You are on page 1of 12

Da Psicanálise e das Penas:

Contribuições da psicanálise no sistema penitenciário1

Celso Fernandes Patelli2

RESUMO

O presente artigo tem como pretensão apresentar, através de uma revisão


bibliográfica, as várias contribuições da psicanálise no sistema penitenciário. Para melhor
entender essa articulação faz-se um retrospecto histórico do direito penal, remontando as
origens da pena, discutindo o que é crime e os diversos entendimentos desse ato ao
decorrer do tempo, desde as antigas vendetas às atuais escolas penais. Também são
apresentadas características singulares da lógica de funcionamento do presídio e seus
efeitos sobre o sujeito, concluindo-se que a maioria deles é nocivo à saúde mental humana
e trabalha contra a ressocialização do delinqüente, uma das funções da pena.

Palavras-chave: psicanálise; direito penal; sistema penitenciário; sujeito.

ABSTRACT

This article intends to present, through a literature review, the various contributions
of psychoanalysis for the prison system. To better understand this link it is made a
historical retrospective of the criminal law, going back to the origins of the sentence,
discussing what crime is and the various understandings of this act through the time, from
the ancient vendettas to the current penalty school Is also presented singular
characteristics of the logic of functioning of the penitentiary and its effects on the subject,
concluding that most of them are harmful to human mental health and works against the
rehabilitation of the offender, the functions of a penalty.

Keywords: psychoanalysis, criminal law, penitentiary system; subject.

1. INTRODUÇÃO tem salvação sem as luzes do discurso


psicanalítico.” Frequentemente, a
Coutinho (2006), citado por psicanálise é convidada a responder
Carvalho (2008), afirma: “O Direito não
questões do direito penal. Com este

1
Artigo apresentado como Trabalho de Conclusão do programa de Pós Graduação em
Especialização em Teoria Psicanalítica na Unifenas campus Varginha, exigência parcial para a
obtenção do título de Especialista em Teoria Psicanalítica. Orientadora: Profa. Valdene
Rodrigues Amâncio.
2
Graduado em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Pós
Graduando em Teoria Psicanalítica. Endereço eletrônico: celsopatelli@gmail.com
trabalho, revisaremos as possibilidades atingisse seu infrator na mesma
da invenção freudiana no direito penal, intensidade causada por ele. Da lei de
campo esse autônomo e por vezes Talião surge a chamada “Composição”,
hermético a saberes exteriores. mediante a qual o infrator teria a
possibilidade de satisfazer a ofensa
O sistema penitenciário se mediante a paga em bens materiais.
constitui como um local peculiar de
trabalho. O sujeito em situação Em um segundo momento, a
carcerária se apresenta à psicanálise com pena deixa de ter caráter de vingança do
questões próprias dessa instituição. É indivíduo e passa à Vingança Divina, no
necessário conhecer essa realidade e o qual o crime era visto como pecado e a
funcionamento característico da pena um castigo divino para a
instituição para conceber quais as reais purificação do infrator e salvação de sua
contribuições da psicanálise ao sistema alma. As penas eram comumente cruéis
penitenciário. e severas.

Posteriormente, as penas tomam


um caráter de proteção do Estado e seus
1.1 História do direito penal governantes, era a Vingança Pública.
Com o objetivo de refletir sobre o Continuavam rigorosas e tinham por
sistema penitenciário atual, faremos um finalidade prevenir e reprimir os crimes,
breve histórico das penas. Isso e o arbítrio era todo dos governantes.
evidenciaria o sistema como criação (HORTA,2005)
humana, facilitaria olhar com De acordo com Horta (2005) foi
“estranhamento” questões que nos com a assunção do Direito Penal
parecem naturais. Para Horta (2005), as Romano, base do Direito Moderno, que
penas surgem como garantia de paz e a vingança privada é definitivamente
harmonia para as sociedades. Segundo a abolida, sendo apenas o Estado
autora é possível atrelar o movimento e encarregado do magistério penal. O
as fases do Direito Penal com o da Direito Penal Romano estabeleceu a
própria civilização. Citando Noronha, distinção do crime, do propósito, do
Horta (2005) afirma que no princípio se ímpeto, do acaso, do erro, do simples
tratava simplesmente de vendeta, quando
dolo e dolo mau, bem como a finalidade
o ser humano, ainda dominado pelos de correção da pena. Bruno (1956)
instintos, revidava a agressão sofrida, mostra que no Direito Romano a
sem preocupação com a proporção ou realização prática do fato criminoso
com sua justiça. Esse período se sozinha já não bastava para constituir o
caracteriza pela Vingança Privada. Um crime, a isso devia ser somado um ato
primeiro avanço no âmbito repressivo interno de vontade que fizesse do agente
surge com a lei de Talião (jus talionis). a causa moral do crime. Assim, juntando
Ela foi acolhida por códigos como o de um complemento psicológico ao
Hamurabi e tinha por máxima o famoso objetivo da ação dá-se a subjetivação do
“olho por olho, dente por dente”. A lei conceito de crime. Isso resulta no
delimitava o castigo de forma que
princípio de que não há pena sem De acordo com Horta (2005), nos
culpabilidade. tempos modernos surgiram, dentro do
Direito Penal, as “escolas penais”,
Em paralelo, no Direito Penal corrente filosófico-jurídicas que lidam
Germânico o Direito era visto como uma com o fenômeno do crime, bem como os
ordem da paz, por conseguinte, o crime fundamentos e objetivos do sistema
representaria uma ruptura com este penal.
estado. A princípio eram considerados
como pena a vingança e o ressarcimento A Escola Clássica nasce sob os
material. Uma das formas de resolução ideais iluministas, e considera a pena um
das questões aqui era o duelo judiciário, mal imposto ao indivíduo por motivo de
no qual o vencedor era proclamado uma falta, considerada um crime,
inocente. (HORTA,2005) cometida voluntária e conscientemente.
A finalidade da pena seria o
Com o surgimento do Direito restabelecimento da ordem externa da
Canônico, de ordenamento da Igreja sociedade. Entre seus expoentes estão
Católica, as penas, podendo ainda ser Cesare Beccaria e Franchesco Carrara.
bem severas, assumem caráter de uma
recuperação do criminoso através do
arrependimento. As penas privativas de A Escola Positivista tem como
liberdade surgem aqui. Greco (2009) precursor Augusto Comte e entre seus
considera a pena privativa de liberdade representantes mais expressivos estão
como um avanço triste na história das Cesare Lombroso, Enrico Ferri e Rafael
penas. As penitenciárias surgem como Garafalo. Tal escola, se utilizando de
um local onde o apenado não criminaria, investigações biopsicológicas, nega o
arrependeria dos erros cometidos e se livre arbítrio, considerando o
redimiria podendo voltar ao convívio delinqüente como um alguém anormal,
social. As penas capitais não era portador de anomalia de sentido moral.
comumente usadas, só passaram a ser Aqui a pena não é retributiva e tem
praxe no período da Inquisição. O Greco caráter de medida de segurança,
(2009) cita Pimentel e remonta as defendendo o grupo e recuperando o
origens desse tipo de pena nos mosteiros criminoso. As penas tem tempo
da Idade Média, como punição a monges indeterminado, encontrando término
e clérigos faltosos. apenas no fim da periculosidade do
sujeito.
Conforme Horta (2005), é no
período Humanitário, que, com a difusão A escola técnico-jurídica data de
dos ideais iluministas, há um 1905 é uma reação à corrente positivista.
abrandamento das penas, tornando a Tem como expoentes Arturo Rocco,
pena severa o mínimo necessário para Manzini, Massara entre outros. O maior
combater a criminalidade. Para Beccaria objetivo da escola é constituir a ciência
(1764) toda severidade que ultrapasse os penal como saber autônomo com objeto
limites é tirânica. e métodos próprios. Considera o sujeito
como responsável, portador de livre
arbítrio e considera a pena reação e
conseqüência de um crime com função sujeito, então, passa a se responsabilizar
preventiva. sobre a posição que adota frente ao
desejo do Outro. Torna seu o que era
estranho. Muda seu discurso do “me
2. DO SUJEITO E DO aconteceu” para “eu fiz”, “eu ouvi”. Isso
CÁRCERE é passo crucial na análise. Tornar-se
sujeito do próprio destino. (FINK, 1998)
Ao olharmos o Direito Penal sob
o viés da psicanálise conseguimos Amancio (2012), citando Elia
romper com o discurso maniqueísta que (2007), aponta que o sujeito da
tenta separar bons e maus. Santos (2009) psicanálise não pode deixar de ser
ressalta que para Freud que os responsável. Essa é uma exigência ética
comportamentos “nocivos” do que se estende, inclusive, ao
encarcerado, ao contrário do que reza o inconsciente, pois o sujeito não é
senso comum, não são resultados do determinado por forças alheias, mas
terrível ambiente prisional, mas são toma parte delas, ainda que sem sabê-lo.
próprios do ser humano e seu Posto isso, fica claro a
agrupamento. A autora afirma que estar importância da psicanálise em qualquer
na cultura impõe restrições de satisfação reflexão que se proponha sobre um
e que isso sempre gera um movimento de tratamento penal. Para Amancio (2012),
hostilidade contra o agente da restrição. baseada em Rinaldi (2000), a regra da
Para melhor expormos as agruras associação livre de Freud se baseia numa
que o delinqüente sofre em situação abertura inconsciente e não de um saber
carcerária é necessário definirmos o que a priori. O analista tem,
é o sujeito para a psicanálise. Para a primordialmente, que abrir mão de seus
psicanálise, porque o conceito não se preconceitos para ser possível escutar as
equivale, por exemplo, ao sujeito peculiaridades do discurso do sujeito. É
cartesiano. Segundo Fink (1998), Lacan essencial que o paciente, no caso o
na década de 50 conceitua que o sujeito delinqüente, não seja tomado apenas
é uma posição adotada em relação ao como um sujeito de direitos, sendo
Outro, enquanto linguagem ou lei. Nesse levado em conta apenas por algum
sentido, o sujeito seria uma relação com aspecto, como direitos humanos, saúde
a ordem simbólica. Posteriormente, ou educação, caso contrário deixa de ser
Lacan conceituaria sujeito como uma sujeito, pois esse se tornaria objeto, uma
posição adotada em relação ao desejo do vítima social, por exemplo. O sujeito de
Outro. direito tem de ser reposicionado para um
sujeito do desejo, implicado e
O sujeito, no entanto, pode se responsabilizado.
fixar numa posição sintomática, num
modo repetitivo e de obtenção de gozo. Para Goffman (1961), no presídio
Essa fantasia tende a se tornar nociva. há uma divisão básica entre o grupo
Então, é necessário um controlado, dos internados e uma
reposicionamento do sujeito, que o faça pequena equipe de supervisão. Esses
mudar as formas de obtenção de gozo. O agrupamentos tendem a conceber um ao
outro por estereótipos limitados e hostis, incapacidade: juízo, de trabalhar de falar
e a falta de contato acentua esse sobre si mesmo e sobre os outros ou
antagonismo. resolver sua próprias questões pela via da
racionalidade. Ele é simplesmente louco
Alguns autores marcam posição e não sabe o que faz. O criminoso não,
do delinqüente como excluído do pacto ele faz e não faz sem sabê-lo, goza por
social. Dentre eles, Lira e Carvalho fazê-lo.
(2002), apontam que fenômeno
semelhante acontece com a questão da O próprio Direito Penal se faz
loucura que em diferentes épocas foi necessário aqui para pensar o discurso
vista de diferentes formas, mas a penitenciário. Segundo Carvalho (2008)
dinâmica da exclusão sempre esteve a rigidez do Direito Penal tem
presente pelo fato se tratar de um justificativa histórica, a escola técnico-
indivíduo desarrazoado, cujos jurídica, que surge como uma reação à
comportamentos não são norteados pelos escola positivista, objetivando constituir
parâmetros da racionalidade ou da moral. a ciência penal como um saber
autônomo, de objeto e métodos
Note como o discurso produzido particulares. Mas como apontam Lira e
acerca da loucura é semelhante ao do Carvalho (2002), o Direito Penal ainda
criminoso. Ambos são excluídos do carrega em seu bojo o germe da
pacto social, e ainda segundo as autoras, racionalidade cartesiana. E esse
pela mesma lógica: a da racionalidade discurso, que se pretende autônomo,
cartesiana. Lógica essa que equivale produz, a partir de si, lógicas deturpadas,
subjetividade à consciência e que está como a penitenciária. Para o autor esse
arraigada no discurso penitenciário. Esse tipo de pensamento carrega uma clara
tipo de discurso provocaria sempre um concepção de homem enquanto puro
movimento de exclusão frente à organismo psicofisiológico, à maneira de
diferença. um behaviorismo psicológico.
Elia (2010) faz boa leitura da Um raciocínio danoso à
frase de Lacan: “o sujeito sobre o qual reinserção social e característico das
operamos em psicanálise não pode ser instituições totais, dentre elas o presídio,
outro que não o sujeito da ciência”. Não apontado por Ferrão (2006) é fruto de
significa que o sujeito da ciência seja o uma lógica deturpada de que a admissão
sujeito do inconsciente, e sim que, a do sujeito na instituição configura como
psicanálise não opera sobre a pessoa prova de que o mesmo é o tipo de pessoa
humana ou o indivíduo, mas sobre o que a instituição procura tratar. Conclui-
sujeito, e a ciência não. se que a pessoa colocada em um
Lira e Carvalho (2002) propõem manicômio é doente ou em uma cadeia é
que o criminoso, aquele que delinqüe, é delinqüente, do contrário ele não estaria
mais difícil de suportar do que o louco, ali. Para Goffman (1961), esse é um
uma vez que não se tem explicação sob o meio básico de controle social.
ponto de vista “razão/desrazão” para O interno recém chegado, por
entendê-lo. O louco é compreendido pela vezes não tendo culpa alguma, pode
compartilhar os sentimentos de culpa dos como humano. O discurso
companheiros, bem como as defesas ressocializador contrasta brutalmente
desenvolvidas contra tais sentimentos. com a prática segregadora.
Tende-se a desenvolver um sentido de
Para Goffman (1961), em um
injustiça comum bem como um de
amargura contra o mundo externo, o que sistema que enclausura para disciplinar,
terá conseqüências marcantes na o internado passa por um processo no
qual perde sua dimensão de
subjetividade do indivíduo. Se
submetido a um castigo que considera individualidade e sujeito. A esse
injusto ou excessivo, ou a um tratamento processo o autor chamará de
“mortificação egóica”, o qual
mais degradante do que o prescrito pela
lei, o delinqüente justifica aí o seu ato, o compromete a estruturação subjetiva ao
que não podia fazer quando o cometeu. invés de proporcionar ao sujeito uma
reedição de sua história.
Ele decide “descontar” o tratamento
injusto sofrido na prisão, vingando-se O delinqüente chega à instituição
através de outros crimes, e se tornando, com uma concepção de si mesmo,
mesmo, um criminoso. Porém, um possível por algumas disposições sociais
sujeito desiludido com o mundo ou com estáveis no seu ambiente civil. Essa
acentuado sentimento de culpa pode concepção permitia uma gama de formas
sentir alívio psicológico com as agruras de defesas para enfrentar conflitos,
da prisão. dúvidas e fracassos. Ao entrar na
Voltando à questão das bases do instituição, o sujeito é imediatamente
despido do apoio dado por essas
discurso penitenciário, Lira e Carvalho
(2002), citam Focault (1987), ao dizer disposições. A “mortificação do eu”
que dessa forma a racionalidade acontece sob a forma de vários ataques,
cartesiana implica que o funcionamento formas de desfiguração e profanação nas
prisional se volte para a coerção quais o sentido simbólico dos
acontecimentos para o internado deixam
disciplinar. Esse adestramento com ares
de disciplina, que visa corrigir o de confirmar essa sua concepção anterior
comportamento desviante, mostra que o do eu. (GOFFMAN, 1961)
sistema prisional está longe de Goffman (1961) diz que uma das
reconhecer o homem como ser desejante. perdas mais significativas para o sujeito
Sob essa ótica, o sistema prisional na instituição é a perda do próprio nome,
funciona mais como um mecanismo de uma grande mutilação do eu. Isso é
controle social do que um operador de corroborado pelo fenômeno apontado
ressignificação de vidas. Um sujeito por Ferrão (2006) que aponta a
dentro dessa lógica estaria mais em vias linguagem própria desse tipo de
de “(des)assujeitamento” do que de uma instituição aprendida e aderida por
reestruturação propriamente dita. Por um funcionários e reeducandos. A autora
lado, o discurso sobre o delinqüente afirma que é a assimilação dessa
prega ideais de liberdade, fraternidade e linguagem distorcida que promove a
igualdade e por outro afasta aquele que efetiva inserção do novato ao sistema.
delinqüe de tudo que possa ser nomeado Dentre as peculiaridades dessa
linguagem, comum a toda a instituição, instituição. E freqüentemente, as
está o conhecimento de praticamente justificativas para a mortificação do eu
todos os números dos artigos do Código estão calcadas em racionalizações,
Penal, de forma que o sujeito não estaria criadas para o controle da vida diária de
lá porque roubou, por exemplo, mas sim um grande contingente de pessoas em
pelo artigo 157. Isso implica numa um espaço reduzido com pouco gasto de
desresponsabilização do sujeito. E não recursos.
há resistência a isso, pois aquele que não
conhece os números dos principais Ferrão (2006) aponta como mais
artigos é tido pelos outros componentes um problema aspectos inerentes à
relação entre os próprios funcionários
da instituição como “não adaptado ao
sistema”. Goffman (1961) aponta que das instituições. A falta de humanização
essa forma íntima de chamamento nega e de esperança na reintegração social por
parte dos agentes de segurança em
o direito do sujeito de se manter distante
dos outros, através de um estilo formal relação ao reeducandos colidem com a
de tratamento. A autora ressalta que a visão dos técnicos (psicólogos,
assistentes sociais, pedagogos, entre
questão da linguagem é uma entre vários
comportamentos e linhas de raciocínio outros), de um tratamento e recuperação
arraigados no sistema prisional e que desses indivíduos. A autora explica o
choque através das diferentes visões e
raramente são associados à dificuldade
de se preparar o indivíduo que delinqüiu posicionamentos. Não raramente, o
para se reintegrar ao meio social. agente penitenciário, que recebeu
treinamento profissional e
Para Goffman (1961), se o sujeito conhecimentos especializados,
permanece na instituição por muito supervaloriza sua experiência em
tempo, quando volta ao mundo exterior detrimento de outros conhecimentos,
pode haver um “desaculturamento”, um como dos profissionais técnicos, os
“destreinamento”, que torna o sujeito classificando pejorativamente como
temporariamente incapaz de enfrentar teóricos. Essa questão é atravessada
alguns aspectos de sua vida diária. mesmo por outras, como a formação dos
Alguns papéis podem ser restabelecidos profissionais, a própria decisão sobre
pelo sujeito quando volta ao mundo opção profissional.
externo, mas há, porém, perdas
irrecuperáveis e sentidas como tais. Segundo o autor, o discurso
penitenciário evidencia que a cultura
Algumas coisas relativas ao ciclo vital
podem não ser recuperadas como ainda não conseguiu criar estratégias de
questões educacionais, profissionais, no conciliação das diferenças entre os
sujeitos que a compõe.
relacionamento com o cônjuge e/ou
criação dos filhos.

As atividades obrigatórias são 3. SOBRE A PSICANÁLISE E O


propostas a partir de um plano racional DIREITO PENAL
único, que supostamente é planejado
para atender os objetivos oficiais da Segundo Carvalho (2008), o
direito penal é um campo de saber
autônomo e muitas vezes hermético aos meio, mostra que há uma interseção
saberes exteriores. Essa rigidez é fruto de nessas duas áreas de conhecimento e esse
uma construção histórica e essa imagem pode ser o ponto de partida para uma
narcísica auto-suficiente faz com que o incursão da psicanálise no campo do
Direito Penal visualize os outros saberes direito.
abertos ao diálogo como auxiliares,
menores e servis e isso demonstraria sua Freud pensa ainda na própria
construção do direito como entidade
fragilidade epistemológica.
reguladora da relações humanas:
Se olharmos as bases dessas áreas
A primeira exigência da civilização,
de conhecimento podemos achar alguns portanto, é a da justiça, ou seja, a
denominadores comuns. Ao ler textos de garantia de que uma lei, uma vez criada,
Beccaria, autor de extrema importância não será violada em favor de um
no Direito e anterior a Freud, um leitor indivíduo. Isso não acarreta nada quanto
ao valor ético de tal lei. O curso ulterior
incauto pode pensar que se trata de um
do desenvolvimento cultural parece
texto de Psicanálise. Trechos de “Dos tender no sentido de tornar a lei não
delitos e das penas” são muito próximos mais expressão da vontade de uma
de outros do “Mal estar na civilização”. pequena comunidade — uma casta ou
Por exemplo: camada de uma população ou grupo
racial —, que, por sua vez, se comporta
Fatigados de só viver em meio a temores como um indivíduo violento frente a
e de encontrar inimigos em toda parte, outros agrupamentos de pessoas, talvez
cansados de uma liberdade cuja incerteza mais numerosos. O resultado final seria
de conservá-la tornava inútil, sacrificaram um estatuto legal para o qual todos —
parte dela para usufruir do restante com exceto os incapazes de ingressar numa
mais segurança. A soma dessas partes de comunidade — contribuíram com um
liberdade assim sacrificadas ao bem geral sacrifício de seus instintos, que não
constitui a soberania na nação... deixa ninguém — novamente com a
(BECCARIA, 1764, p.19) mesma exceção — à mercê da força
bruta. (FREUD, 1930, p.53)
A vida humana em comum só se torna
possível quando se reúne uma maioria Carvalho (2008) aponta como
mais forte do que qualquer indivíduo contribuição da psicanálise ao campo do
isolado e que permanece unida contra
direito penal a “despatologização” do
todos os indivíduos isolados. O poder
dessa comunidade é então estabelecido delinqüente. Com Freud e psicanalistas
como ‘direito’, em oposição ao poder do posteriores, sobretudo Reiki e Ferenczi,
indivíduo, condenado como ‘força bruta’. a imagem do criminoso como
A substituição do poder do indivíduo pelo degenerado, em conseqüência de uma
poder de uma comunidade constitui o
inferioridade biológica é rarefeita. Essa
passo decisivo da civilização. Sua
essência reside no fato de os membros da imagem era muito difundida entre
comunidade se restringirem em suas autores do direito penal positivista, a
possibilidades de satisfação, ao passo que exemplo Lombroso.
o indivíduo desconhece tais restrições.
(FREUD, 1930, p.53) O autor cita Durkheim ao afirmar
que o delinqüente não é um membro
A afinidade entre as duas obras,
doente em uma sociedade sã, mas sim
cada uma de grande relevância em seu
um elemento catalisador e agregador da
vida social. Dessa forma, o delito ilicitude dos atos e cujas sanções são
enquanto elemento funcional, faria parte exercidas pelas agências inquisitórias de
não da patologia, mas da fisiologia da punitividade. (CARVALHO, 2008)
vida social.
Retomando o ponto comum de
E nesse ponto, o autor ressalta Freud e Beccaria, Carvalho (2008)
que Freud contribuiu para a “radical propõe que toda civilização tem de ser
ruptura com a figura angelical do erigida sobre a coerção e renúncia aos
humano civilizado a partir da instintos. E que o sujeito que não é capaz
contundente afirmação da permanência de gozar em decorrência dos freios
latente do bárbaro.” (CARVALHO, morais civilizatórios desenvolve
2008, p119) Em conseqüência disso há a sentimento de culpa, martirizando, assim
humanização da figura do criminoso, sua subjetividade através do sofrimento.
uma vez que ele está presente em todos
Carvalho (2008) afirma que para
nós.
Freud o sentimento de culpa pode ter
Para o autor, devido à duas origens: o medo da autoridade e o
constatação do delito como fenômeno medo do superego. A primeira insistiria
normal nas estruturas sociais e de que o na renúncia às satisfações primitivas. Já
comportamento desviante não é a a segunda também o faz, mas exige
transgressão de valores universalmente também punição, uma vez que a
aceitos, uma vez que em sociedades perpetuação do desejo proibido não pode
plurais existem diferentes valores, o ser escondida do superego.
problema central dos saberes que
O autor cita a tese de Reik em que
pensam o crime têm de ser redefinidos.
Dessa forma, a lei penal é que “cria” o a pena teria uma dupla função: do ponto
crime. Ainda assim, a própria legalidade de vista individual satisfaria a
estabelece possibilidades de justificação necessidade inconsciente de punição do
de qualquer ato criminalizado, de forma delinqüente, e do ponto de vista da
sociedade saciaria o desejo comunitário
que não exista conduta que seja
universalmente um ato criminoso. Como do castigo devido a identificação
exemplo disso, podemos assinalar o inconsciente com o delinqüente. Para
Reik, o efeito catártico da pena e também
homicídio que em legítima defesa é
despido da qualidade de crime. a identificação da sociedade com o
delinqüente seriam os dois pilares que
O discurso jurídico, como aquele possibilitariam uma teoria psicanalítica
encarregado da ordem e mantenedor da no Direito Penal.
segurança, concede ao homem
civilizado, o Código Civil, um estatuto O autor afirma que Banatta
(1997) vem enriquecer a teoria de Reik
que lhe permite gozar licitamente dos
bens da vida. Já ao bárbaro, àquele que ao afirmar que a pena aplicada ao
delinqüe, que usurpa o gozo alheio ou delinqüente, contrabalancearia a pressão
mesmo reivindica a possibilidade de dos impulsos reprimidos, exercendo
transformar o desejo latente em ato, função de reforço ao superego, devido a
existe o Código Penal, que regra a
identificação da sociedade para com o sob o viés psicanalítico pretendi aqui
sujeito que delinqüe. discorrer sobre as mazelas e
incongruências do próprio sistema.
Como abordado anteriormente, a
montagem do sistema penitenciário não “Lugar de bandido é na cadeia”.
favorece o sujeito. A psicanálise é Frase tão recorrente no cotidiano e que
contribuição para se repensar o sistema. exprime uma idéia arraigada em nossa
A invenção freudiana pode ser usada cultura, quase naturalizada. É como se a
para avaliar como outros modelos de penitenciária fosse algo inerente à
pena serviriam melhor ao propósito da sociedade, e não uma criação humana,
lei penal. Podemos citar algumas fato bem marcado na história do direito
alternativas às penas privativas de penal. Rever os passos da história das
liberdade como prisões agrícolas e penas ajuda a indagar e “desnaturalizar”
APACs. A discussão desses outros a situação em que nos encontramos, e
modelos por si só gerariam outras tantas assim construir algo melhor e mais útil
discussões. Para Santos (2009) faz-se ao todo e ao um, à sociedade e ao
necessário abandonar as grande indivíduo.
pretensões em privilégio das pequenas
contribuições, absolutamente A loucura, por ser também lugar
necessárias e reais. Dessa forma, o de exclusão, se assemelha à
delinqüência. Ambos ocupam um lugar
propósito aqui é uma leitura do sistema
carcerário regular e seus impactos sobre marginal da sociedade e, por isso, são
o sujeito. segregados. Ao louco e ao delinqüente
confina-se, sob a égide da “tutela” e
Carvalho (2008) preconiza que “guarda” do Estado. A exclusão é o
primeiramente o psicanalista que se primeiro impedimento para a
envolve com as questões penais não ressocialização.
tenha a pretensão e a arrogância de
“salvação das almas” dos delinqüentes, O sistema carcerário deveria se
inspirar no movimento da luta
frisando que a psicanálise não um saber
médico, religioso, nem jurídico. Como antimanicomial, que conseguiu rever
na clínica não há lugar para o desejo do toda uma sistemática, também
banalizada, sobre a loucura. A internação
psicanalista. Não pode haver desejo de
cura, bem como de ressocialização. de longo prazo não funcionou para o
doente mental e não funciona para o
4. CONCLUSÃO delinqüente. Talvez, o grande impeditivo
de um movimento similar dentro do
Como sabemos a situação do sistema penitenciário seja o próprio
sistema carcerário é crítica. aparelho penitenciário. A luta
Superlotação, condições precárias, antimanicomial surge da mobilização
tratamento inumano. Essa é a realidade dos trabalhadores da saúde mental, algo
de grande parte das penitenciárias assim talvez seja mais difícil no sistema
brasileiras e são questões que necessitam penal. As visões e concepções acerca do
de atenção política urgentemente. trabalho penitenciário são divergentes
Porém, ao pensar a questão penitenciária
dentre os próprios trabalhadores do É necessária uma reestruturação
sistema penal. do sistema carcerário, e a psicanálise
pode colaborar nessa direção. Para isso,
A própria finalidade da pena é necessário abandonar as cartilhas. Se
parece não ser um consenso. Nossa ficarmos presos no discurso da
legislação atribui um caráter misto à ressocialização todo esforço será inócuo
pena, ela teria fins tanto de retribuição em relação ao sujeito. É paradoxal
quanto de prevenção. Mas na prática, a pensar que até para conseguirmos
dupla finalidade da pena parece ter sido ressocializar o sujeito, precisemos
apropriada como duas alternativas. abandonar o discurso ressocializador em
Existem discursos em que o delinqüente prol desse próprio sujeito. O psicanalista
está preso para “pagar sua dívida com a no sistema penitenciário deve estar
sociedade”, bem como a pura idéia atendo a não ser tomado por um furor
ressocializadora, que busca a ressocializador, uma versão do furor
reintegração do indivíduo com essa sanandis da clínica apontado e criticado
sociedade. A divergência de discursos, por Freud. Ou seja, assim como Freud
que produz divergência de atitudes, preveniu os analistas que o desejo de
atrapalha toda a possibilidade de curar não pode estar na proa do
ressocialização do sujeito em situação tratamento, assim também deve ser com
carcerária. o desejo de ressocialização e inclusão
Não cabe aqui demonizar o (AMANCIO, 2012).
aparelho carcerário, ou mesmo parte
dele. “Descrever fielmente a situação do
paciente equivale, necessariamente, a
apresentar uma interpretação parcial.”
(GOFFMAN, 1961, p.9). Os REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
funcionários vivem desse mesmo AMANCIO, V. R. (2012). Uma clínica
sistema, não internados, mas também para o Caps: a clínica da psicose no
sofrem seus efeitos. Cuidar do corpo de dispositivo da Reforma Psiquiátrica a
funcionários é também cuidar do sujeito partir da direção da psicanálise.
em cárcere. Curitiba, PR: CRV, 2012.
É necessária uma reestruturação BECCARIA, C. (1764). Dos delitos e
do sistema carcerário, pois se ele serve a das penas. (2a ed). São Paulo, SP:
um ideal de ressocialização, sua lógica Martin Claret.
de funcionamento em si trabalha contra
seus objetivos. A lógica é a de guardar o BRUNO, A. (1956). Direito Penal.
maior número de pessoas com o menor (tomo 2). Rio de Janeiro, RJ: Editora
gasto possível. Esse pensamento é Nacional de Direito.
característico do discurso puramente
CARVALHO, S. (2008) Freud
retributivo, e diminui as possibilidades
criminólogo: a contribuição da
da função ressocializadora da pena.
psicanálise na crítica aos valores
fundacionais das ciências criminais.
Rev. Dir. Psic., Curitiba, v.1, n.1, p.103- . Recuperado em 8 de junho de 2012,
137, jul./dez. 2008 da SciELO (Scientific Electronic
Library
ELIA, L. (2010) O conceito de sujeito. Online):http://www.scielo.br/scielo/
(3a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Ed Zahar.
NUCCI, G. de S. (2009). Leis
FAGUNDEZ, P. R. Á. (2006). A processuais penais comentadas (4a
psicanálise, a ciência e o sujeito do Ed).– São Paulo: Editora Revista dos
direito. Seqüência, Florianópolis, v.27, Tribunais.
n.52, 2006
SANTOS, C. H. dos. (2009). Por um
FERRÂO, T. P. (2006) Supervisão em tratamento penal possível. Serviço
instituição prisional: relato de uma
Social em Revista, v.11, n.2, jan./jul.
experiência. Pulsional Revista de 2009
Psicanálise, ano XIX, n.185, p.88-95,
março 2006.

FINK, B. (1998) O sujeito lacaniano:


entre a linguagem e o gozo. Rio de
Janeiro, RJ: Ed Zahar.

FREUD, S. (1930) Mal-estar na


civilização - Obras psicológicas
completas da Standard Brasileira. Rio
de Janeiro, RJ: Imago Editora.

GOFFMAN, E. (1961). Manicômios,


prisões e conventos. São Paulo, SP:
Editora Perspectiva.

GRECO, R. Código Penal:


comentado.(2a. Ed.). Niterói, RJ:
Impetus.

HORTA, A. C. C. (2005). Evolução


historica do Direito Penal e Escolas
Penais. Âmbito Jurídico, Rio Grande,
VIII, n. 21, maio 2005. Recuperado em
em 8 de junho de 2012, da SciELO
(Scientific Electronic Library
Online):http://www.scielo.br/scielo/

LIRA, P. O & CARVALHO, G. M. M.


de. (2002). A lógica do discurso
penitenciário e sua repercussão na
constituição do sujeito. Psicol. cienc.
prof., Brasília, v. 22, n. 3, set. 2002

You might also like