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O BOM S OLDADO 1

2 FORD MADOX FORD


C OLEÇÃO L IVROS DA I LHA

Ford Madox Ford

O BOM SOLDADO
Uma História de Paixão

Tradução
Duda Machado

O BOM S OLDADO 3
EDITORA 34

Editora 34 Ltda.
Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000
São Paulo - SP Brasil Tel/Fax (011) 816-6777

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E CONFIGURA UMA APROPRIAÇÃO INDEVIDA DOS
DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR.

Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica:


Bracher & Malta Produção Gráfica
Fotografia da capa:
Pedro Franciosi
Revisão:
Magnólia Costa

1ª Edição - 1997

Catalogação na Fonte do Departamento Nacional do Livro


(Fundação Biblioteca Nacional, RJ, Brasil)

Ford, Ford Madox, 1873-1939


F415b O bom soldado / Ford Madox Ford; tradução
de Duda Machado. — São Paulo: Ed. 34, 1997
464 p. (Coleção Livros da Ilha)

ISBN 85-7326-078-5

1. Romance inglês. I. Título. II. Série.

CDD - 820

4 FORD MADOX FORD


O BOM SOLDADO
Uma História de Paixão

Reconhecimento e engano,
por Frank Kermode ................................ 9
Dedicatória ................................................ 23

Primeira Parte
Capítulo I .................................................. 35
Capítulo II ................................................. 51
Capítulo III ................................................ 66
Capítulo IV ................................................ 89
Capítulo V ................................................. 111
Capítulo VI ................................................ 146

Segunda Parte
Capítulo I .................................................. 163
Capítulo II ................................................. 197

Terceira Parte
Capítulo I .................................................. 207
Capítulo II ................................................. 238
Capítulo III ................................................ 256

O BOM S OLDADO 5
Capítulo IV ................................................ 283
Capítulo V ................................................. 304

Quarta Parte
Capítulo I .................................................. 335
Capítulo II ................................................. 355
Capítulo III ................................................ 388
Capítulo IV ................................................ 406
Capítulo V ................................................. 414
Capítulo VI ................................................ 431

Nota sobre Ford Madox Ford,


por Duda Machado ............................... 452

6 FORD MADOX FORD


O BOM SOLDADO
Uma História de Paixão

O BOM S OLDADO 7
8 FORD MADOX FORD
RECONHECIMENTO E ENGANO1
Frank Kermode

(...) A uma primeira leitura, a frase inicial do


romance de Ford parece estar dizendo que o que irá
se seguir é uma história, que é a mais triste, e que
vai ser contada por um narrador que teve o privilé-
gio de ouvi-la. Mais adiante descobrimos que a his-
tória envolve o suicídio de duas de suas quatro per-
sonagens principais, a morte súbita de uma outra,
e a insanidade de uma jovem, de modo que mais
triste é um pouco insatisfatório, talvez, e certamente
desorientador. Descobrimos também que o narra-
dor é o marido enganado de um dos suicidas e o
protetor da moça louca. Não é exatamente um re-
lato que foi contado a ele, e desse modo ouvir pos-

1 Apresentamos, à guisa de introdução, um trecho de


“Recognition and Deception” de Frank Kermode, quarto ca-
pítulo do livro Essays on Fiction 1971-82, London, Routledge
& Kegan Paul, 1983. (N. do T.)

O BOM S OLDADO 9
sui uma peculiaridade marcante. Sem ir mais longe
podemos dizer, acho, que a frase de abertura do li-
vro é enganosa. Você se pergunta por que. Ah você
diz, talvez, não nos estejam falando diretamente
sobre a história porque é mais importante saber que
tipo de sujeito é este; um pouco confuso, obviamen-
te. Ali está ele, no centro de uma teia de adultérios
e mortes, falando sobre ouvir uma história. E como
a Personagem é uma coisa importante, você pode
dizer que este livro está anunciando obliquamente
que vai ser sobre este personagem evidentemente
estranho. No entanto, nessa altura acho que seria
mais prudente se você fizesse uma afirmativa mais
modesta de que a frase de abertura é uma indica-
ção de que essa narrativa não terá a mesma preten-
são à autoridade como as de Trollope2, ou a mes-
ma constância de referência a tipos, quer narrati-
vos quer éticos, como as de Fielding3. Aquele que

2 Anthony Trollope (1815-88), autor de romances co-


mo Doctor Thorne, The Small House at Allington e The Last
Chronicle of Barse. (N. do T.)
3 Henry Fielding (1707-54), autor de Joseph Andrews,
Jonathan Wild, Tom Jones. (N. do T.)

10 FORD MADOX FORD


está falando encontra-se à margem de sua própria
história. Mais tarde ele tem uma espécie de visão
apocalíptica das personagens principais, e só há três
deles. Ele descreverá a si mesmo como um tolo ig-
norante casado com uma sensualista fria, e repetir
muitas e muitas vezes que aquilo que ignora é o
coração humano. Ao tentar descobri-lo ele está por
assim dizer lendo a história, como você.
Mas de nada adianta apegar-se ao rótulo “nar-
rador sem credibilidade” (unreliable narrator) e dei-
xá-lo ficar. Ele é certamente isto; num lugar ele está
simplesmente errado sobre sua própria história, fa-
lando da moça louca como se estivesse morta, em-
bora ele esteja na mesma casa do escritor, viva e tar-
tamudeando sobre a onipotência de Deus. É inte-
ressante que o livro, tão conscientemente organiza-
do, deva conter este e outros deslizes; são indica-
ções de que é mais seguro não classificá-lo prema-
turamente com esses tipos de slogans, mas operar
na superfície enganosa, as palavras que freqüente-
mente parecem, talvez sejam freqüentemente, for-
mais e inertes, mas que, num texto que abjura do
exercício de autoridade sobre o leitor desde seu co-

O BOM S OLDADO 11
meço, talvez não o sejam. Examine a segunda fra-
se, como um exemplo do que Henry James achava
que o novo romance deveria ter, ou seja “uma re-
lação desconcertante entre o tema e sua emergên-
cia”, e também como um exemplo do que o pró-
prio Ford chamava o processo de incluir na aber-
tura “a nota que sugere todo o livro”. O verbo co-
nhecer4 em diferentes formas aparece nesta segun-
da frase, três vezes na terceira, duas na quarta. Na
segunda ele é intensificado — “de uma maneira ex-
tremamente íntima” — mas essa qualificação é logo
retirada: “ou melhor, com um tipo de relacionamen-
to...”. Esta retirada é intensificada pelo símile da
luva, que manifesta intimidade e calor mas trai a si
mesmo como o índice de um relacionamento trivial
dependente de um uso peculiar da palavra “boa”.
Que esta seja a primeira de uma série de murmúrios
textuais sobre “conhecer”, nos conduz a um terre-

4 Um lembrete ao leitor: a tradução teve de recorrer ao


verbo saber, como no caso da expressão “I don’t know”, oni-
presente no romance. No entanto, mantivemos o verbo conhe-
cer no primeiro parágrafo do livro. (N. do T.)

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no já familiar5; daí os artigos sobre a “epistemolo-
gia” de O bom soldado e coisas assim. Mas não
acho que este seja de todo o aspecto decisivo, tam-
bém. Você, como o narrador, tem de decidir sobre
a palavra, e não pode fazê-lo ainda. No fim você
tem que considerar as ambigüidades de conhecer (sa-
ber). Há o sentido social: como se conhece as pes-
soas afinal de contas? Os ingleses são, e especialmen-
te os deste período fortemente marcado, os anos an-
teriores a 1914, e especialmente a “gente de bem”
inglesa, particularmente difíceis de conhecer? E o
social se funde no sexual. Ambos os casamentos são
mariages blancs, por motivos de ignorância, timidez,
e mais tarde, adultério. Como é que Florence, a es-
posa do narrador, com quem ele nunca dormiu,
conhece (sabe) tanto: “Mas como ela conseguia saber
o que ela sabia? Como ela conseguia saber? Saber
de maneira tão integral. Céus! não parecia haver
tempo para isso. Devia ser quando eu tomava meus
banhos, fazia minha ginástica sueca (sic), estava na

5 Kermode refere-se a interpretações já estabelecidas pela

crítica. (N. do T.)

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manicure”. Aqui está Dowell, numa piada complica-
da (consciente ou não?) sobre os únicos tipos de
exercício que ele fez. Quando ele diz isso, mais adian-
te no primeiro capítulo, está aparentemente falando
das conversas de Florence com um amigo culto, e
não sobre seus casos amorosos. Mas seu não-conheci-
mento de Florence (que sempre fecha o seu quarto,
embora seja capaz de um comportamento extrema-
mente faceiro nos banhos) é um complemento do
conhecimento que ela tem de Jimmie e Edward. A
ignorância dele em relação ao conhecimento dela
torna o texto uma espécie de relato de eunuco sobre
a paixão, necessariamente incorreto, parcial, fanta-
siado. Ele conhece (sabe) algo, naturalmente; assim
o romance poderia se chamar O que Dowell sabia6.

6 Alusão a What Maisie Knew de Henry James. Kermode

sublinha a relação entre Henry James e Ford Madox Ford,


observando que Henry James pretendia ainda um controle
sobre as possibilidades de sugestão projetadas pela narrativa,
exercendo “mais autoridade moral e técnica sobre o leitor do
que Ford deseja”. Deste modo, a “precisão” buscada por Ford
“significa uma precisão de meios, sem implicações em relação
ao controle da sugestão sobre o leitor”. (N. do T.)

14 FORD MADOX FORD


O título que Ford queria realmente tem a mesma
força: A história mais triste.
Para encerrar com a segunda frase, não vamos
negligenciar o “Nós”, expandido na terceira como
“Minha esposa e eu”. Descobriremos que o grau de
intimidade entre Florence e cada um dos Ashburn-
ham era muito mais profundo que o de seu marido,
que isto tem de ser lido como um outro engano; e a
retirada imediata de uma qualificação como a da ex-
pressão “extrema intimidade”, correta em relação a
ele mas de maneira nenhuma em relação a ela, como
mais um outro engano. Assim na terceira frase a pri-
meira afirmação é verdadeira quanto a Florence mas
não quanto a Dowell; a qualificação característica
adicional que se segue é verdadeira, mas com senti-
do inteiramente diferente para cada um deles, de ma-
neira que o efeito é mais uma vez enganoso.
A quarta frase sugere, e ao fazê-lo emite uma
outra “nota que sugere todo o livro”, que o “esta-
do de coisas” representado por toda essa confusão
semântica pode ser generalizado; os ingleses, as pes-
soas que Dowell escolhe para conhecer, são especial-
mente impenetráveis; este caso particular, em sua

O BOM S OLDADO 15
tristeza, pode ser usado para sugerir a situação de
uma nação, a condição de uma cultura que em to-
dos os sentidos não conhece. E mais adiante o tex-
to nos permitirá, se quisermos, vê-lo como uma fi-
guração da tragédia mundial de 1914, assim como
“a morte de um rato de câncer é todo o saque de
Roma pelos Godos”. Mas naturalmente quando
Dowel reivindica que seu tema é “a derrocada de
um povo” e desenvolve isso de uma maneira retó-
rica muito apaixonada, entra uma nova voz à qual
podemos não desejar dar inequivocamente crédito
mais do que às outras.
Na quinta frase descobrimos, não só mais evi-
dência da peculiar falta de qualificações em Dowel
que favorece o engano, mas o primeiro uso de uma
outra palavra difícil e enganosa, coração. São os
corações que Dowell acha difícil conhecer. No se-
gundo e no terceiro parágrafo descobrimos que sua
esposa “sofre do coração”. Esta condição impõe
certas restrições a eles — “necessariamente... neces-
sariamente... acabamos...” e mais adiante esta con-
dição é chamada de “aprisionamento”. Na frase
final deste parágrafo o leitor é convidado a tirar uma

16 FORD MADOX FORD


conclusão, ou seja de que Florence “tinha alguma
coisa no coração”. Acontece que isto não é verda-
de no sentido declarado. Sua falsa condição cardíaca
era apenas uma maneira de manter seu marido afas-
tado (não deixar que ele a conhecesse). A morte que
ele supõe ter resultado de um ataque cardíaco foi
suicídio; ela sabia que seu marido estava prestes a
descobrir que ela tinha amantes. O frasco não con-
tinha o remédio prescrito para sua saúde, mas áci-
do prússico, para ser tomado no caso dele vir a
conhecer (saber). Quando chegamos ao fim, refle-
timos que se algum deles tinha algo no coração era
o próprio Dowell, que ele era o sofredor, ou teria
sido se tivesse conhecido. O título francês que Ford
deu ao livro era Quelque chose au coeur. Isto indica
a importância desta confusão semântica adicional.
Isto se confunde com o fato de que ter um co-
ração também implica possuir uma vida sexual; só
Florence e Ashburnham a possuem; o esporte que
o fez ter algo no coração não foi o pólo (um segun-
do sentido de “praticamente” e uma outra piada
sobre exercício), a tempestade no mar destruiu os
anos de Dowell, não os de Florence; se alguém era

O BOM S OLDADO 17
pobre era ele. Sim naturalmente eles estão doentes,
e suas doenças são especificadas mais adiante; e
morrem por causa de suas condições cardíacas, co-
mo a meditação sussurrada do quarto parágrafo nos
faz saber. A palavra caso é um outra miscelânea de
murmúrios, assim como tranqüilo (a), relacionada
não só com “bem” mas com os segredos de um caso
de adultério mantido durante muitos anos entre as
formalidades insignificantes de um spa.
Muito mais poderia ser dito, e dito de manei-
ra diferente, mas espero que você concorde que esse
texto explora características da narrativa que as
pessoas se inclinaram, e ainda se inclinam, a expul-
sar de suas mentes por causa de sua longa — mas
não necessariamente perpétua — cumplicidade com
o que afinal de contas é uma noção um tanto espe-
cial de que os textos narrativos estabelecem peremp-
toriamente um padrão único de veracidade, que os
desvios que retificam esse contrato são óbvios e po-
dem ser facilmente identificados. Termos como pon-
to de vista e seu parente, e, bem mais velho, ironia,
podem parecer úteis aqui. Mas este livro mostra
como são inadequados. Os autores podem ser des-

18 FORD MADOX FORD


possuídos, como James achava que deviam ser; ele
queria dizer que uma história pode possuir alguém
demoniacamente, fazer alguém dançar de acordo
com sua música. Pensava que o autor podia invo-
car a música, contemplar o “caso” e construí-lo. Daí
o hiato; daí os enganos, as múltiplas vozes, a au-
sência de uma cumplicidade simples, de uma ver-
dade testemunhada e certamente conhecida. As mes-
mas coisas poderiam ser mostradas no livro como
um todo. Ninguém descobriu ainda em O bom sol-
dado uma série hermenêutica que culmine numa
verdade revelada; em relação a isso, de qualquer
modo, as revistas acadêmicas podem testemunhar.

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20 FORD MADOX FORD
O BOM SOLDADO
Uma História de Paixão

“Beati Immaculati”

O BOM S OLDADO 21
22 FORD MADOX FORD
DEDICATÓRIA

Minha querida Stella1,

Eu sempre considerei este o meu melhor livro


— de qualquer modo o meu melhor livro do perío-
do pré-guerra; entre sua escrita e o aparecimento
de meu romance seguinte passaram-se dez anos, de
forma que aquilo que escrevi desde então deve ser
visto como a obra de um outro homem —, como a
obra de seu homem. Pois é certo que sem o incenti-
vo para viver que você me ofereceu, eu mal teria so-
brevivido ao período da guerra e é mais certo ain-
da que sem seu incentivo para que voltasse a escre-
ver, eu nunca mais teria escrito. E acontece que, por

1 Esta introdução, escrita sob a forma de uma carta de-

dicada a Stella Ford, foi publicada na edição norte-americana


das obras completas do autor. (N. do T.)

O BOM S OLDADO 23
um estranho acaso, O bom soldado é quase o úni-
co entre meus livros que não é dedicado a alguém:
o destino deve ter escolhido que esperasse os dez
anos que esperou, para esta dedicatória.
O que sou agora devo-o a você; o que era quan-
do escrevi O bom soldado eu o devi à concatenação
de circunstâncias de uma vida instável e sem obje-
tivo. Até que me sentasse para escrever este livro
— a 17 de dezembro de 1913 — jamais havia ten-
tado me estender2, para usar uma expressão do trei-
namento de cavalos de corrida. Em parte, porque
sempre entretive fixamente a idéia de que — seja lá
qual fosse o caso dos outros escritores — eu, pelo
menos, não seria capaz de escrever um romance com
o qual pudesse me firmar antes de chegar aos qua-
renta anos de idade; em parte, porque decididamente
não queria competir com outros escritores cuja ve-
leidade ou cuja necessidade de reconhecimento, ou
daquilo que o reconhecimento traz, eram maiores
do que a minha. Nunca havia tentado realmente

2 No sentido de “preparar o cavalo para uma longa car-

reira”. Cf. Caldas Aulete. (N. do T.)

24 FORD MADOX FORD


colocar num romance meu tudo quanto eu sabia em
relação a escrever. Já escrevera um tanto erratica-
mente um certo número de livros — um grande nú-
mero — mas todos eles tinham assumido a nature-
za de pastiches, de peças de uma escrita um tanto
preciosista, ou de tours de force. Mas sempre tive
loucura por escrever — sobre a maneira como se
deve escrever e em parte sozinho, parte em compa-
nhia de Conrad, eu chegara a fazer até aquela data
estudos exaustivos a propósito de como as palavras
deveriam ser tratadas e os romances construídos.
Assim, no dia em que completei quarenta anos,
sentei-me para mostrar o que poderia fazer — e
disso resultou O bom soldado. Eu tinha a firme
intenção de que fosse também o meu último livro.
Costumava pensar — e não sei se ainda penso o
mesmo hoje em dia — que escrever um livro era o
bastante para um homem, e, na época em que O
bom soldado foi concluído, Londres, pelo menos,
e possivelmente o mundo pareciam estar passando
para o domínio de escritores mais novos e muito
mais vívidos. Eram os dias apaixonados dos Cu-
bistas, Vorticistas e Imagistas literários, junto com

O BOM S OLDADO 25
o resto dos Jeunes turbulentos e revoltosos desta
jovem década. Assim via a mim mesmo como a En-
guia que, ao alcançar o alto mar, dá nascimento à
suas crias e morre — ou, como o Grande Mergu-
lhão, achava que, ao receber minha parte, tinha
posto o meu ovo e poderia muito bem morrer. Desse
modo fiz uma despedida formal da literatura nas
colunas de uma revista chamada Thrush — que por
sua vez, pobre mergulhão que ela era, morreu des-
se esforço. Então preparei-me para ficar à parte em
favor de nossos bons amigos — seus e meus — Ezra,
Eliot, Wyndham Lewis, H. D., e o resto dos jovens
escritores barulhentos que estavam batendo à porta.
Mas um clamor maior assaltou Londres e o
mundo que até então pareciam estar aos pés orgu-
lhosos desses conquistadores; Cubismo, Vorticismo,
Imagismo e o resto nunca tiveram uma oportuni-
dade decente entre as vozes do canhão, e assim eu
saí de novo de meu buraco e ao lado de suas obras
fortes, delicadas e belas, tomei coragem para mos-
trar minhas próprias obras.
O bom soldado, no entanto, permanece o meu
grande ovo de mergulhão, na medida em que per-

26 FORD MADOX FORD


tence a uma raça que não terá sucessores; como já
foi escrito há muito tempo, talvez eu não pareça pre-
sunçoso ao considerá-lo rapidamente. Nenhum au-
tor, acho, merece censura quanto à vaidade se, ao
apanhar um de seus livros já com dez anos de ida-
de, exclamar: “Céus, será que eu escrevia tão bem
assim naquela época?”, pois fica sempre implícito
que já não escreve tão bem assim, e poucos são tão
invejosos a ponto de censurar as complacências de
um vulcão extinto.
Seja lá como for, vi-me forçado recentemente
a um exame mais aprofundado deste livro, pois tive
que traduzi-lo para o francês3, o que me forçou a
examiná-lo bem mais de perto do que permite a lei-
tura mais minuciosa. E permito-me dizer que fiquei
perplexo com o trabalho que devo ter empregado
na construção do livro, no entrelaçamento intrica-
do de referências e referências cruzadas. Não é coi-
sa de se admirar, embora eu o tenha escrito com
relativa rapidez, pois eu o vim incubando durante

3 A tradução de Ford com o título de Quelque chose au

coeur, não foi, ao que parece, publicada até hoje. (N. do T.)

O BOM S OLDADO 27
uma década inteira. Isto se deve ao fato de que a
história é verdadeira e de que eu a ouvi do próprio
Edward Ashburnham, mas não pude escrevê-la até
que todos os outros tivessem morrido. Por isso a
carreguei comigo durante todos esses anos, pensan-
do nela de vez em quando.
Nessa época eu tinha uma ambição: fazer pelo
romance inglês o que, em Fort comme la mort, Mau-
passant fizera pelo francês. Um dia tive minha re-
compensa, pois estando na companhia de um jovem
admirador fervoroso, este exclamou: “Por Júpiter,
O bom soldado é o melhor romance da língua in-
glesa!”, ao que meu amigo John Rodker, que sem-
pre teve uma admiração adequadamente equilibra-
da por meu trabalho, observou com sua pronúncia
clara e arrastada: “Ah, sim. É, mas você se esque-
ceu de uma palavra. É o melhor romance francês
da língua inglesa!”.
Com esse tributo a meus mestres e superiores
da França, eu entregarei o livro ao leitor. Mas gos-
taria de dizer ainda uma palavra sobre o título. Dei
a este livro o título original de A história mais tris-
te, mas como não foi publicado até que os dias mais

28 FORD MADOX FORD


sombrios da guerra nos alcançassem, o senhor Lane4
vivia me importunando com cartas e telegramas —
na época eu estava envolvido em outras atividades!
— para mudar o título que, segundo ele, tornaria a
venda do livro impraticável naquela época. Um dia,
quando eu estava numa revista de tropas, recebi um
último telegrama de apelo do senhor Lane e, como
a resposta já estava paga, escrevi com ironia preci-
pitada: “Caro Lane, por que não O bom soldado?”.
Para meu horror, seis meses depois o livro apare-
ceu com esse título.
Eu nunca deixei de lamentar isso mas, depois
da Guerra, tive tantas provas de que o livro fora lido
com esse título que hesitei em fazer uma mudança
com medo de causar confusão. Se a oportunidade
tivesse surgido durante a guerra, não teria hesita-
do em fazer a mudança, pois só obtivera duas mos-
tras de que já tinham ouvido falar dele. Numa oca-
sião encontrei o ajudante de ordens de meu regimen-
to, que voltava de sua licença com uma ar extre-

4 Trata-se do editor inglês John Lane (1854-1926). (N.


do T.)

O BOM S OLDADO 29
mamente abatido. Eu disse: “Puxa, homem, o que
é que você tem?”. Ele respondeu: “Bem, anteontem
eu fiquei noivo e hoje fiquei lendo O bom soldado”.
Em outra ocasião, eu estava de novo numa
revista de tropas, para ser examinado durante as
manobras, no Guard’s Square em Chelsea. E, como
estivesse petrificado pelo nervosismo, já que tinha
de fazê-lo diante de uma meia dúzia de cavalhei-
ros mais velhos com braçadeiras vermelhas, perfi-
lei meus homens da maneira mais desesperadora-
mente arrumada que é possível fazer com os sol-
dados rasos da Guarda Coldstream de Sua Majes-
tade. Enquanto eu ficava rigidamente perfilado, um
dos mais velhos com a braçadeira vermelha ficou
bem atrás de mim e disse claramente ao meu ouvi-
do: “Você disse O bom soldado?”. Assim, sem dú-
vida, o senhor Lane estava vingado. De qualquer
maneira eu aprendera que a ironia pode ser uma
faca de dois gumes.
Você, minha querida Stella, já me ouviu con-
tar essas histórias muitas vezes. Mas os mares ago-
ra nos separam e eu as mando nessa carta que você
lerá antes de me ver, na esperança de que elas pos-

30 FORD MADOX FORD


sam lhe dar algum prazer, na ilusão de que você está
ouvindo tons familiares e muito afeiçoados. E as-
sim me subscrevo com toda sinceridade, na espe-
rança de que você irá aceitar a dedicatória particular
deste livro e a dedicatória geral da edição.

Seu
F. M. F.
Nova York, 9 de janeiro de 1927

O BOM S OLDADO 31
32 FORD MADOX FORD
PRIMEIRA PARTE

O BOM S OLDADO 33
34 FORD MADOX FORD
I.

Esta é a história mais triste que já ouvi. Co-


nhecemos os Ashburnham durante nove tempora-
das na cidade de Nauheim1, de maneira bastante
íntima — ou melhor, com um tipo de relacionamen-
to tão descontraído e à vontade, e no entanto tão
aconchegado como uma boa luva em sua mão. Mi-
nha esposa e eu conhecíamos o capitão e a senhora
Ashburnham tão bem quanto era possível se conhe-
cer alguém e contudo, em outro sentido, nada sa-
bíamos sobre eles. Trata-se, creio, de uma situação
que só é possível com ingleses em relação aos quais,
até hoje, quando me sento para avaliar o que co-
nheço deste triste caso, vejo que não conheço mes-
mo nada. Até seis meses antes eu nunca havia esta-

1 Bad Nauheim é um spa famoso, nas montanhas Taunus,

perto de Frankfurt. (N. do T.)

O BOM S OLDADO 35
do na Inglaterra, e, com certeza, nunca sondara as
profundidades de um coração inglês. Eu só conhe-
cia as superfícies.
Não quero dizer que não estivéssemos fami-
liarizados com muitos ingleses. Vivendo, como vi-
víamos necessariamente, na Europa, e sendo, como
éramos necessariamente, americanos ociosos, o que
equivale a dizer que éramos não-americanos, aca-
bamos desfrutando bastante da companhia dos me-
lhores ingleses. Paris, entenda, era nosso lar. Em
algum lugar entre Nice e Bordighera2 havia regular-
mente acomodações de inverno para nós, e Nauheim
sempre nos recebeu de julho até setembro. Você
pode inferir dessa afirmação que um de nós, como
se diz, “tinha alguma coisa no coração”, e, da afir-
mação de que minha mulher está morta, de que ela
era a paciente.
O capitão Ashburnham também tinha alguma
coisa no coração. Mas, enquanto apenas mais ou

2 Bordighera é uma estação de inverno no litoral nor-


deste da Itália; Nice, como se sabe, fica na Riviera francesa.
(N. do T.)

36 FORD MADOX FORD


menos um mês por ano em Nauheim deixava-o afi-
nado no diapasão certo para o resto dos doze me-
ses, um pouco mais de dois meses, aproximadamen-
te, eram suficientes apenas para manter a pobre
Florence viva de um ano para o outro. Para o cora-
ção dele a causa fora, praticamente, o pólo, ou um
excesso de prática de esporte em sua juventude. O
motivo para os anos desperdiçados da pobre Flo-
rence fora uma tempestade no mar durante nosso
primeiro cruzeiro à Europa, e as razões imediatas
para nosso aprisionamento neste continente foram
as ordens médicas. Disseram que até a breve tra-
vessia do Canal podia matar a coitada.
Quando nos encontramos pela primeira vez,
o capitão Ashburnham, de volta, numa licença de
saúde, da Índia, para onde jamais retornaria, tinha
trinta e três anos; a senhora Ashburnham — Leo-
nora — tinha trinta e um. Eu estava com trinta e
seis e a pobre Florence com trinta. Assim hoje Flo-
rence teria trinta e nove e o capitão Ashburnham
quarenta e dois; estou com quarenta e cinco e Leo-
nora com quarenta. Dá para perceber, portanto, que
era uma amizade típica de pessoas no começo da

O BOM S OLDADO 37
meia-idade, já que todos nós tínhamos temperamen-
tos bastante tranqüilos, os Ashburnham pertencen-
do de maneira mais particular ao que na Inglaterra
é hábito chamar de “gente de bem”.
Eles descendiam, vale a pena dizê-lo, dos Ash-
burnham que acompanharam Carlos I ao cadafalso,
e, como se deve esperar desta classe de ingleses, você
jamais iria saber disso. A senhora Ashburnham era
uma Powys; Florence era uma Hurlbird de Stamford,
Connecticut, onde, como você sabe, eles são ainda
mais antiquados do que os moradores de Cranford3,
na Inglaterra. Eu mesmo sou um Dowell de Fila-
délfia, Pensilvânia, onde, isto é uma verdade histó-
rica, há mais famílias inglesas antigas do que se pode
encontrar em seis condados ingleses reunidos. Eu
trago comigo, de fato — como se fosse a única coi-
sa que invisivelmente me sustentasse em qualquer
lugar no globo — os títulos de propriedade de mi-
nha fazenda, que já compreendeu vários quarteirões

3 Trata-se de uma alusão ao romance do mesmo título


— Cranford — de Elizabeth Gaskell sobre uma aldeia rural
antiquada e tranqüila. (N. do T.)

38 FORD MADOX FORD


entre as ruas Chestnut e Walnut. Estes pequenos
títulos de propriedade são contas de conchas4, a
concessão de um chefe índio ao primeiro Dowell,
que saiu de Farnham em Surrey na companhia de
William Penn5. A família de Florence, como acon-
tece freqüentemente com os habitantes de Connecti-
cut, veio das redondezas de Fordinbridge6, onde fica
a residência dos Ashburnham. É daqui que estou es-
crevendo agora.
Você pode estar se perguntando por que é que
escrevo. E no entanto há muitas razões. Pois não é
incomum nos seres humanos que testemunharam o
saque de uma cidade ou a derrocada de um povo o
desejo de registrar o que eles testemunharam em
benefício de herdeiros desconhecidos ou de gerações
infinitamente remotas; ou, se você preferir, apenas
para expulsar a visão de suas cabeças.

4Wampum: as contas de conchas usadas pelos índios


como dinheiro. (N. do T.)
5 William Penn (1644-1718), o líder quaker que fundou

a colônia quaker da Pensilvânia. (N. do T.)


6 Fordinbridge, uma cidade no condado de Hampshire,

na Inglaterra. (N. do T.)

O BOM S OLDADO 39
Alguém disse que a morte de um rato com cân-
cer é como todo o saque de Roma pelos godos, e
eu juro a você que o desmantelamento de nossa
coterie quadrangular foi um desses acontecimentos
inimagináveis. Supondo que você viesse sentar-se
conosco num das mesinhas do clube, digamos, em
Homburg7, para tomar o chá da tarde e assistir ao
jogo de golfe, você diria que, do jeito como é a vida,
nós éramos uma castelo extraordinariamente segu-
ro. Éramos, se você quiser, um desses grandes na-
vios de velas brancas sobre um mar azul, uma des-
sas coisas que parecem as mais orgulhosas e segu-
ras entre todas as coisas belas e seguras que Deus
permitiu que a mente do homem concebesse. Onde
se poderia encontrar melhor refúgio? Onde?
Permanência? Estabilidade? Nem posso acre-
ditar que tudo acabou. Não posso acreditar que esta
vida comprida, tranqüila, que dava passos de mi-
nueto, tenha desaparecido em quatro dias arrasa-
dores ao fim de nove anos e seis semanas. Sim, eu

7Homburg, outro famoso spa alemão nas montanhas


Taunues. (N. do T.)

40 FORD MADOX FORD


dou minha palavra, nossa intimidade era como um
minueto, simplesmente porque em qualquer ocasião
possível e em qualquer circunstância possível nós
sabíamos aonde ir, aonde sentar, que mesa escolher,
com unanimidade; e poderíamos nos levantar e ir,
todos os quatro juntos, sem qualquer sinal de ne-
nhum de nós, sempre em direção à música da or-
questra da Kur8, sempre sob o sol temperado, ou,
se chovesse, para abrigos discretos. Não, de fato,
não pode ter acabado. Você não pode destruir um
minueto da Corte. Você pode fechar a caixa de mú-
sica, você pode largar o cravo; no armário e no
guarda-roupa os ratos podem destruir as fitas de
seda branca. A turba pode saquear Versalhes; o
Trianon pode cair, mas certamente não o minueto
— pois o minueto consiste em seguir dançando até
as estrelas mais longínquas, ainda que nosso mi-
nueto dos balneários de Hesse tenha parado. Será
que não há algum céu onde as belas danças anti-
gas, as belas amizades antigas se prolongam? Será

8 Em alemão: a cura, ou seja, a estação de cura. (N.


do T.)

O BOM S OLDADO 41
que não existe algum nirvana impregnado pela vi-
bração desmaiada de instrumentos que caíram na
poeira do dissabor mas que ainda tenham almas
frágeis, trêmulas e duradouras?
Não, por Deus, é falso! Não dançávamos um
minueto; era uma prisão — uma prisão cheia de gri-
tos histéricos, tão abafados que não podiam ven-
cer o som das rodas de nossa carruagem, quando
percorríamos as avenidas sombreadas da floresta
Taunus.
E no entanto juro pelo nome sagrado de meu
criador que era verdade. Era o sol verdadeiro; a mú-
sica verdadeira; o esguicho verdadeiro das fontes
pela boca dos delfins de pedra. Pois, se para mim
nós éramos quatro pessoas com os mesmos gostos,
com os mesmos desejos, agindo — ou não agindo
— sentando-se aqui e ali unanimemente, isto não é
a verdade? Se durante nove anos eu possuí uma bela
maçã que apodreceu no miolo e só descobri sua
podridão depois de nove anos e seis meses menos
quatro dias, não é verdade que posso dizer que du-
rante nove anos eu possuí uma bela maçã? Então
pode ter sido assim com Edward Ashburnham, com

42 FORD MADOX FORD


Leonora, sua esposa, e com a pobre Florence que-
rida. E, se você pensar nisso, não é um pouco es-
tranho que a podridão física de pelo menos dois
pilares de nossa casa quadrangular nunca tenha se
mostrado para minha mente como uma ameaça à
sua segurança? Ainda não se mostra assim embora
dois deles estejam mortos agora. Não sei...
Não sei nada — nada desse mundo — sobre
os corações dos homens. Só sei que estou sozinho
— horrivelmente sozinho. Lar nenhum irá testemu-
nhar, para mim, um intercurso amistoso. Sala para
fumantes nenhuma poderá ser mais do que algo
povoado de simulacros incalculáveis entre espirais
de fumaça. No entanto, em nome de Deus, o que
eu poderia saber se não conheço a vida do lar e das
salas para fumantes, já que toda minha vida se pas-
sou nesses lugares? O aconchego do lar! Bem, ha-
via Florence: acredito que durante os doze anos que
sua vida durou, depois da tempestade que parecia
ter irremediavelmente enfraquecido seu coração —
não acredito que por um minuto ela tenha ficado
fora de meu campo de visão, exceto quando estava
estirada na cama de maneira segura e eu estava no

O BOM S OLDADO 43
andar de baixo, conversando com um ou outro bom
camarada ou em alguma sala de espera ou na sala
para fumantes ou tirando minhas últimas bafora-
das do charuto antes de ir para a cama. Entenda,
eu não culpo Florence. Mas como ela podia fazer o
que fazia? Como ela conseguia? Fazer de maneira
tão integral. Céus! Não parecia haver tempo para
isso. Devia ser quando eu tomava meus banhos,
fazia minha ginástica sueca, estava na manicure.
Levando a vida que eu levava, de ama-seca dedicada,
esforçada, eu tinha de fazer algo para me manter
em forma. Devia ser nessas horas! Mesmo assim não
haveria tempo suficiente para ter as conversas tre-
mendamente longas, cheias de sabedoria mundana,
que Leonora me relatou depois de suas mortes. E
dá para imaginar que durante nossos passeios pres-
critos em Nauheim e pela vizinhança ela tenha en-
contrado tempo para prosseguir nas negociações
protáticas que conduzia junto a Edward Ashburn-
ham e sua esposa? E não é incrível que durante todo
esse tempo Edward e Leonora nunca tenham dito
uma só palavra um ao outro em particular? O que
se pode pensar da humanidade?

44 FORD MADOX FORD


Pois juro a você que eles eram o casal mode-
lo. Ele era tão dedicado quanto possível, sem pare-
cer presunçoso. Tão bem-educado, com olhos tão
honestos, um jeito tão simplório, um coração tão
bondoso! E ela — tão alta, tão esplêndida na sela,
tão bonita! Sim, Leonora, era extraordinariamente
bonita e tão extraordinariamente real que parecia
boa demais para ser verdadeira. Não se pode, eu
acho, ter tudo junto assim de modo tão superlati-
vo. Ser de boa família, parecer de boa família, ser
tão adequada e perfeitamente rica; ser perfeita em
suas maneiras — até mesmo com aquele parcimo-
nioso toque de insolência que parece necessário. Ter
tudo isso e ser tudo isso! Não, era bom demais para
ser verdade. E no entanto, só naquela tarde, con-
versando sobre toda a situação, ela me disse: “Uma
vez tentei ter um amante, mas estava tão decepcio-
nada, tão exausta que o mandei embora”. Aquilo
me tocou como a coisa mais espantosa que eu já
ouvira. Ela disse “Eu estava de fato nos braços de
um homem. Um sujeito tão bom! Tão carinhoso!
E eu dizia a mim mesma, arrebatadamente, cerran-
do os dentes, como se diz nos romances — e na

O BOM S OLDADO 45
verdade batendo todos eles juntos —, eu dizia a mim
mesma: ‘Agora eu consegui e finalmente estou me
divertindo pelo menos uma vez na minha vida —
pelo menos uma vez em minha vida!’. Foi na escu-
ridão, dentro de uma carruagem, voltando de um
baile durante a temporada de caça. Tínhamos de
viajar onze milhas! E então, de repente, a amargu-
ra da pobreza infinita, do fingimento infinito —
aquilo caiu sobre mim como uma maldição, estra-
gou tudo. Sim, eu tinha de entender que fora estra-
gada até para o tempo feliz, quando ele chegou. E
rebentei no choro e chorei e chorei durante as onze
milhas. Imagine só: eu chorando! E me imagine tam-
bém fazendo de idiota um pobre camarada queri-
do daquela maneira! Não era um procedimento cor-
reto, será que era?”.
Não sei; não sei; esse último comentário dela
era o comentário de uma prostituta, ou é isso que
toda mulher decente, de boa família ou não, pensa
no fundo de seu coração? Ou pensa nisso o tempo
todo? Quem sabe?
Sim, se não se sabe isso até agora, a esta altu-
ra de civilização a que chegamos, depois de toda a

46 FORD MADOX FORD


pregação de todos os moralistas e de todos os en-
sinamentos de todas as mães para todas as filhas in
saecula saeculorum... Mas talvez seja isso o que
todas as mães ensinam a suas filhas, não com os
lábios mas com os olhos, ou com o coração sussur-
rando para o coração. E, se não se sabe nem isso
sobre a primeira coisa desse mundo, o que é que se
sabe e por que é que se está aqui?
Perguntei à senhora Ashburnham se ela con-
tara aquilo a Florence e o que Florence dissera; ela
respondeu: “Florence não fez nenhum comentário.
O que ela poderia dizer? Não havia nada para ser
dito. Com a maçante pobreza com que tínhamos de
lidar para manter as aparências, e da maneira que
a pobreza irrompeu — você sabe o que eu quero
dizer —, qualquer mulher estaria justificada ao acei-
tar um amante e presentes também. Florence falou
uma vez sobre uma situação semelhante — ela era
um pouco educada demais, americana demais, para
falar sobre a minha —, que era exatamente o caso
de uma situação inteiramente livre e na qual a mu-
lher podia muito bem agir sob o estímulo do mo-
mento. Ela disse-o à maneira americana, é claro, mas

O BOM S OLDADO 47
era esse o sentido. Acho que suas palavras foram:
‘Cabe a ela aceitá-lo ou não...’”.
Não quero que você pense que eu estou des-
crevendo Teddy Ashburnham como um bruto. Não
acredito que ele fosse. Só Deus sabe, talvez todos
os homens sejam assim. Pois, como eu disse, o que
é que sei até mesmo da sala para fumantes? Os sujei-
tos vêm e vão, contando as histórias mais extraordi-
nariamente grosseiras — tão grosseiras que chegam
de fato a afligir. E entretanto ficam ofendidos se você
sugerir que eles não são o tipo de pessoa com quem
você não poderia deixar sua esposa a sós. E é bem
provável que ficassem corretamente ofendidos — se
é que você pode confiar em alguém a sós com ou-
tro. Mas esse tipo de sujeito obviamente tem mais
prazer em ouvir ou em contar histórias grosseiras
— mais prazer do que em qualquer outra coisa no
mundo. Eles caçam languidamente, se vestem lan-
guidamente, jantam languidamente, trabalham sem
entusiasmo e acham que é um tédio manter três mi-
nutos de conversa sobre seja lá o que for e, no en-
tanto, quando esse outro tipo de conversa começa,
eles riem, acordam e se agitam em suas cadeiras.

48 FORD MADOX FORD


Portanto, se eles se deliciam tanto assim com a nar-
ração, como é possível que fiquem ofendidos — e
corretamente ofendidos — diante da sugestão de que
poderiam atentar contra a honra de sua esposa? Vou
dizê-lo mais uma vez: Edward Ashburnham tinha
a aparência mais decente do mundo: um excelente
magistrado, um soldado de primeira ordem, um dos
melhores proprietários rurais, era o que se dizia, de
Hamphshire, na Inglaterra. Para os pobres e os bê-
bados sem esperança, como eu próprio testemunhei,
ele era uma espécie de guardião assíduo. E ele nun-
ca contou uma história que não pudesse figurar nas
colunas do Field, a não ser uma ou duas vezes du-
rante os nove anos em que o conheci. Ele nem se-
quer gostava de ouvi-las; impacientava-se, levanta-
va-se e saía para comprar um cigarro ou qualquer
coisa assim. Você diria que ele era exatamente o tipo
de sujeito a quem você poderia confiar sua esposa.
E eu confiei a minha — foi loucura.
E aqui vocês me têm de novo. Se o pobre Ed-
ward era perigoso por causa da castidade de suas
expressões — e eles dizem que isto é sempre a mar-
ca de um libertino —, o que dizer de mim? Pois con-

O BOM S OLDADO 49
fesso solenemente que não só jamais esbocei qual-
quer impropriedade em minha conversa durante
toda minha vida; e mais do que isto, comprovo-o
pela decência de meus pensamentos e pela absolu-
ta castidade de minha vida. Então, como foi que
tudo aconteceu? Será que tudo é uma loucura, uma
piada? Eu não passo de um eunuco ou o homem
correto — o homem com direito à existência — é
um garanhão furioso sempre atrás da mulher do
próximo?
Não sei. E não há nada para nos guiar. E se
tudo é tão nebuloso em relação a um assunto tão
elementar como a moralidade do sexo, o que é que
pode nos guiar diante da moralidade mais sutil de
todos os outros contatos pessoais, associações e ati-
vidades? Ou será que só agimos levados pelo im-
pulso? Tudo é uma escuridão.

50 FORD MADOX FORD


II.

Não sei qual a melhor maneira de expor tudo


isso — se seria melhor tentar e contar a história des-
de o começo, como se fosse mesmo uma história;
ou se é melhor contá-la a partir dessa distância no
tempo, como se chegasse até mim dos lábios de Leo-
nora ou do próprio Edward.
Assim sendo, devo imaginar a mim mesmo du-
rante uns quinze dias mais ou menos ao lado da larei-
ra de uma casa de campo, com uma alma simpática
diante de mim. E eu ficaria falando, em voz baixa,
enquanto os sons do mar à distância e lá no alto a
grande corrente negra do vento fosse polindo as estre-
las brilhantes. De vez em quando nós nos levantaría-
mos e iríamos até a porta e olharíamos para a lua e
diríamos: “Veja, está quase tão claro quanto na Pro-
vença!”. E então voltaríamos para perto do fogo com
um suspiro, porque não estávamos naquela Provença

O BOM S OLDADO 51
onde até as histórias mais tristes são alegres. Pense
só na história lamentável de Peire Vidal. Há dois anos
atrás Florence e eu viajamos de automóvel de Biarritz
para Las Tours, que fica nas Montanhas Negras. No
meio de um vale tortuoso se ergue um pináculo imen-
so e sobre o pináculo ficam quatro castelos — Las
Tours, as Torres. E o imenso mistral soprava naquele
vale que era o caminho da França até a Provença, de
tal modo que as folhas cinza-prateadas das oliveiras
pareciam cabelos voando ao vento, e as moitas de ale-
crim trepavam nas rochas de ferro para que não pu-
dessem ser arrancadas pelas raízes.
Naturalmente, fora a pobre Florence quem qui-
sera ir até Las Tours. Você tem que imaginar que,
embora a maior parte de sua personalidade brilhante
se originasse de Stamford, Connecticut, ela ainda
era uma aluna formada em Vassar9. Jamais pude
entender como pôde fazê-lo — ela, aquela pessoa
tão esquisita e tagarela. Com um olhar distante em
seus olhos — que não era, no entanto, nada românti-

9 Um famoso colégio feminino em Poughkeepsie, Nova

York. (N. do T.)

52 FORD MADOX FORD


co — o que eu quero dizer é que não dava a im-
pressão de que estivesse vendo sonhos poéticos ou
tentando perscrutar você, pois ela mal iria olhar
para você! —, levantando a mão como se quisesse
silenciar qualquer objeção — ou qualquer comen-
tário quanto ao assunto — ao que ela falasse. Ela
falaria sobre Guilherme, o Taciturno10, sobre Gus-
tavo, o Loquaz11, sobre os vestidos de Paris, sobre
como os pobres se vestiam em 1337, sobre Fantin-
Latour12, o train de luxe Paris-Lion-Mediterrâneo,
sobre o que valeria a pena fazer ao sair de Tarascon,
atravessar a ponte pênsil e ir até o Reno para dar
mais uma olhada em Beaucaire.
Nunca fomos dar uma outra olhada em Beau-
caire, naturalmente — a bela Beaucaire, com a alta
torre branca triangular, que parecia tão fina como

10 Guilherme, o Taciturno (1533-1584), príncipe de Oran-

ge, tentou libertar a Holanda do domínio espanhol. (N. do T.)


11 Ao que tudo indica, trata-se de Gustavo I, Vasa (1496-

1560), rei da Suécia de 1523 a 1560. (N. do T.)


12 Fantin-Latour (1836-1904), pintor e gravador francês.

(N. do T.)

O BOM S OLDADO 53
uma agulha e tão alta como o Flatiron13, entre a
Quinta avenida e a Broadway. Beaucaire com os
muros cinzentos no alto do pináculo em volta de
um acre e meio de iridáceas, debaixo dos altos pi-
nheiros. Que coisa bonita que é um pinheiro!...
Não, nunca mais voltamos a lugar algum. Nem
para Heildelberg, nem para Hamelin, nem para Ve-
rona, nem para Mont Majour — nem mesmo para a
própria Carcassonne. Falávamos disso, naturalmen-
te, mas acho que Florence extraía tudo que queria de
uma única visita ao lugar. Ela tinha um olhar arguto.
Infelizmente eu não sou assim, de modo que
o mundo está cheio de lugares aos quais desejo re-
tornar — cidades com um sol branco ofuscante; pi-
nheiros contra o azul do céu; cantos de frontões es-
culpidos e pintados com veados e flores escarlates
e cornijas com galos incrustrados com o pequeno
santo no alto; e palácios cinzentos e rosas, cidades
muradas a uma milha ou quase do mar, no Medi-
terrâneo, entre Leghorn e Nápoles. Não vimos ne-

13 Um arranha-céu famoso na Nova York do começo


do século XX. (N. do T.)

54 FORD MADOX FORD


nhuma delas mais do que uma vez, de modo que o
mundo para mim é como manchas de cor numa tela
imensa. Se não tivesse sido assim, talvez eu tivesse
alguma coisa a que me apegar agora.
Tudo isso é digressão ou será que não é? Mais
uma vez não sei. Você, ouvinte, está sentado à mi-
nha frente. Mas está tão calado. Você não me diz
nada. De qualquer forma, estou tentando fazer com
que você veja o tipo de vida que eu levava com Flo-
rence e como Florence era. Bem, ela era brilhante; e
dançava. Parecia dançar sobre os assoalhos dos cas-
telos, sobre os mares, sobre os salões das modistas e
sobre as plages da Riviera — como um trêmulo raio
alegre, refletido da água até o teto. E minha função
na vida era manter viva essa coisa brilhante. E era
quase tão difícil quanto tentar apanhar com a mão
aquele reflexo dançante. E a tarefa durou anos.
As tias de Florence costumavam dizer que eu
devia ser o sujeito mais preguiçoso da Filadélfia. Elas
nunca foram à Filadélfia e tinham aquela mentalida-
de da Nova Inglaterra. Veja só, a primeira coisa que
elas me disseram quando fui visitar Florence na pe-
quena e antiga casa colonial de madeira sob os elmos

O BOM S OLDADO 55
altos, de folhas delgadas — a primeira pergunta que
elas me fizeram não foi a respeito de como eu vivia,
mas sobre o que eu fazia. E eu não fazia nada. Supo-
nho que se tenha de fazer alguma coisa, mas eu não
via necessidade disso. Por que é que alguém faz coi-
sas? Eu simplesmente ficava perambulando por aí
e desejava Florence. Primeiro fui perambulando até
Florence num chá Browning14, ou algo semelhante
na rua Catorze, quando ainda era residencial. Não
sei porque eu fora até Nova York; não sei porque
fora até aquele chá Browning, não sei porque Flo-
rence deveria ir até aquele tipo de torneio de reci-
tação. Não era mesmo o tipo de lugar no qual você
podia esperar encontrar-se com alguém que se for-
mara em Vassar. Acho que Florence queria elevar
a cultura da multidão de Stuyvesant15 e fazia aqui-
lo como se fosse uma caridade. Caridade intelectual,
era isso. Ela sempre quis deixar o mundo um pou-

14 Chás durante os quais se discutia a vida e a obra do


poeta inglês Robert Browning (1812-89). (N. do T.)
15 Referência aos moradores vizinhos à praça Stuyve-
sant, em Manhattan. (N. do T.)

56 FORD MADOX FORD


co mais elevado do que o encontrara. Pobre queri-
da, eu a ouvi ensinar a Teddy Ashburnham a dife-
rença entre um Frans Hals e um Wouwerman16 e
explicar porque as estátuas pré-micênicas eram cúbi-
cas com saliências no alto. Eu me pergunto o que é
que ele ia fazer como aquilo? Talvez agradecesse.
Eu sei que sim. Para que você entenda todas
as minhas tarefas, todas as minhas obrigações con-
sistiam em fazer com que a pobre Florence conti-
nuasse ligada a tópicos como as descobertas em
Cnossos e a espiritualidade mental de Walter Pater.
Eu tinha que mantê-la ligada a essas coisas, enten-
da, ou então ela poderia morrer. Pois fui solene-
mente informado de que, se ela ficasse excitada
com alguma coisa ou se suas emoções fossem real-
mente incitadas, seu pequeno coração deixaria de
bater. Durante doze anos tive de vigiar cada pala-
vra que qualquer pessoa dissesse durante qualquer
conversa e eu tinha que mantê-la longe de tudo
aquilo que os ingleses chamam “coisas” — longe

16Wouwerman, uma família de pintores holandeses,


contemporânea de Frans Hals (1580?-1666). (N. do T.)

O BOM S OLDADO 57
de amor, pobreza, crime, religião e todo o resto.
Sim, o primeiro médico que consultamos quando
ela teve de ser retirada do navio, no Havre, asse-
gurou-me que isso tinha de ser feito. Bom Deus,
esses caras são todos idiotas monstruosos, ou há
uma franco-maçonaria entre todos eles de um can-
to a outro da terra?... É isto que me faz pensar na-
quele sujeito, Peire Vidal.
Mas, naturalmente, essa história é cultura, e
eu tinha que estimulá-la para a cultura, e ao mes-
mo tempo é tão engraçada mas ela não achou gra-
ça, é tão cheia de amor mas ela não podia pensar
no amor. Você conhece a história? Las Tours dos
Quatro Castelos tinha como castelã Blanche de tal,
que era chamada como expressão laudatória de La
Louve — A Loba. E Peire Vidal, o Trovador, fazia
sua corte a La Louve. E ela não queria ter nada com
ele. Assim, para homenageá-la — as coisas que as
pessoas fazem por amor! —, ele se vestiu com pe-
les de lobo e foi para as Montanhas Negras. E os
pastores do Monte Negro e seus cães tomaram-no
por um lobo e ele foi despedaçado e espancado com
os cajados. Depois levaram-no até Las Tours e La

58 FORD MADOX FORD


Louve não ficou nem um pouco comovida. Ele se
restabeleceu e o marido admoestou-a seriamente.
Vidal era, entenda, um grande poeta e não era ade-
quado tratar um grande poeta com indiferença.
Assim Peire Vidal declarou-se imperador de
Jerusalém ou de algum outro lugar e o marido foi
ajoelhar-se diante dele e beijar seus pés, mas La
Louve recusou-se. E Peire lançou-se ao mar num
barco com quatro companheiros para resgatar o
Santo Sepulcro. Mas se chocaram com uma rocha
em alguma parte da rota, e, com grande dificulda-
des, o marido providenciou uma expedição para
trazê-lo de volta. E Peire Vidal deitou-se na cama
da Senhora, enquanto o marido, que era um guerrei-
ro feroz, admoestou-a de novo em relação à cortesia
que se deve aos grandes poetas. Mas eu acho que
La Louve era o mais feroz dos dois. Seja como for,
é o que se sabe sobre eles. Não é uma história e tanto?
Você não faz idéia dos estranhos modos anti-
quados das tias de Florence — as senhoritas Hurl-
bird — nem de seu tio. Um homem extraordinaria-
mente simpático, esse tio John. Magro, gentil e com
um “coração fraco” que fazia sua vida ser bem pa-

O BOM S OLDADO 59
recida com o que a de Florence se tornaria depois.
Ele não residia em Stamford; seu lar era em Water-
bury17 de onde vêm os relógios. Ele tinha uma fá-
brica por lá que, de acordo com o nosso estranho
estilo americano, mudava de função quase de ano
em ano. Durante uns nove meses mais ou menos
fabricava botões de osso. Depois subitamente passa-
va a produzir botões de metal para os uniformes dos
cocheiros. Depois chegava a vez de fazer tampas
com relevo de lata para caixas de doces. O fato é
que o velho cavalheiro, coitado, com seu coração
fraco e oscilante, não queria mais fabricar fosse lá
o que fosse. Queria aposentar-se. E aposentou-se ao
completar setenta anos. Mas estava tão aborrecido
por causa dos moleques que o seguiam pela cidade
apontando para ele e gritando: “Lá vai o homem
mais preguiçoso de Waterbury!”, que resolveu dar
uma volta ao mundo. Florence e um jovem chamado
Jimmy foram com ele. Parece, pelo que Florence me
contou, que a tarefa de Jimmy junto ao senhor Hurl-

17 Waterbury, cidade industrial de Connecticut, famo-


sa pela fabricação de relógios. (N. do T.)

60 FORD MADOX FORD


bird era evitar assuntos excitantes para ele. Ele tinha
de mantê-lo afastado, por exemplo, de discussões
políticas. Pois o pobre velho era um democrata vio-
lento naquela época em que você podia viajar pelo
mundo inteiro encontrando apenas republicanos. De
qualquer modo, foram dar a volta ao mundo.
Acho que uma anedota é a melhor maneira de
lhe dar uma idéia deste velho cavalheiro. Pois tal-
vez seja importante que você saiba como é que esse
velho cavalheiro era; ele teve uma grande influên-
cia na formação da personalidade de minha pobre
esposa querida.
Antes que seguissem de São Francisco para os
Mares do Sul, o velho senhor Hurlbird disse que
deveria levar algo consigo para dar pequenos pre-
sentes às pessoas que encontrasse na viagem. E se
convenceu de que as coisas mais adequadas a esse
propósito eram as laranjas — já que a Califórnia é
a região das laranjas — e confortáveis cadeiras de
dobrar. Então comprou não sei quantas caixas de
laranjas — as grandes laranjas frescas da Califórnia
—, uma meia dúzia de cadeiras de dobrar, colocan-
do-as dentro de uma embalagem especial que ele

O BOM S OLDADO 61
sempre guardava em sua cabine. Acho que metade
da carga era de frutas.
Pois, para cada pessoa a bordo nos vários na-
vios que usaram — para cada pessoa a quem co-
nhecia apenas por cumprimentos — ele dava uma
laranja toda manhã. E elas duraram durante toda
a volta por este nosso poderoso mundo. Até mes-
mo quando chegaram ao Cabo Norte, ele, esse ve-
lho magrela coitado, viu no horizonte um farol.
“Veja só”, ele disse a si mesmo, “essas pessoas de-
vem ser muito solitárias. Vamos dar algumas laran-
jas para eles”. Então o colocaram num bote carre-
gado com as frutas e o levaram até o farol no hori-
zonte. As cadeiras de dobrar ele emprestava para a
primeira dama a bordo que aparecesse e de que
gostasse ou que parecesse cansada ou fosse inváli-
da. E assim, com seu coração protegido e, levando
sua sobrinha consigo, ele deu a volta ao mundo...
Ele não era indiscreto a respeito de seu cora-
ção. Você não ficaria sabendo que ele tinha algu-
ma coisa. Ele o legou para o laboratório médico de
Waterbury em benefício da ciência, já que o consi-
derava um tipo raro de coração. E a piada de tudo

62 FORD MADOX FORD


isso foi que, quando, com oitenta e quatro de idade,
apenas cinco dias antes da pobre Florence, ele mor-
reu de bronquite, descobriram que não havia ab-
solutamente nenhum problema com aquele órgão.
Certamente ele tinha pulsações ou disparava o su-
ficiente para levá-lo a consultar os médicos, mas
parece que era por causa de uma estranha formação
dos pulmões. Não entendo muito desses assuntos.
Herdei o dinheiro dele porque Florence mor-
reu cinco dias depois. Era melhor que isso não ti-
vesse acontecido. Foi uma grande chateação. Tive
de ir a Waterbury logo depois da morte de Florence
porque o pobre sujeito deixara uma porção de le-
gados de caridade e eu precisava designar os cu-
radores. Não gostava da idéia de que não fossem
corretamente administrados.
Sim, foi uma grande chateação. Assim que re-
solvi as coisas, recebi o extraordinário telegrama de
Ashburnham pedindo-me para voltar e ter uma con-
versa com ele. E, imediatamente depois, veio um tele-
grama de Leonora, dizendo: “Venha por favor. Você
pode nos ajudar”. Era como se ele tivesse enviado o
telegrama sem a consultar e só depois tivesse conta-

O BOM S OLDADO 63
do a ela. Na verdade, foi assim que aconteceu, ex-
ceto pelo fato de que ele contou para a moça e a moça
contou à sua esposa. No entanto, eu cheguei tarde
demais para poder ser útil. E foi aí que provei pela
primeira vez a vida inglesa. Foi espantoso. Foi esma-
gador. Jamais esquecerei o cavalo que Edward, a meu
lado, cavalgava; o jeito do animal, seu trote miúdo,
seu pêlo que parecia de seda. E a paz! E as boche-
chas vermelhas! E a bela, a bela e velha mansão.
Ficava perto de Branshaw Teleragh e chegá-
vamos lá ao descer das terras altas, claras, ermas e
varridas pelo vento de New Forest18. Eu lhe digo
que foi estonteante chegar lá vindo de Waterbury.
E veio à minha cabeça — pois Teddy Ashburnham,
lembre-se, me telegrafara “para vir e conversar”
com ele — que era inacreditável que algo essencial-
mente desastroso pudesse acontecer naquele lugar
e com aquelas pessoas. Eu lhe digo que era o pró-
prio espírito da paz. Leonora, bela e sorridente, com
seus cachos de cabelo dourado, estava na soleira,
com um mordomo, um lacaio de libré, e uma cria-

18 Uma grande área florestal em Hampshire. (N. do T.)

64 FORD MADOX FORD


da ou algo assim atrás dela. E ela disse: “Estou tão
contente que você tenha vindo”, como se eu tives-
se vindo para almoçar de uma cidade a dez milhas
de distância, em vez de ter atravessado meio mun-
do para atender ao chamado de dois telegramas
urgentes.
A garota tinha saído com os cães de caça, eu
acho.
E aquele pobre diabo a meu lado estava ator-
mentado. Num tormento tão absoluto, desespe-
rado, mudo, que imaginá-lo ultrapassa a mente
humana.

O BOM S OLDADO 65
III.

Foi um verão muito quente, aquele de agosto


de 1904; Florence já estava tomando banhos há um
mês. Não sei como se sente um paciente nesses lu-
gares. Nunca estive como paciente em lugar ne-
nhum. Atrevo-me a dizer que os pacientes têm um
sentimento de estar em casa e de encontrar uma
espécie de abrigo nesses lugares. Eles parecem gos-
tar dos empregados dos balneários, com seus ros-
tos alegres, seu ar de autoridade, sua roupa de li-
nho branco. Mas, quanto a mim mesmo, estar em
Nauheim dava-me uma sensação — como posso
dizer? — uma sensação quase de nudez — a nudez
que se sente quando se está na praia ou em qual-
quer grande espaço aberto. Eu não tinha ligações,
nem compromissos. Em nosso lar é como se peque-
nas e inatas simpatias nos levasse até cadeiras pre-
feridas que parecem nos envolver num abraço, ou

66 FORD MADOX FORD


nos levasse a certas ruas que parecem amistosas
enquanto outras parecem hostis. E, acredite-me,
essa sensação é uma parte muito importante da
vida. Eu a conheço bem, eu que fui por muito tem-
po um viajante vivendo em balneários públicos. E
nos tornamos muitos polidos. Deus sabe que nun-
ca fui um homem desleixado. Mas a sensação que
eu tinha quando, enquanto a pobre Florence toma-
va seu banho matinal, ficava nos degraus cuida-
dosamente limpos dos Englischer Hof19, olhando
para as árvores cuidadosamente arrumadas sobre
o cascalho cuidadosamente arrumado enquan-
to pessoas cuidadosamente arrumadas passeavam
com uma alegria cuidadosamente calculada, numa
hora cuidadosamente calculada, entre as altas ár-
vores dos jardins públicos, encaminhando-se para
o lado direito, para os chalés de pedra avermelhada
dos banhos — ou será que eram chalés brancos de
madeira? Dou-lhe a minha palavra que esqueci, eu
que vivia tão freqüentemente ali. Isso lhe dá a me-
dida de como eu me sentia na paisagem. Podia en-

19 Em alemão: Pátio dos Ingleses. (N. do T.)

O BOM S OLDADO 67
contrar de olhos vendados o caminho até as salas
de fornos, até as salas de ducha, até a fonte no cen-
tro do quadrado onde jorra a água enferrujada.
Sim, eu podia encontrar meu caminho de olhos
vendados. Conheço as distâncias exatas. Do Ho-
tel Regina você dá cento e oitenta e sete passos,
depois, dobrando à esquerda, mais quatrocentos e
vinte levam diretamente até a fonte. Do Englischer
Hof, a contar da calçada, eram noventa e sete pas-
sos e de novo os mesmos quatrocentos e vinte, mas
dessa vez dobrando à esquerda.
E agora veja que, não tendo nada para fazer
no mundo — nada mesmo! —, eu adquiri o hábito
de contar meus passos. Caminhava com Florence
até os banhos. E, naturalmente, ela me entretinha
com sua conversa. Como eu disse, era maravilhosa
a maneira como ela conduzia uma conversa. Ela
andava com leveza e seu cabelo era muito bonito;
ela se vestia de maneira elegante e muito cara. Na-
turalmente, tinha seu próprio dinheiro, mas eu não
me importaria com isso. E no entanto saiba que não
consigo me lembrar de nenhum de seus vestidos. Ou
só me lembro de um deles, um muito simples de seda

68 FORD MADOX FORD


azul estampada — com padrões chineses —, de saia
bem rodada e largo nos ombros. E seu cabelo era
da cor do cobre; os saltos de seus sapatos altos de-
mais, de maneira que andava na ponta dos pés. E
quando chegava à porta do balneário, que se abria
para recebê-la, ela se voltava e olhava para mim com
um leve sorriso faceiro, então seu rosto parecia aca-
riciar seu ombro.
Acho que me lembro que, com esse vestido, ela
usava um chapéu Leghorn imensamente largo —
como o Chapeau de Paille de Rubens, só que mui-
to branco. O chapéu ficava atado a um cachecol
levemente amarrado do mesmo tecido do vestido.
Ela sabia como valorizar seus olhos azuis. Em vol-
ta do pescoço, um colar de pérolas rosas. E sua
compleição tinha uma clareza perfeita, uma suavi-
dade perfeita...
Sim, é exatamente assim que me lembro dela,
com esse vestido, com esse chapéu, olhando por
cima do ombro para mim de maneira que os olhos
cintilavam muito azuis — o azul escuro da ágata...
E, diabos! Para quem é que ela fazia isso? Para
a acompanhante do banho? Para os transeuntes?

O BOM S OLDADO 69
Não sei. Seja como for, não podia ser para mim,
pois nunca, durante toda a sua vida, nunca, em
ocasião alguma ou em qualquer outro lugar, ela
sorriu para mim, provocante, convidativamente.
Ah, ela era um enigma; mas o que fazer, todas as
mulheres são enigmas. E me ocorre que há algum
tempo atrás comecei uma frase que ainda não ter-
minei... Era sobre a sensação que eu tinha quando
ficava nos degraus do meu hotel toda manhã, para
levar Florence de volta depois do banho. Elegan-
te, bem penteado, consciente de que eu parecia ain-
da mais baixo entre os ingleses altos, os america-
nos esbeltos, os alemães gorduchos e os obesos ju-
deus russos, eu ficava ali, batendo com um cigar-
ro na minha cigarreira, observando por instantes
o mundo à luz do sol. Mas chegaria o dia em que
nunca mais faria isso sozinho. Você pode imaginar,
portanto, o que a chegada dos Ashburnham signi-
ficou para mim.
Já esqueci a aparência de muitas coisas, mas
jamais esquecerei o aspecto da sala de jantar do
Hotel Excelsior naquela noite — e depois, em mui-
tas outras noites. Castelos inteiros desapareceram

70 FORD MADOX FORD


de minha memória, cidades inteiras que nunca mais
visitei de novo, mas aquela sala branca, decorada
com frutas e flores de papier-maché; as janelas al-
tas; as muitas mesas; o biombo negro, em volta da
porta, com três garças douradas voando em cada
painel; a palmeira no centro da sala; o rumor dos
pés dos garçons; a fria elegância cara; a aparência
dos que vinham jantar quando entravam a cada
noite — seu ar de severidade, como se tivessem de
suportar uma refeição prescrita pelas autoridades
da Kur e seu ar de sobriedade, como se não deves-
sem de modo algum saborear suas refeições — des-
tas coisas eu não me esquecerei tão facilmente. En-
tão, uma noite, ao crepúsculo, eu vi Edward Ash-
burnham contornando o biombo até a sala. O maî-
tre, um homem com um rosto cinzento — em que
recantos ou esquinas subterrâneas as pessoas cul-
tivam essas compleições absolutamente cinzentas?
—, com a tímida proteção dessas criaturas, foi até
ele e estendeu-lhe um ouvido cinzento para ser sus-
surrado. Em geral esta era uma provação desagra-
dável para os recém-chegados, mas Edward Ash-
burnham suportou-a como um inglês e cavalheiro.

O BOM S OLDADO 71
Eu podia ver seus lábios formando uma palavra de
três sílabas — lembre-se de que eu não tinha nada
para fazer no mundo a não ser observar minúcias
— e imediatamente soube que ele devia ser Edward
Ashburnham, o capitão do Batalhão Catorze dos
Hussardos, da mansão Branshaw, em Branshaw
Teleragh. Eu sabia disso porque toda noite antes
do jantar, enquanto esperava no saguão, costu-
mava, por cortesia de monsieur Schontz, o pro-
prietário, inspecionar os pequenos relatórios poli-
ciais que cada hóspede devia assinar para ter o seu
quarto.
O mâitre conduziu-o imediatamente até uma
mesa vaga, a umas três mesas da minha — a mesa
que os Grenfalls, de Falls River, New Jersey, tinham
deixado vaga. Ocorreu-me que não era uma boa
mesa para recém-chegados, já que a luz do sol, em-
bora já estivesse baixa, batia diretamente nela, e a
mesma idéia parece ter ocorrido no mesmo momen-
to ao capitão Ashburnham. No entanto seu rosto,
naquele maravilhoso estilo inglês, não demonstrou
nada. Nada. Não havia nele nem alegria nem de-
sespero; nem esperança nem medo; nem tédio nem

72 FORD MADOX FORD


satisfação. Ele não parecia notar viv’alma na sala
cheia; poderia estar andando numa selva. Eu jamais
vira uma expressão tão perfeita antes e nunca mais
irei ver. Era insolência e não era insolência; era mo-
déstia e não era. Seu cabelo era bonito, extraordi-
nariamente arrumado numa onda que vinha da têm-
pora esquerda até a direita; seu rosto de um verme-
lho claro, perfeitamente uniforme em seu matiz até
a própria raiz do cabelo; seus bigodes dourados
eram tão firmes como uma escova de dentes e até
acredito que a casaca de seu smoking preto estava
aumentada um pouco acima das ombreiras para lhe
dar o menor ar possível de curvatura. Só ele mes-
mo para fazer uma coisa dessas; era o tipo de coisa
em que pensava. Gamarras, freios para cavalos Chif-
fney20, botas; onde se podia tomar a melhor sopa,
o melhor brandy, o nome do sujeito que cavalgou
um pangaré pelos rochedos de Khyber21 abaixo; o

20 Freios de cavalo inventados pelo jóquei Samuel Chiff-

ney (1753?-1807). (N. do T.)


21 O passo de Khyber, que une o Paquistão e o Afe-
ganistão, foi, durante séculos, o principal caminho para a Ín-
dia a partir do Oeste. (N. do T.)

O BOM S OLDADO 73
poder de disseminação do disparo do número três
antes de uma descarga da pólvora do número qua-
tro... por Deus, eu quase não o ouvia falar de ou-
tra coisa. Durante todos os anos em que o conheci,
não ouvi-o falar de outra coisa a não ser desses
assuntos. Oh, sim, uma vez ele me disse que eu podia
comprar meu tom especial de gravatas azuis por um
preço mais barato em um firma em Burlington Ar-
cade do que as de meu país, em Nova York. E des-
de então passei a comprar minhas gravatas nessa
firma. De outro modo, não me lembraria mais do
nome Burlington Arcade. Fico a imaginar como se-
rá. Eu nunca a vi. Imagino duas enormes filas de
colunas, como as do Fórum em Roma, com Edward
Ashburnham caminhando entre elas. Mas provavel-
mente não é assim — nem de longe. Uma vez ele
me aconselhou a comprar ações do Caledonian De-
ferred, já que deviam subir. Eu as comprei e elas
subiram. Mas como ele conseguiu essa informação,
não tenho a menor idéia. Parecia ter caído do céu
azul.
E isso era absolutamente tudo que eu sabia
dele até um mês atrás — isso e a profusão de suas

74 FORD MADOX FORD


maletas, todas de pele de porco e marcadas com
suas iniciais, E. F. A. Havia maletas de armas e
maletas de colarinhos, maletas de camisas e male-
tas de cartas e outras maletas, cada uma delas con-
tendo quatro garrafas de remédio; e maletas de
chapéus e maletas de capacetes. Deve ter sido ne-
cessário uma vara inteira de porcos gadarenos22
para confeccionar seu equipamento. E nas vezes em
que entrei em seu quarto, sempre o vi de pé, com
seu casaco e as linhas imensamente compridas de
suas calças perfeitamente elegantes da cintura ao
calcanhar. Ele tinha sempre um ar ligeiramente re-
flexivo e estava sempre abrindo um tipo de male-
ta e fechando outro.
Deus misericordioso, o que é que todos viam
nele? pois juro que aí estava tudo quanto havia nele,
dentro e fora; embora dissessem que era um bom
soldado. No entanto, Leonora adorava-o com uma

22 Referência ao episódio da expulsão dos demônios, na

região dos gadarenos, no evangelho de São Mateus, que en-


traram nos corpos dos porcos e se precipitaram ao mar do alto
de um despenhadeiro. (N. do T.)

O BOM S OLDADO 75
paixão que era uma espécie de angústia e odiava-o
com uma angústia que era tão amarga como o mar.
Como é que ele podia despertar algo como um sen-
timento em alguém?
O que será que ele falava com elas — quando
estavam a sós? Ah, bem, de repente, como num jorro
de inspiração, eu sei. Pois todos os bons soldados
são sentimentais — todos os bons soldados desse
tipo. Sua profissão, em primeiro lugar, está cheia
de grandes palavras, coragem, lealdade, honra, cons-
tância. E dei uma impressão errada de Edward Ash-
burnham se fiz com que você pensasse que literal-
mente nunca ao longo de nove anos de intimidade
ele tenha discutido o que nós poderíamos chamar
de “coisas mais sérias”. Mesmo antes de sua reve-
lação final comigo, às vezes, já bem tarde da noite,
digamos, ele deixava escapar algo que dava uma
mostra de sua visão sentimental do cosmos. Ele di-
ria o quanto a companhia de boas mulheres podia
ter importância para redimir alguém, diria que a
constância era a maior das virtudes. Diria isso de
maneira muito rígida, naturalmente, como se a de-
claração não comportasse nenhuma dúvida.

76 FORD MADOX FORD


Constância! Não é um pensamento estranho?
E no entanto, devo acrescentar que o pobre caro
Edward era um grande leitor — passava horas imer-
so em romances do tipo sentimental — de roman-
ces em que datilógrafas casavam-se com marque-
ses e as governantas com condes. Em seus livros,
como regra, o caminho do verdadeiro amor corria
tão suave quanto o mel. E gostava de poesia, de um
certo tipo — e podia até mesmo ler uma história
de amor perfeitamente triste. Eu vi seus olhos se
encherem de lágrimas ao ler uma despedida deses-
perada. E amava, com um ardor sentimental, todas
as crianças, os filhotes, e os fracos em geral...
Assim, como você vê, ele tinha muito o que
sussurrar para uma mulher — com isto e seu sóli-
do senso comum sobre gamarras e suas experiên-
cias — também sentimentais — como magistrado
de condado; e com sua crença intensa e otimista de
que a mulher que estava amando naquele momen-
to era aquela a quem estava destinado, finalmente,
a ser eternamente constante... Bem, imagino que ele
era capaz de uma boa conversa quando não havia
nenhum homem por perto para fazê-lo sentir-se tí-

O BOM S OLDADO 77
mido. E fiquei inteiramente surpreendido, durante
sua revelação comigo — já bem no fim das coisas,
quando a pobre moça estava a caminho daquela
Brindisi fatal e ele estava tentando persuadir a si
mesmo e a mim de que jamais ligara para ela —,
fiquei inteiramente surpreendido ao observar como
sua expressões eram literárias e corretas. Ele fala-
va como um bom livro — um livro sem qualquer
sentimentalismo barato. Você entende, eu suponho,
que ele não me via como um homem. Eu tinha de
ser visto como uma mulher ou um procurador. De
qualquer modo, algo explodiu nele naquela noite
horrível. E então na manhã seguinte ele me levou
até os assizes23 e eu vi como, perfeitamente calmo
e à maneira de um homem prático, esforçou-se para
assegurar um veredito de não-culpada para uma
pobre moça, filha de um de seus arrendatários, que
fora acusada de ter matado a própria filha. Gastou
duzentas libras para defendê-la... Bem, este era Ed-
ward Ashburnham.

23Sessões da Alta Corte de Justiça, realizadas periodi-


camente nos condados ingleses. (N. do T.)

78 FORD MADOX FORD


Esqueci-me de seus olhos. Eram tão azuis co-
mo os lados de um certo tipo de caixa de fósforos.
Quando você olhava para eles atentamente, via que
eram perfeitamente honestos, perfeitamente dire-
tos, perfeitamente, perfeitamente estúpidos. Mas o
tom rosado de sua compleição, harmonizando-se
com o tom rosado de seus cílios, davam-lhe uma
expressão curiosa, sinistra — como um mosaico
azul desenhado numa porcelana cor-de-rosa. E esse
sujeito, ao entrar numa sala, atraía o olhar de to-
das as mulheres que estavam ali, com tanta habili-
dade como um prestidigitador embolsa bolas de
bilhar. Era espantoso. Sabe, estou falando daque-
le tipo que no palco joga dezesseis bolas de bilhar
para o alto todas de uma vez e elas caem todas nos
seus próprios bolsos, bolsos que ficam nos ombros,
nos calcanhares, na parte interna das mangas; e ele
fica parado e não faz nada. Bem, era assim que
acontecia. Ele tinha uma voz áspera, rouca.
E, ali estava ele, ao lado da mesa. Eu o olha-
va, de costas para o biombo. De repente, vi duas
expressões nítidas lampejarem nele através de seus
olhos imóveis... Com mil demônios, como é que eles

O BOM S OLDADO 79
faziam aquilo, aqueles olhos inabaláveis com o olhar
direto? Pois os olhos não se mexeram, fitando o
biombo por cima de meus ombros. E o olhar era
perfeitamente neutro, direto e perfeitamente imó-
vel. Suponho que as pálpebras devem ter se arquea-
do um pouco e talvez os lábios tenham se mexido
um pouco, como se estivessem dizendo: “Aqui está
você, meu caro”. De qualquer modo, a expressão
era de orgulho, de satisfação, de domínio. Eu o vi
uma vez, tempos depois, olhar por um instante os
campos ensolarados de Branshaw e exclamar: “Tu-
do isto aqui é terra minha!”.
E então, de novo, o olhar se tornou talvez mais
direto, mais duro se possível — mais ousado tam-
bém. Era um olhar de avaliação: um olhar desafian-
te. Uma vez quando estávamos em Wiesbaden e o
assistíamos a jogar uma partida de pólo contra a
equipe do Hussardos de Bonn, vi o mesmo olhar
despontar em seus olhos, a examinar as possibili-
dades, a inspecionar o terreno. O capitão alemão,
barão Idigon von Lelöffel, estava bem perto de sua
meta, vindo com a bola a meio galope com aquele
jeito manhoso dos alemães. O resto dos jogadores

80 FORD MADOX FORD


estava longe. Era uma jogada arriscada. Ashburn-
ham estava bem perto dos trilhos, a menos de cin-
co jardas de nós, e eu o ouvi dizer a si mesmo: “Dá
para fazer!”. E ele o fez. Por Deus, ele cavalgou
aquele pônei sobre suas quatro patas esticadas, co-
mo um gato pulando de um teto...
Bem, foi exatamente esse olhar que observei
em seus olhos. “Dá”, parece até que eu o ouvi mur-
murar a si mesmo, “dá para fazer”.
Olhei por cima de meu ombro e vi, alta, sorri-
dente, radiosa e flutuante — Leonora. E pequena,
bonita, e tão radiosa como o rastro do sol ao lon-
go do mar — minha esposa.
O pobre coitado! Pensar que naquele momento
ele estava numa enrascada tremenda, e lá estava ele
dizendo: “Dá para fazer!”. Era como um sujeito no
meio da erupção de um vulcão, dizendo que podia
conseguir atravessar aquele tumulto e colocar fogo
num monte de feno. Loucura? Predestinação? Dia-
bos, quem pode saber?
A senhora Ashburnham exibia naquele mo-
mento uma alegria como jamais a vi mostrar desde
então. Há certos tipo de ingleses — os mais simpá-

O BOM S OLDADO 81
ticos que já passaram por muitos spas, que pare-
cem fazer questão de ser mais animados do que o
normal quando são apresentados a meus compatrio-
tas. Observei isso com freqüência. Claro, antes de
tudo eles têm de aceitar os americanos. Mas, isso
posto, parecem estar dizendo a si mesmos: “Olá,
estas mulheres são tão radiosas. Não vamos ficar
ofuscados”. E durante certo tempo não ficam mes-
mo. Mas isso logo passa. Foi assim com Leonora
— pelo menos até que ela me viu. Ela começou, foi
assim que Leonora fez — e talvez tenha sido isso
que me deu a idéia de um toque de insolência em
sua personalidade, pois nunca mais fez qualquer
coisa como aquela — ela começou dizendo em voz
alta e de uma certa distância:
— Não fique aí nessa mesa mal-ventilada,
Teddy. Venha e sente-se ao lado dessas pessoas
simpáticas!
Dizer aquilo era algo extraordinário. Extraor-
dinário mesmo. Em toda minha vida jamais conse-
gui referir-me a pessoas totalmente estranhas como
pessoas simpáticas. Mas, naturalmente, ela estava
calculando que eu de algum modo — e mais nin-

82 FORD MADOX FORD


guém na sala, pois ela se dera ao trabalho de ler a
lista de convidados — valia mais do que os outros
bull terriers24 limpos. Ela se sentou à mesa vazia,
ao lado da nossa — que estava reservada para os
Guggenheimer. E ficou absolutamente surda ante
as objeções do maître com sua cara de presunto cin-
zento. Ele sabia que os Guggenheimer de Chicago,
depois de terem passado um mês ali e lhe causarem
muito incômodo, iriam lhe dar duzentos e cinqüenta
dólares e se queixariam do sistema de gorjetas. E
ele sabia que Teddy Ashburnham e sua esposa não
lhe dariam nenhum trabalho, com exceção daqui-
lo que os sorrisos de Leonora pudessem causar em
seu peito aparentemente inexpugnável — embora
nunca se possa dizer nem mesmo o que se passa atrás
de uma couraça nada invulnerável! E que toda se-
mana Edward Ashburnham lhe daria uma moeda
sólida, estável, dourada de um soberano inglês25.
No entanto, esse sujeito estava determinado a con-

24 Cruzamento de bull-dog com terrier. (N. do T.)


25 Moeda de vinte xelins. (N. do T.)

O BOM S OLDADO 83
servar a mesa para os Guggenheimer de Chicago.
Por fim Florence disse:
— Por que não comemos todos juntos? — esta
é uma horrível expressão nova-iorquina. — Estou
certa de que somos pessoas pacíficas e há quatro
lugares em nossas mesas. É o numero certo.
Então irrompeu, por assim dizer, um murmú-
rio de assentimento do capitão e percebi perfeita-
mente uma leve hesitação — um rápido e nítido
movimento na senhora Ashburnham, como se seu
cavalo estivesse estancado. Mas logo ela o impulsio-
nou, levantando-se da cadeira onde estava e sentan-
do-se bem à minha frente, num movimento só, por
assim dizer.
Nunca achei que Leonora ficasse bem em ves-
tidos de noite. Eles pareciam bem cortados demais,
sem qualquer franzido. Ela sempre se vestia de pre-
to e seus ombros também eram clássicos. Ela pa-
recia transbordar de seu corpete como um busto de
mármore branco de um vaso Wedgwood preto26.
Não sei.

26 Vaso feito com um tipo de porcelana inglesa, os-

84 FORD MADOX FORD


Sempre gostei de Leonora e, hoje, consagra-
ria alegremente minha vida, o que restou dela, a seu
serviço. Mas estou certo que nunca tive sequer a
mais leve marca do que se chama instinto sexual
em relação a ela. E suponho — ou melhor, estou
certo — que ela nunca o teve em relação a mim.
No que me diz respeito, acho que foram aqueles
ombros que causaram isso. Era como se eu sentis-
se, ao olhar para eles, que se alguma vez os tocas-
se com meus lábios eles estariam um pouco frios
— não gelados, não sem um toque de calor huma-
no, mas, como se diz a respeito dos banhos, ape-
nas com o gelo quebrado... Era como se eu sentis-
se um toque de frio em meus lábios quando olha-
va para ela...
Não, Leonora sempre me pareceu em sua me-
lhor forma quando usava um vestido azul feito sob
medida. Então seu magnífico cabelo não ficava amor-
tecido por seus ombros brancos. Certas linhas fe-
mininas guiam os nossos olhos para seus pescoços,

tentando figuras sobre um fundo azul, verde ou preto. (N.


do T.).

O BOM S OLDADO 85
sobrancelhas, lábios, seios. Mas Leonora parecia
conduzir o olhar sempre para seu pulso. E seu pul-
so ficava melhor com uma luva preta ou marrom e
havia sempre uma argola dourada com uma corren-
te em que ficava presa uma pequena chave doura-
da para a caixa de documentos. Talvez ela a usasse
para trancar seu coração e sentimentos.
Seja como for, ela se sentou à minha frente e
aí, pela primeira vez, prestou alguma atenção em
minha existência. De repente, de modo deliberado,
fixou-me demoradamente. Seus olhos eram azuis e
escuros; suas pálpebras eram tão arqueadas que
acentuavam a redondez da íris. Foi um olhar ad-
mirável, tocante, como se por um instante um fa-
rol tivesse olhado para mim. Era como se eu perce-
besse as perguntas rápidas procurando umas às ou-
tras através do cérebro que ficava por trás delas. Era
como se eu ouvisse o cérebro perguntar e os olhos
responderem com toda a simplicidade de uma mu-
lher que era perita em avaliar as qualidades de um
cavalo — como de fato ela era. “Vale a pena: tem
bastante espaço para sua aveia atrás da cilha. Mas
quanto ao lombo não”, e assim por diante. Da mes-

86 FORD MADOX FORD


ma maneira seus olhos perguntavam: “Pode-se con-
fiar neste homem em questões de dinheiro; será que
pode desempenhar o papel de amante; será que per-
mite que esta mulher lhe cause problemas? Mas,
acima de tudo, será que vai dar com a língua nos
dentes sobre minhas histórias?”.
E, de repente, naquelas órbitas azuis, frias, le-
vemente desafiadoras, quase defensivas, surgiu um
calor, uma ternura, um reconhecimento amistoso...
Oh, foi muito encantador e muito comovente — e
bastante mortificante. Era o olhar de uma mãe para
o filho, de uma irmã para o irmão. Implicava con-
fiança; implicava a cessação de qualquer necessidade
de barreiras. Por Deus, ela me olhou como se eu
fosse um inválido — como qualquer mulher pode
olhar para um pobre sujeito numa cadeira de ro-
das. E, sim, desse dia em diante ela sempre cuidou
de mim, e não de Florence, como se eu fosse o in-
válido. Ah, sim, ela vinha atrás de mim com uma
manta nos dias mais frios. Suponho, no entanto, que
não era uma resposta favorável. Então Florence dis-
se: “E agora a mesa está completa”. De novo Ed-
ward Ashburnham gorgolejou levemente em seu

O BOM S OLDADO 87
peito; mas Leonora estremeceu um pouco, como se
um ganso caminhasse sobre seu túmulo. E eu esta-
va passando para ela a cesta de pães. Avanti!

88 FORD MADOX FORD


IV.

Assim começaram aqueles nove anos de tran-


qüilidade ininterrupta. Caracterizaram-se por uma
carência extraordinária de qualquer comunicati-
vidade por parte dos Ashburnham, à qual nós res-
pondemos omitindo da mesma maneira extraordi-
nária, e quase tão completamente quanto eles, a nota
pessoal. De fato, você pode considerar que nosso
relacionamento podia ser caracterizado como uma
atmosfera em que tudo já estava estabelecido. O
pressuposto era que todos nós éramos “pessoas de
bem”. Já estava estabelecido que todos nós gostá-
vamos de bife ao ponto mas sem ficar malpassado;
que ambos os homens preferiam um bom licor de
brandy depois do almoço; que ambas as mulheres
bebiam um vinho do Reno bem leve com água Fa-
chingen — esse tipo de coisa. Também ficou esta-
belecido que estávamos suficientemente bem de vida

O BOM S OLDADO 89
para que pudéssemos ter de maneira razoável to-
dos os divertimentos que se ajustassem à nossa tem-
porada — que podíamos pegar carros e carruagens
de dia; que podíamos oferecer jantares uns aos ou-
tros e a nossos amigos e podíamos ser indulgentes,
se desejássemos, quanto à economia. Assim, Flo-
rence tinha o hábito de receber o Daily Telegraph
diariamente de Londres. Ela sempre foi uma anglo-
maníaca; a edição parisiense do New York Herald
me bastava. Mas quando descobrimos que o exem-
plar do jornal londrino dos Ashburnham vinha da
Inglaterra, Leonora e Florence decidiram que uma
delas suspenderia uma das assinaturas num ano e
a outra no seguinte. Também era costume do grão-
duque Schwerin de Nassau, que todos os anos vi-
nha aos banhos, jantar com cada uma das dezoito
famílias de hóspede habituais do Kur. Em troca ele
oferecia um jantar para todas as dezoito famílias
reunidas. E já que esses jantares eram bastante ca-
ros (você tinha que chamar o grão-duque e uma
grande parte de sua comitiva e os membros do cor-
po diplomático que estivessem por ali), Florence e
Leonora, botando suas cabeças para funcionar jun-

90 FORD MADOX FORD


tas, não viam porque não deveríamos oferecer jun-
tos o jantar ao grão-duque. E assim foi feito. Não
creio que Sua Sereníssima se importasse com essa
economia ou sequer reparasse nela. Seja como for,
nosso jantar em conjunto com sua Alteza Real as-
sumiu gradualmente o caráter de uma função anual.
Na verdade, foi crescendo até que se tornou uma
espécie de função de encerramento para a tempo-
rada, pelo menos no que nos dizia respeito.
Não quero dizer com isso de maneira nenhu-
ma que fôssemos aquele tipo de pessoas que aspi-
ram a se misturar “com a realeza”. Não, não tínha-
mos nenhuma pretensão; éramos apenas “pessoas
de bem”. Mas o grão-duque era um nobre afável,
agradável, como o falecido rei Eduardo VII, e era
agradável ouvi-lo falar sobre as corridas e, ocasio-
nalmente, como um bom papo, sobre seu tio, o im-
perador; ou vê-lo interromper seu passeio por al-
guns instantes para nos perguntar a respeito do pro-
gresso de nossas curas ou se interessar benevolamen-
te pela quantidade de dinheiro que colocamos no
cavalo de caça de Lelöffel, nas apostas para a cor-
rida de pesos médios em Frankfurt.

O BOM S OLDADO 91
Mas eu lhe dou minha palavra, não sei o que
fazíamos com nosso tempo. O que é que cada um faz
com seu tempo? Como é possível ter passado nove
anos e não se ter seja lá o que for para mostrar? Nada
mesmo, entenda. Nada a não ser um tinteiro de osso,
esculpido para se assemelhar a uma peça de xadrez
com um buraco no alto através do qual você pode
espiar quatro panoramas de Nauheim. E, no que diz
respeito à experiência, no que diz respeito ao conhe-
cimento de nossos semelhantes — nada também. Eu
lhe dou minha palavra, não poderia dizer ao certo
se a mulher que me vendeu as violetas tão caras, no
fim da estrada que leva até a estação, estava me en-
ganando ou não; não posso dizer se o porteiro que
carregou nossas bagagens até a estação em Leghorn
era um ladrão ou não quando disse que a tarifa nor-
mal era uma lira por volume. Os exemplos de hones-
tidade com que nos deparamos neste mundo são tão
espantosos quanto os exemplos de desonestidade.
Depois de lidar quarenta e cinco anos com nossa pró-
pria espécie, deveríamos ter adquirido o hábito de
sermos capazes de saber alguma coisa sobre nossos
semelhantes. Mas ninguém sabe.

92 FORD MADOX FORD


Acho que o hábito civilizado moderno — o
hábito inglês moderno de tomar todos como cor-
retos — é em grande parte responsável por isso. Já
me ocupei desse assunto por tempo suficiente para
saber que coisa estranha e sutil que é; saber que sua
própria aptidão, valha o que lhe valer, nunca lhe
abandonará.
Veja, não estou dizendo que esse não seja o
tipo mais desejável de vida no mundo; que não seja
um alto padrão quase nada razoável. Pois é real-
mente nauseante, quando você detesta, ter de co-
mer todo dia várias fatias finas, tépidas, de pink
indian rubber27, e é desagradável ter de beber bran-
dy quando você prefere ser estimulado por Kum-
mel28 quente e doce. E é irritante ter de tomar um
banho frio pela manhã quando tudo que você quer
é um banho quente à noite. E perturba um pouco
a fé de seus pais que está tão interiorizada em você
tomar como estabelecido que você é um episco-
27 Uma goma extraída do leite de várias plantas tropi-
cais (por exemplo, a figueira) e preparada como folha depois
de seca. (N. do T.)
28 Licor alemão aromatizado com cominho. (N. do T.)

O BOM S OLDADO 93
palista quando de fato você é um antiquado quaker
da Filadélfia.
Mas essas coisas têm de ser feitas; é o galo que
essa sociedade como um todo deve a Esculápio.
E a coisa estranha, esquisita, é que toda essa
coleção de regras se aplica a qualquer um — a to-
dos aqueles, a qualquer um que você encontra em
hotéis, estações de trens e, num grau menor, talvez,
nos navios. Você encontra um homem ou uma mu-
lher, e a partir dos mínimos e íntimos sons, do me-
nor dos movimentos, você já sabe se está lidando
com gente de bem ou não. Você sabe, isto deve ser
dito, se eles irão cumprir o programa integral des-
de o bife ao ponto até o anglicanismo. Não impor-
ta se são altos ou baixos; se a voz guincha como a
de uma marionete ou estronda como a de um tou-
ro; não importa se são alemães, austríacos, france-
ses, espanhóis, ou até mesmo brasileiros — serão
alemães ou brasileiros que tomam banho frio todas
as manhãs e que se movimentam, falando a grosso
modo, em círculos diplomáticos.
Mas o inconveniente — bem, dane-se, vou di-
zê-lo —, o terrível incômodo da coisa toda é que,

94 FORD MADOX FORD


apesar de tudo estar dado como estabelecido, você
nunca se aprofunda sequer uma polegada além das
coisas que cataloguei.
Posso dar-lhe um exemplo bastante extraor-
dinário quanto a isso. Não consigo me lembrar se
foi no nosso primeiro ano — o primeiro que passa-
mos, os quatro, em Nahuheim, porque, naturalmen-
te, era o quarto ano para mim e para Florence —
mas deve ter sido no primeiro ou no segundo ano.
E isso dá logo a medida do caráter extraordinário
de nossas discussões e da rapidez com que a inti-
midade cresceu entre nós. Por um lado, parecia que
tínhamos iniciado a expedição com tanta naturali-
dade e com tão pouca preparação, como se já ti-
véssemos feito muitas dessas excursões antes; e nos-
sa intimidade parecia tão profunda...
No entanto, o lugar para onde fomos era ob-
viamente um daqueles aos quais pelo menos Flo-
rence gostaria de nos ter levado logo, de maneira
que você poderia ser levado a pensar que podería-
mos ter ido até lá no começo de nossa intimidade.
Florence era especialmente bem dotada como guia
para expedições arqueológicas e não havia nada de

O BOM S OLDADO 95
que ela gostasse tanto quanto levar as pessoas para
visitar ruínas e lhes mostrar a janela da qual fulano
assistira o assassinato de um outro fulano. Ela só
fez isso uma vez; mas o fez de maneira magnífica.
Ela podia localizar, apenas com a ajuda do Baede-
ker, um velho monumento com tanta facilidade co-
mo se estivesse em qualquer cidade americana onde
os quarteirões são todos quadrados e as ruas nu-
meradas, de maneira que você pode ir tranqüilamen-
te da Vinte e Quatro até a Trinta.
Acontece que a cinqüenta minutos de Nau-
heim, num bom trem, fica a antiga cidade de M29,
no alto de um grande pico de basalto, provido de
uma estrada tripla que se estira até a encosta como
uma estola. E lá no alto há um castelo — não um
simples castelo como o de Windsor, mas um caste-
lo com arestas de ardósia e altos cimos com ca-
taventos dourados reluzindo ousadamente —, o cas-
telo de Santa Isabel da Hungria. Tem a desvanta-

29 Trata-se de Marburgo, antiga cidade universitária


alemã que foi palco, em 1529, de uma consulta teológica en-
tre Lutero e Zwinglio. (N. do T.)

96 FORD MADOX FORD


gem de ser na Prússia; e é sempre desagradável ir
ao campo; mas é muito antigo e há muitas igrejas
com torres duplas e se ergue como uma pirâmide
no verde vale do Lahn30. Não acho que os Ash-
burnham quisessem ir até lá especialmente, nem eu
muito menos. Mas, você entende, não houve qual-
quer objeção. Era parte do tratamento fazer uma
excursão três ou quatro vezes por semana. De ma-
neira que estávamos unanimemente agradecidos a
Florence por ter arranjado uma motivação. Flo-
rence, decerto, tinha seu próprio motivo. Na épo-
ca dedicava-se a educar o capitão Ashburnham —
oh, naturalmente, apenas pelo bon motif! Ela cos-
tumava dizer a Leonora: “Eu simplesmente não con-
sigo entender como você pode viver com ele a seu
lado e deixá-lo ser tão ignorante!”. Leonora sem-
pre me impressionou por ser admiravelmente cul-
ta. Seja como for, ela já sabia de antemão tudo o
que Florence tinha para lhe dizer. Talvez ela o ti-
rasse do Baedeker antes que Florence se levantasse
de manhã. Não quero dizer com isso que se pudes-

30 Um rio, afluente do Reno. (N. do T.)

O BOM S OLDADO 97
se afirmar que Leonora conhecia tudo, mas se Flo-
rence começava a nos dizer que Luís, o Corajoso31,
queria ter três esposas ao mesmo tempo — no que
se distinguia de Henrique VIII, que queria ter uma
após a outra, o que criava muitos problemas —, se
Florence começava a nos falar disso, Leonora fazia
um gesto de assentimento com a cabeça que agra-
davelmente arrasava minha pobre esposa.
Ela exclamava sempre: “Bem, se você sabia, por
que não contou para o capitão Ashburnham? Tenho
certeza de que ele iria achar interessante!”. E Leonora
olharia com ar pensativo para seu marido e diria:
“Acho que talvez pudesse prejudicar sua mão — você
sabe, a mão que se usa para controlar os cavalos...”.
E o pobre Ashburnham ficava ruborizado, resmun-
gava e dizia: “Está bem. Não se preocupem comigo”.
Imagino que a ironia de sua esposa alarmava
o pobre Teddy; porque numa noite ele me pergun-
tou seriamente na sala de fumar se eu pensava que

31 Trata-se, na verdade, de Felipe, o Magnânimo (1504-

67), protetor dos protestantes que organizou a conferência de


Marburgo, como explica a edição da Oxford University Press.
(N. do T.)

98 FORD MADOX FORD


ter muita coisa na cabeça podia interferir com a
rapidez no jogo de pólo. Ele ficava impressionado,
foi o que me disse, com o fato de que os tipos cere-
brais eram em geral desajeitados quando montavam.
Eu o tranqüilizei como pude. Disse-lhe que nada
indicava que ele pudesse vir a ter seu equilíbrio per-
turbado. Nessa época, o capitão dava mostras evi-
dentes de que apreciava muito estar sendo educado
por Florence. Ela costumava fazer isso três ou qua-
tro vezes por semana, sob os olhares aprovadores
de Leonora e de mim mesmo. Não era, entenda,
sistemático. Vinha em explosões. Era Florence ilumi-
nando um dos lugares escuros da terra, deixando o
mundo um pouco mais leve do que encontrara. Con-
tava para ele a história de Hamlet; explicava a forma
de uma sinfonia, chilreando o primeiro e o segun-
do tema para ele, e assim por diante; explicava-lhe
a diferença entre os arminianos e os erastianos32;

32 Os arminianos, seguidores do teólogo holandês Ja-


cobus Arminius (1560-1609), protagonizaram um movimen-
to de reação religiosa aos calvinistas; os erastianos, seguido-
res do teólogo suíço Tomas Erastus (1524-83), proclamavam
a supremacia do Estado em questões eclesiásticas. (N. do T.)

O BOM S OLDADO 99
ou então fazia uma pequena palestra sobre a história
dos Estados Unidos. E isso era feito de uma maneira
calculada para atrair uma atenção jovem. Você já
leu a senhora Markham?33 Bem, era daquele jeito...
Mas nossa excursão para M foi um aconteci-
mento de vulto muito maior. Veja, nos arquivos do
Schloss34 daquela cidade havia um documento com
o qual Florence pensava que finalmente teria a chan-
ce de educar todo nosso grupo. A pobre Florence
ficava aborrecida porque não podia, em assuntos
de cultura, se mostrar melhor do que Leonora. Não
sei o que Leonora sabia ou deixava de saber, mas
com certeza ela sempre parecia estar a par de tudo,
toda vez que Florence trazia alguma informação. E
dava, de certo modo, a impressão de saber de fato
aquilo que a pobre Florence dava a impressão de
ter apenas transmitido. Não posso defini-lo exata-
mente. Era algo quase físico. Você já viu um cão
de caça brincando de correr atrás de um galgo? Você

33 Pseudônimo de Elizabeth Penrose (1780-1837), au-


tora de histórias populares para crianças. (N. do T.)
34 Em alemão, no texto: castelo. (N. do T.)

100 FORD MADOX FORD


fica olhando os dois correndo num campo verde,
quase lado a lado, e de repente o cão de caça dá uma
mordida amistosa no outro. Mas o galgo simples-
mente não está mais ali. Você não o viu apressar-
se ou forçar um membro sequer; mas lá está ele, duas
jardas à frente do focinho esticado do cão de caça.
Era assim com Florence e Leonora em questões de
cultura.
Mas nessa ocasião eu sabia que alguma coisa
ia acontecer. Encontrei Florence alguns dias antes,
lendo livros como a História dos papas de Ranke,
a Renascença de Symonds, Nascimento da república
holandesa de Motley e Conversa à mesa de Lutero.
Devo dizer que, até quando veio o choque, eu
só tivera prazer com a pequena expedição. Eu gos-
to de tomar o dois-por-quarenta; gosto do ritmo
vagaroso, suave dos grandes trens. Gosto de ser
conduzido pelos campos verdes e de olhá-los atra-
vés do vidro limpo das grandes janelas. Embora,
naturalmente, o campo não seja de fato verde. O
sol brilha, a terra é vermelho-sangüínea e púrpura
e vermelha e verde e vermelha. E os bois nos ara-
dos têm um brilho castanho envernizado e preto e

O BOM S OLDADO 101


púrpura-escuro; e os camponeses estão vestidos
com o preto e branco das pegas; e há também gran-
des bandos de pegas. Ou então as roupas dos cam-
poneses em outro campo onde existem pequenos
montes de feno que são verde-cinza do lado do sol
e púrpura na sombra — as roupas das campone-
sas são avermelhadas com tiras verde-esmeralda e
saias púrpuras e blusas brancas e peitilhos de ve-
ludo preto. Ainda assim, a impressão que você tem
é a de que está sendo levado pelos prados verdes
brilhantes que correm de cada lado em direção ao
púrpura-escuro dos abetos; os pináculos de basalto;
as florestas imensas. E há olmeiras na beira das
correntes, e gado. Ora, eu me lembro de que na-
quela tarde vi uma vaca castanha arremessar seus
cornos contra o estômago de um animal preto e
branco, e o que era preto e branco foi lançado no
meio de uma corrente estreita. Eu explodi numa
gargalhada. Mas Florence estava tão concentrada
em divulgar informações e Leonora estava escutan-
do tão atentamente que ninguém reparou em mim.
Quanto a mim, tinha a sensação confortável de
estar livre do dever; a sensação confortável de pen-

102 FORD MADOX FORD


sar que Florence por enquanto estava ao abrigo de
qualquer perturbação — já que estava falando de
Luís, o Corajoso (acho que era Luís, o Corajoso,
mas não sou historiador), de Luís, o Corajoso, de
Hessen, que desejava ter três mulheres ao mesmo
tempo e patrocinava Lutero — uma coisa dessas!
—, e eu estava tão aliviado por estar livre do de-
ver, já que provavelmente ela não estava fazendo
nada que a excitasse ou causasse palpitações no seu
pobre coração, que o incidente da vaca era uma
autêntica alegria para mim. Ri daquilo várias ve-
zes durante o dia. Porque é muito engraçado, você
entende, ver uma vaca preta e branca aterrisar de
costas no meio de uma corrente. É exatamente o
que não se espera de uma vaca.
Suponho que devia ter sentido pena do pobre
animal, mas não senti. Eu queria me divertir. E me
diverti. É tão agradável passar diante de cidades es-
petaculares com os castelos altos e seus vários piná-
culos duplos. À luz do sol a cidade emite cintilações;
cintilações do vidro das janelas; dos anúncios dou-
rados das farmácias; dos pavilhões das corporações
estudantis lá no alto das montanhas; dos capacetes

O BOM S OLDADO 103


de soldadinhos engraçados movimentando suas per-
nas duras em calças de linho branco. E era agradá-
vel descer na enorme e espetacular estação prussiana
com os ornamentos forjados em bronze e pinturas
de camponeses e flores e vacas; ouvir Florence bar-
ganhar energicamente com o condutor de uma an-
tiga droschka35 conduzida por dois cavalos magros.
Naturalmente, eu falo alemão muito mais correta-
mente do que Florence, embora jamais tenha me li-
vrado do sotaque alemão arcaico da Pensilvânia de
minha infância. Seja como for, fomos levados numa
espécie de triunfo por cinco marcos sem qualquer
trinkgeld 36, diretamente para o castelo. Mostraram-
nos o museu e vimos os fundos ornamentados das
lareiras, os velhos copos, as velhas espadas e as ge-
ringonças antigas. E lá fomos galgando as escadas
em caracol e atravessamos o Rittersaal, a grande sala
pintada onde o Reformador e seus amigos se reuni-
ram pela primeira vez sob a proteção do cavalheiro

35 Uma carruagem russa bastante leve, de quatro por-


tas. (N. do T.)
36 Gorjeta. Em alemão, no texto. (N. do T.)

104 FORD MADOX FORD


que tivera três esposas ao mesmo tempo e formara
uma aliança com o cavalheiro que tivera seis esposas,
uma depois da outra. (Não estou interessado de ver-
dade nesses fatos, mas eles guardam uma relação com
minha história.) Atravessamos capelas, salas de músi-
ca, até o imenso aposento antigo lá no alto, cheio de
prensas, com janelas pesadamente fechadas em volta.
E Florence ficou positivamente elétrica. Disse ao guar-
da cansado e entediado para abrir algumas janelas;
assim o brilho do sol entrou em raios palpáveis pela
escuridão do aposento antigo. Ela explicou que era
o quarto de dormir de Lutero e que bem ali onde a
luz do sol estava batendo ficava o lugar de sua cama.
Na verdade, acho que ela estava enganada e que Lu-
tero apenas fizera uma pausa, por assim dizer, para
o almoço, enquanto fugia da perseguição. Mas, sem
dúvida, poderia ter sido o seu quarto de dormir, se
ele fosse persuadido a passar a noite ali. E então, ape-
sar do protesto do guarda, ela abriu outra persiana
e voltou saltitando até uma grande caixa de vidro.
“É ali”, ela exclamou, com um acento de jú-
bilo, de triunfo e de audácia. Ela estava apontando
para um pedaço de papel, parecido com um papel

O BOM S OLDADO 105


de carta com alguns garranchos desmaiados que
podiam muito bem ser as anotações das quantias
que tínhamos gasto durante o dia. Eu estava extre-
mamente feliz com a alegria dela, com seu triunfo,
sua audácia. O capitão Ashburnham colocara suas
mãos sobre a caixa de vidro. “Aqui está — o Pro-
testo.” E então, como todos nos mostrássemos de-
vidamente espantados, ela continuou: “Vocês não
sabem que é por isso que somos chamados protes-
tantes? Este é o rascunho do Protesto que eles es-
creveram. Vocês podem ver as assinaturas de Mar-
tinho Lutero, de Martin Bucer, de Zwinglio37, e de
Luís, o Corajoso...”.
Posso estar enganado quanto a alguns nomes,
mas sei que Lutero e Bucer estavam ali. E a anima-
ção dela continuou e eu estava feliz. Ela estava bem
melhor e ao abrigo de perturbações. Prosseguiu,
fitando os olhos do capitão Ashburnham: “É por
causa desse pedaço de papel que você é honesto, só-

37 Martin Bucer (1491-1551), um reformista protestante

que serviu de intermediário entre Lutero e Huldrych Zwinglio


(1484-1531), o famoso reformista suíço. (N. do T.)

106 FORD MADOX FORD


brio, trabalhador, previdente, e tem uma vida lim-
pa. Se não fosse esse pedaço de papel você seria
como os irlandeses ou os italianos ou os poloneses,
mas especialmente os irlandeses...”.
E ela colocou um dedo sobre o pulso do capi-
tão Ashburnham.
Eu estava atento a algo traiçoeiro, algo assus-
tador, algo demoníaco no ar. Não posso defini-lo
e não posso achar um símile para isso. Não era como
se uma serpente estivesse espiando de um buraco.
Não, era como se meu coração tivesse perdido um
compasso. Era como se estivéssemos prestes a cor-
rer e gritar; todos os quatro em direções separadas,
desviando nossas cabeças. Soube que no rosto de
Ashburnham havia pânico absoluto. Eu estava ter-
rivelmente amedrontado e aí descobri que a dor no
meu pulso esquerdo era causada porque Leonora
o estava apertando:
— Não posso mais suportar isso — ela disse
com um arrebatamento extraordinário. — Tenho
que acabar com isto.
Eu estava terrivelmente amedrontado. Ocor-
reu-me por um instante, embora eu não tenha tido

O BOM S OLDADO 107


tempo para pensar nisso, que ela devia ser uma mu-
lher loucamente ciumenta — ciumenta de Florence
e do capitão Ashburnham, em meio a tanta gente
no mundo! E foi em pânico que desertamos! Des-
cemos imediatamente as escadas sinuosas, atraves-
samos a imensa Rittersaal até um pequeno terraço
que dava para o Lahn, o vale amplo e a imensa pla-
nície para o qual ele se abre.
— Você não está vendo? — ela disse. — Você
não está vendo o que está acontecendo? — De novo
o pânico paralisou meu coração. Eu murmurei, ga-
guejei, não sei como as palavras saíram:
— Não. Qual é o problema? Qual é mesmo o
problema?
Ela me olhou diretamente nos olhos; por um
instante tive a sensação de que aqueles dois discos
azuis eram imensos, esmagadores, eram como uma
parede azul que me separasse do resto do mundo.
Sei que soa absurdo; mas foi assim que me senti.
— Você não está vendo? — ela disse, com uma
amargura verdadeiramente horrível, com uma la-
mentação verdadeiramente horrível em sua voz. —
Você não está vendo qual é a causa de toda essa si-

108 FORD MADOX FORD


tuação miserável; de toda a dor do mundo? Da mi-
nha, da sua eterna danação e da deles...
Não me lembro como ela prosseguiu; eu esta-
va assustado demais; estava perplexo demais. Acho
que estava pensando em recorrer a uma alguma
ajuda protetora — a um médico, talvez, ou ao ca-
pitão Ashburnham. Ou talvez estivesse precisando
do cuidado terno de Florence, embora, naturalmen-
te, isso pudesse ser muito ruim para o coração de
Florence. Mas sei que, ao me recuperar, ela estava
dizendo: “Oh, onde estão os seres brilhantes, feli-
zes, inocentes do mundo? Onde está a felicidade?
Lemos sobre isso nos livros!”.
Ela passou sua mão com um movimento sin-
gular das unhas sobre a sua fronte. Seus olhos es-
tavam enormemente dilatados; seu rosto era exa-
tamente o de uma pessoa olhando para o poço do
inferno e vendo seus horrores. E então, de repente,
ela se deteve. De modo espantoso, ela era de novo
apenas a senhora Ashburnham. Seu rosto estava
perfeitamente claro, incisivo e definido; seu cabelo
parecia magnífico com seus cachos dourados. Suas
narinas se mexeram com uma espécie de desprezo.

O BOM S OLDADO 109


Parecia estar olhando com interesse uma caravana
de ciganos que se aproximava da pequena ponte
bem longe de nós.
— Você não sabe —, ela disse, em sua dura
voz límpida. — Você não sabe que eu sou uma ca-
tólica irlandesa?

110 FORD MADOX FORD


V.

Essas palavras me deram o maior alívio que


já senti em minha vida. Elas me disseram, eu acho,
quase mais do que tudo que já conseguira saber até
então — sobre mim mesmo. Não acho que antes
daquele dia eu tenha desejado muito qualquer coi-
sa muito a não ser Florence. Claro, eu tinha apeti-
tes, impaciências... Bem, às vezes, à mesa de refei-
ção, quando algum caviar, digamos, estava sendo
servido, eu ficava totalmente impaciente, com medo
de que, quando o prato chegasse onde eu estava,
não houvesse mais uma porção suficiente deixada
pelos outros convidados. Eu era extremamente im-
paciente com perder trens. A Estação Ferroviária
Belga costumava fazer com que os trens franceses
perdessem suas conexões em Bruxelas. Isso sempre
me deixara furioso. Eu reclamara disso em cartas
ao The Times, que The Times nunca publicara; as

O BOM S OLDADO 111


que escrevi para a edição parisiense do New York
Herald sempre foram publicadas, mas não me sa-
tisfaziam quando eu as lia. Bem, havia uma espécie
de frenesi em mim.
Era um frenesi que agora mal posso entender.
Posso entendê-lo intelectualmente. Veja, naquela
época, eu estava interessado em pessoas com o “co-
ração fraco”. Havia Florence, havia Edward Ash-
burnham — ou talvez fosse em Leonora que eu esti-
vesse mais interessado. Não quero dizer que houves-
se amor. Mas, entenda, ambos estávamos na mes-
ma profissão, — pelo menos era assim que eu via.
E a profissão consistia em manter vivos os doentes
do coração.
Você não tem idéia de como essa profissão
pode ser absorvente. Exatamente como o ferreiro
diz: “A mão e o martelo criam toda Arte”, assim
como o padeiro pensa que todo o sistema solar gira
em torno de sua entrega matinal de pães, assim co-
mo o carteiro acredita que sozinho mantém a so-
ciedade — e certamente, certamente, essas ilusões
são necessárias para que possamos viver —, assim
eu também e Leonora, segundo eu acreditava, ima-

112 FORD MADOX FORD


ginava que o mundo devia estar organizado para
assegurar a sobrevivência dos pacientes de coração.
Você não imagina como essa profissão pode se tor-
nar absorvente — como, por causa desta absorção,
parecem estúpidos os trabalhos dos príncipes, das
repúblicas, dos municípios. Um trecho ruim de es-
trada sob os pneus do carro, um par de buracos
consecutivos na estrada com seus bruscos solavan-
cos era o suficiente para que eu resmungasse para
Leonora contra o Príncipe ou o Grão-Duque ou a
Cidade por cujo território estivéssemos passando.
Resmungava como um corretor cuja conversa ao
telefone estivesse sendo perturbada pelo toque de
sino da igreja da cidade. Eu ficava falando a res-
peito de sobrevivências medievais, a respeito de im-
postos excessivamente altos. Aliás, o problema da
perda das conexões de Calais para Bruxelas era que
a viagem mais curta possível pelo mar é em geral
de grande importância para os doentes do coração.
Ora, no Continente, há dois lugares especiais para
a cura, Nauheim e Spa, e para chegar a esses dois
balneários da Inglaterra de modo a fazer uma via-
gem curta por mar, você tem de vir por Calais — e

O BOM S OLDADO 113


tem de fazer a conexão em Bruxelas. Mas o trem
belga não espera um segundo sequer por quem está
vindo de Calais ou de Paris. E embora os trens fran-
ceses estejam sempre na hora certa, você tem de
correr — imagine um doente do coração correndo!
— pelos trechos desconhecidos da estação de Bru-
xelas e galgar os degraus altos do trem em movi-
mento. Se você perde a conexão, tem de esperar
umas cinco ou seis horas... Eu passava noites intei-
ras acordado amaldiçoando esse abuso.
Minha esposa costumava correr — ela jamais,
seja lá o que for em que tenha me enganado, ten-
tou me dar a impressão de que não era uma alma
altiva. Mas, quando já estava no Expresso Alemão,
ela se encostava, com uma mão pendente e os olhos
fechados. Bem, ela era uma boa atriz. E eu ficava
arrasado. Arrasado, lhe digo. Pois em Florence eu
tinha ao mesmo tempo uma esposa e uma amante
fora de alcance — era assim mesmo —, e mantê-la
nesse mundo era minha ocupação, minha carreira,
minha ambição. Não é comum que essas coisas se
unam num só corpo. Leonora também era uma boa
atriz. Por Júpiter, ela era boa! Eu lhe digo, ela me

114 FORD MADOX FORD


escutava durante horas, elaborando meus planos
para um mundo à prova de choques. É verdade que,
às vezes, eu reparava nela um ar desatento, como
se estivesse ouvindo, qual uma mãe a uma criança
em seus joelhos, ou como se, precisamente, eu mes-
mo fosse o paciente.
Saiba que não havia nenhum problema com o
coração de Edward Ashburnham — ele abandonara
seu posto comissionado e deixara a Índia e atraves-
sara meio mundo para seguir uma mulher que de fato
tinha o “coração fraco” até Nauheim. Ele era esse
tipo de idiota sentimental. Fique sabendo também
que eles realmente precisavam viver na Índia, para
economizar, deixando a casa em Branshaw Teleragh.
Naturalmente, nessa época, eu ainda não ou-
vira falar do caso Kilsyte. Você sabe, Ashburnham
beijara uma criada num trem, e foi tão-somente pela
graça de Deus, pelo funcionamento imediato de uma
cadeia de comunicação e pela pronta simpatia do
tribunal de Hampshire, que o pobre diabo escapou
do presídio de Winchester por anos e anos. Eu nunca
ouvira falar do caso até os estágios finais das reve-
lações de Leonora...

O BOM S OLDADO 115


Mas pense só nesse pobre coitado... Eu, que
tenho certamente o direito, peço que pense nesse po-
bre coitado. É possível que um diabo tão infeliz
assim devesse ser atormentado pelo destino cego e
inescrutável? Pois não há outra maneira de pensar
nisso. Nenhuma. Tenho o direito de dizê-lo, já que
durante cinco anos ele foi o amante de minha mu-
lher, já que ele a matou, já que destruiu todo o pra-
zer que havia em minha vida. Não há padre que
tenha o direito de me dizer que não devo pedir pie-
dade para ele, a você, ouvinte silencioso longe do
lar, ao mundo, ou a Deus que criou nele esses dese-
jos, essa loucura...
Naturalmente, eu não ouvira falar do caso Kil-
syte. Não conhecia nenhum dos amigos deles; para
mim, eles eram apenas pessoas de bem — pessoas
ricas com vastos e ensolarados acres num condado
sulista. Apenas pessoas de bem! Por Deus, eu às
vezes penso que teria sido melhor para ele, pobre
coitado, se o caso tivesse sido como aqueles de que
eu devo ter necessariamente ouvido falar — como
aqueles a respeito dos quais criadas e acompanhan-
tes e outros hóspedes de Kur cochicham durante

116 FORD MADOX FORD


anos, até que gradualmente ele morre pela piedade
que irrompe aqui e ali neste mundo. Supondo que
ele tivesse passado sete anos no presídio de Win-
chester — ou seja lá o que for que esta justiça cega
e inescrutável nos reserve por seguir nossas inclina-
ções naturais ainda que inoportunas — teria che-
gado um momento quando os mexericos tolos no
terraço de Kursaal38 diriam: “Pobre sujeito”, ao
pensar em sua carreira arruinada. Ele teria sido o
melhor dos soldados com sua espinha agora já que-
brada... Seria melhor para ele, pobre diabo, se sua
espinha tivesse se quebrado prematuramente.
Bem, teria sido mil vezes melhor... Pois, natu-
ralmente, o caso Kilsyte, que veio logo no começo
de sua descoberta de Leonora como fria e antipáti-
ca, provocou nele um choque desgastante. Ele dei-
xou as criadas em paz depois disso.
Isso fez, naturalmente, com que ficasse ainda
mais solto entre as mulheres de sua própria classe.
Bem, Leonora me disse que a senhora Maidan — a

38 Um edifício público nas estâncias medicinais alemãs,

reservado para o uso dos visitantes. (N. do T.)

O BOM S OLDADO 117


mulher que ele seguira de Burma até Nauheim —
lhe assegurara que ele havia despertado sua aten-
ção ao jurar que, quando beijara a criada no trem,
sentira-se impelido a fazê-lo. Atrevo-me a dizer que
foi impelido pela louca paixão de encontrar final-
mente uma mulher satisfatória. Atrevo-me a dizer
que ele foi bastante sincero. Deus me proteja, atre-
vo-me a dizer mesmo que ele era bastante sincero
em sua paixão pela senhora Maidan. Ela era uma
coisinha graciosa, uma mulher pequenina com pes-
tanas longas, a quem Florence logo se afeiçoou. Ela
ceceava e tinha um sorriso alegre. Nós a vimos mui-
to durante o primeiro mês de nosso relacionamen-
to, depois ela morreu tranqüilamente — de um ata-
que do coração.
Mas você sabe, a pobre coitada da senhora
Maidan — ela era tão gentil, tão jovem. Não podia
ter mais do que vinte e três anos, e tinha um marido
funcionário lá em Chitral39 com uns vinte e quatro
anos, não mais, eu acho. Gente tão jovem assim

39 Região no extremo noroeste da Índia, um posto avan-

çado inglês no período colonial. (N. do T.)

118 FORD MADOX FORD


devia ser deixada em paz. Naturalmente Ashbur-
nham não podia deixá-la em paz. Não acredito que
pudesse. Bem, até eu, com essa distância do tempo
tenho consciência de que estou enamorado de sua
lembrança. Não posso deixar de sorrir quando me
lembro subitamente dela — como você faria ante a
lembrança de algo cuidadosamente guardado com
lavanda, em alguma gaveta, em alguma casa anti-
ga que você já deixou há muito tempo. Ela era tão
— tão submissa. Bem, até comigo ela tinha o ar de
ser submissa — comigo, a que nem as crianças mais
novas dão atenção. Sim, esta é a história mais triste...
Não, não posso me livrar do desejo de que
Florence a tivesse deixado em paz — com ela en-
volvida em adultério. Suponho que estava; embora
ela fosse tão criança que se tinha a impressão de que
ela nem saberia como pronunciar tal palavra. Não,
era apenas submissão — às importunações, às for-
ças tempestuosas que arrastaram aquele sujeito para
a ruína. E não acho que Florence fizesse muita dife-
rença. Se não fosse com ela, Ashburnham teria aban-
donado sua ligação com a senhora Maidan por uma
outra mulher qualquer. Mas, mesmo assim, não sei.

O BOM S OLDADO 119


Talvez a coitadinha tivesse morrido — ela estava
fadada a morrer, de qualquer modo, bem cedo —
mas teria morrido sem encharcar seu travesseiro
com lágrimas, enquanto Florence, embaixo da ja-
nela, conversava com o capitão Ashburnham sobre
a Constituição dos Estados Unidos... Sim, haveria
um gosto mais suave na boca se Florence a tivesse
deixado morrer em paz...
Leonora comportou-se melhor em certo sen-
tido. Ela deu apenas um tapa na orelha da senhora
Maidan — sim, bateu nela, num acesso incontro-
lável de raiva, um golpe forte num lado do rosto,
no corredor do hotel, do lado de fora do quarto de
Edward. Foi isso, fique sabendo, que provocou a
súbita e estranha intimidade entre Florence e a se-
nhora Ashburnham.
Porque era, naturalmente, uma estranha inti-
midade. Se você olhar de fora, nada poderia ser
mais improvável do que Leonora, que era a cria-
tura mais orgulhosa nessa terra de Deus, apegar-
se a um relacionamento com dois yankees à toa,
aos quais ela não podia realmente ver senão como
não valendo mais do que um tapete a seus pés.

120 FORD MADOX FORD


Você pode perguntar do que é que ela se orgulha-
va tanto. Bem, ela era uma Powys casada com um
Ashburnham — suponho que isso lhe dava o direi-
to de desprezar americanos à toa, na medida em
que ela fizesse sem ostentação. Não sei de que coisa
alguém possa orgulhar-se. Ela podia orgulhar-se de
sua paciência, de ter livrado seu marido da falên-
cia. Talvez se orgulhasse.
De qualquer modo, foi assim que Florence con-
seguiu aproximar-se dela. Ela deu a volta no biom-
bo no canto do corredor do hotel e encontrou Leo-
nora com a chave dourada que pendia do seu pul-
so presa no cabelo da senhora Maidan um pouco
antes do jantar. Não se disse palavra. A pequena
senhora Maidan estava muito pálida, com uma mar-
ca vermelha no lado esquerdo do rosto, e a chave
não se desprendia de seu cabelo preto. Foi Florence
que teve de desembaraçá-la, pois Leonora estava
num tal estado que não conseguia sequer tocar a
senhora Maidan.
E não se disse palavra. Veja bem, a sós — só
ela e a senhora Maidan — Leonora pôde chegar ao
ponto de dar uma tapa na orelha da senhora Mai-

O BOM S OLDADO 121


dan. Mas assim que um estranho se aproximou, ela
recuou de maneira maravilhosa. Primeiro ficou em
silêncio e então, quando a chave foi desembaraça-
da por Florence, ela já estava em condição de di-
zer: “Fui tão desastrada... Eu estava apenas tentando
colocar o pente no cabelo da senhora Maidan...”.
A senhora Maidan, no entanto, não era uma
Powis casada com um Ashburnham; era uma O’Fla-
herty, coitada, cujo marido era um funcionário, fi-
lho de um pastor de aldeia. Assim, não foi surpre-
sa o soluço que ela deixou escapar enquanto volta-
va desoladamente pelo corredor. Mas Leonora con-
tinuou representando. Abriu ostensivamente a porta
do quarto de Ashburnham, de maneira que Florence
pudesse ouvi-la dirigindo-se a Edward em termos
íntimos e afetuosos. “Edward”, ela chamou. Mas
não havia nenhum Edward ali.
Entenda, não havia nenhum Edward ali. Foi
aí, pela única vez em sua carreira, que Leonora se
comprometeu de fato. Ela exclamou: “Que horrí-
vel!... Pobre Maisie!...”.
Então viu o que tinha feito, mas naturalmen-
te era tarde demais. Foi uma situação estranha...

122 FORD MADOX FORD


Quero fazer justiça a Leonora. Sou muito afei-
çoado a ela por um motivo e nesse assunto, que foi
certamente a ruína de meu pequeno ninho domés-
tico, ela certamente se excedeu. Não acredito — e
a própria Leonora não acredita — que a pobre coi-
tada da Maisie Maidan tenha sido a amante de Ed-
ward. Seu coração estava de fato tão fraco que ela
sucumbiria a algo como um abraço apaixonado.
Esta é a forma direta de dizê-lo, e suponho que a
forma direta é a melhor. Ela era de fato o que as
outras duas, por motivos próprios, apenas fingiam
ser. Estranho, não é? Como uma dessas peças si-
nistras que a Providência nos prega. Acrescente a
isso que não acho que Leonora iria se importar mui-
to, em qualquer outra situação, se a senhora Maidan
fosse a amante de seu marido. Teria sido um alívio
diante dos gorgolejos sentimentais diante da dama
e diante da aceitação submissa da dama desses sons.
Não, ela não iria se importar.
Mas, ao dar um tapa na orelha da senhora
Maidan, Leonora estava batendo no rosto de um
universo intolerável. Pois, naquela tarde tivera uma
cena dolorosa e horrível com Edward.

O BOM S OLDADO 123


No que diz respeito às cartas dele, reivindica-
va o direito de abri-las quando quisesse. Ela arro-
gava para si esse direito porque os negócios de Ed-
ward estavam numa situação péssima e ele mentia
tanto a respeito deles que ela reivindicou o privilé-
gio de ter acesso a seus segredos. Não havia, na ver-
dade, outra saída, pois o coitado estava envergo-
nhado demais de seus lapsos para dizer tudo aber-
tamente. Ela tinha de tirar essas coisas dele.
Deve ter sido um trabalho dignificante para ela.
Mas naquela tarde, enquanto Edward ficava na ca-
ma por uma hora e meia segundo a prescrição das
autoridades do Kur, ela abriu uma carta que julgou
vir do coronel Hervey. Eles iam se hospedar na casa
dele em Linlithgowshire40 no mês de setembro e ela
não sabia se a data fixada era o dia onze ou dezoi-
to. O endereço na carta tinha uma caligrafia que se
parecia tanto com a do coronel Hervey quanto uma
espiga de milho com outra. Assim no momento, não
tinha a intenção de espioná-lo.
Mas era o que fazia. Pois descobriu que Ed-

40 Condado no sudoeste da Escócia. (N. do T.)

124 FORD MADOX FORD


ward Ashburnham estava pagando a um chantagista
de quem nunca ouvira falar algo em torno de tre-
zentas libras por ano... Foi um golpe tremendo; foi
como a morte; pois ela pensava, nessa época, que
vasculhara até o fundo as obrigações de seu mari-
do. Veja bem, elas eram bastante pesadas. O que
as tinha destruído fora um caso perfeitamente ba-
nal em Monte Carlo — um caso com uma hárpia
cosmopolita que se passava por amante de um grão-
duque russo. Ela cobrara dele uma tiara de pérolas
de vinte mil libras como preço por seus favores du-
rante mais ou menos uma semana. Deve tê-lo abor-
recido um bocado gastar tanto assim, mas ele não
era um jogador no sentido comum. Ele poderia, de
fato, ter gasto apenas as vinte mil libras e mais as
despesas nada leves de uma semana num hotel com
a bela criatura. Naquela época, ele devia possuir uns
quinhentos mil dólares ou um pouco mais.
Bem, ele tinha forçosamente quer ir até as me-
sas e perder quarenta mil libras... Quarenta mil li-
bras, emprestadas por tubarões! E depois de tudo isso
ele ainda precisava — era uma paixão imperativa —
desfrutar os favores da dama. Obteve-os, natural-

O BOM S OLDADO 125


mente, pois era uma questão de uma sólida barganha,
cerca de nada menos de vinte mil, como ele devia,
sem dúvida, ter acertado desde a primeira vez. Atre-
vo-me a dizer que uns dez mil dólares cobriu a conta.
Seja como for, havia um sólido buraco numa
fortuna de uma centena de milhares de libras ou
coisa assim. E Leonora tinha de ajeitar as coisas;
ele continuaria indo de agiota a agiota. E isto foi
logo nos primeiros dias de sua descoberta das infide-
lidades dele — se você quiser chamá-las de infideli-
dades. E ela descobriu aquela de fontes públicas.
Deus sabe o que teria acontecido se não as tivesse
descoberto nessas fontes públicas. Suponho que ele
esconderia tudo dela até que ficassem sem um só
tostão. Mas ela foi capaz, graças a Deus, de entrar
em contato com os agiotas para saber as somas exa-
tas que eram necessárias. E então ela partiu para a
Inglaterra.
Sim, ela foi imediatamente para a Inglaterra
encontrar seu advogado e o dele, enquanto ele ain-
da estava tranqüilamente nos braços de sua Circe
— em Antibes, onde tinham se refugiado. Ele se en-
fastiou rapidamente da dama, mas não antes de

126 FORD MADOX FORD


Leonora obter aulas suficientes de negócios de seu
advogado para armar um plano tão claro quanto o
do general Trochu41 para manter os prussianos lon-
ge de Paris em 1870. Foi tão eficiente quanto este
ou, pelo menos, foi o que pareceu.
Isso deve ter sido, fique sabendo, em 1895,
cerca de nove anos antes da época de que estou fa-
lando — a época em que Florence conseguiu uma
ascendência sobre Leonora; pois foi isto que acon-
teceu... Bem, a senhora Ashburnham simplesmen-
te forçou Edward a entregar-lhe toda sua proprie-
dade. Ela podia forçá-lo a fazer qualquer coisa; à
sua maneira desajeitada, inarticulada, de boa índole,
ele tinha tanto medo dela quanto do demônio. E a
admirava enormemente, tinha tanta afeição por ela
quanto um homem pode ter por uma mulher. Ela
tirou vantagem disso para tratá-lo como se fosse
uma pessoa cujas propriedades estivessem sendo
administradas por uma vara de falências. Suponho
que isso foi melhor para ele.

41 Governador de Paris que acabou sendo derrotado


pelos prussianos que conquistaram a cidade. (N. do T.)

O BOM S OLDADO 127


De qualquer modo, ela não teve descanso du-
rante três anos mais ou menos. Obrigações inespe-
radas continuaram surgindo — e aquele tolo aflito
não tornava as coisas mais fáceis. Entenda, junto
com a paixão pela conquista havia um molde men-
tal que o tornava extraordinariamente envergonha-
do de si mesmo. Você pode não acreditar, mas ele
de fato tinha tanto respeito pela castidade da ima-
ginação de Leonora que detestava — ficava positi-
vamente revoltado só de pensar que ela pudesse
saber que aquele tipo de coisa que ele fazia existia
no mundo. Assim, ficava agitado diante da acusa-
ção de ter feito alguma coisa. Ele queria preservar
a virginidade dos pensamentos de sua esposa. Foi
o que me disse durante as longas caminhadas que
fizemos no fim — quando a moça estava a cami-
nho de Brindisi.
Assim, naturalmente, durante esses três anos
mais ou menos, Leonora teve muitas aflições. E foi
aí que eles de fato discutiram.
Sim, discutiram com azedume. Isso parece um
tanto extravagante. Você poderia ser levado a pen-
sar que Leonora iria apenas desprezar tranqüilamen-

128 FORD MADOX FORD


te e ele lacrimosamente contrito. Mas não foi nem
um pouco assim... Junto com as paixões de Edward
e sua vergonha, havia a convicção violenta dos de-
veres de sua posição — uma convicção irrazoavel-
mente cara. Acredito que, ao falar de suas obriga-
ções, não dei a impressão de que o pobre Edward
era um libertino promíscuo. Não era; era um senti-
mental. A criada do caso Kilsyte era bem bonita,
mas com a aparência aflita. Acho que, quando a bei-
jou, desejava sobretudo confortá-la. E, se ela sucum-
bisse a suas blandícias, atrevo-me a dizer que ele a
instalaria numa casinha em Portsmouth ou Win-
chester e seria fiel a ela durante quatro ou cinco
anos. Era capaz disso.
Não, os únicos dois casos sentimentais que lhe
custaram dinheiro foram o da amante do grão-du-
que e o que foi objeto da carta de chantagem que
Leonora abriu. Este fora um caso bastante apaixo-
nado com uma mulher bastante bonita. Sucedeu o
da dama do grão-duque. A dama era a esposa de
um oficial e Leonora soube tudo sobre o caso, que
fora uma paixão verdadeira e durara vários anos.
Veja bem, as paixões do pobre Edward eram bastan-

O BOM S OLDADO 129


te lógicas em sua progressão para o alto. Começa-
ram com uma criada, passaram para uma cortesã e
depois para uma mulher bastante bonita, e mal-
casada. Pois ela tinha um marido bastante sórdido
que, através de cartas e outras coisas, continuou
chantageando o pobre Edward pela quantia de tre-
zentas ou quatrocentas libras por ano — com amea-
ças em relação a uma vara de divórcio. E depois
dessa dama veio Maisie Maidan, e depois da pobre
Maisie mais um caso, e depois — a verdadeira pai-
xão de sua vida. Seu casamento com Leonora fora
arranjado por seus pais e, embora ele a admirasse
imensamente, mal fingia ser mais do que terno com
ela, embora também precisasse desesperadamente
de seu apoio moral...
Mas as obrigações em que ele se empenhava
realmente eram na maior parte das vezes ligadas à
generosidade própria à sua posição. Segundo Leo-
nora, ele estava sempre diminuindo as cobranças de
seus arrendatários, dando a entender aos arrenda-
tários que a redução seria permanente; estava sem-
pre redimindo bêbados que vinham a seu tribunal
senhorial; estava sempre tentando colocar prostitu-

130 FORD MADOX FORD


tas em lugares respeitáveis — e era um maníaco to-
tal por crianças. Não sei a quantas pessoas maltra-
tadas ele recolheu e deu trabalho — Leonora me dis-
se, mas me atrevo a dizer que ela exagerou: o nú-
mero parece tão despropositado que nem irei men-
cioná-lo. Todas essas coisas e sua continuação lhe
pareciam ser seu dever — junto com contribuições
impossíveis para hospitais e escoteiros e a conces-
são de prêmios para mostras de gado e sociedades
anti-vivissecionistas...
Bem, Leonora fez com que a maior parte des-
sas coisas não continuasse mais. Elas provavelmente
não podiam ser mantidas naquela proporção em
Branshaw Manor depois que o dinheiro fora para
a amante do grão-duque. Ela colocou a cobrança
das rendas em suas antigas cifras; expulsou os bê-
bados de suas casas e enviou um comunicado a to-
das as sociedades para que não esperassem mais
contribuições. Quanto às crianças, ela foi mais sua-
ve; sustentou quase todas até a idade do aprendi-
zado de ofícios ou do serviço doméstico. Entenda,
ela própria não tinha filhos.
Ela não tinha filhos, e se achava culpada. Vinha

O BOM S OLDADO 131


de um ramo pobre da família Powys, e eles a força-
ram a aceitar o pobre coitado do Edward sem fazer
qualquer menção de que as crianças deviam ser edu-
cadas como católicos. E isso, naturalmente, era a
morte espiritual para Leonora. Eu lhe dei uma im-
pressão errada se não o fiz perceber que Leonora
era um mulher de consciência forte, fria, como todos
os católicos ingleses. (Não posso deixar de ter anti-
patia por essa religião; há sempre, no fundo de mi-
nha mente, apesar de Leonora, a sensação de tremer
diante dessa Mulher Escarlate42, que se insinuou
junto a mim na tranqüilidade do velho Friend’s Meet-
ing House43 na Arch Street, Filadélfia.) Assim eu
atribuo boa parte do desgoverno por parte de Leo-
nora no caso do pobre Edward à forma peculiar-
mente inglesa de sua religião. Porque, decerto, a
única coisa que poderia ser feita por Edward seria
deixá-lo afundar até que se tornasse um vagabun-

42 Scarlet Woman: denominação dada à Igreja Católi-


ca que remete à tradição da polêmica empreendida pelos pro-
testantes. (N. do T.)
43Nome pelo qual é conhecido o mais antigo e maior
templo quaker dos Estados Unidos. (N. do T.)

132 FORD MADOX FORD


do com um endereço senhorial, encontrando, tal-
vez, oportunidades de casos amorosos pelas estra-
das. Ele teria causado muito menos dano; teria se
angustiado menos também. De qualquer modo, te-
ria menos chances de causar mal e ter remorsos. Pois
Edward estava cheio de remorsos.
Mas a consciência católico-inglesa de Leono-
ra, seus princípios rígidos, sua frieza, até mesmo
sua própria paciência, estavam, não posso deixar
de pensá-lo, erradas neste caso especial. Ela acre-
ditava ingênua e seriamente que a Igreja de Roma
desaprovava o divórcio; acreditava ingênua e seria-
mente que sua Igreja podia ser uma instituição tão
monstruosa e imbecil a ponto de esperar dela o
dever impossível de transformar Edward Ashburn-
ham num marido fiel. Ela tinha, como diriam os
ingleses, um temperamento não-conformista44.
Nos Estados Unidos da América do Norte nós di-
zemos “a mentalidade da Nova Inglaterra”. Pois,
naturalmente, esse molde mental foi transmitido

44 Aqui a expressão se refere especificamente a um tipo

de protestante, dissidente da Igreja anglicana. (N. do T.)

O BOM S OLDADO 133


pelos católicos ingleses. Os séculos que eles atra-
vessaram — séculos de opressão cega e maligna, de
ostracismo nos empregos públicos, de constituir,
por assim dizer, uma pequena guarnição sitiada
num país hostil, e ter de agir conseqüentemente
com grande formalidade — todas essas coisas se
combinaram para criar uma tendência conspira-
tória. E suponho que os papistas na Inglaterra são
até mesmo tecnicamente não-conformistas.
Os papistas continentais são um bando imun-
do, jovial e inescrupuloso. Mas isto, pelo menos, faz
com que sejam oportunistas. Eles teriam dado um
jeito no pobre coitado do Edward. (Perdoe-me por
escrever tais coisas monstruosas dessa maneira frí-
vola. Mas, se não o fizesse, eu teria um colapso e
cairia no choro.) Em Milão, digamos, ou em Paris,
Leonora teria dissolvido seu casamento em seis me-
ses por duzentos dólares pagos no lugar certo. E
Edward ficaria vagando por aí até se tornar um va-
gabundo do tipo que sugeri. Ou então teria se ca-
sado com uma garçonete que lhe faria cenas hor-
rorosas em lugares públicos, torceria seu bigode e
deixaria marcas visíveis em seu rosto, que o fariam

134 FORD MADOX FORD


tornar-se fiel a ela pelo resto de seus dias. Era isto
que ele queria para redimi-lo...
Pois, junto com suas paixões e vergonhas ha-
via o temor de cenas em lugares públicos, de grita-
ria, de excitada violência física; de publicidade, em
suma. Sim, a garçonete o teria curado. E seria me-
lhor ainda se ela bebesse; ele se manteria ocupado,
cuidando dela.
Sei que tenho razão nisto. Sei disso por causa
do caso Kilsyte. Entenda, a criada que ele beijou era
ama-seca na família do chefe não-conformista do
condado — não sei como se chama esse posto. E
esse cavalheiro estava tão determinado a arruinar
Edward, que era o chefe da tendência Tory, ou coisa
assim, que o pobre coitado sofreu o diabo. Fizeram
perguntas sobre isso na Câmara dos Comuns; ten-
taram desmoralizar os magistrados de Hampshire;
sugeriram ao Ministro da Guerra que Edward não
era a pessoa indicada para manter uma concessão
dada pelo Rei. Sim, ele apanhou à torto e à direita.
O resultado você já ouviu. Ele ficou comple-
tamente curado de seus namoros no meio das clas-
ses mais baixas. E isso pareceu a Leonora uma ver-

O BOM S OLDADO 135


dadeira bênção. Ela não se revoltava tanto em es-
tar ligada — é uma espécie de ligação — a pessoas
como a senhora Maidan, em vez de uma emprega-
da de cozinha.
De uma forma vaga, Leonora estava quase con-
tente quando chegou a Nauheim, naquela tarde...
Ela ajeitara muito bem as coisas depois de lon-
gos anos de poupança em pequenos postos em Chi-
tral e Burma — lugares onde a vida é barata em
comparação com a vida de um magnata de conda-
do, e onde, acima de tudo, ligações de um ou outro
tipo são normais e baratas também. Assim, quan-
do a senhora Maidan apareceu — e o caso Maidan
poderia causar problemas por causa da juventude
do marido —, Leonora resignou-se a voltar para
casa. Com labuta, poupança, com a saída de Brans-
haw Teleragh, e com a venda de um quadro e uma
relíquia de Carlos I ou coisa parecida, ela conseguira
— e, pobrezinha, nunca tivera um vestido decente
para usar durante todos aqueles anos —, como ti-
nha desejado, colocar de novo seu marido na mes-
ma posição financeira que ele possuía antes que a
amante do grão-duque tivesse aparecido. E, natu-

136 FORD MADOX FORD


ralmente, o próprio Edward a ajudara um pouco
com o lado financeiro. Ele era um sujeito de que
muitos homens gostavam. Era tão apresentável e
sempre pronto a emprestar o isqueiro — esse tipo
de coisa. Assim, aqui e ali, cada finacista que ele
encontrava lhe dava uma indicação boa, sólida, ren-
tável. E Leonora jamais teve medo de um pouco de
jogo — os papistas ingleses raramente têm, não sei
por quê.
Assim, quase todos os investimentos dela de-
ram certo e Edward estava de fato preparado para
reabrir Branshaw Manor, assumindo mais uma vez
sua posição no condado. Desse modo Leonora acei-
tou Maisie Maidan quase com resignação — quase
com um suspiro de alívio. Ela de fato gostava da
pobre criança — tinha de gostar de alguém. E, de
certa forma, sentiu que podia confiar em Maisie —
podia confiar em que ela não tiraria milhares de
Edward a cada semana, pois Maisie recusara-se a
aceitar dele até mesmo um anel de fantasia. É ver-
dade que Edward gorgolejava e delirava com a moça
de uma maneira que ela jamais havia experimenta-
do. Mas isto, também, era quase um alívio. Acho

O BOM S OLDADO 137


que agradeceria se ele pudesse encontrar o amor de
sua vida. Isso lhe daria descanso.
E não podia haver ninguém melhor do que a
coitada da pequena senhora Maidan; era tão doente
que não podia ser levada para passeios caros... Era
a própria Leonora que pagava as despesas de Maisie
em Nauheim. Ela enviava o dinheiro para seu ma-
rido funcionário, pois Maisie não consentiria na-
quilo; mas o marido vivia atormentado pelo medo.
Pobre diabo!
Imagino que, ao deixar a Índia, Leonora esta-
va tão feliz quanto sempre havia sido antes em sua
vida. Edward estava completamente envolvido com
a sua moça — ele era quase com um pai com uma
criança, andando com mantas, remédios e tudo o
mais, de convés em convés. Ele se comportava, no
entanto, com grande circunspecção, de maneira que
nada transpirava para os outros passageiros. E Leo-
nora havia quase alcançado uma atitude maternal
em relação à senhora Maidan. Assim tudo parecia
correto — um casal rico, generoso, de pessoas de
bem, agindo como protetores da pobre coisa ago-
nizante de olhos negros. E essa atitude de Leonora

138 FORD MADOX FORD


ante a senhora Maidan contava sem dúvida para o
tapa no rosto. Ela estava castigando uma criança
mal-comportada que havia roubado chocolates num
momento inoportuno.
Certamente era um momento inoportuno. Pois,
ao abrir a carta chantageadora daquele camarada de
armas ofendido, todos os velhos terrores voltaram
a cair sobre Leonora. Seu caminho lhe parecia esten-
der-se mais uma vez ao infinito; imaginou que po-
deria haver centenas e centenas de coisas semelhan-
tes que Edward estava escondendo dela — que eles
poderiam precisar de mais hipotecas, mais penhores
de braceletes, mais e sempre mais horrores. Ela pas-
sara uma tarde penosa. Era um caso para divórcio,
naturalmente, e ela queria evitar a publicidade tan-
to quanto Edward, de maneira que viu necessidade
de continuar os pagamentos. E ela não se importou
tanto com isso. Podiam arrumar trezentos por ano.
Mas havia o horror de aparecerem mais obrigações
desse tipo.
Ela sequer conversara com Edward durante
todos esses anos — nada que fosse além de meras
combinações para tomar trens e contratar criados.

O BOM S OLDADO 139


Mas naquela tarde o deixou falar. E ele foi o mes-
mo de sempre. Era como abrir um livro depois de
uma década, para encontrar as mesmas palavras.
Ele tinha os mesmos motivos. Não lhe dissera nada
sobre o caso porque não queria sujar sua mente com
a idéia de que uma coisa dessas podia existir, de um
camarada de armas que podia ser um chantagista
— e quis proteger o crédito de sua antiga chama de
amor. A dama com certeza não estava ligada a seu
marido. E ele jurou, e jurou, e jurou que não havia
mais nada no mundo contra ele. Ela não acreditou.
Ele já fizera aquilo em demasia — e pela pri-
meira vez estava errada, pois ele até agiu de manei-
ra correta nessa questão. Foi direto ao posto dos
correios e passou várias horas organizando um te-
legrama em código para seu procurador, ordenan-
do que aquele cabeça-dura ameaçasse tirar de vez
o pagamento daquele sujeito que estava no seu en-
calço. Depois ele disse que era duro demais para
Leonora ser incomodada mais uma vez. Essa foi, de
fato, a última de suas conta-correntes excepcionais,
e ele estava pronto para assumir sua sorte pessoal
na Vara de Divórcio se o chantagista se tornasse

140 FORD MADOX FORD


incômodo. Enfrentaria tudo — a publicidade, os
jornais, todo o espetáculo sensacionalista.
No entanto, cometeu o erro de não dizer a
Leonora onde estava indo, pois, ao vê-lo dirigir-se
para seu quarto para elaborar o código para o tele-
grama, e ao ver, duas horas mais tarde, Maisie Mai-
dan sair do quarto dele, Leonora imaginou que as
duas horas que ela passara em angústia silenciosa,
Edward passara com Maisie Maidan em seus bra-
ços. Para ela isso foi demais.
O fato de Maisie estar no quarto de Edward
era o resultado, em parte da pobreza, em parte do
orgulho, em parte da mais completa inocência. Ela
não podia, em primeiro lugar, manter uma cama-
reira; evitava o máximo possível fazer encomendas
aos criados do hotel, já que cada centavo tinha im-
portância para ela, e temia ter de pagar altas gorje-
tas no fim de sua estadia. Edward lhe emprestara
uma de suas maletas fascinantes contendo quinze
tipos diferentes de tesouras, e, ao ver de sua janela,
que ele estava saindo para os correios, ela aprovei-
tou a oportunidade para devolver a maleta. Não
havia motivo para não fazê-lo, embora sentisse um

O BOM S OLDADO 141


certo remorso ao pensamento de que beijara os tra-
vesseiros da cama dele. Ela era assim.
Mas Leonora podia entender que, sem sombra
de dúvida, o incidente dava a Florence uma ascendên-
cia sobre ela. Deixava Florence perceber as coisas e
Florence era o único ser vivo que tinha alguma idéia
de que os Ashburnham não eram apenas boa gente
sem o rabo preso. Ela resolveu logo, não tanto dar a
Florence o privilégio de sua intimidade — que seria
o pagamento de uma espécie de chantagem —, mas
manter Florence sob observação até que pudesse de-
monstrar-lhe que ela não tinha nenhum ciúme da
pobre Maisie. Foi por isso que ela entrou na sala de
jantar de braços dados com minha esposa, foi por isso
que fez questão de se sentar à nossa mesa. Ela não
nos deixou, de fato, um minuto sequer naquela noi-
te, exceto para ir ao quarto da senhora Maidan e lhe
pedir desculpas e para lhe pedir, à vista de todos, que
deixasse Edward levá-la aos jardins naquela noite.
Ela própria disse, quando a senhora Maidan veio um
tanto quanto melancolicamente até a sala de espera,
onde estávamos sentados: “Agora, Edward levante-
se e leve Maisie ao cassino. Quero que a senhora Do-

142 FORD MADOX FORD


well me conte sobre as famílias de Connecticut que
vieram de Fordingbridge”. Pois tinha vindo à tona
que Florence descendia de uma linhagem que fora
proprietária de Branshaw Teleragh dois séculos an-
tes da chegada dos Ashburnham. Ela ficou sentada
comigo no hall, depois que Florence tinha ido para
a cama, para que eu testemunhasse sua alegre recep-
ção do par. Ela podia representar.
E isso me deixa fixar exatamente o dia de nossa
ida à cidade de M. Pois foi no mesmo dia em que a
pobre senhora Maidan morreu. Nós a encontramos
morta quando voltamos — foi horrível, você verá
quando entender o que isso tudo significa...
Seja como for, o tamanho de meu alívio quan-
do Leonora disse que era uma católica irlandesa lhe
dá a medida de minha afeição por esse casal. Era
uma afeição tão intensa que até hoje não posso pen-
sar em Edward sem suspirar. Não acredito que pu-
desse continuar mais na companhia deles. Eu esta-
va ficando cansado demais. E acredito efetivamen-
te, também, que, se minha suspeita de que Leono-
ra estivesse com ciúmes de Florence fosse a razão
que ela desse para sua explosão, eu me teria me vol-

O BOM S OLDADO 143


tado contra Florence com a mais louca das raivas.
O ciúme teria sido incurável. Mas as zombarias tolas
de Florence sobre os irlandeses e os católicos pode-
riam ser desculpadas sem mais dramas. E foi o que
fiz em dois minutos ou quase.
Ela me olhou por muito tempo um tanto fixa
e estranhamente enquanto eu o fazia. E por fim con-
segui dizer:
— Aceite a situação. Confesso que não gosto
de sua religião. Mas gosto de você intensamente.
Não me importo de dizer que nunca tive alguém a
quem me afeiçoasse tanto e não acredito que nin-
guém tenha se afeiçoado tanto a mim, como creio
que você se afeiçoou.
— Oh, também gosto muito de você — ela
disse. — Gosto o suficiente para dizer que queria
que todo homem fosse como você. Mas há outros
que devem ser levados em conta.
Ela estava pensando, de fato, na pobre Maisie.
Arrancou um pedaço de parietária do muro alto à
nossa frente. Esfregou-a demoradamente por um
minuto entre o polegar e o indicador, depois a jo-
gou sobre a cimalha.

144 FORD MADOX FORD


— Oh, eu aceito a situação — ela disse por fim
— se você puder.

O BOM S OLDADO 145


VI.

Lembro-me de que ri por causa da frase “aceito


a situação”, que ela parecia repetir com uma gra-
vidade intensa demais. Eu disse para ela alguma
coisa do tipo:
— Não é tão sério assim. Quero dizer, devo
invocar a liberdade de um cidadão americano para
pensar o que quero sobre seus correligionários. E
suponho que Florence deve ter liberdade para pen-
sar o que quiser e para dizer o que a polidez lhe
permite dizer.
— Ela faria melhor — Leonora respondeu —
␣ em não dizer uma só palavra contra minha gente
ou minha fé.
Fiquei impressionado na época, porque havia
uma dureza incomum, quase ameaçadora em sua
voz. Era quase como se quisesse transmitir a Flo-
rence, através de mim, que ela iria atingir seriamente

146 FORD MADOX FORD


minha esposa, se Florence continuasse com algo que
parecia extremado. Sim, lembro-me de ter pensa-
do na época que era quase como se Leonora esti-
vesse dizendo, através de mim, para Florence:
— Você pode me ofender como quiser; você
pode tomar tudo que me pertence pessoalmente,
mas não tente dizer uma só coisa, em vista da si-
tuação que irá surgir, contra a fé que me faz ser o
capacho para seus pés.
Mas obviamente, tal como eu entendi, ela não
podia estar dizendo isso. Gente de bem, por mais
diferentes que sejam os seus credos, não ameaçam
uns ao outros. Assim, li as palavras de Leonora com
apenas este significado:
“Seria melhor se Florence não tivesse dito nada
contra meus correligionários, porque esse é um pon-
to ao qual sou sensível.”
Foi essa insinuação que, de maneira convenien-
te, transmiti a Florence quando, logo depois, ela e
Edward desceram da torre. E quero que você en-
tenda que, desde esse instante até depois que Ed-
ward, a moça e Florence estivessem todos mortos,
eu nunca tive o mais remoto vestígio, a mais leve

O BOM S OLDADO 147


sombra de suspeita de que algo estivesse errado,
como se diz. Durante cinco minutos, então, con-
siderei a possibilidade de que Leonora devia estar
com ciúmes; mas havia um outra centelha naquela
personalidade flamejante. Como é que eu poderia
captá-la?
Pois, nessa época, eu era apenas uma ama-seca
doente. E que chance tinha contra aqueles três jo-
gadores endurecidos, que estavam todos unidos para
esconder seus lances de mim? Que chance possível?
Eram três para um — e eles me faziam feliz. Por
Deus, eles me faziam tão feliz que duvido que até
mesmo o paraíso, que aplainaria todos os erros tem-
porais, poderia me dar uma igual. E o que pode-
riam ter feito de melhor ou o que poderiam ter fei-
to de pior? Não sei...
Suponho que, durante todo esse tempo, eu era
um marido enganado e que Leonora alcovitava para
Edward. Era a cruz que ela tinha de carregar du-
rante seu longo calvário de vida...
Você me pergunta como é se sentir um mari-
do enganado. Justos céus, não sei. Não se sente ab-
solutamente nada. Não é o Inferno, certamente não

148 FORD MADOX FORD


é de modo algum o Céu. De modo que suponho que
é o estágio intermediário. Como é que eles chamam?
Limbo. Não, não sinto nada em relação a isso. Eles
estão mortos; compareceram diante de seu Juiz que,
eu espero, derramará sobre eles a fonte de Sua com-
paixão. Não é minha tarefa pensar nisso. Minha
tarefa é dizer simplesmente, como diz a gente de
Leonora: “Requiem aeterna dona eis, Domine, et
lux perpetua luceat per eis. In memoriam aeterna
erit”45. Mas o que eram eles? Justos? Injustos? Só
Deus sabe! Acho que os dois eram apenas pobres
miseráveis, rastejando pela terra à sombra de uma
danação eterna. É muito terrível...
É quase demasiado terrível, a cena deste Juí-
zo, tal como aparece para mim às vezes, de noite.
É provavelmente a sugestão de algum quadro que
vi em algum lugar. Numa planície imensa, suspen-
sa no ar, parece-me ver três figuras, duas delas agar-
radas num abraço intenso e uma intoleravelmente

45 “Dê-lhes descanso eterno, Senhor, e que a luz perpé-


tua brilhe sobre eles. Na eterna memória fiquem os justos”.
Eis o trecho completo; como se pode ver, falta na citação a
última palavra: “justus”. (N. do T.)

O BOM S OLDADO 149


solitária. Minha cena do Juízo é em branco e pre-
to, uma gravura, talvez; só que não sei distinguir
uma gravura de uma reprodução fotográfica. E a
planície imensa é a mão de Deus, estendendo-se por
milhas e mais milhas, com grandes espaços por cima
e por baixo dela. Eles estão diante do olhar de Deus,
e é Florence quem está sozinha...
E, sabe, só de pensar nessa solidão intensa, sinto
um desejo avassalador de correr em direção a ela e
confortá-la. Você não pode, veja bem, ter agido como
um enfermeiro para uma pessoa durante doze anos
sem desejar continuar a confortá-la, ainda que a odeie
com o ódio da víbora, mesmo na palma de Deus.
Mas, à noite, com essa visão do Juízo diante de mim,
sei que me controlo... Pois odeio Florence. Odeio
Florence com tanto ódio que não a pouparia de uma
eternidade de solidão. Ela não precisava ter feito o
que fez. Ela era uma americana da Nova Inglaterra.
Não tinha as paixões ardentes desses europeus. Ela
apanhou aquele pobre imbecil do Edward — e eu
rogo a Deus que ele esteja realmente em paz, forte-
mente envolvido nos braços daquela pobre, pobre
moça! E, sem dúvida, Maisie Maidan irá encontrar

150 FORD MADOX FORD


de novo seu jovem marido, e Leonora irá arder, cla-
ra e serena, uma aurora boreal e um dos arcanjos de
Deus. E eu... Bem, talvez, eles me dêem um elevador
para conduzir... Mas Florence...
Ela não devia ter feito o que fez. Ela não de-
via ter feito o que fez. Foi um jogo baixo demais.
Apanhou o pobre Edward por pura vaidade; intro-
meteu-se entre ele e Leonora com o mero espírito
imbecil de um inspetor de quarteirão. Você sabe que,
enquanto ela era amante de Edward, estava perpe-
tuamente tentando reuni-lo à sua esposa? Ela fica-
va tagarelando com Leonora sobre o perdão — tra-
tando o assunto do brilhante ponto de vista ameri-
cano. E Leonora a tratava como a puta que ela era.
Uma vez ela disse para Florence de manhã cedo:
— Você está saindo diretamente da cama dele
para me dizer que esse deve ser o meu lugar. Sei dis-
so, obrigado.
Mas nem isso podia deter Florence. Ela pros-
seguia dizendo que sua ambição era fazer deste mun-
do um lugar mais brilhante durante a passagem de
sua breve vida, e como ela deixaria Edward agra-
decidamente, a quem pensava ter dado uma corre-

O BOM S OLDADO 151


ta mentalidade, se Leonora desse uma chance a ele.
Ele precisava, ela dizia, de ternura acima de tudo.
E Leonora respondia —; Leonora, pois ela to-
lerou esse ultraje durante anos — Leonora, como
eu vejo, responderia dessa maneira:
— Sim, você desistiria dele. E continuariam a
escrever um para o outro em segredo, a cometer adul-
tério em quartos alugados. Conheço vocês dois, fi-
que sabendo disso. Não. Prefiro a situação como está.
Parte do tempo Florence punha-se a ignorar
os comentários de Leonora. Achava que não eram
de uma verdadeira dama. A outra parte do tempo
tentava persuadir Leonora de que seu amor por Ed-
ward era apenas espiritual — por causa de seu co-
ração. Uma vez ela disse:
— Se você acredita nisso a propósito de Maisie
Maidan, como você mesma diz, por que não pode
acreditar nisso a meu respeito?
Leonora, eu acho, estava, nessa ocasião, pen-
teando os cabelos em frente ao espelho de seu quarto
de dormir. E ela olhou diretamente para Florence,
a quem geralmente não dignava lançar um olhar;
olhou-a fria e calmamente e disse:

152 FORD MADOX FORD


— Nunca mais ouse mencionar o nome da se-
nhora Maidan. Você a matou. Você e eu a mata-
mos juntas. Sou tão canalha quanto você. Não gosto
que me lembrem disso.
Florence respondeu de imediato com uma con-
versa fiada sobre como é que ela poderia ter ferido
uma pessoa que mal conhecia, uma pessoa que, com
as melhores intenções, em seu esforço para deixar
o mundo um pouco mais brilhante, ela tentara sal-
var de Edward. Era como via as coisas. Ela de fato
pensava que... Então Leonora disse, pacientemente:
— Muito bem, então digamos que eu a matei
e que esse é um assunto doloroso. Ninguém gosta
de pensar que matou alguém. Claro que não. Eu
jamais devia tê-la trazido da Índia.
E era exatamente dessa maneira que Leonora
via a situação. Dito assim parece um pouco cru, mas
Leonora sempre teve inclinação pelos pronuncia-
mentos crus.
O que aconteceu no dia de nossa excursão até
a antiga cidade de M foi o seguinte:
Leonora, que estava então cheia de piedade e
contrição pela pobre moça, ao retornar a nosso hotel

O BOM S OLDADO 153


fora imediatamente para o quarto da senhora Mai-
dan. Queria mimá-la um pouco. E a princípio ape-
nas percebeu, sobre a mesa redonda coberta com
um veludo vermelho, uma carta endereçada a ela.
Dizia mais ou menos assim:
“Oh, senhora Ashburnham, como pôde fazer
isto? Confiei tanto na senhora. A senhora nunca
conversava comigo sobre eu e Edward, mas eu con-
fiava na senhora. Como pôde me comprar de meu
marido? Soube que foi o que fez ainda há pouco —
no hall onde eles estavam falando sobre isso, Ed-
ward e a senhora americana. A senhora pagou para
que eu viesse ficar aqui. Oh, como pôde? Como
pôde? Eu vou voltar imediatamente para Bunny...”
Bunny era o marido da senhora Maidan.
E Leonora disse que, enquanto lia a carta, ela
teve, sem olhar à sua volta, a sensação de que o
quarto do hotel fora esvaziado, de que não havia
papéis sobre a mesa, nem roupas nos cabides, e de
que havia um silêncio exagerado — um silêncio, ela
disse, como se houvesse alguma coisa no quarto que
absorvesse os sons. Ela não lutou contra essa sen-
sação, enquanto lia o pós-escrito da carta.

154 FORD MADOX FORD


“Não sabia que a senhora me queria como
adúltera”, começava o pós-escrito. A pobre moça
mal sabia escrever. “Certamente não foi justo de sua
parte e eu nunca quis me tornar isto. E eu ouvi Ed-
ward me chamar de pobre ratinho querido para a
senhora americana. Ele sempre me chamava de ra-
tinho na intimidade, e eu não me importava. Mas,
se ele falava assim de mim para ela, é porque, eu
acho, ele não gosta mais de mim. Oh, senhora Ash-
burnham a senhora conhece o mundo e eu não co-
nheço nada. Pensei que estaria certo se a senhora
também achava, e pensei que a senhora não teria
me trazido se não achasse também. A senhora não
devia ter feito isso, e saímos do mesmo convento...”
Leonora disse que gritou quando leu isso.
E então viu que as caixas de Maisie estavam
todas empacotadas e começou a procurar a senho-
ra Maidan — por todo o hotel. O gerente disse que
a senhora Maidan pagara a conta e fora até a esta-
ção para pedir que o Reiserverkehrsbureau46 pre-
parasse o roteiro para seu retorno imediato a Chi-

46 Escritório de turismo. (N. do T.)

O BOM S OLDADO 155


tral. Ele tinha a impressão de que a vira voltar, mas
não tinha certeza. Ninguém naquele hotel enorme
dera a mínima para a moça. E ela, andando solitá-
ria pelo hall, havia se sentado sem dúvida ao lado
do biombo atrás do qual estavam Edward e Flo-
rence. Eu nunca soube, nem antes nem depois, o que
aconteceu entre o precioso casal. Imagino que Flo-
rence começara a seduzir o pobre Edward dirigin-
do-lhe algumas palavras de advertência amistosa
sobre a devastação que ele podia estar causando no
coração da moça. Ela podia muito bem ter come-
çado assim. Edward teria lhe assegurado sentimen-
talmente que não era nada importante; que Maisie
era apenas um pobre ratinho cuja estadia em Nau-
heim sua esposa estava pagando. Isso fora o sufi-
ciente para a armadilha.
Pois a armadilha fora armada com eficiência.
Leonora, com um pânico crescente e uma contrição
enorme em seu coração, foi a todas as salas públicas
do hotel — a sala de jantar, o saguão, o Schreib-
zimmer47, o jardim de inverno. Deus sabe para que

47 Escritório. (N. do T.)

156 FORD MADOX FORD


é que eles queriam um jardim de inverno num ho-
tel que só abre de maio até outubro. Mas havia um.
E então Leonora correu — sim, subiu as escadas
correndo — para ver se Maisie não havia voltado
para o quarto. Estava determinada a tirar imedia-
tamente a moça daquele lugar abominável. Para ela,
tudo aquilo parecia execrável. Não quero dizer que
não estivesse tranqüila em relação àquilo. Leonora
sempre foi Leonora. Mas a fria justiça da coisa re-
queria que ela representasse o papel de mãe daque-
la moça que viera do mesmo convento. Ela pensou
no que teria de fazer. Abandonaria Edward a Flo-
rence e a mim — e dedicaria todo seu tempo a pro-
ver aquela criança com uma atmosfera de amor, até
que pudesse voltar para seu pobre jovem marido.
Naturalmente era tarde demais.
Ela não se preocupara em dar uma olhada no
quarto de Maisie no princípio. Agora, logo após ter
entrado, percebeu, estirados para fora da cama, um
pequeno par de pés com sapatos de salto alto. Maisie
morrera por causa do esforço ao fechar uma valise
grande. Morrera tão grotescamente que seu pequeno
corpo caíra para a frente, dentro da mala, e esta se

O BOM S OLDADO 157


fechara sobre ela como as mandíbulas de um jaca-
ré gigantesco. A chave estava nas mãos dela. Seu
cabelo preto, como o de uma japonesa, caíra e co-
bria-lhe o corpo e o rosto.
Leonora levantou-a — ela era um peso-pena
— e deitou-a na cama com o cabelo caindo sobre
ela. Estava sorrindo, como se tivesse feito um pon-
to num jogo de hóquei. Você pode ver que não co-
meteu suicídio. Seu coração apenas parara. Eu a vi,
com as marcas compridas no rosto, com o sorriso
nos lábios, com as flores em cima dela. O talo de
um lírio branco ficou em sua mão, de modo que o
ramo de flores lhe caía sobre o ombro. Ela parecia
uma noiva à luz das velas mortuárias que a rodea-
vam, e as toucas brancas de duas freiras que se ajoe-
lharam a seus pés com os rostos escondidos pode-
riam ser dois cisnes que iriam levá-la para a terra
dos doces beijos, ou seja lá o que for. Leonora mos-
trou-a a mim. Ela não deixaria que os outros a vis-
sem. Ela queria, entenda, poupar os sentimentos do
pobre Edward. Ele não iria suportar a visão de um
cadáver. E, já que não lhe comunicou que Maisie
escrevera para ela, ele imaginou que a morte tinha

158 FORD MADOX FORD


sido a coisa mais natural do mundo. Ele logo se
restabeleceu. De fato, foi o único caso dele a res-
peito do qual nunca sentiu muito remorso.

O BOM S OLDADO 159


160 FORD MADOX FORD
SEGUNDA PARTE

O BOM S OLDADO 161


162 FORD MADOX FORD
I.

A morte da senhora Maidan ocorreu a 4 de


agosto de 1904. E, depois, nada aconteceu até 4 de
agosto de 1913. Há essa coincidência curiosa de
datas, mas não sei se é uma desses expedientes si-
nistros, meio-cômicos e também impiedosos da par-
te de uma Providência cruel a que chamamos coin-
cidência. Porque pode ter sido muito bem a mente
supersticiosa de Florence que a forçou a certos atos,
como se tivesse sido hipnotizada. No entanto, é
certo que 4 de agosto sempre se mostrou um data
significativa para ela. Só para começar, ela nasceu
num 4 de agosto. Depois, nesta data, no ano de
1899, ela partiu com seu tio para uma viagem ao
redor do mundo em companhia de um rapaz cha-
mado Jimmy. Mas isso não era uma mera coinci-
dência. Seu velho tio simpático, com o coração su-
postamente avariado, estava, à sua maneira delica-

O BOM S OLDADO 163


da, oferecendo a ela, um presente de aniversário. Em
seguida, a 4 de agosto de 1900, ela entregou-se a
uma ação que com certeza coloriu toda sua vida —
assim como a minha. Ela não teve sorte. Provavel-
mente estava dando a si mesma um presente de ani-
versário naquela manhã...
No dia 4 de agosto de 1901, casou-se comigo
e viajou para a Europa em meio a uma grande tem-
pestade — a tempestade que afetou seu coração. E
sem dúvida, mais uma vez, estava dando a si mes-
ma um presente de aniversário — o presente de ani-
versário de minha miserável vida. Ocorre-me que
nunca disse nada a você sobre meu casamento. Foi
assim: já lhe disse, acho, que encontrei Florence pela
primeira vez em Stuyvesants, na rua Catorze. E,
desse momento em diante, decidi com toda a obs-
tinação de uma natureza possivelmente fraca, se não
fazê-la minha, pelo menos casar-me com ela. Eu não
tinha qualquer ocupação — não tinha negócios.
Simplesmente me instalei ali por Stamford, num
hotel desprezível, e passava meus dias na casa ou
na varanda das senhoritas Hurlbird. As senhoritas
Hurlbird de maneira estranha, obstinada, não gos-

164 FORD MADOX FORD


tavam de minha presença. Mas elas se continham
devido aos costumes nacionais nessas ocasiões. Flo-
rence tinha sua própria sala de estar. Podia convi-
dar quem ela quisesse, e assim eu simplesmente en-
trava naquele apartamento. Eu era tão tímido quan-
to você possa imaginar, mas neste caso eu agia como
uma galinha que está determinada a atravessar a es-
trada na frente de um automóvel. Eu entrava no
pequeno, antiquado e belo apartamento, tirava meu
chapéu, e me sentava.
Florence, naturalmente, tinha outros camara-
das também — robustos jovens da Nova Inglater-
ra, que trabalhavam durante o dia em Nova York
e passavam apenas as noites em sua cidade natal.
E, à noite, eles iam até o apartamento de Florence
com quase tanta determinação quanto a que eu mos-
trava. E vejo-me obrigado a dizer que eram recebi-
dos com tanto desprazer quanto eu — por parte das
senhoritas Hurlbird...
Eram umas velhas curiosas, essas duas criatu-
ras. Era quase como se fossem membros de uma
família antiga sob alguma maldição — eram mui-
to gentis, educadas, e também suspiravam. Às ve-

O BOM S OLDADO 165


zes eu via lágrimas nos olhos delas. Não sei se mi-
nha corte a Florence avançou muito no início. Tal-
vez fosse porque ocorresse quase que inteiramente
durante o dia, em tardes quentes, quando as nuvens
de poeira pendem como bruma, tão altas quanto
os cimos dos elmos. A noite, creio, é o momento
adequado para os suaves feitos do amor, não uma
tarde de julho em Connecticut, quando qualquer
tipo de proximidade é quase um pensamento apa-
vorante. Mas, se eu nunca chegara a beijar Flo-
rence, ela me deixou descobrir com muita facilida-
de, durante duas semanas, seus desejos. E eu po-
dia suprir esses desejos...
Ela queria se casar com um cavalheiro ocio-
so; queria um lar europeu. Ela queria que seu ma-
rido tivesse um sotaque inglês, uma renda de cin-
qüenta mil dólares por ano de suas propriedade e
sem nenhuma ambição de aumentar essa renda. E
— ela sugeriu de leve — não queria muita paixão
física na relação. Os americanos, você sabe, podem
encarar esse tipo de união sem pestanejar.
Ela dava essa informação em fluxos de con-
versa brilhante — salpicava-a um pouco com co-

166 FORD MADOX FORD


mentários sobre um panorama de Rialto, em Ve-
neza, e, enquanto descrevia com brilhantismo o Cas-
telo Balmoral, dizia que seu marido ideal seria al-
guém que pudesse fazê-la ser recebida na Corte in-
glesa. Ela tinha passado, ao que parece, dois meses
na Grã-Bretanha — sete semanas indo de Strattford
para Straphpeffer, uma delas como pensionista de
uma família inglesa tradicional perto de Ledbury,
uma família empobrecida, mas que ainda mantinha
sua posição, chamada Bagshawe. Eles deviam pas-
sar mais dois meses naquele recanto tranqüilo, mas
acontecimentos inesperados, aparentemente nos ne-
gócios de seu tio, fizeram com que voltassem apres-
sadamente para Stamford. O jovem chamado Jimmy
permanecera na Europa para aperfeiçoar seu conhe-
cimento daquele continente. Foi o que fez; depois
ele nos foi muito útil.
Mas o ponto que ficou claro — sobre o qual
não havia nenhum equívoco — era que Florence es-
tava fria e tranqüilamente determinada a não levar
em conta nenhum homem que não pudesse lhe dar
uma residência européia. Sua olhadela na vida do-
méstica inglesa provocara isso. Ela queria, no seu

O BOM S OLDADO 167


casamento, passar um ano em Paris e então fazer
seu marido comprar alguma propriedade na vizi-
nhança de Fordinbridge, de onde os Hurlbird ti-
nham vindo no ano de 1688. Baseada nisso, ela iria
ocupar seu lugar nas fileiras da sociedade rural in-
glesa. Isso estava fixado.
Eu costumava me sentir poderosamente eleva-
do quando considerava tais detalhes, pois não po-
dia imaginar que entre seus conhecidos em Stamford
houvesse algum sujeito que pudesse pagar a conta.
A maior parte deles não era tão rica quanto eu, e
os que eram não eram do tipo que iria desistir do
fascínio de Wall Street ainda que pela prolongada
companhia de Florence. Mas nada aconteceu de fato
durante o mês de julho. No dia primeiro de agos-
to, Florence aparentemente disse a suas tias que ela
pretendia casar-se comigo.
Não me dissera nada, mas não havia dúvida
quanto às tias, pois, naquela tarde, a senhorita Flo-
rence Hurlbird Senior, me deteve no caminho até a
sala de estar de Florence e levou-me, agitadamen-
te, à sala de visitas. Foi uma conversa singular, na-
quela sala de estilo colonial, com a mobília de per-

168 FORD MADOX FORD


nas compridas, as silhuetas, as miniaturas, o retra-
to do general Braddock48 e o cheiro de lavanda.
Veja, as duas pobres solteironas estavam embara-
çadas — não conseguiam dizer coisa alguma de ma-
neira direta. Elas só faltavam torcer as mãos e me
perguntavam se eu levara em conta algo como a
diferença de temperamentos. Eu lhe asseguro que
elas pareciam quase afetuosas, preocupadas comi-
go, como se Florence fosse brilhante demais para
minhas virtudes sérias e sólidas.
Pois haviam descoberto em mim virtudes sé-
rias e sólidas. Isso deve ter sido porque certa vez eu
fiz a observação de que preferia o general Braddock
ao general Washington. Pois os Hurlbird tinham se
alinhado ao lado perdedor na Guerra da Indepen-
dência, tinham empobrecido seriamente e haviam
sido eficientemente oprimidos por esse motivo. As
senhoritas Hurlbird jamais poderiam esquecê-lo.
No entanto, elas estremeciam diante da visão
de uma carreira européia para mim e Florence. Cada

48 Edward Braddock (1695-1755), governador inglês na

América do Norte. (N. do T.)

O BOM S OLDADO 169


uma delas pôs-se realmente a lamentar quando ouvi-
ram aquilo que eu esperava dar à sua sobrinha. Isso
pode ter sido em parte porque elas viam a Europa
como um poço de iniqüidade, onde prevaleciam es-
tranhas complacências. Achavam a pátria-mãe tão
erastiana49 quanto qualquer uma outra. E levaram
seus protestos a um ponto extraordinário, pois elas...
Elas chegaram quase a dizer que o casamento
era um sacramento; mas nem a senhorita Florence
nem a senhorita Emily conseguiram pronunciar essa
palavra. E quase chegaram a dizer que a vida ante-
rior de Florence fora caracterizada por flertes — ou
algo parecido.
Sei que encerrei a conversa, dizendo:
— Não me importo. Ainda que Florence tenha
roubado um banco, vou casar-me com ela e levá-la
para a Europa.
E, diante disso, a senhorita Emily deu um ge-
mido e desmaiou. Mas a senhorita Florence, ape-
sar do estado de sua irmã, atirou-se a meu pescoço
e gritou:

49 Ver nota 32, p. 99. (N. do T.)

170 FORD MADOX FORD


— Não faça isto, John. Não faça isto. Você é
um jovem bom — e acrescentou, enquanto eu saía
da sala para pedir a Florence que viesse ajudar sua
tia:
— Nós devíamos lhe dizer mais. Mas ela é a
filha de nossa querida irmã.
Florence, lembro-me, recebeu-me com um ros-
to pálido e a exclamação:
— O que foi que essas raposas velhas anda-
ram dizendo contra mim? — Mas assegurei a ela
que não tinham dito nada e fiz com que se apres-
sasse até a sala de suas parentes estranhamente afli-
tas. Eu de fato esquecera completamente essa ex-
clamação de Florence até este momento. Ela me
tratava tão bem — com tanto tato — que, mesmo
que tenha pensado nisso, depois atribuí tudo à sua
profunda afeição por mim.
E naquela noite, quando eu fui buscá-la para um
passeio de carro, ela tinha desaparecido. Não perdi
tempo. Fui até Nova York e comprei leitos para o
“Pocahontas”, que ia partir no quarto dia do mês, e
então, ao voltar para Stamford, descobri, durante o
dia, que Florence fora levada para a estação Rye. E

O BOM S OLDADO 171


aí verifiquei que ela pegara o trem para Waterbury.
Naturalmente, fora para a casa de seu tio. O velho
me recebeu com uma fisionomia fria e dura. Eu não
devia ver Florence; ela estava doente, estava tranca-
da em seu quarto. E, de alguma coisa que ele insinuou
— uma estranha frase bíblica que já esqueci —, eu
inferi que toda a família simplesmente não tinha in-
tenção de que ela viesse a casar-se algum dia.
Fui imediatamente atrás do pastor mais pró-
ximo e de uma escada — você não faz idéia de como
essas questões eram resolvidas primitivamente na-
quela época nos Estados Unidos. Atrevo-me a dizer
que ainda deve ser assim. E a uma hora da manhã
do dia 4 de agosto eu estava no quarto de Floren-
ce. Estava tão obstinado em meu propósito que nun-
ca me ocorreu que houvesse algo impróprio em es-
tar a uma hora da manhã no quarto de Florence.
Eu só queria acordá-la. Mas ela não estava dor-
mindo. Ela me esperava, e seus parentes haviam-na
abandonado. Recebeu-me com um abraço caloro-
so... Bem, foi a primeira vez que fui abraçado por
uma mulher — e foi a última em que o abraço de
uma mulher teve algum calor para mim...

172 FORD MADOX FORD


Suponho que o que aconteceu depois, foi mi-
nha culpa. De qualquer modo, estava com tanta
pressa para realizar o casamento, e tinha tanto medo
de que os parentes dela me encontrassem ali, que
devo ter recebido seus avanços com uma certa dose
de descuido. Saí do quarto e desci a escada em meio
minuto. Ela me deixou esperando ali em baixo du-
rante um tempo incalculável — já eram certamen-
te três da manhã quando fomos bater à porta do
pastor. E acho que essa espera foi o único sinal que
Florence jamais mostrou de ter uma consciência no
que me diz respeito, a menos que se atirar nos meus
braços por alguns momentos também fosse um si-
nal de consciência. Imagino que, se eu tivesse mos-
trado calor naquele momento, ela teria agido como
uma esposa comigo, ou teria me rejeitado. Mas,
como agi como um cavalheiro da Filadélfia, ela me
destinou, suponho, a desempenhar o papel de uma
ama-seca masculina. Talvez tenha pensado que eu
não me importasse.
Depois disso, segundo inferi, ela não teve mais
nenhum remorso. Só se mostrou ansiosa em levar
adiante seus planos. Pois, um pouco antes de des-

O BOM S OLDADO 173


cer pela escada, chamou-me do alto daquele gro-
tesco implemento em que eu subira e descera como
um boneco. Eu estava perfeitamente recuperado. Ela
me disse com uma certa fúria:
— Está mesmo arranjado que partiremos às
quatro desta tarde? Você não está mentindo a res-
peito dos leitos comprados?
Compreendi que ela estava naturalmente an-
siosa em se afastar da vizinhança de seus familia-
res aparentemente insanos, de maneira que de ime-
diato a desculpei por ter pensado que eu seria ca-
paz de mentir sobre um assunto como aquele. Dei-
xei claro para ela, portanto, que era minha firme
determinação viajar no “Pocahontas”. Então ela
disse — era uma manhã enluarada, e ela estava sus-
surrando a meu ouvido enquanto eu segurava a es-
cada. As colinas que cercam Waterbury mostravam-
se extraordinariamente tranqüilas em torno da vila.
Ela disse, quase com frieza:
— Eu queria saber para fazer minhas malas.
— E acrescentou: — Posso estar doente, você sabe.
Acho que tenho um coração como do tio Hurlbird.
Acontece nas famílias.

174 FORD MADOX FORD


Eu sussurrei que o “Pocahontas” era um na-
vio extraordinariamente seguro...
Agora me pergunto o que teria se passado na
mente de Florence durante as duas horas em que
me fez esperar ao pé da escada. Não daria pouco
para saber. Até então, imagino que ela não tinha
nenhum plano estabelecido em sua mente. Ela cer-
tamente não mencionara nada sobre seu coração
até aquele momento. Talvez o fato de ter revisto o
seu tio Hurlbird lhe tenha fornecido a idéia. Cer-
tamente sua tia Emily, que viera com ela até Wa-
terbury, tenha impingido a ela, depois de horas e
mais horas, a idéia de que qualquer discussão mais
forte mataria o velho cavalheiro. Isso reavivou em
sua mente todas as salvaguardas contra a excita-
ção com as quais o pobre tolo velho cavalheiro fora
cercado durante sua viagem ao redor do mundo.
Talvez isso tenha entrado em sua cabeça. Ainda
assim, acredito que havia algum remorso por mi-
nha causa, também. Leonora me disse que Florence
lhe contara que sim — pois Leonora sabia tudo
sobre isso, e uma vez chegou a ponto de pergun-
tar a ela como podia fazer algo tão infame. Ela se

O BOM S OLDADO 175


desculpou com o pretexto de uma paixão avassa-
ladora. Bem, eu sempre digo que uma paixão avas-
saladora é uma boa desculpa para os sentimentos.
Você nada pode contra elas. E é uma boa descul-
pa para ações diretas — ela poderia ter fugido com
o sujeito, antes ou depois de ter se casado comigo.
E, se eles não tivessem dinheiro bastante para pros-
seguir, poderiam ter cortado seus pescoços ou se
encostado na família dela, embora, naturalmente,
Florence ambicionasse tanto que seria muito ruim
para ela ter como marido um caixeiro num arma-
zém, que era o que o velho Hurlbird faria daquele
sujeito. Ele o odiava. Não, não acho que haja muita
desculpa para Florence.
Só Deus sabe. Ela era uma tola assustada, e era
fantástica; suponho que, naquela época, ela de fato
se importava com aquele imbecil. Ele certamente
não ligava para ela. Pobre coitada... De qualquer
modo, depois que assegurei-lhe que o “Pocahontas”
era um navio seguro, ela disse apenas:
— Você terá de cuidar de mim, de certa ma-
neira — como cuidam do tio Hurlbird. Eu lhe direi
como isso deve ser feito. Então andou pelo peito-

176 FORD MADOX FORD


ril, como se estivesse andando sobre a murada de
um barco. Suponho que tenha incendiado o dela!
Eu tive, sem dúvida, indicações demais. Quan-
do voltamos à mansão Hurlbird às oito horas, os
Hurlbird estavam completamente exaustos. Floren-
ce tinha um ar duro, triunfante. Nós nos casamos
às quatro da manhã e tínhamos ficado sentados no
bosque perto da cidade até aquela hora, ouvindo
um tordo-dos-remédios imitar um gato. Por isso
penso que Florence não achou que se casar comigo
tenha sido um processo muito estimulante. Eu não
encontrara nada mais inspirado para dizer, além de
que estava muito feliz, com variações. Acho que
estava confuso demais. Bem, os Hurlbird também
estavam confusos demais para dizer qualquer coi-
sa. Tomamos o café da manhã juntos, e depois Flo-
rence foi arrumar suas malas e coisas. O velho Hurl-
bird aproveitou a oportunidade para me fazer uma
palestra completa, no estilo de uma oração ameri-
cana, em relação aos perigos que espreitavam uma
jovem garota americana na selva européia. Disse que
Paris estava cheia de serpentes na relva, das quais
ele tinha uma amarga experiência. Concluiu, como

O BOM S OLDADO 177


sempre fazem os pobres, queridos coitados, com a
aspiração de que todas as mulheres americanas se
tornariam assexuadas algum dia — embora elas não
vissem as coisas dessa maneira...
Bem, chegamos ao navio por volta de uma e
meia — e havia uma tempestade. Isso ajudou um
bocado a Florence. Pois ainda não estávamos a dez
minutos de Sandy Hook quando Florence desceu
para sua cabine e passou mal do coração. Uma
camareira agitada veio correndo até mim, e eu desci
correndo. Obtive as indicações sobre como me
comportar com minha esposa. A maior parte veio
dela, embora tenha sido o médico de bordo quem
tenha sugerido discretamente que eu faria melhor
em refrear minhas manifestações de afeto. Eu es-
tava preparado.
Naturalmente, estava cheio de remorso. Ocor-
reu-me que o coração dela fosse o motivo do mis-
terioso desejo dos Hurlbird em ficar com sua sol-
teira mais jovem e mais querida. Eles eram refi-
nados demais, naturalmente, para expor o motivo
em palavras. Eram da velha estirpe da Nova Ingla-
terra. Não desejavam ter de sugerir que um mari-

178 FORD MADOX FORD


do não devesse beijar a nuca de sua esposa. Não
queriam sugerir também que poderia fazê-lo. Eu
me pergunto, no entanto, como Florence conseguiu
que o médico entrasse na conspiração — todos
aqueles médicos.
Seu coração chiava um pouco, decerto — ela
tinha a mesma conformação dos pulmões que seu
tio Hurlbird. E, na companhia dele, deve ter ouvi-
do um bocado das conversas dos especialistas em
coração. Seja como for, ela e eles me levaram mui-
to bem na conversa — e Jimmy, naturalmente, aque-
le rapaz enfadonho: o que será que ela via nele? Ele
era lúgubre, silencioso, preguiçoso. Não tinha ne-
nhum talento como pintor. Ele nos encontrou no
Havre e manobrou para tornar-se útil nos dois anos
seguintes, durante os quais morou no nosso apar-
tamento em Paris, estivéssemos lá ou não. Estuda-
va pintura no ateliê de Julien ou em um outro lu-
gar qualquer...
Esse camarada tinha sempre as mãos nos bol-
sos de seus odiosos paletós americanos, com os om-
bros quadrados, de corte largo, e seus olhos escu-
ros estavam sempre carregados de expressões agou-

O BOM S OLDADO 179


rentas. Além do mais, era gordo. Ora, eu era de
longe um homem muito melhor...
E atrevo-me a dizer que Florence me teria dado
mais. Ela mostrou sinais disso. Acho que, talvez, o
sorriso enigmático que ela costumava dar ao olhar
para trás, por cima dos ombros, quando ia para o
balneário, era uma espécie de convite. Já mencio-
nei isso. Era como se ela estivesse dizendo: “Vou
para lá. Vou ficar despida e branca e limpa — e você
é um homem...”. Talvez fosse isso...
Não, ela não podia gostar daquele camarada
por muito tempo. Ele parecia uma massa amarela.
Sei que ele havia sido esbelto e moreno e muito gracio-
so na época da primeira desgraça dela. Mas, vadiando
em Paris, com o dinheiro dela e a mesada do velho
Hurlbird para ficar longe dos Estados Unidos, ele
acabou ficando com o estômago de um homem de
quarenta anos e com uma irritação dispéptica.
Deus, como eles me enganaram! Aqueles dois
elaboraram as regras entre eles. Já lhe disse algo so-
bre eles — como eu tive de tolerar conversas, du-
rante todos aqueles onze anos, sobre tópicos como
o amor, a pobreza, o crime, e assim por diante. Mas,

180 FORD MADOX FORD


revendo o que eu escrevi, vejo que sem intenção
desorientei você quando disse que Florence nunca
estava longe de minha vista. No entanto, essa era a
impressão que eu tinha de fato até agora. Quando
me ponho a pensar nisso, vejo que ela estava longe
de minha vista durante a maior parte do tempo.
Entenda, aquele camarada me impingira que
o que Florence precisava acima de tudo era de sono
e privacidade. Eu não deveria nunca entrar no quar-
to dela sem bater, ou então o coração dela podia
desmanchar-se de modo fatal. Ele dizia tais coisas
com seu grasnido lúgubre e seus olhos pretos como
os de um corvo, de maneira que eu ficava a ver a
pobre Florence morrendo umas dez vezes por dia
— um cadáver pequeno, frágil, pálido. Ora, logo
passei a considerar o ato de entrar no quarto dela
sem sua permissão, algo como roubar uma igreja.
Eu teria cometido logo esse crime. Com certeza te-
ria feito isso se soubesse que o estado de seu cora-
ção exigisse o sacrilégio. Assim, às dez horas da
noite, a porta de Florence se fechava, pois ela obe-
decia docilmente, ainda que relutante, as recomen-
dações daquele camarada; e ela me daria boa-noite

O BOM S OLDADO 181


como se fosse uma dama italiana dos cinquecento
dando boa-noite a seu amante. E às dez horas da
manhã seguinte lá vinha ela saindo de seu quarto,
tão fresca quanto Vênus se erguendo de um de seus
leitos mencionados nas lendas gregas.
A porta do quarto dela ficava fechada porque
que ela se sentia nervosa por causa de ladrões; mas
estava combinado que um dispositivo elétrico num
cordão ficaria ligado a seu pequeno pulso. Ela ti-
nha apenas que pressionar o bulbo para acordar a
casa. E eu fora provido com um machado — um
machado! —, ó grandes deuses, com o qual devia
arrebentar sua porta no caso em que ela não res-
pondesse às minhas batidas, depois que eu tivesse
batido bem alto várias vezes. Fora tudo muito bem
tramado, como você vê.
O que não fora tão bem tramado foram as
conseqüências resultantes — o fato de ficarmos pre-
sos à Europa. Pois este jovem me impingiu tão bem
que Florence morreria se atravessasse o canal — ele
inculcou isso de maneira tão completa em minha
mente que, quando mais tarde Florence quis ir para
Fordinbridge, recusei a proposta de maneira sumária

182 FORD MADOX FORD


— terminantemente sumária, com um curto não.
Isso incomodou-a e assustou-a. Eu tive de voltar a
todos os médicos. Tinha a impressão de que eram
consultas sem fim com um médico atrás do outro,
homens tranqüilos, silenciosos, que perguntavam,
em tons razoáveis, se havia alguma razão para ir-
mos para a Inglaterra — alguma razão especial. E
já que eu não via nenhuma razão especial, eles da-
vam o veredito: “Então, é melhor não”. Atrevo-me
a dizer que eles eram suficientemente honestos, do
jeito que as coisas são. Eles talvez imaginassem que
as simples associações com o navio podiam ter efei-
tos sobre os nervos de Florence. Isso era suficiente,
isso e um desejo consciencioso de manter nosso di-
nheiro no continente.
Isso deve ter atrapalhado de modo considerá-
vel a pobre Florence, pois, veja você, a idéia princi-
pal — a idéia principal e única em seu pobre cora-
ção, que quanto ao resto era frio — era instalar-se
em Fordinbridge e ser uma dama do condado no
lar de seus ancestrais. Mas Jimmy apanhou-a ali;
ela fechara a porta do canal para ela; até mesmo
no mais lindo dia de céu azul, com os rochedos da

O BOM S OLDADO 183


Inglaterra brilhando como madrepérola diante do
panorama aberto de Calais, eu não a deixaria fa-
zer a travessia de navio para salvar a vida dela. Digo-
lhe que ela ficou num impasse.
Deixou-a claramente num impasse, porque não
podia proclamar-se curada, já que isso poria fim aos
arranjos dos quartos fechados. E, na época em que
se enfastiou de Jimmy — o que aconteceu em 1903
—, ligara-se a Edward Ashburnham. Sim, era um
impasse ruim para ela, pois Edward poderia tê-la
levado para Fordinbrige, e, embora não pudesse lhe
dar Branshaw Manor, já que o lar dos ancestrais
dela pertencia à esposa dele, ela poderia pelo me-
nos ter reinado de modo bastante considerável ali
pelas redondezas, com nosso dinheiro e o apoio dos
Ashburnham. O tio dela, logo que concluiu que ela
de fato se estabelecera comigo — e eu só lhe enviei
os relatos mais reluzentes sobre sua virtude e cons-
tância —, deixou para ela uma parte bastante con-
siderável de sua fortuna, que ele não tinha como
usar. Suponho que tínhamos, os dois juntos, quin-
ze mil por ano em dinheiro inglês, embora eu nun-
ca tenha sabido quanto da parte dela foi para Jim-

184 FORD MADOX FORD


my. De qualquer modo, poderíamos ter brilhado em
Fordinbridge.
Nunca soube, também, como ela e Edward se
livraram de Jimmy. Imagino que aquele corvo gor-
do e indecoroso tenha tido os seus seis dentes de
ouro da frente enfiados goela abaixo por Edward
numa manhã, enquanto eu fui comprar flores na rue
de la Paix, deixando Florence e o apartamento a
cargo daqueles dois. E foi bem feito para ele, é tudo
que posso dizer. Ele era uma espécie de chantagis-
ta sinistro; espero que Florence não tenha a com-
panhia dele no outro mundo.
Assim como Deus é meu juiz, não acredito que
eu teria separado aqueles dois, se soubesse que se
amavam real e apaixonadamente. Não sei onde fica
a moralidade da situação, e, decerto, nenhum ho-
mem sabe realmente o que faria numa determina-
da situação. Mas acredito de fato que eu os teria
unido, segundo as formas e meios mais decentes que
estivessem ao meu alcance. Acho que lhes teria dado
dinheiro suficiente para viver e que me consolaria
de alguma maneira. Naquela época poderia ter en-
contrado uma coisa jovem, como Maisie Maidan,

O BOM S OLDADO 185


ou a pobre moça, e poderia ter tido alguma paz. Pois
jamais tive paz com Florence, e não posso acredi-
tar que tivesse algum amor por ela depois de um
ou dois anos daquilo. Ela se tornou para mim um
objeto frágil e raro, algo opressivo, mas muito frá-
gil. Pois era como se eu tivesse recebido um ovo de
galinha de casca fina para levar na minha palma da
África equatorial até Hoboken50. Sim, ela se tor-
nou para mim, por assim dizer, o objeto de uma
aposta — o troféu da proeza de um atleta, uma
coroa de louros que é símbolo de sua castidade, de
sua sobriedade, abstenções, e de sua vontade inflexí-
vel. Quanto ao valor intrínseco de uma esposa, acho
que ela não tinha nenhum para comigo. Creio que
nem me orgulhava da maneira como ela se vestia.
Mas sua paixão por Jimmy também não era
uma paixão, e, por mais louca que a sugestão possa
parecer, ela parecia temer por sua vida. Sim, ela
tinha medo de mim. Vou lhe dizer como isso acon-
teceu.

50
Uma cidade portuária no rio Hudson, defronte de
Manhattan. (N. do T.)

186 FORD MADOX FORD


Eu tive, outrora, um criado escuro, Julius, que
cuidava de mim, esperava-me, e amava-me como
se fosse a razão de sua vida. Ora, quando deixamos
Waterbury para tomarmos o “Pocahontas”, Flo-
rence confiou-me uma bolsa de couro muito espe-
cial e preciosa. Disse-me que sua vida poderia de-
pender daquela bolsa, que continha seus remédios
contra os ataques cardíacos. E, como não fui mui-
to útil para carregar coisas, eu a confiei, por minha
vez, a Julis, que era um sujeito grisalho de mais ou
menos uns sessenta anos, e muito pitoresco. Ele
causou tanta impressão a Florence que ela o via
como uma espécie de pai, e recusou-se a deixar que
eu o levasse para Paris. Ele seria inconveniente para
ela.
Bem, Julius ficou tão aborrecido ao ser aban-
donado que deve ter esvaziado a preciosa bolsa. Eu
fiquei furioso, cheio de raiva. Pulei em cima de Ju-
lius. Foi na balsa, deixei um de seus olhos inchados;
ameacei estrangulá-lo. E, já que um negro submisso
pode causar um barulho deplorável e um espetáculo
deplorável, e, já que era a primeira aventura de Flo-
rence na condição de mulher casada, ela teve uma

O BOM S OLDADO 187


idéia clara de meu caráter. Isso consolidou sua reso-
lução desesperada de ocultar de mim o fato de que
não era o que poderíamos chamar de “uma mulher
pura”. Pois esse foi de fato o motivo principal de
suas ações. Ela tinha medo de que eu a matasse...
Assim, ela simulou o primeiro ataque de co-
ração, na primeira oportunidade possível, a bordo
do navio. Talvez ela não deva ser censurada demais.
Lembre-se de que ela era da Nova Inglaterra, e que
lá ainda não se desprezavam os negros como fazem
agora. Ao passo que, se ela viesse de um lugar tão
pouco ao sul quanto a Filadélfia, e fosse de uma
família tradicional, veria que, para mim, chutar Ju-
lius não era um ato tão ultrajante quanto era para
seu primo, Reggie Hurlbird, dizendo — como eu o
ouvi dizer a seu mordomo inglês — que por dois
centavos ele o espancaria nas pernas. Além disso, a
bolsa de remédios não tinha tanta importância a
seus olhos como os meus, para os quais era o sím-
bolo da existência de uma esposa adorada. Para ela,
era apenas uma mentira útil...
Bem, aí você tem a situação, tão clara quanto
posso mostrá-la — o marido, um idiota ignorante,

188 FORD MADOX FORD


a esposa, uma fria sensualista com pavores imbecis
— pois eu era tão idiota que nunca saberia o que
ela era ou não — e o amante chantagista. E então
surgiu o outro amante...
Bem, Edward Ashburnham valia a pena. Eu já
o fiz ver o tipo esplêndido que ele era — o ótimo
soldado, o excelente proprietário, o magistrado ex-
traordinariamente dedicado, cuidadoso e industrio-
so, o personagem público honesto, íntegro, bem-
comportado, bem pensante? Não, suponho que ain-
da não o fiz ver. A verdade é que eu nunca soube
disso até que a pobre moça apareceu — a pobre
moça que era tão honesta, tão esplêndida e tão ín-
tegra quanto ele. Juro que era. Suponho que eu de-
veria saber. Suponho que era por isso, de fato, que
eu gostava muito dele — infinitamente muito. Pen-
se só nisso, posso lembrar-me de milhares de peque-
nos atos de bondade, de cuidado para com seus
inferiores, mesmo no continente. Veja bem, eu co-
nheço duas famílias de indigentes imundos de Hesse
que esse camarada, com uma paciência infinita, es-
quadrinhou, obteve seus relatórios policiais, ajudou
ou exportou para a minha pátria paciente. E ele o

O BOM S OLDADO 189


fazia repentinamente, comovido ao ver uma crian-
ça chorando na rua. Via-se obrigado a lidar com
dicionários, naquela língua estranha... Bem, ele não
podia suportar a visão de uma criança chorando.
Talvez não pudesse tolerar ver uma mulher e não
lhe dar o conforto de suas atrações físicas.
Mas, embora eu gostasse intensamente dele,
estava um tanto disposto a tomar estas coisas como
estabelecidas. Elas me faziam sentir à vontade com
ele, bom em relação a ele; faziam-me ter confiança
nele. Mas acho que eu pensava que aquilo era par-
te do caráter de qualquer cavalheiro inglês. Ora, um
dia ele se convence de que o maître do Excelsior
havia chorado — aquele tipo com a cara cinzenta e
as costeletas grisalhas. E assim é que ele passou a
maior parte da semana, correspondendo-se com o
cônsul britânico, para trazer a esposa do sujeito de
Londres com sua filhinha. Ela fugira com um la-
vador de pratos suíço. Se ela não tivesse voltado
dentro de uma semana, ele mesmo teria ido a Lon-
dres para apanhá-la. Ele era assim.
Edward Ashburnham era assim, e achei que
isso era apenas o dever de sua posição e condição.

190 FORD MADOX FORD


Talvez fosse só isso — mas peço a Deus para que
eu cumpra o meu tão bem assim. E, quanto à pobre
moça, atrevo-me a dizer que jamais deveria ter vis-
to aquilo, por mais que o sentimento pairasse sobre
mim. Ela tinha um tal entusiasmo por ele que, embo-
ra até hoje eu não entenda os detalhes da vida in-
glesa, posso fazer uma boa idéia. Ela estava com eles
durante toda a nossa última estadia em Nauheim.
Nancy Rufford era o nome dela; era filha úni-
ca de amigos de Leonora, e Leonora era sua guardiã,
se este é o termo correto. Ela morava com os Ash-
burnham desde a idade de treze anos, quando se diz
que sua mãe se suicidou devido às brutalidades de
seu pai. Sim, é uma história animadora...
Edward sempre chamou-a de “a garota”, e era
muito bonita, sendo a evidente afeição que ele ti-
nha por ela e ela por ele. E ela beijaria os pés de
Leonora — os dois eram para ela os melhores seres
humanos sobre a terra — e no céu. Acho que ela
não tinha um só pensamento pecaminoso na cabe-
ça — a pobre moça...
Bem, seja como for, ela entoou para mim lou-
vores a Edward durante a hora que passamos juntos,

O BOM S OLDADO 191


mas, como eu disse, não podia entender a coisa di-
reito. Pareceu-me que ele obtivera uma condecora-
ção por serviços prestados51 e que sua tropa o ado-
rava. Nunca se viu uma tropa como a dele. E ele
tinha a medalha da Royal Human Society com um
broche. Isto significava, aparentemente, que ele sal-
tara duas vezes do convés de um navio militar para
resgatar o que a moça chamava de “Tommies”52,
que caíra no Mar Vermelho ou lugares desse tipo.
Ele fora recomendado duas vezes para a Cruz da
Vitória, seja lá o que isto queira dizer, e ainda que,
devido a alguns detalhes técnicos, ele jamais tivesse
recebido tal condecoração aparentemente ambicio-
nada, obtivera um lugar especial durante a coroa-
ção de seu soberano. Ou talvez tenha sido um posto
na Guarda Real. Ela o retratou com um cruzamento
entre Lohengrin e o chevalier Bayard53. Talvez ele

51 No texto, D. S. O.: Distinguished Service Order, uma

condecoração dado a oficias por serviços meritórios prestados


durante a guerra, embora não se refira necessariamente a con-
frontos com o inimigo. (N. do T.)
52 Nome dado aos soldados rasos ingleses. (N. do T.)
53 Lohengrin é o famoso herói da lenda alemã; quanto

192 FORD MADOX FORD


fosse... Mas era um camarada calado demais para
ostentar isso. Lembro-me de ter me dirigido a ele
nessa época para lhe perguntar o que era uma con-
decoração por serviços prestados, e ele resmungou:
— É um tipo de coisa que eles dão aos que
supriram honradamente as tropas com café adul-
terado durante a guerra —, ou algo assim.
Ele não me transmitiu nenhuma convicção, de
maneira que, por fim, dirigi-me diretamente a Leo-
nora. Eu perguntei-lhe de maneira direta e incisiva
— preludiando a pergunta com algumas observa-
ções, como as que já lhe comuniquei, relativas à
dificuldade que se tem em conhecer as pessoas quan-
do a intimidade é conduzida no sentido da familia-
ridade à inglesa —, perguntei lhe se seu marido não
era de fato um camarada esplêndido — pelo me-
nos dentro das orientações de suas funções públi-
cas. Ela me olhou com um ar ligeiramente alerta —
com um ar que seria quase de perplexidade, se Leo-
nora pudesse se mostrar alguma vez perplexa.

ao chevalier Bayard, trata-se de Pierre Terrail (1473-1542),


soldado francês famoso por sua coragem. (N. do T.)

O BOM S OLDADO 193


— Você não sabe? — ela perguntou. — Quan-
do penso nisto vejo que não há camarada mais es-
plêndido em nenhum dos três condados, pode es-
colher onde você quiser, dentro dessas orientações.
E acrescentou, depois de me olhar pensativa-
mente durante o que me pareceu ser muito tempo:
— Para fazer justiça a meu marido não have-
ria nenhum homem melhor na terra. Não haveria
lugar para isso, dentro dessas orientações.
— Bem — eu disse — então ele deve ser de fato
Lohengrin e o Cid num só corpo. Pois não há ou-
tras orientações que contem.
Ela olhou de novo para mim durante muito
tempo.
— É sua opinião que não há outras orienta-
ções que contem? — perguntou vagarosamente.
— Bem — respondi alegremente — você não
pode acusá-lo de não ser um bom marido nem de
não ser um bom guardião para sua tutelada, não é
mesmo?
Então ela falou devagar, como uma pessoa que
está ouvindo os sons numa concha encostada a seu
ouvido — e, você acredita? —, e me disse em se-

194 FORD MADOX FORD


guida, diante de minha fala, que pela primeira vez
ela tinha uma vaga premonição da tragédia que se
desdobraria logo depois — embora a moça tivesse
vivido com eles durante oito anos mais ou menos:
— Oh, não estou querendo dizer que ele não
seja o melhor dos maridos, ou que não goste muito
da moça.
E em seguida eu disse algo assim:
— Bem, Leonora, um homem vê mais estas
coisas do que até mesmo uma esposa. E, deixe-me
dizer-lhe, que durante todos esses anos que conhe-
ço Edward ele jamais, em sua ausência, deu a mí-
nima atenção a qualquer outra mulher — nem uma
simples olhadela. Eu teria registrado. E ele fala a
seu respeito como se você fosse um dos anjos de
Deus.
— Oh — ela foi direto ao ponto, pois você
podia ficar certo de que Leonora iria sempre ao
ponto — estou perfeitamente consciente de que ele
sempre fala bem de mim.
Atrevo-me a dizer que ela tinha prática nesse
tipo de cena — as pessoas sempre a cumprimenta-
vam por causa da fidelidade e da adoração de seu

O BOM S OLDADO 195


marido. Pois meio-mundo — o mundo todo dos que
conheciam Edward e Leonora acreditavam que sua
condenação no caso Kilsyte fora um erro da justi-
ça — acreditava em uma conspiração de falsa evi-
dência, obtida por adversários não-conformistas.
Mas pense só no idiota que eu era...

196 FORD MADOX FORD


II.

Deixe-me ver onde estávamos. Ah, sim... essa


conversa ocorreu no dia 4 de agosto de 1913. Lem-
bro-me de ter dito a ela, nesse dia, que há exatamente
nove anos antes, eu os conhecera, por isso me pare-
cia apropriado que, à guisa de um discurso de ani-
versário, eu manifestasse meu pequeno testemunho
sobre meu amigo Edward. Eu podia dizer convicta-
mente que, embora nós quatro estivéssemos juntos
em todos os tipos de lugares, durante todo esse tem-
po, eu não tinha, de minha parte, uma só queixa a
fazer em relação a qualquer um dos dois. E acrescen-
tei que isso era um recorde incomum para pessoas
que ficam tanto tempo juntas. Você não deve ima-
ginar que nos encontrávamos apenas em Nauheim.
Isto não seria conveniente para Florence.
Descubro, consultando meus diários, que no
dia 4 de setembro de 1904, Edward acompanhou

O BOM S OLDADO 197


a mim e a Florence a Paris, onde o acolhemos até o
dia vinte e um desse mês. Ele nos fez uma outra
rápida visita em dezembro desse ano — o primeiro
ano de nossa amizade. Deve ter sido durante essa
visita que ele empurrou os dentes de Jimmy goela
abaixo. Atrevo-me a dizer que Florence pediu-lhe
que viesse com essa finalidade. Em 1905 ele esteve
três vezes em Paris — uma vez com Leonora, que
queria alguns vestidos. Em 1906 passamos a me-
lhor parte de seis semanas juntos em Mentone, e
Edward ficou conosco em Paris na sua volta para
Londres. Foi assim que aconteceu.
O fato é que, em Florença, o pobre diabo se
enamorou de uma tártara, comparada com a qual
Leonora era uma criança de peito. Ele deve ter pas-
sado o diabo. Leonora queria ficar com ele pelo —
como devo dizer — pelo bem de sua Igreja, por as-
sim dizer, para mostrar que as mulheres católicas
não perdem seus homens. Mas deixemos isso de
lado, por enquanto. Mais tarde, talvez, eu escreva
os motivos dela. Mas Florence estava apegando-se
ao proprietário do lar de seus ancestrais. Sem dú-
vida ele também era um amante apaixonado. No

198 FORD MADOX FORD


entanto estou convencido de que estava cansado de
Florence e da vida que ela o fazia levar...
Toda vez que Leonora mencionava tão-somen-
te numa carta que uma mulher estava na compa-
nhia deles — ou, se mencionava, era apenas um
nome de um mulher numa carta para mim — logo
se seguia um telegrama desesperado em cifra para
aquele pobre diabo em Branshaw, ordenando que,
sob pena de uma divulgação imediata e horrível, ele
viesse até onde ela estava e a assegurasse a respeito
de sua fidelidade. Atrevo-me a dizer que ele se li-
vraria de Florence e assumiria o risco da divulga-
ção. Mas aí ele tinha de lidar com Leonora. E Leo-
nora assegurou-lhe que, se o menor fragmento da
situação real chegasse a meu conhecimento, ela lan-
çaria sobre ele a mais terrível vingança que pudes-
se imaginar. E para ele não foi um trabalho fácil.
Florence exigia cada vez mais a atenção dele à me-
dida que o tempo passava. Ela faria com que ele a
beijasse a qualquer hora do dia; e foi só quando disse
claramente que uma mulher divorciada jamais po-
deria assumir uma posição no condado de Hamp-
shire, que ele pôde evitar que ela armasse um es-

O BOM S OLDADO 199


cândalo com ele no trem. Oh, sim, foi um trabalho
difícil para ele.
Pois Florence, se você permitir, adquirindo
com o tempo uma visão mais tranqüila da nature-
za, e vencida por seu hábitos de garrulice, chegou
a um estado mental em que achava quase necessá-
rio dizer-me tudo a respeito daquilo — nem mais
nem menos. Ela disse que sua situação era intole-
rável em relação a mim.
Ela se propunha a me dizer tudo, divorciar-se
de mim, juntar-se a Edward e estabelecer-se na Ca-
lifórnia... Não acredito que estivesse seriamente dis-
posta a isto. Significaria a extinção de todas as es-
peranças em relação a Branshaw Manor para ela.
Além disso, convencera-se de que Leonora, que era
sólida como uma rocha, estava tuberculosa. Ela sem-
pre estava pedindo a Leonora, na minha frente, para
ir consultar um médico. No entanto, o pobre Ed-
ward parece ter acreditado na determinação dela de
levá-lo consigo. Ele não iria; importava-se demais
com sua mulher. Mas, se Florence o levasse a tal,
isso significaria que eu ficaria sabendo de tudo, e
ele incorreria na vingança de Leonora. E ela teria à

200 FORD MADOX FORD


sua disposição uma dezena ou uma dúzia de ma-
neiras de realizá-la. E ela me assegurou que teria
usado todas elas. Estava decidida a poupar meus
sentimentos. E estava bem consciente, nessa época,
de que a maneira mais dura de fazê-lo seria recusar-
se a vê-lo para sempre...
Bem, acho que deixei tudo isso bastante cla-
ro. Deixe-me falar do dia 4 de agosto de 1913, o
último dia de minha ignorância absoluta — e, eu
lhe asseguro, de minha perfeita felicidade. Pois a
chegada daquela moça só fez aumentar tudo.
Naquele 4 de agosto eu estava sentado no sa-
guão com um tipo inglês um tanto odioso chama-
do Bagshawe, que chegara naquela noite, tarde de-
mais par o jantar. Leonora fora deitar-se e eu esta-
va esperando Florence, Edward e a moça voltarem
de um concerto no cassino. Eles não tinham ido
juntos. Florence, eu me lembro, dissera a princípio
que ia ficar com Leonora e comigo, e Edward e a
moça tinham saído juntos. E foi aí que Leonora disse
para Florence com uma calma perfeita:
— Quero que você vá com os dois. Acho que
a moça devia ter uma dama de companhia ao lado

O BOM S OLDADO 201


de Edward nesses lugares. Acho que já chegou a
época.
Então Florence, com seu andar rápido, saiu
atrás deles. Ela estava toda de preto por causa de
algum primo ou coisa assim. Os americanos são
detalhistas nesses assuntos.
Ficamos ali sentados no saguão até as dez ho-
ras, quando Leonora foi para a cama. Fora um dia
muito quente, mas agora estava fresco. O homem
chamado Bagshawe estava lendo The Times do ou-
tro lado da sala, mas se aproximou de mim com
alguma pergunta insignificante, como prelúdio para
travar conhecimento. Creio que perguntou-me algo
sobre a taxa por pessoa para os hóspedes do Kur, e
se ela podia ser evitada. Era esse tipo de pessoa.
Bem, ele era um homem inconfundível, com
uma aparência militar um tanto exagerada, olhos
bulbosos que evitavam o seu olhar e uma complei-
ção pálida que sugeria vícios praticados em segre-
do, junto com um desejo incontido de travar rela-
ções a qualquer custo... O sapo desprezível...
Começou contando-me que viera de Ludlow
Manor, perto de Ledbury. O nome era levemente fa-

202 FORD MADOX FORD


miliar, embora eu não conseguisse fixá-lo em minha
mente. Em seguida começou a falar sobre sua obri-
gação de fazer viagens curtas, viagens a Califórnia,
sobre Los Angeles, onde estivera. Procurava um tó-
pico com o qual pudesse ganhar minha afeição.
E então, de repente, sob a luz clara da rua, eu
vi Florence correndo. Foi assim — Florence corren-
do com um rosto mais branco do que um papel e
com a mão em cima do coração. Acredite-me, meu
coração ficou paralisado; acredite-me, eu não con-
seguia me mexer. Ela passou pelas portas giratóri-
as. Deu uma olhada em volta daquele lugar de ca-
deiras de palha, mesas de vime e jornais. Colocou
suas mãos sobre o rosto como se quisesse arrancar
seus olhos. E desapareceu dali.
Eu não podia me mexer; eu não podia mover
um dedo. E então aquele homem disse:
— Por Júpiter: Florry Hurlbird.
Virou-se para mim com um som oleoso e em-
baraçado como se fosse uma risada. Ele ia de fato
insinuar-se comigo.
— Você sabe quem é essa aí? — ele pergun-
tou. — A última vez que vi essa moça ela estava

O BOM S OLDADO 203


saindo do quarto de um jovem chamado Jimmy às
cinco horas da manhã. Em minha casa em Ledbury.
Você viu que ela me reconheceu.
Ele estava ali de pé, olhando para mim. Não
sei que aparência eu tinha. Seja como for, ele deu
uma espécie de gorgojelo e então gaguejou:
— Oh, quero dizer....
Essas foram as últimas palavras que ouvi do
senhor Bagshawe. Depois de muito tempo saí do sa-
guão e subi para o quarto de Florence. Ela não tran-
cara a porta — pela primeira vez em nossa vida de
casados. Estava deitada na cama, de maneira bas-
tante arrumada, ao contrário da senhora Maidan.
Segurava um pequeno frasco que certamente con-
tinha nitrato de amila, na mão direita. Isso foi no
dia 4 de agosto de 1913.

204 FORD MADOX FORD


TERCEIRA PARTE

O BOM S OLDADO 205


206 FORD MADOX FORD
I.

A coisa mais estranha que vem à minha lembran-


ça do resto daquela noite foi Leonora me dizendo:
— É claro que você deve se casar com ela.
E quando eu perguntei com quem, ela res-
pondeu:
— Com a moça.
Ora, isso é uma coisa surpreendente para mim
— surpreendente à luz das possibilidades que lança
sobre o coração humano. Pois eu jamais tivera a
mais leve idéia consciente de me casar com a moça;
eu nunca tivera sequer a menor idéia de ligar para
ela. Devia ter falado de uma maneira estranha, como
as pessoas que estão se recuperando de um anesté-
sico. É como se tivéssemos uma dupla personali-
dade, uma inteiramente inconsciente da outra. Eu
não pensara nada; dissera de fato uma coisa bas-
tante extraordinária.

O BOM S OLDADO 207


Não sei se a análise de minha própria psicolo-
gia tem importância em toda essa história. Eu diria
que não ou que, de algum modo, já dei bastante
notícia dela. Mas aquela estranha observação mi-
nha teve um forte influência sobre o que aconteceu
depois. Quero dizer, que Leonora provavelmente
jamais falaria comigo a respeito das relações de Flo-
rence com Edward, se eu não tivesse dito, duas horas
depois da morte de minha mulher:
— Agora posso casar-me com a moça.
Ela pensou então que eu sofrera tudo que ela
havia sofrido, ou, pelo menos, que eu permitira tudo
quanto ela permitira. Assim é que, um mês atrás,
cerca de uma semana depois do funeral do pobre
Edward, ela pôde me dizer da maneira mais natu-
ral do mundo — eu estava falando a respeito da
duração de minha estadia em Branshaw —, e disse
com sua entonação clara, reflexiva:
— Oh fique por aqui, para sempre se puder.
E em seguida acrescentou:
— Você não poderia ser mais do que um ir-
mão para mim, ou um conselheiro, ou um apoio.
Você é todo o consolo que tenho no mundo. Não é

208 FORD MADOX FORD


estranho pensar que, se sua mulher não tivesse sido
a amante de meu marido, você provavelmente não
estaria aqui?
Foi assim que recebi a notícia — bem na cara,
desse jeito. Eu não disse nada e não creio que algu-
ma coisa tenha sentido, a não ser talvez que tenha
sido com o misterioso e inconsciente eu que subjaz
na maior parte das pessoas. Talvez um dia, quan-
do eu estiver inconsciente ou caminhando no meu
sono, pode ser que eu vá e cuspa em cima do tú-
mulo do pobre Edward. Parece-me a mais impro-
vável das coisas que eu possa fazer; mas aí está.
Não, não me lembro de nenhuma emoção de
qualquer tipo, apenas do sentimento claro que se
tem de vez em quando, ao se ouvir que a senhora
Fulano de Tal está au mieux com um certo cava-
lheiro. Tornou as coisas mais claras, de repente, para
minha curiosidade. Foi como se eu tivesse pensa-
do, naquele momento, uma noite cheia de ventania
de novembro, de modo que, quando volto a pen-
sar nisso depois de tanto tempo, uma série de coi-
sas inexplicadas pudessem ter se ajustado em seus
lugares. Mas eu não estava pensando nisso naque-

O BOM S OLDADO 209


le momento. Lembro-me claramente. Estava senta-
do, um tanto rigidamente, numa grande poltrona.
É disso que me lembro. Era no crepúsculo.
Branshaw Manor fica num pequeno vale, cer-
cado por um prado e por pinheiros na orla da depres-
são. O vento largo, vindo da floresta, zunia no alto.
Mas o panorama visto da janela estava perfeitamente
calmo e cinzento. Nada se movia, exceto um casal
de coelhos na margem extrema do prado. Estávamos
no próprio estúdio de Leonora e esperávamos que o
chá fosse servido. Como já disse, eu estava sentado
numa poltrona grande, Leonora estava ao lado da
janela e, sem parar girava erraticamente a bolota de
madeira na ponta da corda da persiana. Ela olhou a
grama e disse, pelo que recordo:
— Edward só morreu há dez dias e já há coe-
lhos na grama.
Sei que os coelhos fazem um grande dano à
grama curta na Inglaterra. Em seguida ela se virou
para mim e disse sem nenhum enfeite, pois me lem-
bro exatamente de suas palavras:
— Acho que foi estúpido da parte de Florence
ter cometido suicídio.

210 FORD MADOX FORD


Não posso lhe transmitir o extraordinário sen-
tido de ócio que parecíamos desfrutar naquele mo-
mento. Não era como se estivéssemos esperando o
trem, não era como se estivéssemos esperando a refei-
ção — era só que não havia nada para esperar. Nada.
Havia um extremo silêncio junto com o som
remoto e intermitente do vento. Havia a luz cinzenta
naquela pequena sala marrom. E não parecia ha-
ver mais nada no mundo.
Soube então que Leonora iria me fazer uma
confidência completa. Era como se — ou não, era
o fato real que — Leonora, com um estranho sen-
so inglês de decência, houvesse resolvido esperar até
que Edward estivesse há uma semana em seu túmulo
para falar. E com algum vago motivo de dar a ela
uma idéia da extensão do que ela se deveria permi-
tir ao fazer confidências, eu disse lentamente — e
dessas palavras também me lembro com exatidão:
— Florence cometeu suicídio? Eu não sabia.
Eu estava apenas, entenda, tentando fazê-la
saber que, se ia falar, deveria falar de um espectro
bem mais amplo de coisas do que ela havia julgado
necessário.

O BOM S OLDADO 211


Foi assim que soube que Florence cometera
suicídio. Isso não havia entrado em minha cabeça.
Você pode achar que eu exibia uma singular inca-
pacidade de suspeita; pode até achar que eu fora um
imbecil. Mas considere a situação.
Naquelas circunstâncias de clamor, de berrei-
ro, do estrépito de muitas pessoas correndo ao mes-
mo tempo, de reticência profissional de gente como
gerentes de hotel, da tradicional reticência de “gente
de bem” como os Ashburnham — em tais circuns-
tâncias é sempre algum pequeno objeto material que
o olho capta e que atrai a imaginação. Eu não ti-
nha nenhuma pista possível para a idéia de suicí-
dio e a visão do pequeno frasco de nitrato de amila
na mão de Florence sugeriu imediatamente à minha
mente a idéia de uma falha no seu coração. O ni-
trato de amila, entenda, é o remédio dado para ali-
viar os doentes de angina pectoris.
Ter visto Florence, como eu a vi, correndo com
o rosto pálido e com uma mão sobre o coração, e
ao vê-la, como eu a vi imediatamente depois, dei-
tada na cama com o pequeno frasco marrom tão
familiar preso entre seus dedos, fez com que minha

212 FORD MADOX FORD


mente se inclinasse naturalmente para essa idéia.
Como acontecia de vez em quando, pensei, ela saí-
ra sem seu remédio e, ao sentir a aproximação de
um ataque quando estava nos jardins, correra para
pegar o nitrato, o mais depressa possível, para se
aliviar. E foi igualmente inevitável para minha mente
formar o pensamento de que seu coração, incapaz
de suportar o esforço da corrida, tivesse parado.
Como eu poderia saber que, durante todos os nos-
sos anos de vida de casados, aquele pequeno fras-
co marrom continha, não nitrato de amila, mas áci-
do prússico? Era inconcebível.
Ora, nem Edward Ashburnham, que no fim
de contas tinha mais intimidade com ela do que eu,
sequer suspeitou da verdade. Ele pensou que ela
morrera de um ataque de coração. De fato, acho
que as únicas pessoas que sabiam que Florence
cometera suicídio eram Leonora, o grão-duque, o
chefe da polícia e o gerente do hotel. Menciono
esses três últimos porque minha lembrança daquela
noite é apenas uma espécie de cintilação cor-de-
rosa vinda das lâmpadas elétricas no saguão do
hotel. Em minha consciência, os rostos desses três

O BOM S OLDADO 213


pareciam balançar como globos flutuantes. Ora era
a fisionomia barbada, monárquica, benevolente do
grão-duque; ora os traços castanhos, pronunciados,
com um bigode de cavalaria do chefe de polícia;
ora o vácuo polido, globular, e de colarinho alto
que representava monsieur Schontz, o proprietário
do hotel. Às vezes ficava apenas uma cabeça sozi-
nha, em outras o capacete pontudo do policial se
avizinhava da calvície saudável do príncipe; depois
os cachos oleosos do cabelo de monsier Schontz se
intrometiam entre os dois. A voz suave, muito bem
educada do soberano dizia: “Ja, ja, ja!”, cada pala-
vra caindo como suaves pelotas de sebo; a matra-
ca amortecida do policial irrompia “Zum Befehl,
Durchlaut”54, como cinco tiros de revólver; a voz
de monsier Schontz continuava e continuava como
a de um padre recitando em voz baixa seu breviário
no canto de uma carruagem. Foi assim que tudo se
mostrou para mim.
Eles pareciam não tomar conhecimento de mim;
não creio que sequer tenham falado comigo. Mas,

54 “Muito bem, sua Alteza Serena.” (N. do T.)

214 FORD MADOX FORD


enquanto um ou outro, ou todos os três ficaram ali,
rodeavam-me como se eu, na condição do proprie-
tário titular do cadáver, tivesse o direito de estar pre-
sente a suas deliberações. Depois todos se foram e
eu fiquei sozinho durante muito tempo.
E eu não pensava em nada, em absolutamente
nada. Não tinha idéias; não tinha forças. Não sen-
tia dor, nem desejo de ação, nem inclinação para
subir as escadas e me jogar sobre o corpo de mi-
nha mulher. Via apenas a cintilância cor-de-rosa,
as mesas de vime, as palmeiras, os porta-fósforos
esféricos, os cinzeiros dentados. E então Leonora
veio até mim e parece que eu lhe dirigi esse comen-
tário singular:
— Agora posso me casar com a moça.
Mas já lhe transmiti absolutamente tudo quan-
to à minha lembrança daquela noite, que é como
se fosse tudo quanto à minha lembrança dos três
ou quatro dias seguintes. Eu estava num estado sim-
plesmente cataléptico. Eles me botaram na cama e
eu fiquei lá; trouxeram minhas roupas e eu me ves-
ti; levaram-me até a sepultura aberta e fiquei ao lado
dela. Se tivessem me levado para a beira de um rio,

O BOM S OLDADO 215


ou se tivessem me deitado debaixo de um trem, eu
teria me afogado ou me arrebentado com a mesma
atitude. Era um morto vivo.
Bem, essas são as minhas impressões.
O que aconteceu de fato foi o seguinte. Reuni
as peças depois. Você se lembra que eu disse que
Edward Ashburnham e a moça tinham saído, na-
quela noite, para um concerto no cassino e que Leo-
nora pedira a Florence, quase imediatamente depois
da saída deles, para segui-los e desempenhar o pa-
pel de acompanhante. Florence, você também se
lembra, estava toda de preto, luto que usava por
causa de um primo, Jean Hurlbird. Era uma noite
muito escura e a moça estava vestida com uma mus-
seline creme, que devia brilhar sob as árvores altas
do parque escuro como um peixe fosforescente nu-
ma taça. Não podia haver um farol melhor.
E parece que Edward Ashburnham conduziu
a moça não para a aléia que dá para o cassino, mas
para debaixo das árvores escuras do parque. Ed-
ward Ashburnham disse-me isso em sua revelação
final. Eu já lhe disse que, nessa ocasião, ele tornou-
se diabolicamente loquaz. Não o interroguei. Não

216 FORD MADOX FORD


tinha nenhum motivo. Nessa época eu não o ligava
absolutamente à minha mulher. Mas o sujeito falou
como um romancista barato. Ou como um roman-
cista muito bom quanto ao que interessa, se o negó-
cio do romancista é fazer com que você veja as coi-
sas claramente. E eu lhe digo que vejo a coisa tão
claramente como se fosse um sonho que nunca me
tivesse abandonado. Parece que, não muito longe
do cassino, ele e a moça se sentaram num banco
público em meio à escuridão. As luzes desse lugar
de diversão deviam alcançá-los através dos galhos
das árvores, já que, como Edward disse, ele não
podia ver direito o rosto da moça — aquele rosto
amado com a fronte alta, a boca esquisita, as so-
brancelhas torturadas e os olhos francos. E para
Florence, rastejando atrás deles, eles devem ter sur-
gido com a aparência de silhuetas. Pois, para mim,
Florence veio rastejando por trás deles na grama
curta até uma árvore que, lembro-me muito bem,
ficava bem atrás daquele banco público. Não era
uma proeza muito difícil para o instinto de uma
mulher com ciúme. A orquestra do cassino estava,
como Edward se lembrou de dizer-me, tocando a

O BOM S OLDADO 217


marcha de Rákóczi55, e embora ela não estivesse
bastante alta, naquela distância, para abafar a voz
de Edward Ashburnham, era suficientemente audí-
vel para apagar, entre os ruídos da noite, o roçar
e o rumor leve que podiam ser feitos pelos pés de
Florence ou por seu vestido ao atravessar a grama
curta. E essa mulher miserável recebeu tudo na ca-
ra, curto e grosso. Deve ter sido horrível para ela.
Horrível! Bem, eu suponho que ela merecia tudo
que teve.
Seja como for, aí você tem o quadro, as árvo-
res imensamente altas, elmos na maior parte, er-
guendo-se e emplumando-se bem alto até a nebu-
losidade negra que as árvores parecem reunir por
cima delas à noite; as silhuetas daqueles dois no
banco; os raios de luz vindo do cassino, a mulher
toda de preto, com medo, atrás do tronco da árvo-
re. É melodrama; mas não posso fazer nada.
E então, ao que parece, algo aconteceu a Ed-
ward Ashburnham. Ele me assegurou — e não vejo

55 A marcha nacional húngara composta por Janos Bihari

em 1809 e usada por Liszt na Rapsódia Húngara nº 15.

218 FORD MADOX FORD


motivo para desconfiar dele — que até aquele mo-
mento não sabia que sentia alguma coisa pela moça.
Ele disse que a via exatamente como se ela fosse sua
irmã. Certamente a amava, mas com um amor mui-
to profundo, muito terno e muito tranqüilo. Sentira
falta dela quando ela fora para sua escola-convento;
ficara contente quando ela voltara. Mas não tinha
consciência de nada mais além disto. Se tivesse cons-
ciência, assegurou-me, se afastaria dela como de algo
maldito. Ele compreendeu que seria o último ultra-
je feito a Leonora. Mas a questão decisiva era sua
inteira inconsciência. Fora com ela até aquele par-
que escuro sem que o pulso se acelerasse, sem qual-
quer desejo de intimidade na solidão. Ele fora com
a intenção de conversar sobre os pôneis do pólo e
raquetes de tênis; sobre o temperamento da reverenda
madre superior no convento que ela deixara e tam-
bém sobre se seu vestido para uma festa, quando vol-
tasse para casa, deveria ser azul ou branco. Não lhe
passara pela cabeça conversar sobre qualquer coisa
a respeito da qual não conversassem sempre; nem lhe
passara pela cabeça que o tabu que a cercava não fos-
se inviolável. E então, de repente, aquilo...

O BOM S OLDADO 219


Ele foi bastante meticuloso ao me assegurar
que naquela época não havia motivo físico para sua
declaração. Para ele não teria sido por causa de uma
noite escura nem por causa de uma inclinação e as-
sim por diante. Não, parece que ele falou simples-
mente sobre o efeito que ela causava ao lado moral
de sua vida. Ele disse que não tinha a menor noção
de tomá-la em seus braços ou de sequer tocar a mão
dela. Jurou que não tocou na mão dela. Disse que
eles se sentaram, ela numa ponta, ele na outra; ele
inclinado na direção dela, ela olhando diretamente
para as luzes do cassino, seu rosto iluminado pelas
lâmpadas. Quanto à expressão no rosto dela, só
podia descrevê-la como “esquisita”.
De uma outra vez, de fato, ele sugeriu que ha-
via pensado que ela estivesse contente. É fácil ima-
ginar que ela estivesse contente, já que nessa época
ela não podia ter idéia do que estava realmente acon-
tecendo. Francamente, ela adorava Edward Ash-
burnham. Ele era para ela, em tudo que ela dizia
nessa época, o modelo da humanidade, o herói, o
atleta, o protetor de seu condado, o legislador. As-
sim é que, para ela, ser súbita, íntima e esmagado-

220 FORD MADOX FORD


ramente elogiada deve ter sido tão-somente moti-
vo para contentamento, por mais esmagador que
isso fosse. Deve ter sido como se um deus elogiasse
seu artesanato, ou um rei, sua lealdade. Ela ficou
ali sentada e ouviu, sorrindo.
E para ela era como se toda a amargura de sua
infância, os terrores de seu pai tempestuoso, as la-
mentações da língua ferina de sua mãe fossem su-
bitamente resgatados. Afinal estava sendo recom-
pensada. Porque, naturalmente, se você pensar di-
reito, uma repentina torrente de paixão vinda de um
homem que você vê como uma mistura de pastor e
pai pode, para uma mulher, assumir o aspecto de
um mero elogio por sua boa conduta. Não iria apa-
recer, é o que quero dizer, de forma alguma com
uma tentativa de obter posse. A moça, pelo menos,
via-o como firmemente ancorado à sua Leonora. Ela
não tinha a mais leve suspeita de quaisquer infide-
lidades. Ele dera-lhe a idéia de que considerava Leo-
nora absolutamente impecável e absolutamente sa-
tisfatória. A união deles era para ela uma dessas
coisas sagradas que são faladas e contempladas com
reverência pela Igreja.

O BOM S OLDADO 221


Assim é que, quando ele falou dela como sen-
do a pessoa com que mais se preocupava no mundo,
ela naturalmente pensou que ele estava excetuan-
do Leonora e ficou contente. Era como um pai di-
zendo que aprovava uma filha casadoira... E Ed-
ward, quando compreendeu o que estava fazendo,
refreou sua língua de uma vez. Ela estava contente
e continuou assim.
Suponho que essa foi a coisa mais monstruo-
samente perversa que Edward Ashburnham fez em
toda sua vida. E no entanto estou tão próximo des-
sas pessoas que não consigo pensar em nenhuma
delas como perversas. Para mim é impossível pen-
sar em Edward Ashburnham a não ser como ínte-
gro, honesto e honrado. Quero dizer que, apesar de
tudo, essa é a visão permanente que tenho dele. Às
vezes, ao me confrontar com algumas das coisas que
fez, tento expulsar essa imagem dele, como você
pode tentar empurrar para o lado um pêndulo gran-
de. Mas ela sempre volta — a recordação de seus
inumeráveis atos de bondade, sua eficiência, sua
conversa sem malícia. Era um ótimo sujeito.
Assim eu me vejo forçado a tentar desculpá-

222 FORD MADOX FORD


lo nisso como em outras coisas. É, sem dúvida, uma
coisa monstruosa tentar corromper uma jovem mal-
saída do convento. Mas acho que Edward não ti-
nha a menor intenção de corrompê-la. Acho que
simplesmente a amava. Ele disse que era isso mes-
mo e eu, no fim das contas, acredito nele e acredito
também que ela foi a única mulher que ele jamais
amou. Ele disse que era isso mesmo, e fez o neces-
sário para prová-lo. E Leonora disse que era isso
mesmo, e Leonora o conhecia até o fundo de seu
coração.
Eu me tornei uma espécie de cínico nesses as-
suntos; quero dizer que é impossível acreditar na
permanência do amor de um homem ou de uma
mulher. Ou, de qualquer modo, é impossível acre-
ditar na permanência de uma paixão antiga. Para
mim, pelo menos, no que diz respeito ao homem,
um caso de amor, o amor por uma mulher especí-
fica, é algo na natureza de um alargamento da ex-
periência. Com cada nova mulher pela qual um ho-
mem é atraído parece vir um alargamento da visão,
ou, se você quiser, uma aquisição de um novo ter-
ritório. Um levantar de sobrancelhas, um tom de

O BOM S OLDADO 223


voz, um gesto estranho característico — todas es-
sas coisas, e são essas coisas que causam o desper-
tar da paixão amorosa —, todas essas coisas são
como tantos objetos no horizonte da paisagem que
tentam um homem a caminhar para além do hori-
zonte, para explorá-los. Ele deseja ficar, por assim
dizer, por trás daquelas sobrancelhas com seu con-
torno peculiar, como se desejasse ver o mundo com
os olhos que elas protegem. Ele deseja ouvir aque-
la voz lidando com qualquer proposição possível,
com qualquer tópico possível; deseja ver aqueles
gestos característicos contra qualquer fundo possí-
vel. Sobre a questão do instinto do sexo sei muito
pouco e não acho que conte muito numa paixão
realmente grande. Ela pode ser despertada por ni-
nharias — por um laço desatado do sapato, por um
relance de olhar de passagem — eu acho que isso
poderia ser deixado fora do cálculo. Não quero dizer
que uma grande paixão possa existir sem o desejo
por sua consumação. Isso me parece ser um lugar-
comum e, portanto, é uma questão que dispensa
qualquer comentário. É algo, com todos os seus
acidentes, que deve ser considerado como tácito,

224 FORD MADOX FORD


assim como, num romance ou numa biografia, você
toma como implícito que os personagens fazem suas
refeições com alguma regularidade. Mas a verda-
deira impetuosidade do desejo, o verdadeiro calor
de uma paixão vivida durante muito tempo e ca-
paz de inflamar a alma de um homem é a busca de
identidade com a mulher que ele ama. Ele deseja ver
com os mesmos olhos, tocar com o mesmo sentido
de toque, ouvir com os mesmos ouvidos, perder sua
identidade, ser envolvido, apoiado. Pois, seja lá o
que se disser da relação entre os sexos, não há ho-
mem que ame uma mulher que não deseje procurá-
la para renovar sua coragem, para aplainar suas
dificuldades. E esse será o manancial de seu desejo
por ela. Nós todos temos tanto medo, estamos to-
dos tão sozinhos, todos nós precisamos tanto do
exterior para assegurar nosso próprio valor para
existir.
Assim, por algum tempo, se essa paixão atin-
ge a fruição, o homem irá obter o que deseja. Irá
obter o apoio moral, o encorajamento, o alívio do
sentimento de solidão, a confirmação de seu pró-
prio valor. Mas essas coisas passam; passam inevi-

O BOM S OLDADO 225


tavelmente como as sombras passam pelos relógi-
os de sol. É triste, mas é assim. As páginas do livro
se tornam familiares; a bela curva do caminho terá
sido virada muitas vezes. Bem, esta é a mais triste
das histórias.
E no entanto eu acredito que para cada homem
surge por fim uma mulher — ou não, esta é a ma-
neira errada de formular. Para cada homem surge
por fim uma época da vida em que a mulher que
colocou seu selo sobre sua imaginação, coloca este
selo para sempre. Ele não irá mais viajar para além
de nenhum outro horizonte; nunca mais irá por a
mochila sobre os ombros; irá se retirar desses ce-
nários. Irá sair do negócio.
De certo modo, esse era o caso de Edward e
da pobre moça. Era literalmente o caso. Era literal-
mente o caso que suas paixões — pela amante do
grão-duque, pela senhora Basil, pela pequena senho-
ra Maidan, por Florence, por quem você quiser —
que essas paixões fossem apenas meio-galopes pre-
liminares comparados com sua corrida final com a
morte até ela. Estou certo disso. Não pretendo ser
tão americano a ponto de dizer que todo amor ver-

226 FORD MADOX FORD


dadeiro demanda sacrifício. Não. Mas acho que o
amor será mais verdadeiro e mais permanente na
medida em que o auto-sacrifício for exigido. E, no
caso das outras mulheres, Edward apenas as apa-
nhou e largou como fez com a bola de pólo debai-
xo do nariz do conde barão von Lelöffel. Não que-
ro dizer que ele não se esmerasse na tentativa de
atrair as outras mulheres; mas em relação a ela se
desfez em remendos e trapos e morte — no esforço
de preservá-la.
E, ao falar com ela naquela noite, ele não es-
tava, estou convencido, cometendo uma baixeza.
Era como se sua paixão por ela não existisse; como
se as próprias palavras que dizia, sem saber que as
dizia, criassem a paixão enquanto eram proferidas.
Antes de falar, não havia nada; depois, era o fato
integral de sua vida. Bem, devo retornar à minha
história.
E minha história se referia a Florence — a Flo-
rence, que escutava essas palavras atrás da árvore.
Naturalmente é só uma conjectura, mas acho que
a conjectura se justifica muito bem. Você tem o fato
de que os dois saíram, que ela os seguiu quase que

O BOM S OLDADO 227


imediatamente depois através da escuridão e, um
pouco mais tarde, voltou correndo para o hotel com
aquele rosto pálido e a mão segurando seu vestido
sobre o coração. Não deve ter sido apenas Bag-
shawe. Seu rosto estava contorcido pela angústia
antes que seus olhos dessem comigo ou com ele a
meu lado. Mas me atrevo a dizer que Bagshawe
pode ter sido a influência determinante em seu sui-
cídio. Leonora diz que ela guardou aquele frasco,
aparentemente de nitrato de amila, mas de fato de
ácido prússico, durante muitos anos e que estava
determinada a usá-lo se algum dia eu descobrisse a
natureza de sua relação com aquele sujeito, Jimmy.
Veja, a fonte de sua natureza deve ter sido a vaida-
de. Não há razão para que não tenha sido; acho que
é a vaidade que nos mantém firmes, se é que segui-
mos firmes, neste mundo.
Se tivesse sido apenas o problema das relações
de Edward com a moça, atrevo-me a dizer que Flo-
rence o teria enfrentado. Ela faria cenas para ele sem
dúvida alguma, iria ameaçá-lo, apelar para seu sen-
so de humor, para suas promessas. Mas o senhor Bag-
shawe e o fato de que a data era 4 de agosto devem

228 FORD MADOX FORD


ter sido demais para sua mente supersticiosa. Veja,
havia duas coisas que ela desejava. Desejava ser uma
grande dama, instalada em Branshaw Teleragh. Tam-
bém desejava conservar meu respeito.
Ela desejava, vale a pena dizer isto, conservar
meu respeito enquanto vivesse comigo. Suponho que
se persuadisse Edward Ashburnham a fugir com ela,
deixaria tudo ir por água abaixo. Ou talvez tentas-
se extrair de mim um novo tipo de respeito diante
da grandeza de sua paixão, segundo o argumento
de que o amor está acima de tudo e o mundo que
se dane. Isso seria típico de Florence.
Em todas as associações matrimoniais há, eu
creio, um fator constante — um desejo de enganar
a pessoa com que se vive em relação a alguma fra-
queza no caráter ou na carreira. Pois é insuportá-
vel viver constantemente com um ser humano que
percebe a mesquinhez do outro. Isso é mortal — é
por isso que tantos casamentos se tornam infelizes.
Eu, por exemplo, sou um sujeito um tanto vo-
raz; tenho um fraco por boa comida e salivo ao mero
som do nome de certos comestíveis. Se Florence ti-
vesse descoberto esse segredo, o fato dela saber disso

O BOM S OLDADO 229


seria tão intolerável que eu jamais suportaria todas
as outras privações do regime que ela obtinha de
mim. Limito-me a dizer que Florence nunca desco-
briu tal segredo.
Certamente ela nunca aludiu a isso; atrevo-me
a dizer que jamais manifestou suficiente interesse
por mim.
E a fraqueza secreta de Florence — a fraqueza
que ela não suportaria que eu descobrisse — era
aquela antiga escapada com o sujeito chamado Jim-
my. Deixe-me fazer uma pequena digressão, já que
essa é com toda probabilidade a última vez que irei
mencionar o nome de Florence, em relação à mu-
dança que ocorrera em sua psicologia. Ela não iria
se importar, acho, se eu descobrisse que era a aman-
te de Edward Ashburnham. Iria até gostar disso. De
fato, o principal problema da pobre Leonora naque-
la época era evitar que Florence fizesse, diante de
mim, exibições teatrais, de um modo ou de outro,
desse fato. Ela desejava, num de seus estados de
espírito, vir correndo até mim, ajoelhar-se a meus
pés e recitar uma declaração cuidadosamente arran-
jada, terrivelmente emocional, de sua paixão. Isso

230 FORD MADOX FORD


mostraria que ela era como uma dessas grandes mu-
lheres eróticas a respeito das quais a história nos
fala. Numa outra disposição, desejava vir até mim
com desdém e dizer que eu certamente era menos
do que um homem, e o que acontecera era o que
devia acontecer quando um macho verdadeiro apa-
rece. Ela queria dizer isso em frases frias, equilibra-
das e sarcásticas. Isso era quando ela desejava ser
como a heroína de uma comédia francesa. Porque
naturalmente estava sempre representando.
Mas o que ela não queria era que eu soubesse
de sua primeira escapada com aquele sujeito cha-
mado Jimmy. Ela havia entendido a que tipo de ralé
baixa do Bowery aquele sujeito pertencia. Você sabe
o que é tremer, mais tarde na vida, por alguma ação
pequena, estúpida — geralmente por algum pequeno
tipo genuíno de emocionalismo — de sua vida an-
terior? Bem, esse era o tipo de tremor que invadia
Florence ao pensar que se entregara a um tipo tão
baixo. Não sei se ela precisava tremer. Aquilo fora
obra do seu velho tio néscio; ele jamais deveria ter
levado os dois para uma volta ao mundo e se tran-
car em sua cabine na maior parte do tempo. Seja

O BOM S OLDADO 231


como for, estou convencido de que a visão do se-
nhor Bagshawe e o pensamento de que o senhor
Bagshawe — pois ela conhecia sua personalidade
desagradável e repulsiva —, o pensamento de que
o senhor Bagshawe iria como que certamente reve-
lar-me que ele a apanhara saindo do quarto de Jim-
my às cinco horas da manhã do dia 4 de agosto de
1900, foi a influência determinante para seu suicí-
dio. E sem dúvida alguma o efeito da data foi de-
mais para sua personalidade supersticiosa. Ela nas-
cera a 4 de agosto; começara a dar a volta ao mun-
do a 4 de agosto; tornara-se amante de um tipo
baixo no dia 4 de agosto. No mesmo dia do mes-
mo ano casara-se comigo; no dia 4 de agosto per-
dera o amor de Edward, e Bagshawe aparecera co-
mo um presságio sinistro — como uma careta no
rosto do destino. Foi a última gota. Ela subiu cor-
rendo as escadas, arrumou-se decorativamente em
sua cama — era uma mulher de doce beleza com
maçãs do rosto levemente cor-de-rosa e brancas, o
cabelo comprido, os cílios caindo como uma corti-
na fina sobre a maçã do rosto. Bebeu o pequeno fras-
co de ácido prússico e se prostou ali. Oh, extrema-

232 FORD MADOX FORD


mente encantadora e nítida, olhando com uma ex-
pressão perplexa para a lâmpada de luz elétrica que
pendia do teto, ou talvez através dele, para as es-
trelas no alto. Quem sabe? Seja como for, houve um
fim para Florence.
Você não tem idéia de como foi extraordiná-
rio para mim o fim de Florence. Deste dia até hoje
nunca mais pensei nela; não dispendi com ela se-
quer um soluço. Naturalmente, quando foi neces-
sário falar sobre ela com Leonora, ou quando por
causa desses escritos tentei pensar nela, pensei como
poderia fazê-lo a respeito de um problema de álge-
bra. Tem sido sempre um tema de estudo, não de
recordação. Ela saiu completamente da existência,
como o jornal de ontem.
Eu estava mortalmente cansado. E atrevo-me
a dizer que minha semana ou dez dias de abatimento
— do que praticamente foi catalepsia — foi apenas
o repouso que minha natureza exausta reclamou
após doze anos de repressão de meus instintos, após
doze anos representando o poodle treinado. Pois isto
era o que eu fora. Suponho que foi o choque que
causou aquilo — os vários choques. Mas não que-

O BOM S OLDADO 233


ro atribuir meus sentimentos nessa época a algo tão
concreto como um choque. Era um sentimento tão
tranqüilo. Era como se uma imensamente pesada
— uma mochila intoleravelmente pesada, presa a
meus ombros por tiras, tivesse caído e deixasse os
próprios ombros, que as tiras tinham cortado, en-
torpecidos e sem sensação de vida. Eu lhe digo: não
lamento. De que me lamentaria? Suponho que mi-
nha alma íntima — minha personalidade dual —
havia compreendido há muito tempo que Florence
era uma personalidade de papel — que ela repre-
sentava um ser humano com coração, sentimentos,
simpatias e emoções tão-somente na medida em que
uma cédula representa uma certa quantidade de
ouro. Sei que esse tipo de sentimento irrompeu em
mim no momento em que aquele homem Bagshawe
me disse que a vira saindo do quarto daquele tipo.
Pensei de repente que ela não era real; era apenas
um monte de conversa tirada dos guias de viagens,
de desenhos tirados de ilustrações da moda. É até
possível, se esse sentimento não tivesse se apossa-
do de mim, que eu tivesse corrido logo para o quarto
dela e pudesse ter evitado que ela bebesse o ácido

234 FORD MADOX FORD


prússico. Mas não consegui fazê-lo; teria sido como
perseguir um pedaço de papel — uma ocupação
ignóbil para um adulto.
E, assim como começou, esse assunto conti-
nuou. Eu não dava a mínima quanto a ela ter saído
daquele quarto ou não. Isso simplesmente não me
interessava. Florence não me interessava.
Suponho que você vai retorquir que eu estava
apaixonado por Nancy Rufford e que portanto mi-
nha indiferença era suspeita. Bem, não estou queren-
do evitar o descrédito. Eu estava apaixonado por
Nancy Rufford assim como estou apaixonado pela
recordação dessa pobre criança, tranqüilamente e
com bastante ternura, de acordo com minha maneira
americana de ser. Jamais havia pensado nisso até que
ouvi Leonora afirmar que eu devia me casar com ela.
Mas, desse momento até a piora que a levou à mor-
te, não suponho que tenha pensado muito em outra
coisa. Não quero dizer com isso que suspirei ou gemi
por ela; desejava apenas me casar com ela assim como
algumas pessoas desejam ir a Carcassone.
Você entende o sentimento — o tipo de senti-
mento de que você tem de se livrar de certos assun-

O BOM S OLDADO 235


tos, aplainar certas complicações que não podem
ser negligenciadas antes que possa ir a um lugar que,
durante toda sua vida, foi uma espécie de cidade-
sonho? Eu não atribuía muita importância à minha
idade mais avançada. Tinha quarenta e cinco, e ela,
coitada, estava apenas chegando aos vinte e dois.
Mas era mais amadurecida do que sua idade e mais
tranqüila. Parecia ter uma estranha qualidade de
santidade, como se devesse inevitavelmente terminar
num convento com uma coifa branca emolduran-
do seu rosto. Mas ela me dissera freqüentemente que
não tinha vocação; o desejo de se tornar freira sim-
plesmente não existia. Bem, suponho que eu mes-
mo era uma espécie de convento; parecia bastante
adequado que ela consagrasse seus votos a mim.
Não, eu não via qualquer impedimento por
causa da diferença de idade. Atrevo-me a dizer que
nenhum homem vê, e eu confiava perfeitamente que,
com uma pequena preparação, poderia fazer uma
jovem feliz. Poderia mimá-la como poucas outras
moças poderiam ser mimadas e não conseguia ver-
me como pessoalmente repulsivo. Nenhum homem
consegue ou, se chega a fazê-lo, é o seu fim. Mas,

236 FORD MADOX FORD


logo que saí de minha catalepsia, tive a impressão
de que meu problema — o de que tinha de me pre-
parar a fim de entrar em contato com ela — era
apenas retomar o contato com a vida. Eu me man-
tivera durante doze anos numa atmosfera rarefeita;
tudo que tinha a fazer era lutar um pouco com a
vida real, alguma prática com homens de negócios,
alguma viagem para cidades maiores, algo áspero,
algo masculino. Não desejava apresentar-me a Nan-
cy Rufford como uma espécie de velha donzela. Foi
por isso que, apenas uma quinzena depois do sui-
cídio de Florence, parti para os Estados Unidos.

O BOM S OLDADO 237


II.

Imediatamente depois da morte de Florence,


Leonora começou a pôr um freio em Nancy Rufford
e Edward. Ela adivinhara o que havia acontecido
sob as árvores perto do cassino. Eles permaneceram
umas três semanas em Nauheim depois de minha
partida, e Leonora me contou que foi a época mais
terrível de sua existência. Parecia um longo e silen-
cioso duelo com armas invisíveis, foi o que ela dis-
se. E tudo se tornava ainda mais difícil por causa
da completa inocência da moça. Pois Nancy estava
sempre querendo sair sozinha com Edward — como
o fizera durante toda sua vida, quando passava as
férias em casa. Desejava apenas que ele lhe dissesse
coisas agradáveis de novo.
Veja, a situação era extremamente complica-
da. Era a mais complicada possível, em meio a li-
nhas delicadas. Havia a complicação causada pelo

238 FORD MADOX FORD


fato de que Edward e Leonora nunca conversavam
um com o outro, exceto quando outras pessoas es-
tavam presentes. Então, como eu disse, suas manei-
ras eram perfeitas. Havia a complicação causada
pela completa inocência da moça; havia a compli-
cação seguinte de que tanto Edward quanto Leo-
nora realmente viam a moça como sua filha. Ou
talvez fosse mais exato dizer que eles a viam como
sendo a filha de Leonora. E Nancy era uma moça
estranha; é muito difícil descrevê-la para você.
Ela era alta e impressionantemente magra;
tinha uma boca torturada, olhos angustiados e um
senso bastante extraordinário de diversão. Você po-
deria dizer que às vezes ela era excessivamente gro-
tesca e às vezes extraordinariamente bonita. Bem,
tinha o cabelo preto mais cheio que eu jamais vira;
eu costumava me perguntar como ela podia supor-
tar o peso dele. Tinha apenas vinte e um anos; às
vezes parecia tão velha quanto as colinas, às vezes
não mais do que dezesseis anos. Num determinado
momento ficava falando sobre as vidas dos santos
e no momento seguinte estava rolando na grama
com o cão são bernardo. Podia conduzir os cães de

O BOM S OLDADO 239


caça como uma meneida e podia ficar horas senta-
das perfeitamente imóvel, molhando lenço após len-
ço no vinagre, quando Leonora tinha uma de suas
dores de cabeça. Ela era, em suma, um milagre de
paciência que podia ser quase miraculosamente im-
paciente. Fora, sem dúvida, a educação do conven-
to que produzira isso. Lembro-me que uma de suas
cartas para mim, quando ela tinha quase dezesseis
anos, dizia algo assim:
“No Corpus Christi”, ou pode ter sido algum
outro dia santo, não consigo guardar essas coisas
em minha cabeça, “nossa escola jogou hóquei com
a equipe de Roemhampton. E, vendo que nossa equi-
pe estava perdendo, com três gols contra um no
primeiro tempo, fomos para a capela e rezamos pela
vitória. Vencemos por cinco a três”. E lembro-me
de que ela parecia descrever depois uma espécie de
saturnália. Aparentemente, quando as onze ou quin-
ze vitoriosas entraram no refeitório para o jantar,
toda a escola pulou nas mesas e comemorou e que-
brou as cadeiras no assoalho e espatifou a louça —
durante um certo tempo, até que a reverenda ma-
dre tocou o sino de mão. Isto é naturalmente a tra-

240 FORD MADOX FORD


dição católica — a saturnália que pode terminar a
qualquer momento, como o estalo de um chicote.
Naturalmente não gosto da tradição, mas me limi-
to a dizer que ela dava a Nancy — ou que de qual-
quer modo Nancy possuía — um sentido de reti-
dão que nunca vi ser superado. Era algo como uma
faca que brilhava em seus olhos e que falava com
sua voz, assim de repente. Isso positivamente me as-
sustava. Suponho que tinha quase medo de entrar
num mundo onde houvesse um padrão assim tão
apurado. Lembro-me de que, quando ela tinha quin-
ze ou dezesseis anos e estava voltando para o con-
vento, dei-lhe certa vez duas moedas de vinte xe-
lins como um agrado. Ela me agradeceu de uma
maneira particularmente emocionada, dizendo que
poderia ser extremamente útil. Perguntei-lhe por que
e ela explicou. Havia uma regra na escola, segun-
do a qual as alunas não deveriam falar quando atra-
vessavam o jardim da capela até o refeitório. E, já
que essa regra parecia estúpida e arbitrária, ela a
quebrava propositalmente todo o dia. Ao anoite-
cer, as crianças eram interrogadas a respeito de al-
guma falta cometida durante o dia, e toda noite

O BOM S OLDADO 241


Nancy confessava que quebrara aquela regra par-
ticular. Ela tinha que pagar seis centavos, pois essa
era a multa ligada à ofensa. Apenas para saber, per-
guntei a ela por que sempre confessava, e ela me res-
pondeu exatamente com essas palavras:
— Ah, bem, as meninas do Menino Sagrado
sempre foram conhecidas por sua sinceridade. É
uma chatice estúpida, mas tenho de mantê-la.
Atrevo-me a dizer que a natureza miserável de
sua infância, antecedendo a mistura de saturnália
e disciplina que fora sua vida no convento, acres-
centara alguma coisa à sua esquisitice. Seu pai era
um tipo louco, violento, um major do que se cha-
mava, creio, os regimentos Highland. Ele não be-
bia, mas tinha um temperamento incontrolável, e
a primeira coisa de que Nancy podia se lembrar era
de seu pai batendo em sua mãe com o punho fe-
chado, de modo que sua mãe caía da mesa de refei-
ção e ficava inerte. A mãe sem dúvida era uma mu-
lher irritante e os soldados rasos do regimento tam-
bém pareciam ser irritantes, de modo que a casa era
um lugar de gritarias e distúrbios perpétuos. A se-
nhora Rufford era a amiga mais íntima de Leono-

242 FORD MADOX FORD


ra, e Leonora podia ser bastante ferina às vezes. Mas
imagino que ela não era nada perto da senhora Ruf-
ford. O major voltava para o almoço agitando e já
soltando pragas depois de uma manhã de manobras
insatisfatórias com seus homens teimosos debaixo
de um sol quente. E aí a senhora Rufford fazia al-
gum comentário ferino e o pandemônio corria sol-
to. Uma vez, quando tinha um doze anos, Nancy
tentou intervir. Seu pai lhe deu um golpe tão terrí-
vel na fronte que ela ficou inconsciente durante três
dias. No entanto, Nancy parecia preferir seu pai à
sua mãe. Ela se lembrava da áspera bondade dele.
Uma ou duas vezes, quando era ainda muito peque-
na, ele a vestira de maneira desajeitada, impacien-
te, mas muito terna. Era quase impossível conseguir
uma criada para ficar na casa e, durante alguns dias,
aparentemente, a senhora Rufford ficava incapaz.
Imagino que ela bebia. De qualquer modo, tinha
uma língua tão ferina que até Nancy tinha medo
dela — fazia pouco de qualquer ternura, despreza-
va todas as manifestações emotivas. Nancy devia
ter sido uma criança muito emotiva...
Então um dia, repentinamente, ao voltar de um

O BOM S OLDADO 243


passeio a Fort William 56, Nancy fora enviada, com
sua ama-seca, que tinha uma cara branca, direta-
mente até o Sul, para aquela escola-convento. Ela
só esperava ir para lá dentro de dois meses. Sua mãe
desaparecera de sua vida nessa época. Uma quin-
zena depois Leonora foi até o convento e disse-lhe
que sua mãe morrera. Talvez tivesse morrido mes-
mo. De qualquer modo, nunca soube direito o que
aconteceu com a senhora Rufford. Leonora nunca
falou dela.
E aí o major Rufford foi para a Índia, de onde
só voltava raramente e apenas para visitas muito rá-
pidas; e Nancy passou a levar sua vida em Branshaw
Teleragh. Acho que, dessa época em diante, ela le-
vou uma vida muito feliz, até o fim. Havia os ca-
chorros, os cavalos, os velhos criados e a floresta.
E havia Edward e Leonora, que a amavam.
Eu sempre a conheci — quer dizer, ela sempre
veio ao encontro dos Ashburnham em Nauheim du-
rante a última quinzena da estadia deles — e eu a
observei crescer gradualmente. Ela era muito ani-

56 Cidade no oeste da Escócia. (N. do T.)

244 FORD MADOX FORD


mada comigo. Sempre me beijava, de dia e de noi-
te, até que chegou aos dezoito anos. E ela ficava
pulando e me trazendo coisas e ria com minhas his-
tórias da vida na Filadélfia. Mas, sob sua anima-
ção, acho que se agitavam alguns terrores. Lembro-
me que um dia, quando ela tinha dezoito anos, du-
rante uma das raras visitas de seu pai à Europa,
estávamos sentados nos jardins, perto da fonte or-
nada de ferro. Leonora tivera uma de suas dores de
cabeça e estávamos à espera de que Florence e Ed-
ward voltassem de seus banhos. Você não pode fa-
zer idéia de como ela estava bonita naquela manhã.
Estávamos falando sobre a conveniência de
comprar bilhetes de loteria — do lado moral da
coisa, quero dizer. Ela estava toda de branco, tão
alta e frágil; levantara seu cabelo, de modo que o
porte do pescoço tinha aquele toque encantador de
juventude e de surpresa. Sobre sua garganta dan-
çava o reflexo de uma pequena poça d’água, deixada
por um tempestade da noite anterior, e todo o res-
to dos seus traços se encontrava na sombra difusa
e luminosa de sua sombrinha branca. Seu cabelo
preto aparecia por trás dos furos de seu chapéu de

O BOM S OLDADO 245


palha; seu pescoço era muito comprido e se incli-
nava para a frente, e suas sobrancelhas, arquean-
do-se um pouco quando ria de algum anacronismo
de minha fraseologia, perdera as linhas tensas. E
havia um pouco de cor em seu rosto e de luz em
seus olhos azuis profundos. E pensar que aquela
coisa branca tão vívida, aquele ser santo e qual um
cisne — pensar que... Ora, ela era como a vela de
um navio, tão branca e tão nítida em seus movimen-
tos. E pensar que ela nunca... Ora, ela nunca mais
faria nada. Nem posso acreditar...
Seja como for, estávamos conversando sobre
a moralidade das loterias. E então, de repente, veio
das arcadas por trás de nós a modulação inconfun-
dível da voz de seu pai; foi como se uma buzina al-
terada tivesse soado com uma flauta dentro dela.
Olhei em volta para localizá-lo. Um homem de cin-
qüenta anos, alto, bonito, empertigado, vinha an-
dando ao lado de um barão italiano que fora mui-
to ligado ao Congo belga. Deviam estar falando
sobre o tratamento adequado para os nativos, pois
eu o ouvi dizer:
— Oh, dane-se a humanidade!

246 FORD MADOX FORD


Quando olhei de novo para Nancy, seus olhos
estavam cerrados e seu rosto estava mais pálido do
que seu vestido, que pelo menos tinha alguns refle-
xos rosas do cascalho. Foi horrível vê-la com os
olhos cerrados daquele jeito.
“Oh!”, ela exclamou, e sua mão que parecia
tatear, pousou por um instante sobre meu braço.
“Nunca fale disso. Prometa que nunca vai contar a
meu pai sobre isso. Me traz de volta aqueles sonhos
terríveis...” E, quando ela abriu seus olhos, olhou
diretamente nos meus. “Os santos abençoados”, ela
disse, “você pensa que eles lhe poupariam essas coi-
sas. Não acredito que nem todo o pecado no mun-
do possa fazer com que alguém os mereça”.
Dizem que a coitada tinha permissão para dei-
xar as luzes acesas à noite, mesmo no seu quarto...
E no entanto, nenhuma moça podia brincar mais
graciosa e amorosamente com um pai adorado. Ela
estava sempre segurando-o pelas lapelas do casa-
co; inquirindo-o sobre como ele passava seu tem-
po; beijando o alto de sua cabeça. Ah, ela era bem-
educada, se é que alguém já foi.
O pobre homem, o desgraçado, encolhia-se dian-

O BOM S OLDADO 247


te dela — mas ela fazia tudo para deixá-lo à vonta-
de. Talvez recebesse aulas sobre isso no convento. Era
só aquela nota peculiar de sua voz, empregada quan-
do ele era autoritário ou dogmático, que podia inti-
midá-la — e isso só era visível quando surgia ines-
peradamente. Isso era porque os maus sonhos, que
os santos abençoados permitiam que ela os tivesse
por causa de seus pecados, sempre pareciam anun-
ciar a si mesmos através do som retumbante da voz
de seu pai. Era o som que sempre precedera sua en-
trada nos terríveis almoços de sua infância...
Já contei, um pouco antes nesse capítulo, que
Leonora disse, durante o resto de sua estadia em
Nauheim, depois que fui embora, que ela tinha a
impressão de estar combatendo num longo duelo
com armas invisíveis contra adversários silenciosos.
Nancy, como eu já disse, estava sempre tentando
sair sozinha com Edward. Este fora seu hábito du-
rante anos. E Leonora achava que era seu dever
parar com aquilo. Era muito difícil. Nancy estava
habituada a comportar-se à sua maneira, e se acos-
tumara durante anos a fio a sair com Edward, ca-
çando ratos, coelhos, pescando salmão em Fordin-

248 FORD MADOX FORD


bridge, visitando o distrito daquela maneira que
Edward se permitia, ou procurando os arrendatá-
rios. E em Nauheim ela e Edward sempre iam ao
cassino sozinhos à noite — pelo menos toda vez que
Florence não reclamava sua presença. Isso mostra
a natureza obviamente inocente daqueles dois, uma
vez que nem mesmo Florence jamais tivera qualquer
manifestação de ciúme. Leonora cultivara o hábito
de ir para a cama às dez horas.
Não sei como ela conseguia, mas, durante todo
o tempo em que ficaram em Nauheim, manobrou
para nunca deixar os dois sozinhos, exceto à luz do
dia e em lugares com muita gente. Se um protestante
tivesse feito isso, despertaria sem dúvida uma auto-
consciência na moça. Mas os católicos, que sempre
mantém reservas e estranhos esconderijos para se-
gredos, sabem conduzir melhor essas coisas. E atre-
vo-me a dizer que duas coisas tornavam tudo mais
fácil — a morte de Florence e o fato de que Edward
estava obviamente adoecendo. Ele parecia, de fato,
estar muito doente; seus ombros começavam a se
curvar; havia bolsas sob seus olhos; ele tinha mo-
mentos extraordinários de distração.

O BOM S OLDADO 249


E Leonora descrevia a si mesma como um gato
feroz que observa um pombo inconsciente numa es-
trada. Naquela vigia silenciosa, mais uma vez, acho
que ela agiu como católica — uma gente que pode
ter pensamentos estranhos aos nossos e guardá-los
para si próprios. E os pensamentos atravessavam
sua mente; alguns deles se dirigiam para Edward
com uma palavra nunca dita. A princípio, ela pen-
sou que podia ser o remorso, ou a dor, por causa
da morte de Florence que o estava oprimindo. Mas
observou e observou, e lançou de maneira aparen-
temente casual frases sobre Florence diante da moça,
percebendo que ele não sentia qualquer dor ou re-
morso. Ele não admitia que Florence pudesse ter co-
metido suicídio sem lhe escrever pelo menos uma
declaração. A ausência de algo assim o deixava certo
de que fora doença do coração. Pois Florence nun-
ca o decepcionara a esse respeito. Ela pensava que
isso a tornava mais romântica.
Não, Edward não sentia remorso. Ele era ca-
paz de dizer a si mesmo que sempre tratara Florence
com a atenção galante que ela desejara até duas
horas antes de sua morte. Leonora deduzira isso do

250 FORD MADOX FORD


seu olhar, e da maneira como ele aprumara os om-
bros ao se inclinar sobre ela, no caixão — dessas e
de milhares de outras pequenas coisas. Ela iniciava
de repente uma conversa sobre Florence com a moça
e ele não a interrompia; ele sequer prestava aten-
ção, mas ficava sentado com os olhos sangüíneos
fitando a toalha da mesa. Bebia bastante, nessa épo-
ca — uma firme rodada de bebida toda noite, mes-
mo depois que já tinham ido para a cama.
Pois Leonora fazia com que a moça fosse para
a cama às dez horas, por mais irrazoável que pare-
cesse a Nancy. Ela achava que, enquanto estives-
sem numa espécie de luto por Florence, ela não de-
veria ser vista em lugares públicos como o cassino;
mas não podia entender porque não devia acom-
panhar seu tio durante seus passeios noturnos pelo
parque. Não sei o que Leonora deu como desculpa
— algo, eu acho, ligado a um tipo de prece notur-
na que fazia com que ela e a moça praticassem pela
alma de Florence. E então, certa noite, umas duas
semanas depois, quando a moça, mostrando-se re-
belde até mesmo a seus exercícios devocionais, re-
clamou que lhe fosse permitido sair para um pas-

O BOM S OLDADO 251


seio com Edward, e quando Leonora já estava de
fato no fim de suas forças, o próprio Edward pôs-
se em suas mãos. Ele acabava de se levantar depois
do jantar e estava olhando para o lado.
Mas voltou sua cabeça pesada e seus olhos
sangüíneos na direção de sua esposa e encarou-a.
— O doutor von Hauptmann — disse — or-
denou-me que fosse direto para a cama imediata-
mente após o jantar. Meu coração está bem pior.
Ele continuou a olhar para Leonora durante um
longo minuto — com uma espécie de desprezo pesa-
do. E Leonora compreendeu que, com sua fala, ele
estava lhe dando a desculpa de que ela precisava para
separá-lo da moça e, com seus olhos, estava reprovan-
do-a por pensar que ele tentaria corromper Nancy.
Ele foi silenciosamente para seu quarto e ficou
sentado ali durante muito tempo — até que a moça
fosse para a cama —, lendo seu livro anglicano de
orações. E meia-hora depois das dez ela ouviu seus
passos ultrapassarem sua porta, dirigindo-se para
fora. Duas horas e meia depois eles voltaram, tro-
peçando pesadamente.
Ela continuou a refletir sobre essa situação até

252 FORD MADOX FORD


a última noite da estadia deles em Nauheim. Então,
de repente, ela agiu. Pois, da mesma maneira, subi-
tamente depois do jantar, olhou para ele e disse:
— Teddy, você não acha que pode tirar uma
noite de folga das ordens do médico e ir com Nancy
até o cassino? A pobre menina está perdendo sua
visita.
Ele a olhou de volta durante um longo e pon-
derado minuto.
— Ora, claro, disse por fim.
Nancy pulou da cadeira e o beijou.
Essas duas palavras, Leonora disse, deram-lhe
o maior alívio que jamais quaisquer outras duas sí-
labas tinham lhe proporcionado na vida. Pois ela
compreendeu que Edward estava se deteriorando,
não por causa do desejo de posse, mas pela obsti-
nada determinação de controlar-se. Ela podia rela-
xar um pouco sua vigilância.
No entanto, ficou sentada na escuridão atrás
de suas gelosias semi-cerradas, olhando para a rua,
e noite e as árvores até que, já muito tarde, ouviu a
voz clara de Nancy se aproximando cada vez mais
e dizendo:

O BOM S OLDADO 253


— Você parecia um velho com o nariz falso.
Tinha acontecido alguma espécie de celebra-
ção de um feriado local no Kursaal. E Edward res-
pondeu com uma espécie de amuo bem-humorado:
— E você, você parecia uma pequena bruxa.
A moça vinha se balançando, sua silhueta de-
senhada pela lamparina; a outra, encurvada a seu
lado, era Edward. Conversavam do mesmo jeito que
sempre tinham conversado desde que a moça tinha
dezessete anos; com os mesmos tons, a mesma pia-
da sobre uma velha mendiga que sempre os diver-
tia em Branshaw. A moça, um pouco depois, abriu
a porta de Leonora enquanto beijava Edward na
fronte como fazia toda noite.
— Tivemos uma noite maravilhosa — ela dis-
se. — Ele está se sentindo bem melhor. Me fez cor-
rer vinte jardas até em casa. Por que você está no
escuro?
Leonora podia ouvir Edward caminhando para
o seu quarto, mas por causa da conversa da moça,
não sabia dizer se ele saíra de novo ou não. E aí,
bem mais tarde, porque ela pensara que se ele esti-
vesse bebendo de novo, algo devia ser feito para que

254 FORD MADOX FORD


parasse, abriu pela primeira vez, e com toda a sua-
vidade, a porta jamais aberta entre seus quartos. Ela
queria ver se ele saíra de novo. Edward estava ajoe-
lhado ao lado da cama com a cabeça escondida na
colcha. Seus braços, estirados, seguravam diante de
si uma pequena imagem da santa virgem — um ob-
jeto prussiano, barato e escarlate que a moça lhe
dera depois de seu primeiro retorno do convento.
Seus ombros tremeram convulsivamente três vezes,
e soluços pesados vieram dele antes que ela pudes-
se fechar a porta. Ele não era católico; mas era as-
sim que se sentia.
Leonora dormiu naquela noite pela primeira
vez com um sono que jamais usufruíra.

O BOM S OLDADO 255


III.

E então Leonora sofre um colapso completo


— no dia quem que voltaram para Branshaw Te-
leragh. É a imposição de nossas miseráveis mentes
— é o flagelo do destino atroz, mas provavelmente
justo, que nenhuma desgraça venha sozinha. Não,
qualquer grande desgraça, embora a própria des-
graça possa passar, deixa em seu lugar uma seqüên-
cia de horrores, miséria e desespero. Pois Leonora
estava, dentro de si mesma, aliviada. Sentiu que
podia confiar em Edward com a moça e sabia que
Nancy era de absoluta confiança. E aí, com o afrou-
xamento de sua vigilância, veio o afrouxamento de
toda sua mente. Esta é talvez a parte mais miserá-
vel de toda a história. Pois é miserável ver uma in-
teligência clara vacilar; e Leonora vacilou.
Você deve entender que Leonora amava Ed-
ward com uma paixão que era como uma angústia

256 FORD MADOX FORD


de ódio. E vivera com ele durante anos e anos sem
lhe dirigir uma palavra de ternura. Não sei como
podia fazê-lo. No começo dessa relação, ela fora
oferecida em casamento a ele. Ela era uma entre sete
irmãs numa mansão mal mobiliada, desleixada, pa-
ra a qual retornara do convento de que tanto ouvi
falar. Ela saíra de lá há um ano apenas e só tinha
dezenove anos. É impossível imaginar alguém tão
inexperiente quanto ela. Quase se poderia dizer que
nunca conversara com um homem, exceto com um
padre. Saindo diretamente do convento, ficara atrás
dos altos muros da mansão senhorial que era quase
tão enclausurada quanto um convento. Havia sete
moças, havia a mãe exausta, havia o pai aflito, sobre
quem naquele ano os arrendatários tinham atirado
três vezes de detrás de uma cerca. As mulheres, em
geral, eram respeitadas pelos arrendatários. Uma vez
por semana cada uma das moças, já que eram sete,
passeava com a mãe numa carruagem de vime con-
duzida por um pônei muito gordo e pesado. Ocasio-
nalmente retribuíam uma visita, mas mesmo isso era
tão raro que, Leonora me assegurou, no ano em que
voltara do convento, só entrara três vezes na casa

O BOM S OLDADO 257


de uma outra pessoa. Durante o resto do tempo as
sete irmãs corriam pelos jardins abandonados en-
tre as árvores secas. Ou jogavam tênis no gramado
ou pelota basca num canto do grande muro que
cercava o jardim — num canto onde as árvores fru-
tíferas já tinham morrido. Pintavam aquarelas; bor-
davam; copiavam versos nos álbuns. Uma vez por
semana iam à missa; uma vez por semana iam ao
confessionário acompanhadas por uma velha cria-
da. Eram felizes, já que não conheciam outra vida.
Pareceu a todas elas uma extravagância singu-
lar quando, um dia, trouxeram um fotógrafo até o
condado e foram fotografadas em pé, todas as sete,
à sombra de uma velha macieira com o líquen cin-
zento sobre o tronco avermelhado.
Mas não era nenhuma extravagância.
Três semanas antes o coronel Powys escreve-
ra para o coronel Ashburnham:
“Eu lhe digo, Harry, será que Edward pode-
ria se casar com uma de minhas filhas? Seria uma
bênção divina para mim, pois já estou no fim de
minhas forças e, uma vez que uma das moças se for,
o resto delas irá segui-la.”

258 FORD MADOX FORD


Ele prosseguia dizendo que todas suas filhas
eram altas, bem-educadas, bem proporcionadas e
absolutamente puras, e lembrava ao coronel Ash-
burnham que, já que os dois haviam se casado no
mesmo dia, embora em igrejas diferentes, pois ele
era católico e outro anglicano, eles tinham prome-
tido um ao outro, na noite anterior, que, quando
chegasse o tempo, um de seus filhos se casaria com
uma de suas filhas. A senhora Ashburnham fora
uma Powys e era a amiga mais íntima da senhora
Powys. Eles tinham vagado pelo mundo como fa-
zem os soldados ingleses, encontrando-se raramente,
mas suas mulheres tinham sempre se correspondido.
Elas escreviam uma à outra sobre coisas comuns
como a dentição de Edward e suas filhas mais mo-
ças ou sobre a melhor maneira de consertar fios
soltos numa meia. E embora se encontrassem rara-
mente, ainda assim mantinham suas personalidades
vivas, uma na lembrança da outra, ficando grisa-
lhas gradualmente, ficando gradualmente com as
juntas mais duras, mas sempre tendo muito para
conversar e com um estoque de lembranças. Então,
como suas filhas chegaram a uma idade em que

O BOM S OLDADO 259


deviam deixar o convento em que tinham sido re-
gularmente internadas durante seus anos de servi-
ço ativo, o coronel Powys aposentou-se do exérci-
to com a necessidade de lhes dar um lar. Acontece
que os Ashburnham nunca tinha visto nenhuma das
moças Powys, embora, todas as vezes em que os pais
se encontrassem em Londres, Edward Ashburnham
estivesse sempre no grupo. Nessa época ele tinha
vinte e dois anos, e, eu creio, uma mente tão pura
quanto a da própria Leonora. É estranho como um
rapaz pode ter sua inteligência virgem, intocada pelo
mundo.
Isso se devia em parte aos cuidados de sua mãe,
em parte ao fato de que a casa para a qual ele fora
em Winchester tivesse um ambiente particularmente
puro e em parte à própria aversão peculiar de Ed-
ward a qualquer coisa como linguagem chã ou his-
tórias obscenas. Em Sandhurst 57 ele se mantivera
afastado desse tipo de coisa. Era afiado em mano-
bras militares, matemática, agrimensura, política e,

57 Trata-se do Colégio Militar Real [Royal Military


College]. (N. do T.)

260 FORD MADOX FORD


por uma estranha urdidura de sua mente, em lite-
ratura. Quando ainda tinha vinte e dois anos, pas-
sava horas lendo um dos romances de Scott ou as
crônicas de Froissart58.
A senhora Ashburnham pensava que devia ser
congratulada por isso, e quase toda semana escrevia
para a senhora Powys, expandindo sua satisfação.
Então, um dia, passeando pela Bond Street com
seu filho, depois de ter passado pelo Lord’s 59, ela
observou que Edward virava rapidamente a cabe-
ça para dar um segundo olhar a uma moça bem-
vestida que passava por eles. Ela escreveu a esse
respeito, também, para a senhora Powys, e expres-
sou um certo alarme. Não passara de uma mera
ação reflexa da parte de Edward. Ele estava tão
distraído nessa época, devido à pressão que seu pro-
fessor para o preparatório exercia sobre ele, que
certamente não tinha noção do que estava fazendo.

58Jean Froissart (1333?-1400), historiador flamengo.


Suas Crônicas contêm a história feudal da França, Inglaterra
e Espanha no período de 1325 a 1400. (N. do T.)
59 O mais famoso campo de críquete da Inglaterra em
St John’s Wood, Londres. (N. do T.)

O BOM S OLDADO 261


Foi essa carta da senhora Ashburnham para a
senhora Powys que motivou a carta do coronel Po-
wys para o coronel Ashburnham — uma carta meio
brincalhona, meio ansiosa. A senhora Ashburnham
fez com que seu marido respondesse com uma car-
ta um pouco mais chistosa — algo relacionado ao
fato de que o coronel Powys devia lhes dar alguma
idéia dos bens que estava anunciado. Foi esta a causa
da fotografia. Eu as vi, as sete moças, todas de ves-
tido branco, todas muito parecidas — todas, exce-
to Leonora, com um queixo um pouco duro e o
olhar um pouco estúpido. Atrevo-me a dizer que de
qualquer modo Leonora também parecia um pou-
co dura e um pouco estúpida, pois não era uma boa
foto. Mas a sombra escura de um dos galhos da
macieira interceptava seu rosto, que por pouco não
era invisível.
Seguiu-se então uma época incômoda para o
coronel e para a senhora Powys. A senhora Ash-
burnham escreveu para dizer, muito sinceramente,
que nada daria maior conforto às suas ansiedades
maternais do que casar seu filho com uma das fi-
lhas da senhora Powys, caso ele mostrasse alguma

262 FORD MADOX FORD


inclinação para fazê-lo. Pois, ela acrescentava, nada
a não ser uma união por amor era o que se devia
cogitar no caso de seu Edward. Desse modo, o po-
bre casal Powys tinha de conduzir as coisas de ma-
neira extremamente delicada, pois até mesmo o en-
contro dos jovens era um lance desesperado.
A própria despesa para enviar uma de suas fi-
lhas da Irlanda até Branshaw era assustadora para
eles; talvez a moça que escolhessem pudesse não ser
a que despertaria o interesse de Edward. Por outro
lado, a despesa em relação apenas à alimentação e
aos lençóis extras por causa de uma visita dos Ash-
burnham também era assustadora. Significava, ma-
tematicamente, que eles teriam que reduzir sua pró-
pria alimentação. No entanto arriscaram, e todos
os três Ashburnham vieram visitar a mansão soli-
tária. Podiam dar a Edward algum tipo de caça, de
pescaria e um turbilhão de feminilidade; mas devo
dizer que as moças causaram de fato mais impres-
são à senhora Ashburnham do que ao próprio Ed-
ward. Elas lhe pareceram educadas com pureza e
prudentes. De fato, tinham uma educação tão pura
que, de uma maneira tênue, Edward parece tê-las

O BOM S OLDADO 263


considerado mais como garotos do que como ga-
rotas. E então, numa noite, a senhora Ashburnham
teve uma dessas conversas com seu rapaz que as
mães inglesas costumam ter com seus filhos. Pare-
ce ter sido uma espécie de procedimento penal, em-
bora eu não saiba exatamente o que aconteceu. Seja
como for, na manhã seguinte o coronel Ashburnham
pediu para seu filho a mão de Leonora. Isso cau-
sou alguma consternação ao casal Powis, já que
Leonora era a terceira filha e Edward deveria se
casar com a mais velha. A senhora Powys, com seu
rígido senso de adequação, quase quis rejeitar a
proposta. Mas o coronel, seu marido, mostrou-lhe
que a visita lhes custara sessenta libras, com a con-
tratação de um criado extra, de um cavalo e de uma
carruagem, e com a compra de camas, roupas de
cama e toalhas de mesa. Não havia outra saída a
não ser o casamento. Dessa maneira Edward e Leo-
nora se tornaram marido e mulher.
Não sei se é necessário um estudo muito deta-
lhado da evolução deles até uma desunião comple-
ta. Talvez seja. Mas há muitas coisas que não pos-
so desenvolver, sobre as quais nada posso pergun-

264 FORD MADOX FORD


tar a Leonora, ou sobre as quais Edward nunca me
disse nada. Ele certamente a viu como desejável
entre as suas irmãs. Foi obstinado a ponto de dizer
que, se não fosse com ela, não seria com nenhuma
outra. E sem dúvida, antes do casamento, fez belos
discursos para ela, tirados dos livros que lera. Mas,
na medida em que podia descrever seus próprios
sentimentos, mais tarde, parece que, calmamente e
sem nenhuma aceleração do pulso, ele apenas levou
a moça, já que não havia oposição. No entanto, tudo
acontecera há tanto tempo que, para ele já no fim
de sua pobre vida, tudo parecia um caso turvo e
nebuloso. Ele tinha a maior admiração por Leonora.
Sim, ele a admirava extremamente. Admirava-
a por sua sinceridade, pela clareza de sua mente, por
seus membros bem-proporcionados, por sua eficiên-
cia, pela beleza de sua pele, pelo tom dourado de
seu cabelo, por sua religião, por seu senso de de-
ver. Era uma satisfação tê-la a seu lado.
Mas ela não tinha para ele um toque de mag-
netismo. Suponho, de fato, que não a amasse por-
que nunca era queixosa; o que de fato fazia-o sen-
tir-se bem na vida era poder confortar alguém que

O BOM S OLDADO 265


se encontrava obscura e misteriosamente infeliz.
Nunca pôde fazer isso com Leonora. Talvez, tam-
bém, ela fosse no princípio obediente demais. Não
quero dizer que fosse submissa — que abdicasse de
seu julgamento em nome do dele. Não. Mas ela lhe
fora entregue como uma espécie de virgem medie-
val paciente; durante toda sua vida fora ensinada
que seu dever principal era obedecer. E ali estava
ela.
Nela, pelo menos, a admiração pelas qualida-
des dele logo se tornou amor da mais profunda es-
pécie. Se o pulso dele nunca se acelerava, ela, pelo
que eu soube, ficava, como se diz, alterada quando
ele se aproximava dela do outro lado do salão de
dança. Os olhos dela o seguiam cheios de confian-
ça, admiração, gratidão e amor. Ele também era,
em sentido amplo, seu pastor e guia — e a guiava
rumo ao que, para uma moça saída de um conven-
to, era quase o céu. Não tenho a menor idéia de
como pode ser a vida da esposa de um oficial in-
glês. De qualquer modo, havia festas e conversas, e
belos homens que davam a ela o tipo correto de
admiração, e belas mulheres que a tratavam como

266 FORD MADOX FORD


se ela fosse uma criança. E o confessor aprovava a
vida dela, e Edward deixava-a dar presentes para
as moças do convento de que saíra, e a reverenda
madre aprovava-o. Não houve uma moça mais fe-
liz durante uns cinco ou seis anos.
Pois foi apenas ao fim dessa época que as nu-
vens começaram, como se diz, a se formar. Ela ti-
nha então uns vinte e três anos, e sua eficiência re-
soluta talvez a fizessem desejar exercer algum do-
mínio. Começou a perceber que Edward era extra-
vagante em sua generosidade. Os pais dele morre-
ram exatamente nessa época, e Edward, embora os
dois tivessem decidido que ele continuaria no exérci-
to, deu grande atenção à administração de Bran-
shaw através de um administrador. Aldershot não
ficava longe, e eles passavam lá todas suas licenças.
De repente ela começou a perceber que suas
generosidades eram quase fantásticas. Ele contribuía
demais com as coisas ligadas ao rancho de seus sol-
dados, dava pensões aos pais de seus criados, ve-
lhos ou novos, que eram generosas demais. Eles ti-
nham uma grande renda, mas a todo instante se
viam em dificuldades. Ele começou a falar em hi-

O BOM S OLDADO 267


potecar uma ou duas fazendas, embora isso nunca
tenha acontecido.
Ela fez várias tentativas para adverti-lo. O pai
dela, a quem de quando em quando via, disse que
Edward era generoso demais com seus arrendatá-
rios; as esposas de seus camaradas de arma adver-
tiram-na em particular; suas grandes contribuições
criavam dificuldades para seus maridos, que eram
mais pobres, ficarem à altura delas. Ironicamente,
o primeiro problema real entre eles surgiu de seu
desejo de construir uma capela católica romana em
Branshaw. Ele queria construí-la em homenagem a
Leonora e se propunha a fazê-lo de maneira muito
cara. Leonora não quis; ela podia perfeitamente
dirigir-se até a igreja católica mais próxima em Bran-
shaw, como sempre gostava de fazer. Não havia ar-
rendatários católicos e nenhum criado católico ro-
mano, com exceção de sua antiga ama-seca, que
podia ir com ela. Ela tinha os padres que quisesse
para acompanhá-la, caso fosse necessário — e até
mesmo os padres não queriam uma capela suntuo-
sa naquele lugar, porque poderia parecer apenas
uma demonstração invejosa de ostentação. Podiam

268 FORD MADOX FORD


perfeitamente celebrar missa para Leonora e sua
ama-seca, quando estivessem em Branshaw, num
alpendre limpo. Mas Edward era tão obstinado em
relação a isso quanto uma mula.
Ele estava de fato ofendido com a falta de sen-
timento de sua esposa — com sua recusa em rece-
ber aquela manifestação de homenagem pública da
parte dele. De seu ponto de vista, ela parecia care-
cer de imaginação — ser fria e dura. Não sei exata-
mente que papel os padres dela desempenharam na
tragédia em que tudo se transformou; atrevo-me a
dizer que se comportaram de boa fé, mas equivo-
cadamente. Mas, quem não se equivocaria com Ed-
ward? Creio que chegou a ficar melindrado porque
o confessor de Leonora não fez esforços ardorosos
para convertê-lo. Houve um período em que ele
esteve prestes a se tornar um católico emocional.
Não sei porque eles não o pegaram no pulo;
mas, essas pessoas tinham um estranho tipo de sa-
bedoria, todos eles, e um estranho tipo de tato. Tal-
vez pensassem que a conversão demasiado prema-
tura de Edward assustasse outros protestantes de-
sejosos de se casarem com moças católicas. Talvez

O BOM S OLDADO 269


vissem com mais profundidade dentro de Edward
do que ele próprio e pensassem que ele não seria
um convertido muito confiável. De qualquer modo
eles — e Leonora — deixaram-no muito só. Ele me
disse que, se Leonora tivesse levado a sério suas
aspirações, tudo teria sido diferente. Mas me atre-
vo a dizer que isso não fazia sentido.
De qualquer modo, foi a propósito do proble-
ma da capela que eles tiveram sua primeira e de-
sastrosa discussão séria. Edward não estava bem
nessa época; achava que estava sobrecarregado com
suas questões regimentais — estava administrando
o rancho dos soldados nessa ocasião. E Leonora não
estava bem — estava começando a temer que sua
união pudesse se tornar estéril. E aí o pai dela veio
de Glasmoyle para ficar com ela.
Era uma época agitada na Irlanda, eu sei. Seja
como for, o coronel Powys estava obcecado com os
arrendatários — seus próprios arrendatários haviam
atirado nele. E, em conversa com o administrador
dos arrendatários, botou em sua cabeça que Edward
administrava suas propriedades com uma louca ge-
nerosidade em relação a seus arrendatários. Tam-

270 FORD MADOX FORD


bém sei que todos esses anos — a década de 90 —
foram muito ruins para os fazendeiros. O trigo es-
tava alcançando só uns poucos xelins por cem sa-
cas; o preço da carne estava tão baixo que nem valia
a pena criar gado; todos os condados ingleses esta-
vam arruinados. E Edward concedia a seus arren-
datários abatimentos muito altos.
Para fazer justiça a ambos, Leonora reconhe-
ceu depois que estava errada nessa época e que Ed-
ward estava seguindo uma política de maior visão
ao apoiar seus arredantários, de fato muito capazes,
num período ruim. Seu dinheiro não vinha todo da
terra; uma boa parte estava nas ferrovias. Mas o
velho coronel Powys tinha aquela idéia fixa na cabe-
ça e, se jamais abordou diretamente Edward a res-
peito do assunto, ele a proclamava para Leonora,
toda vez que tinha oportunidade. Sua idéia favorita
era que Edward deveria despedir todos seus arrenda-
tários e importar um grupo de fazendeiros da Escó-
cia. Era o que estavam fazendo em Essex. Ele era de
opinião que Edward estava correndo para a ruína.
Isso deixava Leonora muito preocupada —
terrivelmente preocupada; ela passava as noites acor-

O BOM S OLDADO 271


dada; tinha uma marca de ansiedade em volta da
boca. E isso, também, preocupava Edward. Não
quero dizer que Leonora de fato falasse com Edward
sobre seus arrendatários — mas ele ficou sabendo
que alguém, provavelmente seu pai, conversara com
ela sobre o assunto. Ele ficou sabendo disso por-
que era hábito de seu administrador visitá-los toda
manhã, perto da hora do almoço, para relatar pe-
quenos acontecimentos. E havia um fazendeiro cha-
mado Mumford que só pagara metade de sua ren-
da nos últimos três anos. Uma manhã o adminis-
trador relatou que Mumford não poderia pagar sua
receita naquele ano. Edward refletiu um momento
e então disse alguma coisa assim:
— Está bem, é um velho e sua família tem sido
arrendatária há quase duzentos anos. Pode deixá-
lo em paz.
E então Leonora — você deve se lembrar de
que ela tinha razão em estar muito nervosa e infe-
liz nessa época — deixou escapar um som que era
como um resmungo. Isto sobressaltou Edward, que
suspeitava do que se passava na mente dela, levan-
do-o um estado de raiva. Ele disse rispidamente:

272 FORD MADOX FORD


— Será que você prefere que eu despeça essas
pessoas que ganham dinheiro para nós há séculos
— pessoas com quem temos responsabilidades —
e mande buscar um grupo de fazendeiros escoceses?
Ele olhou para ela, Leonora disse, com o que
era praticamente um olhar de ódio e então, preci-
pitadamente, abandonou a mesa do café da manhã.
Leonora sabia que as coisas iriam piorar ainda mais,
porque ele fora traído por uma manifestação de
raiva diante de um terceiro. Foi a primeira e a últi-
ma vez que ele se deixou trair por esse tipo de ma-
nifestação de raiva. O administrador dos arrenda-
tários, um homem moderado e equilibrado cuja fa-
mília também já estava há quase um século com os
Ashburnham, encarregou-se de explicar que acha-
va que Edward estava tendo uma conduta perfei-
tamente adequada em relação a seus arrendatários.
Ele talvez errasse um pouco pelo lado da generosi-
dade, mas tempos difíceis eram tempos difíceis, e
todo mundo tinha de sentir a ferroada, tanto o pro-
prietário quanto os arrendatários. O importante era
não era deixar a terra num estado pobre de culti-
vo. Os fazendeiros escoceses tinham arrasado suas

O BOM S OLDADO 273


terras, deixando-as decair cada vez mais. Mas Ed-
ward tinha um grupo muito bom de arrendatários
que faziam o melhor por ele e por si mesmos. Esses
argumentos, nessa época, foram muito pouco con-
vincentes para Leonora. No entanto, ela ficara mui-
to preocupada com a explosão de raiva de Edward.
O fato é que Leonora vinha fazendo economias
em seu departamento. Duas de suas criadas domés-
ticas tinham ido embora e ela não as substituíra;
naquele ano gastara muito menos com vestidos. O
gasto que tivera com os jantares que haviam ofere-
cido fora muito menos generoso e muito menos caro
do que havia sido nos anos anteriores; Edward co-
meçou a perceber dureza e determinação na perso-
nalidade de sua esposa. Ele tinha a impressão de que
havia uma rede se fechando em torno de si — uma
rede na qual eram forçados a viver como uma das
famílias comparativamente pobres da vizinhança do
condado. E, daquela maneira misteriosa pela qual
duas pessoas, vivendo juntas, conseguem saber o
pensamento um do outro sem dizer palavra, ele sa-
bia, mesmo antes de sua explosão, que Leonora es-
tava aborrecida com sua maneira de administrar a

274 FORD MADOX FORD


propriedade. Isso lhe parecia intolerável. Ele alimen-
tava também um grande sentimento de auto-despre-
zo, porque fora traído ao falar rispidamente com
Leonora diante do administrador. Pensou que seus
nervos deviam estar a abandoná-lo, e deve haver
poucos homens mais miseráveis do que Edward nes-
se período.
Veja, ele era realmente uma alma muito sim-
ples — muito simples. Pensava que nenhum ho-
mem pode realizar de modo satisfatório as tarefas
de sua vida sem a cooperação leal e sincera da mu-
lher com quem vive. E estava começando a perce-
ber sombriamente que, enquanto suas próprias tra-
dições eram inteiramente coletivas, sua esposa era
uma individualista completa. Sua própria teoria —
a teoria feudal de um grão-senhor fazendo o me-
lhor por seus dependentes, enquanto os dependen-
tes faziam o melhor pelo seu grão-senhor — era
inteiramente estranha ao temperamento de Leono-
ra. Ela vinha de um família de pequenos proprie-
tários irlandeses — essa guarnição hostil numa re-
gião saqueada. E ela pensava incessantemente nos
filhos que desejava ter.

O BOM S OLDADO 275


Não sei porque nunca tiveram filhos — não
que eu ache que os filhos tivessem feito qualquer
diferença. A dessemelhança entre Edward e Leonora
era profunda demais. Para que você tenha uma idéia
da extraordinária naïveté de Edward Ashburnham
na época de seu casamento, e talvez durante uns dois
após, ele não sabia realmente como os filhos eram
produzidos. Nem Leonora. Não quero dizer com
isso que esse estado de coisas continuou, mas foi
assim. Atrevo-me a dizer que isso teve uma grande
influência sobre suas mentalidades. De qualquer
modo, nunca tiveram um filho. Era a vontade de
Deus.
Isso certamente se manifestava para Leonora
como sendo a vontade de Deus — como sendo um
terrível e misterioso castigo do Todo-Poderoso. Pois
ela descobrira um pouco antes desse período que
seus pais não tinham obtido da família de Edward
a promessa de que qualquer uma das crianças de-
vesse ser educada como católica. Ela própria nun-
ca conversara sobre esse assunto nem com seu pai,
nem com sua mãe, nem com seu marido. Quando
seu pai deixou escapar por fim algumas palavras que

276 FORD MADOX FORD


a levaram a acreditar que de fato a situação era essa,
ela tentou desesperadamente extrair essa promessa
de Edward. Encontrou uma obstinação inesperada.
Edward concordava inteiramente que as meninas
poderiam ser católicas; os meninos deviam ser an-
glicanos. Não entendo a relevância dessas coisas na
sociedade inglesa. Na verdade, os ingleses me pa-
recem um pouco loucos em questões de política ou
de religião. Em Edward isso era particularmente
estranho, porque ele próprio estava perfeitamente
pronto para se tornar um católico romano. No en-
tanto, parecia admitir sua adesão ao catolicismo e
ao mesmo tempo deixar que seus filhos fossem edu-
cados na religião de seus antepassados imediatos.
Isso pode parecer ilógico, mas me atrevo a dizer que
não é tão ilógico quanto parece. Edward, isso deve
ser dito, via a si mesmo como tendo seu próprio
corpo e alma à sua disposição. Mas sua lealdade às
tradições de sua família não lhe permitiam impor
nada a quaisquer herdeiros de seu nome ou a be-
neficiários pela morte de seus ancestrais. Em rela-
ção às moças isso não tinha muita importância. Elas
iriam conhecer outros lares e outras circunstâncias.

O BOM S OLDADO 277


Além disso, esse era o costume. Mas os rapazes de-
vem ter a oportunidade de escolher — e eles devem
receber em primeiro lugar o ensino anglicano. Ele
era inabalável a este respeito.
Leonora esteve angustiada durante todo esse
tempo. Você deve se lembrar de que ela acreditava
seriamente que as crianças que pudessem nascer dela
correriam o perigo, se não de danação absoluta, pelo
menos de receber a falsa doutrina. Era uma angústia
mais terrível do que lhe era dado descrever. Ela de
fato não tentava descrevê-la, mas eu podia adivinhá-
lo em sua voz, quando dizia, quase negligentemen-
te: “Eu ficava noites inteiras acordada. De nada
adiantava que meus conselheiros espirituais tentas-
sem me consolar”. Eu sabia pela voz dela como essas
noites deviam ter sido longas e terríveis e como eram
de pouca valia os consolos de seus conselheiros es-
pirituais. Estes, os conselheiros espirituais, pareciam
tomar a coisa com um pouco mais de tranqüilidade.
Com certeza, disseram a ela que não visse a si mes-
ma como tendo cometido um pecado. Não, pare-
ciam até exortá-la, até a ameaçá-la, com um parecer
que pudesse tirá-la do que consideravam um estado

278 FORD MADOX FORD


mental mórbido. Ela teria apenas que fazer o melhor
possível, influenciar as crianças quando viessem, não
pela propaganda, mas pela personalidade. E adver-
tiram-na de que estaria cometendo um pecado se
continuasse a pensar que havia pecado. No entan-
to, ela continuava a pensar que havia pecado.
Leonora não podia deixar de estar consciente
de que o homem que amava apaixonadamente e a
quem, entretanto, estava começando a tentar domi-
nar com mão de ferro, de que esse homem ficava cada
vez mais distante dela. Ele parecia vê-la não só como
física e mentalmente fria, mas também como sendo
realmente perversa e mesquinha. Havia momentos
em que ele quase estremecia, se ela lhe falasse. E ela
não podia entender como ele podia considerá-la per-
versa ou mesquinha. Para ela, era uma espécie de
loucura que ele tentasse colocar sobre seus próprios
ombros o peso de sua tropa, de seu regimento, de sua
propriedade e de metade de sua região. Ela não po-
dia ver que, ao tentar dobrar o que ela via como me-
galomania, estivesse fazendo algo perverso. Estava
apenas tentando manter as coisas em nome dos fi-
lhos que não vinham. E, pouco a pouco, toda a re-

O BOM S OLDADO 279


lação entre eles se tornou simplesmente uma discus-
são atormentada sobre se Edward devia ou não fa-
zer contribuições para esta ou aquela instituição ou
se deveria recuperar este ou aquele bêbado. Ela sim-
plesmente não podia enxergar isso.
Nessa situação realmente terrível de tensão,
para a qual parecia não haver qualquer saída, o caso
Kilsyte surgiu quase como um alívio. É parte da
peculiar ironia das coisas que certamente Edward
jamais teria beijado aquela criada, se não estivesse
tentando agradar Leonora. Criadas não viajam na
primeira classe, e naquele dia, Edward viajava num
vagão de terceira classe para provar à Leonora que
era capaz de economizar. Eu disse que o caso Kilsyte
surgiu quase como um alívio para a situação tensa
que existia naquele momento entre os dois. Deu a
Leonora uma oportunidade de defendê-lo de ma-
neira sincera e inteiramente leal. Deu-lhe a oportu-
nidade de comportar-se em relação a ele da manei-
ra que ele achava que uma esposa devia compor-
tar-se em relação a seu marido.
Veja, Edward deparou-se num vagão com uma
moça bastante bonita de uns dezenove anos. E a

280 FORD MADOX FORD


moça bastante bonita de uns dezenove anos, com
cabelos escuros, rosto corado e olhos azuis estava
chorando silenciosamente. Edward estava sentado
no seu canto, sem pensar em nada. Ele se aventu-
rara a dar uma olhada na criada; duas grandes, belas
lágrimas surgiram de seus olhos e caíram no colo
dela. Ele sentiu imediatamente que tinha que fazer
alguma coisa para consolá-la. Esse era seu papel na
vida. Ele próprio se sentia desesperadamente infe-
liz e lhe parecia a coisa mais natural do mundo que
eles devessem compartilhar suas dores. Ele era bas-
tante democrático; a idéia de suas posições diferentes
não parece ter lhe ocorrido. Começou a falar com
ela. Descobriu que seu jovem marido estava andan-
do com Annie, do número 54. Mudou-se para o lado
dela. Disse-lhe que a história provavelmente não era
verdadeira; que, afinal de contas, um jovem pode
passear com Annie do número 54 sem que isso de-
note nada de sério. E me assegurou que se sentia
quase paternal quando colocou seu braço em volta
da cintura dela e a beijou. A moça, no entanto, não
esquecera a diferença de sua posição.
Toda sua vida, através de sua mãe, através das

O BOM S OLDADO 281


outras moças, através dos professores, através de
toda a tradição de sua classe, ela fora advertida
contra os cavalheiros. Ela estava sendo beijada por
um cavalheiro. Ela gritou, afastou-se; levantou-se
e puxou o freio de emergência.
Edward saiu-se muito bem do caso diante da
opinião pública; mas sofreu, mentalmente, um gran-
de dano.

282 FORD MADOX FORD


IV.

É muito difícil dar uma impressão completa de


qualquer homem. Eu me pergunto se consegui fazê-
lo em relação a Edward Ashburnham. Atrevo-me
a dizer que não consegui de maneira alguma. É mui-
to difícil também descobrir qual a importância des-
sas coisas. Será que o traço importante em relação
ao pobre Edward era de que ele era bem disposto,
se conduzia muito bem, era moderado à mesa e le-
vava uma vida regular — que tinha, de fato, todas
as virtudes que são em geral tidas como inglesas?
Ou será que consegui transmitir pelo menos que ele
era todas essas coisas e tinha todas essas virtudes?
Ele certamente era assim e conservou-as até os úl-
timos meses de sua vida. Eram coisas que se pode-
ria colocar em sua lápide. Elas, certamente, seriam
colocadas em sua lápide por sua viúva.
E será que dei, eu me pergunto, a impressão

O BOM S OLDADO 283


correta de como sua vida era organizada e como ele
passava seu tempo? Porque, até o fim, a porção de
tempo demandado por suas várias paixões era re-
lativamente pequena. Eu me vi forçado a escrever
muito sobre suas paixões, mas você tem de ponde-
rar — gostaria de ser capaz de fazer com que você
ponderasse — que ele se levantava toda manhã às
sete, tomava um banho frio, tomava o café às oito,
ocupava-se com seu regimento das nove até a uma
hora; jogava pólo ou criquete com os homens, quan-
do era época do criquete, até a hora do chá. De-
pois ia se ocupar com as cartas de seu administra-
dor ou com os casos do rancho para os soldados,
até a hora do jantar. Jantava e passava a noite jo-
gando cartas, ou jogando bilhar com Leonora ou
em funções sociais deste ou daquele tipo. E a maior
parte de sua vida fora passada assim — muito mais
até do que a maior parte. Seus casos amorosos, até
o fim, se inseriam em momentos casuais ou acon-
teciam durante os eventos sociais, as danças e os
jantares. Mas acho que acabei tornando difícil que
você, ó ouvinte silencioso, pudesse formar essa im-
pressão. Seja como for, espero que não tenha lhe

284 FORD MADOX FORD


dado a idéia de que Edward Ashburnham era um
caso patológico. Não era. Era apenas um homem
normal e um grande sentimental. Atrevo-me a dizer
que a qualidade de sua juventude, a natureza da
influência de sua mãe, suas ignorâncias, as pressões
que recebera de seus instrutores militares — atrevo-
me a dizer que todas estas excelentes influências de
sua adolescência foram muito ruins para ele. Mas
todos nós temos de lidar com esse tipo de coisa, que
sem dúvida é muito ruim para todos nós. No en-
tanto, o esquema da vida de Edward era um esque-
ma perfeitamente normal da vida de um homem
trabalhador, sentimental e profissional eficiente.
A questão das primeiras impressões sempre me
incomodou um bocado — mas de maneira total-
mente acadêmica. Quero dizer que, de vez em quan-
do eu me perguntava se era ou não melhor confiar
em nossa primeira impressão ao lidar com as pes-
soas. Mas nunca lidei com ninguém, exceto garçons
e criadas de quarto, e os Ashburnham, com quem
eu não sabia que estava lidando. E, no que diz res-
peito a garçons e criadas de quarto, eu descobri que
em geral minhas primeiras impressões eram suficien-

O BOM S OLDADO 285


temente corretas. Se minha impressão de um homem
era a de que ele era polido, educado e atencioso, ele
geralmente continuava a ser essas coisas. Uma vez,
contudo, em nosso apartamento de Paris tivemos
uma criada que parecia ser encantadora e transpa-
rentemente honesta. No entanto ela roubou um dos
anéis de diamante de Florence. Ela o fez, porém,
para impedir que seu jovem marido fosse para a pri-
são. Assim este era, como alguém disse certa vez,
um caso especial.
E, até em minha breve incursão ao mundo ame-
ricano de negócios — uma incursão que durou parte
de agosto e quase todo o mês de setembro —, des-
cobri que confiar nas primeiras impressões era a me-
lhor coisa que podia fazer. Eu me vi automatica-
mente identificando e rotulando cada homem a
quem era apresentado, por conta de seus traços e
das primeiras palavras que ele dizia. No entanto,
não posso ser visto como alguém que estava fazen-
do negócios durante esse tempo que passei nos Es-
tados Unidos. Estava apenas sondando as coisas. Se
não fosse por causa de minha idéia de me casar com
a moça, eu teria possivelmente procurado fazer al-

286 FORD MADOX FORD


guma coisa em minha própria região. Pois minhas
experiências lá foram vívidas e divertidas. Foi exa-
tamente como se eu tivesse saído de um museu para
um baile à fantasia movimentado. Eu, de fato, es-
quecera de que existiam coisas como um dólar e que
um dólar pode ser extremamente desejável se você
não tem nenhum. E esquecera de que havia algo tão
importante quanto os mexericos. Neste aspecto, a
Filadélfia foi o lugar mais divertido em que já esti-
ve durante minha vida. Não estive nessa cidade mais
do que uma semana ou dez dias, e não fiz nenhum
negócio, no entanto o número de vezes em que al-
guém me advertiu em relação a um outro era sim-
plesmente espantoso. Um homem que eu não co-
nhecia vinha a meu encontro na minha cadeira no
saguão no hotel e, sussurrando prudentemente ao
meu ouvido, iria me advertir contra um outro su-
jeito que eu igualmente não conhecia mas que es-
tava ali pelo bar. Não sei o que eles pensaram que
eu estava fazendo ali — talvez resgatar a dívida da
cidade ou o assumir o controle de algum negócio
ferroviário. Ou, talvez, imaginassem que eu queria
comprar um jornal, pois também havia políticos ou

O BOM S OLDADO 287


repórteres, o que, naturalmente, dá na mesma coisa.
De fato, minha propriedade na Filadélfia estava si-
tuada em sua maior parte na região antiga da cida-
de e tudo que eu queria era saber se as casas estavam
em boa condição e as portas adequadamente pinta-
das. Também queria ver meus parentes, os poucos
que tinha. Eles eram quase todos profissionais libe-
rais e estavam em situação difícil por causa da gran-
de falência dos bancos por volta de 1907. Mesmo
assim, foram simpáticos. Teriam sido mais simpáti-
cos ainda se não tivessem, todos eles, o que me pa-
recia ser a mania de que aquilo que chamavam de
influências estivessem agindo contra eles. De qual-
quer modo, a impressão dessa cidade era de salas
antiquadas, de tipo mais inglês do que americano,
no qual algumas senhoras bonitas mas aflitas, mi-
nhas primas, conversavam principalmente sobre
misteriosos movimentos que estavam surgindo con-
tra elas. Nunca soube do que se tratava; talvez pen-
sassem que eu soubesse ou talvez não houvesse mo-
vimento nenhum. Era tudo muito secreto, sutil e
subterrâneo. Mas havia um tipo jovem simpático
chamado Carter, que era uma espécie de sobrinho

288 FORD MADOX FORD


de segundo grau. Ele era bonito e moreno, gentil,
alto e modesto. Sei também que era um bom joga-
dor de críquete. Era empregado pelos agentes da
empresa imobiliária que recolhia minhas receitas.
Foi ele, portanto, que me levou à minha proprie-
dade e eu o vi bastante, junto com uma moça boni-
ta chamada Mary, de quem estava noivo. Nessa
época fiz — o que certamente não faria agora —
algumas investigações cuidadosas sobre sua perso-
nalidade. Descobri por seus empregadores que ele
era exatamente o que parecia, honesto, industrio-
so, bem-humorado, amistoso e sempre disposto a
prestar um favor. Seus parentes, no entanto, que
também eram meus, pareciam ter algo obscuramen-
te misterioso contra ele. Pensei que tivesse se envol-
vido em algum tipo de fraude ou que tivesse enga-
nado algumas donzelas inocentes e confiantes. In-
vestiguei, no entanto, esse peculiar mistério domés-
tico e descobri que era apenas porque ele era um
democrata. Minha família era em sua maior parte
republicana. Parecia que o que tornava a coisa mais
obscuramente misteriosa para eles era o fato do
jovem Carter ser o que eles chamavam uma espé-

O BOM S OLDADO 289


cie de democrata de Vermont que sempre votava
pelo partido. Mas não sei o que isso significa. Seja
como for, suponho que meu dinheiro irá para ele
quando eu morrer — gosto da lembrança de sua
imagem amistosa e da moça bonita de quem esta-
va noivo. Que o destino seja suave para eles.
Eu disse ainda há pouco que, no meu atual
estado mental, nada poderia me levar a fazer inves-
tigações quanto ao caráter de qualquer homem de
quem gostasse à primeira vista. (A pequena digres-
são quanto às minhas experiências na Filadélfia que-
riam tratar disso.) Pois quem neste mundo pode
saber sobre a personalidade de alguém? Quem neste
mundo sabe alguma coisa sobre o coração do ou-
tro — ou sobre o seu próprio? Não quero dizer com
isso que não se possa formar uma estimativa padrão
a respeito de como uma pessoa se comporta. Mas
ninguém pode ter certeza em relação à maneira co-
mo qualquer homem irá se comportar em qualquer
situação — e até que se possa fazer isso, uma “perso-
nalidade” não serve para ninguém. Foi o que acon-
teceu com a criada de Florence em Paris. Costumá-
vamos confiar cheques em branco àquela moça,

290 FORD MADOX FORD


para o pagamento dos comerciantes. Durante mui-
to tempo ela teve nossa confiança. Então, de repente,
roubou um anel. Não acreditávamos que fosse ca-
paz disso; ela própria não se sabia capaz disso. Não
foi nada com seu caráter. Assim, talvez, o mesmo
tenha se passado com Edward Ashburnham.
Ou talvez não. Não, prefiro pensar que não.
É difícil saber. Eu já disse que o caso Kilsyte ate-
nuou a tensão imediata para ele e para Leonora. Fez
com que ele visse que ela era capaz de mostrar leal-
dade em relação a ele; deu-lhe a oportunidade de
mostrar que acreditava nele. Ela aceitou sem qual-
quer pergunta sua afirmação de que, ao beijar a
garota, estava apenas tentando dar consolo pater-
nal a uma criança chorando. E, de fato, seu próprio
mundo — incluindo os magistrados — assumiu essa
visão do caso. Seja lá o que as pessoas disserem, o
mundo a que se pertence pode ser caridoso às ve-
zes... Porém, mais uma vez, como já disse, isso cau-
sou um grande dano a Edward.
Esse, pelo menos, era o seu ponto de vista. Ele
me assegurou que antes que o caso acontecesse e
fosse discutido pelo consultor jurídico com todo o

O BOM S OLDADO 291


tipo de malícia que o consultor nesse tipo de caso
pode imputar, ele não tinha a mínima idéia de que
era capaz de ser infiel a Leonora. Mas, no meio da-
quele tumulto — ele disse que isso surgiu subita-
mente em sua cabeça enquanto estava no banco de
testemunhas —, no meio daquelas cerimônias au-
gustas da justiça, veio de súbito à sua mente a re-
cordação da suavidade do corpo da moça enquan-
to ele a abraçava. E, daquele momento em diante,
aquela moça tornou-se desejável para ele — e Leo-
nora completamente sem atração.
Ele começou a se entregar a devaneios nos
quais abordava a criada com mais tato e levava o
assunto bem mais adiante. Ocasionalmente pensa-
va em outras mulheres em termos de uma corte cau-
telosa — ou, talvez, fosse mais exato dizer que pen-
sava nelas em termos de um consolo cheio de tato,
acabando na absorção. Esta era sua visão do caso.
Ele se via como a vítima da lei. Não quero dizer que
se via como uma espécie de Dreyfus60. A lei, prati-
60 Referência ao famoso erro judiciário do caso Dreyfus,

o oficial francês de origem judaica acusado e condenado por


traição em 1894. (N. do T.)

292 FORD MADOX FORD


camente, fora bondosa com ele. Declarara que o
capitão Ashburnham se equivocara por um desejo
deslocado de consolar um membro do sexo oposto
e o multou em cinco xelins por sua falta de tato,
ou de conhecimento do mundo. Mas Edward sus-
tentava que isso tinha enchido sua cabeça de idéias.
Não acredito nisso, mas ele certamente sim.
Tinha vinte e sete anos então, e sua esposa não sim-
patizava com ele — algum choque era inevitável.
Houve entre eles uma reaproximação momentânea,
mas que não podia durar. Tudo se tornou, prova-
velmente, ainda pior no que diz respeito a esse as-
sunto devido ao fato de Leonora ter correspondido
tão bem à expectativa. Pois, ao mesmo tempo em
que Edward respeitava-a mais e lhe era grato, fez
com que ela parecesse muito mais fria em outras
questões que falavam de perto a seu coração — suas
responsabilidades, sua carreira, sua tradição. Levou
seu desapontamento com ela a um ponto de exas-
peração — e aferrou-o à idéia de que poderia en-
contrar uma outra mulher que lhe desse o apoio
moral de que precisava. Ele queria ser visto como
uma espécie de Lohengrin.

O BOM S OLDADO 293


Nessa época, foi o que ele disse, começou de-
liberadamente a procurar alguma mulher que pu-
desse ajudá-lo. Encontrou várias — pois havia um
bom número de damas em seu ambiente que eram
capazes de concordar com esse homem simpático e
educado que os deveres de um cavalheiro feudal
eram feudais. Ele gostaria de passar seus dias con-
versando com uma ou outra dessas damas. Mas
sempre havia um obstáculo — se a dama era casada,
havia um marido que tomava a maior parte de seu
tempo e atenção. Se, por outro lado, era uma moça
solteira, não poderia encontrar-se muito com ela por
medo de comprometê-la. Nessa época, entenda, ele
não tinha a menor intenção de seduzir qualquer uma
dessas damas. Queria apenas apoio moral das mãos
de alguma mulher, porque achava difícil conversar
com os homens a respeito de ideais. Na verdade,
não acredito que tenha tido, em nenhum momen-
to, qualquer idéia de tornar uma delas sua amante.
Isso soa estranho, mas acredito que é totalmente ver-
dade como uma afirmação de caráter.
Acho que foi um dos padres de Leonora — um
homem do mundo — quem sugeriu que ela o levasse

294 FORD MADOX FORD


para Monte Carlo. Ele concebera a idéia de que o
que Edward necessitava, de maneira a ajustar-se à
companhia de Leonora, era um toque de irrespon-
sabilidade. Pois Edward, nessa época, tinha sobre-
tudo o ar de um pedante. Quero dizer que, se ele
jogava pólo e era um excelente dançarino, fazia uma
dessas coisas em nome de se manter em forma e a
outra porque era um dever social aparecer nas fes-
tas, e, portanto, dançar bem. Não fazia nada para
divertir-se, exceto aquilo que considerava ser sua
tarefa na vida. Segundo a opinião do padre, isso iria
separá-lo para sempre de Leonora — não porque
Leonora se entregasse à alegria de viver, mas porque
não simpatizava com a tarefa de Edward. Por ou-
tro lado, Leonora gostava de divertir-se, de vez em
quando, e, segundo a opinião do padre, se Edward
conseguisse ser capaz de divertir-se de vez em quan-
do, poderia haver uma ligação de simpatia entre eles.
Era uma boa idéia, mas que acabou dando errado.
Acabou dando, de fato, na amante do grão-
duque. Em alguém menos sentimental do que Ed-
ward isso não teria importância. Com Edward foi
fatal. Pois, sua natureza honrada era tal que, para

O BOM S OLDADO 295


ele, desfrutar dos favores de uma mulher fazia-o
sentir que ela estava ligada a ele por toda a vida.
Foi assim que aconteceu na prática. Psicologicamen-
te, significa que não podia ter uma amante sem se
apaixonar violentamente por ela. Ele era uma pes-
soa séria — e nesse caso particular pagou um pre-
ço muito alto. A amante do grão-duque — uma
dançarina espanhola de aparência ardente — atraiu
Edward com olhares num baile que aconteceu no
hotel compartilhado pelos dois. Edward era alto,
bonito, louro e muito saudável, como ela percebeu
— e Leonora foi para a cama muito cedo. Ela não
dava importância a bailes públicos, mais ficou ali-
viada ao ver que Edward parecia estar se divertin-
do com várias moças amigas. E isso foi o fim para
Edward — pois a dançarina espanhola de aparên-
cia ardente queria uma noite com ele por causa de
seus beaux yeux. Ele a levou para os jardins escu-
ros e, lembrando-se subitamente da garota do caso
Kilsyte, beijou-a. Beijou-a apaixonada, violentamen-
te, com uma súbita explosão da paixão que refrea-
ra durante toda sua vida — pois Leonora era fria,
ou, de qualquer maneira, bem comportada. La Dol-

296 FORD MADOX FORD


ciquita gostou desta reversão, e ele passou a noite
na cama dela.
Quando a criatura palpitante adormeceu por
fim em seus braços, ele descobriu que estava louca-
mente, apaixonadamente, inteiramente enamorado
por ela. Era uma paixão que crescera como fogo
em milho seco. Ele não podia pensar em mais nada;
não podia viver para mais nada. Mas La Dolciquita
era uma criatura razoável, sem um pingo de pai-
xão dentro de si. Queria uma certa satisfação de
seus apetites e Edward tinha-a atraído na noite an-
terior. Agora que tudo estava consumado, ela dis-
se, com total frieza, que desejava dinheiro, se ele
queria obter mais dela. Era uma transação comer-
cial perfeitamente razoável. Ela não dava a míni-
ma para Edward ou para qualquer outro homem,
e ele estava pedindo que ela colocasse em risco uma
excelente situação com o grão-duque. Se Edward
pudesse adiantar suficiente dinheiro para servir co-
mo um tipo de seguro contra acidente, ela estava
disposta a ficar com Edward durante o tempo que
seria coberto, por assim dizer, pela apólice. Ela
recebia cinqüenta mil dólares por ano do grão-du-

O BOM S OLDADO 297


que; Edward teria de pagar um prêmio de dois anos
de contrato por um mês em companhia dela. Não
haveria grande risco do grão-duque descobrir e não
era certo que ele a botaria no olho da rua se desco-
brisse. Mas havia o risco — um risco de vinte por
cento, segundo ela calculava. Ela conversou com
Edward como se fosse um corretor com uma pro-
priedade para vender — perfeitamente calma e fria
sem quaisquer inflexões em sua voz. Ela não queria
ser indelicada com ele; mas não via razão para ser
delicada. Era uma mulher de negócios talentosa,
com uma mãe e duas irmãs e sua própria velhice
para serem amparadas com conforto. Esperava ape-
nas uma carreira de mais uns cinco anos. Tinha
vinte e quatro anos e como ela disse: “Nós, as es-
panholas, ficamos horrorosas aos trinta”. Edward
jurou que a sustentaria por toda a vida se ela ficasse
com ele e deixasse de falar daquela maneira horrí-
vel; ela apenas levantou os ombros lenta e desde-
nhosamente. Ele tentou convencer essa mulher de
que, segundo a visão dele, entregara-lhe sua vir-
tude, e que ele considerava ser seu dever sustentá-
la, cuidar dela e amá-la — por toda a vida. Como

298 FORD MADOX FORD


recompensa ao sacrifício que ela fizera, ele cumpri-
ria sua parte. Em troca de seu amor honrado, ela,
por sua vez, o ouviria falar para sempre dos negó-
cios de suas propriedades. Era assim que ele ima-
ginava tudo.
Ela levantou de novo os ombros com o mes-
mo gesto e estendeu sua mão esquerda:
— Enfim, mon ami — ela disse —, coloque
nesta mão o preço da daquela tiara do Forli ou...
E virou as costas para ele.
Edward enlouqueceu; seu mundo ficou de ca-
beça para baixo; as palmeiras em frente do mar azul
dançavam danças grotescas. Entenda, ele acreditava
na virtude, na ternura e no apoio moral das mulheres.
Acima de tudo queria conversar com La Dolciquita;
retirar-se com ela para uma ilha e mostrar-lhe a da-
nação do ponto de vista dela, e como a salvação só
poderia ser encontrada no amor verdadeiro e no sis-
tema feudal. Ela já havia sido sua amante uma vez,
ele pensava, e de acordo com as leis morais deveria
continuar sendo sua amante ou pelo menos sua con-
fidente dedicada. Mas o apartamento dela fechou-
se para ele; ela não parecia no hotel. Nada: silêncio

O BOM S OLDADO 299


completo. Para acabar com isso, ele teve de gastar
vinte mil libras. Você já sabe o que aconteceu.
Ele passou uma semana enlouquecido; não co-
mia; seus olhos sumiam; ele estremecia ao toque de
Leonora. Atrevo-me a dizer que nove por cento do
que acreditava ser sua paixão por La Dolciquita era
de fato desconforto diante do pensamento de que
fora infiel a Leonora. Ele se sentia extremamente
mal, quer dizer — intoleravelmente mal — e acha-
va que isso era amor. Pobre diabo, ele era incrivel-
mente ingênuo. Passou a beber como uma esponja
depois que Leonora ia para a cama e caía por cima
das mesas, e isso continuou por cerca de uns quin-
ze dias. Só Deus sabe o que teria acontecido; ele te-
ria jogado fora cada centavo que possuía.
Uma noite, depois de ter perdido cerca de qua-
renta mil libras e quando todo o hotel comentava o
caso, La Dolciquita entrou tranqüilamente no quarto
dele. Ele estava bêbado demais para reconhecê-la, e
ela se sentou na poltrona dele, tricotando e aspiran-
do sais aromáticos — pois ele estava inteiramente
intoxicado com álcool — e, assim que ele se tornou
capaz de entendê-la, ela disse:

300 FORD MADOX FORD


— Olhe aqui, mon ami, não vá de novo para
as mesas de jogo. Tire um bom sono agora e venha
me ver essa tarde.
Ele dormiu até a hora do almoço. A essa altura
Leonora já soubera das notícias. A senhora do coro-
nel Whelen contara a ela. A senhora do coronel Whe-
len parece ter sido a única pessoa sensata que se li-
gou aos Ashburnham. Ela afirmou que devia haver
uma mulher do tipo hárpia ligada ao comportamento
e às maneiras incríveis de Edward; e aconselhou Leo-
nora a sair da cidade — o que poderia ter como efeito
trazer Edward de volta à razão — e consultar o pro-
curador dela e seu conselheiro espiritual. Era melhor
que ela partisse naquela manhã mesmo; não valia a
pena discutir com um homem na situação de Edward.
Edward, de fato, não sabia que ela partira.
Assim que acordou, foi diretamente até o quarto de
La Dolciquita e almoçou no apartamento dela. Ele
abraçou-se ao pescoço dela e chorou, e ela o dei-
xou ficar assim durante um tempo. E, quando acal-
mou-o com Eau de Melisse61, disse:

61 O mesmo que erva-cidreira. (N. do T.)

O BOM S OLDADO 301


— Olhe aqui, mon ami, quanto dinheiro você
perdeu? Cinco mil dólares? Dez?
Pois o boato era de que Edward perdera o valor
de dois resgates reais por noite durante catorze noi-
tes e ela pensara que ele devia estar perto do fim de
seus recursos.
O Eau de Melisse acalmara tanto Edward que,
naquele instante, ele tinha de fato uma cabeça em
cima dos ombros. Ele apenas resmungou:
— E daí?
— Ora — ela respondeu —, eu posso valer os
dez mil dólares das mesas de jogo. Ficarei com você
uma semana em Antibes por essa soma.
Edward rosnou: “Cinco”. Ela tentou conseguir
sete mil dólares; mas ele persistiu nos cinco mil dó-
lares e nas despesas de hotel em Antibes. O sedati-
vo durou até este ponto e depois ele se prostou de
novo. Ele tinha de ir para Antibes às três horas; não
tinha saída. Deixou uma nota para Leonora dizen-
do que fora passar uma semana com os Clinton
Morley, no iate.
Ele não se divertiu muito em Antibes. La Dol-
ciquita não conseguia falar com entusiasmo sobre

302 FORD MADOX FORD


outra coisa a não ser dinheiro, e ela o fustigava in-
cessantemente, a todo instante por presentes do tipo
mais caro. E, ao fim de uma semana, ela o botou
para fora com a maior tranqüilidade. Ele vagou por
Antibes por mais três dias. Estava curado da idéia
de que tinha qualquer dever em relação a La Dol-
ciquita — feudal ou de outra espécie. Mas seu sen-
timentalismo requeria dele um atitude de melanco-
lia byroniana — como se sua corte tivesse resulta-
do em meio-luto. Então seu apetite voltou de repen-
te, e ele se lembrou de Leonora. Encontrou no seu
hotel em Monte Carlo um telegrama de Leonora,
enviado de Londres, dizendo: “Por favor volte o
mais cedo possível”. Não podia entender porque
Leonora o abandonara assim tão precipitadamen-
te, quando ela sabia apenas que fora passear de iate
com os Clinton Morley. Então descobriu que ela
saíra do hotel antes dele ter escrito o bilhete. Fez
uma viagem extremamente penosa em seu retorno
à cidade; estava apavorado — e Leonora nunca lhe
parecera tão desejável.

O BOM S OLDADO 303


V.

Digo que esta é a “História mais triste”, em


vez de “A tragédia dos Ashburnham”, apenas por-
que é tão triste, apenas porque não há nenhuma
correnteza para levar as coisas a um fim rápido e
inevitável. Nela não há nada da elevação que acom-
panha a tragédia; não há nem nêmesis nem desti-
no. Aqui estão duas pessoas nobres — pois estou
convencido de que tanto Edward como Leonora ti-
nham naturezas nobres — aqui, então, estavam duas
naturezas nobres indo à deriva da vida, como ex-
plosivos num barco numa lagoa, e causando afli-
ções, tormento mental e morte. E eles próprios se
deterioravam firmemente? E por quê? Com que fi-
nalidade? Para dar que lição? É tudo escuridão.
Não há sequer qualquer vilão na história —
pois mesmo o major Basil, o marido da dama que
em seguida, consolou efetivamente o infeliz Edward

304 FORD MADOX FORD


— até mesmo o major Basil não era um vilão nesta
peça. Era um tipo negligente, relaxado, inepto —
mas não fez nada a Edward. Enquanto estavam na
mesma guarnição em Burma ele tomou um bocado
de dinheiro emprestado — embora, de fato, já que
o major Basil não tinha vícios particulares, era di-
fícil saber para que o queria. Ele colecionava —
vários tipos de freios de cavalos dos tempos mais
antigos até a época presente — mas, já que também
não perseguia essa ocupação com qualquer vigor,
não devia estar precisando de muito dinheiro, di-
gamos, para adquirir o freio do cavalo de batalha
de Gengis Khan — se é que Gengis Khan tinha um
cavalo de batalha. E quando digo que tomava em-
prestado um bocado de dinheiro de Edward não
quero dizer que tenha levado mais de mil libras du-
rante os cinco anos em que essa ligação durou. Ed-
ward decerto não tinha muito dinheiro; Leonora
estava cuidando disso. Mas ele podia ter umas qui-
nhentas libras inglesas por ano, para seus prazeres
miúdos — para suas doações regimentais e para
manter seus homens bem alertas. Leonora odiava
isso; ela preferia comprar vestidos para si ou ter

O BOM S OLDADO 305


empregado o dinheiro para pagar uma hipoteca.
Mesmo assim, com seu sentido de justiça, admitia
que, já que estava administrando uma propriedade
que dava três mil libras por ano com a possibilida-
de de restabelecê-la como uma propriedade de cin-
co mil por ano, e já que a propriedade de fato, ain-
da que não legalmente, pertencia a Edward, era ra-
zoável e justo que Edward tivesse sua própria fa-
tia. Naturalmente ela tinha um trabalho infernal.
Não sei se já lhe forneci os detalhes finan-
ceiros exatos. Tenho uma boa cabeça para cálculos,
mas minha mente, ainda, às vezes mistura libras
com dólares e faço um cálculo errado. Seja como
for, a proposta era algo assim: adequadamente cul-
tivada, sem abatimentos para os arrendatários e
mantendo as escolas e as outras coisas, a proprie-
dade Branshaw deveria render cerca de cinco mil
por ano quando Edward a mantinha. Rendia de
fato cerca de quatro. (Estou falando de libras, não
de dólares.) Os excessos de Edward com a dama
espanhola tinham reduzido seu valor a cerca de três
— no cálculo máximo, sem reduções. Leonora que-
ria fazê-la voltar a cinco mil.

306 FORD MADOX FORD


Ela era, com certeza, muito jovem para enfren-
tar tal proposta — vinte e quatro anos não é uma
idade muito avançada. Assim, fazia as coisas com
um vigor juvenil que, provavelmente, poderia con-
duzir com mais generosidade, se soubesse mais so-
bre a vida. Ela pegou Edward no pulo de maneira
admirável. Ele teve que enfrentá-la num hotel em
Londres, quando regressou de Monte Carlo com seu
pobre rabo entre suas pobres pernas. Pelo que pos-
so imaginar, ela cortou imediatamente suas primei-
ras queixas e tentativas de fala afetiva com palavras
parecidas com estas:
— Estamos à beira da ruína. Você tem a in-
tenção de me deixar restabelecer as coisas? Se não,
irei me retirar para Hendon com meu dote. (Hendon
representava um convento ao qual ela ia ocasional-
mente, para o que é chamado um “retiro” nos cír-
culos católicos.)
E o pobre Edward não sabia de nada — abso-
lutamente nada. Não sabia quanto dinheiro tinha
perdido nas mesas de jogo. Podia ser um quarto de
milhão, pelo que se lembrava. Ele não sabia sequer
se ela sabia alguma coisa sobre La Dolciquita e ou

O BOM S OLDADO 307


se ela pensava que ele tinha ido velejar ou se ficara
em Monte Carlo. Ele ficou mudo e tudo que queria
era se meter num buraco e não ter de falar. Leono-
ra não o instigou a falar e ela própria não disse nada.
Nada sei sobre os processos legais ingleses —
não posso, é o quero dizer, dar detalhes técnicos
de como ela o amarrou. Mas sei que, dois anos de-
pois, sem que ela dissesse mais do que já lhe con-
tei, Leonora e seu advogado tinham se tornado os
procuradores, acho que se diz assim, de toda a pro-
priedade de Edward, e este foi o fim de Edward
como o bom proprietário e o pai de sua gente. Ele
caiu fora.
Leonora tinha nessa época três mil por ano à
sua disposição. Ela fez com que Edward conseguisse
sua transferência para uma parte de seu regimento
que estava em Burma — se se pode falar assim. Ela
própria se entendeu, durante uma semana mais ou
menos, com o administrador de Edward. Fez com
que ele compreendesse que a propriedade tinha de
render até o último centavo. Antes de seguirem para
a Índia, ela deixou Branshaw durante sete anos com
mil por ano. Vendeu dois Vandykes e um pouco de

308 FORD MADOX FORD


prata por onze mil libras e levantou, com a hipoteca,
vinte e nove mil. Isto seguiu para os amigos que
emprestaram dinheiro a Edward em Monte Carlo.
Assim, ela tinha de recuperar os vinte e nove mil,
pois não considerava os Vandykes e a prata como
coisas que tinha de resgatar. Eram apenas os orna-
mentos da vaidade dos Ashburnham. Edward cho-
rou dois dias seguidos por causa do desaparecimento
de seus ancestrais e então ela desejou não ter feito
aquilo; mas isso não lhe ensinou nada e diminuiu a
estima que tinha por ele. Ela também não compreen-
dia que deixar Branshaw o afetava com um senti-
mento de estigma físico — era quase tão ruim para
ele quanto se uma mulher que lhe pertencesse tivesse
se tornado uma prostituta. Foi assim que a coisa o
afetou; mas me atrevo a dizer que ela se sentia mal
da mesma maneira a respeito da dançarina espanhola.
Foi assim que ela procedeu. Foram oito anos
na Índia, e durante todo esse tempo ela insistia em
de eles tinham que se sustentar por conta própria
— tinham que viver com seu salário de capitão, mais
o abono-extra por estar no front. Ela lhe dava as
quinhentas libras por ano para “as ostentações dos

O BOM S OLDADO 309


Ashburnham” como dizia para si mesma — e acha-
va que o estava tratando muito bem.
Na verdade, de um certo modo, ela o tratava
muito bem — mas não como ele queria. Ela estava
sempre comprando para ele coisas caras que, por
assim dizer, tirava de seus próprios recursos. Eu já
falei, por exemplo, das maletas de couro de Edward.
Bem, elas não eram de Edward de modo algum;
eram manifestações de Leonora. Ele gostava de ter
tudo limpo, mas preferia, por assim dizer, coisas
mais em conta. Ela jamais compreendeu isso e todo
aquele couro era uma recompensa dada a ele por
ter indicado uma pequena especulação com a qual
ela ganhou onze mil libras. Ela própria fazia os ne-
gócios mais em conta. Quando foram para um lu-
gar chamado Simla62, onde, pelo que entendi, é fres-
co no verão e muito social — quando iam a Simla
para cuidar da saúde, era ela que o fazia dar suas
voltas pelas redondezas num cavalo de cem dóla-
res vestido com o mais alegre dos trapos alegres. Ela
própria costumava ir para um “retiro”. Acredito que

62 Uma cidade em Punjab, na Índia. (N. do T.)

310 FORD MADOX FORD


isso era bom para a saúde dela e também ficava
muito mais em conta.
Provavelmente, também era muito bom para
a saúde de Edward, porque ela dava suas voltas
sobretudo com a senhora Basil, que era um bela
mulher e muito, muito gentil com ele. Suponho que
foi sua amante, mas nunca ouvi nada sobre isso de
Edward, naturalmente. Fui levado a inferir que eles
se conduziam de maneira altamente romântica, mui-
to adequada para ambos — ou, pelos menos, para
Edward; ela parece ter sido uma alma terna e gen-
til que fazia o que ele queria. Não quero dizer com
isso que ela não tivesse personalidade; era o papel
dela fazer o que Edward queria. Assim imagino que,
durante esses cinco anos, Edward tenha desejado
longos momentos de afeição profunda expressos em
conversas muito compridas e que, aqui e ali eles
“fraquejavam”, o que dava a Edward uma oportu-
nidade para remorso e uma desculpa para empres-
tar mais cinqüenta ao major. Não creio que a se-
nhora Basil achasse que fosse uma “fraqueza”; ela
tinha pena dele e o amava.
Entenda, Leonora e Edward tinham de conver-

O BOM S OLDADO 311


sar sobre alguma coisa durante todos aqueles anos.
Você não pode ficar absolutamente mudo quando
vive com alguém, a não ser que você more no Nor-
te da Inglaterra ou no estado do Maine. Assim Leo-
nora engendrou o alegre expediente de deixá-lo ver
as contas de suas propriedades e discuti-las com ele.
Ele não as discutia muito; estava tentando compor-
tar-se bem. Mas foi o velho senhor Mumford — o
fazendeiro que não pagava sua receita — que jo-
gou Edward nos braços da senhora Basil. A senho-
ra Basil encontrou-se com Edward ao crepúsculo,
no jardim de Burma, com todos os tipos de flores e
coisas assim. E ele estava cortando aquela planta-
ção — com sua espada, não com uma bengala. Ele
também estava transportando-a e praguejando de
uma maneira que você não acreditaria.
Ela apurou que um velho senhor chamado
Mumford fora expulso de sua fazenda e recebera
uma pequena casa isenta de aluguel, onde vivia com
dez xelins por semana doados por uma sociedade
beneficente de fazendeiros, suplementados por mais
sete xelins que recebia dos procuradores dos Ash-
burnham. Edward acabara de descobrir esse fato nas

312 FORD MADOX FORD


contas da propriedade. Leonora deixara-as em seu
quarto de vestir e ele começara a lê-las antes de
apanhar seu equipamento para marchas. Por isso
ele estava com uma espada. Leonora achava que
fora inusitadamente generosa com o velho senhor
Mumford, ao permitir que ele ficasse morando nu-
ma casa isenta de aluguel e ao lhe dar sete xelins
por semana. Seja como for, a senhora Basil jamais
vira um homem no estado em que encontrou Ed-
ward. Ela já estava apaixonadamente enamorada
por ele há algum tempo, e ele desejava a simpatia e
a admiração dela com igual paixão. Foi assim que
conversaram sobre aquilo, no jardim de Burma, sob
o céu pálido, com feixes de vegetação ceifada e per-
fumada, na noite em volta de seus pés. Acho que se
comportaram com decoro durante algum tempo
depois disso, embora a senhora Basil passasse tan-
tas horas com as contas da propriedade de Ash-
burnham que sabia o nome de cada um dos cam-
pos de cor. Edward tinham um grande mapa de suas
terras e o major Basil não parecia se importar. Acho
que as pessoas não ligam muito para as coisas em
suas guarnições solitárias.

O BOM S OLDADO 313


Poderia ter durado para sempre se o major não
tivesse sido promovido ao que se chama um “brevê”
de coronel63 durante o deslocamento das tropas que
antecedeu a guerra da África do Sul64. Ele foi envia-
do para outra guarnição e, naturalmente, a senho-
ra Basil não pôde ficar com Edward. Edward deve-
ria ter ido, suponho, para o Transvaal. Ser morto
teria feito um grande bem a ele. Mas Leonora não
o deixou ir; ela ouvira histórias horríveis sobre a
extravagância do regimento dos hussardos na guerra
— como eles abandonavam centenas de caixas de
champanhe a cinco guinéus a garrafa, sobre a rel-
va e assim por diante. Além disso, preferia verifi-
car como Edward estava gastando suas quinhentas
libras anuais. Não quero dizer que Edward tenha
ficado com alguma mágoa disso. Ele nunca foi ho-
mem para feitos de tipo heróico e para ele tanto fazia
ser retalhado nas colinas da frente noroeste como
ser morto por um velho cavalheiro com chapéu de
63
Uma graduação honorária pela qual um oficial rece-
be nominalmente um posto mais alto, sem o correspondente
aumento do soldo. (N. do T.)
64 A chamada guerra dos Boer (1899-1902). (N. do T.)

314 FORD MADOX FORD


seda na margem de algum braço de rio. Essas são
mais ou menos suas próprias palavras a esse respei-
to. Acredito que ele se distinguiu por lá. De qual-
quer modo, obteve uma condecoração e recebeu sua
patente de major.
Leonora, no entanto, não demonstrava ne-
nhum entusiasmo em relação à sua vida militar. Ela
também odiava seus atos de heroísmo. Uma de suas
discussões mais azedas veio depois que ele, pela se-
gunda vez no Mar Vermelho, pulara do navio de
guerra e salvara um soldado raso. Da primeira vez
ela tolerou e chegou a cumprimentá-lo. Mas aque-
la viagem pelo Mar Vermelho era assustadora, e o
soldado parecia ter uma tendência suicida. Isso aba-
lou os nervos de Leonora; ficou a imaginar Edward,
durante o resto da viagem, pulando no mar a cada
dez minutos. E o simples grito de “Homem ao mar”
é uma coisa desagradável, alarmante e perturbadora.
O navio fica parado e há todo tipo de gritos. E Ed-
ward não prometia deixar de repetir o gesto, em-
bora, felizmente, eles tenham se deparado com um
tempo de bonança quando estavam no Golfo Pér-
sico. Leonora botara na cabeça que Edward estava

O BOM S OLDADO 315


tentando se suicidar, por isso acho que foi horrível
para ela quando ele não prometeu nada. Leonora
não devia ter seguido naquele navio de guerra; mas
ela o fez por economia.
O major Basil descobriu o relacionamento de
Edward com sua mulher um pouco antes de ser
mandado para outra guarnição. Não sei se foi se
uma manobra de chantagista ou apenas um golpe
do destino. Talvez ele já soubesse de tudo. De qual-
quer modo, apoderou-se nessa época de algumas
cartas e mais algumas coisas. Isso custou imediata-
mente trezentas libras a Edward. Não sei como a
coisa foi acertada; não posso imaginar sequer como
um chantagista pode fazer suas exigências. Supo-
nho que há algum modo de livrar sua cara. Imagi-
no o major abrindo as cartas para Edward com
pragas furiosas, depois aceitando suas explicações
de que as cartas eram totalmente inocentes, desde
que não lhes dessem uma interpretação errada. En-
tão o major diria: “Meu camarada, estou numa en-
rascada. Será que você não poderia me emprestar
umas trezentas libras?”. Imagino que tenha sido
assim. E todo ano, depois disso, havia uma carta

316 FORD MADOX FORD


do major, dizendo que estava numa enrascada e se
Edward não poderia lhe emprestar umas trezentas
libras.
Edward ficou totalmente abalado quando a
senhora Basil teve de partir. Ele realmente gostava
muito dela e permaneceu fiel à sua memória durante
bastante tempo. E a senhora Basil também o ama-
va muito e continuou a acalentar a esperança de
encontrar-se de novo com ele. Há três dias atrás
chegou uma carta dela para Leonora, pedindo de-
talhes sobre a morte de Edward. Ela lera o anúncio
num jornal indiano. Acho que devia ser uma mu-
lher muito bonita...
E então os Ashburnham se mudaram para um
lugar ou distrito chamado Chitral. Não sou nada
bom em geografia do Império Indiano. Mas nessa
época eles se estabeleceram como um casal modelo
e nunca falavam a sós um como o outro. Leonora
desistira até de mostrar as contas da propriedade
Ashburnham a Edward. Ele achava que isso era
porque ela embolsara tanto dinheiro que não que-
ria que ele soubesse quanto ela estava ganhando.
Mas, de fato, depois de cinco ou seis anos, ela che-

O BOM S OLDADO 317


gara à conclusão de que era penoso para Edward
ter de ver as contas de sua propriedade e não ter
parte na administração. Ela estava tentando ser de-
licada com ele. E, lá em Chitral, a querida Maisie
Maidan, pobre coitada, apareceu...
Esse foi o caso mais desestabilizador para Ed-
ward. Levou-o a suspeitar de que era inconstante.
Ele acabara classificando o caso com La Dolciquita
de um pequeno ataque de loucura, como a hidro-
fobia. Suas relações com a senhora Basil não lhe
pareceram implicar uma torpeza moral de grande
calibre. O marido fora complacente; eles de fato
tinham se amado um ao outro; sua esposa era mui-
to cruel para com ele; há muito tempo deixara de
ser uma esposa para ele. Achava que a senhora Basil
era sua alma-gêmea, separada dele por um destino
adverso — alguma coisa sentimental desse tipo.
Mas descobrira que, enquanto ainda estava
escrevendo longas cartas semanais para a senhora
Basil, começara a ficar furiosamente impaciente
quando deixava de ver Maisie Maidan ao longo do
dia. Surpreendia-se observando as portas de entra-
da com impaciência; descobriu que antipatizava

318 FORD MADOX FORD


muito com o marido dela, durante boa parte do
tempo. Descobriu que estava se levantando a altas
horas da noite para ter tempo, mais tarde pela ma-
nhã, de ir passear com Maisie Maidan. Surpreen-
deu-se usando as pequenas palavras de gírias que
ela usava e atribuindo um valor sentimental a es-
sas palavras. Tais descobertas, veja bem, ele as fez
tarde demais para que pudesse fazer outra coisa a
não ser se deixar levar. Estava perdendo peso; seus
olhos pareciam querer sumir; tinha acessos de fe-
bre alta. Estava, como me descreveu, arrasado.
E, num dia horrivelmente quente, ele se ouviu
dizendo de repente a Leonora:
— Veja, será que não podemos levar a peque-
na senhora Maidan conosco para a Europa e instalá-
la em Nauheim?
Não tivera a menor intenção de dizer isso a
Leonora. Estava simplesmente ali por perto, olhan-
do um jornal ilustrado, esperando o jantar. O jan-
tar estava vinte minutos atrasado senão os Ash-
burnham não estariam ali sozinhos, juntos. Não, ele
não tivera a menor intenção de fazer aquele discur-
so. Estava apenas envolvido pelo tormento silencio-

O BOM S OLDADO 319


so do medo, do desejo, do calor, da febre. Estava
pensando que dentro de um mês estariam de volta
a Branshaw e que Maisie Maidan ficaria para trás
e morreria. E então, aquilo irrompera.
O punkah65 zunia no quarto às escuras; Leo-
nora estava arriada, exausta e imóvel em seu sofá
de vime; nenhum dos dois se mexia. Nessa época
ambos estavam, de maneira indefinida, muito
doentes.
Então Leonora disse:
— Sim. Prometi isso a Charlie Maidan essa
tarde. Ofereci-me para pagar as despesas dela.
Edward conseguiu apenas reter um “Meu
Deus!”. Veja, ele não tinha a menor idéia a respei-
to daquilo que Leonora sabia — sobre Maisie, so-
bre a senhora Basil ou até mesmo sobre La Dol-
ciquita. Era uma situação bastante enigmática para
ele. Chocava-o que Leonora pretendesse adminis-
trar seus amores assim como administrava seu di-

65 Palavra indiana para designar um grande leque que


se pendura num quarto e que se movimenta para trás e para a
frente ao se puxar uma corda. (N. do T.)

320 FORD MADOX FORD


nheiro, e isso a tornava ainda mais odiosa para ele
— e mais digna de respeito.
Leonora, de qualquer maneira, administrara
seu dinheiro com algum objetivo. Conversara com
ele, uma semana antes, pela primeira vez em vários
anos, sobre dinheiro. Ela obtivera vinte e duas mil
libras das terras de Branshaw e sete mil pelo alu-
guel da mobília de Branshaw. Com investimentos
bem-sucedidos — nos quais Edward a ajudara —
ela conseguira mais seis ou sete mil que poderiam
render ainda mais. Todas as hipotecas estavam pa-
gas de maneira que, com exceção dos dois Vandykes
e da prataria, eles estavam tão bem quanto antes
que a Dolciquita fizesse sua rapina. Foi o grande
feito de Leonora. Ela mostrou as contas a Edward,
que manteve um silêncio compacto.
— Eu proponho — ela disse — que você peça
demissão do exército e que voltemos para Bran-
shaw. Estamos doentes demais para continuarmos
aqui por mais tempo.
Edward não disse absolutamente nada.
— Este — Leonora prosseguiu, impassível —
é o maior dia da minha vida.

O BOM S OLDADO 321


Edward disse:
— Você administrou os negócios de maneira
surpreendente. Você é uma mulher maravilhosa.
Ele estava pensando que, ao voltar para Bran-
shaw, teriam de abandonar Maisie Maidan. Este
pensamento dominava-o. Deviam, sem dúvida, vol-
tar para Branshaw; não havia dúvida de que Leo-
nora estava doente demais para permanecer naquele
lugar. Ela disse:
— Você sabe que a administração de todo o
emprego da renda estará em suas mãos. Isso repre-
senta cinco mil libras por ano.
Ela pensava que ele dava muita importância
ao emprego de uma renda de cinco mil libras por
ano e que o fato de que ela tivesse feito tanto por
ele poderia despertar nele alguma afeição por ela.
Mas ele só pensava em Maisie Maidan — em Mai-
sie, a milhares de milhas longe dele. Via as monta-
nhas entre eles — as montanhas azuis e o mar e as
planícies ensolaradas. Disse:
— É muito generoso de sua parte.
E ela não sabia se era um agradecimento ou
uma zombaria. Isso acontecera na semana anterior.

322 FORD MADOX FORD


E ele passara toda aquela semana num tormento
crescente ante o pensamento de que aquelas mon-
tanhas, aquele mar e aquelas planícies ensolaradas
estariam entre ele e Maisie Maidan. Esse pensamen-
to agitava-o nas noites quentes: o suor inundava-o
e ele tremia de frio no meio-dia quente — ante aque-
le pensamento. Não tinha um minuto de descanso;
seus intestinos estavam revirados; sua língua esta-
va perpetuamente seca e achava que o hálito entre
seus dentes era como o ar de um leprosário.
Ele não tinha um só pensamento para Leono-
ra; pedira demissão do exército. Deviam partir den-
tro de um mês. Parecia-lhe que seu dever era dei-
xar aquele lugar e ir embora, para apoiar Leonora.
Cumpriu seu dever.
Era horrível, no relacionamento deles naque-
la época, que o que quer que ela fizesse, levava-o a
odiá-la. Ele a odiou quando descobriu que ela pro-
punha que ele se tornasse de novo o lord de Bran-
shaw — como uma espécie de senhor-fantoche, de
cueiros. Ele achava que ela fizera aquilo para separá-
lo de Maisie Maidan. O ódio pairava nas noites
pesadas e enchia os cantos sombrios do quarto. As-

O BOM S OLDADO 323


sim, quando soube que ela oferecera ao marido de
Maidan levar sua esposa com ele, odiou-a automa-
ticamente, já que odiava tudo quanto ela fazia. Pa-
recia-lhe, nessa época, que ela jamais deixaria de ser
cruel, até mesmo quando, por acaso, um ato dela
fosse bondoso... Sim, era uma situação horrível.
Mas as brisas frescas do oceano começaram a
aliviar aquele ódio, como se uma cortina tivesse caí-
do. Elas pareciam lhe restaurar a admiração e o res-
peito por ela. O sentimento agradável de ter dinhei-
ro sobrando em suas mãos, o fato de que isso com-
prara para ele a companhia de Maisie Maidan —
essas coisas começaram a fazê-lo ver que sua esposa
estava certa ao insistir no sacrifício e na economia.
Sentiu-se à vontade; estava até radiantemente feliz
quando levava xícaras de caldo de carne para Maisie
Maidan no convés. Uma noite, quando estava reclina-
do ao lado de Leonora, no navio, ele disse de repente:
— Por Júpiter, você é a melhor mulher do mun-
do. Gostaria que fôssemos mais amigos.
Ela apenas se levantou, sem dizer uma pala-
vra, e foi para sua cabine. Entretanto, estava mui-
to melhor de saúde.

324 FORD MADOX FORD


E, agora, suponho que lhe devo a versão de
Leonora do caso...
É muito difícil. Pois Leonora, embora preser-
vasse uma aparência imutável, mudava com muita
freqüência de ponto de vista. Ela fora moldada —
por sua tradição, por sua educação — para manter
a boca fechada. Mas havia momentos, ela disse, em
que esteve bem perto de ceder à tentação de dizer
que estremecia, mais tarde, ao pensar nessa época.
Você deve levar em conta que, acima de tudo, o que
desejava era manter a boca fechada diante do mun-
do, de Edward e das mulheres que ele amava. Se fa-
lasse, desprezaria a si mesma.
A partir do momento em que ele lhe foi infiel
com La Dolciquita, ela nunca mais representou o
papel de esposa para Edward. Não que pretendes-
se apartar-se dele como um princípio, para sempre.
Seus conselheiros espirituais, acho, proibiram isso.
Mas ela estipulou que ele devia, de alguma manei-
ra, talvez simbólica, voltar para ela. Isso não pare-
cia muito claro para ela; provavelmente nem sabia
do que se tratava. Ou talvez soubesse.
Havia momentos em que ele parecia estar vol-

O BOM S OLDADO 325


tando para ela; havia momentos em que ela esteve
por um fio a ceder em sua paixão física por ele. Da
mesma maneira, em certos momentos, quase cedeu
à tentação de denunciar a senhora Basil a seu ma-
rido ou a senhora Maidan ao dela. Era quando de-
sejava provocar o horror e as dores dos escândalos
públicos. Pois, observando Edward com mais con-
centração e com ouvidos mais atentos do que um
gato dedica a um pássaro no alto, ela ficava ciente
do progresso da paixão dele por cada uma dessas
damas. Ficava ciente pela maneira com que os olhos
dele se voltavam para as portas e os portões; ficava
ciente devido à tranqüilidade dele quando recebe-
ra satisfações.
Às vezes ela imaginava que estava vendo mais
do que acontecia. Imaginava que Edward estava
envolvido em casos com outras mulheres — com
duas ao mesmo tempo; com três. Durante períodos
inteiros ela o imaginava como um monstro de li-
bertinagem e não podia ver como ele pudesse ter
algo contra ela. Ela o deixou com sua liberdade;
estava se exaurindo para reerguer suas fortunas —
nada de vestidos, nada de jóias — mantendo, a duras

326 FORD MADOX FORD


penas, algumas amizades, com medo de que custas-
sem dinheiro.
E no entanto, de modo estranho, não podia
deixar de saber que tanto a senhora Basil quanto
Maisie Maidan eram mulheres bonitas. O olhar cu-
rioso, rebaixador, que uma mulher pode lançar à
outra não a impedia de ver que a senhora Basil era
boa para Edward e que a senhora Maisie Maidan
também era boa para ele. Aquilo lhe parecia uma
trama monstruosa e incompreensível do destino.
Incompreensível! Por que, ela se perguntava a toda
hora, nenhuma das coisas boas que ela fazia para
seu marido jamais chegavam ou se impunham a ele
como coisas boas? Por que distorção maníaca ele
não podia deixar que ela fosse tão boa para ele
quanto a senhora Basil? A senhora Basil não era tão
diferente dela. É verdade que era alta, morena, com
uma doce voz lamentosa e uma grande bondade
para com cada coisa criada, dos homens do punkah
até as flores nas árvores. Mas não era tão versada
quanto Leonora, pelo menos em livros cultos. Leo-
nora não suportava romances. Mas, mesmo com
todas suas diferenças, a senhora Basil, para Leono-

O BOM S OLDADO 327


ra, não parecia diferir muito dela própria. Ela era
sincera, honesta e, quanto ao resto, também uma
mulher. E Leonora tinha uma vaga idéia de que,
para um homem, todas as mulheres são iguais de-
pois de três semanas de relacionamento íntimo. Pen-
sava que então a bondade poderia não mais atrair,
a doce e lamentosa voz não mais excitaria, a mo-
renice alta não mais daria a um homem a ilusão de
que ele estava penetrando nas profundidades de um
bosque inexplorado. Ela não compreendia como
Edward podia continuar se arrastando atrás da se-
nhora Basil. Não conseguia ver porque ele deveria
continuar a escrever longas cartas para ela depois
de sua separação. Depois disso, de fato, ela passou
por maus bocados.
Ela sustentou, nesse período, o que irei cha-
mar a teoria “monstruosa” de Edward. Estava sem-
pre imaginando que ele cortejava toda mulher que
conhecia. Naquele ano, ela não foi para o “retiro”
em Simla porque tinha medo que ele fosse seduzir
a criada na ausência dela. Ela imaginava-o envol-
vido com as nativas ou euro-asiáticas. Nas danças
era tomada pela febre de vigiar...

328 FORD MADOX FORD


Ela se persuadiu de que isso era porque temia
os escândalos. Edward poderia envolver-se com a
filha casadoura de algum homem que faria baru-
lho ou com algum marido que se importasse. Mas
realmente, como admitiu depois para si mesma, ela
esperava que, com a senhora Basil fora do caminho,
chegaria o tempo em que Edward voltaria para ela.
Todo esse tempo ela passou num tormento de ciú-
me e medo — medo que Edward tivesse se tornado
promíscuo em seus hábitos.
Assim é que, de maneira estranha, ela ficou
contente quando Maisie Maidan apareceu — e pôde
compreender que se, antes, não estivera com medo
de maridos e escândalos, a partir daí fez tudo para
afastar as suspeitas por parte do marido de Maisie.
Queria mostrar-se tão confiante em relação a Ed-
ward que Maidan não pudesse ter qualquer suspeita.
Era uma posição miserável para ela. Mas Edward
estava muito doente e ela queria vê-lo sorrir de novo.
Pensava que se ele pudesse sorrir de novo através
da ação dela, ele poderia voltar, através da grati-
dão e de amor satisfeito, para ela. Nessa época,
achava que Edward era uma pessoa de paixões le-

O BOM S OLDADO 329


vianas e passageiras. E ela podia compreender a
paixão de Edward por Maisie, já que Maisie era
uma dessas mulheres às quais as outras mulheres
podiam permitir o magnetismo.
Ela era muito bonita; era muito jovem; ape-
sar de seu coração, era muito alegre e graciosa. E
Leonora realmente era muito afeiçoada a Maisie,
que era muito afeiçoada a Leonora. Leonora, de
fato, achava que podia conduzir muito bem o caso.
Não achava que Maisie pudesse ser induzida ao
adultério; achava que se pudesse levar Maisie e Ed-
ward para Nauheim, Edward a veria suficientemen-
te para cansar-se de suas pequenas conversas deli-
cadas, e dos pequenos movimentos delicados de suas
mãos e pés. E achava que podia confiar em Edward.
Pois não havia a menor dúvida sobre a paixão de
Maisie por Edward. Ela se desmanchava em elogios
a ele junto a Leonora, da mesma maneira que Leo-
nora ouvira as moças se desmancharem em elogios
aos professores de desenho nas escolas. Ela vivia
perguntando a seu marido por que não se vestia,
montava, atirava, jogava pólo, ou recitava poemas
sentimentais, como seu major. E o jovem Maidan

330 FORD MADOX FORD


tinha a maior admiração por Edward; adorava e
confiava inteiramente em sua esposa. Para ele, Ed-
ward era devotado a Leonora. E Leonora achava
que, quando a pobre Maisie estivesse curada de seu
coração e Edward a tivesse visto bastante, ele vol-
taria para ela. Mantinha a idéia obstinada e vaga
de que, quando Edward esgotasse uma série de ou-
tros tipos de mulheres, voltaria para ela. Por que o
tipo dela não teria vez no coração dele? Achava que,
agora, ela o compreendia melhor, que compreen-
dia melhor suas vaidades e que, ao torná-lo mais
feliz, ela poderia despertar seu amor.
Florence liquidou tudo isso...

O BOM S OLDADO 331


332 FORD MADOX FORD
QUARTA PARTE

O BOM S OLDADO 333


334 FORD MADOX FORD
I.

Estou contando esta história, sei disso, de uma


forma muito errática, de modo que pode ser difícil
para qualquer um achar seu caminho através do que
pode ser uma espécie de labirinto. Nada posso fazer
a esse respeito. Estou preso à minha idéia de estar
numa casa de campo com um ouvinte silencioso, es-
cutando entre rajadas de vento e barulho do mar dis-
tante, a história da maneira que ela vem. E quando
discutimos um caso — um caso longo, triste —, re-
cuamos, avançamos. Lembramo-nos de aspectos
que havíamos esquecido e explicamos todos eles com
a maior minúcia, já que reconhecemos que tínhamos
esquecido de mencioná-los nos lugares adequados e
que podemos ter dado, ao omiti-los, uma falsa im-
pressão. Eu me consolo ao pensar que esta é uma
história verdadeira e que, afinal de contas, as histórias
verdadeiras são provavelmente mais bem contadas

O BOM S OLDADO 335


de acordo com a maneira que uma pessoa falando
iria contá-las. Elas poderão vê-las como mais reais.
De qualquer modo, acho que conduzi minha
história até a data da morte de Maisie Maidan. Que-
ro dizer que expliquei tudo que aconteceu antes dos
vários pontos de vista que se faziam necessários —
o de Leonora, o de Edward e, em alguma medida,
o meu. Você tem os fatos em vez da trabalheira de
procurá-los; você tem os pontos de vista na medi-
da em pude designá-los ou mostrá-los. Deixe-me
imaginar a mim mesmo de volta, naquela época, ao
dia da morte de Maisie — ou melhor ao momento
da dissertação de Florence sobre o Protesto, lá no
velho castelo da cidade de M. Vamos considerar o
ponto de vista de Leonora em relação a Florence;
naturalmente não posso dar o de Edward, pois ele,
é claro, jamais falou de seu caso com minha espo-
sa. (Pode ser que, a seguir, eu seja duro com Flo-
rence; mas é preciso que você se lembre que já es-
tou escrevendo esta história há seis meses e, cada
vez mais, refletindo sobre esses acontecimentos.)
E quanto mais penso sobre eles, mais certo
fico de que Florence era uma influência contami-

336 FORD MADOX FORD


nante — ela deprimiu e deteriorou o pobre Ed-
ward, deteriorou, irremediavelmente, a miserável
Leonora. Não há dúvida de que ela causou uma de-
terioração do caráter de Leonora. Se havia alguma
coisa boa em Leonora é que ela era orgulhosa e si-
lenciosa. Mas esse orgulho e esse silêncio se verga-
ram quando ela teve aquela extraordinária explo-
são, no quarto sombrio que continha o Protesto, e
no pequeno terraço dando para o rio. Não quero
dizer que ela fez algo errado. Estava certa ao ten-
tar me avisar que Florence dava em cima de seu
marido. Mas, se fez a coisa certa, fez da maneira
errada. Talvez ela devesse ter refletido mais; só
deveria ter falado, já que queria falar, depois de ter
refletido. Ou talvez fosse melhor se tivesse agido
— se, por exemplo, passasse a seguir Florence tão
de perto que a comunicação entre ela e Edward se
tornasse impossível. Ela deveria ter bisbilhotado;
deveria ter ficado escutando atrás das portas do
quarto de dormir. É odioso; mas é assim que se faz
esse trabalho. Ela deveria ter levado Edward para
longe no momento em que Maisie morreu. Não, ela
agiu mal...

O BOM S OLDADO 337


E no entanto, coitada, por que devo condená-
la — e que importância isso tem afinal? Se não ti-
vesse sido Florence, teria sido qualquer outra... No
entanto, poderia ter sido uma mulher melhor do
que minha esposa. Pois Florence era vulgar; Flo-
rence era um flerte banal que não iria, no fim de
contas, lâcher prise66; e Florence era uma tagarela
incansável. Você não conseguiria detê-la; nada po-
deria detê-la. Edward e Leonora pelo menos eram
pessoas orgulhosas e reservadas. Orgulho e reser-
va não são as únicas coisas na vida; talvez nem se-
jam as melhores coisas. Mas, se são as suas virtu-
des pessoais, você irá se decompor se deixar que
elas se percam. E Leonora deixou que se perdes-
sem. Deixou que se perdessem até mesmo antes do
pobre Edward fazê-lo. Considere a situação dela
quando explodiu em relação ao Protesto de Lu-
tero... Considere seu tormento.
Você precisa se lembrar que a principal pai-
xão dela era ter Edward de volta; até aquele mo-
mento, jamais desistira de tê-lo de volta. Isso pode

66 Soltar a presa. (N. do T.)

338 FORD MADOX FORD


parecer ignóbil; mas você precisa se lembrar tam-
bém de que tê-lo de volta representava para ela mais
do que uma vitória sobre si mesma. Teria sido, como
lhe parecia, uma vitória para todas as esposas e uma
vitória para sua Igreja. Era assim que ela via. Essas
coisas são um pouco inescrutáveis. Não sei porque
ter Edward de volta significava para ela um vitória
para todas as esposas, para a sociedade e para sua
Igreja. Ou, talvez, eu possa vislumbrá-lo.
Ela via a vida como uma perpétua batalha se-
xual entre maridos que desejam ser infiéis a suas es-
posas, e esposas que desejam reconquistar seus ma-
ridos. Essa era sua triste e modesta visão do matri-
mônio. O homem, para ela, era uma espécie de bru-
to que deve ter suas divagações, seus momentos de
excesso, suas noites fora, suas, digamos assim, fa-
ses lascivas. Ela lera pouco romances, de forma que
a idéia de um amor puro e constante sucedendo-se
ao som dos sinos do casamento nunca se lhe apre-
sentara. Ela procurara, anestesiada e aterrorizada,
a madre superior do convento de sua infância com
a narrativa das infidelidades de Edward com a dan-
çarina espanhola e tudo que a velha freira, que para

O BOM S OLDADO 339


ela era infinitamente sábia, mística e venerável, fi-
zera, fora balançar sua cabeça e dizer:
— Os homens são assim. Com a bênção de
Deus tudo irá terminar bem.
Foi isso que seus conselheiros espirituais lhe
deram como um programa de vida. Ou, de algum
modo, foi assim que seus ensinamentos chegaram
até ela — essa foi a lição que ela me disse ter apren-
dido com eles. Não sei exatamente o que lhe ensi-
naram. O destino das mulheres era paciência, pa-
ciência e mais paciência — ad majorem Dei gloriam
— até o dia esperado em que, se Deus quisesse, ela
teria sua recompensa. Se, no fim, conseguisse ter
Edward de volta, teria mantido seu homem dentro
dos limites de tudo quanto uma esposa pode espe-
rar. Foi-lhe ensinado também que esses excessos nos
homens são naturais, desculpáveis — como se fos-
sem crianças.
E o mais importante era que não devia haver
escândalo diante da congregação. Assim ela se
agarrara à idéia de reconquistar Edward com uma
paixão tão ardente que era como um tormento. Ela
procurara ver de outra forma; ocupava-se apenas

340 FORD MADOX FORD


com uma idéia. Era a idéia de fazer Edward apa-
recer, quando ela o tivesse de volta, rico, glorioso
por assim dizer, por causa de suas terras. Ela iria
mostrar, de fato, que num mundo infiel uma mu-
lher católica conseguira manter a fidelidade de seu
marido. E achava que estava perto de alcançar seu
desejo.
O plano dela em relação a Maisie parecia es-
tar funcionando admiravelmente. Edward parecia
estar esfriando em relação à moça. Ele não ansiava
mais passar cada minuto em Nauheim ao lado da
forma deitada da moça; saía para as partidas de
pólo; jogava bridge às tardes; estava animado e ra-
diante. Ela tinha certeza de que ele não estava ten-
tando seduzir aquela pobre moça; estava começando
a pensar que ele nunca tentara fazê-lo. Ele parecia
de fato estar voltando a ser o que fora para Maisie
no começo — um oficial superior atencioso, gentil,
dando atenção galante a uma noiva. Eles eram tão
abertos em seus pequenos flertes quanto o dia a
despontar no alto. E Maisie não parecia se afligir
quando ele saía para as excursões conosco; ela ti-
nha de ficar deitada em sua cama durante muitas

O BOM S OLDADO 341


horas todas as tardes e não parecia estar ansiando
pelas atenções de Edward nesses momentos.
E Edward estava começando a fazer pequenas
insinuações junto a Leonora. Uma ou duas vezes,
em particular — pois ele o fazia constantemente
diante das pessoas — ele dissera: “Como você está
bonita!” ou “Que vestido bonito!”. Ela fora com
Florence até Frankfurt, onde se veste tão bem quan-
to em Paris, e comprara uma ou duas roupas. Ela
podia se permitir isso e Florence era uma excelente
conselheira de moda. Ela parecia ter se apoderado
da chave do enigma.
Sim, Leonora parecia ter se apoderado da cha-
ve do enigma. Julgava ter cometido, em certa me-
dida, um erro no passado. Não deveria ter trazido
Edward numa rédea tão curta em relação ao di-
nheiro. Achava que estava no caminho certo ao
deixar que ele — como ela o fizera com medo e
irresolução — tivesse de novo o controle de suas
rendas. Ele chegou até a se aproximar dela e a re-
conhecer, espontaneamente, que ela agira bem ao
poupar seus recursos durante todos esses anos. Ele
disse a ela um dia:

342 FORD MADOX FORD


— Você agiu bem, dona. Não há nada de que
eu goste tanto como ter um pouco para gastar. E
agora posso fazê-lo, graças a você.
Esse foi realmente, ela disse, o momento mais
feliz de sua vida. E ele, parecendo compreendê-lo,
arriscara-se a bater no ombro dela. Ele viera, os-
tensivamente, pedir emprestado a ela um alfinete de
segurança.
E na ocasião em que deu um tapa na orelha
de Maisie, ela, depois que tudo acabou, voltou a ter
a idéia fixa de que não havia um caso entre Edward
e a senhora Maidan. Imaginava que, dali por dian-
te, tudo que tinha a fazer era mantê-lo bem supri-
do de dinheiro e entreter sua mente com belas mo-
ças. Estava convencida de que ele estava voltando
para ela. Pois, naquele mês, ela não repeliu mais suas
insinuações tímidas que nunca iam muito longe. Pois
certamente ele fazia insinuações tímidas. Dava ta-
pinhas no ombro dela; sussurrava em seu ouvido
pequenas piadas sobre as figuras estranhas que viam
no cassino. Não era tanto a piada — mas o sussur-
ro era uma intimidade preciosa...
E então — desastre — tudo acabou. Tudo se

O BOM S OLDADO 343


despedaçou no momento em que Florence colocou
sua mão no pulso de Edward, que tocava no vidro
que abrigava o manuscrito do Protesto, lá na alta
torre com as venezianas por onde a luz do sol se
infiltrava aqui e ali. Ou, melhor, foi quando ela
notou o olhar nos olhos de Edward ao olhar de volta
para Florence. Ela conhecia aquele olhar.
Ela sabia — desde o primeiro momento do
encontro deles, desde o momento em que nós quatro
nos sentamos para jantar juntos — que Florence
dava em cima de Edward. Mas ela vira tantas mu-
lheres darem em cima de Edward — centenas e cen-
tenas de mulheres, em trens, hotéis, navios, esqui-
nas. E chegara a pensar que Edward dava pouca
atenção às mulheres que davam em cima dele.
Chegara a formar, naquela época, uma estimativa
bastante correta dos métodos, dos motivos para os
amores de Edward. Estava certa de que até então
eles consistiam na breve paixão pela Dolciquita, o
tipo de amor verdadeiro pela senhora Basil, e o que
ela supunha ser a bela corte a Maisie Maidan. Além
disso, desprezava Florence de maneira tão altiva que
não podia imaginar Edward sendo atraído por ela.

344 FORD MADOX FORD


E ela e Maisie eram uma espécie de baluarte em volta
dele.
Ela queria, também, ficar atenta a Florence —
pois Florence sabia que ela dera um tapa na orelha
de Maisie. E Leonora queria desesperadamente que
sua união com Edward parecesse perfeita. Mas tudo
isso acabou...
Com o olhar de assentimento de Edward aos
olhos azuis e abertos, ela sabia que tudo tinha acaba-
do. Sabia que aquele olhar significava que os dois
tinham tido longas conversas de tipo íntimo — sobre
suas simpatias e antipatias, sobre suas naturezas,
sobre suas opiniões a respeito do casamento. Sabia
que aquilo significava que ela, quando nós quatro
caminhávamos juntos, estivera a meu lado a umas
dez jardas à frente de Florence e de Edward. Não
imaginara que aquilo pudesse ter ido mais longe do
que conversas sobre suas simpatias e antipatias, so-
bre suas naturezas ou sobre o casamento enquanto
instituição. Mas como havia observado Edward du-
rante toda sua vida, sabia que aquele toque de mãos,
o encontro dos olhares, significava que a coisa era
inevitável. Edward tinha esse tipo de seriedade.

O BOM S OLDADO 345


Sabia que qualquer tentativa por parte dela
para separar os dois seria precipitar Edward numa
paixão irreversível; que, como eu já lhe disse, era
um traço do temperamento de Edward acreditar que
a sedução de uma mulher dava a ela um poder ir-
reversível sobre ele por toda a vida. E aquele toque
de mãos, ela sabia, daria àquela mulher uma rei-
vindicação irreversível — a de ser seduzida. E ela
desprezava tanto Florence que teria preferido que
fosse uma criada de quarto. Há criadas de quarto
muito decentes.
E, de repente, veio à sua mente que Maisie
Maidan tinha uma paixão verdadeira por Edward;
que isso iria despedaçar o coração dela — e que,
ela, Leonora, seria responsável por aquilo. Por um
momento, ficou louca. Pegou-me pelo pulso; arras-
tou-me escada abaixo e através daquele Rittersaal
com as altas pilastras pintadas, com a alta chami-
né pintada. Acho que ela não ficou suficientemen-
te louca.
Ela devia ter dito:
— Sua mulher é uma prostituta que vai se tor-
nar amante de meu marido...

346 FORD MADOX FORD


Isso poderia ter resolvido o assunto. Mas, mes-
mo na loucura, ela tinha medo de ir tão longe as-
sim. Tinha medo de que, se o fizesse, Edward e Flo-
rence fariam um grande barulho e que, se isso acon-
tecesse, perderia para sempre qualquer chance de
tê-lo de volta. Ela agiu muito mal comigo.
Bem, ela era uma alma torturada que coloca-
va sua Igreja acima dos interesses de um quaker da
Filadélfia. Isso está certo — atrevo-me a dizer que
a Igreja de Roma é mesmo mais importante.
Uma semana depois da morte de Maisie Mai-
dan, ela tinha certeza de que Florence se tornara
amante de Edward. Esperou do lado de fora do
quarto de Florence e encontrou Edward ao sair. Ela
não disse nada; ele apenas resmungou. Mas acho
que ele passou por maus bocados.
Sim, a deterioração mental que Florence provo-
cou em Leonora foi extraordinária; esmagou a vida
dela e todas as suas chances. Tornou-a, em primei-
ro lugar, desesperada — pois não podia mais ver
como, depois disso, Edward poderia voltar para ela
—, depois de um traição vulgar com uma mulher
vulgar. O caso dele com a senhora Basil, que era

O BOM S OLDADO 347


até então tudo que ela podia ter no coração contra
ele, era algo que não podia chamar de uma traição.
Era um caso de amor — uma coisa bastante pura à
sua maneira. Mas aquilo era para ela um horror —
uma devassidão, ainda mais detestável porque ela
detestava tanto Florence. E Florence falava....
Isso é que foi terrível, porque Florence forçou
a própria Leonora a abandonar sua extrema reser-
va — Florence e a situação. Parece que Florence
estava entre duas opções, ou se confessar a mim ou
a Leonora. Ela precisava se confessar. E se inclinou
por Leonora porque, se fosse comigo, teria de con-
fessar muito mais. Ou, pelo menos, eu poderia vir
a descobrir muito mais sobre seu “coração” e so-
bre Jimmy. Assim, ela foi até Leonora um dia e co-
meçou a insinuar e insinuar. E enraiveceu Leonora
a tal ponto que por fim Leonora disse:
— Você quer me dizer que é a amante de Ed-
ward. Pode continuar. Não tenho uso para ele.
Isso foi realmente uma calamidade para Leo-
nora, porque, uma vez começada, não havia mais
como deter a conversa. Ela tentou detê-la — mas
já não podia fazê-lo. Achou que era necessário en-

348 FORD MADOX FORD


viar mensagens para Edward através de Florence,
pois não falaria com ele. Queria fazer, por exem-
plo, com que ele compreendesse que, se eu algum
dia viesse saber a respeito dessa intriga, ela o arrui-
naria irremediavelmente. E a questão se complica-
va um bocado porque Edward, nessa época, estava
realmente um pouco apaixonado por ela. Ele achava
que a tinha tratado muito mal; que ela fora muito
boa. Ela estava tão melancólica que sua aspiração
era confortá-la, e se achava tão salafrário que faria
tudo para repará-lo. E Florence comunicava esses
itens de informação a Leonora.
Não culpo de maneira nenhuma Leonora por
sua rudeza com Florence; isso deve ter feito muito
bem a Florence. Mas eu a culpo por ter dado mar-
gem ao que, no fim de contas, era um desejo de co-
municação. Entenda que todo esse negócio separou-
a de sua Igreja. Ela não queria confessar o que es-
tava fazendo porque tinha medo de que seus con-
selheiros espirituais a culpassem por estar me en-
ganando. Chego a imaginar que ela preferia a da-
nação a ferir meus sentimentos. Foi assim que fun-
cionou. Ela não precisava ter se preocupado.

O BOM S OLDADO 349


Mas sem poder conversar com os padres, ela
tinha de falar com alguém e, como Florence insistia
em conversar com ela, respondia com frase curtas,
explosivas, como as dos danados. Exatamente como
a dos danados. Bem, se um bom período no infer-
no sobre esta terra pode poupá-la de um período
de dor na Eternidade — onde não há períodos —,
acho que Leonora irá escapar do fogo do Inferno.
Suas conversas com Florence aconteciam as-
sim. Florence aproximava-se dela, enquanto ela pen-
teava seu maravilhoso cabelo, com uma proposta
de Edward, que parece ter alimentado nessa época
a idéia ingênua de que poderia se tornar um po-
lígamo. Atrevo-me a dizer que foi Florence que co-
locou essa idéia na cabeça dele. Seja como for, não
sou responsável pelas esquisitices da psicologia hu-
mana. Mas tudo indica que, por volta dessa época,
Edward se importou mais com Leonora como nunca
o fizera antes — ou, pelo menos, como não fazia
há muito tempo. E, se Leonora fosse do tipo que
gostasse de jogar, poderia tê-lo feito muito bem; se
não tivesse nenhum senso de decência e assim por
diante, poderia ter compartilhado Edward com Flo-

350 FORD MADOX FORD


rence até que chegasse a hora de jogar aquele po-
bre cuco para fora do ninho.
Bem, Florence se aproximava de Leonora com
esse tipo de proposta. Não quero dizer que ela a
expusesse assim cruamente. Ela ficava sustentando
que não era amante de Edward até que Leonora
dissesse que o vira saindo do quarto dela altas ho-
ras da noite. Isso fazia Florence recuar um pouco;
mas ela recorria a seu “coração” e afirmava que
estava apenas conversando com Edward para me-
lhor sua disposição mental. Florence, naturalmen-
te, tinha de aderir a essa história; pois até Florence
não tinha cara para implorar a Leonora que con-
cedesse seus favores a Edward, se admitisse que era
amante de Edward. Isso não podia ser feito. Ao
mesmo tempo, Florence tinha o desejo urgente de
falar sobre alguma coisa. Não havia mais nada para
conversar, a não ser de uma reaproximação entre
o casal afastado. Assim ficava tagarelando e Leo-
nora penteando seu cabelo. Então Leonora diria de
repente algo assim:
— Eu me sentiria aviltada se Edward me to-
casse, agora que ele a tocou.

O BOM S OLDADO 351


Isso desencorajaria Florence um pouco; mas
uma semana depois mais ou menos, ela faria uma
nova tentativa.
E, até mesmo nas outras coisas, Leonora de-
teriorava. Prometera deixar os gastos com a renda
nas mãos de Edward. E queria mesmo fazê-lo. Atre-
vo-me a dizer que ela o teria feito, embora, sem
dúvida, fosse vigiar a conta bancária dele em segre-
do. Ela não era uma católica romana inutilmente.
Mas levou tão a sério a infidelidade de Edward à
memória da coitada da pequena Maisie que não
confiava mais nele.
Assim, quando voltou para Branshaw, antes
que se passasse um mês, começou a importuná-lo
com os mínimos itens de seus gastos. Deixava que
ele tivesse seus próprios cheques, mas quase não
havia um cheque que ela não controlasse — exceto
quanto a uma conta particular de cerca de quinhen-
tas libras por ano que, tacitamente, ela o deixava
manter para seus gastos com sua amante ou suas
amantes. Ele tinha de dar suas voltinhas em Paris;
tinha de mandar telegramas caros e cifrados para
Florence cerca de duas vezes por semana. Mas ela

352 FORD MADOX FORD


o perseguia a respeito de seus gastos com vinhos,
frutas, arreios, portões, com sua conta com o fer-
reiro pelo trabalho com uma nova patente de estri-
bo para o exército, que ele estava tentando inven-
tar. Não conseguia compreender porque ele tinha
de se preocupar em inventar um novo estribo para
o exército e ficou realmente furiosa quando, depois
que a invenção ficou pronta, ele deu de presente à
Secretaria da Guerra o projeto e os direitos de pa-
tente. Era um estribo admiravelmente bem feito.
Eu já lhe disse, acho, que Edward gastou uma
boa parte de seu tempo, e cerca de duzentas libras
em fiança, para conseguir que uma pobre moça,
filha de um de seus jardineiros, ficasse livre da acu-
sação de ter matado o bebê dela. Esse foi positiva-
mente o último ato da vida de Edward. Aconteceu
na época em que Nancy Rufford estava a caminho
da Índia; quando o mais horrível desalento se apos-
sara da casa; quando o próprio Edward estava ator-
mentado e se comportando o melhor que podia.
Mesmo assim, nessa ocasião Leonora fez uma cena
terrível com ele a respeito desse desperdício com
tempo e encrencas. Ela tinha uma vaga idéia do que

O BOM S OLDADO 353


se passara com a moça e aquilo tudo teria de ensi-
nar uma lição a Edward — a lição da economia. Ela
ameaçou mais uma vez retirar a conta bancária dele.
Acho que isso o levou a cortar seu pescoço. Ele
poderia enfrentado tudo de outra maneira — mas
o pensamento de que perdera sua Nancy e de que,
além disso, só lhe restava uma sucessão sombria de
dias sombrios, nos quais não poderia fazer mais
nada de utilidade pública... Bem, isso acabou com
ele.
Foi durante esses anos que Leonora tentou ini-
ciar um caso amoroso com um sujeito chamado
Bayham — um sujeito decente. Um homem realmen-
te agradável. Mas o caso não deu certo. Eu já lhe
contei isso antes...

354 FORD MADOX FORD


II.

Bem, isso me leva à data em que recebi, em


Waterbury, o telegrama lacônico de Edward com
o propósito de me pedir que fosse até Branshaw para
uma conversa. Eu estava bastante ocupado nessa
época e me dispus a enviar uma resposta telegráfi-
ca dizendo que estaria lá dentro de uns quinze dias.
Mas eu estava no meio de uma longa negociação
com os advogados do senhor Hurlbird e, imediata-
mente depois, tive um encontro demorado com as
senhoritas Hurlbird, de modo que adiei o telegrama.
Eu esperava encontrar as senhoritas Hurlbird
já excessivamente envelhecidas — lá pela casa dos
noventa. O tempo passara tão lentamente que eu
tinha a impressão de que já fazia mais de trinta anos
que eu estivera nos Estados Unidos. Mas tinham
sido apenas doze anos. Na verdade a senhorita Hurl-
bird estava com sessenta e um anos, e a senhorita

O BOM S OLDADO 355


Florence Hurlbird com cinqüenta e nove, e ambas
estavam, mental e fisicamente, com o máximo de
vigor que se poderia desejar. De fato, estavam mais
vigorosas, mentalmente, do que convinha a meu
propósito, que era ir embora dos Estados Unidos o
mais rápido possível. Os Hurlbird eram uma famí-
lia extremamente unida — extremamente unida,
exceto em relação a uma série de assuntos. Cada
uma das três tinha um médico próprio, em que con-
fiavam inteiramente — e cada uma delas tinha um
advogado próprio. E cada uma delas desconfiava
do médico da outra e do advogado da outra. E,
naturalmente, os médicos e os advogados advertiam
o tempo todo umas contra as outras. Você não pode
imaginar como tudo isso se tornou complicado para
mim. Naturalmente eu tinha meu próprio advoga-
do — recomendado pelo jovem Carter, meu sobri-
nho da Filadélfia.
Não quero dizer que tenha havido qualquer
coisa desagradável no sentido de cobiça. O proble-
ma era justamente outro — um dilema moral. Veja,
o velho senhor Hurlbird deixara toda a sua proprie-
dade para Florence com a simples recomendação

356 FORD MADOX FORD


de que ela deveria construir para ele, na cidade de
Waterbury, Illinois, um monumento comemorati-
vo sob forma de uma instituição para o alívio dos
doentes de coração. O dinheiro de Florence viera
todo para mim — e com ele, o velho senhor Hurl-
bird. Ele morrera justamente cinco dias antes de
Florence.
Bem, eu estava disposto a gastar por volta de
um milhão de dólares para o tratamento dos doen-
tes de coração. O velho cavalheiro deixara cerca de
um milhão e um meio; Florence valera cerca de oi-
tocentos mil — e, pelo que calculei, eu mesmo de-
veria abocanhar cerca de um milhão. Seja como for,
havia dinheiro de sobra. Mas eu desejava natural-
mente consultar os desejos de seus parentes vivos e
foi aí que começou de fato a encrenca. Veja bem,
tinham descoberto que o senhor Hurlbird jamais
tivera qualquer problema no coração. Seus pulmões
haviam sido um pouco afetados durante toda sua
vida e ele morrera de bronquite.
Isso abalou a senhorita Florence Hurlbird, pois
já que seu irmão morrera dos pulmões e não do
coração, seu dinheiro devia ir para os doentes dos

O BOM S OLDADO 357


pulmões. Isso, ela ponderava, era o que seu irmão
desejaria fazer. Por outro lado, por um capricho,
que na época eu não entendia, a senhorita Hurlbird
insistia para que eu ficasse com todo o dinheiro para
mim. Ela disse que não desejava nenhum monumen-
to para a família Hurlbird.
Na época achei que isso era por causa de uma
antipatia, à maneira da Nova Inglaterra, pela os-
tentação necrológica. Mas posso perceber agora, ao
me lembrar de certas perguntas insistentes e contí-
nuas que ela fazia sobre Edward Ashburnham, que
havia uma outra idéia em sua mente. E Leonora me
dissera que, na penteadeira de Florence, ao lado de
seu corpo morto, havia uma carta para a senhorita
Hurlbird — uma carta que Leonora enviara sem me
dizer. Não sei como Florence achara tempo para
escrever para sua tia; mas eu posso entender per-
feitamente que ela não quisesse deixar este mundo
sem fazer alguns comentários. Assim, creio que Flo-
rence contara para a senhorita Hurlbird um boca-
do a respeito de Edward Ashburnham em algumas
palavras rabiscadas — e que era por isso que a ve-
lha senhora não queria o nome dos Hurlbird per-

358 FORD MADOX FORD


petuado. Talvez ela também achasse que eu merecia
o dinheiro do Hurlbird.
Isso levou a uma série considerável de discus-
sões, com os médicos advertindo cada uma delas
sobre os efeitos ruins das discussões sobre a saúde
das velhas senhoras, advertindo-me contra cada
uma delas, e dizendo que o velho senhor Hurlbird
poderia, no fim de contas, ter morrido mesmo do
coração, apesar do diagnóstico do médico dele. E
todos os procuradores tinham métodos diferentes
de arranjo em relação à maneira como o dinheiro
devia ser investido, depositado e destinado.
Pessoalmente, queria investir o dinheiro de tal
modo que os juros pudessem ser usados para o tra-
tamento dos doentes de coração. Embora o senhor
Hurlbird não tivesse morrido por causa de qualquer
problema nesse órgão, ele sempre achara, no entan-
to, que havia algum defeito nele. Além disso, Flo-
rence certamente morrera de um ataque do cora-
ção, como eu testemunhara. E quando a senhorita
Florence Hurlbird afirmou que o dinheiro devia ir
para os doentes dos pulmões, fui levado a pensar
que deveria também haver uma instituição para os

O BOM S OLDADO 359


pulmões, e aumentei a soma que estava pronto a
fornecer para um milhão e meio de dólares. Isso
daria setecentos e cinqüenta mil para cada classe de
inválido. Eu não desejava o dinheiro tanto assim.
Tudo que queria era ser capaz de proporcionar di-
versão a Nancy Rufford. Não sabia muito a respeito
de despesas domésticas na Inglaterra, onde, eu pre-
sumia, ela desejava viver. Sabia que suas necessida-
des nessa época se limitavam a bons chocolates e
um bom cavalo, ou dois vestidos simples, bonitos.
Provavelmente ela iria desejar ter mais um pouco
mais tarde. Mas ainda que doasse um milhão e meio
de dólares para essas instituições, eu ainda teria o
equivalente a cerca de vinte mil libras por ano, e
achava que Nancy poderia se divertir bastante com
isso ou até com menos.
Seja como for, tivemos uma discussão séria lá
na mansão Hurlbird, que fica numa escarpa no alto
da cidade. Isso pode lhe parecer engraçado, ouvin-
te silencioso, se você for um europeu. Mas os pro-
blemas morais dessa ordem e a doação de milhões
a instituições são assuntos imensamente sérios em
meu país. Na verdade, constituem os principais tó-

360 FORD MADOX FORD


picos de discussão entre as classes ricas. Nós não
temos os títulos de nobreza e de ascensão social para
nos ocuparmos; as pessoas decentes não têm inte-
resse em política, nem os mais velhos, em esportes.
Assim, houve lágrimas reais tanto da parte da se-
nhorita Hurlbird quanto da senhorita Florence an-
tes que eu deixasse a cidade.
Saí de lá de modo bastante abrupto. Quatro
horas depois do telegrama de Edward, chegou um
outro de Leonora, dizendo: “Sim, venha. Você pode
ajudar”. Eu simplesmente disse a meu advogado que
ali estava o milhão e meio; que ele podia investi-lo
como quisesse e que os objetivos deveriam ser de-
cididos pelas senhoritas Hurlbird. De qualquer mo-
do, eu ficara exausto com as discussões. E, como
não ouvi falar mais das senhoritas Hurlbird, incli-
no-me a pensar que a senhorita Hurlbird, quer por
meio de suas revelações quer por meio de sua força
moral, persuadiu a senhorita Florence de que ne-
nhum monumento com seus nomes deveria ser cons-
truído na cidade de Waterbury. A senhorita Hurl-
bird chorou terrivelmente quando soube que eu ia
ficar com os Ashburnham, mas não fez nenhum

O BOM S OLDADO 361


comentário. Eu já sabia, nessa época, que sua so-
brinha fora seduzida por aquele tipo, Jimmy, antes
que me casasse com ela — mas fiz tudo para pro-
duzir nela a impressão de que acreditava que Flo-
rence fosse uma esposa modelo. Ora, nessa época
eu ainda acreditava que Florence fora perfeitamente
virtuosa depois de seu casamento comigo. Não ima-
ginava que ela tivesse jogado tão baixo a ponto de
continuar seus casos sob meu teto. Bem, eu era um
idiota. Mas não pensava muito em Florence nessa
época. Minha mente estava ocupada com o que es-
tava acontecendo em Branshaw.
Eu pusera na cabeça que os telegramas tinham
algo a ver com Nancy. Ocorreu-me a idéia de que
ela poderia estar dando sinais de ligação com algum
tipo indesejável e que Leonora desejava que eu vol-
tasse e me casasse com ela para evitar o perigo. Foi
isso que penetrou firmemente em minha mente. E
ficou na minha mente por quase dez dias depois de
minha chegada àquele belo e antigo lugar. Nem
Edward nem Leonora fizeram qualquer gesto para
me falar sobre qualquer coisa a não ser o tempo e
as colheitas. No entanto, embora houvesse vários

362 FORD MADOX FORD


jovens por ali, eu não conseguia ver que qualquer
um deles em especial fosse distinguido pela prefe-
rência da moça. Ela certamente parecia doentia e
nervosa, exceto quando acordava para ficar falan-
do alegremente à toa comigo. Oh, que coisa bonita
que ela era...
Imaginei que o que devia estar acontecendo era
que o jovem indesejável fora proibido de freqüen-
tar o lugar e que Nancy estava um pouco aborrecida.
O que aconteceu foi o inferno. Leonora havia
falado com Nancy; Nancy havia falado com Ed-
ward; Edward havia falado com Leonora — e eles
tinham falado, falado. E falado. Você precisa ima-
ginar quadros horríveis de desalento e meia-luz, e
de emoções atravessando noites silenciosas — tudo
isso durante noites inteiras. Você precisa imaginar
minha bela Nancy surgindo de repente para Ed-
ward, aproximando-se de sua cama com seu longo
cabelo caindo como um cone seccionado de luz, sob
o brilho da vela que queimava ao lado dele. Você
precisa imaginá-la, uma figura silenciosa, certamen-
te atormentada, qual um espectro, de súbito ofere-
cendo-se a ele — para salvar seu juízo! E você pre-

O BOM S OLDADO 363


cisa imaginar a recusa frenética dele — e a conver-
sa. E a conversa! Meu Deus!
E no entanto, para mim, morando na casa,
envolvido pelo encanto da vida tranqüila e ordena-
da, com os criados silenciosos e treinados, cujo mero
cuidado com minhas roupas era como uma carícia
— para mim que estava o tempo todo junto deles,
todos pareciam pessoas ternas, firmes e devotadas,
sorrindo, ausentando-se em intervalos adequados;
levando-me para encontros —, apenas pessoas de
bem! Diabos, como é que eles — com os diabos —,
como é que eles conseguem?
No jantar, certa noite, Leonora disse — ela
tinha acabado de abrir um telegrama:
— Nancy irá para a Índia amanhã, para en-
contrar-se com seu pai.
Ninguém falou. Nancy olhou para seu prato;
Edward continuou a comer seu faisão. Eu me senti
muito mal; pensei que devia fazer meu pedido a Nan-
cy naquela noite. Achei estranho que eles não tives-
sem me dado qualquer aviso sobre a partida de Nan-
cy. Mas pensei que era só o comportamento inglês
— algum tipo de delicadeza que eu não conseguia

364 FORD MADOX FORD


entender. Você precisa lembrar-se de que naquele mo-
mento eu confiava em Edward, Leonora e em Nancy
Rufford, e na tranqüilidade de antigos refúgios de
paz, assim como eu confiara no amor de minha mãe.
E nessa noite Edward conversou comigo.

O que acontecera no intervalo fora o seguinte:


Ao retornar de Nauheim, Leonora tinha fica-
do completamente prostrada — porque sabia que
podia confiar em Edward. Isso pode parecer estra-
nho mas, se você sabe algo a respeito de prostra-
ções, sabe que, pelos tormentos engenhosos que o
destino nos prepara, essas coisas acontecem logo
que, quando a tensão é relaxada, não há mais nada
a fazer. É depois da longa doença e da morte de um
marido que uma esposa desmorona; é no fim de uma
longa regata que uma tripulação entra em colapso
e cai sobre seus remos. E foi isso que aconteceu com
Leonora.
Por causa de certas entonações na voz de Ed-
ward; por causa do demorado olhar direto que ele
lançara sobre ela com seus olhos avermelhados, ao
se levantar da mesa de jantar no hotel Nauheim, ela

O BOM S OLDADO 365


sabia que, no caso da pobre moça, tratava-se de uma
situação na qual os escrúpulos morais de Edward,
ou seu código social, ou sua noção de que seria jo-
gar baixo demais, deixavam Nancy em perfeita se-
gurança. A moça, ela estava certa, não corria ne-
nhum perigo com Edward. E nisso ela estava total-
mente certa. O golpe viria dela mesma.
Ela relaxou; caiu; vagou à deriva, a princípio
rapidamente, depois com um movimento acelerado,
pela corrente do destino. Pode-se dizer que, ao se
afastar das imposições de sua religião, pela primei-
ra vez em sua vida, agiu de acordo com as tendên-
cias de seus desejos instintivos. Não sei dizer se as-
sim ela não era mais ela própria; ou se, ao afrouxar
os laços de seus padrões, de suas convenções ou de
suas tradições, estava sendo, pela primeira vez, ela
própria. Estava dilacerada entre seu intenso amor
maternal pela moça e um intenso ciúme da mulher
que compreende que o homem que ela ama encon-
trou o que parece ser a paixão definitiva de sua vida.
Estava dividida entre um intenso desgosto pela fra-
queza de Edward ao alimentar essa paixão, uma
intensa piedade pelas misérias que ele estava enfren-

366 FORD MADOX FORD


tando, e um sentimento igualmente intenso, mas que
ela escondia de si mesma — um sentimento de res-
peito pela determinação de Edward, naquele caso
particular, de manter-se íntegro.
E o coração humano é uma coisa muito miste-
riosa. É impossível dizer que Leonora, ao agir como
fez, não estivesse cheia de ódio pela virtude final de
Edward. Ela queria, eu acho, desprezá-lo. Ele se
afastara, havia compreendido, definitivamente dela.
Então que ele sofresse, que ele se atormentasse; que
ele, se possível, se arrebentasse e fosse para o infer-
no, que é a moradia dos que tiveram a vontade di-
lacerada. Ela poderia ter tomado outro caminho.
Teria sido tão fácil mandar a moça para longe para
ficar com alguns amigos; ela própria poderia levá-
la para longe sob este ou aquele pretexto. Isto não
teria resolvido as coisas, mas teria sido uma deci-
são decente... Contudo, nessa época, a pobre Leo-
nora era incapaz de tomar qualquer decisão.
Ela apiedou-se espantosamente de Edward cer-
ta vez — e então agiu segundo os mandamentos da
piedade; ela o desprezou noutra ocasião e então agiu
segundo os ditados de seu desprezo. Ela arfava, co-

O BOM S OLDADO 367


mo uma pessoa morrendo de turbeculose arfa em
busca de ar. Ansiava loucamente por uma comuni-
cação com qualquer outra alma humana. E a alma
humana que escolhera fora a da moça.
Talvez Nancy fosse a única pessoa com que ela
pudesse conversar. Com sua necessidade de reticên-
cias, com sua frieza de comportamento, Leonora
tinha particularmente poucos íntimos. Ela não tinha
na verdade nenhum, com exceção da senhora do
coronel Whelen, que a avisara do caso com La Dol-
ciquita, e uma ou duas religiosas, que a tinham guia-
do pela vida. A esposa do coronel estava na Ma-
deira nessa época; agora ela evitava as religiosas.
No seu livro de visitas havia setecentos nomes; não
havia uma só alma com quem ela pudesse falar. Ela
era a senhora Ashburnham de Branshaw Teleragh.
Ela era a grande senhora Ashburnham de Bran-
shaw e ficava deitada na cama o dia inteiro em seu
maravilhoso, leve, aéreo quarto com os algodões
estampados, o Chippendale67 e os retratos dos Ash-

67 Designação de um mobiliário de estilo rococó. (N. do

T.)

368 FORD MADOX FORD


burnham falecidos feitos por Zoffany e Zucchero68.
Quando havia uma reunião, ela se esforçava — su-
pondo que estivesse dentro da distância de uma
cavalgada — e deixava que Edward a conduzisse e
à moça para as encruzilhadas ou para a casa de
campo. Ela conduzia-se sozinha de volta para casa;
Edward cavalgava junto com a moça. Leonora não
podia cavalgar naquela estação — sua cabeça esta-
va ruim demais. Cada passada de sua égua era uma
agonia.
Mas ela conduzia com eficiência e precisão;
sorria para os Gimmer e Ffoulke e os Hedley Seaton.
Jogava com precisão os tostões para os meninos que
abriam os portões para ela; sentava-se bem apru-
mada no assento da carruagem alta; acenava para
Edward e Nancy enquanto cavalgavam juntos com
os cães de caça e todo mundo podia ouvir sua voz
clara e alta, no tempo frio, dizendo:

68 Segundo a edição da Oxford University Press aos cui-

dados de Thomas C. Moser, trata-se respectivamente dos pin-


tores John Zoffany (1738-1810) e Federico Zucchero (1543-
1609). (N. do T.)

O BOM S OLDADO 369


— Divirtam-se!
Pobre mulher desamparada!...
Havia, no entanto, uma centelha de consola-
ção. Vinha do fato de que Rodney Bayham, tam-
bém de Bayham, sempre a seguia com seus olhos.
Já fazia três anos que ela tentara seu caso de amor
abortado com ele. No entanto, nas manhãs de in-
verno ele ainda cavalgava até o varal da carruagem
dela e dizia: “Bom-dia”, e olhava para ela com seus
olhos que não imploravam, mas pareciam dizer:
“Veja, ainda estou à sua disposição”.
Era um grande consolo, não porque ela se dis-
pusesse a recomeçar com ele, mas porque aquilo lhe
mostrava que havia no mundo uma alma fiel com
calças de equitação. E lhe mostrava que não estava
perdendo sua beleza.
Na verdade, ela não estava perdendo sua be-
leza. Tinha quarenta anos, mas estava tão inteira
quanto no dia que deixara o convento — inteira no
perfil, inteira nas cores do cabelo, no azul-escuro
dos olhos. A achava que o espelho lhe dizia isso;
mas sempre havia dúvidas... Os olhos de Rodnney
Bayham dissiparam-nas.

370 FORD MADOX FORD


É muito curioso que Leonora não tivesse en-
velhecido em nada. Suponho que há alguns tipos de
beleza e até mesmo de juventude feitas para o em-
belezamento que vem com a persistência da dor.
Mas isso está dito com muito rebuscamento. Que-
ro dizer que Leonora, se tudo continuasse a progre-
dir, poderia se tornar dura demais e, talvez, arro-
gante. Da maneira como aconteceu, ela se ajustou
para parecer eficiente — e no entanto simpática.
Esta é a mais rara das misturas. E no entanto juro
que Leonora, à sua maneira contida, dava a impres-
são de ser intensamente simpática. Quando ela o
estava ouvindo, parecia também estar ouvindo al-
gum som que se perdia na distância. Mas ainda
assim, ouvia e assimilava o que você dizia, o que,
já que o registro da humanidade é um registro de
dores, era, via de regra, algo triste.
Acho que ela havia conduzido Nancy através
de muitos terrores noturnos e de muitos lugares
ruins diurnos. E isso contava para o amor apaixo-
nado da moça pela mulher mais velha. Pois o amor
de Nancy por Leonora era uma admiração desper-
tada nos católicos devido a seu sentimento pela Vir-

O BOM S OLDADO 371


gem Maria e por várias santas. É muito pouco di-
zer que a moça estenderia sua vida aos pés de Leo-
nora. Bem, ela estendera a oferta de sua virtude —
e de sua razão. Essas eram as posses de sua vida.
Seria muito melhor hoje em dia, para Nancy Ruf-
ford, se estivesse morta.
Talvez todas essas reflexões sejam entediantes;
mas elas me povoam. Vou tentar contar a história.
Veja, quando voltou de Nauheim, Leonora co-
meçou a ter suas dores de cabeça — dores de cabe-
ça que duravam dias inteiros, durante os quais ela
não conseguia falar uma só palavra e não tolerava
ouvir nenhum som. E, dia após dia, Nancy ficava
sentada ao lado dela, silenciosa e imóvel durante
horas, imergindo lenços em vinagre e água, pensan-
do seus próprios pensamentos. Deve ter sido mui-
to ruim para ela — e suas refeições a sós com Ed-
ward também devem ter sido ruins para ela e des-
comunalmente ruins para Edward. Edward, natural-
mente, oscilava em seu comportamento. O que mais
podia fazer? Às vezes ficava sentado em silêncio,
deprimido diante de sua comida intocada. Não pro-
feria nada a não ser monossílabos, quando Nancy

372 FORD MADOX FORD


falava com ele. Estava simplesmente com medo de
que a moça se apaixonasse por ele. Em outras oca-
siões bebia um pouco de vinho; recompunha-se; ten-
tava brincar com Nancy sobre um obstáculo dian-
te do qual sua égua havia recuado ou conversar
sobre os costumes dos habitantes de Chitral. Isso
acontecia quando pensava que estava sendo duro
para a pobre moça, que ele tivesse se tornado uma
companhia maçante. Compreendeu que sua conver-
sa com ela no parque em Nauheim não lhe fizera
nenhum mal.
Mas tudo aquilo fazia muito mal a Nancy.
Aquilo abriu seus olhos para o fato de que Edward
era um homem com seus altos e baixos, e não o tio
invariavelmente alegre como um cão bonzinho, um
cavalo de confiança ou um namorado. Ela o encon-
trava em atitudes de depressão assustadora, afun-
dado em sua poltrona-estúdio que também era uma
sala de armas. Ela observava pela porta aberta que
seu rosto era o rosto de um velho, de um morto,
quando ele não tinha ninguém com quem conver-
sar. Gradualmente foi ficando claro para ela que
havia profundas diferenças entre o casal que ela via

O BOM S OLDADO 373


como seu tio e sua tia. Foi uma convicção que se
formou muito lentamente.
Começou com a doação, feita por Edward, de
um velho cavalo a um rapaz chamado Selmes. O
pai de Selmes fora arruinado por um procurador
fraudulento e a família Selmes teve de vender seus
cavalos de caça. Foi um caso que despertou um bo-
cado de simpatia naquela parte do condado. E Ed-
ward, ao se encontrar com o jovem, um dia, a pé, e
vendo que ele estava muito infeliz, oferecera-lhe um
velho garrano irlandês no qual estava montado. Foi
uma coisa estúpida, de fato. O cavalo valia de trin-
ta a quarenta libras e Edward devia saber que o
presente iria aborrecer sua esposa. Mas Edward
precisava consolar aquele jovem infeliz cujo pai ele
conhecera durante toda sua vida. E o que tornou a
coisa pior era que o jovem não tinha sequer como
manter o cavalo. Edward lembrou-se disso, imedia-
tamente após ter feito sua doação e disse depressa:
— Naturalmente, você deve guardar o cavalo
em Branshaw até que tenha tempo de cuidar dele
ou até que queira vendê-lo e comprar um melhor.
Nancy foi direto para casa e contou tudo isso

374 FORD MADOX FORD


a Leonora, que estava deitada. Ela via aquilo como
um exemplo esplêndido da pronta consideração de
Edward pelos sentimentos e pelas circunstâncias dos
necessitados. Achou que aquilo faria bem a Leonora
— porque qualquer mulher deveria se sentir bem
ao saber que tinha um marido tão esplêndido as-
sim. Essa foi a última criancice que fez. Pois Leo-
nora, cuja dor de cabeça tinha passado mas a dei-
xara extremamente fraca, virou-se na cama e pro-
nunciou palavras, espantosas para a moça:
— Por Deus — ela disse — gostaria que ele fosse
seu marido, e não o meu. Estaríamos arruínados. Es-
taríamos arruinados. E eu nunca teria uma chance.
E de repente Leonora caiu no choro. Ergueu-
se dos travesseiros apoiada num cotovelo e sentou-
se ali — chorando, chorando, chorando, com seu
rosto escondido nas mãos e as lágrimas escorrendo
através dos dedos.
A moça corou, gaguejou e soluçou como se
tivesse sido insultada pessoalmente.
— Mas tio Edward... — ela começou.
— Esse homem — Leonora disse, com uma
amargura extraordinária — daria a camisa dele e a

O BOM S OLDADO 375


minha, e a sua para qualquer um... — Ela não con-
seguiu concluir a frase.
Naquele momento, estava sentindo um ódio
e um desprezo extraordinário por seu marido. Du-
rante toda a manhã e a tarde inteira, ela ficara dei-
tada ali pensando que Edward e a moça estavam
juntos no campo e só voltariam para casa ao cre-
púsculo. Ela havia arranhado as palmas das próprias
mãos com suas unhas afiadas.
A casa estivera silenciosa sob a atmosfera des-
falecida do inverno. E então, depois de uma eterni-
dade de tortura, fora invadida pelo som de portas
se abrindo, da voz alegre da moça dizendo:
— Bem, foi só debaixo da erva-de-passarinho...
E veio a entonação ríspida de Edward. Então
Nancy entrara, com pés que se apressavam na es-
cada e se tornavam leves à medida que se aproxi-
mavam da porta aberta do quarto de Leonora. Bran-
shaw tinha uma sala de estar enorme, com assoalhos
de carvalhos e peles de tigres. Em volta dessa sala
de estar havia uma galeria para a qual dava a por-
ta de Leonora. E mesmo quando ela estava com a
pior das dores de cabeça, gostava de ficar com a

376 FORD MADOX FORD


porta aberta — suponho que fosse para poder ou-
vir os passos da ruína e do desastre se aproximan-
do. De qualquer modo odiava ficar num quarto com
a porta trancada.
Naquele momento Leonora odiava Edward
com um ódio que tinha algo de demoníaco, e ela
tinha vontade de bater com seu chichote no rosto
da moça. Que direito Nancy tinha de ser jovem,
esbelta e morena, e alegre às vezes, às vezes triste?
Que direito ela tinha de ser exatamente a mulher
que faria feliz o marido de Leonora? Pois Leonora
sabia que Nancy poderia fazer Edward feliz.
Sim, Leonora queria bater com seu chicote no
rosto jovem de Nancy. Imaginava o prazer que sen-
tiria quando a chicotada caísse sobre aqueles tra-
ços singulares; o prazer que sentiria em segurar o
cabo para bater nela, de maneira a fazer um corte
profundo na carne e deixar uma marca permanente.
Bem, ela deixou uma marca permanente; suas
palavras fizeram um corte profundo na mente da
moça...
Nenhuma delas falou de novo sobre aquilo. Pas-
saram-se uns quinze dias — uma quinzena de chu-

O BOM S OLDADO 377


vas fortes, de campos pesados, de cheiro ruim. As
dores de cabeça de Leonora pareciam ter desapa-
recido. Ela caçava uma ou duas vezes por semana,
deixando-se conduzir por Bayham, enquanto Edward
conduzia a moça. Então, uma noite, quando os três
estavam jantando a sós, Edward disse, com aquela
maneira estranha, deliberada e pesada que saía dele
naqueles dias (ele estava olhando para a mesa):
— Eu estava pensando que Nancy deveria fa-
zer mais pelo pai dela. Ele está envelhecendo. Es-
crevi para o coronel Rufford, sugerindo que ela fosse
encontrá-lo.
Leonora gritou:
— Como você se atreve? Como você se atreve?
A moça botou a mão sobre seu coração e
gritou:
— Oh, meu doce Salvador, me ajude!
Era dessa estranha maneira que ela pensava em
seu íntimo, e as palavras abriram caminho em seus
lábios. Edward não disse nada.

E nessa noite, por uma artimanha impiedosa


do demônio que presta atenção nesse nosso infer-

378 FORD MADOX FORD


no asfixiante, Nancy Rufford recebeu uma carta de
sua mãe. Ela chegou quando Leonora estava con-
versando com Edward, pois do contrário Leonora
a teria interceptado, como já interceptara outras.
Era uma carta espantosa e horrível...
Não sei o que continha. Presumo apenas, pelo
seu efeito sobre Nancy, que sua mãe, envolvida com
algum sujeito imprestável, tenha, como se diz, “caí-
do o mais baixo possível”. Se ela estava de fato nas
ruas eu não sei, mas acho que tinha de suplementar
a pequena pensão que recebia de seu marido com
aquele tipo de vida. E acho que ela dizia isso em sua
carta para Nancy, repreendendo a moça por viver no
luxo enquanto sua mãe passava fome. E devia ser
num tom horrível, pois a senhora Rufford era uma
mulher cruel mesmo na melhor das situações. Aquilo
deve ter parecido para a pobre moça, abrindo sua
carta, para distrair-se de uma outra dor, lá no seu
quarto, como a gargalhada de um demônio.
Não suporto pensar na minha pobre moça que-
rida nesse momento...
E, ao mesmo tempo, Leonora estava fustigan-
do, como um diabo frio, o infeliz Edward. Ou, tal-

O BOM S OLDADO 379


vez, ele não fosse assim tão infeliz; pois já que fize-
ra aquilo que sabia ser a coisa certa, ele pode ser
considerado feliz. Deixo isso para você. De qual-
quer modo, ele estava sentado em sua poltrona, e
Leonora entrou em seu quarto — pela primeira vez
em nove anos. Ela disse:
— Esta é a coisa mais atroz que você cometeu
em sua vida atroz.
Ele não se mexeu nem olhou para ela. Deus sabe
o que se passava exatamente na mente de Leonora.
Gosto de pensar que, acima de tudo, havia nela
preocupação e horror ante o pensamento da pobre
moça ter de voltar para um pai cuja voz a fazia es-
tremecer à noite. E, de fato, esse motivo era muito
forte para Leonora. Mas acho que também estava
presente o pensamento de que queria continuar tor-
turando Edward com a presença da moça. Nessa
época, ela era capaz disso.
Edward estava afundado em sua poltrona; ha-
via duas velas no quarto, escondidas pelas sombras
verdes do vidro. As sombras verdes se refletiam nos
vidros das estantes que não continham livros, mas
armas com canos marrons reluzentes e varas de pes-

380 FORD MADOX FORD


car com capas de baeta verde. Mal se podia ver,
sobre o console da lareira entulhado com esporas,
cascos e modelos de bronze de cavalos, um quadro
marrom escuro de um cavalo branco.
— Se você acha — Leonora disse — que eu não
sei que você está apaixonado pela moça...
Ela começou vigorosamente, mas não pôde
encontrar nenhum final para a frase. Edward não
se mexeu; não falou nada. Então Leonora disse:
— Se você quer se divorciar de mim, eu con-
sinto. Pode casar-se com ela. Ela está apaixonada
por você.
Ele gemeu diante disso, de leve, disse Leono-
ra. Depois ela foi embora.
Deus sabe o que se passou com Leonora de-
pois disso. Ela certamente não sabe. Provavelmen-
te disse mais coisas a Edward do que sou capaz de
relatar; mas isso foi tudo quanto ela me disse, e eu
não vou inventar discursos. Para ter em mente o
desenvolvimento psicológico dela nesse momento,
acho que devemos conceder que ela o repreendeu
por um bocado de coisas do passado deles, enquanto
Edward ficava sentado em absoluto silêncio. E, de

O BOM S OLDADO 381


fato, ao falar disso depois, ela disse várias vezes: “Eu
falei muito mais coisas do que queria, só porque ele
ficou tão silencioso”. Ela falou, de fato, na tentati-
va de impeli-lo a falar.
Ela deve ter dito tantas coisas que, ao expres-
sar seu ressentimento, seu estado mudou. Ela voltou
para seu quarto na galeria, e ficou sentada ali, pen-
sando durante muito tempo. E imaginou que entra-
ra num estado de absoluto não-egoísmo, de absolu-
to auto-desprezo também. Disse a si mesma que ela
não prestava; que falhara em todos os seus esforços
— em seus esforços para ter Edward de volta assim
como em seus esforços para que ele contivesse seus
gastos. Ela pensou que estava exausta; que estava li-
quidada. Então um grande medo tomou conta dela.
Pensou que Edward, depois do que havia dito
para ele, iria cometer suicídio. Foi até a galeria e
pôs-se a escutar; não havia qualquer som em toda
a casa, a não ser a batida regular do grande relógio
na sala de estar. Mas, mesmo em sua condição de-
bilitada, ela não era de ficar parada. Agiu. Foi até
o quarto de Edward, abriu a porta e olhou.
Ele estava lubrificando o mecanismo de uma

382 FORD MADOX FORD


arma. Era uma coisa incomum para ele estar fazen-
do, àquela hora, em seu traje para a noite. Nunca
ocorreu a ela, no entanto, que ele fosse se matar com
aquele implemento. Ela sabia que ele estava fazen-
do aquilo para ocupar-se — para não ficar pensan-
do. Ele voltou-se quando ela abriu a porta, seu rosto
iluminado pela luz refletida pelos orifícios redon-
dos nas sombras verdes da vela.
Ela disse:
— Não pensei que iria encontrá-lo com Nancy
aqui.
Ela pensou que devia isso a ele. Ele então res-
pondeu:
— Não creio que você poderia pensar isso.
Foram as únicas palavras que ele disse naque-
la noite.
Ela voltou como um pato aleijado, pelos lon-
gos corredores; arrastou-se sobre as peles familiares
de tigre no hall escuro. Mal podia mexer uma perna
atrás da outra. Na galeria, percebeu que a porta de
Nancy estava entreaberta e que havia luz no quarto
da moça. Uma súbita loucura tomou posse dela, um
desejo de ação, uma sede de auto-explicação.

O BOM S OLDADO 383


Seus quartos davam para a galeria; o de Leo-
nora para o leste, o da moça era vizinho, depois vi-
nha o de Edward. A visão daquelas três portas aber-
tas, lado a lado, escancaradas para receber aquele
que os acasos da noite escura pudesse trazer, fez
Leonora tremer com todo seu corpo. Então foi até
o quarto de Nancy.
A moça estava sentada perfeitamente imóvel
numa poltrona, aprumada, como fora ensinada a
sentar-se no convento. Parecia estar tão calma como
uma igreja; seu cabelo, preto qual um manto, caía
sobre seus dois ombros. A lareira ao lado ardia in-
tensamente; devia ter acabado de colocar carvões
nela. Estava com um quimono de seda branca que
a cobria até os pés. As roupas que tirara estavam
cuidadosamente dobradas sobre os assentos adequa-
dos. Suas mãos compridas estavam pousadas sobre
os braços da poltrona, que tinha um tecido de al-
godão branco e estampado no espaldar.
Leonora me contou essas coisas. Ela parecia
achar extraordinário que a moça pudesse ter arru-
mado com tanto cuidado as roupas que usara numa
noite como aquela — quando Edward anunciara

384 FORD MADOX FORD


que iria enviá-la para o pai dela, e quando recebe-
ra uma carta daquelas de sua mãe. A carta, dentro
do envelope, estava na sua mão direita.
Leonora no começo não percebeu isso. Disse:
— O que você está fazendo tão tarde?
A moça respondeu:
— Só pensando.
Elas pareciam pensar em murmúrios e falar em
sussurros. Então os olhos de Leonora deram com
o envelope e, nele, a caligrafia da senhora Rufford.
Era um daqueles momento em que se pensar se
torna impossível, como disse Leonora. Era como se
estivessem jogando nela pedras de todas as direções
e ela só pudesse correr. Ouviu a si mesma vociferando:
— Edward está morrendo — por sua causa.
Está morrendo. Ele vale mais do que qualquer uma
de nós...
A moça olhou por cima dela, para os adornos
da porta semi-cerrada.
— Meu pobre pai — ela disse — meu pobre
pai.
— Você deve ficar aqui — Leonora respondeu
com veemência. — Você deve ficar aqui.

O BOM S OLDADO 385


— Eu vou para Glasgow — respondeu Nancy.
— Tenho de ir para Glasgow amanhã de manhã.
Minha mãe está em Glasgow.
Parece que era em Glasgow que a senhora Ruf-
ford levava sua vida desregrada. Ela escolhera aque-
la cidade não porque fosse mais rentável, mas por-
que era a cidade natal de seu marido, a quem ela
desejava causar o maior mal possível.
— Você deve ficar aqui — Leonora recome-
çou — para salvar Edward. Ele está morrendo de
amor por você.
A moça deitou seus olhos tranqüilos sobre
Leonora.
— Sei disso — ela disse. —E eu estou morren-
do de amor por ele.
Leonora pronunciou um “Ah”, que, apesar de
si mesma, era um “Ah” de horror e de pesar.
— É por isso — a moça continuou — que es-
tou indo para Glasgow, para levar minha mãe para
longe dali.
Ela acrescentou: “Para os confins da terra”,
pois se os últimos meses tinham lhe dado a nature-
za de uma mulher, suas frases ainda eram romanti-

386 FORD MADOX FORD


camente as de uma colegial. Era como se ela tives-
se crescido tão rapidamente que não houvera tem-
po para ajeitar seu cabelo. Mas ela acrescentou:
— Nós não prestamos, minha mãe e eu.
Leonora disse, com sua calma veemente:
— Não. Não. Não é você que não presta. Sou
eu que não presto. Você não pode deixar esse ho-
mem se arruinar por ansiar por você. Deve perten-
cer a ele.
A moça, ela me disse, sorriu-lhe com um sor-
riso estranho, distante — como se ela tivesse mil
anos de idade, como se Leonora fosse uma criança
pequena.
— Sabia que você chegaria a esse ponto — ela
disse, bem devagar. — Mas não merecemos isso,
Edward e eu.

O BOM S OLDADO 387


III.

Nancy estivera, de fato, pensando desde que Leo-


nora fizera aquele comentário sobre o presente do ca-
valo ao jovem Selmes. Ela pensou e pensou, porque
teve de ficar sentada durante muitos dias ao lado da
cama de sua tia. (Ela sempre pensou em Leonora como
sua tia.) E teve de ficar sentada pensando durante mui-
tas refeições silenciosas com Edward. E então, às ve-
zes, com seus olhos vermelhos e a boca pesada, en-
rugada, ele sorria para ela. E gradualmente ela che-
gou ao conhecimento de que Edward não amava Leo-
nora e que Leonora odiava Edward. Várias coisas con-
tribuíram para formar e consolidar essa convicção.
Deixaram que ela lesse os jornais durante aque-
les dias — ou, melhor, já que Leonora estava sem-
pre em sua cama e Edward tomava o café da ma-
nhã sozinho e saía cedo, para a propriedade, ela
ficou sozinha com os jornais. Um dia, no jornal, viu

388 FORD MADOX FORD


o retrato de uma mulher que ela conhecia muito
bem. Debaixo dele leu as palavras: “A senhora
Brand, a queixosa no notório caso de divórcio na
p. 8”. Nancy mal sabia o que era um divórcio. Ela
fora educada de maneira admirável, e os católicos
romanos não praticam o divórcio. Não sei como
Leonora conduziu exatamente aquilo. Suponho que
imprimiu na mente de Nancy que mulheres corre-
tas não liam aquele tipo de coisa, e isso era o bas-
tante para fazer Nancy pular aquelas páginas.
Seja como for, ela leu o relato sobre o divórcio
dos Brand — principalmente porque queria contar
aquilo a Leonora. Achava que Leonora, quando pas-
sasse a dor de cabeça, iria gostar de saber o que estava
acontecendo com a senhora Brand, que vivia cris-
tãmente em Christchurch69, e de quem ambas gos-
tavam muito. O noticiário durara três dias, e o rela-
to que Nancy encontrou era o do terceiro dia. Ed-
ward, no entanto, guardava os jornais da semana, à
sua maneira metódica, numa prateleira em sua sala
de armas, e quando terminou o café da manhã, Nancy

69 Cidade à beira-mar em Hampshire. (N. do T.)

O BOM S OLDADO 389


foi até aquele quarto tranqüilo e deu o que se poderia
chamar de uma boa lida. Achou o caso estranho. Não
podia compreender porque um advogado se mostra-
va tão ansioso em conhecer todos os movimentos do
senhor Brand num determinado dia; não podia com-
preender porque um mapa do quarto de dormir em
Christchurch Old Hall deveria ser apresentado no
tribunal. Não podia compreender ainda porque que-
riam saber se, numa certa ocasião, a porta da sala
de visitas estava fechada; tudo parecia ser sem sen-
tido demais para que pessoas adultas se ocupassem
com tais questões. Impressionou-a, no entanto, co-
mo algo estranho que um dos advogados interrogasse
o senhor Brand tão insistente e impertinentemente
quanto a seus sentimentos pela senhorita Lupton.
Nancy conhecia muito bem a senhorita Lupton de
Ringwood70 — uma moça alegre que cavalgava um
cavalo com dois boletos brancos. O senhor Brand in-
sistia em que não amava a senhorita Lupton... Bem,
naturalmente, ele não amava a senhorita Lupton; era

70 Cidade na fronteira de New Forest, Connecticut. (N.

do T.)

390 FORD MADOX FORD


um homem casado. Também se poderia pensar em
tio Edward amando... alguém que não fosse Leono-
ra. Quando as pessoas estavam casadas, o amor che-
gava ao fim. Havia, sem dúvida, pessoas que se com-
portavam mal — mas eram pessoas pobres — ou pes-
soas que não eram como as que conhecia.
Foi assim que essas questões se apresentaram
à mente de Nancy.
Porém, mais tarde, em relação a esse caso, ela
descobriu que o senhor Brand teve de confessar uma
“relação íntima culpada” com uma ou outra. Nancy
pensou que ele devia ter contado a alguém os se-
gredos de sua esposa; ela não podia compreender
porque aquilo constituía uma ofensa séria. Mas, des-
de que descobriu que a senhora Brand perdoara
aquela ofensa, imaginou que o senhor Brand contara
segredos muito sérios. E então, de repente, formou-
se nela a convicção que o senhor Brand — o meigo
senhor Brand que ela vira há um ou dois meses atrás,
antes de sua partida, brincando de cabra-cega com
seus filhos e beijando sua esposa quando a pegou
— o senhor Brand e a senhora Brand estavam nos
piores termos possíveis. Isso era incrível.

O BOM S OLDADO 391


Sim, era isso mesmo — preto no branco. O se-
nhor Brand bebia; o senhor Brand derrubava a se-
nhora Brand no chão quando estava bêbado. O se-
nhor Brand foi declarado, em duas ou três palavras
abruptas, ao fim de colunas e mais colunas do jor-
nal, culpado de crueldade em relação à sua esposa e
de ter cometido adultério com a senhorita Lupton.
As últimas palavras não diziam nada a Nancy — quer
dizer, nada de concreto. Sabia que um dos manda-
mentos era não cometer adultério — mas por que,
ela pensava, alguém iria cometê-lo? Provavelmente
era algo como pescar salmão fora da época — uma
coisa que ninguém fazia. Ela inferiu que era algo que
tinha a ver com beijar, ou com abraçar alguém...
E entretanto o efeito total daquela leitura so-
bre Nancy foi misterioso, aterrador e ruim. Ela sen-
tia como que uma doença — uma doença que cres-
cia à medida que ia lendo. Seu coração batia dolo-
rosamente; começou a chorar. Perguntou a Deus
como Ele podia permitir tais coisas. E ficou mais
convencida de que Edward não amava Leonora e
de que Leonora odiava Edward. Talvez, então, Ed-
ward amasse uma outra. Era inconcebível.

392 FORD MADOX FORD


Se ele pudesse amar uma outra que não fosse
Leonora, seu coração desconhecido disse subitamen-
te por sua vez, por que não seria ela? E ele não a
amava... Isso ocorreu um mês antes que ela rece-
besse a carta de sua mãe. Ela deixou a questão de
lado até que o sentimento doentio se foi, o que acon-
teceu em um ou dois dias. Depois, ao descobrir que
as dores de cabeça de Leonora tinham passado, disse
repentinamente a Leonora que a senhora Brand se
divorciara de seu marido. Perguntou o que aquilo
tudo significava ao certo.
Leonora estava deitada no sofá no hall; esta-
va se sentindo tão fraca que mal podia encontrar
as palavras. Respondeu apenas:
— Significa que o senhor Brand pode se casar
de novo.
Nancy disse:
— Mas... mas... — E em seguida:
— Ele poderá se casar com a senhorita Lupton.
Leonora apenas mexeu a mão em assentimen-
to. Seus olhos estavam fechados.
— Então...
Nancy começou. Seus olhos azuis estavam

O BOM S OLDADO 393


horrorizados; suas sobrancelhas estavam franzidas;
as linhas de dor em volta de sua boca estavam bas-
tante pronunciadas. A seus olhos o conjunto da-
quele grande hall familiar mudara de aspecto. Os
suportes da lareira com as flores de latão pareciam
irreais; as lenhas que queimavam eram apenas
lenhas e não os símbolos confortáveis de um modo
indestrutível de vida. A chama se agitava diante da
parte traseira da lareira; o são bernardo suspirava
em seu sono. Do lado de fora, a chuva de inverno
caía e caía. E de repente ela pensou que Edward po-
deria casar-se com outra pessoa; quase gritou.
Leonora abriu seus olhos, deitada de lado,
com seu rosto sobre o travesseiro negro e dou-
rado do sofá que fora colocado diante da grande
lareira.
— Pensei, — disse Nancy, — jamais imaginei...
Os casamentos não são sacramentos? Não são indis-
solúveis? Pensei que se ficasse casado... e... — Ela
estava soluçando. — Pensei que se ficasse casado
ou não casado por toda a vida.
— Esta — disse Leonora — é a lei da Igreja.
Não é a lei do mundo...

394 FORD MADOX FORD


— Ah, sim — Nancy disse —, os Brand são
protestantes.
Ela sentiu uma súbita segurança apoderar-se
dela e durante mais ou menos uma hora sua mente
descansou. Ela se sentiu idiota por não ter se lem-
brado de Henrique VIII e da base sobre a qual o
protestantismo se ergue. Quase riu de si mesma.
A tarde comprida ia findando; as chamas ain-
da se agitavam quando a criada veio reacender a
lareira; o são bernardo acordou e correu para a
cozinha. Então Leonora abriu seus olhos e disse
quase com frieza:
— E você? Não acha que vai se casar?
Aquilo era tão inesperado em Leonora que, por
um momento, a moça se assustou no lusco-fusco.
Porém, depois, adquiriu o ar de uma pergunta per-
feitamente razoável.
— Não sei — ela respondeu. — Não sei se al-
guém deseja se casar comigo.
— Várias pessoas desejam se casar com você,
disse Leonora.
— Mas não quero me casar — respondeu Nancy.
— Gostaria de continuar vivendo com você e com

O BOM S OLDADO 395


Edward. Não acho que atrapalho, ou que sou de
fato uma despesa a mais. Se eu for embora você terá
de arranjar companhia. Ou, talvez, eu deva ganhar
minha vida...
— Eu não estava pensando nisso — Leonora
respondeu no mesmo tom indiferente. — Você re-
ceberá bastante dinheiro de seu pai. Mas a maior
parte das pessoas deseja se casar.
Creio que depois ela perguntou à moça se não
gostaria de se casar comigo, e que Nancy respondera
que se casaria comigo se lhe dissessem para fazê-
lo; mas que continuaria vivendo ali. Acrescentou:
— Se eu me casasse com alguém queria que
fosse como Edward.
Ela ficou totalmente assustada. Leonora con-
torceu-se no sofá e gritou: “Oh, Deus!...”.
Nancy foi buscar a criada para os comprimi-
dos de aspirina, para os lenços molhados. Não lhe
ocorreu que a expressão de angústia de Leonora
pudesse ser outra coisa a não ser dor física.
Você deve lembrar-se de que tudo isso acon-
teceu um mês antes de Leonora ter entrado à noite
no quarto da moça. Estou voltando para trás de

396 FORD MADOX FORD


novo; mas não há nada que possa fazer. É tão difí-
cil manter todas essas pessoas agindo. Vou contar
sobre Leonora e segui-la até hoje; depois sobre Ed-
ward, que ficou para trás. E depois sobre a moça
que ficou irremediavalmente para trás. Gostaria de
pôr tudo isso em forma de diário. Assim: No dia 1º
de setembro eles voltaram de Nauheim. Leonora
logo ficou de cama. Por volta de 1º de outubro es-
tavam todos indo juntos às reuniões. Nancy já cons-
tatara plenamente que Edward estava com um com-
portamento estranho. Por volta do dia 6 daquele
mês Edward deu o cavalo ao jovem Selmes, e Nancy
teve motivo para acreditar que sua tia não amava
seu tio. No dia 20, ela leu o relato do caso de di-
vórcio, noticiado nos jornais do dia 18 e nos dois
dias seguintes. No dia 23, teve a conversa com sua
tia no hall — sobre o casamento em geral e sobre
seu possível casamento. A visita de sua tia a seu
quarto não ocorreu até o dia 12 de novembro...
Assim ela teve três semanas para a introspecção
— para a introspecção debaixo de céus sombrios,
naquela velha mansão, tornada ainda mais escura
pelo fato de que ficava num declive coroada por três

O BOM S OLDADO 397


abetos com suas sombras negras. Não era uma boa
situação para uma moça. Começou a pensar sobre
o amor, ela que jamais o considerara como outra
coisa senão como uma questão divertida, um tanto
sem sentido. Lembrava-se de passagens casuais em
livros casuais — coisas que não a tinham afetado
naqueles momentos. Lembrava-se do amor de alguém
pela princesa Bradrulbadour71; lembrava-se de ter
ouvido dizer que o amor era uma chama, uma sede,
um definhamento dos órgãos vitais — embora não
soubesse o que eram os órgãos vitais. Tinha uma vaga
lembrança de que ouvira dizer que o amor tornava
desesperados os olhos de um amante desesperado;
lembrava-se de uma personagem num livro sobre a
qual se dizia que fora levada à bebida por causa do
amor; lembrava-se de que se dizia que as existências
dos amantes eram pontuadas por suspiros opressi-
vos. Uma vez foi até o pequeno piano que ficava num
canto do hall e começou a tocar. Era um instrumen-
to desafinado, tilintante, pois ninguém daquela fa-

71 A princesa do conto sobre Aladim e a lâmpada ma-


ravilhosa em Mil e uma noites. (N. do T.)

398 FORD MADOX FORD


mília tinha qualquer queda para a música. A própria
Nancy só conseguia tocar umas poucas canções, e se
surpreendeu ao se ver tocando. Tinha ficado senta-
da no assento perto da janela, olhando para o dia que
findava. Leonora fora retribuir algumas visitas; Ed-
ward estava procurando alguma plantação no novo
bosque. Assim ela se surpreendeu tocando o velho
piano. Não sabia como aquilo tinha acontecido. Uma
canção tola, melodiosa, aguada, surgiu diante dela
ao crepúsculo — uma canção na qual o tons maio-
res com sua insistência animada se diluíam e se mis-
turavam aos tons menores, assim, como sob uma
ponte as luzes sobre as águas escuras se misturavam
e se diluíam, desaparecendo nas profundezas escuras.
Bem, era uma tola canção antiga...
Aqui estão os versos — são sobre um salguei-
ro, eu acho:
“És para todos os amores que passaram,
A melhor, a única árvore encontrada”72

72 “Thou art to all lost loves the best,/ The only true plant

found”. Versos do poema “To the Willow-tree”, de Robert


Herrick (1591-1674). (N. do T.)

O BOM S OLDADO 399


Esse tipo de coisa. É de Herrick, eu acho, e a
música era aquele som irregular, tilintante, desafi-
nado que dá certo com Herrick. E era ao crepúscu-
lo; as colunas pesadas, escuras que sustentavam a
galeria eram como que presenças lamentosas; o fogo
se apagara — uma mera incadescência entre cinzas
esbranquiçadas... O lugar, a luz e a hora — tudo
era sentimental...
E de repente Nancy viu que estava chorando.
Estava chorando silenciosamente; passou a chorar
com longos soluços convulsivos. Para ela era como
se tudo quanto era alegre, encantador, luminoso,
doce, tivesse desaparecido da vida. Infelicidade; in-
felicidade; infelicidade era tudo que a cercava. Para
ela parecia não existir nenhum ser feliz; ela própria
estava agonizando...
Ela se lembrou de que os olhos de Edward eram
desesperados; tinha certeza de que ele estava beben-
do demais; às vezes ele suspirava fundo. Parecia um
homem que estava se queimando com uma chama
interna; ressecando a alma de sede; definhando em
seus órgãos vitais. Então, a convicção torturante fez-
se nela — a convicção que a visitava de vez em quan-

400 FORD MADOX FORD


do — de que Edward devia amar uma outra que não
era Leonora. Com seu estreito sectarismo pedagó-
gico lembrou-se que os católicos não fazem esse tipo
de coisa. Mas Edward era um protestante. Então
Edward amava alguém...
E depois desse pensamento seus olhos se tor-
naram desesperados; suspirou como o velho são
bernardo ao lado dela. Nas refeições ela sentia um
desejo intolerável de beber um copo de vinho, de-
pois um outro e depois um terceiro. Então via que
ficava alegre... Mas em meia-hora a alegria se dis-
sipava; sentia-se como uma pessoa que está quei-
mando com uma chama interna; ressecando a alma
de sede; definhando nos órgãos vitais. Uma noite
ela foi até a sala de armas de Edward — ele saíra
para uma reunião no Comitê Nacional da Reser-
va. Em cima da mesa, ao lado da cadeira, havia uma
garrafa de uísque. Ela encheu um copo de vinho e
bebeu.
A chama pareceu realmente tomar conta de seu
corpo; suas pernas incharam; seu rosto ficou febril.
Ela se arrastou até seu quarto e se deitou no escuro.
A cama vacilou debaixo dela; cedeu ao pensamen-

O BOM S OLDADO 401


to de que estava nos braços de Edward; que ele a
estava beijando no rosto que ardia; nos seus om-
bros que ardiam e no seu pescoço que estava em
fogo.
Nunca mais tocou em álcool. Nunca mais, de-
pois que tivera esses pensamentos. Eles se extingui-
ram em sua mente; deixaram apenas um sentimen-
to de vergonha tão insuportável que seu cérebro não
podia abrigá-los, e eles se desvaneceram. Pensou que
sua angústia ante o pensamento de que o amor de
Edward por outra pessoa era somente simpatia por
Leonora; estava determinada a passar o resto de sua
vida agindo como criada de Leonora — varrendo,
velando, bordando —, como alguma débora73, al-
guma santa medieval — infelizmente não estou a
par da hagiologia católica. Mas sei que ela se via
como alguma personagem com um rosto deprimi-
do, fervoroso e lábios cerrados, num quarto lumi-
nosamente claro, regando flores ou cuidando de um

73 Como registra a edição da Oxford University Press,


o personagem, Dowell, comete um equívoco. A Débora bíbli-
ca não era uma criada, mas uma juíza que conduziu os israe-
litas à vitoria sobre os canaanitas. (N. do T.)

402 FORD MADOX FORD


bordado. Ou desejava ir com Edward para a Áfri-
ca e atirar-se na frente de um leão de maneira que
Edward pudesse ser salvo para Leonora ao custo de
sua vida. Bem, junto com seus pensamentos tristes,
acalentava também os mais infantis.
Ela não sabia nada — nada sobre a vida, ex-
ceto que se deve viver tristemente. Isso ela sabia
agora. O que lhe aconteceu, na noite em que rece-
beu ao mesmo tempo o golpe de que Edward que-
ria ela fosse ao encontro do pai na Índia e o golpe
da carta de sua mãe, foi isto. Primeiro pediu a seu
doce Salvador — e pensou em Nosso Senhor como
seu doce Salvador! — que Ele impedisse que ela fosse
para a Índia. Depois compreendeu pelo comporta-
mento de Edward que ele estava determinado a que
ela fosse para a Índia. Então o certo deveria ser
mesmo que ela fosse. Edward estava sempre certo
em suas decisões. Ele era o Cid; era Lohengrin; era
o cavaleiro Baiardo.
No entanto sua mente se amotinava e revol-
tava. Ela não podia deixar aquela casa. Pensava que
ele queria que ela fosse embora para que não teste-
munhasse seus amores com outra moça. Bem, ela

O BOM S OLDADO 403


estava preparada para dizer-lhe que estava ama-
durecida para testemunhar seus amores com outra
moça. Ela ficaria ali — para consolar Leonora.
Depois veio o choque desesperado da carta de
sua mãe. Sua mãe havia dito, eu creio, algo assim:
“Você não tem o direito de estar vivendo uma vida
de prosperidade e respeito. Você devia estar nas ruas
comigo. Como você pode ter sequer certeza de que
é filha do coronel Rufford?”. Ela não sabia o que
essas palavras queriam dizer. Imaginou sua mãe
dormindo sob as arcadas enquanto a neve caía. Foi
essa a impressão transmitida à sua mente pelas pa-
lavras “nas ruas”. Um sentido platônico de dever
deu-lhe a idéia de que deveria amparar sua mãe —
a mãe que a criara, embora ela mal soubesse o que
significavam essas palavras. Ao mesmo tempo sa-
bia que sua mãe abandonara seu pai por outro ho-
mem — por isso tinha pena de seu pai, e achava
terrível da parte dela tremer ao som da voz de seu
pai. Se sua mãe era aquele tipo de mulher, era na-
tural que seu pai tivesse acessos de loucura nos quais
a derrubava no chão. E a voz de sua consciência
dizia-lhe que seu primeiro dever era para com seus

404 FORD MADOX FORD


pais. Foi em obediência ao despertar desse sentido
de dever que ela tirou a roupa com grande cuidado
e dobrou-a meticulosamente. Às vezes, mas não com
muita freqüência, ela as jogava de qualquer manei-
ra no quarto.
E esse senso de dever era seu estado predomi-
nante quando Leonora, alta, bem-proporcionada,
com os cabelos dourados, toda de preto, apareceu
à porta de seu quarto e disse-lhe que Edward esta-
va morrendo de amor por ela. Ela sabia então cons-
cientemente o que ela soubera intuitivamente du-
rante meses — que Edward estava morrendo —
efetiva e fisicamente morrendo — de amor por ela.
Pareceu-lhe que por um breve momento seu espíri-
to poderia dizer: “Domine, nunc dimittis... Senhor,
agora podes deixar o teu servo partir em paz”. Ima-
ginava que podia ir alegremente para Glasgow e
resgatar sua mãe decaída.

O BOM S OLDADO 405


IV.

E para ela parecia estar de acordo com o tem-


peramento, com o momento e com a mulher à sua
frente dizer que sabia que Edward estava morren-
do de amor por ela e que ela estava morrendo de
amor por Edward. Pois aquele fato tinha subitamen-
te se deslocado do lugar e se tornara tão real para
ela como o marcador de uíste num bloco de papel
se desloca com a pressão de seu polegar. Aquela
partida decisiva pelo menos tinha acabado.
E de repente Leonora parecia ter se tornado
diferente e parecia ter se tornado diferente em sua
atitude em relação a ela. Era como se ela, em seu
quimono de seda, leve, branco, sentada diante de
sua lareira, estivesse num trono. Era como se Leo-
nora em seu vestido fechado de renda negra, com
os ombros brancos transparecendo, e o cabelo lou-
ro que a moça sempre havia considerado a coisa

406 FORD MADOX FORD


mais bonita do mundo — era como se Leonora ti-
vesse se encolhido, pálida de frio, trêmula, suplican-
te. No entanto Leonora estava lhe dando uma or-
dem. De nada adiantava aquela ordem. Amanhã ela
iria ao encontro de sua mãe, que estava em Glasgow.
Leonora continuou a dizer que ela devia ficar
ali para salvar Edward, que estava morrendo de
amor por ela. E, orgulhosa e feliz ao pensar que
Edward a amava, e que ela o amava, nem sequer
ouvia o que Leonora dizia. Para ela, era papel de
Leonora salvar o corpo de seu marido; ela, Nancy,
possuía a alma dele — uma coisa preciosa que pro-
tegeria e guardaria em seus braços, como se Leo-
nora fosse um cão faminto tentando apanhar o cor-
deiro que ela estava carregando. Sim, ela sentia co-
mo se o amor de Edward fosse um cordeiro precio-
so que ela estava protegendo de uma fera cruel e
predatória. Pois, nessa época, Leonora lhe parecia
uma fera cruel e predatória. Leonora, Leonora com
sua fome, com sua crueldade, tinha levado Edward
à loucura. Ele devia ser protegido em seu amor por
ela e pelo amor dela — o seu amor de uma grande
distância e calado, envolvendo-o, cercando-o, er-

O BOM S OLDADO 407


guendo-o; a sua voz falando de Glasgow, dizendo
que ela amava, que ela adorava, que ela não ficava
um só momento sem desejar, amar, tremer ao pen-
sar nele.
Leonora disse alto, com insistência, em um tom
amargamente imperativo:
— Você deve ficar aqui; você deve pertencer a
Edward. Eu me divorciarei dele.
A moça respondeu:
— A Igreja não permite o divórcio. Não pos-
so pertencer a seu marido. Estou indo para Glasgow
resgatar minha mãe.
A porta entreaberta abriu-se completamente
sem ruído. Edward estava ali. Seus olhos devora-
dores, condenados, estavam fixados no rosto da
moça; seus ombros estavam tombados para a fren-
te; ele estava sem dúvida meio-bêbado e trazia a
garrafa de uísque numa mão, um candelabro incli-
nado na outra. Disse com uma ferocidade pesada
para Nancy:
— Eu a proíbo de conversar sobre essas coi-
sas. Você deve ficar aqui até que seu pai me diga
alguma coisa. Depois você irá ao encontro dele.

408 FORD MADOX FORD


As duas mulheres, olhando uma para a outra,
como feras prontas para o bote, apenas lhe lança-
ram um olhar de relance. Ele se encostou na porta.
Disse mais uma vez:
— Nancy, eu a proíbo de falar sobre essas coi-
sas. Sou o dono desta casa.
E, ao som de sua voz, dura, masculina, vinda
de um peito forte, na noite, com a escuridão atrás
dele, Nancy sentiu como se seu espírito se curvasse
ante o dele, com as mãos cruzadas. Percebeu que
iria para a Índia e que ela nunca mais queria falar
sobre aquelas coisas.
Leonora disse:
— Você está vendo que seu dever é ficar com
ele. Ele não pode continuar bebendo.
Nancy não respondeu. Edward fora embora;
elas o ouviram escorregando e tropeçando no car-
valho encerado da escada. Nancy gritou ao ouvir o
som de uma queda pesada. Leonora disse de novo:
— Está vendo!
Os sons desapareceram do hall lá embaixo; a
luz da vela de Edward bruxuleava entre os corri-
mãos da galeria. Então ouviram sua voz:

O BOM S OLDADO 409


— Quero falar com Glasgow... Glasgow, na
Escócia... Quero o número de um homem chamado
White, de Simrock Park, Glasgow... Edward White,
Simrock Park, Glasgow... dez minutos... a essa hora
da noite... — Sua voz estava totalmente firme, nor-
mal, e calma. O álcool afetara suas pernas, não a
fala.
— Posso esperar, — ouviu-se de novo sua voz.
— Sim, sei que eles têm um número. Já me comu-
niquei com eles antes.
— Ele vai telefonar para sua mãe, — disse Leo-
nora. — Ele vai deixar tudo bem para ela.
Levantou-se e fechou a porta. Voltou até a
lareira e acrescentou num tom amargo:
— Ele deixa tudo bem com todo mundo, todo
mundo — menos eu!
A moça não disse nada. Ficou sentada num
sonho feliz. Para ela, era como se seu amante, esti-
vesse sentado como sempre se sentava, numa cadeira
de espaldar, no hall escuro — reclinado, com o te-
lefone no ouvido, falando com uma voz pausada,
gentil, que ele reservava para os telefonemas —, e
salvando o mundo e ela, na escuridão. Ela colocou

410 FORD MADOX FORD


a mão sobre a nudez na base de seu pescoço, para
sentir o calor da carne ali e em seu busto.
Ela não disse nada; Leonora continuou fa-
lando...
Só Deus sabe o que Leonora disse. Repetiu que
a moça devia pertencer a seu marido. Disse que es-
tava usando aquela frase porque, embora ela pu-
desse conseguir o divórcio ou até mesmo a anula-
ção do casamento, pela igreja, ainda seria adulté-
rio o que a moça e Edward iriam cometer. Mas disse
que isso era necessário; era o preço que a moça devia
pagar pelo pecado de ter feito com que Edward a
amasse, pelo pecado de amar seu marido. Ela fa-
lou e falou, ao lado da lareira. A moça tinha de se
tornar adúltera; tinha seduzido Edward por ser tão
bonita, tão graciosa, tão boa. Era pecaminoso ser
tão boa. Ela devia pagar esse preço para salvar o
homem que tinha seduzido.
Entre as pausas a moça podia ouvir a voz de
Edward ressoando, imperceptivelmente, com pau-
sas bruscas para as respostas. Aquilo a fazia resplan-
decer de orgulho; o homem que ela amava estava
trabalhando por ela. Ele pelo menos era determi-

O BOM S OLDADO 411


nado; era masculinamente determinado; sabia fa-
zer a coisa certa. Leonora falava com seus olhos
penetrando nos de Nancy. A moça mal olhava para
ela e mal a ouvia. Depois de muito tempo Nancy
disse — depois de horas e horas:
— Vou para a Índia assim que Edward tenha
notícias de meu pai. Não posso falar sobre essas coi-
sas, porque Edward não quer.
Então Leonora gritou e caminhou rapidamente
para a porta fechada. E Nancy levantou-se da ca-
deira com seus braços abertos. Ela estava abraçan-
do a outra mulher; dizia:
— Oh, minha pobre querida, oh, minha que-
rida.
E elas se sentaram, abraçando-se uma à outra,
chorando e chorando; e ficaram deitadas na mesma
cama, conversando, conversando a noite inteira. E
durante a noite inteira Edward podia ouvir suas
vozes através da parede. Foi assim que aconteceu...

Na manhã seguinte todos os três se compor-


taram como se nada tivesse acontecido. Lá pela onze
Edward foi até Nancy, que estava arrumando umas

412 FORD MADOX FORD


rosas de Natal num jarro de prata. Colocou um
telegrama ao lado na mesa.
— Você mesma pode decodificá-lo — ele dis-
se. E quando ia saindo, disse:
— Você pode dizer a sua tia que eu telegrafei
para o senhor Dowel para vir até aqui. Ele irá cui-
dar de sua partida.
O telegrama, ao ser decodificado, dizia o se-
guinte pelo que posso me lembrar:
“Levarei a senhora Rufford para a Itália. Fa-
rei isso certamente. Sou afetuosamente dedicado à
senhora Rufford. Nenhuma necessidade de ajuda
financeira. Não sabia que tinha uma filha, e agra-
deço por ter assinalado meu dever. White.” Era mais
ou menos assim.
Então a casa reassumiu seu curso habitual até
minha chegada.

O BOM S OLDADO 413


V.

Esta é a parte da história que me torna o mais


infeliz de todos. Pois me pergunto incessantemen-
te, minha mente girando e girando num espaço ex-
tenuado, desconcertado pela dor — o que essas pes-
soas deveriam ter feito? O que, em nome de Deus,
deveriam ter feito?
O fim estava perfeitamente claro para cada
uma delas — estava perfeitamente visível que nes-
se momento, se a moça não “pertencesse a Ed-
ward” segundo a frase de Leonora, Edward mor-
reria, a moça iria perder a razão porque Edward
estaria morto — e, que depois de um certo tempo,
Leonora, que era a mais fria e a mais forte dos três,
iria se consolar casando-se com Rodney Bayham e
levar uma vida tranqüila e confortável. Este fim,
naquela noite, enquanto Leonora sentava-se na ca-
ma da moça e Edward telefonava lá em embaixo

414 FORD MADOX FORD


— este fim já estava claramente visível. A moça,
claramente, já estava meio-louca; Edward estava
meio-morto; só o instinto ativo, persistente, de Leo-
nora com sua fria carga de energia estava “fazen-
do coisas”. O que então deveriam ter feito? Tudo
terminou com a extinção de duas personalidades
esplêndidas — pois Edward e a moça eram perso-
nalidades esplêndidas, para que uma terceira per-
sonalidade, mais normal, pudesse ter, depois de um
longo período de perturbação, uma vida tranqüila
e confortável.

Estou escrevendo isto agora, isto é, dezoito


meses depois das palavras que encerraram meu últi-
mo capítulo. Desde que escrevi as palavras “até
minha chegada”, com que encerrei aquele parágra-
fo, tenho visto, de relance, de um trem veloz, Beau-
caire, com a bela torre branca, Tarascon com os
castelos quadrados, o grande Reno, as imensas ex-
tensões do Crau. Eu passei por toda a Provença —
e toda a Provença não me importa mais nada. Não
será mais nas colinas de oliveiras que encontrarei
meu Céu; porque só há Inferno...

O BOM S OLDADO 415


Edward está morto; a moça se foi — oh, foi-
se completamente; Leonora está se divertindo com
Rodney Bayham, e eu estou sentado sozinho em
Branshaw Teleragh. Já fui à Provença; já fui à Áfri-
ca; visitei a Ásia para ver, no Ceilão, num quarto
escuro, minha pobre moça, sentada imóvel, com seu
maravilhoso cabelo solto, olhando para mim com
olhos que não me viam, e dizendo claramente: “Cre-
do in unum Deum Omnipotentem... Credo in unum
Deus Omnipotentem”. Estas foram as únicas pa-
lavras razoáveis que ela pronunciou; são as únicas
palavras, ao que parece, que irá pronunciar. Supo-
nho que são palavras razoáveis; deve ser extraor-
dinariamente razoável para ela, já que pode dizer
que acredita numa divindade onipotente. Bem, isso
é tudo. Estou cansado de tudo isso...
Pois, atrevo-me a dizer, tudo isto pode soar
romântico, mas é cansativo, cansativo, é cansativo
ter estado no meio de tudo isso; ter comprado as
passagens; ter tomado os trens; ter escolhido as ca-
bines; ter consultado o comissário de bordo e as
camareiras quanto à dieta para a paciente que não
faz nada a não ser anunciar sua crença numa divin-

416 FORD MADOX FORD


dade onipotente. Isto pode soar romântico — mas
é apenas um registro de fadiga.
Não sei porque sempre fui escolhido para ser
prestativo. Não me ressinto disso — mas nunca fui
bom nisso. Florence me escolheu para seus próprios
objetivos, e eu não servi para ela; Edward me cha-
mou para vir e ter uma conversa com ele e não pude
impedi-lo de cortar seu pescoço.
E depois, um dia há dezoito meses atrás, eu
estava tranqüilamente escrevendo em meu quarto
em Branshaw quando Leonora veio a meu encontro
com uma carta. Era uma carta muito patética do
coronel Rufford sobre Nancy. O coronel deixara o
exército e assumira a administração de uma planta-
ção de chá no Ceilão. Sua carta era patética porque
era tão breve, tão inarticulada e tão comercial, por
assim dizer. Ele fora até o navio encontrar sua filha
e encontrara-a completamente louca. Parece que, em
Aden, Nancy vira no jornal local a notícia sobre o
suicídio de Edward. No Mar Vermelho ela enlou-
quecera. Ela havia dito à senhora do coronel Luton,
que a acompanhava, que acreditava numa divindade
onipotente. Não fizera qualquer confusão; seus

O BOM S OLDADO 417


olhos estavam secos e vítreos. Mesmo quando en-
louqueceu, Nancy sabia se comportar.
O coronel Rufford disse que o médico não pre-
vira que pudesse haver qualquer chance de recupe-
ração para sua filha. No entanto, era possível que,
se ela pudesse ver alguém de Branshaw, isso pode-
ria aliviá-la e ter um bom efeito. E ele apenas es-
creveu para Leonora: “Por favor venha e veja se você
pode fazer isso”.
Acho que perdi todo o sentido do patético; no
entanto, esse pedido simples mas enorme do velho
coronel impressiona-me pelo patético. Ele fora amal-
diçoado por seu temperamento atroz; fora amaldi-
çoado por uma esposa meio louca, que bebia e vi-
via nas ruas. Sua filha estava totalmente louca — e
no entanto acreditava na bondade da natureza hu-
mana. Acreditava que Leonora se daria ao traba-
lho de ir até o Ceilão para cuidar de sua filha. Leo-
nora não faria isso. Leonora nem mesmo queria ver
Nancy de novo. Atrevo-me a dizer que, nas circuns-
tâncias, isso era bastante natural. Ao mesmo tem-
po ela havia concordado, por assim dizer, de for-
ma pública, que alguém deveria ir de Branshaw até

418 FORD MADOX FORD


o Ceilão. Enviou a mim e à sua antiga ama-seca,
que cuidara de Nancy desde a época em que a moça,
então uma menina de treze anos, viera pela primei-
ra vez a Branshaw. Assim eu viajei, atravessando a
Provença, para pegar o vapor em Marselha. E eu
não estava nada bem quando cheguei ao Ceilão; e
a governanta não estava nada bem. Nada estava
bem...
Os médicos disseram, em Kandy74, que se Nan-
cy pudesse ser levada para a Inglaterra, o ar mari-
nho, a mudança de clima, a viagem e todo esse tipo
habitual de coisas poderia restaurar sua razão. Na-
turalmente, não restauraram sua razão. Ela está
sentada, sei disso, no hall, a quarenta passos daqui,
onde estou escrevendo agora. Não quero ser român-
tico a esse respeito. Ela está bem vestida; está bas-
tante tranqüila; está muito bonita. A velha ama-seca
parece cuidar dela com muita eficiência.
Naturalmente temos aqui uma situação con-
fortável, mas tudo é muito monótono, no que me

74 Cidade histórica no antigo Ceilão central, hoje Sri


Lanka. (N. do T.)

O BOM S OLDADO 419


diz respeito. Eu poderia casar-me com Nancy, se sua
razão fosse suficientemente restaurada para que ela
pudesse apreciar o significado da cerimônia de ca-
samento anglicano. Mas é provável que sua razão
jamais seja suficientemente restaurada, a fim de que
ela possa apreciar o significado da cerimônia de ca-
samento anglicano. Por conseguinte não posso ca-
sar-me com ela, de acordo com a lei da terra.
Assim, aqui estou exatamente onde comecei há
treze anos atrás. Eu sou o acompanhante, não o
marido, de uma bela moça que não presta nenhu-
ma atenção em mim. Estou afastado de Leonora,
que se casou com Rodney Bayham e foi viver em
Bayham. Leonora antipatiza um tanto comigo, por-
que meteu na cabeça que eu desaprovo seu casamen-
to com Rodney Bayham. Bem, eu desaprovo o ca-
samento dela. Provavelmente tenho ciúmes.
Sim, sem dúvida tenho ciúmes. De meu modo
timorato acho que sigo a orientação de Edward Ash-
burnham. Suponho que eu gostaria de ser um po-
lígamo; com Nancy, com Leonora, com Maisie Mai-
dan e provavelmente até com Florence. Sem dúvi-
da sou como qualquer homem; apenas, provavel-

420 FORD MADOX FORD


mente por causa de minha origem americana, sou
timorato. Ao mesmo tempo sou capaz de lhe asse-
gurar que sou uma pessoa estritamente respeitável.
Nunca fiz nada que a mais ansiosa mãe de uma fi-
lha ou mais cuidadoso deão de uma catedral pudesse
objetar. Apenas segui, timoratamente, e através de
meus desejos inconscientes, Edward Ashburnham.
Bem, tudo acabou. Nenhum de nós conseguiu o que
realmente queria. Leonora queria Edward e ficou
com Rodney Bayham, um cordeiro bastante agra-
dável. Florence queria Branshaw e fui eu que a com-
prei de Leonora. Eu não queria de fato; o que eu
mais queria era deixar de ser uma ama-seca e acom-
panhante. Bem, sou uma ama-seca acompanhante.
Edward queria Nancy Rufford e eu fiquei com ela.
Só que ela está louca. É um mundo estranho e fan-
tástico. Por que as pessoas não podem ter o que
querem? As coisas estavam todas ali para conten-
tar todo mundo; no entanto todo mundo ficou com
a coisa errada. Talvez você possa fazer cara ou co-
roa disso; está além de meu alcance.
Será que existe algum paraíso terrestre onde,
entre o sussurro das oliveiras, as pessoas possam

O BOM S OLDADO 421


estar com quem elas gostam e ter o que elas gos-
tam e descansar à sombra e no frescor? Ou as vi-
das de todos os homens como a nossa vida de pes-
soas de bem — como a vida dos Ashburnham, dos
Dowell, dos Rufford — são vidas quebradas, tumul-
tuosas, angustiadas, e anti-românticas, frases pon-
tuadas por gritos, imbecilidades, mortes, angústias?
Quem, com todos os diabos, sabe?

Pois houve um bocado de imbecilidade nas ce-


nas de encerramento da tragédia dos Ashburnham.
Nenhuma das duas mulheres sabia o que desejava.
Só Edward seguia uma linha perfeitamente clara e
ele estava bêbado a maior parte do tempo. Mas, bê-
bado ou sóbrio, ele se apegou ao que era exigido
pela convenção e pela tradição de sua família. Nancy
Ruffort tinha de ser exportada para a Índia e Nancy
Rufford não podia ouvir uma palavra de amor da
parte dele. Ela foi exportada para a Índia e nunca
ouviu uma palavra de Edward Ashburnham.
Foi a orientação convencional; estava de acor-
do com a tradição da família de Edward. Atrevo-
me a dizer que isso funcionou para o melhor bem

422 FORD MADOX FORD


possível do corpo político. Convenções e tradições,
suponho, agem cega mas firmemente para a preser-
vação do tipo normal; para a extinção dos indiví-
duos orgulhos, resolutos e incomuns.
Edward era o homem normal, mas havia nele
um sentimental excessivo e a sociedade não preci-
sa de muitos sentimentais. Nancy era uma criatura
esplêndida, mas havia nela um toque de loucura. A
sociedade não precisa de indivíduos com toques de
loucura. Assim Edward e Nancy terminaram esma-
gados e Leonora sobrevive, o tipo perfeitamente
normal, casada com um homem que mais parece um
coelho. Pois Rodney Bayham é como um coelho e
ouvi dizer que Leonora está esperando uma crian-
ça para daqui a três meses.
Assim essas criaturas esplêndidas e tumultuo-
sas com seu magnetismo e suas paixões — as duas
a quem realmente amei — se foram dessa terra. É
sem dúvida melhor para elas. O que Nancy faria
com Edward, se ela conseguisse viver com ele; o que
Edward faria com ela? Pois havia em Nancy um
toque de crueldade — um toque de crueldade real
bem claro que lhe dava desejo de ver as pessoas

O BOM S OLDADO 423


sofrerem. Sim, ela desejava que Edward sofresse. E,
por Deus, ela lhe deu o inferno.
Ela deu a ele um inferno inimaginável. Aquelas
duas mulheres perseguiram aquele pobre diabo e
arrancaram a sua pele como se tivessem usado chi-
cotes. Eu lhe digo que a mente dele sangrava quase
de maneira visível. Parece que o vejo de pé, nu até
a cintura, seus antebraços protegendo os olhos, e
sua carne a cair em pedaços. Eu lhe afirmo que não
há exagero no que sinto. Foi como se Leonora e
Nancy se juntassem para a execução, pelo bem da
humanidade, sobre o corpo de um homem que es-
tava à disposição delas. Eram como um casal de
sioux que tivessem se apoderado de um apache e o
mantivessem bem amarrado a uma estaca. Eu lhe
afirmo que não havia limites para as torturas que
elas lhe infligiram.
Noite após noite ele podia ouvi-las falando;
falando; enlouquecido, suando, buscando o esque-
cimento na bebida, ele ficava ali e ouvia as vozes
que continuavam e continuavam. E dia após dia
Leonora vinha até ele e anunciava os resultados das
suas deliberações.

424 FORD MADOX FORD


Elas pareciam juízes debatendo a respeito da
sentença de um criminoso; eram como vampiros
com um cadáver imóvel num túmulo ao lado deles.
Não creio que se possa culpar mais Leonora
do que a moça — embora Leonora fosse a mais ativa
das duas. Leonora, como eu já disse, era a mulher
perfeitamente normal. Quero dizer que em circuns-
tâncias normais os desejos dela eram os requeridos
da mulher pela sociedade. Ela desejava crianças,
decoro, um lar; desejava evitar o desperdício, dese-
java manter as aparências. Ela era integral e extre-
mamente normal em sua beleza extremamente ine-
gável. Mas não quero dizer com isso que ela tenha
sido perfeitamente normal nesta situação perfeita-
mente anormal. Todo mundo estava louco à sua
volta e ela própria, atormentada, assumiu a com-
pleição de uma mulher louca; de uma mulher muito
perversa; da vilã da peça. O que você quer? O aço
é uma substância normal, dura, polida. Mas, se você
o põe no fogo ele fica vermelho, suave e não pode
ser manejado. Se você o põe num fogo ainda mais
quente, ele se derrete. Aconteceu o mesmo com Leo-
nora. Ela fora feita para circunstâncias normais —

O BOM S OLDADO 425


para o senhor Rodney Bayham, que irá manter uma
residência separada, secretamente, em Portsmouth
e fazer viagens ocasionais a Paris e a Budapeste.
No caso de Edward e da moça, Leonora en-
trou em colapso e mudou inteiramente. Adotou pos-
turas mentais inabituais e, portanto, extraordiná-
rias e desastrosas. Passou a dedicar-se à vingança.
Depois de fazer sermões horas a fio para a moça
durante a noite, ela fazia sermões horas a fio para
o silencioso Edward durante o dia. E Edward uma
única vez deu um passo em falso e isso foi sua ruí-
na. Talvez ele tivesse bebido uísque demais naque-
la tarde.
Ela inquiria-o permanentemente sobre o que
ele queria. O que você quer? O que você quer? E
tudo quanto ele respondia era: “Eu já lhe disse”.
Queria dizer com isso que desejava que a moça fosse
ao encontro do pai dela na Índia assim que este te-
legrafasse que estava pronto para recebê-la. À eterna
pergunta de Leonora ele respondeu que tudo quanto
desejava na vida era que — que ele pudesse se re-
encontrar de novo e prosseguir com suas ocupações
diárias se — a moça, estando a cinco mil milhas de

426 FORD MADOX FORD


distância, continuasse a amá-lo. Não queria mais
nada. Não pedia mais nada a seu Deus. Bem, ele
era um sentimental.
E no instante em que ouviu isso, Leonora de-
cidiu que a moça não deveria estar a cinco mil mi-
lhas de distância e que não deveria continuar a amar
Edward. Ela procedeu da seguinte maneira:
Continuou a dizer à moça que devia pertencer
a Edward; ela iria obter o divórcio; iria conseguir
de Roma uma dissolução de seu casamento. Mas
considerava ser seu dever advertir a moça quanto
à espécie de monstro que Edward era. Contou à
moça sobre La Dolciquita, sobre a senhora Basil,
sobre Maisie Maidan, sobre Florence. Falou dos
tormentos que suportara durante sua vida com
aquele homem, que era violento, autoritário, vai-
doso, arrogante, e uma presa monstruosa de suas
necessidades sexuais. E, ao ouvir as dores que sua
tia sofrera — pois Leonora mais uma vez assumira
o aspecto de uma tia para a moça — com a cruel-
dade rápida da juventude e com a solidariedade
rápida que liga uma mulher a outra, a moça tomou
suas decisões. Sua tia dizia incessantemente: “Você

O BOM S OLDADO 427


deve salvar a vida de Edward; você deve salvar a
vida dele. Tudo que ele precisa é de um pequeno
período de satisfação dado por você. Depois ele se
cansará de você como se cansou das outras. Mas
você tem de salvar a vida dele”.
E, durante esse tempo todo, aquele sujeito des-
venturado sabia, por um instinto curioso que cir-
cula entre os seres humanos que vivem juntos, exa-
tamente o que estava acontecendo. E permaneceu
mudo; não mexeu um só dedo para ajudar a si mes-
mo. Tudo que ele precisava para se manter como
membro decente da sociedade era que a moça, a
cinco mil milhas de distância, continuasse a amá-
lo. Elas estavam pondo uma pá de cal sobre aquilo.
Eu já lhe disse que certa noite a moça foi até o
quarto dele. E isso foi um verdadeiro inferno para
ele. Esta foi a imagem que jamais abandonou a ima-
ginação dele — a moça, à luz mortiça, ao pé da cama
dele. Ele me disse que parecia haver uma espécie de
efeito esverdeado, como se houvesse um matiz ver-
de nas sombras dos altos balaústres que emoldura-
vam o corpo dela. E ela olhou para ele com seus
olhos francos de uma crueldade inflexível e disse:

428 FORD MADOX FORD


“Estou pronta para pertencer a você — para salvar
sua vida”.
Ele respondeu: “Não quero; não quero; não
quero”.
E ele disse que não queria; que teria odiado a
si mesmo; que era inconcebível. E durante o tempo
todo experimentou a tentação imensa de fazer a
coisa inconcebível, não devido ao desejo físico, mas
por causa de uma certeza mental. Ele tinha certeza
de que, se ela se submetesse uma vez a ele, perma-
neceria sua para sempre. Sabia disso.
Ela estava pensando que sua tia dissera que ele
desejava que ela o amasse de uma distância de cin-
co mil milhas. Ela disse: “Não posso mais amá-lo
agora que sei que tipo de homem você é. Pertence-
rei a você para salvar sua vida. Mas nunca poderei
amá-lo”.
Foi uma exibição fantástica de crueldade. Ela
não sabia em absoluto o que aquilo significava —
pertencer a um homem. Mas, por isso mesmo, Ed-
ward se recompôs. Falou em seu tom normal: rís-
pido, seco, autoritário, como faria com um criado
ou com um cavalo.

O BOM S OLDADO 429


— Volte para seu quarto — ele disse. — Volte
para seu quarto e vá dormir. Tudo isso é absurdo.

Elas ficaram frustradas, aquelas duas mulheres.


E então eu entrei em cena.

430 FORD MADOX FORD


VI.

Minha entrada em cena certamente acalmou


as coisas — durante toda a quinzena entre minha
chegada e a partida da moça. Não quero dizer que
a conversa sem fim não prosseguisse à noite, que
Leonora não me mandasse sair com a moça e, no
intervalo, proporcionasse a Edward uma sessão in-
fernal. Tendo descoberto o que ele queria — que a
moça ficasse a cinco mil milhas de distância e o
amasse inabalavelmente, como fazem as pessoas nos
romances sentimentais —, ela estava determinada
a esmagar essa aspiração. E repetiu a Edward em
todos os tons possíveis que a moça não o amava;
que a moça detestava-o por sua brutalidade, au-
toritarismo, seu hábito de beber. Sublinhou que Ed-
ward, aos olhos da moça, já se comprometera pro-
fundamente com três ou quatro. Estava compro-
metido com a própria Leonora, com a senhora Basil

O BOM S OLDADO 431


e com as lembranças de Maisie Maidan e de Flo-
rence. Edward nunca disse nada.
A moça amava Edward ou não? Não sei. Na-
quela época atrevo-me a dizer que não, embora cer-
tamente o amasse antes que Leonora destruísse a
reputação dele. Ela certamente o amara pelo que irei
chamar o lado público de sua trajetória — por seu
desempenho militar, por ter salvo vidas no mar, pelo
excelente proprietário e pelo bom esportista que era.
Mas é bem possível que essas coisas nada mais signi-
ficassem a seus olhos quando ela descobriu que ele
não era um bom marido. Pois, embora as mulheres,
como eu as vejo, tenham pouco ou nenhum senti-
mento de responsabilidade diante de um condado,
de um país ou de uma carreira — embora elas pos-
sam carecer inteiramente de qualquer espécie de
solidariedade comunitária —, têm um instinto imen-
so e automaticamente operativo que as liga ao inte-
resse feminino. É, naturalmente, possível a qualquer
mulher desbancar e roubar o marido ou o amante
de qualquer outra mulher. Mas penso sem dúvida
que uma mulher só fará isso se tiver razão de acre-
ditar que a outra mulher tratou mal seu marido.

432 FORD MADOX FORD


Estou certo de que, se ela pensar que o homem tem
sido um bruto com sua mulher, irá, com seu senti-
mento instintivo pela feminilidade sofredora, “dei-
xá-lo de lado”, como se diz. Não atribuo qualquer
importância particular a essas minhas generaliza-
ções. Podem estar certas, podem estar erradas; sou
apenas um americano idoso com muito pouco co-
nhecimento da vida. Você pode aceitá-las ou recusá-
las. Mas estou certo de que tenho razão no caso de
Nancy Rufford — ela tinha amado Edward Ash-
burnham profunda e ternamente.
Não importa que ela tenha permitido que ele
passasse por poucas e boas assim que descobriu que
fora infiel a Leonora e que sua ação pública custa-
ra mais do que Leonora achava que devia custar.
Nancy estava forçada a permitir que ele passasse por
poucas e boas. Ela devia isso à opinião pública fe-
minina; seria levada a isso pelo instinto de auto-
preservação, já que podia imaginar muito bem que,
se Edward fora infiel a Leonora, à senhora Basil e
às memórias das outras, poderia também ser infiel
a ela. E, sem dúvida, ela tinha sua parcela do ins-
tinto do sexo que faz as mulheres serem intolera-

O BOM S OLDADO 433


velmente cruéis com a pessoa amada. Seja como for,
não sei se, a essa altura, Nancy Rufford amava Ed-
ward Ashburnham. Não sei se ainda o amava quan-
do, ao receber em Aden as notícias de seu suicídio,
ela enlouqueceu. Porque pode ter sido tanto por
causa de Leonora quanto por causa de Edward. Ou
pode ter sido por causa de ambos. Não sei. Não sei
nada. Estou muito cansado.
Leonora sustentou apaixonadamente a doutri-
na de que a moça não amava Edward. Queria de-
sesperadamente acreditar nisso. Era uma doutrina
tão necessária à sua existência quanto a crença na
imortalidade pessoal da alma. Afirmou que era im-
possível que Nancy pudesse ter amado Edward de-
pois que fornecera à moça sua visão da carreira e
da personalidade de Edward. Edward, por outro
lado, acreditava vagamente que alguma atração es-
sencial nele próprio deve ter feito com que a moça
continuasse a amá-lo — continuasse a amá-lo, por
assim dizer, sob a manifestação oficial do ódio. Pen-
sava que ela apenas fingia odiá-lo para poder sal-
var as aparências e pensava que seu telegrama bas-
tante atroz, enviado de Brindisi era uma outra ten-

434 FORD MADOX FORD


tativa de fazer isso — de provar que ela tinha sen-
timentos dignos de um membro da comunidade fe-
minina. Não sei. Deixo isso com você.
Há um outro ponto que me preocupa um bo-
cado quanto aos aspectos deste triste caso. Leono-
ra diz que, ao desejar que a moça ficasse a cinco
mil milhas de distância e ainda assim continuasse a
amá-lo, Edward fora um monstro de egoísmo. Ele
estava querendo a ruína de uma vida jovem. Ed-
ward, por outro lado, me fez ver que, supondo que
o amor da moça fosse uma necessidade para a vida
dele e já que não fez em nada por atos ou palavras
para manter vivo o amor de Nancy, ele não podia
ser chamado de egoísta. Leonora replicou que isso
mostrava que ele tinha uma natureza abominavel-
mente egoísta, mesmo quando suas ações pudessem
estar perfeitamente corretas. Não posso decidir qual
deles estava certo. Deixo isso para você.
É certo, de qualquer modo, que as ações de
Edward foram perfeitamente — foram monstruo-
samente, foram cruelmente — corretas. Ele se sen-
tava imóvel e deixava que Leonora liquidasse seu
caráter, deixava que Leonora o condenasse ao mais

O BOM S OLDADO 435


profundo inferno, sem mexer um dedo. Atrevo-me
a dizer que foi um tolo; não vejo que propósito havia
em deixar que a moça pensasse o pior possível dele
mais do que era necessário. No entanto era assim
que acontecia. E acontecia também que todos os três
apresentavam ao mundo o espetáculo de serem os
melhores entre as melhores pessoas de bem. Eu lhe
asseguro que durante minha estadia nessa quinze-
na naquela bela mansão, nunca observei uma úni-
ca coisa que pudesse afetar essa boa opinião. E mes-
mo quando olho para trás, conhecendo as circuns-
tâncias, não posso me lembrar de uma única coisa
que qualquer um deles tenha dito que pudesse traí-
los. Não posso me lembrar, até aquele jantar, quan-
do Leonora leu aquele telegrama — nem um só tre-
mor de cílio, nem o aperto de uma mão. Era ape-
nas uma agradável casa de campo.
E Leonora manteve-a perfeitamente assim, mes-
mo bem depois disso — manteve-a assim no que me
diz respeito até oito dias após o funeral de Edward.
Imediatamente depois daquele jantar — o jantar no
qual recebi o anúncio de que Nancy ia partir para
a Índia no dia seguinte —, pedi a Leonora para ter

436 FORD MADOX FORD


uma conversa com ela. Ela me levou até sua pequena
sala de estar e então eu disse — poupo-lhe o regis-
tro de minhas emoções — que ela sabia que eu de-
sejava me casar com Nancy; que ela parecia apro-
var meu pedido e que parecia ser um desperdício
de dinheiro com passagens e um desperdício de tem-
po com viagem deixar que a moça fosse para a Ín-
dia, se Leonora achasse que havia alguma chance
de que eu me casasse com ela.
E Leonora, eu lhe asseguro, foi a matrona bri-
tânica absolutamente perfeita. Disse que aprovava
inteiramente meu pedido; que não podia desejar
para a moça um marido melhor; mas que pondera-
va que a moça deveria conhecer um pouco mais
sobre a vida antes de dar um passo assim tão im-
portante. Sim, Leonora usou as palavras “dar um
passo assim tão importante”. Ela foi perfeita. Real-
mente, acho que ela gostaria mesmo que a moça se
casasse comigo, mas meu programa incluía a com-
pra da casa dos Kershaw, a cerca de uma milha e
meia da estrada de Fordinbridge, e me estabelecer
por lá com a moça. Isso não convinha de modo al-
gum a Leonora. Ela não queria ter a moça a uma

O BOM S OLDADO 437


milha e meia de Edward pelo resto de suas vidas.
Ainda sendo, acho que ela devia ter feito com que
eu soubesse, através de uma ou outra perífrase, que
eu poderia ficar com a moça se a levasse para a Fi-
ladélfia ou Timbuctoo. Eu amava muito Nancy —
e Leonora sabia disso.
Entretanto, deixei as coisas como estavam. Dei-
xei-as com a compreensão de que Nancy estava par-
tindo para a Índia para um período de experiência.
Parecia-me um arranjo perfeitamente razoável, e eu
sou um homem razoável. Disse simplesmente que
eu seguiria Nancy até a Índia depois de uns seis
meses mais ou menos. Ou, talvez, um ano depois.
Bem, veja só, eu segui Nancy até a Índia um ano
depois...
Devo confessar que fiquei um pouco zangado
com Leonora por não ter me avisado antes que a
moça ia partir. Atribuo isso a um desses métodos
estranhos, nada diretos, que os católicos romanos
parecem adotar ao lidar com os assuntos deste mun-
do. Atribuo isso ao fato de que Leonora tinha medo
de que eu pedisse a moça ou, de algum modo, to-
masse com ela liberdades maiores do que tomei, se

438 FORD MADOX FORD


eu soubesse antes que ela iria partir tão cedo. Tal-
vez Leonora estivesse certa; talvez os católicos ro-
manos, com seus métodos estranhos, evasivos, es-
tejam sempre certos. Estão lidando com esta coisa
estranha, evasiva, que é a natureza humana. Pois é
bem possível que, se soubesse que Nancy ia partir
tão cedo, eu tentasse fazer amor com ela. E isso te-
ria produzido uma outra complicação. Pode ter sido
uma sorte.
Como são estranhas as coisas fantásticas que
as pessoas de bem podem fazer para manter as apa-
rências de tranqüila indiferença. Pois Edward Ash-
burnham e sua esposa me chamaram quase da ou-
tra metade do mundo para que eu me sentasse no
banco traseiro de uma carruagem, enquanto Edward
conduzia moça até a estação ferroviária de onde ela
devia partir para a Índia. Queriam, eu suponho, ter
uma testemunha da tranqüilidade daquela ação. A
bagagem da moça já fora arrumada e despachada
antes. Sua cabine no navio já fora reservada. Eles
calculam tudo com tal exatidão que funcionou como
um relógio. Sabiam a data na qual o coronel Rufford
receberia a carta de Edward e sabiam quase exata-

O BOM S OLDADO 439


mente a hora em que eles iriam receber o telegra-
ma dele pedindo que sua filha fosse a seu encon-
tro. Tudo fora perfeita e implacavelmente arranja-
do pelo próprio Edward. Deram ao coronel Rufford,
como motivo para que telegrafasse, o fato de que a
senhora do coronel Fulano de Tal estaria viajando
naquele navio e que serviria como uma acompa-
nhante eficiente para a moça. Foi um negócio de-
masiadamente espantoso, e acho que teria sido me-
lhor aos olhos de Deus se eles tivessem tentado fu-
rar os olhos um do outro com facas amoladas. Mas
eles eram “gente de bem”.
Depois de minha conversa com Leonora, fui
atabalhoadamente até a sala de armas de Edward.
Não sabia onde a moça estava e achei que poderia
encontrá-la ali. Suponho que eu tinha uma vaga
idéia de fazer o pedido a ela, apesar de Leonora.
Assim, presumo, não descendo inteiramente de gen-
te de bem tal qual os Ashburnham. Edward estava
recostado em sua cadeira fumando um charuto e
não disse nada durante uns bons cinco minutos. As
velas ardiam nas sombras verdes; havia reflexos
verdes nos vidros das estantes que guardavam ar-

440 FORD MADOX FORD


mas e anzóis. Sobre o console da lareira ficava o
quadro amarronzado do cavalo branco. Esses fo-
ram os momentos mais tranqüilos que jamais co-
nheci. Então, de repente, Edward me olhou direto
nos olhos e disse:
— Olhe aqui, meu velho, quero que você vá co-
migo e com Nancy até a estação ferroviária amanhã.
Disse que naturalmente iria com ele e com Nan-
cy até a estação no dia seguinte. Ele ficou ali du-
rante muito tempo, olhando ao longo das linhas de
seus joelhos para o fogo que se agitava e de repen-
te, numa voz perfeitamente calma, e sem levantar
os olhos, disse:
— Estou tão desesperadamente apaixonado
por Nancy Rufford que estou morrendo por causa
disso.
Pobre diabo — ele não queria falar aquilo. Mas
acho que tinha de falar com alguém e eu parecia ser
algo assim como uma mulher ou um procurador.
Ele falou a noite toda.

Bem, ele cumpriu seu programa até o último


suspiro.

O BOM S OLDADO 441


Era uma manhã de inverno muito clara, com
um bocado de geada. O sol brilhava muito, a es-
trada sinuosa entre a urze e as samambaias estava
muito pesada. Sentei-me no banco de trás da car-
ruagem; Nancy ficou ao lado de Edward. Eles con-
versavam sobre a maneira como o cavalo andava;
Edward apontou com o chicote para um bando de
veados no alto de uma ravina a uma distância de
três quartos de milha. Passamos pelos cães de caça
no trecho plano da estrada ao lado das altas árvo-
res indo para Fordinbrige e Edward parou a carru-
agem para que Nancy pudesse dizer adeus ao caça-
dor e lhe entregar uma última gorjeta. Ela cavalga-
va com aqueles cães desde que tinha treze anos.
O trem estava cinco minutos atrasado e eles
acharam que era porque era dia de feira em Swin-
don, ou seja, lá de onde vinha o trem. Foi sobre esse
tipo de coisa que conversaram. O trem chegou; Ed-
ward levou-a até um vagão de primeira classe, onde
estava uma mulher mais velha. A moça entrou no
vagão, Edward fechou a porta e então ela estendeu
a mão para apertar a minha. Não havia no rosto
dessas pessoas nenhuma expressão de qualquer tipo.

442 FORD MADOX FORD


O sinal para a partida do trem era vermelho; esta é
a afirmação mais apaixonada que posso extrair des-
sa cena. Ela não estava com seu melhor aspecto;
usava um chapéu de pelo marrom que não combi-
nava muito com seu cabelo. Ela disse:
— Até logo — para Edward.
Edward respondeu: “Até logo”.
Ele girou sobre seus calcanhares, e corpulen-
to, encurvado, e caminhando com um passo deli-
beradamente pesado, saiu da estação. Eu o segui e
fiquei a seu lado na carruagem. Foi o desempenho
mais horrível a que já assisti.
E, depois, uma santa paz, como a paz de Deus
que ultrapassa todo entendimento, desceu sobre
Branshaw Teleragh. Leonora prosseguiu em suas
tarefas diárias com uma espécie de sorriso triunfante
— um sorriso muito esmaecido, mas inteiramente
triunfante. Acho que ela desistira há tanto tempo
da idéia de ter o seu homem de volta que era sufi-
ciente para ela ter tirado a moça da casa e ficar to-
talmente curada de sua insensatez. Uma vez, no hall,
quando Leonora estava saindo, Edward disse, bem
baixinho, mas eu captei as palavras:

O BOM S OLDADO 443


“Tu venceste, ó pálido Galileu.”75
Era bem de seu sentimentalismo citar Swinburne.
Mas ele estava completamente tranqüilo e de-
sistira de beber. A única coisa que disse para mim
depois daquela ida até a estação foi:
— É muito esquisito. Acho que devo lhe di-
zer, Dowell, que não tenho mais nenhum sentimento
pela moça agora que tudo terminou. Não se preo-
cupe comigo. Estou bem.
Muito tempo depois ele disse:
— Acho que foi só fogo de palha.
Começou de novo a cuidar da propriedade;
entregou-se a toda aquela trabalheira para libertar
a filha do jardineiro que tinha assassinado o bebê
dela. Apertava sorridente as mãos dos fazendeiros
na feira-livre. Discursou em duas reuniões políticas;
foi duas vezes à caça. Leonora fez uma cena horrí-
vel com ele porque gastou duzentas libras para con-
seguir que a filha do jardineiro fosse libertada. Tudo

75
“Thou hast conquered, O pale Galilean”. Verso do
poema “Hymn to Proserpine”, de Swinburne (1873-1909). (N.
do T.)

444 FORD MADOX FORD


continuava como se a moça jamais tivesse existido.
Fazia um tempo estável.
Bem, esse é o fim da história. E quando sou
levado a examiná-lo, vejo que é um final feliz com
sinos de casamento e tudo o mais. Os vilões — pois
obviamente Edward e a moça foram os vilões — fo-
ram punidos com o suicídio e a loucura. A heroína
— a heroína perfeitamente normal, virtuosa e leve-
mente dissimulada — tornou-se a esposa feliz de um
marido perfeitamente normal, virtuoso e levemen-
te dissimulado. Ela irá em breve tornar-se mãe de
um filho ou de uma filha perfeitamente normal, vir-
tuosa e levemente dissimulada. Um final feliz, foi
assim que tudo terminou.
Não posso esconder de mim mesmo o fato de
que agora antipatizo com Leonora. Sem dúvida te-
nho ciúmes de Rodney Bayham. Mas não sei se é
meramente um ciúme despertado pelo fato de que
eu próprio desejava possuir Leonora ou se é por-
que a ela foram sacrificadas as duas únicas pessoas
que eu realmente amei — Edward Ashburnham e
Nancy Rufford. Para que ela se estabelecesse numa
mansão moderna, repleta de conforto e dominada

O BOM S OLDADO 445


por um dono de casa totalmente respeitável e emi-
nentemente econômico, foi necessário que Edward
e Nancy Rufford se tornassem, para mim pelo me-
nos, não mais do que sombras trágicas.
Parece-me estar vendo o pobre Edward, nu e
reclinado no meio da escuridão, sobre rochas frias,
como um dos antigos gregos danados, no Tártaro
ou seja lá onde for.
E quanto a Nancy... Bem, ontem no almoço
ela disse repentinamente:
— Petecas!
E repetiu a palavra “petecas” três vezes. Sei o
que se passava na mente dela, pois Leonora me con-
tou que, uma vez, a pobre moça disse que se sentia
como uma peteca sendo jogada para lá e para cá entre
as personalidades violentas de Edward e sua espo-
sa. Leonora, foi o que ela disse, estava sempre ten-
tando entregá-la a Edward, e Edward tácita e silen-
ciosamente empurrava-a de volta. E a coisa estranha
era que o próprio Edward achava que aquelas duas
mulheres usaram-no como uma peteca. Ou, melhor,
disse que elas o jogavam para lá e para cá como um
pacote maldito do qual ninguém queria pagar a pos-

446 FORD MADOX FORD


tagem. E Leonora também imaginava que Edward
e Nancy levantavam-na e derrubavam-na de acordo
com seus estados estritamente caprichosos. Aí está
o belo quadro. Repare, não estou pregando nada con-
trário à moralidade aceita. Não estou advogando o
amor livre neste ou naquele caso. A sociedade deve
continuar, eu suponho, e a sociedade só pode existir
se os normais, se os virtuosos, e se os levemente dis-
simulados florescerem, e se os apaixonados, os
cabeças-dura e os sinceros demais forem condenados
ao suicídio e à loucura. Mas acho que eu próprio, à
minha maneira timorata, pertenço à categoria dos
apaixonados, dos cabeça-dura e dos sinceros demais.
Pois não posso esconder de mim o fato de que eu
amava Edward Ashburnham — e de que o amo por-
que ele era eu mesmo. Se eu tivesse a coragem, a vi-
rilidade e possivelmente também o físico de Edward
Ashburnham eu teria, é o que fantasio, feito o que
ele fez. Para mim, ele se parece com um irmão mais
velho generoso que me levasse para várias excursões
e fizesse muitas coisas ousadas enquanto eu ficava,
de longe, apenas observando-o roubar os pomares.
E, veja bem, sou tão sentimental quanto ele...

O BOM S OLDADO 447


Sim, a sociedade deve continuar; deve procriar,
como coelhos. É para isso que estamos aqui. Mas
por outro lado, não gosto da sociedade — tanto
assim. Sou essa figura absurda, um milionário ame-
ricano que comprou um dos antigos refúgios de paz
inglesa. Sento-me aqui, na sala de armas de Edward,
todo santo dia numa casa absolutamente tranqüi-
la. Ninguém me visita, pois não visito ninguém. Nin-
guém está interessado em mim, pois não tenho in-
teresses. Daqui a vinte minutos mais ou menos devo
caminhar até a cidade, debaixo de meus próprios
carvalhos, ao longo de minhas moitas de tojo, para
pegar a correspondência americana. Meus arrenda-
tários, os rapazes da cidade e os comerciantes irão
tirar seus chapéus para mim. Assim a vida vai su-
mindo aos poucos. Voltarei para jantar e Nancy se
sentará à minha frente com a velha ama-seca atrás
dela. Enigmática, silenciosa, extremamente bem-
comportada enquanto sua faca e garfo vão e vêm,
Nancy irá olhar fixamente à sua frente com os olhos
azuis que trazem acima deles sobrancelhas compri-
das, fatigadas. Uma vez, ou talvez duas, durante a
refeição, sua faca e seu garfo ficarão suspensos no

448 FORD MADOX FORD


ar como se estivesse tentando pensar algo que ela
esqueceu. Então irá dizer que acredita numa divin-
dade onipotente ou irá, talvez, pronunciar uma úni-
ca palavra, “petecas”. É muito extraordinário ver
o rubor perfeito da saúde em suas faces, ver o bri-
lho de seu cabelo preto cacheado, o equilíbrio de
sua cabeça sobre o pescoço, a graça de suas mãos
brancas — e pensar que tudo isso não significa nada,
que é um quadro sem significado. Sim, é estranho.
Mas, de qualquer modo, há sempre Leonora
para animá-lo; não quero entristecê-lo. O marido
dela é uma pessoa bastante econômica, com um
porte tão normal que pode comprar prontas boa
parte de suas roupas. Esse é o grande desideratum
da vida, e esse é o fim de minha história. A criança
deve ser educada como um católico romano.

Ocorre-me de repente que esqueci de dizer co-


mo Edward encontrou a morte. Você se lembra de
que a paz desceu sobre a casa; que Leonora estava
tranqüilamente triunfante e que Edward disse que
seu amor pela moça fora apenas uma coisa transi-
tória. Bem, uma tarde estávamos juntos nos está-

O BOM S OLDADO 449


bulos, examinando um novo tipo de piso que Ed-
ward estava experimentando numa baia. Edward
estava conversando com um bocado de animação
sobre a necessidade de colocar o número dos sol-
dados voluntários de Hampshire no padrão corre-
to. Estava completamente sóbrio, completamente
tranqüilo, sua pele estava ótima; seu cabelo estava
dourado e perfeitamente penteado; o tom averme-
lhado uniforme de sua compleição ia até a borda
de suas pálpebras; seus olhos estavam azul-porce-
lana e olhavam-me franca e diretamente. Seu rosto
estava totalmente inexpressivo; sua voz era profun-
da e áspera. Estava de pé e disse:
— Devemos levá-lo até os dois mil trezentos e
cinqüenta.
Um cavalariço entregou-lhe um telegrama e foi
embora. Ele abriu-o negligentemente, olhou-o sem
emoção, e, em completo silêncio, estendeu-o para
mim. No papel cor-de-rosa numa caligrafia espar-
ramada, li: “Segura em Brindisi. Divertindo-me um
bocado. Nancy”.
Bem, Edward era o gentleman inglês; mas tam-
bém era, até o fim, um sentimental, cuja mente era

450 FORD MADOX FORD


composta de poemas e romances indiferentes. Ele
apenas olhou para o teto do estábulo como se esti-
vesse olhando para o céu, e murmurou algo que não
captei.
Então colocou dois dedos no bolso da algibeira
de seu terno cinza de lã grosseira; eles voltaram com
um pequeno canivete elegante — um canivete bem
pequeno. Ele me disse:
— Pode levar esse telegrama para Leonora.
E me olhou com um olhar direto, desafiador.
Acho que ele podia ver nos meus olhos que eu não
pretendia impedi-lo. Por que eu deveria impedi-lo?
Não creio que ele fosse desejado no mundo, a
não ser para que seus arrendatários, suas associa-
ções de rifle, seus bêbados, redimidos e irredimidos,
seguissem como queriam. Nem todos eles, centenas
e centenas deles, mereciam que aquele pobre diabo
continuasse sofrendo para o bem deles.
Quando viu que eu não pretendia interferir,
seus olhos se tornaram suaves e quase afetuosos. Co-
mentou:
— Até logo, meu velho, devo ter um pouco de
sossego, você sabe.

O BOM S OLDADO 451


Eu não sabia o que dizer. Quis dizer, “Deus o
abençoe”, pois também sou um sentimental. Mas
achei que isso talvez não estivesse de acordo com
as boas maneiras inglesas, de modo que apressei o
passo com o telegrama para Leonora. Ela ficou mui-
to contente com ele.

452 FORD MADOX FORD


O BOM S OLDADO 453
NOTA SOBRE FORD MADOX FORD
Duda Machado

Nascido a 17 de dezembro de 1873 em Londres,


Ford Madox Ford, aliás Ford Hermann Madox Hue-
ffer, foi uma espécie de traço de ligação entre duas
gerações. Amigo e, de certo modo, discípulo de Jo-
seph Conrad, tornou-se, mais tarde, amigo e, de certo
modo, mestre de Ezra Pound. A dedicação à arte fazia
parte de seu ambiente familiar; era neto, pelo lado
materno, do pintor pré-rafaelita Ford Madox Brown,
e seu pai, Francis Hueffer, um imigrante alemão, era
crítico de música do The Times. Como resultado desta
educação, publicou seu primeiro livro aos dezessete
anos de idade, assinando-o com seu nome de batis-
mo: Ford Madox Hueffer. Foi ainda com este nome
que publicou The Good Soldier em 1915 durante a
Primeira Guerra Mundial, enquanto servia no exér-
cito inglês. Só mais tarde, em 1919, viria a mudar seu
nome para Ford Madox Ford.

454 FORD MADOX FORD


A amizade com Conrad transformou-se em
colaboração; juntos escreveram The Inheritors: An
Extravagance Story (1901), Romance (1903) e ain-
da The Nature of a Crime, este último publicado
apenas nos números de abril e maio 1909 da En-
glish Review, sob o pseudônimo Barão Ignatz von
Aschendorff. Da influência sobre Pound, assina-
lemos este registro feito por Hugh Kenner em A
Homemade World: “O artista sério, Ezra Pound
costumava argumentar (recapitulando afirmações
que ouvira de Ford), tem a obrigação de espelhar
fielmente nosso hábitos (Moeurs de Provence, foi
o subtítulo que Flaubert deu a Madame Bovary)”.
Ford teve uma importante atuação intelectual em
sua época; além da English Review, editou a famo-
sa Transatlantic Review que publicou todo o mo-
dernismo anglo-americano.
De Conrad, Ford herdou a técnica do “time-
shift” (deslocamento do tempo), fragmentando e
alternando a história entre passado e presente. Para
Ford, esta técnica permitia criar uma compreensão
mais integral da personagem e uma ampliação da
ilusão realística. Como declarou no livro Joseph

O BOM S OLDADO 455


Conrad: A Personal Remembrance: “em nosso gra-
dual conhecimento das pessoas, nunca procedemos
em linha reta”. Para apreender a complexidade de
uma personagem, é preciso “fixá-la em primeiro
lugar através de uma impressão forte, e em seguida
caminhar para trás e para frente em seu passado”.
Compartilhava ainda com Conrad a noção de
“progression d’effet”, uma espécie de efeito cumu-
lativo, segundo o qual cada frase devia levar a his-
tória para mais adiante e, à medida em que esta
avançava, devia haver necessariamente mais inten-
sidade e rapidez. Estes procedimentos, por sua vez,
deviam estar submetidos ao princípio de que o ro-
mancista devia mostrar, jamais relatar (“You must
render, never report.”). Aqui, deve-se unir à influên-
cia de Conrad, também o impacto de Henry James,
conforme Frank Kermode observa na introdução a
este volume. Por fim, todas estas características re-
metem ao legado de Gustave Flaubert e à sua afir-
mação de que “o estilo devia constituir por si pró-
prio uma visão”.
Ford sempre proclamou seu culto por Flaubert
e afirmava ter lido L’Éducation Sentimentale nada

456 FORD MADOX FORD


menos que catorze vezes. No entanto, na dedicató-
ria escrita para sua esposa Stella, Ford confessa ape-
nas a ambição de “fazer pelo romance inglês o que,
em Fort comme la Mort, Maupassant fizera pelo
francês”. Talvez isto possa ser entendido como uma
revelação indireta da presença de Flaubert através
da menção a seu mais conhecido discípulo. Deve-
se entender também que as inovações técnicas in-
troduzidas por Ford são um passo adiante no ca-
minho inaugurado pelo mestre, criando em O Bom
Soldado um romance da mais densa ambigüidade,
capaz de organizar e sugerir necessariamente uma
pluralidade de leituras.
A obra de Ford é vasta: entre romances, poe-
sia, biografia, ensaios, temos o total de oitenta vo-
lumes, segundo os cálculos de seu editor inglês. O
Bom Soldado é apontado como sua obra-prima; a
crítica destaca igualmente sua tetralogia Parade’s
End formada por Some Do Not (1924), No More
Parades (1925), A Man Could Stand Up (1926) e
Last Post (1928). Vale a pena registrar ainda o seu
livro de ensaios literários From Confucius’s Day to
Our Own (1938). Prolífico, com temperamento de

O BOM S OLDADO 457


agitador cultural, Ford acabou se transferindo pa-
ra a Paris dos “exilados” americanos da década de
20, mas passando longas temporadas na Provença.
Morreu a 20 de junho de 1938 em Deauville.

458 FORD MADOX FORD


PRINCIPAIS OBRAS DE FORD MADOX FORD

The Inheritors (1901, com Joseph Conrad);


Romance (1903, com Joseph Conrad);
The Fifth Queen (1906);
The Fifth Queen Crowned (1908);
The Good Soldier (1915);
Some Do Not (1924);
No More Parades (1925);
A Man Could Stand Up (1926);
Last Post (1928).

O BOM S OLDADO 459


460 FORD MADOX FORD
COLEÇÃO LIVROS DA ILHA
direção de Duda Machado

O título desta coleção vem da expressão que


designa a ilha como espaço ideal para a leitura dos
livros que mais admiramos. Ilha que, por sua vez,
pode ser entendida como a imagem da própria ati-
vidade de leitura, do isolamento necessário para o
contato e comunicação com as representações e fic-
ções que nos desvendam mundos. Nas palavras de
Marcel Proust, “o milagre fecundo de uma comu-
nicação no seio da solidão”.
A idéia de uma biblioteca íntima e favorita
pressupõe uma frequentação assídua dessa paisagem
imaginária. Livros da Ilha procura oferecer ao lei-
tor um conjunto de livros capaz de ampliar e enri-
quecer suas escolhas pessoais nos domínios da cria-
ção literária, do ensaio e da filosofia. Desse reper-
tório formado por um conjunto de pequenas ou
grandes obras-primas ainda desconhecidas ou pouco

O BOM S OLDADO 461


divulgadas entre nós, o leitor poderá ir compondo
os recantos de sua ilha.

Coleção Livros da Ilha

Marcel Schwob
Vidas imaginárias

Ford Madox Ford


O bom soldado

A sair:

Arthur Schopenhauer
O valor da existência: ensaios de Parerga e Paralipomena

462 FORD MADOX FORD


O BOM S OLDADO 463
E STE LIVRO FOI COMPOSTO EM S ABON E
U NIVERS PELA BRACHER & M ALTA , COM
FOTOLITOS DO BUREAU 34 E IMPRESSO PELA
PROL EDITORA GRÁFICA EM PAPEL PÓLEN SOFT
80 G/M2 DA CIA. SUZANO DE PAPEL E CELULOSE
PARA A EDITORA 34, EM NOVEMBRO DE 1997.

464 FORD MADOX FORD

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