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TRADIÇÃO/RUPTURA EM CRÔNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA

Profa. Ma. Raquel da Silva Ortega (UNESA)

O presente trabalho tem como objetivo apresentar um levantamento das noções de tradição e de
ruptura presentes na obra Crônica de uma morte anunciada (1981), de Gabriel García Márquez.
O filólogo soviético Mikhail Bakhtin (2002) afirma que o texto literário é um fenômeno
pluriestilístico, plurilingüe e plurivocal, que recria no seu conteúdo os enunciados do cotidiano,
apresenta diversas vozes sociais e que não existe sem inserir-se no tempo e no espaço (p. 73). Em
outras palavras, para compor um texto literário (mais especificamente o romance), seu autor utiliza,
de maneira estilizada, diversas formas de narrativa, diversos gêneros (p. 74). Ao mesmo tempo, ao dar
voz aos vários universos sociais que recria em seu texto, o autor irá apresentar também a linguagem
característica de cada um destes grupos.
Considerando que as obras de Gabriel García Márquez giram em torno de cidades e
personagens característicos de sua Colômbia natal (Macondo e o Cel. Aureliano Buendía são temas
recorrentes de sua obra), veremos como Crônica de uma morte anunciada se enquadra nas
características apresentadas por Bakhtin.
O texto em questão é um romance que conta a história de um casamento mal logrado, em que a
noiva é devolvida na noite de núpcias por não ser mais virgem e a partir daí inicia-se o processo de
cobrança do sangre do acusado para limpar a honra da noiva.
O romance é apresentado em forma de crônica, onde o narrador decide recobrar a história do
assassinato de Santiago Nazar, que ocorre na infância do narrador, e para tal este passa a conversar
com várias pessoas que tiveram algum tipo de participação no evento, para a partir destes relatos
escrever uma crônica.
Podemos ver que, no texto, é possível encontrar vários tipos de crônica. Em primeiro lugar,
temos a crônica como narração histórica ou registro de fatos comuns, ou seja, o papel do romance
como um todo, a crônica anunciada no título. Em segundo lugar, temos crônica como um texto
jornalístico, que é a proposta primeira do narrador, escrever um texto sobre a morte de Santiago
Nazar. Por último, temos crônica como uma narração de fatos policiais, a crônica policial, realizada
pelo juiz no momento da morte do personagem principal e retomada pelo narrador no momento em
que este resolve reconstruir o caso. Sendo assim, ao constatar os vários tipos de crônica, que formam
gêneros bem definidos, inseridos no texto de García Márquez, podemos ver o fenômeno do
pluriestilismo, descrito por Bakhtin.
Ao propor a escrita de uma crônica, o narrador dá voz a vários personagens diferentes: membros
das famílias envolvidas, amigos, pessoas com quem Santiago Nazar convivia, como os comerciantes
próximos, e representantes de instituições da sociedade, como o padre, o coronel e o juiz. Ao dar voz
ativa a estes personagens, García Márquez evidencia em sua escrita que o romance é um fenômeno
plurivocal.
Ao mesmo tempo, ao dar voz a personagens que representam grupos diferentes da sociedade, o
autor traz para o texto o universo que estes grupos representam, isto é, o padre representa todo o
universo da Igreja, o coronel, o poder de polícia e a autoridade arbitrária, entre outros. Para dar voz e
recriar estes mundos, García Márquez utiliza a linguagem características destes grupos, o que
evidencia o fenômeno do plurilingüismo.
Em relação à inserção temporal, vemos dois tempos representados. O primeiro é o tempo do
narrador que, anos depois do evento, tenta recriá-lo através dos depois que ouve. O segundo é o
momento do assassinato, que ainda é tão vivo para as pessoas que o presenciaram que é apresentado
no texto de maneira atual, como se estivesse acontecendo no agora, nos dias atuais.
O narrador do relato ressalta que, em termos espaciais, o lugar parou no tempo, ficou esquecido
no passado, no momento do assassinato. O fato que leva a sociedade de Crônica de uma morte
anunciada se chocar e parar no tempo é justamente o embate entre a tradição e a ruptura, que fica
evidente na análise das diversas vozes, que irão evidenciar sua posição na sociedade.
Ao longo do texto, encontramos várias marcas da tradição. A mais evidente é a questão do

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casamento por conveniência:

“Era o filho único de um casamento de conveniência que não teve um único instante de
felicidade, mas parecia feliz com o pai até que este morreu de repente, três anos antes e
continuou parecendo feliz com a mãe até a segunda-feira de sua desgraça.” (p. 14)

Como podemos ver, o casamento dos pais de Santiago era de conveniência, assim como
também era o de Ângela (a noiva devolvida), e o do próprio Santiago, o que evidencia que esta era
uma prática comum na sociedade representada no texto.
O fragmento citado evidencia também outra marca, que é a preocupação com as aparências. A
mãe de Santiago Nazar aparentou felicidade ao longo de toda a sua vida, e as amigas de Ângela a
incentivam a aparentar pureza, defendendo que as aparências importavam mais que a realidade:

“Estava tão aturdida que resolveu contar a verdade à mãe para se livrar daquele
martírio, quando suas duas únicas confidentes, (...) dissuadiram-na de sua boa intenção.” (p.
57)

No entanto, a marca da tradição mais importante, que irá se tornar o fio condutor do relato é a
questão da honra. A devolução da noiva desencadeia o processo da cobrança do sangue do acusado,
que irá limpar a honra da noiva e o nome da família.
Ao mesmo tempo, encontramos também marcas de ruptura com as tradições vigentes, das quais
destacamos, em primeiro lugar, o desprezo pelas questões religiosas. A mãe de Santiago não se
importava com a visita do Bispo, enquanto Santiago se entusiasmava, mas não por motivos religiosos:

“- Nem sequer descerá do navio – disse-lhe – Dará uma bênção de obrigação, com
sempre, e voltará pelo mesmo caminho. Odeia este povoado.
Santiago Nazar sabia que era verdade, mas os fastos da Igreja provocavam nele uma
irresistível fascinação. ‘É como o cinema’, me dissera certa vez.” (p. 16)

Outra marca de ruptura é o não seguimento dos costumes. Ângela rompe com a idéia da
castidade antes do casamento e logo após, também rompe com a idéia da aparência, ao não aceitar
aparentar pureza na noite de núpcias.
Por último, ressaltamos também o posicionamento do narrador, que decide escrever a crônica
para ressaltar a “índole hipócrita” daquela sociedade (p. 149).
Além de encontrar estas marcas ao longo do texto, podemos encontrá-las também, de maneira
explícita, nas falas dos personagens, como veremos nos exemplos a continuação, a idéia da defesa da
tradição.
A mãe de Ângela deixa claro sua opinião em relação ao papel da mulher no casamento:

“São perfeitas, ouvia-a dizer com freqüência. Qualquer homem será feliz com elas,
porque foram criadas para sofrer.” (p. 48)

Em outra ocasião, defende o casamento de conveniência, ainda que seja sem amor:

“Ângela Vicário mal se atreveu a insinuar o inconveniente da falta de amor, porque a mãe
o demoliu com uma única frase:
- O amor também se aprende”. (p. 53)

A idéia da cobrança do sangue para lavar a honra, o que justificaria qualquer ato, até um
assassinato, transparece no diálogo entre o padre e os irmãos de Ângela:

“- Nós os matamos conscientes – disse Pedro Vicário – mas somos inocentes.


- Talvez diante de Deus – disse o padre Amador.
- Diante de Deus e dos homens – disse Pablo Vicário – Foi uma questão de honra”. (p.
74)

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A mesma idéia é defendida pela sogra de Pablo Vicário, que ao saber das intenções de seu
genro, afirma:

“- A honra não espera”. (p. 93)

Sua filha, noiva de Pablo, apoia sem titubear a atitude do noivo:

“Eu sabia o que iam fazer, disse-me, e não só estava de acordo, mas nunca teria me
casado com ele se não agisse como homem”. (p. 93)

Por fim, vemos o descaso do Coronel Lázaro Aponte, responsável pela manutenção da ordem da
cidade, mas que se omite nesta situação, tratando-a de maneira irônica e preocupando-se apenas com
as aparências:

“- Meu Deus – zombou – que é que o bispo vai pensar!” (p. 84)

Paralelamente, também é possível ressaltar, nas falas dos personagens, idéias que insinuam uma
ruptura com as tradições.
Ângela deixa claro em várias ocasiões que não estava contente com o casamento por
conveniência, como podemos ver nos dois fragmentos a seguir:

“Era Ângela Vicário que não queria casar com ele. Parecia muito homem para mim”. (p.
52)

“Ela me confessou que conseguira impressioná-la, mas por razões contrárias ao amor. Eu
detestava os homens arrogantes, e nunca tinha visto um com tanta vaidade, disse-me”. (p. 45)

Ao mesmo tempo, Ângela demonstra seu desprezo pela presença do Bispo em seu casamento, o
que demonstra que além de romper com as convenções que envolvem o casamento, ela também
rompia com as convenções religiosas:

“A verdade, disse-me, é que eu não queria a bênção de um homem que só cortava as


cristas para a sopa e jogava o resto do galo no lixo”. (p. 59)

A personagem também rompe com as aparências ao se recusar a aparentar pureza na noite de


núpcias:

“Não fiz nada do que me disseram, falou-me, porque quanto mais pensava naquilo, mas
compreendia que era uma sujeira que não se devia fazer com ninguém, muito menos com o
pobre homem que teve a má sorte de se casar comigo”. (p. 134)

Ao ser devolvida por seu noivo, não se sente arrependida, culpada ou envergonhada, e sim
aliviada:

“Não estava mais assustada, ela me disse. Pelo contrário: sentia como se, afinal, tivesse
tirado de cima de mim a angústia da morte, e só queria que tudo terminasse logo para me
deitar e dormir”. (p. 71)

O médico da família de Santiago Nazar, Dr. Dionísio Iguarán, ao saber das atrocidades
cometidas pelo Padre Amador no momento da autópsia do personagem, faz uma afirmação repleta de
preconceito em relação ao representante da Igreja, o que demonstra que o médico não era seguir da
religião vigente:

“Tinha de ser padre para ser tão burro”: (p. 112)

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Por fim, ressaltamos o comentário do juiz investigador do assassinato que, em outras palavras,
afirma que todo o acontecimento (devolução da noiva, cobrança do sangue) na verdade não passava
de preconceito:

“Dai-me um preconceito e moverei o mundo”. (p. 148)

Como podemos ver, a tensão entre a tradição e a ruptura está presente em todo o texto, mas o
encontro entre elas está no evento da devolução de Ângela. Ao não seguir o conceito religioso da
castidade, ela rompe com a tradição. Ao cobrar sua honra, seus irmãos procedem na sua manutenção.
A partir daí o história toma dois caminhos diferentes. O escândalo da devolução representa não
uma condenação e sim a libertação de Ângela, que passa a ser “senhora de si”, não preocupando-se
mais com nenhuma tradição, mas representa a desgraça de Santiago, que é assassinado para que as
tradições possam ser mantidas.
O fato mais interessante, no entanto, é que desde as primeiras páginas se sabe que Santiago irá
morrer, sendo que o narrador adverte que seus principais agentes, os irmãos de Ângela, não querem
matá-lo, ainda que a tradição os obrigue a fazê-lo, por isso anunciam ao máximo suas intenções, para
que sejam impedidos. Por outro lado, toda a cidade, desejando impedir o assassinato, não consegue
fazê-lo e Santiago é morto, perpetuando a tradição.
Por ultimo, ressaltamos quem rompe com as tradições e quem as mantém. Pelos exemplos
citados, vimos que tanto Santiago quanto sua mãe não mantinham as tradições religiosas, o que nos
leva a afirmar que, talvez, sua posição social (a família era a mais importante da cidade), lhes dava
uma sensação de poder que ultrapassava a dependência da crença. Já Ângela rompe com a religião
(desprezo pela figura do Bispo), além de romper com as convenções duas vezes, primeiro ao romper
com a idéia da castidade e depois ao não aceitar manter as aparências.
Os maiores interessados em manter a tradição são os familiares de Ângela, na figura de seus
irmãos. No entanto, apesar da noção do dever que deveriam cumprir, vimos que estes gostariam de ser
impedidos, o que também seria um ruptura com a tradição.
Deste modo, concluímos que, na sociedade retratada por Gabriel García Márquez em Crônica
de uma morte anunciada, as tradições têm um peso maior e prevalecem, mas no entanto, a idéia da
ruptura existe, é muito próxima e transparece muitas vezes em quem interessa manter a tradição.

REFERÊNCIAS:

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo:


Hucitec/Annablume, 2002.

GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Crônica de uma morte anunciada. Rio de Janeiro: Record, 1981.

RAQUEL DA SILVA ORTEGA

Mestre em Letras Neolatinas (Língua Espanhola e Literaturas Hispânicas). UFRJ, 2004.

Professora de Letras Hispânicas. Universidade Estácio de Sá (UNESA).

Professora de Língua Espanhola. Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC).

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