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Blog de Francisco Paes Barreto, 08 out. 2016, Belo Horizonte. Disponível em:
<http://www.franciscopaesbarreto.com/search?updated-max=2016-10-18T15:58:00-
07:00&max-results=7&start=5&by-date=false>. Acesso em 26 de set. 2017.
2. A posição de escuta
Um primeiro aspecto a ser destacado é a posição de escuta do analista em relação ao
psicótico. Há em jogo vários aspectos importantes a ser examinados.
Pelo simples fato de falar, o psicótico se põe como sujeito; e o analista, polo de
enderaçamento, se põe como Outro. Enquadramento simbólico que reverte a tendência da
psiquiatria a tratar o psicótico como objeto.
A fala não só dá ao psicótico a condição de sujeito como representa certo acesso ao
simbólico, num duplo trajeto: aquele que fala também se escuta. E aquele que fala, de algum
modo denota e metaforiza.
Não se trata de uma escuta qualquer: os psiquiatras clássicos também escutavam seus
loucos, mas como objetos de seu esforço descritivo e classificatório.
Trata-se de uma escuta analítica, que procura apreender a fala do psicótico não para
atribuir-lhe sentido ou compreensão, mas para ―tomar ao pé da letra o que ele nos conta‖,
acolhendo-a como algo específico e próprio daquele sujeito. Lacan propôs o analista em
posição de testemunho, como secretário do alienado [5].
3. A interpelação do sujeito
Há uma tendência do psicótico a se por ao lado do objeto a e em posição de quem
sabe, de quem pode enunciar um saber desconhecido sobre o Outro. O analista, por sua vez,
como simulacro de objeto, sob suposição de saber, procura dividir o sujeito. Ou seja, a
posição do psicótico guarda certa correspondência com a posição do analista. Como contornar
o obstáculo?
Outra possibilidade a ser considerada é a tendência do psicótico, freqüente nos relatos
por ele trazidos, a se colocar como objeto de gozo do Outro. O paradigma é Schreber.
Tanto num caso como no outro uma intervenção pode ser a interpelação do psicótico
como sujeito, que deve, no entanto, obedecer ao cálculo da clínica.
Trata-se de algo que está próximo ao que Laurent propôs com a fórmula ―tocar o
sujeito no doente‖ [6].
5. O benefício da dúvida
O neurótico acredita no Outro, mas vacila, porque na neurose o Outro é barrado. Pode-
se dizer que a neurose é da ordem da dúvida.
A psicose, por seu turno, é da ordem da certeza. O Outro não é barrado; o psicótico
não acredita, ele tem certeza da existência do Outro.
Na psicose, o vigor da certeza está presente tanto em relação ao Outro do delírio como
em relação ao real da alucinação.
É claro que, quando se trata de perseguição atroz, de erotomania mortífera ou de
alucinações com vozes de comando assassinas, isso traz sofrimento lancinante para o
psicótico.
É nesse contexto que se torna oportuno o ditame ético de Lacan: onde houver certeza,
introduzir o benefício da dúvida.
6. A extração do objeto a
A angústia na neurose é angústia de castração, angústia relacionada à falta.
Na psicose, por outro lado, a angústia surge quando a falta vem a faltar, ou seja,
quando há objeto, quando há objeto demais [9].
Em outros termos, na psicose não há extração do objeto a. O psicótico não se separou
de seu objeto a, guarda-o no bolso, conforme diz Lacan.
A angústia na psicose, portanto, tem a ver com a falta da falta, com o objeto
demasiadamente presente.
Para sair dela, existem diferentes caminhos, como a extração do objeto pela via do
significante.
É possível, ainda, num curto-circuito, realizar uma passagem ao ato, tal como uma
agressão, uma automutilação ou uma tentativa de suicídio.
Um exemplo paradigmático seria Van Gogh cortando a sua orelha. Uma extração do
objeto a pela via do real.
8. As bengalas imaginárias
Uma clínica das suplências procura respostas para duas perguntas: (1) Como um
sujeito que apresenta uma estrutura psicótica evita o desencadeamento? (2) Uma vez
desencadeada uma psicose, de que modo é possível algum tipo de estabilização?
As suplências operam por caminhos que passam pelos três registros: imaginário,
simbólico e real.
Na falta de acesso verdadeiro ao simbólico, um dos recursos do psicótico é utilizar o
imaginário para a mediação com o real. Em importância, a identificação está para o psicótico
assim como a metáfora para o neurótico. As identificações funcionam como bengalas
imaginárias, fazendo o sujeito equilibrar-se como um banquinho de três pés [11].
Lacan menciona o mecanismo como se, que Helen Deutsch destacou na
sintomatologia de esquizofrênicos, e atribui-lhe valor de compensação imaginária do Édipo
ausente; não da imagem paterna, mas do próprio significante do Nome-do-Pai [12].
9. A construção delirante
Quando se considera a suplência pela via do simbólico, é importante assinalar, de
início, que na psicose a interpretação está do lado do psicótico, e não deve estar do lado do
analista.
Na psicose não há recalque e, como diz Lacan, o inconsciente está a céu aberto. Razão
pela qual a interpretação é desnecessária. E como o inconsciente é intérprete, a interpretação
fica do lado do psicótico.
Mais do que desnecessária, a interpretação aqui é prejudicial: ao mobilizar aspectos
pulsionais, pode desencadear uma psicose até então ordinária ou desestabilizar uma psicose
desencadeada.
Em vez de interpretação, construção.
Freud as diferencia de forma eloquente. Faz comparação com o arqueólogo, que em
suas escavações encontra objetos destruídos, dos quais partes importantes se perderam. A
interpretação se dirigiria ao que emerge do soterramento; a construção procuraria reconstituir
o que foi perdido para sempre [13]. Em outras palavras, a interpretação seria uma decifração,
visaria o simbólico subjacente à barra do recalque. Já a construção teria diante de si o
indecifrável. Um trecho de Freud torna-se oportuno nesse instante.
―Os delírios dos pacientes parecem-me ser os equivalentes das construções que
erguemos no decurso de um tratamento analítico —tentativas de explicação e de cura, embora
seja verdade que estas, sob as condições de uma psicose, não podem mais do que substituir o
fragmento de realidade que está sendo rejeitado no presente por outro fragmento que já foi
rejeitado no passado... Tal como nossa construção só é eficaz porque recupera um fragmento
de experiência perdida, assim também o delírio deve seu poder convincente ao elemento de
verdade histórica que ele insere no lugar da realidade rejeitada‖ [14].
Bibliografia sugerida
Leitura resumida:
Miller, J.A. (1996) Produzir o sujeito? In: Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Barreto, F. P. (1999) O tratamento psicanalítico do psicótico: aproximações. In: Reforma
Psiquiátrica e Movimento Lacaniano, p. 131-160. Belo Horizonte: Itatiaia.
Leitura avançada:
Laurent, E.(1989) Estabilizaciones em las psicosis. Buenos Aires: Manantial.
NOTAS
[1] Freud, S. (1975) Esboço de Psicanálise (1938). ESB, Vol. XXIII, p 200. Rio de Janeiro:
Imago.
[2] Lacan, J. Ouverture de la Section Clinique. In: Ornicar? Paris: 9: 7-14, avril 1977, p.
12.
[3] Miller, J.-A. (1996) Produzir o sujeito? In: Matemas I, p.156-157. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor.
[4] Miller, J.-A. (1996) Idem, p. 160.
[5] Lacan, J. (1985) O Seminário. Livo 3. As psicoses (1955-1956), p. 235. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor.
[6] Laurent, E. (1989) Entrevista sobre a apresentação de pacientes. In: Clínica Lacaniana nº
3. São Paulo: UNICOPI, p. 151.
[7] Lacan, J. (1998) De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1955-
1956). In: Escritos, p. 555. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
[8] Zenoni, A. (1995) Tratamento Del Outro. In: Lazos. Hacia uma clínica de las suplencias,
p. 123. Córdoba: Editorial Fundacion Ross.
[9]Miller, J.-A. (2005) Introdução à leitura do Seminário da angústia de Jacques Lacan. In:
Opção Lacaniana nº 43, p. 56-57. São Paulo: Eólia, 7-91, maio de 2005.
[10] Miller, J.-A. (1998) Lições sobre apresentação de doentes (p. 202). In: Os casos raros,
inclassificáveis, da clínica psicanalítica. A conversação de Arcachon. São Paulo: Biblioteca
Freudiana Brasileira, 1998.
[11] Barreto, F. P. (1999) O tratamento psicanalítico do psicótico: aproximações. In: Reforma
Psiquiátrica e Movimento Lacaniano, p. 149-150. Belo Horizonte: Itatiaia.
[12] Lacan, J. (1985) O Seminário. Livo 3. As psicoses (1955-1956), p. 220. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor.
[13] Freud, S. (1975) Construções em Análise (1937). ESB, Vol. XXIII, p. 295. Rio de
Janeiro: Imago.
[14] Freud, S. (1975) Idem, p. 303.
[15] Roudinesco, E. (1988) História da Psicanálise na França, Volume 2, p. 138-139. Rio de
Janeiro: Jorge ZaharEditor.
[16] Soler, C. (1992) El trabajo de la psicosis. In: Estudios sobre las psicosis, p. 18. Buenos
Aires: Manantial.
BARRETO, Francisco Paes. O tratamento psicanalítico do psicótico: Estratégias. In:______.
Blog de Francisco Paes Barreto, 18 out. 2016, Belo Horizonte. Disponível em: <
http://www.franciscopaesbarreto.com/search?updated-max=2017-07-07T08:49:00-
07:00&max-results=7&reverse-paginate=true>. Acesso em 26 de set. 2017.
Vinheta. Um psicótico aparentemente dócil foi internado várias vezes pelo mesmo
motivo: agressões físicas a seu pai, homem autoritário e de convicções rígidas. A família
procurou-me após outra internação, dessa vez por agressão física ao avô paterno. Ele pouco
falava sobre os motivos de suas agressões. Durante as férias do pai, ele fica hospedado na
casa de um tio paterno, que se torna a nova vítima de sua agressão física. Seu pai,
profundamente irado, pergunta-me sobre uma solução, uma internação de longa permanência,
ou algo assim. Comento com o paciente que todas suas agressões dirigiram-se ao seu pai ou a
familiares dele. E pergunto-lhe:
—Você gostaria de viver na sua própria casa?
A resposta foi prontamente positiva. Pondero com o pai que um pequeno apartamento
é menos oneroso do que uma longa internação... E trabalho com a idéia de uma distância mais
flexível entre eles. As agressões físicas cessaram.
1.6. Neotransferência
A neotransferência é a transferência que se espera no tratamento do psicótico. É a
melhor resposta que se tem no momento para a cogitação de Freud sobre um novo plano mais
adequado para esses casos, mencionada no início do capítulo anterior.
Como caracterizar a neotransferência?
Um primeiro aspecto já ficou marcado: o saber está do lado do psicótico.
E do lado do analista, o que se espera?
Quanto a isso, há duas respostas. Embora haja uma tendência do psicótico a situar-se
como objeto, ele pode, em certas situações, tratar o analista como objeto a. Outra
possibilidade é o analista como ideal, ou como S1, que põe o psicótico a trabalho, visando a
uma produção que tem valor de suplência.
Finalmente, a neotransferência pode assim ser definida: como a criação e o uso de
lalíngua da transferência no tratamento da psicose [4].
A neotransferência é um tear onde se procura tecer o laço social, a matriz de um
discurso. Além disso, a clínica tem demonstrado que, frequentemente, o estabelecimento de
um vínculo (neo)transferencial possui, por si só, certa função estabilizadora. É uma
constatação [5].
Vinheta. Colette Soler cita o caso de uma psicótica em análise que, em pânico frente
aos propósitos de seu perseguidor, entra em crise com pensamentos suicidas, fazendo crer que
não haveria alternativa a não ser uma hospitalização. Uma intervenção da analista, porém tem
efeito apaziguador:
—Ele não tem esse direito.
Palavras portadoras de um limite a respeito das pretensões do Outro sobre sua vida [7].
2.5. Construção
Vale lembrar novamente que toda solução psicótica pode acontecer sem o concurso de
qualquer tratamento, e o que se faz é tentar, com o tratamento, favorecer as saídas que os
próprios psicóticos ensinaram à psicanálise.
Assim ocorre também com a construção. O exemplo paradigmático é o de Schreber,
que, com sua construção delirante, alcançou relativa estabilização, reconstruindo seu mundo
por meio da metáfora delirante ―Mulher-de-Deus‖.
Não é o analista que escolhe o caminho, mas o psicótico. Não obstante, quando a
construção tem lugar, a escuta analítica e algumas pontuações ou comentários podem facilitá-
la, contribuindo para amenizar a angústia e moderar o gozo.
A relutância do psicótico em aceitar o tratamento analítico frequentemente é apenas
um dado inicial. O que se verifica na maioria das vezes é a dedicada e assídua participação
nas sessões, em tratamentos que podem se prolongar e que constituem, por si só, fator de
estabilização.
2.6. Sinthoma
Na Conversação de Arcachon Miller afirma que a segunda clínica de Lacan tem uma
equação fundamental: NP ≡ Σ. Ou seja, o sinthoma é equivalente ao Nome-do-Pai.
Em que consiste o sinthoma joyceano?
Em primeiro lugar, é um nome. Alusão ao renome que Joyce tanto buscou, escrevendo
para ―ocupar os críticos durante trezentos anos‖, ―único meio de assegurar a imortalidade‖
[12]. Com efeito, Lacan identificou em Joyce uma demissão paterna, uma Verwerfung de
fato, e o renome almejado fez a compensação da carência paterna. O nome, ou o sinthoma,
constituiu suplência do Nome-do-Pai ausente.
Em segundo lugar, o sinthoma é uma forma de gozar do corpo e do inconsciente. Não
há como interpretar, não há como analisar os escritos de Joyce: só se pode captar o gozo de
quem o escreveu. Joyce encarna o sinthoma, ele é o sinthoma, nessa pulverização gozosa da
língua que marca o corpo e em que o sentido se esfuma [13].
Vinheta. Um psicótico é acolhido num serviço de saúde mental de nossa rede para um
tratamento psicanalítico que durou vários anos. Em seu curso houve uma mudança crucial que
aqui será resumida. Movido pelo empuxo à mulher, o psicótico adotou identificação feminina,
inclusive nome feminino. Ao mesmo tempo, com seu novo nome passou a produzir sua obra,
obra escrita, escrita na sua lalíngua. Com isso, alcançou estabilização expressiva e mais do
que isso: com seu nome de gozo obteve reconhecimento em sua comunidade e construiu
interessante laço social.
Bibliografia sugerida
Leitura resumida:
Miller, J.-A. (1996) Mostrado em Prémontré. In:Matemas I, p. 151. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor.
Barreto, F. P. (2010) Transferência e psicose. In: Ensaios de psicanálise e saúde mental, p.
297-304. Belo Horizonte: Scriptum.
Leitura avançada:
Soler, C. (1992) Estudios sobre las psicosis. Buenos Aires: Manantial.
NOTAS
[1] Barreto, F. P. (2010) Transferência e psicose. In: Ensaios de Psicanálise e Saúde Mental,
p. 301-302. Belo Horizonte: Scriptum.
[2] Zenoni, A. Qual Instituição para o Sujeito Psicótico? In: Abrecampos, Ano 1, Nº 0. Belo
Horizonte: Instituto Raul Soares, 2000, pp. 19-20.
[3] Beneti, A. Sobre o tratamento psicanalítico da psicose. In: Artigos, Vol II, 1996, p. 25-26.
Belo Horizonte: Centro de Estudos Galba Velloso.
[4] Miller, J.-A. y otros. (2003) Neotransferencia: Lalengua de la transferencia en las psicosis.
In: La psicosis ordinária, p. 132. Buenos Aires: Paidós.
[5] Barreto, F. P. (2010) Op. Cit., p.
[6] Miller, J.-A. y otros. (2003) Op. cit., p. 131-158.
[7] Soler, C. (1992) ?Que lugar para el analista? In: Estudios sobre las psicosis, p. 11. Buenos
Aires: Manantial.
[8] Miller, J.-A. (1996) Mostrado em Prémontré. In:Matemas I, p. 151. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor.
[9] Idem, p. 152.
[10] Idem, p. 154.
[11] Freud, S. (1976) História de uma Neurose Infantil (1914). In: ESB, Vol. XVII. Rio de
Janeiro: Imago, p. 166.
[12] Lysy, A. (2005) Joyce e o Nome-do-Pai. In: Scilicet dos Nomes do Pai, p. 87. Rio de
Janeiro, Escola Brasileira de Psicanálise, Gráfica Edil.
[13] Idem, p.89.