tinha 5 anos, que eu era
pírito livre, sua doença que se transforma em remédio. trói como um labirinto, repleto bonito, que queriam me raptar e
Mas há um preço: quem o experimenta concebe sua de pistas falsas, alusões ambí- me levar para a casa delas.
própria desintegração antes de atingir a Grande Saúde. guas, múltiplos pontos de vista.
A diferença é que em Minotauro o desejo não A partir da estrutura do spy novel, A velha batalha do ho-
é agarrar-se ao fio que leva à saída do labirinto, mas Tammuz concebe uma espécie de mem contra a ausência de sen-
permanecer no centro com o monstro, onde repou- confusão didática. Ademais, em- tido atinge Alexander, cuja alma
sa a Verdade. No vocabulário de Alexander, a Verda- bora intrincado, o romance apos- esculpida pela guerra constan-
de é o Amor: esse amor em Minotauro não cede ao ta no leitor para manter o texto te leva seu corpo ao labirinto.
sentimentalismo — embora não o rejeite totalmen- conciso e evitar explicações ou Ele busca em Téa o sentido últi-
te —, e sim reveste-se de um elemento heroico. Ele é verborragias. Importam mais as mo que falhou em se apresentar
o próprio centro do abismo — todo Conhecimento palavras omitidas. quando tangenciava a morte pe-
pressupõe sacrifício. los combates; busca também o
Tradição de violência pertencimento, incapaz que foi
Janela indiscreta A guerra em Minotauro é de encontrá-lo na própria tra-
Guardada pelo Minotauro está outro sentido do a chave para entender Alexander. dição que defendeu com a vida.
mito evocado por Tammuz: Téa, a personagem que Filho de imigrantes europeus, nas- Sua teoria musical pretende rom-
passa a ser espionada por Alexander. Aos 41 anos, ele ceu na Palestina nos anos 1920, per os círculos que construiu ao
já é um agente secreto de Israel, veterano da Segunda isolado em uma casa na colina, na redor de si, afastando-o do Co-
Guerra Mundial e dos combates ininterruptos contra qual seus pais passaram a morar nhecimento, da verdade perigo-
os árabes. Mesmo assim, é pego de surpresa. Em uma logo após a Primeira Guerra Mun- sa que é o amor possível. Agora
viagem de ônibus, Alexander avista os cabelos, a nu- Minotauro dial, fugindo da Europa que já se ele está próximo. Diante do Mi-
ca, o perfil e logo a boca e os olhos de Téa, e não tem BENJAMIN TAMMUZ via à beira da ruína — a Terra ar- notauro, Alexander se livra do fio
alternativa senão romper o terceiro círculo. A visão da Trad.: Nancy Rozenchan rasada de T. S. Eliot. que o conduziria para fora do la-
jovem Téa engendra tradições e mitos, batalhas de ou- Rádio Londres Até os seis anos, o pequeno birinto e abraça com todas as for-
tros tempos, povos originais. 192 págs. Alexander foi apartado do conví- ças Dionísio, no abismo.
UMA PONTE
TRANSATLÂNTICA
CHEGOU A GRANTA
EM LÍNGUA PORTUGUESA
Nesse número:
Textos de
José Eduardo Agualusa
Francisco Bosco
Emma Cline
Julián Fuks
Han Kang
Adriana Lisboa
Patrick Marnham
Peter Pomerantsev
Valério Romão
CAMPANHA Keane Shum
DE ASSINATURAS Teresa Veiga
Assinatura de 4 revistas
por 2 anos, com 25% Ensaios fotográficos de
de desconto: Marcos Chaves
R$ 177,00 Rita Lino
(R$ 236,00)
Ilustrações de
Para assinar, João Fonte Santa
por favor envie um
email para: Capa de
granta@tintadachina.pt André Carrilho
A ESTREMEÇÃO DO
PADRE COLORADO
LOURENÇO CAZARRÉ
Ilustração: Carolina Vigna
DOIS POETAS
INDIANOS SAMPURNA CHATTARJI
Gulliver do espaço
Tradução: Adriana Lisboa | Ilustraçao: FP Rodrigues
J
oy Goswami, natural de Calcutá, é um dos mais importantes e premiados poe-
tas indianos contemporâneos. Escreve em bengali. Publicou mais de cinquenta Nada pode tocá-la.
livros, entre poesia e ensaios críticos, além de um romance em versos.
Nascida na Etiópia e criada em Darjeeling, a poeta, ficcionista e tradutora Cante uma melodia que vai desembaraçar
indiana Sampurna Chattarji é atualmente editora de poesia da revista The Indian Quar- A nuvem negra do seu cabelo.
terly. Em oficinas de tradução, já colaborou com poetas de mais de uma dezena de paí-
ses. Vive em Délhi. É nesta caixa que vão me enterrar?
Os poemas de Sampurna Chattarji traduzidos aqui foram escritos originalmente Seu dia está sendo rígido e quadrado.
em inglês. Os poemas de Joy Goswami foram traduzidos do bengali a partir das versões
em inglês de Chattarji, que trabalha com a obra de Goswami desde 2005. As traduções Nem sangue, nem osso.
foram discutidas com a autora.
O que ela deseja é
O coração de um círculo de hélio.
JOY GOSWAMI
Vê padrões por toda parte.
Amor
•••
O trem veio passando torrencial por cima da ponte.
A luz das janelas que se moviam, a luz das portas Gulliver do espaço VI
que se moviam se derramava na água
E subia pelas árvores ao longo do rio Obrigada, ela disse, pelo transe, pela elação.
Pelo clique clique clique de palavras encaixando no lugar.
Você havia chegado dessa mesma exata maneira, um dia. Pelo claque claque claque do tear.
Toda sua luz viajara até mim e para longe de mim.
A respiração é uma neblina prateada. Pássaros constróem palácios.
Coloco as mãos nas árvores. Vejo que ainda estão molhadas. Atravesse o lago. Junte-se à selva.
Tudo estava inteiramente claro para todos. Exceto para mim. Posso ver!
Não foi o que você disse?
••• Deixe-me tentar outra vez. Havia uma cidade que deixei para trás.
Afogou-se na chuva.
Em meu sono, esta chuva
Meninas-inseto viviam em potes, edifícios andavam com pernas de pau.
O sono em que me encontro é absoluto. Em meu sono, a chuva cai. Na chuva Em Bombay, uma bomba, em Mumbai, uma mãe.
Alguém atravessa o campo saltando sobre cadáveres. E os nomes terminam em bye, em ai…
Alguém tenta ler as linhas do destino na testa dos mortos. Faz algum sentido? Não?
Fragmentos de uma palavra.
Alguém expressa simpatia pelos moradores do povoado. Brob. Ding. Nag.
Perdão? Quantas línguas eu falo?
O sono em que me encontro é absoluto. Em meu sono, chove forte. Na chuva Duas, ela disse, apontando para os olhos
Saltando sobre cadáveres, o destino deste povoado parte em busca do próximo. e o coração. Só duas. E você?
JULHO DE 2018 | 31
JOAN J
oan Murray (Londres, 1917 – Nova York,
1942) passou feito um meteoro pela cena poé-
tica norte-americana. Jovem admirada por W.
H. Auden, publicou pouco e, mesmo assim,
MURRAY
25 anos. A paisagem das montanhas de Vermont, por
onde adorava caminhar, é marca frequente em sua obra.
Joan Murray andava meio esquecida, mas uma edição
recente de seus poemas completos (incluindo fragmen-
Tradução e seleção: André Caramuru Aubert tos e rascunhos) pela New York Review of Books (2017)
tem permitido o reexame de uma obra que, ainda que
pouco extensa, é nada menos que excepcional.
Untitled Poem
If, here in the city, lights glare from various source, Three mountains high,
Look out of your window, thin faced man. O you are a deep and marvelous blue.
Three portent cities repeat the pattern and the course It was with my palms
That history ran. That I rounded out your slopes;
There was an easy calmness,
Three slender veins, clotted and ambiguous, An irrelevant ease that touched me
Are these inlocked hands. And I stretched my arms and smoothed
Three startled cries now rise incredulous, Three mountains high.
Where once sprang barren sands.
1. 1.
It is the action of the water that is the nearest thing to man. É a ação da água a coisa mais próxima do homem.
That is what the young of the people cried, lifting their É isso que os jovens entre as pessoas apregoavam, erguendo suas
Heads from the work they had turned to with indolence. Cabeças do trabalho, ao qual se voltavam com indolência.
2. 2.
“Crack at that pile, young fellow,” went up the sullen cry. “Rache logo aquela pilha, meu rapaz,” ecoou o grito mal-humorado.
“No time to stop in the work and the job only time to breathe “Não há tempo pra interromper o trabalho e no serviço é só respirar
And breathin’ your own fine sweat, for the air’s too good E respire seu delicioso suor, porque o ar é bom demais,
For a world to stop us for, us for, us for!” Nesse mundo, pra nos fazer parar, fazer, fazer!”
3. 3.
High scuttle of dying leaves in fall like a dab and a stain Sentinelas de folhas outonais morrendo como uma ninharia e uma mancha
And the colour to words that are dreamed in the head. E as cores para as palavras que são sonhadas na mente.
Spring prancing up like a dainty colt Primavera que vem empinando como um delicado potro
Picking the place for its feet, and lilies work up from its Tomando para seus pés o lugar, e as flores que se erguem de seus
Feet. Pés.
4. 4.
O I want to wander over the hills and down to the water Oh, eu quero vagar, subindo as colinas, descendo até a água
And if there is sea I want to pack it up to my arms E se houver um mar, quero pegá-lo em meus braços
And let the blue globe of all that water fill in my mouth E deixar que o globo azul de toda aquela água inunde minha boca
Rill up my head, my chest, burst out of the sullen seed of my loin. Riacho em minha cabeça e meu peito, explodindo a semente sombria de meu quadril.
5. 5.
Crack at that pile, young fellow, went up the sullen cry Rache logo aquela pilha, meu rapaz, ecoou o grito mal-humorado
We’re making towers of Babel, that babble and Babel Estamos construindo torres de Babel, aquele balbucio e Babel
We’re building towers of Babel that will crumble down before dawn. Estamos construindo torres de Babel, que ruirão antes da aurora.