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Volume I – Números
8 de Julho de 2014
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Conteúdo
I Números Naturais 19
1 Números Naturais: De Onde Vêm? 21
1.1 Contagem e Número Natural . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
1.2 Sistemas de Numeração . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
1.3 Número × Representação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
II Números Inteiros 93
4 Números Inteiros: De Onde Vêm? 95
4.1 Quantidades com Orientação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95
4.2 A Cidadania Matemática de Números Absurdos, Falsos, Surdos, Irracionais, Impossı́veis,
Imaginários, . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
4.3 Representação Geométrica dos Números Negativos e dos Números Imaginários . . . . . 98
4.4 A Representação de Gauss . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
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4 CONTEÚDO
Prezado colega,
Esta coleção, produzida no âmbito do Projeto Klein para o Século XXI (ICMI/ IMU), tem como tema
central a abordagem de conceitos no ensino básico, tomando como base a fundamentação matemática.
Serão discutidos aspectos centrais relativos ao ensino desses conceitos, tais como seleção e organização
de conteúdos, opções metodológicas de abordagem e suas possı́veis consequências na sala de aula, no
dia a dia do professor. Pretendemos que estes volumes sejam, de fato, companheiros para o professor, e
contribuam efetivamente com a prática de sala de aula. Embora esta coleção seja direcionada priorita-
riamente para professores de matemática do ensino médio brasileiro, sua leitura é recomendada também
a professores em geral que ensinam matemática, a alunos de licenciatura, a alunos pós-graduações em
ensino de matemática, a coordenadores de matemática das escolas.
Nesta apresentação, você encontrará o contexto de produção da coleção, os pressupostos sobre o
ensino de matemática que sustentam sua concepção, seus objetivos gerais, sua estrutura, bem como os
objetivos especı́ficos para cada um dos volumes que integram a coleção.
É notável que os desenvolvimentos modernos passaram pela escola sem causar o mı́nimo efeito
na instrução [ . . . ] A razão é que a instrução e a marcha constante da investigação matemática
perderam todo contato entre si após o inı́cio do século 19.
(Felix Klein)
1
Na versão original, Elementarmathematik vom höheren Standpunkte aus. O termo “höheren” do tı́tulo original em
alemão foi convertido para “advanced” (avançado) na tradução inglesa da obra, o que é apontado por alguns autores
(e.g. [80, 126]) como um erro de tradução. O termo “höheren” em alemão corresponderia a “higher” (superior) em
inglês, que está mais de acordo com a ideia de Klein sobre a relação entre a matemática elementar e a matemática
superior. O uso da expressão “matemática elementar de um ponto de vista avançado” no tı́tulo da obra sugeriria um
patamar hierarquicamente inferior para a matemática elementar, enquanto que a intenção de Klein teria sido propor
um olhar para a matemática elementar e para a matemática superior de um mesmo ponto de vista – como aspectos
igualmente importantes da matemática.
2
Embora os dois primeiros volumes tenham sido traduzidos para diversas outras lı́nguas, o terceiro jamais foi editado
em outro idioma senão o alemão. O volume I teve recentemente sua primeira edição em português, publicada pela
Sociedade Portuguesa de matemática em três partes [83, 84, 85].
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8 CONTEÚDO
Com tal constatação, Felix Klein denuncia uma dupla descontinuidade envolvida com essa ruptura:
entre a matemática básica aprendida na escola e a matemática superior dos cursos universitários de
formação de professores; e entre a matemática dos cursos de formação de professores e a matemática
a ser ensinada na escola. Segundo o autor, por um lado, durante a formação inicial dos professores,
há pouca identificação da matemática estudada com aquela anteriormente aprendida por eles quando
alunos da escola básica; e, por outro lado, durante sua vida profissional, há pouca identificação entre a
matemática praticada em sala e aquela anteriormente estudada nos cursos de formação. Os problemas
identificados por Klein há mais de um século ainda se revelam atuais, e tem paralelos com questões
apontadas pela pesquisa recente em educação matemática (e.g. [11, 130]).
Alguns autores [80, 126] associam o conceito de elementar no sentido de Felix Klein com a ideia
do Iluminismo sobre como tornar uma ciência ensinável, ou como difundir o saber na sociedade. Jean
d’Alembert (1717-1783) conceitua esta ideia na importante obra Encyclopédie (1755):
Em geral, chamam-se elementos de um todo as partes primitivas e originais das quais se pode
supor que o todo é formado.
(Jean d’Alembert)
Neste sentido, elementarizar significa reconstruir as partes nucleares que constituem os germes com
base nos quais toda a ciência superior se sustenta. Schubring [126] descreve as ideias de Klein para
a elementarização da ciência como um processo de translação histórica, por meio do qual as partes
superiores da ciência são gradativamente melhor compreendidas. Desta forma, os elementos que as cons-
tituem vão sendo identificados e, em consequência, a capacidade de esclarecer e difundir seus conceitos
aumenta. Assim, para Klein, não há diferença de qualidade entre as partes elementares e as
superiores – estas são facetas de igual importância para a matemática como ciência.
Ainda partindo das ideias iluministas, para Klein o papel da escola não se restringe em receber o
conhecimento cientı́fico pronto, produzido na academia, e difundi-lo. A escola tem um papel tão
importante quanto a academia na própria produção do conhecimento: criar condições para que
o novo conhecimento superior seja estabelecido. Segundo o autor, tal papel não é uma consequência
da matemática superior por si só, mas uma missão independente da escola, determinada segundo suas
próprias categorias. Esta missão sugere a necessidade de um meta-saber do professor, isto é, um saber
sobre o saber (ver [126]): o professor de matemática deve conhecer não apenas os conceitos e
teorias a ensinar, como também compreender a própria natureza desse conhecimento.
Em 2008 foi celebrado o centenário da publicação original de matemática Elementar de um Ponto
de Vista Superior e também da fundação da ICMI (Comissão Internacional de Instrução Matemática) –
cujo primeiro presidente foi Felix Klein. Com inspiração nas ideias de Klein, foi estabelecido naquele ano,
em colaboração entre a ICMI e a IMU (União Matemática Internacional), o Projeto Klein para o Século
XXI, tendo como princı́pio norteador estabelecer relações entre uma visão abrangente da matemática
acadêmica e os conteúdos e as abordagens da escola e dos currı́culos matemáticos de graduação. O
Projeto Klein visa à produção de recursos com este espı́rito, em diversas lı́nguas e em várias mı́dias,
acessı́veis a qualquer um com interesse em matemática, mais especialmente àqueles responsáveis pelo
ensino da disciplina nos anos finais da escola secundária. Assim, segundo Bill Barton, presidente da
ICMI entre 2009 e 2012, o Projeto Klein deverá produzir recursos para oferecer estrutura, amplidão,
organicidade, vitalidade, aplicabilidade, estética e valores da matemática – de forma a estimular os pro-
fessores tanto a cultivar sua própria apreciação pela disciplina, quanto a expor sua vivacidade e beleza
aos estudantes (Barton [13]). Barton [14, p.4] descreve da seguinte forma a filosofia do Projeto Klein:
O aspecto primordial da filosofia do Projeto Klein é o que se tem chamado de espı́rito de Felix
Klein. Isto se refere, por um lado, à concepção geral de que a matemática é um organismo
vivo, em crescimento, interconectado, profundamente relacionado com suas aplicações e com
CONTEÚDO 9
Quando refletimos sobre modelos dos cursos de formação de professores, podemos verificar que a
dupla descontinuidade identificada por Felix Klein não é um fenômeno localizado, nem no
seu tempo nem no seu paı́s. Na década de 1980, Lee Shulman [130], em seu trabalho – que é
hoje uma importante referência para a pesquisa em formação de professores – apresenta a noção de
saber pedagógico de conteúdo3 , que vai além do saber de conteúdo por si só e inclui todos os aspectos
e relações do conteúdo que o fazem ensinável, isto é, corresponde ao saber sobre o conteúdo para o
ensino. Nesse trabalho, o autor critica a separação estrita entre o conhecimento de conteúdo disciplinar
e a pedagogia, e a consequente identificação da competência para o ensino como apenas conhecimento
sobre pedagogia [130, pp.7-8]. O autor identifica, a partir desta separação, um paradigma perdido.
Assim, como Klein, Shulman enfatiza a natureza particular do conhecimento de matemática ne-
cessário para o professor: o meta-saber, nos termos de Klein, e o saber pedagógico de conteúdo, nos
termos de Shulman. Além disso, Klein e Shulman referem-se a rupturas de naturezas diferentes: a
primeira dá-se entre a matemática acadêmica e a matemática escolar; enquanto a segunda, entre a
competência para o ensino e o conhecimento de conteúdo disciplinar. Entretanto, ambas têm em co-
mum consequências importantes para os modelos de formação de professores e, portanto, para a prática
de sala de aula – ou para a dupla descontinuidade, nos termos de Klein. Estas consequências se fazem
presentes até os dias de hoje, não só no Brasil. Diversos outros autores (e.g. [11, 93, ?]) têm apontado
para o fato de que muitos cursos de formação de professores falham em construir conexões com a
futura prática docente. Em consequência, o principal modelo para a prática de sala de aula seguido
por muitos professores baseia-se nas lembranças daquilo que aprenderam e do estilo de seus professores
quando eles próprios eram alunos da escola – como se o seu curso de formação (a Licenciatura, no caso
do Brasil) houvesse desempenhado um papel inócuo.
É na reconciliação dessas rupturas que este texto pretende atuar. Por meio da discussão
sobre a abordagem dos conceitos na escola, do ponto de vista de sua fundamentação matemática,
visamos ao resgate dos laços entre a matemática como área acadêmica de conhecimento e a matemá-
tica como objeto de ensino, e da indissociabilidade entre o conhecimento de conteúdo de matemática
e a competência para o ensino.
à preparação dos estudantes para os desafios da sociedade como estes se apresentam hoje, mas deve
contemplar, além disso, a construção da bagagem cultural indispensável para prepará-los para enfrentar,
por si mesmos, os desafios que possam vir a se configurar no futuro. Neste sentido, o acesso à produção
cientı́fica e cultural da humanidade é parte constituinte da formação para o exercı́cio da cidadania.
A importância da contextualização de conteúdos em relação a situações da vida cotidiana e a
aplicações compatı́veis com os grupos sociais em que os alunos se inserem não deve ser desmerecida.
Por outro lado, estes não podem ser tomadas como critério único para a seleção de conteúdos e para a
escolha de metodologias de ensino. Esse critério é às vezes deturpado, ao ponto extremo de se criarem
situações absolutamente artificiais apenas para justificar a abordagem (supostamente) contextualizada
de um conceito. Tais situações podem ter o efeito exatamente oposto ao desejado: tornar os conceitos
matemáticos ainda mais artificiais e mais distantes da realidade do aluno. Além disso, devemos lembrar
que a aplicabilidade da matemática a tantas áreas distintas do conhecimento decorre justamente de sua
natureza abstrata e do fato de ela não ter amarras, a priori, com nenhuma dessas áreas.
Consideremos por exemplo, a inclusão de números complexos no ensino médio. Dificilmente os
alunos precisarão deste conceito em suas vidas diárias (a menos, é claro, daqueles que seguirão futu-
ramente carreiras na área de ciências exatas). Então, em que sentido aprender números complexos no
ensino médio pode ser interessante? Muitos textos didáticos introduzem números complexos afirmando
que sua origem histórica está na impossibilidade de resolver a equação x2 + 1 = 0 em R. A partir
daı́, as representações, operações e propriedades dos números complexos são definidas e manuseadas
de forma rotineira – quase como se sua criação se devesse a um mero “capricho” dos matemáticos
em inventar uma extensão do corpo dos reais. Na verdade, esta afirmação histórica está incorreta.
Os números complexos surgiram inicialmente no século XVI, apenas como sı́mbolos cuja manipulação
era necessária para obter soluções reais de equações polinomiais de terceiro e quarto graus (veja, por
exemplo [79, 118]). Neste ponto, as soluções complexas não reais (assim como as negativas) eram
desconsideradas, pois os complexos não reais e os negativos ainda não eram considerados números.
Os complexos só adquiriram o legı́timo estatuto de números a partir da representação geométrica no
plano proposta por Jean-Robert Argand no inı́cio do século XIX. Somente muitos anos mais tarde foram
descobertas as aplicações de números complexos em outras áreas do conhecimento, especialmente na
fı́sica em diversos campos da engenharia.
Nesta perspectiva, a presença de equações cúbicas e de números complexos nos currı́culos de ma-
temática pode se justificar pelas conexões relevantes entre conceitos que podem ser estabelecidas a
partir de sua abordagem, que possibilitam aos estudantes uma visão da matemática como um campo
orgânico e em constante desenvolvimento – e não pelo fato de que tais conhecimentos possam vir a ser
utilitariamente aplicados futuramente na vida cotidiana dos alunos. Esse exemplo ilustra outra forma
de contextualização de conceitos: a contextualização em relação à própria matemática. Esta forma de
contextualização inclui o papel dos conceitos matemáticos em um dado campo teórico, sua articulação
com outros conceitos nesse campo e com outras teorias, a adequação de representações e ferramentas
teóricas para um dado problema ou aplicação, os problemas envolvidos na sua gênese e desenvolvimento
histórico e aqueles que mantêm sua importância na matemática contemporânea. Em suma, o acesso
ao patrimônio cientı́fico e cultural da humanidade, considerado como um objetivo essencial
para o ensino básico, exige a apresentação da própria estrutura da matemática, como um
campo de conhecimento orgânico, vivo e em permanente desenvolvimento.
Esta perspectiva demanda do professor uma visão da matemática escolar que seja ao mesmo tempo
profunda e distanciada. Com o emprego do termo “visão distanciada” não temos a intenção de defender
um afastamento dos conteúdos da matemática escolar de suas possı́veis aplicações e contextualizações
na vida cotidiana, mas sim de apontar para a necessidade enxergar esses conteúdos de um ponto
de vista superior (como defende Klein), que ultrapasse a compreensão pontual e isolada,
e permita localizá-los no panorama abrangente da matemática como campo orgânico de
conhecimento, contemplando as articulações entre diferentes conceitos e teorias, suas complexidades
CONTEÚDO 11
epistemológicas, sua fundamentação e evolução histórica, bem como seus desenvolvimentos recentes.
Esta visão é um aspecto do meta-saber do professor: do saber sobre o próprio saber. Em particular, tal
distanciamento é indispensável para a construção da autonomia do professor na prática docente, que
exige segurança em relação ao conhecimento do conteúdo e liberdade de pensamento, necessárias para
formulação e escolha consciente de abordagens, metodologias e recursos adequados, ao mesmo tempo,
à natureza de cada conceito e às especificidades de cada público discente.
Um aspecto especialmente importante dessa visão distanciada é a compreensão da matemática como
uma ciência dedutiva e não experimental, isto é, cujos fatos só podem ser estabelecidos por meio de
argumentação lógica e não pela verificação de exemplos. A intuição é uma componente indispensável da
criação matemática e seu desenvolvimento é um objetivo importante do ensino básico. Outro objetivo
igualmente importante é o esclarecimento das limitações da intuição e da consequente necessidade do
método dedutivo. O pensamento indutivo, isto é, o estabelecimento de fatos matemáticos pela simples
verificação de exemplos, tem sido ampla e perigosamente utilizado no ensino básico. Suponhamos,
por exemplo, que queiramos apresentar aos alunos o fato (verdadeiro) de que a soma de números
pares é um número par. A justificativa deste fato pela simples verificação de alguns exemplos consiste
em argumento matematicamente errado, embora a conclusão esteja correta. Tal abordagem pode ter
consequências danosas para a aprendizagem dos estudantes, pois o mesmo tipo de argumento indutivo
pode levá-los a concluir fatos matemáticos que não são verdadeiros. Por exemplo, é possı́vel dar vários
exemplos para o fato (falso) de que “se k é divisor de n2 então k é divisor de n”. É claro que no ensino
básico nem sempre é possı́vel dar argumentos com o mesmo grau de rigor da matemática superior.
Entretanto, deve-se sempre buscar por argumentos dedutivos compatı́veis com cada ano do ensino bá-
sico. No caso da soma de números pares, esses argumentos devem chamar atenção para a definição
de número par como múltiplo de 2. Assim, apresentar aos alunos o método dedutivo da matemática,
de forma gradual e compatı́vel com cada nı́vel escolar, deve ser um objetivo maior que convencê-los da
veracidade de um fato matemático particular.
De forma geral, a abordagem de matemática no ensino básico tem sido orientada pela apresentação
de soluções e respostas para questões. Frequentemente esse compromisso com a apresentação de
soluções envolve a formulação de “atalhos” para as respostas, por meio de regras e “procedimentos
práticos”, que procuram “poupar” os estudantes das complexidades teóricas intrı́nsecas aos conceitos.
A perspectiva para o ensino com a qual este texto está alinhado está mais associada com propiciar o
contato com os problemas que movem a matemática – que impulsionaram a gênese de suas
ideias e que a caracterizam como um campo orgânico de conhecimento – do que com esgotar
suas respostas. São justamente esses problemas que têm sido frequentemente evitados ou suprimidos
no ensino de matemática, quando os conceitos matemáticos são artificialmente naturalizados, isto é,
quando sua natureza e necessidade são assumidas como dadas.
Por exemplo, frequentemente em livros didáticos, a introdução dos números irracionais é feita por
meio da representação decimal. O fato de que os números racionais possuem representação decimal
finita ou periódica é suposto como sabido, os irracionais são apresentados como os números com repre-
sentação infinita e não periódica, e os reais como sendo “todos” os números (racionais e irracionais).
Em primeiro lugar, do ponto de vista matemático, essa abordagem é logicamente inconsistente, pois
incorre em uma definição circular: como os reais são “todos” os números, os irracionais são os números
reais que não são racionais e os reais são os números que são racionais ou irracionais. Assim, a de-
finição dos reais pressupõe a sua própria existência. Um segundo problema dessa abordagem está no
fato de que, em geral, ela não é precedida de qualquer justificativa para a necessidade matemática de
expandir-se o conjunto dos racionais. Quais são os problemas matemáticos dos quais os números racio-
nais não dão conta, e que fazem necessária a criação de um novo conceito de número? A evitação desta
pergunta é uma naturalização artificial do conceito de número real, na medida em que sua existência
não é problematizada, mas assumida como um fato dado.
12 CONTEÚDO
A discussão conduzida neste texto não diz respeito a que estratégia é mais ou menos
“eficiente” para a aprendizagem de matemática, mas a um posicionamento sobre os próprios
objetivos do ensino de matemática. É importante alertar que nossa intenção não é propor que o
caminho, por vezes tortuoso, do desenvolvimento histórico dos conceitos matemáticos seja retrilhado
em sala de aula do ensino básico, e sim que reflexões sobre o ambiente problemático da gênese desses
conceitos e suas relações com conhecimento matemático de fronteira sirvam de inspiração para o pro-
fessor na formulação de abordagens e no convencimento da legitimidade dos conteúdos. Ou seja, tais
reflexões podem nem mesmo se fazer explicitamente perceptı́veis na sala de aula, nem serem visı́veis
aos olhos dos alunos, mas devem estar presentes como pano de fundo na reflexão dos professores.
Consideremos o exemplo de introduzir no ensino médio potências de expoente irracional. Não é
1
difı́cil atribuir significado para: 23 , 2−3 , 2 3 . Porém, é consideravelmente mais delicado explicar o
que significa 2 π . De fato, a definição de potenciação para expoentes naturais se estabelece a partir do
produto de parcelas repetidas. Suas ampliações para expoentes inteiros e, posteriormente, para racionais
baseiam-se na preservação de propriedades algébricas. Já a ampliação para expoentes reais quaisquer
envolve necessariamente a noção de continuidade, que não pode ser abordada no ensino médio com o
mesmo grau de formalismo com que é tratada no ensino superior. Isto não significa, entretanto, que
a questão não deva ser abordada no ensino médio. Tampouco se trata de naturalizá-la artificialmente,
procurando “esconder” dos alunos as dificuldades teóricas envolvidas. Muito pelo contrário, trata-se
justamente de mover o foco da abordagem para essas dificuldades, em lugar da resposta em si. Muitos
podem ser de opinião que esta discussão não é compatı́vel com o ensino médio, sendo ao mesmo tempo
favoráveis à abordagem da função real de variável real dada por y = 2x de domı́nio R neste nı́vel de
ensino, o que constitui uma incoerência.
A problematização, ou desnaturalização, de conceitos matemáticos tem o potencial de propiciar aos
alunos a verdadeira experiência de criação matemática – mesmo sem que para isso seja necessário seguir
os padrões de rigor da matemática superior. Tal experiência constitui os alicerces para o desenvolvimento
posterior do pensamento do pensamento matemático dedutivo. Portanto, para a formação do professor,
este é um componente central da recuperação do paradigma perdido identificado por Shulman, ou da
dupla descontinuidade denunciada por Klein. É com este espı́rito que esta coleção é concebida.
Objetivos gerais: o que você encontrará e o que não encontrará neste livro
Antes de iniciar nossa jornada, cabem algumas observações. O tema central deste texto é a abordagem
de conceitos no ensino médio, com base em sua fundamentação matemática. Entretanto, assim como
o trabalho de Felix Klein, esta coleção não pretende servir como um programa de ensino, e sim como
um guia de apoio – ou, melhor dizendo, um companheiro para o professor de matemática. Visando
reiterar as intenções deste texto, fazemos três alertas importantes sobre esta coleção:
1. Você não encontrará neste texto instruções expressas para a abordagem, modelos prontos de aula,
ou listas de exercı́cios completas para aplicação direta em sala de aula. Este não é um livro
texto para a sala de aula do ensino médio.
2. Por outro lado, você também não encontrará neste texto todos os detalhes das construções
teóricas dos conceitos tratados. As demonstrações dos teoremas só serão incluı́das no texto nos
casos em que estas contiverem aspectos relevantes para a discussão de abordagens na forma
descrita a seguir; caso contrário, indicaremos outras referências de leitura. Este não é um livro
de teoria matemática.
3. Finalmente, você não encontrará neste texto discussões sobre aspectos psicológicos, sócio-antro-
pológicos ou filosóficos da educação em geral. Tais conhecimentos são de fundamental importân-
cia para a formação do professor de matemática em qualquer nı́vel, e você não terá dificuldades em
encontrar textos de qualidade sobre esses temas. Este não é um livro de teoria pedagógica.
CONTEÚDO 13
• principais conteúdos que devem ser abordados, aspectos destes conteúdos que devem ser enfati-
zados e que amparem sua seleção e organização pedagógica;
• erros e concepções equivocadas recorrentes, suas possı́veis causas;
• abordagens adequadas e abordagens que devem ser evitadas.
Esperamos que a discussão sobre os aspectos acima possa servir ao professor (nas palavras de Bill
Barton) como um estı́mulo para extrair do campo da matemática inspiração para o ensino. A opção
em orientar o texto desta maneira deve-se principalmente ao fato de acreditarmos não haver respostas
absolutas para questões do tipo: Qual é a melhor forma de ensinar certo conteúdo de matemática
em dado ano do ensino básico? Responder perguntas como esta requer o conhecimento de muitos
fatores especı́ficos de cada contexto de sala de aula, com os quais ninguém tem mais familiaridade que
o próprio professor. Assim, o que acreditamos ser importante fazer é construir subsı́dios teóricos para
você, professor, lidar com essas respostas.
Esta organização em seções não tem por objetivo tratar de forma estanque os diferentes aspectos
dos conteúdos, relacionados com sua fundamentação matemática e seu ensino. Ao contrário, visa
justamente apresentar de forma mais evidente as articulações entre tais aspectos, alinhando-se com o
espı́rito do Projeto Klein de destacar as conexões entre matemática elementar e superior. Embora os
conteúdos das três seções de cada capı́tulo estejam estruturados de maneira articulada, e a leitura mais
recomendada seja aquela que segue a ordem dessas seções, esta estrutura não inviabiliza uma leitura
do livro em outra ordem, dependendo do interesse do leitor.
Objetivando as reflexões propostas, usaremos elementos gráficos especı́ficos como destaques espe-
ciais ao longo do texto:
• Para Refletir. Contemplam questões chave para as reflexões sobre os conteúdos tratados no texto,
e que dizem respeito à discussão que está sendo travada ou que serão retomadas no livro. Assim,
estes destaques apontam para dentro do próprio texto.
14 CONTEÚDO
Em particular, os destaques Para Refletir (quando figurarem nas seções Na Escola), assim como
os destaques Na Sala de Aula e Conversando com o Professor (quando figurarem nas seções De Onde
Vêm? ou Aprofundamentos e Desdobramentos), desempenham o papel crucial de apontar articulações
importantes articulações entre as diferentes seções.
Em cada capı́tulo, optamos por fazer um aprofundamento na fundamentação matemática formal
dos conceitos tratados. Esta opção está alinhada com o espı́rito do Projeto Klein, em resgatar os laços
entre matemática elementar e superior. Além disso, as respostas de algumas questões importantes
para o ensino dos conceitos matemáticos estão na reflexão sobre a própria estrutura de sua construção
formal. Assim, ao longo das apresentações dessas fundamentações matemáticas, procuraremos apontar
os vı́nculos com a sala de aula. Entretanto, não faremos todos os passos e demonstrações dos teoremas,
e indicaremos referências bibliográficas em que as construções detalhadas possam ser consultadas.
Cabe observar ainda que nem sempre, ao longo do texto, a exposição dos conteúdos obedecerá
de forma estrita a ordem lógica da estrutura matemática teórica. Discussões envolvendo um tópico
poderão ser antecipadas à sua abordagem especı́fica, em geral com o objetivo de melhor direcionar a
abordagem do conteúdo. No desenvolvimento de cada capı́tulo não nos absteremos de fazer referência,
sempre que necessário, a conteúdos que serão tratados especificamente em capı́tulos seguintes.
Objetivos Especı́ficos para o Volume I –
Números
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16 CONTEÚDO
O conceito de número real encerra pelo menos dois passos de abstração importantes (discutidos a
seguir). A reflexão sobre esses passos apontam as dificuldades do ensino e aprendizagem deste conceito.
• De forma análoga ao caso dos números naturais, os números racionais e reais são usados para
medir grandezas, independente da natureza das mesmas. Desta forma, o mesmo número real 5
serve para medir cinco metros, cinco litros ou cinco quilômetros por hora; porém não é nem os
cinco metros, nem os cinco litros, nem nem os cinco quilômetros por hora. Assim como o conceito
de número natural é uma abstração da contagem, o conceito matemático de número real é
uma abstração que emerge da noção de medida.
• Os números racionais são suficientes para efetuar medições no mundo concreto. Por exemplo,
se usarmos um instrumento fı́sico para medir o perı́metro de uma folha de cartolina circular
com 1 metro de raio, não encontraremos o número π como resposta, e sim uma aproximação
decimal racional do seu valor. Desta forma, verifica-se uma distinção importante entre o problema
empı́rico da medida e problema teórico da medida: o primeiro corresponde a efetuar medições
com instrumentos fı́sicos; enquanto o segundo diz respeito a construir uma teoria matemática
consistente para a medida. Neste sentido, os números racionais dão conta do problema empı́rico
da medida, isto é, podemos dizer o que se faz na prática é sempre contar – medir (no sentido do
problema teórico da medida) é uma abstração matemática. Os números reais são construı́dos
para dar conta do problema teórico da medida. Neste texto, quando falarmos de medida
(salvo menção em contrário), estaremos nos referindo ao problema teórico da medida.
Os números inteiros podem ser pensados a partir da incorporação de uma noção de falta na ideia de
contagem, que corresponde à necessidade de ser registrar “ganhos” e “perdas” em diversas situações,
isto é, situações em que se precisa tanto aumentar quanto diminuir quantidades indefinidamente. Além
disso, os números inteiros e complexos dão conta de complementar estruturas algébricas dos conjuntos
numéricos anteriores. Os inteiros complementam os naturais com os inversos aditivos, tornando a adição
uma operação invertı́vel e fazendo a subtração uma operação de fato, no sentido matemático do termo.
Assim, (Z, +, ·, !) constitui o exemplo mais elementar de anel, isto é, é a menor estrutura algébrica
possı́vel que contém os naturais e em que todos os elementos admitem inversos aditivos. Os inteiros
complementam os reais com as raı́zes de polinômios. Desta forma, (C, +, ·, !) constitui o exemplo mais
elementar de corpo algebricamente completo, isto é, que contém todas as raı́zes de todas as equações
polinomiais, e portanto, todos os polinômios podem ser completamente fatorados. Também no ensino
básico esses conjuntos são apresentados a partir de limitações algébricas dos conjuntos anteriores. Do
ponto de vista histórico, os inteiros e os complexos demoraram a ganhar o estatuto de número, sendo a
princı́pio tratados apenas como sı́mbolos formais necessários para a obtenção de soluções reais positivas
de equações algébricas, que eram eliminados durante a resolução. Os inteiros e os complexos só passa-
ram a ser considerados números quando lhes foram fornecidas interpretações geométricas consistentes
com suas propriedades e operações: associando aos inteiros a noção de orientação e representando os
complexos como pontos no plano.
Desta forma, objetiva-se chegar à construção dos números reais. O papel dos problemas da
contagem e da medida para a construção dos números reais evidencia a importância de se refletir sobre
os demais conjuntos numéricos para discutir a abordagem dos reais no ensino básico. Como estruturas
numéricos, os naturais, inteiros e racionais incorporam aspectos essenciais para a fundamentação do
campo dos reais. Nem sempre tais aspectos são abordados de forma adequada no primeiro e no
segundo segmentos do ensino fundamental, e é importante que o professor que atua no ensino mé-
dio esteja consciente dessas possı́veis falhas de abordagem e de suas possı́veis consequências para
a aprendizagem de números reais no ensino médio. Além disso, muitas das questões relativas ao
próprio ensino de números reais que você enfrentará efetivamente em sala de aula (tais como dúvidas
CONTEÚDO 17
e dificuldades frequentes dos alunos) dependem fortemente de questões mais básicas que envolvem o
ensino de números naturais, inteiros e racionais. Acreditamos ainda que as ideias fundamentais sobre
essas estruturas numéricas sejam (ou devam ser) continuamente revisitadas e aprofundadas ao longo
de todo o ensino básico. Tais revisitações não devem se consistir em meras repetições sucessivas de
conteúdos vistos nos anos anteriores, mas novos olhares progressivos, sob novas perspectivas.
contagem medida
comensuráveis e
comensuráveis
incomensuráveis
orientação
A sequência na qual os diferentes tipos de números são abordados no ensino básico não é a mesma
das inclusões dos conjuntos numéricos sob a perspectiva matemática, nem a mesma do seu desen-
volvimento histórico5 . Por exemplo, no ensino básico as frações são introduzidas antes dos inteiros
negativos, enquanto na sequência matemática das inclusões temos Z ⊂ Q.
Optamos por estruturar os capı́tulos deste livro seguindo a ordem das inclusões dos conjuntos. É
importante destacar que isso não significa que defendamos que a abordagem no ensino básico deva
obedecer estritamente tal sequenciação. Assim percorreremos, principiando com os números naturais,
uma estrada que nos levará aos números reais. Nessa caminhada, ampliaremos sucessivamente as
estruturas numéricos:
N ⊂ Z ⊂ Q ⊂ R.
Em cada passo, chamaremos atenção para as propriedades que são preservadas nessas ampliações,
para as que deixam de valer e para os recursos e possibilidades que cada nova ampliação nos proporciona.
É importante observar que, ao falarmos de ampliação neste contexto, não nos referimos apenas à
inclusão de conjuntos, mas também à extensão dos conjuntos e as estruturas algébrica e de ordem
associadas. Por exemplo, ao falarmos do corpo ordenado dos números reais não nos referimos aos
5
A ordem da aprendizagem de números no ensino básico está mais próxima da ordem de seu desenvolvimento histórico,
embora tampouco a reflita exatamente. Para maiores detalhes, veja por exemplo [118].
18 CONTEÚDO
números reais como conjunto apenas, mas à estrutura formada pelo conjunto dos números reais, munido
de duas operações algébricas (soma e produto) e de uma relação de ordem. Para salientar esta estrutura
completa, recorremos à notação usualmente empregada:
(R, +, ·, !) .
Evidentemente, não é de forma alguma recomendável empregar essa nomenclatura, ou a notação
acima na sala de aula do ensino básico. Entretanto, esse aspecto conceitual matemático tem relações
importantes com o ensino. Na escola, em geral, primeiro os alunos devem aprender a ampliar a ideia de
número em si (por exemplo, dos naturais para os inteiros). Em seguida, deverão estender a estrutura
das operações e da ordem do conjunto anterior para o novo, discutindo quais propriedades continuam
valendo e quais deixam de ser verdadeiras. Cada um desses passos é um objetivo pedagógico em si,
com suas especificidades e dificuldades peculiares.
Finalmente, salientamos que este percurso será perpassado por diferentes ideias de infinito. É
provavelmente ao lidar com números que os estudantes têm o contato mais expressivo com a ideia de
infinito no ensino básico. Do ponto de vista do ensino, uma dificuldade particular é a falta de expressões
para a ideia de infinito no mundo concreto. Entretanto, infinito é um dos conceitos mais básicos da
matemática contemporânea. Ao lidar com números no ensino básico, a ideia de infinito aparece em
diversas situações e processos:
• na não limitação dos conjuntos numéricos – é sempre possı́vel tomar um número natural maior
do que qualquer outro número dado;
• na densidade dos números racionais e reais – é sempre possı́vel tomar um número entre quaisquer
outros dois números dados;
• na ideia de limite – expansões decimais infinitas dos racionais (e posteriormente dos reais);
• na ideia de cardinalidade – qual conjunto é maior: o dos racionais ou o dos irracionais?
Estas situações e sua relevância para a sala de aula serão destacadas ao longo do texto.
As noções concretas de contagem e medida, que estruturam a discussão conduzida neste texto,
levam, a um nı́vel mais elementar, ao conceito matemático abstrato de número. Estas noções também
possuem desdobramentos matemáticos mais sofisticados, como o conceito de número transfinito e a te-
oria da medida. Neste texto discutiremos brevemente como as noções concretas de contagem e medida
se desdobram nesses conceitos sofisticados – que encerram inclusive algumas propriedades surpreenden-
tes e alguns aspectos profundamente contrários à intuição – sem a pretensão de nos aprofundarmos
teoricamente nesses conceitos. Neste sentido, uma abordagem que apresente a matemática elementar
e a matemática superior de forma articulada – como componentes igualmente importantes da disciplina
– está no cerne do espı́rito do Projeto Klein, de forma a propiciar uma visão panorâmica dos conceitos
matemáticos da escola básica.
CONTEÚDO 19
conjuntos números
finitos naturais
contagem
conjuntos números
infinitos transfinitos
Conceito de Infinito
números
reais
medida
teoria da
medida
Paradoxo de BanachTarski
Figura 2: Desdobramentos teóricos das noções de contagem e medida.
20 CONTEÚDO
Parte I
Números Naturais
21
Capı́tulo 1
23
24 CAPÍTULO 1. NÚMEROS NATURAIS: DE ONDE VÊM?
Sendo assim, o número 5, por exemplo, é uma propriedade (abstrata) que têm em comum cinco
cadeiras, cinco pessoas, cinco caixas de ovos, cinco metros de tecido, e qualquer coleção com cinco
objetos; que independe das caracterı́sticas particulares, das relações mútuas ou da organização desses
objetos. O número 5 é a propriedade que permanece, de qualquer coleção com objetos, quando
desconsideramos todas as caracterı́sticas, relações e organização destes objetos. Entretanto, o número
5 não é nem as cinco cadeiras, nem as cinco pessoas, nem as cinco caixas, nem os cinco metros. Não
podemos ver, nem ouvir, nem sentir o número 5 no mundo concreto, mas apenas abstraı́-lo como
uma propriedade compartilhada por essas coleções e por todos as outras que podem ser postas em
correspondência com elas.
Em 1883, o matemático alemão Georg Cantor (1845 – 1918) – responsável por grande parte da
fundamentação das Teorias modernas de conjuntos e de cardinalidade – conceituou número cardinal
(ou seja, número de elementos) de um conjunto das seguinte forma:
Se abstraı́mos a natureza dos elementos e a ordem na qual eles são dados, obtemos o número
cardinal do conjunto.
(Georg Cantor)
Figura 1.1: A propriedade que têm em comum cinco cadeiras, cinco rinocerontes, ou qualquer coleção
de cinco objetos, está relacionada à ideia (abstrata) de número: ter cardinalidade cinco.
A estratégia de controlar quantidades por meio de correspondências um a um já era usada desde a
pré-história, muito antes do surgimento dos primeiros sistemas numéricos. Historicamente, o problema
da contagem surgiu da necessidade de controlar quantidades e, em uma fase posterior, de registrar esse
controle. Este problema foi resolvido, em certos momentos, simplesmente por meio de correspondências
um a um entre coleções de objetos e, outros perı́odos, com um grau maior de abstração. Assim, os
problemas concretos de contagem são anteriores ao conceito abstrato de número, tanto no
sentido matemático como no histórico.
Para contar, basta estabelecer uma correspondência um a um entre dois conjuntos, ou, em termos
mais formais, definir uma bijeção entre eles. Assim, o conceito (abstrato) de número natural
emerge como uma sofisticação dos problemas concretos de contagem.
Um pastor de ovelhas na pré-história poderia controlar a quantidade de seu rebanho, mesmo sem
conhecer os números. Para isso, bastava que ele depositasse (em um saco de pele de animal, ou mesmo
em buraco cavado no chão) uma pequena pedra2 para cada animal que saı́sse para pastar. Na volta, ele
retiraria uma pedrinha para cada animal que entrasse. Se as pedrinhas acabassem juntamente com o
último animal a entrar, ele teria certeza de que nenhuma ovelha tinha sido perdida, e de que nenhuma
ovelha tinha se juntado ao rebanho durante a pastagem – sem nunca identificar de fato a quantidade
de ovelhas por meio de um número. De fato, para controlar a quantidade de seu rebanho, o pastor nem
mesmo precisa conhecer os números. Evidentemente, o conto do pastor de ovelhas na pré-história (que
é muito narrado em livros de história da matemática em geral) é absolutamente ficcional. Entretanto,
1
Não visamos a uma análise histórica nem a um estudo axiomático rigoroso dos números naturais. Os que desejarem
se aprofundar mais nesses aspectos encontrão diversas boas fontes de leitura (por exemplo, [79, 118] para os aspectos
históricos ou [46, 66, 71, 96] para os aspectos matemáticos).
2
A origem da palavra cálculo é o latim calculus, que significa “pequena pedra”.
26 CAPÍTULO 1. NÚMEROS NATURAIS: DE ONDE VÊM?
ilustra as estratégias que antecederam os sistemas de numeração. Sobretudo, mostra o fato de que
essas estratégias eram puramente concretas e se baseavam meramente na comparação entre coleções de
coisas, sem que houvesse se desenvolvido uma noção abstrata de número (muito menos de conjunto).
Os primeiros registros numéricos de que se tem notı́cias surgiram, juntamente com as primeiras
formas da própria escrita, na região da Mesopotâmia3 , por volta de 4.000 antes da era comum. Eram
usadas pequenas peças de argila4 , de diversos formatos (como discos, cilindros, cones, esferas, ovóides),
para contar coisas, como produtos da agricultura e bens manufaturados (figura 1.4, à esquerda). Peças
de formatos diferentes eram empregadas para contar objetos diferentes: ovóides para contar jarras de
óleo, ou esferas para sacas de grãos, por exemplo. Essas peças eram armazenadas em invólucros de
argila com quantidades fixas, em cujas superfı́cies eram gravados o formato e a quantidade de peças
(figura 1.4, à direita).
Esta estratégia sugere que, embora os mesopotâmicos empregassem a contagem concreta como
método de controle de quantidades, ainda não havia se desenvolvido uma ideia abstrata de número,
pois sı́mbolos diferentes eram usados para contar coisas diferentes, isto é, a simbolização da contagem
dependia da natureza dos objetos contados. Portanto, não havia ainda um sistema único de contagem,
que servisse para contar coisas quaisquer, isto é, para expressar quantidades iguais de coisas distintas,
independentemente da natureza das coisas que se estivessem contando.
Por outro lado, é interessante observar que a técnica mesopotâmica de contagem por peças e
invólucros já continha o germe da estrutura do nosso próprio sistema de numeração contemporâneo:
a formação de grupos de sı́mbolos, que são encapsulados em um novo sı́mbolo (neste caso,
fisicamente encapsulados).
Entretanto, não se verificou uma “evolução linear” dos sistemas de numeração até os dias de hoje.
Ao contrário, em diferentes partes do planeta, sistemas de numeração bem distintos foram desenvolvidos.
Esses sistemas foram usados paralelamente, mesmo por povos vizinhos e contemporâneos entre si,
até que o sistema posicional decimal fosse adotado em larga escala. Veremos alguns exemplos mais
adiante. O critério de seleção destes exemplos não se baseia na sua importância histórica. Procuramos
exemplificar sistemas com estruturas diferentes, de forma que seja possı́vel comparar caracterı́sticas,
analisar as limitações e as vantagens de cada um.
Voltemos às peças e invólucros na Mesopotâmia. Em algum momento percebeu-se que, uma vez
que os invólucros de argila exibiam as gravações da peças que continham, eles não precisariam conter
fisicamente essas peças para servir como registros de contagem. Essa constatação permitiu que, em um
estágio posterior, as peças e invólucros fossem substituı́dos por registros em tábuas planas de argila, de
mais fácil manipulação (figura 1.5). Surgiram assim os primeiros algarismos5 – sı́mbolos escritos, cuja
combinação representa quantidades. As representações de quantidades por meio de registros escritos
formados por algarismos são chamadas de numerais.
1 10
1 2 3 4 5
6 7 8 9 10
11 12 13 14 15
16 17 18 19 20
30 40 50 60
1908 = 31 × 60 + 48
Figura 1.7: O número 1908 no sistema posicional sexagesimal babilônio.
Outra diferença importante entre o nosso sistema e o babilônio – que também era responsável por
sérias ambiguidades – era o fato haver um sı́mbolo para representar o algarismo zero. Assim, não era
possı́vel diferenciar 1 de 60, pois ambos eram representados pelo mesmo algarismo. De forma mais
geral, não era possı́vel diferenciar os números 60n uns dos outros, pois não havia como indicar eventuais
posições intermediárias vazias nos numerais. Voltemos ao numeral da figura 1.8. Este também poderia
ser lido como 1 × 602 + 0 × 60 + 1 = 3.601, ou mesmo como 1 × 603 + 0 × 602 + 0 × 60 + 1 = 216.001.
Portanto, poderia haver literalmente infinitas interpretações diferentes para esse sı́mbolo!
Um sistema não posicional, e sim aditivo, era usado no Egito, pelo menos em 3.400 antes da era
comum. Neste sistema de numeração, cada potência de 10 empregada era representada por um sı́mbolo
30 CAPÍTULO 1. NÚMEROS NATURAIS: DE ONDE VÊM?
diferente. Neste sentido, o sistema egı́pcio pode ser entendido como um sistema de base 10, embora
não fosse posicional (figura 1.9). Assim, número 1908 seria expresso como na figura 1.10.
flor de homem em
bastão ferradura corda dedo pássaro
lótus adoração
Figura 1.9: Sistema de numeração egı́pcio por agrupamento aditivo decimal.
Já os maias, desenvolveram um sistema de numeração posicional, como o dos babilônios, com um
sistema aditivo simples embutido (figura 1.11). No caso dos maias, o sistema aditivo era constituı́do
por um algarismo com valor 1 e um com valor 5, e o sistema posicional era (essencialmente) de base
20. Assim, esses dois sı́mbolos formam os numerais de 1 a 19, que eram então usados como algarismos
no sistema posicional vigesimal. Uma diferença importante do sistema babilônio é que os maias tinham
um algarismo para representar posições vazias, papel desempenhado pelo algarismo 0 no nosso sistema
decimal. O número 1908 seria expresso no sistema maia como na figura 1.12.
0 1 5
0 1 2 3 4
5 8 7 8 9
10 11 12 13 14
15 16 17 18 19
1908 = 4 × 202 + 15 × 20 + 8
Figura 1.12: O número 1908 no sistema vigesimal maia.
Cada um dos diferentes sistemas de numeração apresentados nesta seção possui caracterı́sticas
próprias, que acarretam em limitações e vantagens para a realização de tarefas especı́ficas. Procedi-
mentos para realizar cálculos dependem da estrutura de cada sistema. Assim, cálculos considerados
fáceis em um sistema podem ser difı́ceis em outro, e vice-versa.
O sistema de numeração que usamos hoje é posicional. Isto porque, em primeiro lugar, o valor
de um algarismo é determinado por sua posição no numeral e um mesmo algarismo assume infinitos
valores diferentes. Isto permite que um conjunto finito de algarismos seja suficiente para representar
todos os números naturais – o que não ocorre com os sistemas não posicionais.
Outro ponto muito importante diz respeito à facilidade para construir algoritmos, relativamente
simples e funcionais, para as operações elementares. Este é um aspecto fundamental para a aborda-
gem das quatro operações no ensino básico, que, portanto, será discutido em detalhes nas próximas
seções. Além disso, os sistemas posicionais permitem uma extensão natural para a representação de
números não inteiros. Representamos os números inteiros por meio de combinações de potências de
expoentes positivos da base. Para representar números não inteiros, devemos lançar mão das potências
de expoentes negativos.
Ampliando a Reflexão
1.3 Comparando os sistemas babilônio, maia e o atual, discuta a importância do algarismo 0 nos
sistemas de numeração posicional.
1.4 Sabemos que no sistema de numeração sexagesimal babilônio a ausência do algarismo 0 acarreta
em ambiguidades. O sistema aditivo egı́pcio também não tem um algarismo 0. Essa ausência
também implica em ambiguidades, isto é, no sistema egı́pcio também pode ocorrer de um mesmo
numeral admitir leituras resultando em números diferentes? Observe e compare as caracterı́sticas
dos dois sistemas.
1.5 Considere os sistemas de numeração: romano, egı́pcio, vigesimal maia, indo-arábico. Para cada
um desses sistemas, dê um exemplo, se possı́vel, de um número entre 600 e 700 cuja representação
tenha exatamente 5 algarismos.
1.6 Considere os sistemas de numeração aditivo egı́pcio, vigesimal maia, e indo-arábico. Determine:
(a) o número de algarismos necessários para escrever todos os números naturais n tais que
1 ! n < 1000, em cada um destes sistemas;
(b) o número de algarismos necessários (ou número de algarismos que seria necessário inventar,
generalizando a estrutura de cada sistema de numeração) para escrever todos os números
naturais n tais que 1 ! n < 10k , com k ∈ N, em cada um destes sistemas;
(c) o número de algarismos necessários (ou número de algarismos que seria necessário inventar,
generalizando a estrutura de cada sistema de numeração) para escrever todos os números
naturais em cada um destes sistemas.
1.3. NÚMERO × REPRESENTAÇÃO 33
1908 = 4 × 202 + 15 × 20 + 8
Mas, como chegamos a esta decomposição? Em primeiro lugar, verificamos em quantos grupos
de 20 unidades pode ser dividido o número 1908. Para isso, precisamos dividir 1908 por 20, obtendo
quociente 95 e resto 8:
1908 = 95 × 20 + 8
Isto é, podemos decompor 1908 em 95 grupos de 20 unidades e ainda sobram 8 unidades. Em
seguida, tomamos esses 95 grupos e verificamos em quantos novos grupos (de 20 grupos cada) eles
podem ser re-agrupados. Agora não estamos mais formando grupos de 20 unidades simplesmente: cada
um desses novos grupos é formado por 20 grupos de 20 unidades cada, ou seja, por 400 unidades. Neste
segundo passo da decomposição, devemos dividir 95 por 20, obtendo quociente 4 e resto 15:
95 = 4 × 20 + 15
Isto é, podemos decompor os 95 grupos em 4 novos grupos, cada um com 20 grupos de 20 unidades
(ou 400 unidades), e ainda sobram 15 grupos. Assim, estamos decompondo o número 1908 em: 4
grupos de 20 grupos de 20 unidades cada (ou 400 unidades), mais 15 grupos de 20 unidades, mais 8
unidades. Ou seja:
39 = 9 × 4 + 3
9=2×4+1
39 = 9 × 4 + 3 = (2 × 4 + 1) × 4 + 3 = 2 × 42 + 1 × 4 + 3
Assim, decompomos o número 39 em: 2 grupos de 4 grupos de 4 unidades cada (ou 16 unidades),
mais 1 grupo de 4 unidades, mais 3 unidades. Portanto, a representação do número 39 no sistema
posicional de base 4 é 213. Como estamos usando os mesmos sı́mbolos que usamos no sistema decimal,
precisamos de uma diferenciação. Por isso, usaremos a notação (213)4 . Assim (213)4 não representa o
número 213 = 2 × 100 + 1 × 10 + 3, e sim o número 39, decomposto na forma 39 = 2 × 42 + 1 × 4 + 3
(em particular, devemos ler (213)4 como dois-um-três, e não duzentos e treze, pois essa palavra em
nossa lı́ngua não se refere ao número 39).
Esse procedimento de decomposição, que vem a ser exatamente aquele que usamos para converter
um número natural da base 10 para outra base, é conhecido como algoritmo de divisões sucessivas e
pode ser resumido esquematicamente por meio da representação usual do algoritmo da divisão. Assim,
as decomposições que realizamos acima, para representar 1908 no sistema vigesimal maia e 39 no
sistema de base 4, podem ser resumidas da seguinte forma, respectivamente:
1908 20 39 4
8 95 20 3 9 4
" "
15 4 1 2
" "
De forma geral, o processo de divisões sucessivas pode ser representado da forma abaixo. A repre-
sentação do número a na base β será dada pela sequência dos restos obtidos, do maior para o menor,
isto é a = (rN , . . . , r0 )β .
a β
r0 q0 β
"
r1 q1
"
..
.
qk β
rk+1 qk+1
"
..
.
qN −2 β
rN −1 qN −1 β
"
rN 0
"
1.3. NÚMERO × REPRESENTAÇÃO 35
Ampliando a Reflexão
1.7 O que é correto afirmar sobre a representação de um número natural a em relação ao sistema de
numeração posicional de base β nos casos abaixo?
(a) a = β (b) a é múltiplo de β (c) a é potência de β
1 2 3 4 5
# ♦ % & '
1.9 No algoritmo de divisões sucessivas, um número a é decomposto de forma que sejam encontrados
primeiro os algarismos correspondentes às menores ordens de grandeza no sistema posicional de
base β. Descreva um processo para expressar um número a no sistema posicional de base β em que
a decomposição seja de tal forma que sejam encontrados primeiro os algarismos correspondentes
às maiores ordens de grandeza.
1.10 (a) O que acontece com a quantidade de algarismos de um dado número, quando o expressamos
em uma base maior. Esta quantidade aumenta ou diminui?
(b) Você identifica alguma vantagem em usar bases maiores?
36 4
3 6
"
36 CAPÍTULO 1. NÚMEROS NATURAIS: DE ONDE VÊM?
6 4
2 1
"
36 4
3 6 4
"
2 1
"
(36)7 = 3 × 7 + 6 = 6 × 4 + 3 = (1 × 4 + 2) × 4 + 3 = 1 × 42 + 2 × 4 + 3
O teorema a seguir responde às questões propostas no Para Refletir 7, permitindo que o sistema
posicional de base β fique bem definido: a representação de qualquer número natural a existe e é única.
Além disso, o teorema garante a validade do algoritmo de divisões sucessivas. Para esta demonstração,
precisaremos de duas ferramentas6 : o Algoritmo da Divisão e Princı́pio da Boa Ordem (veja [71, 96]).
O fato de que todo número natural pode ser representado, de uma única maneira, em um sistema
posicional de base β qualquer não é uma consequência imediata da forma como escrevemos essa
representação. Em outras palavras, não é imediato, apenas olhando para a representação de um número
a ∈ N que este não possa ser escrito como a = β N aN + . . . + β a1 + a0 = β N a"N + . . . + β a"1 + a"0 , com
algarismos aN , . . . , a1 , a0 e a"N , . . . , a"1 , a"0 diferentes. Portanto, este fato precisa ser demonstrado
como um teorema.
6
Como já observamos, neste livro não seguiremos a ordem matemática da exposição de resultados. Usaremos esses
fatos sem demonstração, e retornaremos a eles posteriormente.
1.3. NÚMERO × REPRESENTAÇÃO 37
Este teorema garante a boa definição do sistema posicional de base β, portanto sua prova deve
preceder o enunciado da definição 1.1. Embora sua demonstração possa encontrada em diversas outras
boas fontes (por exemplo [71, 96]), decidimos por também incluı́-la neste livro por uma razão principal:
refletir sobre que propriedades da estrutura do conjunto N são necessárias para garantir a existência e
a unicidade da representação de um número natural em um sistema posicional de base β. Esta reflexão
é fundamental para o ensino de número naturais na escola básica, uma vez grande parte do conteúdo
depende da representação decimal – incluindo os algoritmos para as operações elementares.
Além disso, essa demonstração nos dá precisamente a estrutura do algoritmo de mudança de base.
A demonstração exige como ferramenta básica o algoritmo da divisão. De fato, o algoritmo de mudança
de base consiste em aplicações sucessivas do Teorema da Divisão Euclidiana. Também usamos outras
propriedades e teoremas importantes (comutatividade, Princı́pio da Indução Finita, dentre outros).
Sugerimos que o leitor detenha-se em reconhecer a estrutura do algoritmo na demonstração do teorema.
(i) 0 ∈ A;
(ii) n ∈ A ⇒ n + 1 ∈ A.
Então A = N.
Princı́pio da Boa Ordem
Todo subconjunto A ⊂ N não vazio possui um elemento mı́nimo.
Teorema da Divisão Euclidiana
Dados a, b ∈ N, b &= 0, existem q, r ∈ N, com 0 ! r < b, unicamente definidos,
tais que:
a = bq + r.
Teorema 1.1 (Representação posicional de base β) Seja β " 2 um número natural fixado. Dado
qualquer a ∈ N, existem números naturais r0 , . . . rN , com 0 ! rk < β e rN &= 0, unicamente
determinados, tais que:
! N
a= rk β k .
k=0
Demonstração: Dividindo a por β, temos que existem q0 , r0 ∈ N, 0 ! r0 < β, únicos, tais que:
a = β q 0 + r0 .
qk = β qk+1 + rk+1 .
Como rk " 0 e β " 2, podemos concluir da expressão acima que ∀ k temos 2 qk+1 ! qk . Em particular,
se qk &= 0 então qk+1 < qk .
38 CAPÍTULO 1. NÚMEROS NATURAIS: DE ONDE VÊM?
Suponhamos, que fosse possı́vel termos qk &= 0 ∀ k ∈ N. O conjunto dos quocientes Q = {qk | k ∈ N}
seria, então, formando apenas por números naturais positivos. Pelo Princı́pio da Boa Ordem, Q teria um
elemento mı́nimo qk0 > 0. Neste caso, poderı́amos tomar o próximo quociente qk0 +1 , e terı́amos, por um lado
que qk0 +1 < qk0 = min Q e, por outro que qk0 +1 ∈ Q, o que é uma contradição. Concluı́mos daı́ que qk = 0
para algum ı́ndice k e, portanto, para todos os ı́ndices a partir deste. Isto é, o processo de divisões sucessivas
para em algum ponto. Chamemos de N este ı́ndice em que o processo para. Então, temos:
a = β q 0 + r0
= β ( β q 1 + r1 ) + r0 = β 2 q 1 + β r 1 + r0
= β 2 ( β q 2 + r2 ) + β r 1 + r 0 = β 3 q 2 + β 2 r 2 + β r 1 + r0
..
.
= β k ( β qk + rk ) + . . . + β r1 + r0 = β k+1 qk + β k rk + . . . + β r1 + r0
..
.
= β N ( β q N + r N ) + . . . + β r 1 + r0 = β N r N + . . . + β r 1 + r0
= β N ( β q N + r N ) + . . . + β r 1 + r0 = β N r N + . . . + β r 1 + r0
Isto é:
N
!
a= rk β k .
k=0
Resta mostrar que unicidade da expressão acima, que decorre da unicidade do quociente e do resto no
algoritmo da divisão. Suponhamos que pudesse haver duas expressões diferentes na forma acima, completando
com zeros, caso necessário, podemos escrever sem perda de generalidade:
N
! N
!
a= rk β =k
rk" β k .
k=0 k=0
Então, terı́amos:
" N
# " N
#
! !
a=β rk β k−1
+ r0 = β rk" β k−1
+ r0" .
k=1 k=1
Pela unicidade do algoritmo da divisão, as expressões acima correspondem ao resto e ao quociente da
divisão de a por β. Logo:
N
! N
!
r0 = r0" , rk β k−1
= rk" β k−1 .
k=1 k=1
Da expressão acima, temos:
" N
# " N
#
! !
β rk β k−2 + r1 = β rk" β k−−2 + r1" .
k=2 k=2
Da mesma forma, segue que:
N
! N
!
r1 = r1" , rk β k−2
= rk" β k−2 .
k=2 k=2
Repetindo este argumento até k = N , concluı́mos que
rk = rk" ∀k ∈ N.
1.3. NÚMERO × REPRESENTAÇÃO 39
Definição 1.1 (Sistema de numeração posicional de base β) Seja β " 2 um número natural fi-
xado. Dizemos que o número a ∈ N está expresso no sistema de numeração posicional de base β
se a está escrito na forma:
!N
a= rk β k
k=0
em que r0 , . . . rN são os únicos números naturais tais que 0 ! rk < β e rN &= 0, chamados algarismos.
Neste caso, denotamos:
a = (rN . . . r0 )β
Cada ı́ndice k é chamado uma ordem na representação posicional de a na base β.
N
!
a= rk k! .
k=1
325 = [23201]n!
Assim como nos sistemas posicionais de base β (definição 1.1), no sistema fatorial o
valor dos algarismos depende de sua posição no numeral. No exemplo acima o primeiro
e segundo algarismos 2 representam respectivamente 2 × 5! = 240 e 2 × 3! = 12.
Também é necessário o algarismo 0. No exemplo acima, o 0 indica que a posição
correspondente a 2! está vazia. Por outro lado, ao contrário dos sistemas de base
β, não há uma limitação uniforme para os algarismos: nos sistemas de base β, os
algarismos estão entre 0 e β − 1 para qualquer número representado; enquanto que no
sistema fatorial, o algarismo correspondente à ordem n é limitado por n! (pois caso
contrário, este seria re-agrupado à ordem imediatamente superior). Daı́ a necessidade
de usar, por exemplo, parênteses para separar os algarismos, quando estes ultrapassam
a 10a. ordem (Porque a partir da 10a. ordem?). Por exemplo:
Como os valores dos fatoriais dos números naturais crescem a uma taxa maior que as
potências de 10 (de fato, maior que qualquer exponencial β n ), para números muito
grandes, as representações no sistema fatorial tendem a ter menos algarismos do que
as do sistema decimal.
Ampliando a Reflexão
1.11 Represente 2.000 na base fatorial. Compare a sua solução com o processo descrito no exercı́cio
1.9.
Pensar em sistemas posicionais em outras bases pode ajudar a “passar a limpo” algumas das
propriedades e dos procedimentos com que estamos tão acostumados a lidar na base 10, mas sobre
os quais pouco refletimos. Isto é, realizar esses procedimentos em outras bases nos tira da “zona de
conforto” que a base 10 proporciona, e nos força a pensar nas justificativas para cada um dos passos
que executamos automaticamente e cujas validades são tomadas como certas. Esse exercı́cio pode
ajudar o professor a entender com mais clareza procedimentos que ensina usualmente aos alunos.
Por exemplo, é justamente a estrutura dos sistemas de numeração posicional que sustenta os proces-
sos de decomposição e de agrupamento (como aqueles que são informalmente chamados de “vai um”
e “pedir emprestado”) que constituem os algoritmos para as quatro operações elementares. Portanto,
esses algoritmos valem em qualquer sistema de numeração posicional. Ao efetuarmos uma operação
diretamente em outra base somos forçados a parar e refletir sobre esses procedimentos, com os quais
operamos mecanicamente na base 10. Veja, por exemplo, as tabelas de adição e multiplicação na base
7 (figura 1.15).
1.3. NÚMERO × REPRESENTAÇÃO 41
+ 0 1 2 3 4 5 6 × 0 1 2 3 4 5 6
0 0 1 2 3 4 5 6 0 0 0 0 0 0 0 0
1 1 2 3 4 5 6 10 1 0 1 2 3 4 5 6
2 2 3 4 5 6 10 11 2 0 2 4 6 11 13 15
3 3 4 5 6 10 11 12 3 0 3 6 12 15 21 24
4 4 5 6 10 11 12 13 4 0 4 11 15 22 26 33
5 5 6 10 11 12 13 14 5 0 5 13 21 26 34 42
6 6 10 11 12 13 14 15 6 0 6 15 24 33 42 51
Essas tabuadas podem ser usadas para efetuar operações na base 7. Observe, a seguir, os exemplos
de uma adição, uma subtração e uma multiplicação.
1 1
6 5 4
+ 5 4 6
1 5 3 3
O procedimento para efetuar essa operação de adição na base 7 segue os passos:
4 14
6 &5 &4
− 5 4 6
1 0 5
O procedimento para a subtração na base 7 segue os passos:
1. Como não é possı́vel (no conjunto dos naturais) subtrair 6 unidades de 4, então os 5 grupos de
7 na representação posicional do minuendo são decompostos em 4 + 1 grupos de 7. Um desses
grupos é re-agrupado com as 4 unidades.
2. Os 4 grupos de 7 do subtraendo são subtraı́dos dos 4 grupos de 7 que sobraram no minuendo da
etapa anterior.
3. Os 6 grupos de 72 do subtraendo são subtraı́dos dos 52 grupos de 7 do minuendo
42 CAPÍTULO 1. NÚMEROS NATURAIS: DE ONDE VÊM?
3 2
3 2
4 3
6 5 4
× 5 4 6
1 2 1 1
5 5 5 3
3 6 1 2
4 5 6 6
5 3 4 6 0 3
Ampliando a Reflexão
1.12 Construa tabelas de adição e de multiplicação para as base 3, 8 e 12.
1.13 Efetue as seguintes operações, sem converter para a base 10:
(a) (753)8 + (567)8 (b) (753)8 − (567)8 (c) (737)8 × (243)8
1.14 Efetue a adição e a multiplicação entre os números abaixo, expressos em algarismos maias, sem
os converter para o sistema indo-arábico.
1.15 Os algoritmos para efetuar as operações elementares em sistemas de numeração posicional são
baseados na estrutura de agrupamento desses sistemas (como já discutimos) e também nas
propriedades das operações. Descreva as propriedades das operações que são necessárias para
justificar a validade dos algoritmos usuais das operações de adição, subtração e multiplicação em
sistemas de numeração posicional.
A zona de conforto que a familiaridade com a base 10 proporciona pode também nos levar a
confundir propriedades dos próprios números com propriedades de suas representações. Um mesmo
número pode ser representado de diferentes formas, isto é, por diferentes numerais. Porém, quando
mudamos a representação o número em si não é alterado. Portanto, suas propriedades também são
preservadas.
Por exemplo, estamos acostumados a reconhecer um número par em sua representação decimal
observando o algarismo das unidades. Mas será que essa caracterização é válida também em outras
bases? O número (37)9 é par ou ı́mpar? E o número (47)9 ? Para responder a estas perguntas, devemos
lembrar que, por definição, um número natural a é par se é múltiplo de 2, isto é, se existe um número
q ∈ N tal que a = 2 q. Então, (37)9 = 3 × 9 + 7 = 2 × (1 × 9 + 8) = 2 × (18)9 e (47)9 = 4 × 9 + 7.
Segue que (37)9 é par e (47)9 não é par.
O fato de que a ∈ N é par se, e somente se, o algarismo das unidades em sua representação decimal
é 0, 2, 4, 6 ou 8 é um teorema e não a definição de número par. Para provar este fato, basta observar
a representação decimal de um número a = aN 10N + . . . + 10 a1 + a0 . Como 10 é par, então todas as
potências 10k , com k " 1 são pares. Portanto, o número a será par se e só a0 for par.
1.3. NÚMERO × REPRESENTAÇÃO 43
Os exemplos dos números (37)9 e (47)9 mostram que esta caracterização não pode ser aplicada
diretamente a outras bases. Esta breve reflexão sugere algumas questões. Em primeiro lugar, como
reconhecer se um número é ou não par com base em sua representação na base 9? Para responder a
esta pergunta, podemos começar examinando o caso mais simples com dois algarismos. se um número
natural a é representado por (a1 a0 )9 , então:
a = 9 a1 + a0 .
A partir daı́, pode-se concluir que o número a será par se, e somente se, os algarismos a0 ou a1
forem ambos pares ou ambos ı́mpares. De forma mais geral, consideremos a ∈ N representado por
a = (aN . . . a0 )9 , isto é:
N
!
a= 9k ak .
k=0
Mas, como 9 é ı́mpar, então todas as potências de 9 são números ı́mpares, isto é, para cada
k = 1, . . . , N , ∃ qk ∈ N tal que 9k = 2 qk + 1. Portanto:
N
! N
! N
!
a= (2 qk + 1) ak = 2 qk a k + ak .
k=0 k=0 k=0
N
! N
!
Como 2 qk ak é par, então o número a será para se, e somente se, ak . Isto, vale o seguinte
k=0 k=0
critério de divisibilidade por 2 na representação posicional de base 9:
Um número a = (aN . . . a0 )9 é múltiplo de 2 se, e somente se, a soma de seus algarismos
for um múltiplo de 2.
Note que este enunciado se parece bastante com o conhecido critério de divisibilidade por 3 na base 10.
No sistema decimal conhecemos duas principais categorias de critérios de divisibilidade, que podem
ser resumidas da seguinte maneira:
* verificar o algarismo das unidades: válido para a divisibilidade por 2, por 5, e pelo próprio 10;
* verificar a soma dos algarismos: válido para a divisibilidade por 3 e por 9.
Como os exemplos anteriores ilustram, as demonstrações desses critérios se baseia na estrutura
posicional do sistema de numeração decimal. As atividades a seguir propõem a busca por generalizações
dos critérios familiares da base 10 para outros sistemas de numeração posicional. O objetivo não é
propor a memorização desses critérios, nem muito menos que eles sejam ensinados na escola básica.
Objetivamos usar a reflexão sobre as propriedades da numeração em outras bases para aprofundar a
compreensão do sistema decimal, visando o ensino dos processos que dependem de sua estrutura.
Ampliando a Reflexão
1.16 Existe alguma base β tal que (47)β represente um número par? Em caso afirmativo, determine
todas.
1.17 Considere o sistema de numeração posicional de base β. Determine um critério para decidir se
um numeral expresso na base β representa um número par ou um ı́mpar, nos casos em que:
(a) β é um número par;
(b) β é um número ı́mpar.
44 CAPÍTULO 1. NÚMEROS NATURAIS: DE ONDE VÊM?
1.18 Existem algarismos a0 , a1 e a2 tais que o numeral (a2 a1 a0 )β representa um número ı́mpar qualquer
que seja a base β? Generalize para números com n algarismos.
1.19 Considere a = (aN , . . . , a0 )9 .
N
!
(a) Mostre que a é múltiplo de 4 se, e somente se, ak é múltiplo de 4.
k=0
(b) Existe algum outro número (diferente de 2 e de 4) para o qual se aplique este mesmo critério
de divisibilidade na base 9? Isto é, existe algum outro p ∈ N para o qual valha que: a é
!N
múltiplo de p ⇔ ak é múltiplo de p?
k=0
1.22 Considere o critério de divisibilidade por 11 na base 10: um número a = aN . . . a0 é divisı́vel por
!N
11 se, e somente se, (−1)k ak é divisı́vel por 11.
k=0
(a) Na base 9, podemos enunciar um critério análogo a este para determinar a divisibilidade por
que número?
(b) Enuncie e prove uma generalização deste critério para uma base β " 2 qualquer.
Ao longo deste livro, será percorrido um caminho da construção de cada um dos conjuntos numéricos
a partir do anterior:
Neste Capı́tulo, discutiremos em linhas gerais a construção dos números naturais por meio dos
chamados Axiomas de Peano. Este sistema axiomático, proposto pelo matemático italiano Giuseppe
Peano no final do século XIX, foi a primeira construção matemática formal do conjunto dos naturais.
A estrutura dos Axiomas de Peano baseia-se em uma ideia elementar central: a de sucessor. Essencial-
mente, o conjunto dos números naturais é construı́do tomando-se progressivamente sucessores, a partir
de um elemento inicial. Isto é, N é obtido como o conjunto que se obtém como resultado do processo
de se partir de um elemento, acrescentar seu sucessor, o sucessor de seu sucessor, a assim por diante.
Não reproduziremos neste texto todos os detalhes formais da construção, que podem ser encontrados
em diversas fontes bibliográficas (por exemplo, [46]). Alguns desses detalhes são indicados como
atividades para o leitor, nas seções Ampliando a Reflexão. O objetivo principal é apontar certas relações
particulares da construção por Axiomas de Peano com o ensino de números naturais na escola básica.
Assim, neste capı́tulo não visamos sugerir abordagens para aplicação direta na sala de aula,
e sim discutir aspectos da construção axiomática do conjunto dos números inteiros que se
articulam com a matemática da escola básica.
Começaremos por recordar um conceito matemático importante para a construção estruturada a
partir da noção de sucessor: relações de ordem. Os conceito de relação e, em particular, relação
de ordem, assim como as noções de conjunto, de função ou de estrutura algébrica, têm um papel
estruturante em virtualmente todos os campos na matemática contemporânea, constituindo-se em
ideias elementares, no sentido de Klein.
2.1 Relações
Essencialmente, uma relação (binária) em um conjunto A é uma forma qualquer de associar elementos
de A entre si (dois a dois). Sendo assim, se ∼ denota uma relação em um conjunto A, então escrevemos
47
48 CAPÍTULO 2. NÚMEROS NATURAIS: APROFUNDAMENTOS E DESDOBRAMENTOS
a ∼ b para significar que o elemento a está relacionado com o elemento b. Costumamos também
simplesmente escrever (a, b) para significar que a está relacionado com b. A importância de se usar
pares ordenados nesta notação deve-se ao fato de que a ∼ b não necessariamente implica em b ∼ a.
Este é o caso, por exemplo, da relação “é menor que” ou da relação “é divisor de”, ambas definidas no
conjunto N. Assim, o ambiente natural para se estabelecer de uma relação binária em um conjunto A
é o produto cartesiano A × A. De fato, esta é a definição formal de relação (definição 2.1).
Definição 2.1 Uma relação binária em um conjunto A é qualquer subconjunto do produto cartesiano
A × A.
(i) reflexiva: a . a, ∀ a ∈ A;
(ii) antissimétrica: a . b, b . a ⇒ a = b, ∀ a, b ∈ A;
(iii) transitiva: a . b, b . c ⇒ a . c, ∀ a, b, c ∈ A.
A comparação entre/de dois números naturais pode ser realizada de várias maneiras. Por exemplo,
de forma mais complexa, a partir de subtração, verificando se a diferença é positiva ou negativa. Pode
também ser feita de forma mais elementar, como sugerido pela história do pastor de ovelhas ou como
uma criança aprende inicialmente, apenas observando a correspondência biunı́voca entre coleções de
objetos e identificando em qual delas “sobram” elementos. Assim, fica identificado o maior (e o menor)
número dentre os dois.
Ampliando a Reflexão
2.1 A relação “menor ou igual a”, definida no conjunto N (por exemplo), é uma relação de ordem,
no sentido da definição 2.2?
2.2 Mostre que a relação de inclusão de conjuntos, definida (por exemplo) no conjunto P (N) (cujos
elementos são os subconjuntos de N), é uma relação de ordem.
2.3 Mostre que a relação de divisibilidade (isto é, a relação “é divisor de”) é uma relação de ordem
em N, mas não o é em Z.
2.4 Considere a seguinte relação, definida no conjunto dos números complexos C da seguinte forma:
a + ib ( c + id se a ! b ou se a = b e c ! d.
Esta relação é chamada ordem lexicográfica, pois ordena os números complexos da mesma forma
que são ordenadas palavras em um dicionário. Isto é, primeiro verificamos se a primeira “letra”
(no caso a parte real do número) é maior e, caso esta seja igual, verificamos a segunda “letra”
(no caso a parte imaginária).
Uma representação visual para uma relação de ordem em um conjunto A pode ser obtida a partir de
ligações os elementos de A que se relacionam (figura 2.1). Pode-se ainda adotar a seguinte convenção:
representar o elemento a em uma posição inferior ao elemento b se a . b e a &. b; e na mesma altura
que b se a . b e b . a. Por exemplo, temos a . b, a . d e b . c, e portanto, por transitividade,
também a . c (o que fica evidenciado pelo “caminho ascendente” que podemos percorrer de a a c).
c
b d
a
Figura 2.1: Representando a . b, a . d e b . c, e, portanto, também a . c.
Ampliando a Reflexão
2.5 Construa duas “árvores” (como a figura 2.1): uma representando a relação “é menor ou igual a” e
outra representando a relação “é divisor de”, ambas no mesmo conjunto {1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10}.
Que diferenças você observa entre essas árvores?
Definição 2.3 Uma relação de ordem . em um conjunto A é dita ser uma ordem total se quaisquer
dois elementos de A estão relacionados, ou seja: tem-se a . b ou b . a ∀ a, b ∈ A.
Caso contrário, . é dita uma ordem parcial.
Ampliando a Reflexão
2.6 Classifique as relações de ordem “é menor ou igual a” e “é divisor de”, definidas no conjunto N,
como total ou parcial. Como você relaciona essa classificação com as “árvores” construı́das na
atividade 2.5?
2.7 Classifique a ordem lexicográfica dos complexos (atividade 2.4) como total ou parcial.
Definição 2.4 Seja A um conjunto munido de uma relação de ordem . e seja X ⊂ A. Então:
Ampliando a Reflexão
2.8 É verdade que todo conjunto limitado superiormente possui um máximo? Justifique sua resposta.
2.9 Mostre que o máximo e mı́nimo de um conjunto, caso existam, são únicos.
* ser mı́nimo, no sentido em que não sejam incluı́das como axiomas proposições
redundantes, isto é, que poderiam ser demonstradas como teoremas a partir das
demais;
* e ser suficiente, no sentido em que toda a teoria possa ser deduzida a partir deles.
O primeiro passo na construção axiomática de uma teoria matemática é estabelecer
um conjunto de axiomas que satisfaça às duas caracterı́sticas básicas acima – o que
nem sempre é tarefa fácil. O primeiro sistema axiomático de que se tem notı́cias são
os conhecidos Postulados de Euclides para a Geometria Plana:
E1. Pode ser traçada uma reta de qualquer ponto a qualquer outro.
E2. Qualquer segmento finito de reta pode ser prolongado indefinidamente na direção
da reta.
E3. Pode ser traçado um cı́rculo com centro em qualquer ponto e raio igual a qualquer
distância.
E4. Todos os ângulos retos são iguais entre si.
E5. (Postulado das Paralelas) Se uma reta cortar duas outras retas de modo que a
soma dos dois ângulos interiores, de um mesmo lado, seja menor que dois ângulos
retos, então, se suficientemente prolongadas, as duas outras retas se cruzam, do
mesmo lado da primeira reta em que se encontram os dois ângulos interiores.
Com as mudanças nos critérios de rigor ao longo da história da matemática, outros
sistemas de axiomas para a Geometria Euclidiana Plana foram formulados. O mais
amplamente usado hoje foi proposto por David Hilbert em 1899 e compõe-se por 21
axiomas.
A = {n ∈ N | n ! 9} ou A = {0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8};
B = {n ∈ N | 10 ! n ! 20} ou B = {11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19}.
Já o conjunto N é infinito, e portanto não pode ser descrito por extensão. A justifi-
cativa para isto é o fato de que o simples conhecimento dos k primeiros elementos de
um conjunto não determina o conhecimento do (k + 1)-ésimo elemento do conjunto.
P1. todo número natural tem um sucessor, que ainda é um número natural;
P2. números naturais diferentes têm sucessores diferentes;
P3. existe um número natural, chamado 0 (zero), que não é sucessor de nenhum outro;
P4. se X é um conjunto de números naturais com as seguintes propriedades:
(i) 0 ∈ X;
(ii) se um número natural n pertence a X, então o sucessor de n também pertence a X-
Estas proposições, que permitem não só definir as operações e a ordem em N (como veremos neste
texto) como também deduzir todos os teoremas da Aritmética, são hoje conhecidas como Axiomas de
Peano. Em particular, o P4 é o chamado Princı́pio da Indução Finita (ou simplesmente Princı́pio
da Indução), que tem um papel importante na caracterização do conjunto dos naturais (como também
discutiremos mais adiante).
Os Axiomas de Peano podem ser formulados de forma equivalente definindo-se em N uma função
σ : N → N, chamada função sucessor. Nesta formulação, o Axioma P1 pode ser omitido, pois decorre
da simples afirmação de σ é uma função. Os Axiomas P2 e P3 podem ser reescritos, respectivamente,
da seguinte forma:
Evidentemente, a construção dos números naturais por meio dos Axiomas de Peano não deve ser
levada diretamente para a sala de aula da educação básica. Entretanto, é importante notar que essa
construção põe em evidência o papel conceitual central que a noção de sucessor tem na estrutura do
conjunto dos números naturais:
2.3. A CONSTRUÇÃO DOS NATURAIS 53
Para responder a esta pergunta, devemos ter clareza sobre o que significa caracterizar um conjunto.
Caracterizar um conjunto A quer dizer obter um conjunto de propriedades que sejam compartilhadas
por todos os seus elementos, e de tal forma que qualquer outro conjunto que também às satisfaça seja
(em um certo sentido) equivalente a A.
Ampliando a Reflexão
2.10 Prove que é único o elemento que não é sucessor de nenhum outro no axioma P2 (ou que não
pertence à imagem de σ no axioma P2’).
Sugestão: Prove por indução que o conjunto {n ∈ N | é sucessor de algum número natural } é
N \ {0}.
Desta forma, construı́mos o conjunto N, definindo, a partir da noção de sucessor, todos os seus
elementos:
1 = σ(0)
2 = σ(σ(0)) = σ(1)
3 = σ(σ(σ(0))) = σ(σ(1)) = σ(2)
..
.
Assim, o número 1 é definido como o sucessor de 0; 2 como o sucessor de 1 e assim sucessivamente.
O Princı́pio da Indução Finita garante que, por meio desse processo, todos os elementos de N são
definidos.
(i) m + 0 = m;
(ii) m + σ(n) = σ(m + n).
2.3. A CONSTRUÇÃO DOS NATURAIS 55
Uma vez fixado um número m ∈ N, o item (i) da definição 2.5 especifica o resultado da soma desse
número m com 0. Uma vez conhecido esse resultado, o item (ii) define a soma de m com σ(0) = 1.
Da mesma forma, uma vez conhecido o resultado da soma de m com 1, o item (ii) define a soma de
m com σ(1) = 2. Assim, sucessivamente, temos:
m+0 = m
m+1 = m + σ(0) = σ(m + 0) = σ(m)
m+2 = m + σ(1) = σ(m + 1) = σ(σ(m))
m+3 = m + σ(2) = σ(m + 2) = σ(σ(σ(m)))
..
.
Desta forma, fixado m ∈ N, fica definida sua soma com cada um dos números naturais, sucessiva-
mente. O Princı́pio da Indução garante que, por meio deste processo, a operação de adição é definida
para todos os números naturais. De fato, considere o conjunto:
σ(m) = m + 1 .
Ampliando a Reflexão
2.11 Mostre que a operação de adição definida em 2.5 satisfaz às propriedades básicas usuais:
(i) m · 0 = 0;
(ii) m · σ(n) = m · n + m.
Assim como no caso da adição, uma vez fixado um número m ∈ N, o item (i) da definição 2.6
estabelece o resultado do produto de m por 0. Uma vez conhecido esse resultado, o item (ii) define o
produto entre m e σ(0) = 1. Conhecido esse resultado, o item (ii) define também o produto entre m
e σ(1) = 2. Desta forma, sucessivamente, temos:
56 CAPÍTULO 2. NÚMEROS NATURAIS: APROFUNDAMENTOS E DESDOBRAMENTOS
m·0 = 0
m·1 = m · σ(0) = m · 0 + m = m
m·2 = m · σ(1) = m · 1 + m = m + m
m·3 = m · σ(2) = m · 2 + m = (m + m) + m
..
.
Como no caso da adição, o Princı́pio da Indução garante que este processo define a operação de
multiplicação para todos os números naturais. Considere o conjunto:
Logo:
Portanto, B = N.
Ampliando a Reflexão
2.12 Mostre que a operação de multiplicação definida em 2.6 satisfaz às propriedades básicas usuais:
Ampliando a Reflexão
2.13 Mostre que a relação binária m ! n da definição 2.7 é uma relação de ordem, isto é, satisfaz às
propriedades reflexiva, simétrica e transitiva (definição 2.2).
2.14 Mostre que a relação de ordem m ! n da definição 2.7 é total, isto é, dados m, n ∈ N, vale uma
e somente uma das alternativas: m = n, m < n ou n < m. (definição 2.3).
Até aqui, munimos o conjunto N com as operações de adição e de multiplicação e com a relação de
ordem. Porém para completar a construção da estrutura (N, +, ·, !), deve-se provar ainda que estas
não são independentes, isto é, que existem propriedades que relacionam as operações com a relação de
ordem.
Ampliando a Reflexão
2.15 Mostre que a relação de ordem m ! n da definição 2.7 satisfaz às propriedades ∀ a, b, c ∈ N:
(a) a ! b ⇒ a + c ! b + c
(b) a ! b, 0 < c ⇒ a · c ! b · c
(c) Mostre que 0 < c é uma condição essencial na propriedade anterior.
2.16 Considere a ordem lexicográfica definida no conjunto dos números complexos (atividade 2.4).
Mostre que essa ordem não satisfaz às propriedade (ii) da atividade anterior.
Definição 2.8 Um conjunto X é infinito se é cardinalmente equivalente com uma parte própria, isto
é, com um conjunto Y ⊂ X, Y &= X.
n ↔ 2n .
Neste sentido portanto, podemos pensar que existem tantos números naturais quanto pares – embora
os pares estejam estritamente contidos nos naturais. Em outro paradoxo, Galileo observa que se pode
construir uma correspondência um a um entre dois segmentos de reta de comprimentos distintos,
meio de uma construção geométrica simples (figura 2.2). Neste sentido, segmentos de comprimentos
diferentes têm a mesma quantidade de pontos.
2.4. A NOÇÃO DE INFINITO 59
A! B!
!
X
A X B
Figura 2.2: A cada ponto X ∈ AB está associado um e somente um ponto X " ∈ A" B " : dois segmentos
de comprimentos diferentes têm a mesma quantidade de pontos.
Um exemplo famoso para ilustrar a definição matemática de infinito foi apresentado por David
Hilbert em uma conferência proferida em 1925. Neste exemplo, que ficou conhecido como O Hotel de
Hilbert, considera-se hotel hipotético com infinitos quartos. Um novo hóspede chega ao hotel, mas este
se encontra lotado. Em uma solução engenhosa para o não deixar o novo hóspede sem pouso, o gerente
move o cliente hospedado do quarto 1 para o quarto 2. Como o quarto 2 também está ocupado, é
preciso mover também o hóspede deste para o quarto 3, e assim sucessivamente. Como o hotel possui
infinitos quartos, este processo pode ser continuado indefinidamente, movendo cada cliente do quarto
n para o quarto n + 1, sem que nenhum fique desalojado. Isto é, em um hotel com infinitos quartos,
sempre há vagas. Para uma ilustração sobre o Hotel de Hilbert, veja o video produzido no Projeto M3
da UNICAMP (disponı́vel em m3.ime.unicamp.br/recursos/1117).
novo hóspede
Q. 1 Q. 2 Q. 3
10.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.
000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000
60 CAPÍTULO 2. NÚMEROS NATURAIS: APROFUNDAMENTOS E DESDOBRAMENTOS
Este número é (muito) maior que o número estimado de átomos no universo conhecido,
e maior que o número de segundos transcorridos desde que o universo existe (segundo
a teoria do Big Bang). O maior número que até hoje ganhou um nome é provavelmente
100
aquele chamado googolplex: 1010 (ou 1 seguido de googol zeros). Para ser escrito
na forma decimal o googolplex demandaria uma quantidade de folhas de papel da
ordem de 2, 5 × 1096 . Se empilhadas, essas folhas de papel formariam uma pilha com
altura de aproximadamente 2, 5 × 1089 km, ou 2, 6 × 1077 anos-luz – da ordem de
1066 vezes o tamanho do universo conhecido. Para maiores detalhes sobre os números
googol e googolplex, veja por exemplo [33, 108].
Porém, por maior que seja o número googolplex, se um elemento é retirado de um
conjunto com googolplex elementos, o conjunto resultante terá googolplex−1 elemen-
tos: efetivamente menos que o original. Se um elemento é retirado de um conjunto
infinito, sua cardinalidade não é alterada, como ilustra o exemplo do Hotel de Hilbert.
Assim, o conceito matemático de infinito não pode ser interpretado como “um número
muito grande”. Os conjuntos infinitos são justamente aqueles cujos números cardinais
não podem ser representados por números naturais. Infinito não é um número no
sentido aritmético-algébrico em que compreendemos os números, pois não satisfaz as
mesmas propriedades e não respeita as mesmas leis.
Ampliando a Reflexão
2.17 Prove que um conjunto X é infinito se, e somente se, existe uma função injetiva f : N → X.
2.18 Mostre que se X é infinito e Y ⊂ X é finito, então, X \ Y é infinito.
2.19 Mostre que se X é infinito e Y ⊂ X é finito, então, X \ Y é cardinalmente equivalente a X.
Dentre as situações em que a noção de infinito está presente no ensino básico, destacam-se as
seguintes ideias:
* Não limitação: Dado qualquer número natural n, é possı́vel encontrar um número natural
m > n. O fato de N ser ilimitado implica que N é infinito. O mesmo ocorre com os demais
conjuntos numéricos, Z, Q, R.
* Densidade: Dados quaisquer dois números racionais distintos p < q, é sempre possı́vel encontrar
um número racional r tal que p < r < q. O fato de Q ser denso também implica que Q é infinito.
Esta ideia pode ser menos intuitiva que a de não limitação, pois, para percebê-la, o aluno deve
observar que existe uma quantidade infinita dentro de uma porção limitada da reta numérica. O
mesmo ocorre com os conjuntos dos irracionais R \ Q e dois reais R.
* Potencialidade: As representações decimais para os números racionais e para os números reais
são exemplos de sequências infinitas. Outros exemplos de sequências infinitas podemos estar
presentes no ensino básico. Os mais comumente explorados são as progressões aritméticas e as
progressões geométricas. Nestas situações, a noção de infinito se manifesta potencialmente a
partir de um processo de aproximação ou tendência.
Uma ideia mais sutil, mas ainda presente no ensino médio, é a de comparação de conjuntos infinitos:
* Comparação de cardinalidades: A quantidade infinita de números reais é estritamente maior
que a quantidade infinita de racionais.
2.4. A NOÇÃO DE INFINITO 61
Nos dois Capı́tulos anteriores, discutimos alguns aspectos dos fundamentos dos números naturais,
dos pontos de vista conceitual e histórico, bem como de sua formalização matemática. Esses aspectos
não se transportam de forma direta para a escola básica, isto é, não determinam diretamente a forma
como os conceitos devem ser abordados na escola básica. Entretanto, a reflexão sobre eles tem relações
importantes como as abordagens da escola básica. As questões enunciadas acima se fazem presentes
com frequência em sala de aula do ensino fundamental – e até mesmo no ensino médio. Essas são
questões de naturezas distintas, que destacam relações entre a matemática acadêmica e a matemática
escolar.
A noção de sucessor costuma aparecer em exercı́cios muitas vezes tratados de maneira meramente
procedimental (do tipo “determine o sucessor do sucessor do antecessor do sucessor do número 15”).
Entretanto, este é um conceito central para a formalização matemática dos números naturais. De fato,
na construção axiomática de Peano, o conjunto dos naturais é caracterizado como um conjunto em
que: todo elemento possui um e somente um sucessor; existe um elemento (zero) que não é sucessor
de nenhum outro; nenhum elemento é sucessor de mais de um elemento; e vale o Princı́pio da In-
dução Finita. O termo caracterizar aqui significa que essas propriedades determinam perfeitamente o
conjunto N, no sentido em que N é o único conjunto (a menos de isomorfismo) que satisfaz todas elas.
Evidentemente, este grau de formalismo matemático não deve ser levado para a sala de aula do ensino
básico! Entretanto, o conhecimento da importância do conceito de sucessor para a caracterização de
N por parte do professor deve influenciar indiretamente a prática de sala aula, determinando o papel
deste conceito na abordagem.
63
64 CAPÍTULO 3. NÚMEROS NATURAIS: NA ESCOLA
A questão de 0 ser ou não um número natural costuma ser recorrente no ensino básico. No entanto,
esta é uma questão de natureza bem diferente daquelas que dizem respeito ao conceito de sucessor, uma
vez que para ela não há uma resposta fechada, do ponto de vista teórico matemático. Isto é, é possı́vel
fazer construções igualmente consistentes para o conjunto N incluindo ou não 0 como elemento – o
importante é a consistência teórica interna de cada construção. Os alunos tendem a procurar sempre
por respostas acabadas e definitivas para qualquer questão em matemática. Esta é um exemplo simples
que pode mostrar que nem sempre este é o caso: opções distintas podem levar a construções teóricas
diferentes, porém igualmente consistentes. Em matemática, do ponto de vista teórico, nenhum fato
é verdadeiro absolutamente – a verdade é estabelecida pelas consistência lógica de uma construção,
dados os objetivos a que esta se destina.
A construção de N por meio da noção de sucessor também nos leva a uma ideia importante: a
infinitude dos números naturais. Este é provavelmente a primeira ideia de infinito com que os alunos
têm contato na escola, e está ligada à não limitação superior de N: é sempre possı́vel encontrar um
número natural maior que qualquer outro dado, portanto não existe nenhum número natural maior que
todos os demais.
As questões acima ilustram o espı́rito com que este livro foi construı́do: discutir questões reais e
importantes para a sala de aula do ensino básico, por meio do resgate da organicidade com a matemática
acadêmica e visando com isso, equipar o professor com uma visão superior e panorâmica da matemática
(como propõe Felix Klein em sua obra). É importante deixar claro, contudo, que não propomos que os
patamares de rigor da matemática acadêmica ditem a abordagem no ensino básico, mas sim que a visão
da matemática de um ponto de vista superior inspire indiretamente e fundamente essa abordagem.
Com base nessas perspectivas, procuraremos discutir questões como aquelas propostas no inı́cio
da Parte I (p. 21). No caso dos números naturais, muitas destas questões dizem respeito ao uso da
representação decimal para verificar propriedades e efetuar operações com os algoritmos convencionais.
Por exemplo, ser par é uma propriedade inerente ao número, que pode ser verificada imediatamente
quando sua representação decimal é observada. Mas afinal, o que é um de número par? Por definição:
O fato de que um número é par se, e somente se, sua representação decimal termina em 0, 2, 4, 6
ou 8 é um teorema que decorre dessa definição. Essa resposta sugere naturalmente uma nova questão:
em um sistema de numeração de base diferente, ainda poderı́amos verificar se um número é par ou não
por meio deste mesmo critério?
De forma mais geral, sobre os tópicos de número naturais ensinados na escola (tais como algoritmos
das operações, divisibilidade, números primos), pode-se questionar de que forma eles dependem das
estrutura do sistema de numeração decimal. Em outra palavras, o que mudaria se nosso sistema de nu-
meração fosse outro? O sistema decimal é tão “poderoso” para representar, lidar e operar com números
naturais (assim como outros números reais, de forma geral) e estamos tão acostumados a lidar ele como
padrão, que às vezes nos esquecemos de fazer reflexões como essas, e confundimos caracterı́sticas das
representações com propriedades intrı́nsecas aos números representados. Isto, tendemos a confundir o
número (como quantidade) com a forma como este é representado.
Exemplo 3.1 Em um jogo de futebol, o time de Rodrigo marcou 3 gols no primeiro tempo e mais 2
gols no segundo tempo. Quantos gols o time de Rodrigo marcou nesse jogo?
68 CAPÍTULO 3. NÚMEROS NATURAIS: NA ESCOLA
Assim, a distinção entre as interpretações para uma operação não se dá no campo da ma-
temática. Por exemplo, não existe mais do que uma adição com números naturais – matematicamente
esta operação é uma só. Nesta perspectiva, ensinar matemática envolve levar o aluno a reconhecer o
modelo matemático correspondente à sua interpretação de uma determinada situação.
Nesta seção, propomos uma reflexão sobre as interpretações associadas a cada uma das quatro
operações elementares com números naturais. O objetivo não é esgotar nem classificar em categorias
estanques todas as possı́veis situações a que cada uma das operações se aplica, e sim chamar a atenção
para o fato de que um aluno do ensino fundamental pode ser capaz de associar uma operação a uma
determinada situação, sem que seja capaz de relacioná-la a outra também pertinente.
A identificação dessas interpretações é um objetivo para o professor – não para o aluno. Para
o professor, é fundamental saber planejar a abordagem de forma a incluir situações e atividades que
contemplem cada uma dessas interpretações, de forma a não promover um estreitamento nas concepções
formadas pelo aluno. O aluno não deve ser cobrado pela capacidade de classificar situações envolvendo
uma dada operação entre as interpretações – muito menos ser avaliado ou penalizado por isso. Assim,
não estamos aqui entendendo nem sugerindo como objetivo do ensino das operações que os estudantes
sejam capazes de listar, caracterizar e classificar cada uma dessas interpretações. Para que compreendam
e aprendam as operações básicas, é importante e necessário que os estudantes realizem uma grande
variedade de problemas, envolvendo de forma tão equânime quanto possı́vel diferentes interpretações
associadas a cada uma dessas operações. A discussão que passamos a fazer diz respeito a um saber do
professor, não do aluno.
genérico. Assim, no caso aqui apresentado, será importante destacar que a estrutura
do argumento se preserva para números naturais com uma quantidade qualquer de
algarismos, e que todos os antecessores de potências de 10 são múltiplos de 3 – fatos
que estão na base do argumento formal genérico para o resultado.
3.2.1 Adição
Segundo Caraça [31], adição:
É a operação mais simples e da qual as outras dependem. A ideia adicionar ou somar está já
incluı́da na própria noção de número natural – o que é a operação elementar de passagem de um
número ao seguinte, se não a operação de somar uma unidade a um número?
(Bento Caraça)
Destacam-se duas interpretações principais relacionadas à operação de adição com números naturais:
Segundo essas duas interpretações, a adição identifica o todo obtido a partir de duas partes que
se unem. Assim, por um lado, dada uma situação que contemple uma dessas interpretações, sua
modelagem matemática se estabelece a partir da adição. Observemos os problemas nos quadros a
seguir:
As situações descritas nos problemas do quadro A são mais naturalmente associadas à ideia de
juntar. Por exmplo, juntar os selos nacionais com os selos internacinais compondo uma única coleção
de selos. Já os problemas do quadro B sugerem a ideia de acrescentar: por exmplo, acrescentar 2
novas revistinhas a uma coleção em que havia 3 revistinhas, amplinado assim a coleção anterior. No
entanto, é importante observar que há situações em que essas interpretações são igualmente cabiveis:
Por exemplo: Em um jogo de futebol, o time de Rodrigo marcou 3 gols no primeiro tempo e 2 gols no
segundo tempo. Quantos gols o time de Rodrigo marcou nesse jogo? Nesse caso, para se chegar ao
total de gols da partida, 5, cabem igualmente as duas interpretações, juntar os gols do primeiro tempo
com os gols do segundo tempo ou acrescentar os gols feitos no segundo tempo àqueles já conquistados
no decorrer da partida.
Do ponto de vista da matemática, todas essas situações se equivalem, alcançar o total 5 a partir da
reunião de partes com 3 e 2 unidades. O importante é identificar que nas situações descritas a operação
matemática corresondente é a adição: duas partes se reúnem para determinar um todo. Essa percepção
será fundamental para a compreensão das propriedades da adição e para o entendimento do algoritmo
tradicional de adição. Mais ainda, dará autonomia ao estudante para que estabeleça estratégias próprias
de cálculo, amparadas pelo registro escrio ou realizadas por processos exclusivaente mentais.
No ensino fundamental, os alunos podem perceber, a princı́pio, a validade das propriedades das
operações a partir de situações especı́ficas. É importante abordar essas situações de forma que elas
tenham o papel de exemplos suficientemente genéricos (ver Para Refletir 8).
Carvalho [29] relata uma abordagem com esse objetivo com alunos de 7o. ano (mas que pode
facilemente ser utilizada com alunos de séries anteriores) com potes plásticos contendo pedaços de giz
em quantidades não reveladas aos alunos, em que desenvolve um diálogo envolvendo perguntas que
apelam para a generalização, levando-os a uma demonstração oral das propriedades da adição.
3.2.2 Subtração
A compreensão da operação de adição como identificação de um todo em função de partes que se reúnem
é determinante para a interpretação das situações cuja tradução matemática é a operação de subtração:
determina-se uma das partes, conhecidos o todo e a outra parte, que se relacionam por uma
adição. É desta forma que a subtração é tratada como a operação inversa da adição (embora, como
já observamos, no sentido estritamente matemático a subtração de números naturais não possa nem
mesmo ser considerada como uma operação). Nesta perspectiva, cabem as interpretações principais:
Certamente a interpretação mais facilmente reconhecida e mais comumente explorada para a sub-
tração é a de retirar uma parte do todo para que seja obtida a outra parte (exemplo 3.2). Porém, nem
sempre a quantidade a ser determinada é de fato a quantidade que resta após o processo de retirada
(exemplo 3.3). O que é importante ser percebido é que, retirando-se uma das partes da quantidade
correspondente ao todo, o que se obtém é a outra parte. Portanto, também se resolve o problema do
exemplo 3.3 por subtração, no sentido que, uma vez conhecida a quantidade inicial de lápis e uma das
partes em que essa quantidade foi separada, é possı́vel determinar a outra parte por subtração.
Exemplo 3.2 Mariana tinha 5 lápis. Ela deu 2 para sua prima. Com quantos lápis Mariana ficou?
Exemplo 3.3 Mariana tinha 5 lápis. Deu alguns à sua prima e ficou com 3. Quantos lápis Mariana
deu à prima?
72 CAPÍTULO 3. NÚMEROS NATURAIS: NA ESCOLA
Outras situações que são resolvidas pela subtração envolvem a interpretação de completar. Nestas,
deseja-se determinar quanto falta a uma quantidade para que se alcance outra quantidade dada (exemplo
3.4). Neste caso, o todo corresponde à quantidade almejada, que é obtida pela reunião das partes
identificadas como quantidade existente e quantidade a ser acrescentada.
Exemplo 3.4 Mariana tem 2 lápis e gostaria de ter 5. Quantos lápis Mariana precisa obter para
alcançar a quantidade desejada?
Assim como no caso da adição, uma mesma situação pode ser interpretada de formas diferentes,
cabendo a reiterpretação. No caso do problema do exemplo 3.4, associado facilmente à interpretação de
completar, cabe também a interpretação de retirar. Assim, tomando como 5 a quantidade correspon-
dente ao que se quer atingir, ou seja, a quantidade identificada como todo, retira-se a quantidade que já
se tem, 2, para que seja obtida a quantidade de lápis que está faltando, 3. É importante que o professor
tenha clareza dessas possibilidades para que possa melhor intervir no processo de aprendizagem de seus
alunos.
A interpretação de comparar merece uma reflexão especial. Neste caso, partiremos da ação de
comparar para particularizar sua associação à operação de subtração. De fato, a comparação entre
duas quantidades pode ser estabelecida de diversas formas. Por exemplo, a comparação entre 6 e 2
pode ser: “6 é triplo de 2”, “a razão entre 6 e 2 é 3”, “6 tem 4 unidades a mais do que 2” ou “a
diferença entre 6 e 2 é 4”. Claramente, sob a perspectiva da matemática, as possibilidades listadas não
estão associadas à mesma operação, nem sequer envolvem sempre as mesmas quantidades, além do 6
e do 2. É importante observar que a interpretação de comparar se estabelece, em relação à matemá-
tica, de forma diferente que as interpretações de juntar e retirar, por exemplo. Sob a perspectiva da
matemática, a ação de comparar não tem sua interpretação associada a uma única operação.
As situações de comparação por subtração envolvem duas quantidades dadas e o objetivo de deter-
minar de uma terceira quantidade, que corresponde a quanto uma delas tem a mais (ou a menos) do
que a outra (exemplo 3.5). É importante observar que, neste caso, não há a princı́pio um todo nem
partes identificadas. No entanto, no contexto dos números naturais, cabe a associação da comparação
à subtração seja estabelecida identificando-se o todo como a maior quantidade e uma das partes como
a menor quantidade. Assim, se resgata a outra parte, que pode ser entendida como a quantidade a ser
acrescentada ou a quantidade a ser juntada à menor quantidade. Portanto, em relação à operação de
subtração, a reinterpretação de comparar é possı́vel tanto em relação a retirar como a completar.
Exemplo 3.5 Mariana tem 5 lápis e Bernardo tem 3. Quantos lápis Mariana tem a mais do que
Bernardo?
Em situações que envolvem a interpretação de comparar na subtração, por conta do termo “a mais”,
que é frequentemente inserido na pergunta, é comum que haja confusão, sugerindo a adição ao invés
da subtração. Para agir sobre essa questão é importante que, à mesma situação, sejam estabelecidas
formas diferentes de questionar, como por exemplo, “Quantos lápis Bernardo precisa ainda obter para
alcançar a mesma quantidade do que Mariana?” ou “Quantos lápis faltam para que Bernardo alcance
a quantidade de lápis que Mariana tem?” A situação e a interpretação matemática adequada precisam
ser identificadas e relacionadas para além das palavras que descrevem o problema em questão.
3.2.3 Multiplicação
No ensino básico brasileiro, a ideia mais usada para apresentar a operação de multiplicação com números
naturais é, certamente, a de adição de parcelas iguais. Nessas situações, são conhecidos as parcelas
(iguais) e o número de parcelas, e se procura o todo (correspondente à soma desse número de parcelas).
Por exemplo, o problema 3.6 tem sua solução determinada pelo cálculo de 4 + 4 + 4 + 4 + 4, que
corresponde à 5 × 4. Da mesma forma, dada a multiplicação 5 × 4 não é difı́cil pensar em uma situação
que envolva a soma de 5 parcelas iguais a 4.
Exemplo 3.6 Maria tem 5 envelopes de figurinhas, com 4 figurinhas em cada um. Quantas figurinhas
Maria tem no total?
Essa ideia é tão fortemente vinculada à multiplicação, que muitas vezes é assumida como uma de-
finições para a operação. No entanto, essa interpretação não se generaliza para os conjuntos numéricos
seguintes. Dificilmente, será possı́vel interpretar (−2) × (−3) ou 23 × 58 simplesmente como somas
de parcelas iguais. Portanto, se é levada em conta a preparação para a generalização da
multiplicação para os conjuntos seguintes, é importante refletir cuidadosamente sobre o(s)
significado(s) da operação.
operação. Essa lista, que tem como referência o desenvolvimento do conceito de multiplicação ao longo
de todo o ensino básico, não se restringindo portanto exclusivamente ao conjunto dos números naturais,
evidencia a amplitude do conceito. Além da adição de parcelas iguais, são listados, dentre outras, as
interpretações de agrupamento, saltos, ampliação, área, volume e rotação. Já os PCN [24] para o en-
sino fundamental destacam quatro tipos principais de interpretações associadas à multiplicação: adição
de parcelas iguais, arranjo retangular, cálculo de possibilidades, comparação. Em virtude da diversidades
de situações modeladas pela operação, seria possı́vel listar muitas outras interpretações associadas à
multiplicação. Discutiremos exemplos que ilustram algumas dessas interpretações.
A interpretação da multiplicação como comparação está associada a situações em que as quantidades
de objetos de dois conjuntos são comparadas a partir da identificação de um fator multiplicativo, como
no exemplo 3.7. Neste caso, para determinar a idade da mãe de Joana, é necessário juntar 6 vezes a
idade de Maria, isto é, calcular 7 × 6. A interpretação da multiplicação como ampliação está associada
a situações em que se aumenta uma quantidade mediante um fator multiplicativo (exemplo 3.8).
Exemplo 3.7 Joana tem 7 anos de idade e sua mãe é 6 vezes mais velha. Qual é a idade da mãe de
Joana?
Exemplo 3.8 Uma cerca tem 6 metros de comprimentos. Quero estender a cerca, fazendo-a ficar 3
vezes maior. Quanto medirá a no nova cerca?
Exemplo 3.9 Em uma sala de aula há 3 filas com 5 carteiras cada uma. Quantas carteiras há nessa
sala de aula?
Exemplo 3.10 Uma parte de uma parede será coberta por azulejos. Serão usadas 6 fileiras com 8
azulejos em cada. Quantos azulejos serão usados no total?
Podem ser identificadas caracterı́sticas comuns entre as situações modeladas pela operação de mul-
tiplicação exemplificadas até aqui (exemplos 3.6 a 3.10). Em todas elas, os termos da multiplicação
apresentam papéis diferentes. Um dos termos corresponde à quantidade parcial. O outro termo cor-
responde ao fator pelo qual a quantidade inicial é multiplicada. Isto é, este termo não corresponde
a uma contagem de elementos de mesma espécie da quantidade inicial, e sim ao número de vezes pela
qual essa quantidade é multiplicada. O resultado corresponde à quantidade total, que é da mesma
espécie da quantidade inicial. Desta forma, note que:
* No exemplo 3.6, o termo 4 corresponde à quantidade de figurinhas em cada envelope, isto é, à
quantidade parcial de figurinhas. O termo 5 não corresponde a uma quantidade de figurinhas,
e sim ao número de vezes pelo qual essa quantidade inicial de figurinhas é multiplicada. O
resultado 20 expressa a quantidade total de figurinhas. Assim, multiplica-se a quantidade parcial,
de 4 figurinhas, por um fator 5 e se obtém a quantidade total, de 20 figurinhas.
* No exemplo 3.7, multiplica-se 7 anos por 6 e se obtém 42 anos. O termo 7 e o resultado 42
correspondem a quantidades de anos, mas o termo 6 não.
* No exemplo 3.8, multiplica-se 6 metros por 3 e se obtém 18 metros. O termo 6 e o resultado 18
correspondem a quantidades de metros, mas o termo 3 não.
* No exemplo 3.9, multiplica-se 5 cadeiras por 3 e se obtém 15 cadeiras. O termo 5 e o resultado
15 correspondem a quantidades de cadeiras, mas o termo 3 não.
* No exemplo 3.10, multiplica-se 8 azulejos por 6 e se obtém 48 azulejos. O termo 8 e o resultado
48 correspondem a quantidades de azulejos, mas o termo 6 não.
* significado aditivo: são dados uma quantidade parcial e um número de vezes, e se pergunta
a quantidade total.
76 CAPÍTULO 3. NÚMEROS NATURAIS: NA ESCOLA
É claro que tanto as quantidades parcial e total, como o número de vezes são números naturais: no
caso da multiplicação em N, os termos são dois números naturais e o resultado também é um número
natural. É verdade também que, no caso particular da multiplicação com naturais, todas as situações
exemplificadas até aqui podem, de certa forma, ser reinterpretadas como adição de parcelas iguais.
Entretanto, a reflexão sobre o fato de que os termos de uma multiplicação apresentam papéis diferentes
será importante para as interpretações das operações de multiplicação e divisão com números racionais
e com números reais (como veremos Capı́tulos 7, 9, 10 e 12).
A interpretação da multiplicação como arranjo retangular conduz também à identificação de outras
interpretações associadas à operação, em especial: cálculo de áreas e cálculo de possibilidades. No caso
da interpretação como cálculo de áreas, são multiplicadas medidas dos lados de um região retangular
(exemplo 3.11). No caso particular da multiplicação com números naturais, podem ser usados apenas
exemplos de lados com medidas inteiras.
Exemplo 3.11 Uma muro retangular tem base medindo 8m e altura medindo 6m. Qual é área do
muro?
Exemplo 3.12 Maria tem 3 camisetas e 2 calças. De quantas maneiras diferentes Maria pode se vestir
usando uma dessas camisetas e uma dessas calças?
Nos exemplos 3.11 e 3.12, o resultado da multiplicação corresponde a uma quantidade que não é
da mesma espécie dos termos da operação.
* No exemplo 3.11, multiplica-se 8 metros por 6 metros e se obtém 48 metros quadrados. Os termos
8 e 6 correspondem a quantidades de anos. O resultado 48 corresponde a uma quantidade metros
quadrados (e não de metros).
* No exemplo 3.12, multiplica-se 3 blusas por 2 calças e se obtém 6 possibilidades de combinação.
Os termos 3 e 2 correspondem a quantidades de roupas. O resultado 6 corresponde a um número
de possibilidades de combinação (e não de blusas ou de calças).
3.2. AS OPERAÇÕES ELEMENTARES: CONTEXTOS, INTERPRETAÇÕES E SIGNIFICADOS 77
Assim, as interpretações da multiplicação como área e possibilidades (assim, como volume, dentre
outras) podem ser associadas a outro significado:
* : significado transcendente: são dadas duas quantidades, que podem ou não ser de mesma
espécie, se obtém quantidade que é de outra espécie.
Não se pode atribuir, neste caso, um significado aditivo à multiplicação, uma vez que nenhum dos
dois termos desempenha um papel de partes, nem o resultado tem um papel de todo. A área de um
retângulo não é um “todo”, do qual os comprimentos dos lados são “partes”. Da mesma forma, o
número de possibilidades de uma combinação não é um “todo”, do qual os objetos combinados são
“partes”. Neste significado se produz uma quantidade de nova espécie em relação às quantidades
operadas.
3.2.4 Divisão
A divisão é, entre as operações básicas, a mais complexa e a que determina maiores desafios para o
ensino e para a aprendizagem. Comparada às demais operações elementares, a divisão com números
naturais é diferente no seguinte sentido, Enquanto na adição, na subtração e na multiplicação temos
dois valores de entrada e obtemos apenas um terceiro valor de saı́da, que é o resultado da operação; a
divisão com naturais envolve dois valores como resultado: o quociente e o resto. O fato de
obtermos duas informações como resultado de uma divisão com naturais faz com que problemas que
envolvem esta operação em um mesmo contexto possam ter respostas diversificadas.
Exemplo 3.13 Uma empresa de ônibus tem veı́culos com capacidade para 53 passageiros. Nossa
Escola fará um passeio no Dia das Crianças, com 4 professores acompanhando os alunos.
(a) Quantos ônibus dessa empresa será preciso alugar se 155 alunos confirmarem presença?
(b) Quantos ônibus dessa empresa será preciso alugar se 120 alunos confirmarem presença?
(c) Sabendo que a Escola possui 170 alunos e que, com a quantidade de alunos que confirmaram
presença, os 3 ônibus alugados dessa empresa foram lotados, quantos alunos não confirmaram
presença?
78 CAPÍTULO 3. NÚMEROS NATURAIS: NA ESCOLA
Note que o problema anterior fica resolvido, nos três casos, pela mesma operação, a divisão. No
entanto, ora a resposta é o quociente (item a), ora é o resto (item c) e ora não é nem o resto nem o
quociente (item b).
A divisão no conjunto dos naturais (assim como nos inteiros) é chamada de divisão euclidiana. No
ensino básico, ela costuma ser referenciada como divisão com resto.
A divisão com resto faz parte do dia a dia da criança, como nos mostra o exemplo 3.13. Portanto, sua
discussão não pode ser adiada para o momento em que o universo numérico da criança for aumentado
para os números racionais. É importante explorar as informações que o quociente e o resto fornecem,
como nesse exemplo.
(a) Se confirmem presença 155 alunos, como 159 = 53 × 3, a Escola terá que alugar 3 ônibus.
(b) Se confirmem presença 120 alunos, como 124 = 53 × 2 + 18, a Escola também terá que alugar
3 ônibus. Porém, serão necessários 2 ônibus completos (quociente) e um terceiro para 18 alunos
(resto). Sobrarão 35 lugares vagos.
(c) Se a Escola lotar os 3 ônibus alugados, como 174 = 53 × 3 + 15, 15 alunos não confirmaram
presença.
Assim como ocorre no caso da multiplicação, há uma interpretação predominante para a operação
de divisão no ensino fundamental. A divisão com naturais é quase sempre apresentada a partir da ideia
de repartição em parcelas iguais. Nessas situações, são conhecidos o todo e o número de partes
(iguais) em que este é divido, e se procura o tamanho de cada parte. Por exemplo, a solução do
problema 3.14 consiste em repartir o total de 20 figurinhas em 5 envelopes.
Exemplo 3.14 Maria tem um total de 20 figurinhas, divididas em 5 envelopes (com a mesma quanti-
dade de figurinhas em cada um). Quantas figurinhas há em cada envelope?
A divisão é tão fortemente interpretada apenas como repartição em partes iguais, que muitas vezes
essa interpretação é considerada como uma definição para as operação. Porém, dificilmente será
5
possı́vel interpretar 12 ÷ 23 simplesmente como repartição em partes iguais. Portanto, visando à
preparação para a generalização da divisão para os números racionais, é importante refletir
cuidadosamente sobre o(s) significado(s) da operação.
O significado aditivo da multiplicação se desdobra em dois significados para a divisão (como
processo inverso da multiplicação). A mesma situação do exemplo 3.14 pode gerar outro problema (ver
exemplo 3.15).
Exemplo 3.15 Maria tem um total de 20 figurinhas, divididas em envelopes. Em cada envelope cabem
4 figurinhas. Quantos envelopes de figurinhas tem Maria?
Assim, no problema do exemplo 3.14, são dados a quantidade total de figurinhas e o número de
envelopes, e a pergunta é a quantidade de figurinhas em cada envelope. Por outro lado, no exemplo
3.15, os dados são a quantidade total de figurinhas e a quantidade de figurinhas em cada envelope, e
a pergunta é e o número de envelopes. Esses problemas ilustram, dois significados diferentes para a
divisão, a saber:
80 CAPÍTULO 3. NÚMEROS NATURAIS: NA ESCOLA
Por exemplo, tanto o professor das séries iniciais como o licenciado em matemática devem ser
capazes de avaliar a estratégia de resolução da divisão descrita na questão anterior, levando em conta
que não existe um processo único para resolver cada operação e que a legitimidade de
cada um destes é estabelecida pela estrutura do sistema de numeração posicional (no caso,
decimal) e pelas propriedades das operações.
Frequentemente, o ensino das quatro operações elementares com números naturais resume-se à
simples apresentação de algoritmos para efetuá-las, como “regras” ou “receitas”, sem que sua estrutura
subjacente seja revelada. Não é raro deparar-se com estudantes que não compreendam o porquê de
os algoritmos funcionarem – ou, mais grave ainda, que nem mesmo admitam outras formas de realizar
os cálculos, por considerarem os algoritmos como regras únicas, dadas, cuja validade prescinde de
justificativas matemáticas.
As estruturas dos algoritmos usuais das quatro operações elementares dependem, fundamental-
mente:
1. das propriedades das operações;
2. da estrutura do próprio sistema de numeração posicional (no nosso caso, decimal).
Assim, esses algoritmos envolvem procedimentos de decomposição e de reagrupamentos dos números
baseadas na sua representação decimal (como por exemplo, aqueles comumente chamados de “vai
um” e “pedir emprestado”). Não é incomum que os algoritmos sejam apresentados como regras
dadas, sem que sejam exploradas as relações com as propriedades das operações e com a representação
decimal. Além disso, em geral não são apresentados outros procedimentos para efetuar as operações,
que não os algoritmos padronizados. Tal modelo de abordagem não contribui para a compreensão
conceitual dos números e das operações, nem estimula o desenvolvimento da autonomia para realização
de cálculos. Em consequência, não é raro encontrarmos estudantes que, embora possam realizar os
algoritmos padronizados com certa destreza, não compreendem o porquê de sua validade, nem tenham
autonomia para avaliar outras possı́veis estratégias para obter os resultados (tais como cálculo mental,
por exemplo).
Neste texto, não enfocaremos especificamente a explicação dos algoritmos padronizados, mas em
avaliar refletir sobre estratégias diversas de cálculo. Explorar diferentes estratégias, além dos algo-
ritmos comumente ensinados no ensino fundamental, contribui para ampliar a compreensão
de conceitos, propriedades e interpretações das operações. Em particular, estratégias de cálculo
mental envolvem diferentes combinações e formas de explorar as propriedades das operações e a com-
posição e decomposição de números no sistema decimal. Esses procedimentos, referidos como mentais,
não precisam ficar restritos a essa qualidade – podem e devem ser parte de estratégias registradas com
lápis e papel. O importante é justamente explorar a variedade. Os estudantes devem ser convidados a
experimentar e analisar diferentes formas de realizar os cálculos, a compartilhar e comparar estratégias,
mentais ou não.
Paralelamente ao desenvolvimento da compreensão dos diferentes algoritmos e estra-
tégias de cálculo, é fundamental o estı́mulo à prática de fazer estimativas por parte dos
alunos. Essa prática possibilita que criação de expectativas para o valor aproximado ou para a ordem
de grandeza dos resultados, antes que estes sejam obtidos de forma exata, favorecendo a formação de
uma visão crı́tica para o resultado, bem como a construção efetiva de significado para as operações e
para os próprios algoritmos.
Exemplo 3.23 A estratégia adotada a seguir também se estabeleceu a partir da utilização das pro-
priedades associativa e comutativa da adição, agora não mais apoiada, num primeiro momento, na
decomposição das parcelas no sistema decimal: nas linhas correspondentes ao desenvolvimento do
cálculo, 900 indica a soma de 750 com 150. Esse processo reflete uma boa estratégia para a execução
mental do cálculo.
A estratégia mais “eficiente” para efetuar uma adição pode depender das propriedades das parcelas
que estão sendo somadas. Por exemplo, para efetuar a adição 125 + 25 + 150, seria necessário “armar a
conta”, empregando o algoritmo padronizado? A estratégia empregada neste caso talvez não funcione
tão bem para calcular 125 + 25 + 150, por exemplo. Portanto, mais importante do que memorizar cada
algoritmo especı́fico é entender os fundamentos matemáticos que os legitimam.
3.3. AS OPERAÇÕES ELEMENTARES: DIVERSIFICANDO ALGORITMOS 85
Exemplo 3.24 Consideremos o cálculo da diferença entre 200 − 68, conforme indicado na figura 3.7.
Pensemos na sua execução pelo algoritmo tradicional. É fato que se trata de uma execução mais
complexa do que a exigida para efetuar, por exemplo, 289 − 68 pelo mesmo processo. (Por quê?)
No entanto, para efetuar o mesmo cálculo mentalmente, o algoritmo tradicional pode não ser a
melhor estratégia. Não é raro que se efetue mentalmente 200 − 60 = 140 e, em seguida, 140 − 8 = 132.
Esta estratégia é novamente legitimada pela decomposição dos números no sistema decimal e por
propriedades das operações. Outra possibilidade, que sugere uma interpretação diferente para o mesmo
cálculo, determina o resultado efetuando simplesmente 2 + 30 + 100 = 132. Nesse caso, determina-se,
em etapas, quanto falta para completar 70, depois 100 e, por último, 200. Essas variações, além de
novas formas de decomposição dos números envolvidos, abarcam conceitos, significados, interpretações
e propriedades da operação em si. Aqui estão sendo envolvidas a adição e a subtração, bem como
propriedades que relacionam as duas.
Exemplo 3.25 No cálculo indicado na figura 3.8, a estratégia utilizada se estabelece a partir de uma
propriedade fundamental da subtração de números reais que, uma vez observadas as restrições, se
mantém válida em N: Dados a, b e r números reais, tem-se que a − b = (a − r) − (b − r). No exemplo,
5000 − 3456 = (5000 − 1) − (3456 − 1) = 4999 − 3455 = 1544. Neste caso, diferentemente do
algoritmo tradicional, a atenção se estabelece sobre uma propriedade da operação e não na estrutura
do sistema de representação dos números.
Exemplo 3.26 A subtração em destaque na figura 3.9 reflete uma estratégia de cálculo mais complexa
ainda. Fundamentada na mesma propriedade a−b = (a+r)−(b+r), sua aplicação é mais sofisticada e
não claramente explı́cita. O algoritmo é desenvolvido em duas etapas: a obtenção do número 2135 se dá
86 CAPÍTULO 3. NÚMEROS NATURAIS: NA ESCOLA
não a partir da decomposição do número 2012 e sim pela adição de 3 unidades, 2 dezenas e 1 centena
a esse número; daı́, as mesmas unidades acrescentadas são acrescentadas também ao subtraendo,
de modo que ao final devem ser excluı́do por subtração o número 1110 na etapa intermediária. O
objetivo desta estratégia agora fica evidente: esta subtração tornou-se mais simples que a original.
A compreensão desse processo exige tanto bom conhecimento da estrutura do sistema decimal como
conhecimentos das propriedades da subtração. Para efetuar 6543 − 5678 pode-se utilizar a mesma
estratégia explorada no cálculo apresentado na figura 3.9.
Exemplo 3.27 Deixamos ao leitor a tarefa de observar a subtração ilustrada na figura 3.10 e procurar
identificar a estratégia aı́ utilizada.
Ampliando a Reflexão
3.1 A decomposição dos números que estão sendo multiplicados tomando como referência as ordens
do sistema de numeração não é a única forma de se organizar os reagrupamentos para aplicar a
propriedade distributiva.
Procure identificar, nos processos a seguir, os reagrupamentos realizados para o cálculo de 24 × 9:
3.2 A figura a seguir ilustra um algoritmo para efetuar a multiplicação. Esse processo também
observa a decomposição dos números envolvidos a partir das ordens no sistema decimal. No
exemplo tem-se o cálculo de 25 × 49, cujo o resultado é 1225 (figura abaixo, do lado esquerdo).
3.3. AS OPERAÇÕES ELEMENTARES: DIVERSIFICANDO ALGORITMOS 89
O processo de divisão envolve obrigatoriamente (seja por qual método for) as operações de mul-
tiplicação e de subtração (esta última para calcular os restos parciais). Este é um outro ponto que
enfatiza a maior complexidade desta operação. Observemos o exemplo a seguir.
Exemplo 3.28 Consideremos a divisão de 845 por 15, realizada a seguir de três maneiras diferentes
(figura 3.15).
O processo B é comumente identificado como divisão por ordens e nada mais é do que um caso
particular do processo A. Neste processo, as estimativas são otimizadas a cada passo, a partir da
observação da representação decimal do dividendo. Assim, no exemplo, não é possı́vel começar com
a subtração de 15 três vezes. Neste processo, como 8 não admite divisão por 15, inicia-se a partir
da observação das dezenas. O primeiro cálculo determina com precisão que a divisão de 84 dezenas
por 15, resulta em quociente 5 (dezenas) e resto 9 (dezenas). O 5 corresponde, então, ao algarismo
das dezenas na representação do quociente. Restam, portanto, 9 dezenas e 5 unidades, totalizando 95
unidades que ainda devem ser divididas por 15, o que determina o quociente 6 (unidades) e resto 1. O
6 indica o algarismo das unidades na representação do quociente.
Observamos claramente que, nos processos A e B, mais comuns no ensino de matemática das
escolas brasileiras, a organização dos termos da divisão é diferente da organização que caracteriza o
processo C. A organização indicada no processo C facilita o desenvolvimento da divisão por ordem,
uma vez que propõe o alinhamento entre as ordens que compõem o dividendo e o quociente, de forma
semelhante à organização dos algoritmos tradicionais de adição e de subtração.
3.3. AS OPERAÇÕES ELEMENTARES: DIVERSIFICANDO ALGORITMOS 91
Note a facilidade com que este algoritmo pode ser ampliado para o campo numérico
dos racionais, tanto representando a fração imprópria quanto representando o resto.
Ampliando a Reflexão
3.3 Uma calculadora está com defeito. Das teclas que indicam as operações, apenas a da subtração
está funcionando. Pergunta-se: a calculadora pode ser-lhe útil para realizar a operação 608÷105?
Em caso afirmativo, como?
92 CAPÍTULO 3. NÚMEROS NATURAIS: NA ESCOLA
3.4 Suponha que o seguinte problema tenha sido resolvido por dois estudantes, chamados de A e de
B, de uma turma do 6o. ano do ensino fundamental, das formas a seguir.
A seguir está representada uma sequência formada por cartões com as letras A, B,
C, D, E e F, que se repetem nesta ordem sucessivamente de 6 em 6. Se a sequência
assim formada tiver 632 cartões, quantas vezes cada uma das letras aparecerá?
Aluno A Aluno B
Comente a solução apresentada por cada estudante. Sobre a aprendizagem desses estudantes, que
questões conceituais são sugeridas? Comente as dificuldades próprias do conceito e das técnicas
operatórias de divisão.
3.5 A seguir, são mostradas cinco contas de multiplicação e de divisão efetuadas de várias maneiras.
Verifique quais destas estratégias estão certas e quais erradas e tente explicar os erros cometidos.
Discuta como estes erros podem ajudar a entender o processo de aprendizagem dos alunos e ser
usados em sala de aula como ferramenta pedagógica.
(a)
3.3. AS OPERAÇÕES ELEMENTARES: DIVERSIFICANDO ALGORITMOS 93
(b)
(c)
(d)
94 CAPÍTULO 3. NÚMEROS NATURAIS: NA ESCOLA
(e)
A professora pediu aos seus alunos que utilizassem uma régua de 30cm para medir o compri-
mento de suas mesas. Verificou-se que o comprimento de cada mesa era de 160cm. Então,
a professora perguntou: Quantas réguas cabem no comprimento de uma dessas mesas?
Elabore uma sequência de perguntas que ajude seus alunos a fazerem estimativas e a entenderem
o algoritmo para obter a resposta.
3.7 Explique a importância de fazer estimativas quando estamos aplicando o algoritmo da divisão.
Dê sugestões de estratégias para estimular os alunos a fazer estimativas na divisão, de forma a
ajudá-los a reconhecer a importância desta prática.
3.8 Elabore atividades de cálculo mental envolvendo divisões tendo como divisores números naturais
com dois e três algarismos.
3.9 Para cada uma das interpretações associadas à operação de multiplicação com números naturais,
elabore um exemplo de atividade que possa ser desenvolvida com seus alunos.
3.10 Para cada uma das interpretações associadas à operação de divisão com números naturais, elabore
um exemplo de atividade que possa ser desenvolvida com seus alunos.
Parte II
Números Inteiros
95
Capı́tulo 4
97
98 CAPÍTULO 4. NÚMEROS INTEIROS: DE ONDE VÊM?
Essa reconstrução tem implicações também para as interpretações das operações elementares. Com
números positivos a adição está necessariamente associada à ideia de aumentar quantidades. Adições
envolvendo números negativos podem gerar resultados menores que as parcelas originais. A operação
de multiplicação de números naturais é construı́da como adições repetidas e pode ser interpretada com
base nas ideais de ampliação ou de dilatação: multiplicar por 2 é dobrar uma quantidade de tamanho.
A multiplicação por fatores negativos preserva a ideia de dilatação, no entanto acopla a esta uma nova
ideia: a de reflexão. Assim, é interpretada como uma dilatação composta com uma reflexão. Multiplicar
por 2 é dobrar uma quantidade de tamanho, preservando seu sentido; enquanto multiplicar por −2 é
dobrar uma quantidade de tamanho e inverter seu sentido.
Nesta seção, discutiremos brevemente os processos históricos que levaram à consolidação do con-
ceito matemático de número negativo, como o entendemos hoje. Os mesmos problemas matemáticos
conduziram à aceitação das quantidades negativas e das quantidades imaginárias (hoje identificadas
com os números complexos) com o estatuto de número em matemática. Essa aceitação está ligada
à construção de uma interpretação geométrica consistente para essas quantidades (às quais antes se
referia por meio de termos como absurdas, falsos, impossı́veis) e para suas operações.
* o Renascimento, quando a resolução de equações faz a aparecer números indesejáveis, que não
possuı́am um estatuto definido em matemática;
* o século XVII, com o desenvolvimento de uma teoria das curvas e das equações, e em seguida, com
a proliferação de métodos infinitos para resolver problemas associados ao cálculo infinitesimal,
como o das quadraturas;
* as tentativas de formalização e algebrização destes procedimentos, que marcaram o desenvolvi-
mento da análise matemática no século XVIII, sobretudo com os trabalhos de Euler e Lagrange;
* o inı́cio do século XIX, quando foram sugeridas diversas representações geométricas para legitimar
os números negativos e complexos.
Temos aqui um exemplo significativo da distância que separa os momentos heurı́sticos, das fases de
teorização e aceitação de novos conceitos em matemática. Hoje em dia, a apresentação mais comum
dos diferentes tipos de número segue a sua organização como inclusão de conjuntos numéricos. No
entanto, esse modelo é muito recente. Somente no século XIX foi proposta a noção de conjunto e
somente no XX essa noção foi adotada como base para o edifı́cio matemático.
Sendo assim, expor a evolução dos tipos de número admitidos em matemática partindo de conjuntos
numéricos é um anacronismo indesejável. Se queremos entender o surgimento de novos números a partir
dos problemas em que se inserem, ainda que sejam problemas matemáticos, precisamos inverter a ordem
lógica da exposição para atingir a ordem da invenção.
Na álgebra dos séculos XVI e XVII, os números negativos e números imaginários apareciam no cálculo
ou nas soluções de equações, apesar de não possuı́rem um estatuto definido. Cardano, por exemplo,
100 CAPÍTULO 4. NÚMEROS INTEIROS: DE ONDE VÊM?
admitia raı́zes negativas de equações, mas designava estas soluções como “fictı́cias” e não admitia que
“menos com menos” pudesse dar mais. Apesar do reconhecimento de sua utilidade prática para os
cálculos, eles não eram considerados verdadeiros números, ou seja, verdadeiros objetos matemáticos.
Isto porque os objetos que deviam ser admitidos na matemática ainda se confundiam com as grandezas
geométricas.
Quando, em 1629, Albert Girard introduziu o problema de saber qual o número de raı́zes de uma
equação qualquer, afirma-se que todas as equações possuem tantas soluções quanto o grau da quanti-
dade de maior grau, o que consiste em uma primeira versão do que conhecemos hoje como “Teorema
Fundamental da Álgebra”. Obviamente, para admitir este número de soluções, será necessário admitir
como válidas as soluções que ele chama de “impossı́veis”. Mas para que servem estas soluções se elas
são impossı́veis? Girard responde que elas servem pela sua utilidade, mas, sobretudo, para garantir a
generalidade do resultado:
Todas as equações da álgebra recebem tantas soluções quanto a denominação da mais alta quan-
tidade, exceto as incompletas. (. . . ) Poderı́amos perguntar para que servem as soluções que são
impossı́veis, respondo que para três coisas: para a certeza da regra geral, para a certeza de que
não há outra solução e pela sua utilidade.
(A. Girard, L’Invention Nouvelle en Algèbre)
Alguns anos mais tarde, em sua Geometria, Descartes também irá admitir que uma equação possui
tantas raı́zes quantas são as dimensões da quantidade desconhecida. No entanto, Descartes afirma que
pode acontecer que algumas destas raı́zes sejam “falsas ou menos que nada” e investiga quantas são
as verdadeiras e quantas são as falsas para uma equação qualquer.
Resultados como os que antecederam o Teorema Fundamental da Álgebra levam à necessidade de
se considerar todas as raı́zes. Aqui, a exigência algébrica traz o problema de se fundar um estatuto
para as quantidades negativas e imaginárias, mas ainda não era colocado o problema de fornecer uma
definição, nem uma representação para estes números.
O século XVIII apresentou uma intensa atividade em torno da forma do “imaginário”, por exemplo
por D’Alembert e Euler, que afirma que toda fração formada por adição, subtração,
√ multiplicação ou
√ envolvendo quantidades imaginárias quaisquer da forma M +N −1, terá também a forma
por divisão,
M + N −1, em que as letras M e N representam quantidades reais. Nessa linha, inserem-se algumas
controvérsias, como a que dizia respeito aos logaritmos dos números negativos e números imaginários.
Apesar de toleradas, pela sua utilidade prática na realização de cálculos, estas quantidades não eram
consideradas rigorosas. Somente a partir do final do século XVIII e inicio do século XIX começaram
a ser sugeridas diferentes representações geométricas para os números negativos e complexos, o que
fará, mais tarde, com que essas quantidades fossem aceitas no universo dos números. Além do nome
de Gauss, o matemático mais conhecido a propor uma representação geométrica para os números
complexos, também serão importantes os nomes do dinamarquês Caspar Wessel, do suı́ço Jean-Robert
Argand, dentre outros.
Começa-se por tratar das quantidades negativas, uma vez que estas quantidades não podiam ser
rejeitadas, sob o risco de termos que questionar diversos resultados algébricos importantes. Tomemos
as grandezas a, 2a, 3a, 4a, etc. É evidente que podemos acrescentar grandezas ao infinito. Mas e
a operação inversa? Podemos subtrair a grandeza a de cada um dos termos anteriores, obtendo: 3a,
2a, a, 0. Mas e depois? Como prosseguir? Que sentido atribuir à subtração 0 − a? Os termos que
seguem só podem existir na imaginação, sendo ditos, por isso, “imaginários”. Mas Argand irá propor
uma construção capaz de assegurar, em suas próprias palavras, alguma “realidade” a estes termos.
Imaginemos uma balança com dois pratos A e B. A crescentemos ao prato A as quantidades a, 2a,
3a, 4a, e assim sucessivamente, fazendo com a balança pese para o lado do prato A. Se quisermos,
podemos retirar uma quantidade a de cada vez, restabelecendo o equilı́brio. E quando chegamos a 0?
Podemos continuar retirando estas quantidades? Sim, afirma Argand, basta acrescentá-las ao prato
B. Ou seja, introduz-se aqui uma noção relativa do que “retirar” significa: retirar do prato A significa
acrescentar ao prato B. Deste modo, as quantidades negativas puderam deixar de ser “imaginárias”
para se tornar “relativas”.
A idéia de relação entre grandezas assim introduzida por Argand inclui a idéia de uma relação
numérica, que depende dos valores absolutos das grandezas, e a idéia de uma relação de orientação,
que pode ser uma relação de identidade ou de oposição. Argand consegue que as quantidades negativas
se tornem “reais” reunindo as noções de “quantidade absoluta” e de “orientação”, como vemos na
figura abaixo. Observamos que, quando o matemático suı́ço afirmava que os números negativos (ou
imaginários) podiam, com esta representação, tornar-se “reais”, ele emprega esta palavra em seu sentido
usual, e não no sentido matemático que se refere aos “números reais”, assim denominados bem depois
da época de que estamos tratando.
A representação proposta por Argand permite atribuir um sentido às operações com números nega-
tivos, como, por exemplo, à multiplicação por −1, que passa a ser vista como uma reflexão em relação
à origem. Isto possibilita entender mais facilmente porque (−1) × (−1) = 1, pois basta observar que,
após a reflexão de −1 em relação à origem, obtém-se +1.
Mas será possı́vel obter o mesmo sucesso para as raı́zes dos números negativos, quantidades também
consideradas “imaginárias”? Estabelecida uma representação para as grandezas relativas (positivas e
negativas) como grandezas direcionadas, Argand passa a analisar todas as possibilidades de relação de
proporção entre estas grandezas, obtendo que:
+1 : +1 :: −1 : −1 e +1 : −1 :: −1 : +1.
102 CAPÍTULO 4. NÚMEROS INTEIROS: DE ONDE VÊM?
Sabemos que a média proporcional entre grandezas unitárias de mesmo sinal é +1 ou −1, pois se
−1 : +x :: +x : −1, ou se +1 : +x :: +x : +1, então a quantidade x deve ser +1 ou −1, em cada
um dos casos. Cabe, portanto, perguntar: como seria possı́vel determinar a média proporcional entre
duas grandezas de sinais diferentes? Argand procura, então, as grandezas que satisfazem à proporção
+1 : +x :: +x : −1 e encontra a resposta por meio do diagrama representado na figura 4.3.
K K K K
I A I A I A I A
N N N N
Figura 4.4: A proporção +1 : +x :: +x : −1, segundo Argand: KA está para KE assim como KE
está para KI; KA está para KN assim como KN está para KI.
Lembramos que a representação dos números negativos decorreu da concepção de uma oposição
entre duas direções, estabelecida a partir de um ponto neutro definido como o ponto 0. Na balança
de Argand, o 0 pode ser visto como ponto de apoio entre os braços. Este 0 não é propriamente um
“nada”, nem o número negativo é um “menos que nada”, mas o 0 é o referencial que permite a escolha
(decisão) de uma orientação que tornará um número positivo ou negativo.
4.4. A REPRESENTAÇÃO DE GAUSS 103
Se considerarmos o número apenas como um agregado de coisas, como uma pluralidade ou como
uma contagem, como no caso dos números naturais, o +1 será sempre ligado a acrescentar algo mais,
operação que pode ser repetida infinitas vezes, mas não o inverso. Isto é, não é possı́vel “retirar algo
infinitas vezes”. A balança de Argand consegue reverter esta dessimetria entre positivos e negativos, a
partir da qual o 0 pode ser visto como ponto de apoio dos braços que devem se re-equilibrar, à direita
e à esquerda, ao passo que acrescentamos ou retiramos pesos a cada um dos pratos. Assim, o ato de
acrescentar está associado a somar uma quantidade positiva, e o de retirar a somar uma quantidade
negativa. Sabemos hoje que devemos dispor os números negativos sobre uma reta orientada para que
eles se realizem. A operação de multiplicação por um número negativo só será plenamente compreendida
como reflexão (−1 × −1 = +1).
Para a representação das quantidades imaginárias, obtemos o mesmo sucesso combinando as idéias
de grandeza absoluta e de orientação, mas a orientação não é mais restrita a uma oposição, pois a
proporção impõe a +1 estar para +x como +x está para −1. Portanto, √ temos uma nova direção que,
neste caso, deve ser uma perpendicular.
√ √A multiplicação por −1 deve ser entendida agora como
uma rotação. As quantidades + −1 e − −1 tornam-se “reais” porque podemos concebê-las como
orientações distintas na direção perpendicular que determinam dois lados opostos para o segmento
inicial IA. Como requerido pela média proporcional, a orientação positiva está para a perpendicular
como esta perpendicular está para a orientação negativa, e vice-versa. Temos agora, no lugar de uma
reflexão, uma rotação. O zero não é, portanto, um ponto neutro, mas um centro de rotação, o ponto
que organiza o giro. A oposição pode ser vista, agora, como o produto do√giro, fixando os extremos de
uma rotação (se pensarmos a reflexão como o extremo de uma rotação, −1 = −1).
Podemos compreender facilmente esta figura geométrica se pensamos no modo como representamos
hoje uma multiplicação de complexos: como uma rotação combinada com uma dilatação. Do ponto de
vista formal, os complexos poderiam ser compreendidos por procedimentos algébricos, mas foram idéias
como as de Argand que forneceram a intuição que faltava para que estes números fossem plenamente
aceitos. Somente os sı́mbolos não poderiam realizar as quantidades “imaginárias”, que seriam desti-
nadas a permanecer imaginárias, pois será justamente a realidade destes números que levará Gauss a
sugerir que eles não se chamem mais “imaginários”, e sim “complexos”.
O matemático faz abstração completa da natureza dos objetos e do significado das suas relações:
ele só precisa enumerar as relações e compará-las entre si.
(Gauss, Werke, t.II, p. 176)
Não será mais necessário, portanto, qualificar as quantidades negativas e imaginárias pela sua
natureza, o que as levava a serem consideradas “sofisticadas”, “absurdas”, “impossı́veis”, “falsas” ou
104 CAPÍTULO 4. NÚMEROS INTEIROS: DE ONDE VÊM?
“imaginárias”. Daqui por diante, estas quantidades poderão se tornar números propriamente ditos,
ocupando um lugar na aritmética, “números complexos” sobre os quais será possı́vel efetuar cálculos
de modo consistente. As quantidades negativas e complexas passam a ser objetivas, mas, conforme a
definição da objetividade matemática proposta por Gauss, elas serão entendidas como relações.
Os números negativos só podem ser compreendidos, segundo Gauss, quando entendemos que “as
coisas contadas” podem ser de espécies opostas, de modo que a unidade de uma espécie possa neu-
tralizar a unidade de outra espécie (como +1 e −1). Para isso, ele afirma que as coisas contadas não
devem ser encaradas como substâncias, como objetos considerados em si mesmos, mas como relações
entre esses objetos:
É necessário que estes objetos formem, de algum modo, uma série como . . . A, B, C, D, . . . e que
a relação que existe entre A e B possa ser vista como igual àquela que existe entre B e C e assim
por diante. Essa noção de oposição implica ainda uma possı́vel troca entre os termos da relação,
operando de modo que, se a relação (ou a passagem) de A a B é indicada por +1, a relação de
B a A é indicada por −1.
(Gauss, Werke, II, p.175-176; Beman, pp.178-179)
Capı́tulo 5
Neste Capı́tulo, descreveremos em linhas gerais uma construção formal para o conjunto dos números
inteiros, destacando algumas articulações importantes com o ensino desses números na escola básica.
Como veremos a seguir, nesta construção, que se baseia na noção de classe de equivalência, cada
número inteiro é obtido como uma classe de subtrações equivalentes. De forma análoga, na Parte III
deste livro, descreveremos a construção do conjuntos dos racionais por classes de equivalência, em que
cada número racional é obtido como uma classe de divisões equivalentes. Começaremos recordando os
conceitos matemáticos que sustentam essas construções: relações de ordem e relações de equivalência.
Assim como no caso do Capı́tulo 2, o objetivo deste Capı́tulo não é discutir ou propor aborda-
gens para aplicação direta a sala de aula, e sim destacar relações importantes entre aspectos
do conceito de número inteiro, comumente tratados no ensino básico, e sua fundamentação
matemática. Algumas das atividades propostas nas seções Ampliando a Reflexão abordam demons-
trações de proposições que fazem parte da construção matemática. Referências para a resolução dessas
atividades podem ser encontradas, por exemplo, em [46].
105
106 CAPÍTULO 5. NÚMEROS INTEIROS: APROFUNDAMENTOS E DESDOBRAMENTOS
paralelas no plano são equivalentes. Por isso, dizemos que as retas em um feixe de paralelas formam
um classe, e que cada uma dessas retas é um representante dessa classe. De fato, paralelismo é uma
relação de equivalência.
Definição 5.1 Uma relação binária ∼ em um conjunto A é chamada uma relação de equivalência
se satisfaz às seguintes propriedades:
(i) reflexiva: a ∼ a, ∀ a, b, c ∈ A;
(ii) simétrica: a ∼ b ⇒ b ∼ a, ∀ a, b ∈ A;
(iii) transitiva: a ∼ b, b ∼ c ⇒ a ∼ c, ∀ a, b, c ∈ A.
Ampliando a Reflexão
5.1 Considere a relação definida no conjunto das retas do plano por: r ∼ s se r = s ou r é paralela
a s. Prove que ∼ é uma relação de equivalência.
5.2 Perpendicularismo entre retas no plano é uma relação de equivalência?
5.3 Fixado n ∈ N$ , considere a relação definida em N por: a ∼ b se n é divisor de b − a.
Uma relação de equivalência em um conjunto A determina, nesse conjunto, o que chamamos uma
partição. Isto é, o conjunto A fica subdividido em subconjuntos disjuntos. Cada um desses subconjuntos
é chamado de uma classe de equivalência.
[a] = {b ∈ A | b ∼ a}
é chamado de classe de equivalência determinada por a. Neste caso, o elemento a é chamado um
representante da classe [a].
5.1. RELAÇÕES DE EQUIVALÊNCIA 107
[20] = {n ∈ N | n ∼ 20}
= {n ∈ N | n tem a mesma paridade que 20}
= { números pares }.
Assim, [20] = [10] = [2] = [0] = [k], qualquer que seja o número par k. Nesta classe não está o
número 5, cuja classe é o conjunto:
[5] = {n ∈ N | n ∼ 5}
= {n ∈ N | n tem a mesma paridade que 5}
= { números ı́mpares }.
Assim, [5] = [13] = [1] = [k], qualquer que seja o número ı́mpar k.
Portanto a relação “tem a mesma paridade que” particiona o conjunto N em duas classes: a dos
números pares e a dos números ı́mpares.
Ampliando a Reflexão
5.4 A relação do exemplo anterior é apenas um caso particular da relação definida na atividade 5.3.
Explique esta afirmação.
As propriedades que definem uma relação de equivalência implicam na seguinte propriedade básica
das classes de equivalência:
a ∼ b ⇔ [a] = [b] .
De fato, suponhamos a ∼ b e tomemos c ∈ [a]. Então, c ∼ a. Por transitividade, c ∼ b. Segue que
c ∈ [b], portanto [a] ∈ [b]. Analogamente, [b] ∈ [a]. Portanto, [a] = [b]. Reciprocamente, suponhamos
[a] = [b]. Então, a ∈ [a] = [b]. Portanto, a ∼ b.
108 CAPÍTULO 5. NÚMEROS INTEIROS: APROFUNDAMENTOS E DESDOBRAMENTOS
Por exemplo, a relação “tem a mesma paridade que” determina, no conjunto N, apenas duas classes
de equivalência distintas, a classe dos números pares e a classe dos números ı́mpares (figura 5.2).
Figura 5.2: Partição de N determinada pela relação de equivalência “tem a mesma paridade que”.
Ampliando a Reflexão
5.5 Considere a relação definida em N por: a ∼ b se 3 é divisor de b − a. Já sabemos que ∼ é uma
relação de equivalência (atividade 5.3). Mostre que ∼ determina três classes de equivalência e
descreva essas classes.
5.6 Fixado n ∈ N$ , considere a relação definida em N por: a ∼ b se n é divisor de b − a. Quantas
classes de equivalência são determinadas por ∼? Descreva essas classes.
Existem outros exemplos de classes de equivalência que recebem nomes especiais, como por exemplo:
* Em Geometria Analı́tica, as classes formadas por segmentos equipolentes são chamadas vetores1 .
* Na relação de paralelismo definida no conjunto de retas do plano, as classes de equivalência de
retas paralelas são chamadas de direções do plano (figura 5.1).
Todos estes conceitos podem parecer ao leitor um tanto sofisticados e distantes da matemática da
Escola Básica. No entanto, lidamos (às vezes implicitamente) com relações de equivalência e classes
de equivalência mais frequentemente do que muitos podem imaginar. Quando um aluno de inı́cio de
graduação é apresentado à definição de relação de equivalência (por exemplo, na disciplina de Geometria
Analı́tica, para definir formalmente a noção de vetor), ele já passou, durante o ensino básico, por vários
momentos em que esta noção foi aplicada, mesmo sem que este fato tenha sido explicitado:
* O próprio conceito de número (seja natural, inteiro, racional ou real) tem seus fundamentos em
noções de classe de equivalência.
* Em geometria, as noções de paralelismo, semelhança, congruência são exemplos de relações de
equivalência.
Assim, desde as séries iniciais, a criança lida com noções de equivalência, cuja formalização ma-
temática é o conceito de relação de equivalência (obviamente sem reconhecê-las como tal). O caso
mais emblemático e explı́cito no ensino básico é a ideia de frações equivalentes. Aı́ não só fica explı́cita
a relação de equivalência no conjunto das frações, como a terminologia “equivalentes” é preservada.
Na Parte III, voltamos a esta discussão, que será o foco do Capı́tulo 8.
Definição 5.3 Seja ∼ é uma relação de equivalência no conjunto A. Então o conjunto de todas as
classes de equivalência determinadas em A pela relação ∼ é chamado conjunto quociente de A pela
relação ∼ e denotado por:
A/∼ = {[a] | a ∈ A} .
Com isso, partimos de uma noção de equivalência em um conjunto A, de acordo com a qual certos
elementos podem ser identificados, e chegamos a um novo tipo de objeto. Mais precisamente, definimos
então uma relação de equivalência, que determina classes de equivalência, que particionam A. Essas
classes, que são reunidas como elementos de um novo conjunto – o conjunto quociente, constituem um
novo tipo de objeto matemático (como ilustra o diagrama da figura 5.3). Elementos equivalentes em
A originam então elementos iguais em A/∼ (figura 5.4).
Por exemplo:
* Segmentos orientados no plano identificados pela relação de equipolência geram vetores iguais.
* Retas no plano identificadas pela relação de paralelismo geram direções iguais.
110 CAPÍTULO 5. NÚMEROS INTEIROS: APROFUNDAMENTOS E DESDOBRAMENTOS
noção de equivalência em A
identificação de elementos equivalentes
↓ Formalização
relação de equivalência em A
classes de equivalência
↓
A/∼
novo tipo de objeto matemático
Figura 5.3: Criando objetos matemáticos de um novo tipo a partir de uma noção de equivalência.
Ω = R/% .
Cada elemento de Ω (ou seja, cada classe de equivalência) é um novo tipo de objeto –
que chamamos de ponto no infinito. Esta é a mesma ideia em que se baseia a noção
de perspectiva, presente tanto em matemática como nas Artes Plásticas: quando
olhamos na direção de um feixe de retas paralelas, parecemos observar um ponto de
fuga, infinitamente distante.
O plano projetivo é então definido como sendo o conjunto formado pelos pontos usuais
do plano euclidiano e os novos objetivos criados, os pontos no infinito:
P2 = Π ∪ Ω .
O plano euclidiano P2 assim construı́do determina uma geometria em que não há
paralelismo: cada par de retas paralelas em Π gera um par de retas em P2 que se
encontram em um ponto no infinito (exatamente aquele que corresponde à classe de
equivalência gerada por elas).
Em muitos casos, se são definidas operações entre os elementos do conjunto A, pode-se definir a
partir destas novas operações entre os elementos de A/∼ . Assim, uma estrutura algébrica em A poder
originar uma estrutura algébrica em A/∼ .
5.2. A CONSTRUÇÃO DE Z 111
O que vamos mostrar a seguir é que Z pode ser construı́do como conjunto quociente de uma relação
de equivalência definida no conjunto N × N. Nesta construção, as classe de equivalência de pares de
números naturais que são identificados como termos de subtrações equivalentes constituem um novo
tipo de objeto: o número inteiro. As operações entre números inteiros são então definidas a partir das
operações entre naturais.
5.2 A Construção de Z
A subtração não é uma operação em N, no sentido matemático do termo. Uma operação (binária) ∗
em um conjunto A é definida como uma função ∗ : A×A → A, pois associa a cada par de elementos de
A, um elemento de A. A adição e a multiplicação em N são de fato operações no sentido matemático:
+: N×N → N ·: N×N → N
(a, b) 7→ a + b (a, b) 7→ a · b
Assim, tendo N como universo numérico, não podemos subtrair quaisquer dois números e obter outro
número como resultado. Para que isto seja possı́vel, criamos um novo tipo de objeto matemático: o
número inteiro. Essa construção se dá a partir do reconhecimento de uma noção de equivalência entre
pares de números naturais: subtrações equivalentes. Cada número inteiro será associado então a uma
classe de subtrações equivalentes, que serão identificadas.
Por exemplo, queremos identificar 5−10 e 2−7 como subtrações equivalentes. Entretanto, tendo N
como universo numérico é “proibido” ou escrever 5 − 10 ou 2 − 7, e mais 5 − 10 = 2 − 7. Esses sı́mbolos
não têm significado matemático em N, por não estarem associados a nenhum número. Construiremos
o conjunto Z justamente para atribuir significado a esses sı́mbolos. Porém, em lugar disso, podemos
escrever 5 + 7 = 10 + 2. Generalizando esta ideia, dados dois pares de números naturais (a, b) e (c, d),
em lugar de escrever a − b = c − d, escrevemos:
a + d = b + c.
Determinamos assim uma relação de equivalência entre pares de números naturais.
(a, b) 8 (c, d) ⇐⇒ a + d = b + c
112 CAPÍTULO 5. NÚMEROS INTEIROS: APROFUNDAMENTOS E DESDOBRAMENTOS
Ampliando a Reflexão
5.7 Mostre que a relação definida na definição 5.4 é uma relação de equivalência.
Nesta construção, devemos usar pares ordenados, pois os números naturais a e b precisam ser
tomados em ordem: o par (a, b) corresponde a uma subtração de números naturais, em que a primeira
coordenada representa o minuendo e a segunda representa o subtraendo. Assim, o conjunto N × N é
o ambiente natural para definir a relação 8.
Cada uma das classes de equivalência [(a, b)] determinadas em N × N pela relação 8 corresponde a
uma classe de “subtrações equivalentes”, que constitui um novo objeto matemático, chamado número
inteiro. O conjunto Z será, portanto, definido como o conjunto cujos elementos são essas classes de
equivalência:
Z = N × N/& .
Na construção de Z por classes de equivalência, cada par ordenado de números naturais também
pode ser associado a um segmento orientado da reta. Por exemplo, os pares ordenados (5, 10), (2, 7)
e (0, 5), que representam uma mesma classe, podem ser interpretados, respectivamente, como os
segmentos orientados que vão de 10 a 5, de 7 a 2 e de 5 a 0 (como ilustra a figura 5.5).
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15
Figura 5.5: Associando pares de números naturais a segmentos orientados na reta numérica.
Assim, um número inteiro pode ser interpretado como uma classe de subtrações equivalentes, ou
como classe de segmentos orientados equivalentes – ou ainda como uma ação de caminhar sobre a reta
numérica. Neste sentido, os segmentos orientados de 10 a 5, de 7 a 2 e de 5 a 0 são equivalentes.
Logo, estes correspondem a uma mesma ação de caminhar sobre a reta numérica que será, portanto,
associadas a um mesmo número inteiro, que chamaremos de −5 (figura 5.6). Por outro lado, os
segmentos orientados de 10 a 5, de 7 a 2 e de 5 a 0 correspondem à ação oposta a esta, que será
associada ao número +5. Desta forma, além de representar apenas quantidades (como é o caso dos
naturais), os números ganham um novo atributo: o sentido. No conjunto dos inteiros, os números
passam a representar uma quantidade e uma orientação.
−5 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15
Figura 5.6: A interpretação de um número inteiro como uma classe de segmentos orientados equiva-
lentes, ou como uma ação de caminhar sobre a reta numérica.
Ampliando a Reflexão
5.8 Identifique e represente as classes a cada um dos pares: (5, 3), (5, 7) e (2, 2).
5.9 Apresente três pares ordenados que pertençam à cada uma das classes: [(0, 0)], [(3, 0)], [(0, 5)].
5.10 Prove que, para quaisquer a, b, n ∈ N, tem-se: (a, b) 8 (a + n, b + n).
5.11 Prove que, para quaisquer a, n ∈ N, tem-se: (a + n, a) 8 (n, 0) e (a, a + n) 8 (0, n).
5.12 Prove que, para quaisquer a, b, c, d, n ∈ N, tem-se: (a, b) 8 (c, d) ⇒ (a + n, b) 8 (c + n, d).
5.13 Sejam a, b, c, d ∈ N tais que [(a, b)] e [(c, d)] são inversos aditivos. Mostre que a > b se e só se
c < d.
5.14 Explique as interpretações das propriedades provadas nas atividades 5.10 a 5.13 com base nas
ideias de subtrações equivalentes e de ações de caminhar na reta numérica.
Até aqui, definimos apenas o conjunto Z. Porém, para concluir a construção da estrutura (Z, +, ·, !),
precisamos definir as operações de adição e de multiplicação e a relação de ordem em Z.
Comecemos pela definição de adição. Para enunciá-la, devemos lembrar que, neste construção, cada
par (a, b) corresponde a uma subtração, em que a representa o minuendo e b o subtraendo. Assim, para
definir a adição entre inteiros devemos pensar em expressar o resultado da soma de duas subtrações
como uma subtração. Em seguida, devemos representar esse resultado como um par ordenado na forma
(minunendo,subtraendo). Isto é, fazemos (a − b) + (c − d) = (a + c) − (b + d) e associamos esse
resultado ao par (a + c, b + d). Portanto, definiremos a adição entre classes [(a, b)] , [(c, d)] ∈ N × N/&
da seguinte forma:
Ampliando a Reflexão
5.15 Sejam (a1 , b1 ), (a2 , b2 ), (c1 , d1 ), (c2 , d2 ) ∈ N × N tais que (a1 , b1 ) 8 (a2 , b2 ) e (c1 , d1 ) 8 (c2 , d2 ).
Mostre que:
⊕:Z×Z→Z ::Z×Z→Z
[(a, b)] ⊕ [(c, d)] = [(a + c, b + d)] [(a, b)] : [(c, d)] = [(ac + bd, ad + bc)] .
Você deve ter notado que estamos usando sı́mbolos diferentes dos usuais para as operações em Z:
⊕ e :. Há uma razão formal para isto: como funções, as operações de adição e multiplicação em N são
diferentes das respectivas operações de adição e multiplicação em Z, pois são definidas com domı́nios
e contradomı́nios diferentes.
Porém, há uma razão mais relevante esta opção. É importante lembrar que estamos fazendo uma
construção de Z, partindo de N já construı́do. Assim, as operações de N já estão definidas, enquanto
que as operações de Z estão em processo de construção. Durante esse processo, é importante manter a
diferenciação de sı́mbolos, pois, por exemplo, já sabemos que a soma de N é associativa, mas queremos
provar que a soma de Z o é. Assim, quanto escrevemos:
[(a, b)] ⊕ [(c, d)] = [(a + c, b + d)] [(a, b)] : [(c, d)] = [(ac + bd, ad + bc)] .
os sı́mbolos + e · se referem à soma e ao produto de N, cujas propriedades já são conhecidas e podem
ser usadas livremente, enquanto os sı́mbolos ⊕ e : se referem à soma e ao produto de Z, cujas
propriedades estão em processo de demonstração.
Ao final desta construção, N será identificado com um subconjunto de Z (ver atividade 5.25). A
partir daı́, as respectivas operações serão identificadas, e poderemos passar a usar o mesmo sinal. Até
lá a diferenciação será mantida.
Ampliando a Reflexão
5.16 Mostre que as operações de adição e multiplicação definidas em 5.5 satisfazem às propriedades
básicas usuais:
5.17 Ao resolver os itens (iii), (iv) e (vii) da atividade 5.16, você deve ter notado que:
(i) o elemento neutro da adição é dado pela classe z = [(0, 0)] = [(a, a)] ∀a ∈ N.
(ii) o inverso aditivo de um elemento [(a, b)] ∈ Z é dado pela classe [(b, a)].
(iii) o elemento neutro da multiplicação é dado pela classe u = [(1, 0)] = [(a + 1, a)] ∀a ∈ N.
Interprete estas três afirmações à luz das ideias de número inteiro como classe de subtrações
equivalentes e como ação de caminhar sobre a reta numérica.
5.18 (a) Mostre (com um contra-exemplo) que em Z não vale a propriedade do “elemento inverso
da multiplicação”, isto é nem todo número inteiro tem um inverso multiplicativo.
(b) Em uma estrutura em que todo elemento tem um elemento inverso, a propriedade cancelativa
da multiplicação (atividade 5.16viii) não precisaria ser incluı́da na lista de propriedades
básicas. Explique essa afirmação.
Ampliando a Reflexão
5.19 Sejam (a1 , b1 ), (a2 , b2 ), (c1 , d1 ), (c2 , d2 ) ∈ N × N tais que (a1 , b1 ) 8 (a2 , b2 ) e (c1 , d1 ) 8 (c2 , d2 ).
Mostre que a1 + d1 ! b1 + c1 ⇔ a2 + d2 ! b2 + c2 .
116 CAPÍTULO 5. NÚMEROS INTEIROS: APROFUNDAMENTOS E DESDOBRAMENTOS
5.20 Considere a relação definida para [(a, b)] , [(c, d)] ∈ Z é por
Prove que esta é uma relação de ordem, isto é, ) satisfaz às propriedades:
(i) reflexiva:
[(a, b)] ) [(a, b)], ∀ [(a, b)] ∈ Z
(ii) antissimétrica:
[(a, b)] ) [(c, d)], [(c, d)] ) [(a, b)] ⇒ [(a, b)] = [(c, d)], ∀ [(a, b)] , [(c, d)] ∈ Z
(iii) transitiva:
[(a, b)] ∼ [(c, d)], [(c, d)] ∼ [(e, f )] ⇒ [(a, b)] ∼ [(e, f )], ∀ [(a, b)] , b, c ∈ Z
Dizemos aqui que [(a, b)] % [(c, d)] se [(a, b)] ) [(c, d)] e [(a, b)] &= [(c, d)].
Da mesma forma que para as operações definidas em Z, estamos usando sı́mbolos diferentes para
as relações de ordem em N e em Z, pois as propriedades da primeira já são conhecidas, enquanto as
da segunda devem ser demonstradas.
Ampliando a Reflexão
5.21 Mostre que a relação de ordem ) definida em Z é total, isto é, dados [(a, b)] , [(c, d)] ∈ Z, vale
uma e somente uma das alternativas:
[(a, b)] = [(c, d)], [(a, b)] % [(c, d)] ou [(c, d)] % [(a, b)].
5.22 Mostre que a relação de ordem ) definida em Z é compatı́vel com a estrutura algébrica (isto é,
como as operações de adição e multiplicação).
Em outras palavras, prove que ∀ [(a, b)] , [(c, d)] , [(e, f )] ∈ Z, vale:
(i) [(a, b)] ) [(c, d)] ⇒ [(a, b)] ⊕ [(e, f )] ) [(c, d)] ⊕ [(e, f )]
(ii) [(a, b)] ) [(c, d)], [(0, 0)] ) [(e, f )] ⇒ [(a, b)] : [(e, f )] ) [(c, d)] : [(e, f )]
5.23 Dado [(a, b)] ∈ Z, considere seu inverso aditivo [(c, d)]. Mostre que: [(0, 0)])[(a, b)] ⇔ [(c, d)])
[(0, 0)].
Ampliando a Reflexão
5.24 Mostre que em qualquer anel ordenado (A, +, ·, !) tem-se
a2 > 0, ∀ a ∈ A, a &= 0.
Desta forma, construı́mos o conjunto Z munido de uma estrutura algébrica (operações de adição
e multiplicação) e de uma relação de ordem, e provamos que estas são compatı́veis entre si. Isto é,
construı́mos a estrutura:
(Z, ⊕, :, )) .
Até aqui, (N, +, ·, !) e (Z, ⊕, :, )) foram construı́dos como estruturas separadas. Evidentemente,
deseja-se obter N como subconjunto de Z. Mais precisamente, mostra-se que a estrutura (Z, ⊕, :, ))
contém uma cópia de (N, +, ·, !). Para que este objetivo seja atingido, não é suficiente provar que
existe uma subconjunto de Z que pode ser posto em bijeção com N. Deve-se provar, além disso, que
existe um subconjunto de N ⊂ Z que replica a estrutura de N, isto é, em que as operações de adição e
de multiplicação e a relação de ordem se comportam da mesma forma que aquelas de N. Não é difı́cil
perceber que o conjunto de Z procurado é pode ser definido da seguinte forma:
N = {[n, 0] ∈ Z | n ∈ N} ⊂ Z .
Deve-se provar, portanto, que existe uma função bijetiva entre N e N que preserva a adição, a
multiplicação e a relação de ordem.
118 CAPÍTULO 5. NÚMEROS INTEIROS: APROFUNDAMENTOS E DESDOBRAMENTOS
Ampliando a Reflexão
5.25 Considere a função:
ϕ N → N
n 7→ [(n, 0)]
Mostre que:
N ←→ N ⊂ Z .
Para todos os propósitos, podemos então considerar N como subconjunto de Z:
N ⊂ Z.
A partir daqui, não será mais necessários usar sı́mbolos diferentes para representar as operações e a
ordem de Z, uma vez que as operações e
Pode-se então passar a escrever:
(Z, +, ·, !) .
Teorema 5.1 Seja [(a, b)] ∈ Z. Então, vale uma e somente uma das alternativas:
(i) [(a, b)] = [(0, 0)];
(ii) ∃ n ∈ N, n &= 0 tal que [(a, b)] = [(n, 0)];
(iii) ∃ n ∈ N, n &= 0 tal que [(a, b)] = [(0, n)].
5.2. A CONSTRUÇÃO DE Z 119
Demonstração: Dados a, b ∈ N, vale uma e somente uma das alternativas: (i) a = b; (ii) a > b; (iii) a < b.
No primeiro caso, tem-se (a, b) 8 (0, 0), portanto, [(a, b)] = [(0, 0)].
Caso valha a segunda alternativa, como a e b são números naturais, ∃ n ∈ N, n &= 0, tal que a = b + n.
Então, (a, b) 8 (n, 0), portanto, [(a, b)] = [(n, 0)].
Analogamente, caso valha a terceira alternativa, ∃ n ∈ N tal que a + n = b. Então, (a, b) 8 (0, n),
portanto, [(a, b)] = [(0, n)].
Segue do Teorema 5.1 que o conjunto Z pode ser escrito como união disjunta de três subconjuntos:
Z = {0} ∪ Z+ ∪ Z− .
em que:
* 0 = [(0, 0)] é o zero (isto é, o neutro aditivo) de Z, que denotamos anteriormente pela letra z
(atividade 5.16);
$
* Z+ = N = {[(n, 0)] | n ∈ N} = {a ∈ Z | a > 0} é conjunto dos inteiros maiores que a 0, que
passamos a chamar de positivos;
* Z− = {[(0, n)] | n ∈ N} = {a ∈ Z | a < 0} é conjunto dos inteiros menores que 0, que passamos
a chamar de negativos.
Não é difı́cil perceber que [(n, 0)] e [(0, n)] são inversos aditivos (ver também atividade 5.23).
Portanto, ∀ [(a, b)] ∈ Z, tem-se:
[(a, b)] ∈ Z+ ⇐⇒ [(b, a)] ∈ Z− .
Os inteiros positivos são aqueles determinados pelas classes de equivalência [(a, b)], com a > b, que
são associadas a subtrações cujo resultado é um número natural. Portanto, esses são associados aos
números naturais. Os inteiros negativos são determinados pelas classes de equivalência [(a, b)], com
a < b, que são associadas a subtrações que não não têm resultado em N. Portanto, esses são os novos
objetos criados e são inversos aditivos dos inteiros positivos. Pelo Teorema 5.1, todo número inteiro
não nulo é um número natural ou o inverso aditivo de um número natural, que representaremos por
−n. Não existem números inteiros além destes.
Assim, ao se construir a estrutura (Z, +, ·, !) a partir de (N, +, ·, !), deseja-se ser capaz de resolver
qualquer subtração. Essencialmente, o Teorema 5.1 garante que, para isso, basta acrescentar aos nú-
meros naturais o seus inversos aditivos. Portanto, a notação +n ou −n, com n ∈ N, dá conta de
representar todos os elementos de Z. A partir deste ponto, pode-se, portanto, abandonar a notação
para os números inteiros por classes de equivalência e adotar essa mais simples (como se faz na escola
básica):
+n ou −n, com n ∈ N.
Com base na constatação de que Z = {0} ∪ Z+ ∪ Z− , pode-se passar a usar o sinal “−” também
para representar o inverso aditivo de um número inteiro qualquer. Assim, dado p ∈ Z, −p passa a
representar o inverso aditivo de p, que não necessariamente é um número negativo.
É importante observar ainda que a chamada “regra dos sinais” da multiplicação é uma consequência
da estrutura algébrica de Z, isto é, da definição e das propriedades das operações. Para que se tenha
uma estrutura algébrica em valham todas as propriedades usuais das operações (listadas na atividade
5.16), em especial a existência do inverso aditivo, devem necessariamente valer também as propriedades
demonstradas no Teorema 5.2. Assim, a “regra dos sinais” não é uma arbitrária escolha, ou uma
“convenção matemática” (como às vezes ela é apresentada no ensino fundamental), e sim uma uma
questão de consistência algébrica de Z.
Teorema 5.2 Sejam p, q ∈ Z. Então:
(i) −(−p) = p;
(ii) p · (−q) = (−p) · q = −(p · q);
(iii) (−p) · (−q) = p · q.
Demonstração:
A afirmação (i) decorre da própria definição de inverso aditivo. O inverso aditivo de um número é aquele
que somado com o primeiro resulta em 0. Portanto, assim como −p é o inverso aditivo de p, o inverso aditivo
de −p é p. Isto é −(−p) = p.
Mostrar que p · (−q) = −(p · q) significa mostrar que o número p · (−q) é o inverso aditivo de p · q. De
fato:
p · (−q) + p · q = p · [(−q) + q] = p · 0 = 0 .
Analogamente, mostramos que (−p) · q = −(p · q), o que completa a prova de (ii).
A propriedade (iii) segue da aplicação de (ii) e (i):
Na escola básica, de maneira geral, os alunos chegam à etapa de estudo dos números inteiros já
tendo tido algum contato com os números negativos em uma situação real. Por exemplo, em uma
tabela que indica o saldo de gols em um campeonato de futebol ou no registro de temperaturas. Essa
experiência anterior pode amparar a primeira abordagem de números negativos na sala de aula, uma vez
que sugere a ideia que fundamenta os negativos como números – admitir uma quantidade acompanhada
de uma orientação. Assim, a compreensão dos negativos como números não repete na sala de aula do
ensino básico a resistência observada no desenvolvimento histórico desse conceito.
Essa realidade da escola reflete a forma como a Matemática contemporânea lida com esses números.
Seguindo a ampliação dos conjuntos numéricos como estabelecida na matemática de hoje, os números
negativos “surgem” com o conjunto dos números inteiros, que por sua vez é concebido com o conjunto
quociente de classes de subtrações equivalentes em N × N. Portanto, para um matemático, a pergunta
“O que são os números inteiros?” tem uma resposta bastante objetiva: O conjunto dos números
inteiros, com as operações usuais de adição e de multiplicação, constitui um domı́nio de
integridade, no qual existe uma relação de ordem compatı́vel com as duas operações. No
entanto, essa definição não fará qualquer sentido para a abordagem e a construção do senso numérico
de uma criança na escola básica, não sendo, portanto, adequada a essa etapa da aprendizagem. É
preciso compreendê-la e observar seus pilares elementares para conduzir a abordagem do assunto no
ensino básico.
Na escola, a construção do conceito de número negativo reflete a sua origem histórica, se fundando
na ideia de uma quantidade munida de orientação. Assim, todo número inteiro encerra dois atributos,
um que está essencialmente vinculado à contagem (quantidade) e outros que traduz uma interpretação
(orientação). Os números inteiros são, então, compreendidos como uma ampliação dos números natu-
rais, a partir da inclusão dos números negativos. Essa ampliação determina essencialmente duas novas
possibilidades: obter um resultado para o cálculo de “5 − 7” e estabelecer novas possibilidades de
registro de quantidades.
123
124 CAPÍTULO 6. NÚMEROS INTEIROS: NA ESCOLA
Assim, a abordagem inicial de números negativos na escola básica precisa garantir a observação a
três aspectos fundamentais sobre esses números:
A abordagem de números inteiros no ensino básico objetiva ainda a comparação entre esses números
e as operações básicas. De maneira geral, nesta etapa da escolaridade, os alunos identificam, por
exemplo, que 8 > 5. Mas, com a introdução dos números negativos, precisam também reconhecer as
desigualdades −8 < −5, −8 < 5 e 8 > −5. Além disso, devem ser capazes de realizar cálculos básicos
com esses números, por exemplo, reconhecer que −8 + (−5) = −8 − 5 = −13. Acrescenta-se a essas
necessidades o reconhecimento dos diferentes significados que um sı́mbolo já conhecido passa a assumir:
Assim, o sinal “−” passa a poder significar a indicação de um número negativo, uma subtração ou a
solicitação do oposto. Ensinar números negativos traz o desafio de agregar a orientação ao pensamento
numérico.
6.1. NÚMEROS INTEIROS: QUANTIDADES COM ORIENTAÇÃO 125
−5 0 5
Figura 6.2: A representação na reta numerada.
Assim, por exemplo, o número negativo −5 é associado a uma contagem (ou uma medida) que
registra o sentido oposto àquela correspondente ao número positivo +5 (ou, simplesmente, 5), e vice-
versa. Neste contexto, o 0 (zero) determina o referencial que distingue os números negativos dos
números positivos. Dessa forma, o 0 (zero) adquire um novo estatuto, deixa de representar apenas
a ausência de quantidade para também estar associado à ideia de referencial para a orientação que
determina a distinção entre números positivos e números negativos. É importante observar que, assim,
o zero não é “negativo” nem é “positivo”, marca justamente a distinção entre esses números. Por
exemplo, a quantia “zero” não significa ter nem dever algum valor, é o referencial que distingue essas
duas possibilidades, entendidas como opostas.
Além de o zero ter o seu conceito ampliado em significado, também os números naturais passam
a receber mais uma distinção: números positivos. É a partir da reunião dos já conhecidos números
naturais, que serão tomados como positivos, do zero, que passa a indicar tanto a ausência de quantidade
como um referencial, e dos números negativos, entendidos como opostos dos números positivos, que o
conjunto dos números inteiros é “definido” na escola e representado por:
Z = {. . . , −8, −7, −6, −5, −4, −3, −2, −1, 0, +1, +2, +3, +4, +5, +6, . . .} .
(ii) Essa representação é a única possı́vel para o conjunto dos números inteiros? Ela
tem limitações? Se sim, quais?
(iii) As representações a seguir seriam corretas? Se não, que problemas encerram?
(a) Z = {. . . , −8, −7, −6, −5, −4, −3, −2, −1, 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, . . .}
(b) Z = {0, −1, +1, −2, +2, −3, +3, −4, +4, −5, +5, −6, +6, . . .}
(c) Z = {0, . . . , −8, −7, −6, −5, −4, −3, −2, −1, 1, 2, 3, 4, 5, 6, . . .}
(d) Z = {0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, −1, −2, −3, −4, −5, −6, . . .}
Lidar com o sinal que tem um papel essencial na identificação dos números inteiros é parte da
aprendizagem sobre esses números. Trocar +2 por - 2 pode não ser apenas uma “troca de sinal”, mas
indicar que o aluno ainda não compreendeu a necessidade de distinguir a representação dos números
positivos da dos números negativos. Nesse sentido, a abordagem do assunto a partir de discussão e
da variedade de situações e problemas é fundamental. Por exemplo, o registro de uma temperatura
pode não ser um caso que gere muita dúvida. Os alunos geralmente estão acostumados a associar a
sensação térmica de frio (ou de muito frio) a temperaturas negativas e não mostram muita dificuldade
para registrar as temperaturas negativas com o sinal adequado. Assim, a temperatura negativa de 10
graus centı́grados, por exemplo, fica numericamente registrada por −10◦ C.
Nesse caso, a necessidade de indicar um valor “negativo” está praticamente explicita no enunciado
da medida. Mais frequentemente, as questões que emergem no trato de temperaturas negativas em sala
de aula estão associada à não vivência dessa situação por parte dos alunos ou ao entendimento da escala
de medida envolvida. No entanto, a associação a números negativos pode não ser uma percepção tão
natural em outros casos, por exemplo, quando se trata de profundidade ou de dı́vida. Ao nos referimos
6.2. NÚMEROS INTEIROS: UM SINAL E TRÊS SIGNIFICADOS 127
à profundidade, de certa maneira, a ideia de “estar abaixo do nı́vel do mar” está implı́cita no termo
profundidade, então podemos dizer, por exemplo, que a profundidade é de 10 metros. Nesse caso, não
há número negativo evidente. Para os alunos, a associação dessa informação ao número −10 pode não
ser tão direta como no caso da temperatura. Para isso, é necessário que o estudante compreenda o
sistema numérico envolvido, reconhecendo que a profundidade está em contraponto à altitude e que
ambos os conceitos têm o nı́vel do mar como referência. Esse processo deve ser associado aos números
negativos, ao zero e aos números positivos. O mesmo vale para a interpretação de dı́vidas, é necessário
que o aluno associe uma dı́vida, por exemplo, de R$ 10, 00 ao número −10.
Ainda no contexto da abordagem dos inteiros o sinal “−” fica associado à operação de determinar
o oposto. Assim, na expressão −(−1), o primeiro sinal “−” não indica um número negativo, mas o
comando “determinar o oposto de”. Essa determinação exige um referencial, o zero. “−(−1)” é o
oposto do número negativo (−1), que é, por definição, o número positivo +1 (ou, simplesmente, 1).
Da mesma forma, o oposto do número positivo +1, indicado por −(+1) e o número negativo (−1).
A representação com a reta numerada pode amparar a compreensão dessa definição, observada, nesse
caso, como a ação geométrica de determinar o simétrico em relação ao 0 (figura 6.4). De mesma forma,
são estabelecidos o oposto de (−2) e o oposto de (+2) ou de (−5) e (+5), por exemplo (figura 6.5).
−(−1) = 1
−(1) = −1
−1 0 1
Figura 6.4: A ação geométrica de tomar o simétrico.
−(−2) = 2
−(2) = −2
−2 0 2
Figura 6.5: A ação geométrica de tomar o simétrico.
De maneira geral, o oposto de um número inteiro n, denotado por −n, é o correspondente simétrico
(geométrico) a n em relação ao 0 (figura 6.6). As duas representações são equivalentes, apenas ilustram
os casos em que n é negativo e em que n é positivo.
n 0 −n
−n 0 n
Figura 6.6: O oposto de um número n.
reconhecer que n pode ser um número negativo mesmo sem que o sinal “−” esteja
explı́cito exige abstração. Então, na sala de aula é bastante natural que os alunos
tenham dificuldade em relação a isso. Afinal eles acabaram de aprender que a repre-
sentação que identifica e diferencia um número negativo de um número positivo se dá
a partir do sinal “−”. É necessário que o professor compreenda isso como um pro-
cesso que, muito provavelmente, não será concluı́do na abordagem inicial de números
inteiros. É um objetivo a ser alcançado em um prazo mais longo. Compreender que n
pode corresponder a um número negativo tanto como a um número positivo é alcançar
a generalização do conceito de número inteiro.
É importante observar que, pela própria concepção de número negativo, é natural que as inter-
pretações do sinal “-” como a indicação de um número negativo e como determinação do oposto de
um número positivo se confundam. Por exemplo, −5 pode ser observado como um número negativo
ou como o oposto do número positivo 5.
E se a calculadora não tiver uma essa tecla? Essa pergunta oferece a possibilidade de
os alunos observarem que existem outras formas de se chegar a um número negativo
no visor da calculadora. A subtração é uma dessas possibilidades (o uso da função
seno seria, por exemplo, outra possibilidade). Como resultado de subtrações, tem-se,
por exemplo que:
−4 = 0 − 4 = 1 − 5 = 2 − 6 = 3 − 7 = 25 − 29 = 100 − 104 .
6.3. A RETA NUMERADA E OS NÚMEROS NEGATIVOS 129
0 1 2 3 4 5 6 7
Figura 6.7: A semirreta numerada.
É com os números negativos e posteriormente com o conjunto dos números inteiros que essa
representação é ampliada para a reta numerada. A questão não é identificar o que vem primeiro, o
conceito de número negativo ou a ampliação da reta. A introdução dos números inteiros na escola e a
sua compreensão como quantidade munida de orientação não pode prescindir da representação.
−7 −6 −5 −4 −3 −2 −1 0 1 2 3 4 5 6 7
Figura 6.8: A reta numerada.
De maneira geral, a representação dos números inteiros na reta numerada deve exprimir a ideia
de oposição a partir de um referencial, indicado pelo 0. Assim, o 1 corresponde à unidade positiva
que determina, a partir da relação de sucessor, os demais números positivos (já conhecido dos alunos
como números naturais) e os números negativos ficam determinados, um a um, por simetria geométrica
desses números em relação ao 0. A reta numerada sustenta vários conceitos matemáticos elementares
abarcados na abordagem de números inteiros.
130 CAPÍTULO 6. NÚMEROS INTEIROS: NA ESCOLA
−5 −2 0
Figura 6.10: A reta numerada.
De maneira geral, tem-se, assim, que se a e b são números inteiros, então a < b (ou, de forma
equivalente, b > a) se, e somente se, na reta numerada, a está à esquerda de b (figura 6.11).
a b
Figura 6.11: A reta numerada.
É importante observar que a distinção esquerda/ direita está sendo considerada de forma muito
particular, sustentada pela representação apresentada – a reta numérica horizontal, como nas imagens
e considerando as margens da página como referencial. Assim, a ordem crescente é indicada pela
organização sequencial da esquerda para a direita, explicitada pela “setinha”. No entanto, de maneira
geral, a distinção esquerda/direita pode não ser adequada, mas devem ser distinguidos dois sentido: o
positivo (ou crescente) e o negativo (ou decrescente). O sentido positivo pode ser definido, por exemplo,
a partir de segmento (0, 1) (ou (0, n), para n positivo) e o negativo, como o sentido oposto. Na escola,
é importante que esse modelo seja explorado a partir representações variadas. Por exemplo, com a reta
em uma posição vertical, perpendicular a dos exemplos, em que a ordem crescente é contemplada de
baixo para cima, ou em uma direção inclinada, como na figura 6.12.
Além disso, é importante observar que representações da reta numerada com duas setinhas opostas,
como na figura 6.12, podem gerar confusão. A reta é infinita e, em Matemática, não há necessidade
de indicar isso na representação a partir do uso de “setinhas”. No caso da reta numerada, a ”setinha
única” cumpre o papel de explicitar o sentido crescente.
−7 −6 −5 −4 −3 −2 −1 0 1 2 3 4 5 6 7
Figura 6.13: A reta numerada.
6.3.4 As Operações
A reta numerada pode ser de grande suporte para o tratamento das operações com números inteiros.
Para isso, os números inteiros são observados como segmentos orientados equivalentes. Assim, por
exemplo, o número −5, que até o momento estava mais fortemente associado à ideia de oposto +5
por simetria em relação ao 0, precisa ser associado também à segmentos orientados equivalentes,
por exemplo, o segmento de extremidades 2 e 7, orientado no sentido de 7 para 2 (figura 6.14).
Identificado um segmento, são duas as orientações possı́veis: no sentido negativo (decrescente) ou no
sentido positivo (crescente). De maneira geral, o número inteiro n está associado a qualquer segmento
orientado de tamanho n tal que a orientação é negativa, se o número for negativo, e positiva, se o
número for positivo (figura 6.15).
6.4. OPERAÇÕES ENVOLVENDO NÚMEROS NEGATIVOS 133
−5 0 2 7
Figura 6.14: Segmentos orientados equivalentes correspondentes ao número −5.
−5 −3 0 2 5 7
Figura 6.15: Segmentos orientados equivalentes correspondentes ao número +2.
Essa interpretação reflete a concepção formal de número inteiro como classe de equivalência. E
é a partir dela que, por exemplo, as operações de soma e de a subtração podem ser associadas à
justaposição de segmentos orientados sobre a reta:
Assim, por exemplo, a soma 6 + (−2) e a diferença 6 − 2 ficam têm a representação mostrada na
figura 6.16. Já a diferença −4 − 5 e a soma −4 + (−5) têm a representação mostrada na figura 6.17.
0 4 6
Figura 6.16: A soma 6 + (−2) e a diferença 6 − 2.
−9 −4 0
Figura 6.17: A diferença −4 − 5 e a soma −4 + (−5).
As operações básicas envolvendo números inteiros costumam oferecer maior desafio em relação ao
ensino e a aprendizagem do que a compreensão desses números em si. Essa dificuldade é reconhecida
como tı́pica dessa etapa da escolaridade. Que professor já não ouviu “Professor, menos com menos dá
mais ou dá menos?” Não é incomum que os alunos cheguem à etapa final do ensino básico sem ter
segurança em relação às regras das operações de soma e de produto envolvendo números negativos.
Em muitos casos, a compreensão dos alunos fica restrita ao campo estritamente mecânico operacional.
Isto é, não conseguem justificar conceitualmente ou atribuir qualquer significado aos procedimentos
operacionais, não entendendo a razão pela qual tais procedimentos se aplicam a um determinado
contexto. Apenas decoram os enunciados das regras de forma imprecisa e sem significado, tais como:
“menos com menos dá mais” ou “repete o sinal do maior e subtrai”. De forma semelhante ao que o
134 CAPÍTULO 6. NÚMEROS INTEIROS: NA ESCOLA
corre com a aprendizagem de números racionais, pode ocorrer, por exemplo, que os alunos não saibam
nem mesmo que regra se aplica ao produto e qual se aplica à soma. Diante dessa confusão, é natural
a questão: “Se ‘menos com menos dá mais’, então −2 − 3 = +5?”. Visando evitar que isso ocorra é
fundamental que essas regras tenham significado para os alunos e que este significado esteja fortemente
vinculado às ideias conceituais das operações correspondentes. Além disso, não basta saber realizar as
operações básicas, é importante que se saiba também utilizar as operações na resolução de problemas
do dia a dia. Para este objetivo, é importante a percepção do conjunto dos números inteiros como
extensão do conjunto dos números naturais, ainda que isso não seja suficiente. Por exemplo, não há
como buscar paralelo nas operações com números naturais para o resultado de (−1) × (−1). Assim, na
medida do possı́vel, discutiremos as operações com números inteiros como generalização das operações
com naturais.
Essas fichas podem dar significado à operação de adição com números inteiros quando reunidas,
ou seja, a adição fica representada pela união dessas coleções. No entanto, para esse uso das fichas
é necessário reconhecer que 1 + (−1) = 0. Essa igualdade está formalmente garantida pelo fato de o
conjunto dos números inteiros, munido das operações de adição e de multiplicação, ser um anel (ver
Para Refletir 5.8). No entanto, na escola esse resultado pode ser compreendido pelos alunos a partir de
exemplos simples, envolvendo as tradicionais situações que ilustram os números negativos. Observando
a representação da adição de números inteiros como a reunião de coleções de fichas azuis e de fichas
vermelhas, a soma 1 + (−1) fica representada pela figura 6.19.
6.4. OPERAÇÕES ENVOLVENDO NÚMEROS NEGATIVOS 135
Nesse modelo de fichas para a abordagem da adição com números inteiros, é necessário também
que o 0 seja reconhecido como elemento neutro da adição, o que de maneira geral, já é reconhecido
pelos alunos do ensino básico. Assim, voltando às 4 fichas azuis e às 7 vermelhas, representando 4 e
−7, o cálculo de 4 + (−7) seria alcançado pela reunião dessas fichas em uma única coleção (figura
6.20). Observando que cada par de fichas de cores diferentes é igual a zero, tem-se que 4 + (−7) = −3
(figura 6.21).
6.4.2 Multiplicação
Na multiplicação de dois números inteiros, determinar o produto de dois números positivos não é, de
fato, uma novidade para o aluno, e mantém os resultados já conhecidos para os números naturais. O
desconhecido emerge quando pelo menos um dos fatores é negativo, o que exigirá definição, a famosa
regra dos sinais:
De fato, a regra dos sinais da multiplicação não é uma “convenção” nem uma “regra arbitrária”,
e sim a única maneira de se estender a operação de multiplicação dos naturais para os inteiros de tal
forma que a sua regularidade e, portanto, suas propriedades fundamentais sejam preservadas.
Elas (as regras de sinais) permanecem tão firmes “quanto uma rocha no mar” porque as verdades
contidas são “necessárias” e não “arbitrárias”. Onde está o matemático que teria ensinado desde
a invenção do cálculo com letras que (−a) · (−b) não é +ab mas −ab? Nomeia-o para mim!
(Hoffmann, 1884, p.111; trad.:GS; Apud Schubring, 2013, p.76)
136 CAPÍTULO 6. NÚMEROS INTEIROS: NA ESCOLA
Não há um paralelo natural com uma situação concreta que ”traduza”a multiplicação por um
número negativo. É claro que o aluno já lidou com definições antes, como a definição de algumas
figuras geométrica ou a noção de paralelismo, ou mesmo as operações de adição e de subtração com
números naturais. Mas em todos esses casos, de alguma forma, pode ser estabelecida uma relação
com o universo real ou com estruturas lógicas já conhecidas e realizadas pelos alunos de alguma
forma. Para os quadrados há vários elementos reais que traduzem o conceito, como um quadro,
por exemplo. Assim, a definição caracteriza esses objetos e esses objetos representam o conceito
abstrato. Retas paralelas, podem ser associadas às prateleiras de uma estante e as operações básicas
têm suas definições fortemente associadas à interpretações que envolvem a relação entre grandezas e
medidas, como juntar, comparar ou organizações em malha quadriculada. Com a multiplicação (e outros
conceitos que envolvem os números inteiros) não há como buscar inspiração em situações concretas.
Sendo necessária uma definição, o desafio no ensino da multiplicação de números inteiros na escola é
dar um significado que ampare a compreensão dessa operação.
No conjunto dos números naturais, a operação de multiplicação pode ser interpretada com base na
ideia de soma de parcelas iguais (isto é, 3×5 pode ser interpretado como 3 somado a si mesmo 5 vezes).
Obviamente, de maneira geral, esta ideia não pode ser empregada para interpretar a multiplicação de
inteiros, pois, por exemplo, não faz sentido dizer que (−3)×(−5) é −3 somado a si mesmo −5 vezes.
Assim, é preciso usar outra ideia para dar significado ao produto de inteiros. Para isto, uma opção é
explorar, caso a caso, a ideia de regularidade com base na qual a operação de multiplicação é estendida
do conjunto dos números naturais, como exemplificado na seção Na Sala de Aula 4.3.
A ideia de oposição a partir da orientação estabelecida para números positivos e negativos no
contexto dos números inteiros se estende para os números racionais. É essa mesma fundamentação
que distingue, por exemplo, −0, 5 de +0, 5 ou − 34 de + 34 . No entanto, no contexto dos racionais, há
ainda a necessidade de identificar − 34 a (−3)
4
3
e a − (−4) e + 34 a 34 e a (−3)
(−4)
. Essa discussão fará parte do
próximo capı́tulo.
Parte III
Números Racionais
137
Capı́tulo 7
139
140 CAPÍTULO 7. NÚMEROS RACIONAIS: DE ONDE VÊM?
Transitámos do número de coisas para a sua medida, transitámos de coisas numeráveis para coisas
mensuráveis.
(Klein [83, p.38], grifo no original)
Mas a que mudança de princı́pios Klein está se referindo? O que pretende ao diferenciar com os
termos “coisas numeráveis” e “coisas mensuráveis”? A diferença que Klein destaca diz respeito a contar
e a medir. No contexto de situações reais, contar e medir são atividades humanas elementares que se
referem a comparar quantidades. Nesse sentido, medir uma grandeza significa compará-la com uma
unidade, isto é, compará-la com uma grandeza de mesma espécie estabelecida como referência. Mas,
contar também é comparar. Como vimos na Parte I, contamos realizando uma relação biunı́voca ao
conjunto dos números naturais, no qual a unidade também tem papel fundamental. Mas então qual a
diferença entre contar e medir?
O que sustenta essa diferença é a dualidade discreto/contı́nuo. Contar é relativo a universos ne-
cessariamente discretos ou discretizáveis, universos em que os elementos são distinguidos admitindo a
correspondência biunı́voca com os números naturais. Já medir alcança universos contı́nuos. Assim,
contamos pessoas e medimos sua altura, contamos barras de chocolate e medimos seu peso, contamos
frutas e medimos o volume de leite. Nos termos de Klein, a contagem, estabelecida em universos
discretos, diz respeito a coisas numeráveis e a medida, contemplando universos contı́nuos, a coisas
mensuráveis.
Quando medimos verificamos quantas vezes a unidade estabelecida cabe no que se quer medir.
No entanto, a unidade pode não caber uma quantidade inteira de vezes no que se quer medir, ou
seja, essa quantidade pode não ser determinada a partir da associação a um número natural. É nessa
circunstância que surge a necessidade de novos números além dos naturais. Uma solução possı́vel para
o problema descrito, ou seja, o problema da unidade não caber uma quantidade inteira de vezes no
que se quer medir, é repartir a unidade. É neste contexto, quando bem sucedido, que emergem as
frações e, consequentemente, os números racionais. A questão da medida é igualmente fundamental
para a compreensão da necessidade da expansão dos números naturais para os números racionais e
para a identificação da limitação dos números racionais, que determina a necessidade da expansão
para os números reais. A ideia de comparação sustenta toda essa discussão. Essa questão será
aprofundada nesta e na próxima Parte do livro.
No problema da contagem, observa-se em primeiro lugar que dois conjuntos de elementos são equi-
valentes se existem uma bijeção entre eles. Os números naturais surgem como propriedades abstratas
comuns a uma classe de conjuntos equivalentes do ponto de vista da contagem.
De forma análoga, quando se trata do problema da medida, observa-se primeiro que dois seg-
mentos de reta (por exemplo, no plano) são congruentes se, e somente se, um pode ser
transformado no outro por meio de um movimento rı́gido (isto é, uma transformação no plano
que não altera tamanhos: uma translação composta com uma rotação). Em geral associamos a ideia de
segmentos congruentes à ideia de “ter a mesma medida”, representada por um número. Entretanto, o
estabelecimento de uma medida numérica depende da fixação a priori de uma unidade. Isto
é, diferentemente do que ocorre no caso do problema da contagem – em que cada classe de conjuntos
cardinalmente equivalentes pode ser “naturalmente rotulada” por um número natural – no caso do
problema da medida, a associação de classes de segmentos congruentes a um número que representa
7.1. MEDIDA E NÚMERO RACIONAL 141
a sua medida não é absoluta: é necessário antes se ter uma unidade fixada. Se a unidade muda, o
valor numérico da medida é alterado. Esta reflexão já evidencia a importância da noção de unidade na
construção do conceito matemático de número e, portanto, em seu ensino na escola básica.
Assim, medir significa comparar uma grandeza1 com uma unidade u fixada, isto é, uma grandeza de
mesma espécie, tomada como referência. Por definição, a medida da unidade u é igual a 1. Determinar
a medida de um segmento AB (que representaremos por AB) é compará-lo com um segmento
unidade u – ou, em outras palavras, determinar “quantas vezes” u cabe em AB.
Ampliando a Reflexão
7.1 No ensino básico, a importância de estabelecermos claramente a unidade em problemas envolvendo
frações é subvalorizada. Em algumas situações, a falta de clareza sobre a unidade estabelecida
pode tornar a resposta de um problema duvidosa, ou mesmo sem sentido. Este é o caso dos
exemplos a seguir.
(i) Eu e uns amigos pedimos duas pizzas, cada uma dividida em 8 pedaços. Comemos ao todo
uma pizza inteira, e mais 3 pedaços da segunda. Que fração comemos?
(ii) Eu ganhava mais que meu irmão. Recebi um aumento de 20% e ele de 50%. Depois desses
aumentos quem ganha mais?
A situação mais simples é aquela em que o segmento AB pode ser subdivido em um número inteiro
n de segmentos, todos congruentes a u, isto é, u cabe um número inteiro de vezes em AB, ou A é
múltiplo inteiro de u. Neste caso, a medida de AB em relação a u será igual ao número n ∈ N.
A u B
Figura 7.1: Medidas inteiras.
Uma vez fixada uma unidade u, é claro que nem todos os demais segmentos serão seus múltiplos
inteiros. Uma estratégia para lidar situações como esta, é subdividir u em partes iguais, obtendo uma
nova unidade u" (ou uma sub-unidade de u) que caiba um número inteiro de vezes em AB.
C u D
Figura 7.2: Medidas não inteiras.
Ampliando a Reflexão
7.2 Como você explicaria a seus alunos no ensino fundamental um procedimento para medir um
segmento, no qual a unidade não cabe um número inteiro de vezes? Por exemplo, na figura
7.1, se tentamos medir CD com a unidade u, percebemos que u cabe 2 vezes e ainda sobra um
pedaço congruente à metade de u.
1
Neste texto, por simplicidade, trataremos apenas da medida de segmentos de retas, isto é, da grandeza comprimento.
Entretanto, a noção de medida estende-se a quaisquer espécies de grandezas em que faça sentido estabelecer comparações
com um unidade de referência, isto, verificar “quantas vezes” essa unidade padrão “cabe” nas grandezas a serem medidas.
142 CAPÍTULO 7. NÚMEROS RACIONAIS: DE ONDE VÊM?
No exemplo da figura 7.1, temos que, em relação a unidade u, a medida de AB é igual a 3. Porém,
na atividade 7.1, como u não cabe um número inteiro de vezes em CD, a medida de CD em relação
a u não pode ser representada como um número natural. Se u é subdivida em 2 partes, obtém-se uma
nova unidade u" tal que u = 2 u" , isto é, u" = 12 u. Então, como u" cabe 6 vezes em AB e 5 vezes
em CD, as medidas de AB e de CD em relação a u" serão iguais a 6 e 5, respectivamente. Assim,
pode-se dizer que: CD = 5 u" = 5 · 12 u = 52 u. Portanto, a medida de CD em relação a u será definida
como 52 .
C u D
C u! D
Figura 7.3: Medidas não inteiras.
Esta é uma maneira de definir medidas não inteiras, isto é, de estender a definição de medida para o
caso em que a unidade não cabe um número inteiro de vezes no segmento a ser medido. Estas medidas
são associadas aos números que chamamos de racionais.
Ampliando a Reflexão
7.3 Suponha agora que você queira explicar a seus alunos o que significa medir a diagonal de um
quadrado de lado 1, isto é, medir a diagonal de um quadrado tomando-se o lado como unidade
de medida. Você ainda pode usar o procedimento da atividade 7.2?
ou um volume, logo nos ocorre atribuir a essas grandezas um valor numérico, determinado a partir de
uma unidade fixada.
No entanto, a tradição que marcou a geometria grega na época de Euclides – e mesmo um pouco
antes – envolvia o que chamamos “cálculo de áreas”, que são práticas geométricas que envolviam a
busca de equivalências de áreas e as operações com áreas. Estas operações eram feitas sem medir as
grandezas envolvidas (isto é, sem atribuir a elas valores numéricos), mas operando diretamente com
estas como grandezas geométricas, fossem comprimentos, áreas ou volumes. Vejamos o exemplo de
uma proposição dos Elementos:
Proposição I-38.. Os triângulos que estão sobre bases iguais e nas mesmas paralelas são iguais
entre si2 .
Traduzindo, se dois triângulos possuem a mesma base e o terceiro vértice em uma reta paralela à
base, então eles têm áreas iguais. Atualmente, pensamos em geral que dois triângulos têm áreas iguais
se possuem a mesma base e a mesma altura, uma vez que a área é calculada pela fórmula (base ×
altura)/2. Como tratamos aqui de uma tradição geométrica que não associava grandezas a números,
não se media a base e a altura para calcular a área. A proposição acima enuncia um caso em que duas
áreas são iguais, por meio de condições geométricas, sem que seja preciso calcular valores numéricos
para essas áreas. Ora, se o terceiro vértice de dois triângulos está em uma reta paralela à base, eles
possuem as mesmas alturas, como é dado que as bases são iguais, então possuem a mesma área.
Para entendermos a importância de conclusões deste tipo, precisamos entender como eram reali-
zados os cálculos de áreas na geometria grega, que consistia em uma prática distinta da que usamos
atualmente. Em nossa matemática, medir é associar uma grandeza a um número. Por exemplo, quando
queremos somar as áreas de dois polı́gonos, primeiro calculamos a área de cada um, por meio de uma
fórmula, e depois somamos os resultados (que são números). Mas na geometria grega, do perı́odo de
que tratamos aqui, as grandezas não eram tratadas por meio de sua associação a números. Neste caso,
como operar com grandezas, como comprimentos e áreas, senão por meio de suas medidas numéricas?
Este problema era resolvido por meio da procura de áreas equivalentes. Por exemplo, “medir” a
área de uma figura qualquer significava encontrar uma figura simples cuja área fosse igual à da figura
dada. Esta figura simples era um quadrado. Logo, o problema de se encontrar a quadratura de uma
figura qualquer correspondia a construir um quadrado cuja área fosse igual à da figura dada.
Esta construção podia ser feita em etapas:
1. construir um paralelogramo, com ângulo dado, cuja área seja igual à de um polı́gono qualquer;
2. uma vez que o retângulo é um caso particular de paralelogramo com ângulo reto, obter um
retângulo com a mesma área do polı́gono;
3. usando outra proposição, encontrar o quadrado com a mesma área do retângulo.
2
“São iguais” na linguagem de Euclides quer dizer “possuem a mesma área”.
144 CAPÍTULO 7. NÚMEROS RACIONAIS: DE ONDE VÊM?
Feito isto, era possı́vel somar as áreas dos quadrados por meio da proposição I-47, que equivale ao
resultado que conhecemos como Teorema de Pitágoras.
Proposição I-47. Nos triângulos retângulos, o quadrado sobre o lado que se estende sob o ângulo
reto é igual aos quadrados sobre os lados que contém o ângulo reto.
Presume-se que a maior utilidade deste resultado seria permitir somar áreas no contexto da geometria
grega. Na figura, temos a área do quadrado verde é igual à soma das áreas dos quadrados azul e rosa,
isto é, a famosa igualdade algébrica a2 = b2 + c2 , originalmente expressa por um enunciado sobre soma
de áreas.
Uma razão é um tipo de relação referente ao tamanho entre duas grandezas de mesmo tipo.
7.2. MEDIDAS E CÁLCULOS DE ÁREAS NA GEOMETRIA GREGA 145
O “termo grandeza de mesmo tipo” refere-se ao caso em que as grandezas podem ser comparadas
entre si, determinando-se qual é a maior e qual é a menor. Assim, dois comprimentos são grandezas
de mesmo tipo, bem como duas áreas. Já um comprimento e uma área não são grandezas do mesmo
tipo. Logo, o enunciado acima estabelece que só as grandezas de mesmo tipo podem ser comparadas
por meio de razões.
Comparando as duas teorias sobre razões e proporções expostas por Euclides, há motivos históricos
para se acreditar que a inadequação da teoria numérica para tratar as grandezas incomensuráveis tenha
levado à busca de uma técnica que pudesse ser aplicada a elas de modo confiável. Existia uma técnica,
chamada “antifairese”, que já era usada para números. Os matemáticos da época teriam tentado
estender, por meio deste procedimento, a teoria das razões e proporções para incluir a comparação
entre duas grandezas incomensuráveis.
Uma das hipóteses mais confiáveis, defendida por historiadores como Freudenthal, Knorr e Fowler, é
a de que o método da antifairese estava na base de uma teoria das razões que era praticada, pelo menos,
durante o século IV a.E.C. e que teria sido desenvolvida por Teeteto, matemático contemporâneo de
Platão e pertencente ao seu cı́rculo. Fowler argumenta que, antes de Euclides, era corrente uma teoria
tratando somente de razões, baseada na antifairese, sem a investigação de proporções.
1. da primeira pilha com 60 pedras pode-se subtrair 2 vezes a pilha com 26 pedras e ainda resta
uma pilha com 8 pedras;
2. da pilha com 26 pedras pode-se subtrair 3 vezes a pilha com 8 pedras e ainda resta uma pilha
com 2 pedras;
3. por fim, a pilha com 2 pedras cabe exatamente 4 vezes na pilha com 8 pedras.
1. 90 − 2 × 39 = 12
2. 39 − 3 × 12 = 3
146 CAPÍTULO 7. NÚMEROS RACIONAIS: DE ONDE VÊM?
3. 12 − 4 × 3 = 0
Assim, a razão antifairética [2, 3, 4] também expressa a comparação entre os números 90 e 39:
A = n0 B + R1
B = n 1 R1 + R2
R1 = n 2 R2 + R3
e assim por diante.
Este processo pode chegar a uma etapa final, na qual os segmentos comparados cabem um no
outro um número inteiro de vezes, ou não chegar a esta etapa, seguindo sem fim. Se o procedimento
alcança uma etapa final, a medida comum aos dois segmentos está associada a um terceiro segmento
R, que é o último resto não nulo encontrado na etapa anterior à final e que mede os segmentos A e
B. Isto permite encontrar uma medida comum aos dois segmentos e, por meio deste procedimento,
poderı́amos reduzir a geometria à aritmética, uma vez que cada segmento poderia ser representado pela
sua medida. Neste caso, a verificação da semelhança entre figuras seria reduzida à verificação de uma
proporção aritmética, que seria definida como uma igualdade de razões entre números.
Mas quando a antifairese não termina, temos um caso incomensurável, como no procedimento que
usaremos no próximo Capı́tulo para demonstrar geometricamente a incomensurabilidade entre o lado e
a diagonal do quadrado. Nesta situação, a definição de proporção pela igualdade de razões, que só é
viável para grandezas comensuráveis, não são mais aceitáveis.
A medida está presente nos dois casos, dos números e das grandezas. A diferença está no fato de
que no caso dos números a medida se dá a partir de uma unidade indivisı́vel, enquanto que as grandezas
podem ser divididas. As primeiras definições do livro VII apresentam a noção de número e o papel da
medida:
Definição VII-1. Unidade é aquilo segundo o qual cada uma das coisas existentes é dita uma.
Definição VII-2. E número é a quantidade composta de unidades.
Definição VII-3. Um número é uma parte de um número, o menor, do maior, quando mede
exatamente o maior.
Esta última definição postula que um número menor é uma parte de outro número maior quando
pode medi-lo (ou seja, quando o segundo é múltiplo inteiro do primeiro). Assim, os números são
considerados como segmentos de reta com medida inteira. Por exemplo, um segmento de tamanho 2
não seria parte de um segmento de tamanho 3, mas sim de um segmento de tamanho 6.
Os números servem para contar, mas antes de contar é preciso saber qual a unidade de contagem.
No caso das grandezas, a unidade de medida deve ser também uma grandeza. No caso dos números,
a unidade não é um número. A “unidade”, na definição de Euclides, é o que possibilita a medida, mas
ela não pode ser subdividida. Este ponto de vista, que afirmamos ser o de Euclides, foi explicitado por
Aristóteles:
O Uno não tem outro caráter do que servir de medida a alguma multiplicidade, e o número não
tem outro caráter do que o de ser uma multiplicidade medida e uma multiplicidade de medidas.
É também com razão que o Uno não é considerado um número, pois a unidade de medida não é
uma pluralidade de medidas.
(Metafı́sica, N I 1088a)
Vemos assim que, para Euclides, o Um não é um número, pois o número pressupõe uma multipli-
cidade, ou seja, uma diversidade que o Um não possui. O Uno é caracterizado pela sua identidade em
relação a si mesmo.
As técnicas de medida, que ocupam um lugar preponderante nas práticas euclidianas sobre os
números, eram realizadas pelo método da antifairese. Por isso, este procedimento, no caso dos números,
é conhecido hoje como “algoritmo de Euclides”. Este método era utilizado para encontrar a medida
comum a dois números (ou seja, o mdc entre eles):
Proposição VII-1. Sendo expostos dois números desiguais, e sendo sempre subtraı́do de novo o
menor do maior, caso o que restou nunca meça exatamente o antes dele mesmo, até que reste
uma unidade, os números do princı́pio serão primos entre si.
Proposição VII-2. Sendo dados dois números não primos entre si, achar a maior medida comum
deles.
A proposição VII-1 acima fornece um critério para decidir quando dois números A e B são primos
entre si. Supondo B < A, retira-se B de A obtendo-se um resto R1 . Se R1 não for igual a B, retira-se
R1 de B, obtendo-se outro resto R2 . O procedimento continua enquanto o resto R1 não é igual ao
anterior e nem igual a 1.
Quando um resto couber um número inteiro de vezes no anterior, a próxima subtração resultará em
0, os números A e B terão uma medida comum e então a proposição 2 se aplica. Se isto não acontecer
Ri = 1 em alguma iteração e poderemos dizer que A e B são primos entre si.
Na verdade, o modo como Euclides enuncia esta proposição 2 do livro VII emprega uma linguagem
de grandezas. Os dois números dados são segmentos A e B dos quais queremos encontrar a maior
medida comum. Construı́mos geometricamente as diferenças entre restos sucessivos.
148 CAPÍTULO 7. NÚMEROS RACIONAIS: DE ONDE VÊM?
Exemplo 7.1 Como encontrar por este método o mdc entre 119 e 85.
Solução: Começo por retirar 85 uma vez de 119, obtendo R1 = 34 como resto. Em seguida retiro
34 duas vezes de 85, obtendo o segundo resto R2 = 17. Agora retiro 17 duas vezes de 34 obtendo 0.
Logo 17 é o maior divisor de 119 e 85.
Note que, se fossem primos, este procedimento chegaria ao resto 1 e não a 0.
O procedimento pode dar 0, ou seja, pode chegar ao fim, ou não. Se os dois números não são
primos entre si, o mesmo procedimento dará um resto, diferente da unidade, que mede o precedente
(logo, se retiramos este resto do número precedente um certo número de vezes, obtemos zero, como
ocorreu no exemplo acima). Este resto é a maior medida (divisor) comum entre os dois números. Logo,
se um resto mede o precedente, o algoritmo termina e obtemos o mdc dos dois números. Assim, o mdc
representa o maior número que mede os dois números dados, isto é, a maior medida comum entre eles.
Um número é primo quando não é medido por nenhum outro número, somente pelo 1, que não é
considerado um número. Quando o mdc de dois números é 1 ele não é considerado um mdc “verdadeiro”
(o que faz com que os primos possuam natureza distinta dos outros números).
Observando o método da antifairese, podemos notar um paralelo entre números que não são primos
entre si e grandezas comensuráveis, pois é possı́vel obter uma medida comum entre eles, e conse-
quentemente entre números primos entre si e grandezas incomensuráveis. No caso das grandezas
comensuráveis, essa “medida comum” é uma grandeza de mesmo tipo que “mede” ambas, isto é, da
qual ambas são múltiplas inteiras. Analogamente, no caso de números não primos entre si, o mdc,
também obtido por meio da antifairese, representa o maior número do qual ambos são múltiplos, isto
é, a “medida comum” entre eles.
Entretanto, verifica-se uma diferença importante entre os números primos entre si e as grandezas
incomensuráveis. No caso dos números primos entre si, o processo da antifairese termina no 1. No caso
das grandezas incomensuráveis, a antifairese é infinita, continua indefinidamente. Neste caso, devemos
tomar uma grandeza e subdividi-la infinitamente, e este procedimento não tem fim. Logo, não existe
uma grandeza menor do que todas as outras e pode ser que o algoritmo de Euclides não termine. As
grandezas incomensuráveis são objeto do livro X dos Elementos.
Podemos citar, por exemplo, a proposição X-2, versão para grandezas da proposição VII-1 citada
anteriormente:
Proposição X-2. Se, quando a menor de duas grandezas é continuamente subtraı́da da maior, a
que resta nunca mede a precedente, as grandezas são incomensuráveis.
Definição 8.1 Em Z × Z$ construı́mos uma relação 8 entre os seus elementos da seguinte maneira:
dados dois pares (a, b), (c, d) do conjunto Z × Z∗ , dizemos que eles estão relacionados (e escrevemos
(a, b) 8 (c, d)) se e só se
(a, b) ∼ (c, d) ←→ ad = bc
Ampliando a Reflexão
8.1 Prove que 8 é uma relação de equivalência no conjunto Z × Z∗ .
149
150 CAPÍTULO 8. NÚMEROS RACIONAIS: APROFUNDAMENTOS E DESDOBRAMENTOS
O conjunto quociente Z × Z$ / 8 construı́do a partir desta relação de equivalência é, como qualquer
conjunto quociente, formado pelas classes de elementos (no caso, pares) de Z×Z$ que são equivalentes
via a relação de equivalência 8 , ou seja, são o que queremos chamar de números racionais.
Definição 8.2 Cada classe de equivalência [(a, b)] determinada pela relação de equivalência 8 é
a
chamada um número racional e denotada por . O conjunto quociente Z × Z$ / 8 é denotado por Q.
b
Mais precisamente, em lugar de escrevermos
Z × Z$ / 8 é denotado por Q;
a
a classe de equivalência [(a, b)] é denotada por .
b
O professor deve estar ciente de que, na escola, diferentemente do que escrevemos acima, tanto um
elemento (a, b) de Z × Z$ quanto sua classe de equivalência [(a, b)] são denotados da mesma forma:
a
b
o que certamente não facilita a compreensão do estudante: imagine que ele esteja pensando em 23 e
4
6
como frações, então elas obviamente não são iguais (pois, por exemplo, para representar uma delas
dividimos um todo em 3 partes, e para representar a outra dividimos o todo em seis partes), mas ele
vê escrita em seu livro a igualdade
2 4
= .
3 6
a
A mesma notação utilizada para os representantes das classes de equivalência e para as classes:
b
a a a
denota-se (a, b) por e [(a, b)] também por . Os representantes são denominados frações, enquanto
b b b
a
que as classes de equivalência são denominados números racionais.
b
8.1. CONSTRUÇÃO POR CLASSES DE EQUIVALÊNCIA 151
O professor deve se certificar que o aluno tenha presente e bem compreendidas as definições de
fração e de número racional, bem como a diferença entre elas, assim como o significado das igualdades
a c
=
b d
%a &
Q= | a ∈ Z , b ∈ Z∗ .
b
−a.
Será que para a construção de Q a partir de Z é também possı́vel criar um sı́mbolo
extra e denotar as classes de equivalência com este sı́mbolo eventualmente anexado
aos números inteiros (nosso ponto de partida), digamos, algo do tipo
'()*
−a
Em outras palavras, por que para denotar classes de pares de naturais foi suficiente
o sinal “-” e UM número natural e para denotar as classes de pares de inteiros foi
necessário manter-se DOIS inteiros?
a
8.1.1 A Notação para Número Racional
b
Convidamos o leitor a refletir sobre a questão colocada acima através do seguinte estudo dirigido, que
tenta também evidenciar que a construção dos racionais é um pouco mais complexa do que a construção
dos inteiros.
Ampliando a Reflexão
8.2 Sejam a, n ∈ Z. Mostre que, se a &= 0, tem-se (a · n, a) 8 (n, 1), e que, se a &= 0 e n &= 0, tem-se
(a, a · n) 8 (1, n).
8.3 Mostre que (a, b) 8 (n, 1) ⇔ a = n · b e (a, b) 8 (1, n) ⇔ b = n · a.
8.4 Convença-se que todas as classes [(0, 1)], [(n, 1)], [(1, n)], com n ∈ Z∗ , são distintas (e portanto
disjuntas).
8.5 Prove que não é verdade que para todo par (a, b) ∈ Z × Z∗ , com a &= 0, existe n ∈ N∗ tal que
(x, y) 8 (n, 1) ou (x, y) 8 (1, n).
152 CAPÍTULO 8. NÚMEROS RACIONAIS: APROFUNDAMENTOS E DESDOBRAMENTOS
Ampliando a Reflexão
8.6 Convença-se que todas as possı́veis classes [(a, b)], com a ∈ Z, b ∈ N∗ e a, b relativamente primos
são distintas (e portanto disjuntas) e englobam as classes mencionadas em 3.
8.7 Mostre que o conjunto quociente de Z × Z pela relação de equivalência 8 não se resume a
Ampliando a Reflexão
Para a construção dos racionais, optamos por propor um estudo dirigido. Começamos pela relação
de ordem. Reiteramos o convite ao leitor para refletir sobre a estreita tradução entre as notações (a, b)
a a
e ; [(a, b)] e .
b b
Ampliando a Reflexão
8.9 Sabemos que Z é um conjunto ordenado (vamos denotar temporariamente a relação de ordem
deste conjunto por !Z ). Definimos, por meio de !Z , uma relação em Q = Z × Z$ / & , que vamos
denotar temporariamente por !Q , da seguinte forma:
a c
!Q ⇔ ad !Z bc .
b d
(a) Mostre que esta relação está bem definida. Comece explicando por que é preciso aqui
mostrar-se que uma tal relação está bem definida.
(b) Mostre que !Q é uma relação de ordem.
8.10 De maneira análoga, procedemos com as operações: em Z temos definidas as operações de adição
e multiplicação (que vamos denotar temporariamente por +Z e ×Z , respectivamente. Daı́, por
meio delas, definimos em Q = Z × Z$ / & :
a c a ×Z d +Z b ×Z c
+Q :=
b d b ×Z d
a c a ×Z c
×Q := .
b d b ×Z d
A construção do corpo ordenado (Q, +Q , ×Q , !Q ) é feita tijolo a tijolo, evidenciando como tudo
parte da estrutura (Z, +Z , ×Z , !Z ). Qualquer propriedade mal aprendida sobre (Z, +Z , ×Z , !Z ) vai, no
máximo, ser aplicada com uma receita no universo numérico Q, comprometendo o aprendizado deste
novo conjunto.
Ampliando a Reflexão
8.11 Mostre como as operações de subtração e de divisão estão já embutidas dentro da estrutura
(Q, +Q , ×Q , !Q ).
m
O argumento que utilizamos na escola (identificar o número racional com o número inteiro m é
1
um resumo do que aqui passamos a discutir, ainda na forma de estudo dirigido.
É claro que o conjunto Z pode ser posto em correspondência biunı́voca com o subconjunto das
classes do tipo [(n, 1)] de Z × Z$ / 8 . Ou seja, existe uma função injetora
Mas também é claro que Z pode ser posto em correspondência biunı́voca com o subconjunto das
classes do tipo [(n, 2)] de Z × Z$ / 8 , ou com o subconjunto das classes do tipo [(n, 3)] de Z × Z$ / 8 ,
etc. Em geral, fixado qualquer natural não nulo k, existe uma função injetora
Assim, somos levados a identificar Z com a sua imagem por uma tal bijeção e enxergar Z como um
subconjunto de Q.
Por “Z” na figura 8.1 (em que representamos qualquer uma das funções fk simplesmente por
f ) estamos significando que os números inteiros olhados como elementos de Q, mais precisamente,
substituindo f (n) = nk por n dentro do conjunto Q. Ficaria assim justificado o abuso de escrita
m
m= (em vez de m “=” m k
).
k
Em outras palavras: a correspondência proporcionada pela função fk nos permite identificar Z com
sua “cópia” fk Z dentro de Q e convencionar o abuso de linguagem
Z⊆Q
ao invés de
Z “≡” fk (Z) ⊆ Q.
Uma vez já construı́dos os inteiros e os racionais, temos em mãos, por exemplo, as operações +Z e
+Q , ×Z e ×Q . Se uma função fk entre Z e Q não conversar de forma coerente com tais operações,
de pouca serventia será fk . O que precisamente queremos dizer com isto? Observe o diagrama abaixo
construı́do com as operações de adição:
f
Z → Q
↓ +Z ↓ +Q
f
Z → Q
Partindo de dois inteiros m, n e seguindo o sentido das flechas, temos:
f
m, n ∈ Z → f (m), f (n) ∈ Q
↓ +Z ↓ +Q
f f (m) +Q (n)
m +Z n →
f (m +Z n)
156 CAPÍTULO 8. NÚMEROS RACIONAIS: APROFUNDAMENTOS E DESDOBRAMENTOS
É natural que esperemos que uma tal função f nos permita a seguinte coerência (acompanhe no
diagrama acima): se primeiro somamos os inteiros m, n como inteiros (isto é, fazendo uso de +Z )
e depois indentificamos o resultado m +Z n como um número racional (estamos então falando de
f (m +Z n)) deveria produzir o mesmo resultado que o processo de já começar olhando os inteiros m, n
como racionais (isto é identificando-os com f (m) e f (n)) e somá-los como números racionais, o que
vai produzir o resultado f (m) +Q f (n). Ou seja: os diferentes caminhos indicados pelo diagrama acima
deveriam levar os inteiros m, n ao mesmo elemento de Q:
f (m) +Q f (n) = f (m +Z n) .
Definição 8.3 Sejam A, B dois conjuntos munidos de um operação que denotaremos respectivamente
por ∗A e ∗B . Dizemos que uma função f : A → B preserva tais operações1 se, quaisquer que sejam
a1 , a2 ∈ A, ocorrer
f (a1 ∗A a2 ) = f (a1 ) ∗B f (a2 ) .
Ampliando a Reflexão
então k = 1.
Assim, para que Z seja identificado com um subanel de Q precisamos que operar “a la Z” seja o
mesmo que operar “a la Q”.
8.1.4 Comparando Z e Q
Ampliando a Reflexão
8.13 Já vimos que no conjunto Z as noções de sucessor e de antecessor ainda podem ser utilizadas.
(a) Mostre que isto não acontece nos racionais, mostrando que entre quaisquer dois racionais
distintos sempre existe um terceiro racional.
(b) Afinal, entre quaisquer dois racionais distintos quantos racionais existem?
1 2
a que correspondem. Nesse caso, e são equivalentes. Certamente esse enten-
2 4
dimento exige uma abstração bastante sofisticada para ser exigida na escola básica.
1 2
Nessa etapa da formação, basta que os estudantes reconheçam que e repre-
2 4
sentam, para uma mesma unidade, quantidades iguais e que, portanto, são formas
equivalentes para a representação do mesmo número. Nessa etapa da escolaridade,
o uso dos termos equivalentes ou igual depende situação em que estão envolvidas as
frações.
Ampliando a Reflexão
8.14 Demonstre o fato afirmado da nota Na sala de aula 10: na construção dos inteiros, toda classe
de equivalência possui um representante da forma (0, c) ou (c, 0) para algum c ∈ N.
Assim, criamos um objeto número racional, e associamos a este todas as medidas no caso de
grandezas comensuráveis. Esse é uma passo de abstração análogo a dizer que o número natural 5 conta
tanto cinco cadeiras quanto cinco pessoas e cinco litros. O passo de abstração que caracteriza o
conceito de número corresponde à abstração da natureza das coisas contadas ou medidas.
Neste caso, o número (racional) 1 corresponde à unidade de qualquer coisa, independente da natureza
da coisa, e estabelece a identificação de magnitudes de quaisquer naturezas com números – isto é, a
abstração da natureza.
* Nesta linha, crucial importância tem o subconjunto das frações decimais, precisamente repre-
sentantes dos racionais que vão admitir expansão decimal finita. Assim, sugere-se começar o
Capı́tulo pelo estudo das mesmas e abordar a questão Será que todo número racional pode ser
representado por uma fração decimal? que, depois de respondida, é seguida naturalmente pela
questão Quais são precisamente os racionais que podem ser representados por uma fração de-
cimal? (É importante que seja bem discutido o caso em que o racional não pode ser expresso
por uma fração decimal, pois é a primeira oportunidade que se tem de discutir com o aluno um
processo infinito.)
* É útil começar-se a discussão sobre expansão decimal pela expansão decimal de um número
natural (revisando as ideias que os alunos trazem do ensino fundamental).
E, ao passarmos para racionais, sugere-se que os calouros sejam levados a concluir que
* racionais com expansão decimal finita são precisamente aqueles que podem ser expressos por uma
fração decimal;
* (antes de abordar-se o caso de racionais que não podem ser expressos por uma fração decimal)
é muito oportuno apresentar-se uma outra interpretação importante para a igualdade
b1 b2 bn−1 bn
r = 0, b1 b2 ...bn−1 bn = + 2 + . . . + n−1 + n
10 10 10 10
e que é consequência do seguinte resultado (que não consta no livro-texto):
bj bj bj+1 bn−1 bn bj + 1
j
! j + j+1 + . . . + n−1 + n <
10 10 10 10 10 10j
ou seja, na soma
bj bj+1 bn−1 bn
+ + . . . + +
10j 10j+1 10n−1 10n
1
não cabem mais do que bj vezes a quantidade j .
10
Em particular, se 0, b1 b2 . . . bn−1 bn é a expansão decimal do racional r obtida pelo processo das
divisões sucessivas, então:
em r cabem b1 décimos e não mais do que isto;
b1
em r − cabem b2 centésimos e não mais do que isto;
10
...
b1 b2 bn−1 1
em r − − 2 − . . . − n−1 cabem bn vezes a quantidade n , e não mais do que isto.
10 10 10 10
* A inspiração para obter a expansão decimal no caso geral (isto é, para racionais quaisquer,
incluindo aqueles que não podem ser representados por uma fração decimal) vem do fato que
a
acabamos de ressaltar no Teorema: dado um racional positivo r < 1 expresso por uma fração
b
qualquer, começamos calculando o máximo de décimos que cabem em r e, uma vez constatado,
digamos, que
a1 a1 + 1 a1 1
!r< = + ,
10 10 10 10
e uma vez garantido que a1 é um algarismo, já podemos garantir que a expansão decimal de r é
da forma
r = 0, a1 . . . ,
onde as reticências significam apenas que nada concluı́mos sobre o resto da expansão decimal de
a1
r, podendo inclusive ocorrer que r = , ou seja, que r = 0, a1 .
10
a1
No caso em que r &= , seguimos calculando o máximo de centésimos que cabem na diferença
10
a1
r − , determinando a2 tal que
10
a2 a1 a2 + 1
2
!r− < ,
10 10 102
e assim sucessivamente: à medida que concluı́mos que
160 CAPÍTULO 8. NÚMEROS RACIONAIS: APROFUNDAMENTOS E DESDOBRAMENTOS
a1 a2 aj a1 a2 aj 1
+ 2 + ... + j ! r < + 2 + ... + j + j ,
10 10 10 10 10 10 10
em que a1 , a2 , . . . , aj são algarismos, podemos garantir que a expansão decimal de r é da forma
r = 0, a1 a2 a3 . . . aj . . . ,
onde as últimas reticências denotam que ainda nada sabemos dizer sobre o resto da expansão decimal
de r, podendo inclusive acontecer a igualdade
r = 0, a1 a2 a3 ...aj .
E, se sabemos que não ocorre a igualdade na expressão
a1 a2 aj a1 a2 aj 1
+ 2 + ... + j ! r < + 2 + ... + j + j ,
10 10 10 10 10 10 10
1
podemos seguir procurando o máximo de vezes que a quantidade j+1 cabe em
10
-a a2 aj .
1
r− + + ... + j
10 102 10
para continuar o processo.
Cabe aqui salientar aos alunos que, com esta maneira de pensar, ficam evidentes
* O processo de determinação dos algarismos que vão compor a expansão decimal do racional
a
r = (positivo e menor do que 1) que aqui apresentamos é o método das divisões sucessivas;
b
é importante mostrar aos alunos a estreita relação entre este método e o algoritmo usual que
aprendemos na escola de determinação da expansão decimal de um número racional.
* Sugerimos como parte deste detalhamento não só a demonstração da periodicidade como também
a discussão sobre:
* a definição de perı́odo;
* o tamanho do perı́odo;
* a necessidade de uma notação precisa para as dı́zimas periódicas;
* a questão (importante!) Será que para qualquer perı́odo que imaginemos sempre existirá
um racional cuja expansão decimal (pelo método das divisões) tem tal perı́odo?
* a recuperação da fração geratriz (pois não vamos aqui nos debruçar na discussão sobre
como operar com expansões decimais infinitas, uma vez que, recuperando a fração geratriz,
podemos operar com um número finito de algarismos).
O estudo dos racionais é dado por encerrado abordando-se a insuficiência aritmética dos racionais,
fato que vai acabar aparecendo na motivação para a necessidade de se aumentar o universo numérico
para sermos capazes de expressar a medida exata de qualquer segmento de reta.
8.2. REPRESENTAÇÃO DECIMAL 161
No ensino básico, a abordagem dos números racionais tem inı́cio desde as séries iniciais do ensino
fundamental, a partir da abordagem de frações e de “números decimais” (termo tradicionalmente
associado aos números racionais expressos no sistema decimal posicional). De maneira geral, apenas
no 7o. ano o conjunto dos números racionais é “apresentado” aos alunos. No entanto, eles já lidam
com esses números em contextos diversos, que os associam a interpretações e significados variados. A
compreensão de número exige abstração, que deve ser alcançada a partir da proposição de problemas
que promovam a reflexão sobre os conceitos envolvidos. Não é diferente com os números racionais.
Essencialmente é fundamental que os alunos sejam capazes de distinguir medidas em contextos em que
os números naturais não são suficientes e saber comparar essas quantidades e operar com elas. Isso
pode parecer simples, mas todo professor com alguma experiência reconhece a complexidade envolvida
no ensino e na aprendizagem desse universo numérico. A compreensão dos números racionais envolve
necessariamente o reconhecimento da unidade, mas também de uma sub-unidade que identifica por
(dupla)contagem uma fração correspondente ao número racional que se quer representar. Por exemplo,
a fração 35 expressa um número racional entre 0 e 1 ao evidenciar a comparação realizada pelas contagens
que identificam os termos da fração, no caso 3 e 5, a partir da sub-unidade igual a quinta parte de 1.
Além disso, os números racionais deixam explicita a noção de equivalência como conceito matemático –
6 9
por exemplo, 10 e 15 são frações equivalentes, e portanto, pertencem à mesma classe de equivalência e
representam assim o mesmo número racional. Essa evidência não se apresenta no universo dos números
inteiros: não é evidente, por exemplo, que −5 identifica a classe de equivalência de (0, 5), da qual
(2, 7) também é um representante. Uma fração ab , com a e b inteiros, b &= 0, pode estar relacionada
a significados variados, indicando a medida de um comprimento, uma razão, uma relação do tipo
parte/todo ou uma divisão. Espera-se ainda que o aluno seja capaz de comparar 35 com qualquer outro
número racional, ordenando-os, de representá-lo na reta numerada e de realizar as operações básicas
envolvendo qualquer outro número racional. Conhecer bem os conceitos que estão envolvidos em cada
uma dessas necessidades certamente tem reflexos na prática do professor.
163
164 CAPÍTULO 9. NÚMEROS RACIONAIS: NA ESCOLA
Além disso, é importante notar que esse entendimento contempla o conceito de frações impróprias.
Ampliando a Reflexão
9.1 Muitos professores consideram frações impróprias como um assunto que envolve certa dificuldade
em relação à aprendizagem dos alunos. Avalie criticamente a seguinte afirmação em relação a
dificuldade apontada: Uma fração significa tomar a unidade, dividi-la em partes iguais e tomar
algumas dessas partes.
Ainda que essa possa ser uma abordagem inicial adequada para o assunto, sabemos que o conceito
de frações vai muito além da relação parte/todo. Frações também estão relacionadas, por exemplo,
ao conceito de razão e à operação de divisão ( ab é o quociente da divisão de a por b). As frações
aparecem também relacionadas aos conceitos de porcentagem (em que se exige a divisão da unidade
necessariamente em 100 partes), bem como de probabilidade. Diante de tantos contextos para um
único conceito, é inevitável que haja dúvida sobre o que, de fato, é esse conceito.
Nesta seção, discutiremos alguns problemas próprios do ensino básico que envolvem frações em
contextos distintos. O reconhecimento por parte do professor de diferentes contextos e significados em
que as frações se fazem presentes é importante no que diz respeito à abordagem do tema no ensino
básico. Consonantes com os PCN, não propomos a cobrança ao aluno da identificação explı́cita ou
da classificação de cada um desses contextos ou significados, mas sim reforçamos a necessidade da
apresentação de uma variedade de problemas, para que fiquem ampliadas as chances de compreensão
por parte do aluno. Existem na literatura alusões a “idéias”, “significados”, “construtos”, com
mais referências a outras do que aqui apresentamos – em contrário aos PCN que apresentam como
significados ou situações ou interpretações “razão”, “parte-todo” e “quociente”). Fator multiplicativo
é citado no PCN como interpretação mas nós deixaremos para comentar como aplicação da operação
de multiplicação
Nessas situações, a quantidade de partes em que o todo (seja bolo, pista ou turma) deve ser
dividido identifica a sub-unidade que permite distinguir a relação parte/todo traduzida pela fração.
Assim, considerando o exemplo do bolo, 13 do bolo “cabe” 2 vezes na parte que foi comida e 3 vezes no
bolo todo – neste caso, o bolo é o todo, representado pela fração 33 que é igual a 1, ou seja, à unidade.
Contextos que envolvem fração como descrevendo a relação parte/todo oferecem a oportunidade de
desenvolver o senso numérico atrelado aos números racionais, ou seja, a situações particulares em que os
números naturais não são suficientes para expressar uma medida. Problemas e atividades que tratam de
fração como descrição de uma relação parte/todo amparam fortemente a compreensão da unidade, de
frações equivalentes, de comparação de frações e do cálculo das operações básicas envolvendo frações.
Nesse contexto das frações, a compreensão do conceito de unidade é especialmente delicada se
comprada com sua compreensão quando o universo numérico é o conjunto dos naturais.
Para realizar a comparação que determina a medida por fração, é feita uma dupla contagem a partir
de uma unidade pertinente, aquela que viabiliza a comparação – no caso, a n-ésima parte da unidade,
representada pela fração n1 . É por contagem, realizada tendo n1 como unidade, que determina os termos
da fração, numerador e denominador. No entanto, observando a medida traduzida pela fração, esta
unidade não é, de maneira geral, associada ao número 1. Por exemplo, na divisão de uma barra de
chocolate em 3 partes das quais 2 foram comidas, a fração 23 identifica a quantidade de chocolate
comida tendo a barra de chocolate como unidade. No entanto, para se obter a fração 23 , os números 2
e 3 foram obtidos por contagem de “pedaços” da barra de chocolate. Portanto, um pedaço corresponde
à unidade nessa contagem.
Ou seja, observando 23 como um número, a unidade 1 correspondente à barra de chocolate. Mas,
para se identificar os termos 2 e 3 da fração 23 , é necessário considerar uma sub-unidade, que será
tomada como unidade para realizar a contagem que identifica o 2 e o 3. Para o professor, é importante
reconhecer que o aluno fará uso desta sub-unidade para realizar a medida e que precisa ser capaz de
diferenciá-la da unidade identificada com o número 1, no caso a barra de chocolate.
Exemplo 9.4 Bernardo vai passar 23 do ano viajando para estudar. Neste caso, a unidade é o ano.
Mas se pensarmos em 12 meses, 23 do ano equivalem a 8 meses.
166 CAPÍTULO 9. NÚMEROS RACIONAIS: NA ESCOLA
3 6
Exemplo 9.5 A que fração corresponde à parte pintada na figura a seguir, 4
ou 4
?
O que está sendo solicitado é a região sombreada. Para tal, considerando a relação parte/todo, a
parte está bem definida, é a região sombreada. No entanto, não está claro o que é o todo, ou seja, a
unidade. Identificar a região sombreada à fração 64 ou à fração 34 vai depender de a unidade estabelecida
ser um cı́rculo ou dois cı́rculos inteiros, respectivamente. Percebe-se assim que o enunciado não está
bem posto, gerando ambiguidade. As duas respostas são possı́veis e não são frações equivalentes. Essa
situação é bem diferente das respostas 32 e 64 , equivalentes se o todo for um cı́rculo. Em resumo:
a explicitação da unidade (todo) é indispensável na comparação entre duas grandezas se queremos
expressá-la em termos de frações.
No contexto das frações, é essencial que o aluno tenha compreendido bem o conceito de unidade,
reconhecendo que a unidade pode não significar a quantidade 1, uma vez que a unidade pode ser um
objeto, mas também pode ser, por exemplo, uma coleção de objetos, como no exemplo 9.3.
1
O preparo de uma receita solicita 4
de xı́cara de leite.
Como fazer essa medição?
Esse problema também exige uma relação particular com a forma, isto é, apesar de 14
representar a metade da metade, alcançar esta fração nem sempre é tarefa simples.
Neste caso, a repartição não é exigida de forma explı́cita, a xı́cara não será repartida
9.1. FRAÇÕES: UM CONCEITO EM MUITOS CONTEXTOS 167
em quatro partes iguais, mas enchida até que a quantidade desejada de leite seja
atingida. A ideia de medida se apresenta fortemente, ou seja, o problema de medir
o leite tendo como unidade a capacidade de uma xı́cara cheia. E onde se alcança a
quarta parte da capacidade da xı́cara? Certamente não é a partir da repartição da sua
altura em quatro partes de mesmo comprimento. O valor da discussão de questões
como essa em sala de aula está justamente na problematização e não necessariamente
na resposta.
1
Sabendo que o triângulo equilátero ao lado corresponde a 3
de uma figura, desenhe essa figura.
É importante observar que esse problema não tem uma única resposta correta. Ob-
servando a área, são exemplos de respostas possı́veis, ou seja, exemplos de figuras que
correspondem à unidade em questão, as seguintes formas:
ou
Sabendo que 13 das canetas que tenho estão desenhadas a seguir, quantas
canetas tenho?
O senso comum para o termo “parte” pode comprometer o entendimento da ideia de “parte” que
aparece na designação de fração como parte/todo. No caso da fração, “parte” não é necessariamente
“um pedaço” de algo, mas o agrupamento de subdivisões do que é tomado como todo. Assim, é
possı́vel que, em contextos de parte/todo, a parte (identificada pelo numerador da fração que descreve
a comparação) seja maior do que o todo – são os casos em que as frações são ditas impróprias. Essas
frações indicam quantidades maiores do que 1 inteiro. Na figura abaixo, por exemplo, a representação
da comparação pode estar associada à fração imprópria 54 e não à fração 58 , se a unidade considerada
for uma barra.
O conceito de frações equivalentes pode ser explorado de diferentes formas em contextos em que as
frações identificam relações parte/todo. Por exemplo, considerando um quadrado como unidade, em
cada uma das figuras a seguir, a parte colorida representa 12 .
9.1. FRAÇÕES: UM CONCEITO EM MUITOS CONTEXTOS 169
Representações como essas são fundamentais para a compreensão do conceito de frações equiva-
lentes na escola básica. É a partir da representação que os estudantes conseguem perceber que, ainda
que repartir uma unidade em quatro partes iguais e tomar duas não seja a mesma coisa que repartir a
mesma unidade em duas partes iguais e considerar uma, as partes consideradas correspondem à mesma
quantidade. Ou seja, que 24 e 12 são frações equivalentes. O mesmo vale para, no caso, por exemplo,
para as frações 36 , 18
36
e 48 . É fundamental para a compreensão do conceito de número racional
identificar que duas ou mais frações são equivalentes se, representam a mesma quantidade,
uma vez fixada a unidade.
(ii) Para uma mesma fração, se as unidades consideradas forem diferentes, as quan-
tidades por elas identificadas também serão diferentes.
4
(iii) As frações 12 e 13 só podem ser representadas por um mesmo desenho, se a
unidade escolhida tiver sido a mesma.
170 CAPÍTULO 9. NÚMEROS RACIONAIS: NA ESCOLA
Fração e razão não são sinônimos, mas têm muito em comum. Como discutido no Capı́tulo 7,
essencialmente, razão indica uma comparação entre grandezas sem que necessariamente haja números
envolvidos. Já fração é um objeto matemático que, por definição, envolve números inteiros. No
entanto, esses conceitos têm em comum a expressão de uma comparação. Na matemática de hoje,
dificilmente uma razão não estará associada a números. O processo que caracteriza a comparação
por razão – ou seja, a identificação de uma unidade que “caiba” uma quantidade inteira de vezes
nas grandezas comparadas – distingue grandezas comensuráveis de grandezas incomensuráveis. Os
casos em que as grandezas são comensuráveis, ou seja, em que existe a tal unidade que cabe uma
quantidade inteira de vezes nas grandezas comparadas, determinam pares de números inteiros, que
correspondem a essas quantidades. Esses pares identificam uma razão, que pode então ser expressa
por uma fração (e, consequentemente, relacionada ao número racional que a fração representa). Por
exemplo, consideremos a razão entre as grandezas A e B comensuráveis, então existe uma unidade u
que cabe a vezes na grandeza A e b vezes na grandeza B. A razão entre as grandezas A e B pode ser
expressa pela fração ab .
Os casos de incomensurabilidade referem-se precisamente às situações, em que a razão não pode
ser expressa por uma fração. Nesta situação, tais razões vão determinar os números irracionais, que
são tratados na Parte IV deste livro. Tem-se, assim, que toda fração pode expressar uma razão,
mas nem toda razão pode ser expressa por uma fração.
Ampliando a Reflexão
9.2 Dê exemplos de uma razões que não pode ser expressa por frações.
Expressando uma razão, a fração indica a relação de comparação entre duas grandezas sem envol-
ver necessariamente a identificação da medida dessas grandezas. Por exemplo, considere a seguinte
situação: Uma urna contém bolas brancas e pretas, de tal modo que para cada 2 bolas brancas há 3
bolas pretas (figura 9.2). A razão entre bolas brancas e pretas nessa urna é frequentemente represen-
tada pela fração 23 . Assim, apenas com esta informação, não se conhece a quantidade de bolas brancas
nem de bolas pretas. Apenas registra-se a relação entre essas quantidades. Nessa caixa pode haver,
por exemplo, 2, 100, 324 ou 1000 bolas brancas. Apenas sabendo a razão entre a quantidade de bolas
brancas e a quantidade de pretas, não é possı́vel identificar a quantidade total de bolas de nenhuma
das cores, nem mesmo garantir que haja apenas bolas das cores branca e preta na caixa. No entanto,
sabemos que nessa caixa não há, por exemplo, exatamente 100 bolas pretas. (Por que?)
É importante que os diferentes significados para frações não sejam percebidos e abordados de forma
estanque. Em um mesmo problema duas ou mais interpretações podem ser solicitadas. No caso do
exemplo da urna com bolas brancas e bolas pretas, na razão 2 brancas para 3 pretas. Se nessa urna
houver um total de 100 bolas (brancas e pretas), quantas serão as bolas brancas? Neste caso, 23 indica
9.1. FRAÇÕES: UM CONCEITO EM MUITOS CONTEXTOS 171
razão entre a quantidade de bolas brancas e bolas pretas e as frações 25 e 35 as razões de bolas brancas
e de bolas pretas para o total na urna, respectivamente. No entanto, para obter a quantidade de bolas
brancas, a fração 25 pode ser interpretada segundo o significado de parte/todo. Assim, 25 das 100 bolas
são brancas, ou seja, há 40 bolas brancas na urna.
Alguns autores identificam o significado de razão a uma relação parte/parte. O importante não
é o termo usado, mas o entendimento de que, sob a interpretação de razão, a atenção não está na
quantidade das partes relacionadas, mas na comparação estabelecida.
Exemplo 9.6 A escala de uma mapa é 1 : 1000, ou seja, a cada unidade de medida no mapa corres-
pondem 1000 dessas unidades de medida na situação real.
a dia ou nos anos anteriores. Por exemplo, ao comparar as idades de duas pessoas,
é possı́vel dizer simplesmente que uma é mais velha (ou mais nova) do que a outra.
Neste caso, a comparação se estabelece a partir da ordem. Mas, e se a intenção for
identificar o quanto mais velha? Uma forma mais precisa de comparar as idades de
duas pessoa é a partir da diferença entre as idades, o que revela um dado numérico
mais especı́fico e também invariante sobre a situação. Claro que a ordem e a diferença
não são as únicas formas de relacionar por comparação duas quantidades ou grande-
zas. A razão, como vimos, é essencialmente uma forma de comparação. No caso
da comparação das idades de duas pessoas, se, no momento do nascimento de seu
filho, um pai tiver 30 anos, a diferença entre as suas idades será sempre de 30 anos.
No entanto, apenas aos seus 30 anos, o filho terá a metade da idade do pai. Assim,
dependendo da situação, comparar as idades de duas pessoas por meio do quociente
(ou do produto) pode não ser a melhor escolha. Já para comparar as quantidades de
ingredientes em uma receita, a diferença talvez não seja a escolha mais interessante.
Se para preparar um bolo são necessários 2 copos de leite e 3 de farinha, a diferença
entre as quantidades desses ingredientes não se manterá se a receita for dobrada.
Nesse caso, a comparação por razão se apresenta mais eficiente: para cada 2 copos
de leite acrescente 3 copos de farinha à massa. A discussão sobre comparação deve
ser objetivo do ensino de matemática no ensino básico.
A abordagem de frações em contextos que envolvem razão pode oferecer a oportunidade de ampliar
a compreensão de números racionais a partir da ideia de proporção. Proporções envolvem frações
equivalentes, o que sustenta a compreensão de número racional como uma classe de equivalência.
No entanto, essa situação fica mais complexa, se no lugar de uma barra de chocolate, fossem, por
exemplo, quatro: Quatro barras de chocolate devem ser repartidas igualmente entre 3 crianças. Que
174 CAPÍTULO 9. NÚMEROS RACIONAIS: NA ESCOLA
parte de uma barra de chocolate caberá a cada criança? Neste caso, tomando como unidade a barra de
chocolate, matematicamente a situação corresponde à divisão de 4 por 3 (figura 9.4). Assim, tomando
a barra de chocolate como a unidade, ou seja, como 1, 4 ÷ 3 = 43 . Neste caso, 43 identifica o quociente
de 4 por 3. É importante observar que este problema também pode ser resolvido partindo-se cada barra
de chocolate em 3 partes e dando 4 dessas partes a cada uma das crianças (figura 9.5). O seja, dividir
4 por 3 equivale a considerar 4 vezes a divisão de 1 por 3. Verifica-se assim, a partir de uma situação
concreta, a igualdade 43 = 4 ÷ 3 = 4 × 13 (figura 9.6).
Definição 9.1 (frações equivalentes) Sejam a, b, c e d números inteiros, com b e d são não nulos.
Então as frações ab e dc são equivalentes se e somente a · d = b · c.
No contexto da escola básica, é comum reconhecer duas frações como equivalentes apenas pela
multiplicação (ou divisão) do numerador e do denominador de uma fração pelo mesmo número natural
(não nulo). Por exemplo, as frações 23 e 10
15
são identificadas como equivalentes pela observação de que
10 2×5 2 10÷5
15
= 3×5
ou de que 3
= 15÷5
. Não é muito complicado representar essas observações da equivalência
a partir de modelos (por exemplo, pizzas ou balas).
9.3. OS NÚMEROS RACIONAIS NA RETA NUMÉRICA 175
No entanto, este método não é direto na identificação de todas as frações equivalentes. Por
exemplo 26 e 27 9
são equivalentes, mas uma não pode ser obtida a partir da outra diretamente por meio
de multiplicação (ou divisão) de seus termos por um mesmo número natural.
A compreensão do conceito de frações equivalentes fundamenta a definição de número
racional. Números racionais são elementos de uma estrutura constituı́da a partir de classes de equi-
valência. As frações são os elementos dessas classes de equivalência. Assim, cada número racional
corresponde a infinitas frações e cada fração representa um único número racional. Desta forma, o
termo “equivalentes”, empregado neste contexto, está relacionado com a relação de equivalência entre
pares de números inteiros, que determina a construção formal do conjunto Q. Assim, um número
racional fica definido pela classe de todas as frações equivalentes a uma fração ab dada.
A representação de um número racional pode ser feita por qualquer das frações da classe de equi-
valência que o identifica. Ou seja, se o número racional r fica identificado pela classe de equivalência da
fração ab , r pode ser representado por ab ou por qualquer outra fração equivalente a ab . Reciprocamente,
todas as frações da classe de equivalência de ab podem representar o número racional r.
0 1
Figura 9.7: Segmento unitário.
Assim, uma subdivisão da unidade em n partes iguais significa dividir o segmento unitário em n
segmentos congruentes. A extensão de cada um desses segmentos congruentes corresponde ao número
1
n
. Por exemplo, o número 12 será associada a um segmento cuja extensão é a metade da unidade.
Tomando como referência o zero, tem-se que à fração 12 corresponderá o ponto à direita do zero que
determina um segmento cuja medida é 12 , precisamente, o ponto médio do segmento [0, 1] (figura
9.8). De forma análoga, ficam estabelecidas, por exemplo, os números 13 e 16 , a partir da divisão do
segmento unitário em 3 e em 6 segmentos congruentes (figuras 9.9). Já os números − 16 , − 13 e − 12
ficam determinados a partir da simetria em relação ao 0 (figuras 9.10).
1
0 2
1
1
Figura 9.8: Representação da fração 2
na reta numerada.
1 1 1
0 6 3 2
1
−1 − 21 − 13 − 16 0 1
6
1
3
1
2
1
Ficam assim identificados os números do tipo n1 para n natural não nulo. De forma geral, o número
1
n
corresponde à medida do segmento determinado pela divisão do segmento unitário em n segmentos
congruentes. Tomado como referência o zero, ao número n1 na reta numerada corresponderá o ponto à
direita do zero que determina o segmento de medida n1 . Definido o número n1 , tem-se que o número m n
será determinado pela justaposição consecutiva, sobre a reta numerada, de m segmentos de medida n1 .
Assim, o número m n
corresponde a m vezes n1 . Os números racionais negativos ficam determinados
pela simetria em relação ao zero.
A resposta para essa questão é o ponto B e pode ser obtida de diversas formas. Espe-
cialmente no contexto dos números racionais, o ponto B fica identificado a partir do
cálculo da distância entre os pontos M e N , 16 , e da medida de cada um dos segmen-
1
tos congruentes, 30 . Assim os pontos A, B, C e D, correspondem respectivamente
aos números 30 , 30 = 25 , 13
11 12
30
e 14
30
.
No entanto, a identificação do ponto B, pode ser feita a partir de um raciocı́nio
errado, que não é difı́cil que seja desenvolvido diante dessa questão. Observe que o
segmento M N está dividido em 5 partes e B corresponde, sob a orientação crescente,
à extremidade final do segundo segmento. Assim B seria identificado a 25 . Sob esse
raciocı́nio, o ponto A corresponderia a 15 , o ponto C a 35 e D a 45 . Esse erro sugere
uma limitação da compreensão dos conceitos de fração e de unidade.
Ampliando a Reflexão
9.3 Tome três folhas de papel do mesmo tamanho. Por meio de dobraduras, de recortes, ou de
desenhos em papel quadriculado, use essas folhas para representar as frações 14 , 18 e 13 , como
mostra a figura abaixo.
178 CAPÍTULO 9. NÚMEROS RACIONAIS: NA ESCOLA
Agora, redivida as folhas de uma forma que seja conveniente para responder às questões a seguir.
9.4.2 Multiplicação
Uma interpretação da multiplicação entre grandezas corresponde a multiplicar duas grandezas de mesma
espécie e obter como resultado uma grandeza de outra espécie. Existem muitas situações em que se
faz isso, como por exemplo, quando se multiplica tempo por velocidade e se obtém distância. Porém, o
caso mais importante para o ensino básico é a multiplicação de dois comprimentos resultando em uma
área. A interpretação de multiplicação como área é fundamental no ensino básico.
9.4. OPERAÇÕES COM FRAÇÕES 179
u2
u
Para introduzir o conceito de área no ensino fundamental, é importante deixar claro que uma unidade
de medida de comprimento u determina uma unidade de medida de área u2 , representada pelo quadrado
de lado u, chamado quadrado unitário.
Se queremos medir a área de um retângulo cujos lados são ambos múltiplos inteiros de u, basta
preenchê-lo com quadrados unitários e contar esses quadrados. A medida da área do retângulo, em
relação à unidade u2 , será dada pelo número m de quadrados unitários que cabem no retângulo. Neste
caso, a medida da área é um número natural. Na figura 9.12, a medida da área é S = 15 u2 .
u2
Se esses lados não são múltiplos inteiros de u, mas são comensuráveis com u, podemos encontrar
um subdivisão, w = k1 · u, da qual ambos sejam múltiplos inteiros. Esta subdivisão determinará uma
nova unidade de área, w2 = n1 · u2 , em que n = k 2 . Basta então preencher o retângulo com quadrados
de lado w e contar esses quadrados. A medida da área do retângulo, em relação a unidade u2 , será dada
por mn
, sendo m o número de quadrados de lado w que cabem no retângulo. Neste caso, a medida da
área é um número racional. Na figura 9.13, a medida da área é S = 176 w2 = 176 19 u2 = 1769
u2 .
Ampliando a Reflexão
2 4 1 3
9.5 As figuras abaixo representam os produtos 3
× 5
e 3
× 2
, respectivamente. Explique essas
representações.
180 CAPÍTULO 9. NÚMEROS RACIONAIS: NA ESCOLA
9.6 Desenhe um quadrado em um folha de papel. Divida um dos lados do quadrado em 3 partes
iguais e use esta divisão para representar a fração 23 . Divida o outro lado em 5 partes iguais e
represente a fração 45 . Observe o retângulo que você formou, tendo as duas frações representadas
como lados. Pinte a área deste retângulo. Que fração da área do quadrado a área deste retângulo
representa? Que operação deve ser feita para se obter o resultado?
2 4
9.7 Recorte tiras de papel com comprimento de 3
e de 5
da unidade.
(a) Junte 4 tiras de papel de comprimento 23 , uma em seguida à outra. Depois, divida a nova
tira formada em 5 partes iguais. Quanto mede o resultado?
2/3
(b) Divida uma tira de papel de comprimento 23 em 5 partes iguais. Depois, recorte outras tiras
de mesmo comprimento da que você formou. Junte 4 dessas novas tiras formadas, uma em
seguida à outra. Quanto mede o resultado?
(c) Junte 2 tiras de papel de comprimento 45 uma em seguida à outra. Depois, divida a nova
tira formada em 3 partes iguais. Quanto mede o resultado?
(d) Divida uma tira de papel de comprimento 54 em 3 partes iguais. Depois, recorde outras tiras
de mesmo comprimento da que você formou. Junte 2 dessas novas tiras formadas, uma em
seguida à outra. Quanto mede o resultado?
9.8 Considere a multiplicação de duas frações, e classifique as afirmações a seguir como verdadeiras
ou falsas, justificando a sua escolha:
9.4.3 Divisão
Considere, por exemplo, a divisão 12 5
: 25 . Este cálculo pode ser realizado a partir da divisão de 12
quintos por 2 quintos, ou seja, quantas vezes 2 quintos cabem em 12 quintos. A resposta é 6.
Tradicionalmente, uma das maiores dificuldades da matemática do ensino básico são as operações
com frações, especialmente a divisão. Embora no ensino fundamental estejamos mais acostumados
em interpretar a operação de divisão como repartição em partes iguais, esta não se aplica quando o
divisor não é um número natural. Para essas situações, há outra interpretação da operação de divisão
mais adequada: divisão como medida, que corresponde à ideia de “quantos cabem”. Neste caso, foi
empregado o significado de divisão como medida. Porém o cálculo foi facilitado pelo fato dos termos da
operação terem o mesmo denominador. Mas como proceder se as frações não estão expressas com um
denominador comum? No caso geral será necessário determinar uma unidade comum entre os termos
da operação.
* Na interpretação da divisão como repartição em partes iguais, são dados a grandeza total e o
número de partes e se pergunta o tamanho de cada parte. Por exemplo: “Se dividimos um saco
com 20 balas em 5 saquinhos com a mesma quantidade de balas cada, quantas balas haverá em
cada saquinho?”
* Na interpretação da divisão como medida, são dados a grandeza total e o tamanho de cada
parte e se pergunta o número de partes. Por exemplo: “Se dividimos um saco com 20 balas em
saquinhos com 4 balas cada, quantos saquinhos formaremos?”
Observe que a pergunta é quantas vezes 4 balas cabem em 20. Portanto, é como se usássemos
o saquinho de 4 para medir o saco de 20 balas.
5 1
Exemplo 9.7 ÷ .
2 4
Sejam p = 52 e q = 14 . Neste caso, observamos que q cabe exatamente 10 vezes em p, isto é, se
tomarmos o segmento de comprimento q, a medida do segmento de comprimento p será igual a 10.
Assim, 52 = 10 × 14 , ou 52 ÷ 14 = 10.
0 1 1 2 3
4
0 1 2 5 3
2
Figura 9.14: Divisão como medida.
No exemplo anterior, o divisor cabe um número exato de vezes no dividendo. Logo, o resultado da
divisão é um número natural. No caso em que isso não ocorre, devemos buscar uma unidade comum
entre o dividendo e o divisor.
182 CAPÍTULO 9. NÚMEROS RACIONAIS: NA ESCOLA
5 2
Exemplo 9.8 ÷ .
2 3
Sejam p = 52 e q = 23 .
Para encontrar uma unidade w comum entre p e q, da qual ambos sejam múltiplos inteiros, devemos
subdividir os segmento de comprimento 12 em 3 e o segmento de comprimento 13 em 2. Isto é, dividimos
p em 15 partes iguais e q em 4 partes iguais. Portanto, como p = 15 · w e w = 14 · q, a medida de p
em relação a q será igual a w = 15
4
. Assim, 52 = 15
4
× 23 , ou 52 ÷ 23 = 15
4
.
w
0 2 1 2 3
3
0 1 2 5 3
2
Figura 9.15: Divisão como medida.
De forma geral, para dividir p = ab e q = dc , podemos encontrar uma unidade comum w, subdividindo
1
b
em d partes iguais e d1 em b partes iguais. Logo, teremos que
Assim, considerando que w é uma subdivisão da unidade q e contando quantas vezes w cabe em
p, concluı́mos que a medida de p quando q é tomando como unidade será igual a a d b1c = ab cd . Assim,
chegamos a uma dedução da conhecida fórmula de divisão de frações:
a c ad
÷ = .
b d bc
A interpretação da divisão como medida se aplica a qualquer divisão entre dois números reais, repre-
sentados, por exemplo, por segmentos de reta. No caso dos segmentos serem incomensuráveis, não será
possı́vel encontrar uma unidade, como fizemos acima, e o resultado da divisão será um número irracional.
Neste caso, podemos também usar subdivisões do divisor para encontrar aproximações racionais para o
resultado da divisão. Voltemos por exemplo, ao caso do lado e a diagonal do quadrado. Já sabemos
que não existem m, n ∈ N tais que d = m n
· a, isto é, ad &∈ Q. Porém, podemos verificar que
d 3 4 d 5 5 d 6
1< < , < < , < < ,
a 2 3 a 3 4 a 4
e assim por diante. Em sala de aula, essas aproximações podem ser verificadas com ajuda de uma
calculadora ou computador.
Ampliando a Reflexão
9.9 Use a idéia de divisão como medida, como nos ı́tens anteriores, para representar as seguintes
divisões de frações:
3 3 6 2 12 3
(a) 2
÷ 8
(b) 5
÷ 5
(c) 5
÷ 2
1 4 3 11 3 9
(d) 3
÷ 5
(e) 2
÷ 6
(f) 2
÷ 5
9.4. OPERAÇÕES COM FRAÇÕES 183
(a) O resultado da divisão de frações menores que 1 é sempre uma fração menor que 1?
(b) O resultado da divisão de frações maiores que 1 é sempre uma fração maior que 1?
184 CAPÍTULO 9. NÚMEROS RACIONAIS: NA ESCOLA
Parte IV
Números Reais
185
Capı́tulo 10
a1 = AB1 = AC − B1 C = AC − BC = d − a = (n − m) u .
#1 = CB
O triângulo CBB1 é isósceles, por construção. Então, CBB # 1 B. Como os ângulos CBC1
# #
e CB1 C1 são retos, concluı́mos que C1 BB1 = C1 B1 B. Logo, o triângulo BC1 B1 também é isósceles.
Então, BC1 = B1 C1 = a1 . Logo:
187
188 CAPÍTULO 10. NÚMEROS REAIS: DE ONDE VÊM?
D A
B1 D1
C1
C B
Figura 10.1: A incomensurabilidade entre o lado e diagonal do quadrado.
2 a1 < a.
Aplicando a mesma construção ao quadrado AB1 C1 D1 , obtemos um novo quadrado AB2 C2 D2 , com
lado a2 e diagonal d2 também múltiplos inteiros de u e tal que 2 a2 < a1 . Portanto, 4 a2 < 2 a1 < a.
Continuando este processo indefinidamente, obtemos uma sequência de quadrados (Ak Bk Ck Dk )k∈N ,
com lados ak e diagonais dk , todos múltiplos inteiros de u, tais que o lado de cada quadrado é menor
que a metade do lado do quadrado anterior, isto é, 2 ak < ak−1 . Portanto,
2k ak < a = m u.
Neste caso, podemos escolher um valor de k grande o suficiente de tal forma que ak seja menor
que u, contradizendo a fato de ser seu múltiplo inteiro.
Portanto, não podem existir uma unidade comum u e m, n naturais tais que a = m u e d = n u.
Neste caso, dizemos que a e d são incomensuráveis, conforme a definição a seguir.
(i) Dizemos que a e b são comensuráveis se existir uma segmento de reta u e dois números
naturais m, n tais que a = m u e b = n u.
(ii) Caso contrário, dizemos que a e b são incomensuráveis.
Se duas grandezas a e b são comensuráveis, como na definição acima, então a comparação de suas
medidas pode ser expressa por meio da comparação – ou razão – dos números naturais m e n. Porém,
no caso de grandezas incomensuráveis, isto não é mais possı́vel. Desta forma, as razões entre números
naturais não são suficientes para resolver o problema teórico da medida. É necessário, portanto, expandir
1
Por simplicidade, enunciamos esta definição apenas para segmentos de reta. No entanto, os conceitos de comen-
surabilidade e incomensurabilidade se aplicam a quaisquer outras grandezas, tais como área, volume, massa, etc. Neste
caso, devemos exigir apenas que a, b e u sejam grandezas de mesma espécie, isto é, todos devem ser áreas, ou todos
volumes, e assim por diante.
10.2. NÚMEROS SURDOS E IMAGINÁRIOS NO CONTEXTO DA RESOLUÇÃO DE EQUAÇÕES189
o conjunto dos números racionais para dar conta de todas as medidas possı́veis. Os novos números –
os irracionais – servirão para representar medidas no caso de grandezas incomensuráveis.
Em outras palavras, a existência de grandezas incomensuráveis mostra que o problema da me-
dida não pode ser reduzido ao problema da contagem. Isto é, se só existissem segmentos
comensuráveis, sempre que estivéssemos lidando com um problema envolvendo um número finito de
segmentos, seria possı́vel encontrar uma unidade comum u em relação à qual as medidas de todos esses
segmentos seriam números naturais. Medir esses segmentos reduzir-se-ia então a contar quantas vezes
u caberia em cada um deles. A razão entre as medidas de quaisquer dois segmentos poderia, neste
caso, ser representada por uma razão entre números naturais.
Em termos atuais, isto equivale a dizer que qualquer proporção seria representada por um número
racional. Portanto, os números racionais seriam suficientes para expressar as medidas de todos os seg-
mentos existentes. Assim, as grandezas incomensuráveis mostram a necessidade da construção
dos números reais para resolver o problema teórico da medida.
Em termos contemporâneos, a incomensurabilidade entre o lado e diagonal do quadrado se traduz,
aritmeticamente, pelo fato de não existir um número racional r tal que r2 = 2, ou algebricamente, pelo
fato de a equação x2 − 2 = 0 não admitir solução em Q. É possı́vel verificar este fato empregando
o Teorema Fundamental da Aritmética, mais especificamente a unicidade da decomposição em fatores
primos de um número natural.
a
De fato, suponhamos que exista r = ∈ Q tal que r2 = 2. Então, terı́amos a2 = 2 b2 . Mas isto é
b
uma contradição, pois o expoente do fator 2 é par na decomposição em fatores primos de a2 e ı́mpar
na decomposição em fatores primos de 2 b2 .
Os números irracionais que intervinham nos métodos de resolução de equações intrigaram os alge-
bristas europeus dos séculos XV e XVI. Um bom exemplo é o de Bombelli, que propôs um modo de
aproximar o resultado do problema que escreverı́amos hoje como o de encontrar a solução da equação
. Ele sabia que o valor da raiz, neste caso, devia estar entre 1 e 2, logo ele reconhece que este número
deve ser constituı́do pela unidade mais o que sobra quando subtraı́mos 1 desta raiz. Simbolizando a
raiz por x, o que ainda não era feito na época de Bombelli, terı́amos x = 1 + (x − 1). Mas ele sabia
1
ainda, ao seu modo, que = x + 1, pois x2 = 2 (e portanto x2 − 1 = 1). Desta igualdade e da
x−1
1
anterior conclui-se que = x + 1 = 2 + (x − 1). Invertendo os numeradores e os denominadores,
x−1
1
temos que x − 1 = . Mas o valor de x − 1 pode ser novamente substituı́do no denominador
2 + (x − 1)
e temos
1 1
x−1= = .
1 1
2+ 2+
2 + (x − 1) 1
2+
2 + (x − 1)
Este método, denominado atualmente de “frações contı́nuas”, tem sua origem no procedimento da
antifairese (descrito
√ no Capı́tulo III) e fornece uma aproximação para a raiz da equação, que exprimimos
hoje como 2, dada por
1
1+
1
2+
1
2+
2 + ...
Durante o século XVI, os números surdos apareciam frequentemente como raı́zes de equações e
eram, muitas vezes, aproximados por somas infinitas. No entanto, o estatuto destes números ainda não
estava incorporado, ou seja, não se sabia se eles deviam ser realmente considerados como números. Em
1544, o matemático alemão Michael Stifel resumiu as ambiguidades que devem ser enfrentadas ao se
aceitar este tipo de número:
Uma vez que, ao provar proposições geométricas, quando números racionais falham, números
irracionais assumem seu lugar, provando exatamente aquilo que os racionais não podiam provar,
somos compelidos a afirmar que eles são verdadeiros números. Compelidos pelos resultados que
seguem de seu uso – resultados que percebemos serem reais, certos e constantes. Por outro
lado, outras considerações nos compelem a negar que os números irracionais sejam números.
Por exemplo, quando tentamos sujeitá-los à numeração [representação decimal], vemos que eles
escapam perpetuamente, de modo que nenhum pode ser apreendido precisamente em si mesmo.
Não pode ser chamado um número verdadeiro aquele que possui uma tal natureza, que carece de
precisão. Logo, assim como um número infinito não é um número, um número irracional não é
um verdadeiro número, mas permanece escondido em uma espécie de nuvem de infinito.
Stifel via os irracionais como números que escapam constantemente da representação decimal. Em
1585, o holandês Simon Stevin publicou um texto de popularização em holandês e francês, este último
chamado La Disme, defendendo esta representação para os números fracionários e mostrando como
estender os princı́pios da aritmética com algarismos indo-arábicos para cálculos com estes números.
Apesar de seu sistema ser bastante complexo, sem o uso de vı́rgulas, o fato de escrever as casas
decimais de um número tornava mais evidente a possibilidade de se aumentar o número de casas, o que
será útil se quisermos aproximar um número irracional por um racional com um erro cada vez menor.
10.2. NÚMEROS SURDOS E IMAGINÁRIOS NO CONTEXTO DA RESOLUÇÃO DE EQUAÇÕES191
A introdução da representação decimal, com vı́rgulas, foi um passo importante na legitimação dos
irracionais, uma vez que ela fornece uma intuição de que entre dois números quaisquer é sempre possı́vel
encontrar um terceiro, aumentando o número de casas decimais. É possı́vel perceber, por meio desta
representação, que apesar de os irracionais escaparem, é possı́vel que um racional chegue muito perto
dele. Não por acaso, Stevin foi um dos primeiros matemáticos do século XVI a admitir que o irracional
deve ser admitido como um número, uma vez que podia ser aproximado por racionais.
3 7 41 99
= 1, 5 , = 1, 41666 . . . , = 1, 41379310 . . . , = 1, 41428571 . . .
2 5 29 70
10.2.1 Os Números Reais no Estudo das Curvas dos Séculos XVII e XVIII
Durante o século XVII, diversos trabalhos fizeram intervir exemplos de curvas que eram dadas por uma
sucessão infinita de operações algébricas. Os números irracionais eram manipulados livremente sem que
o problema de sua natureza matemática precisasse ser investigado. Pascal e Barrow afirmavam que
números irracionais deviam ser entendidos somente como sı́mbolos e que √ eles não possuem existência
independente de grandezas geométricas contı́nuas. Um número como 3, por exemplo, devia ser
entendido como uma grandeza geométrica.
Com Leibniz e Newton, o cálculo infinitesimal passou a usar sistematicamente as séries infinitas. A
noção de que, a um ponto qualquer da reta, está associado um número, é assumida implicitamente.
Newton, que também pensava que os irracionais deviam ser associados a grandezas geométricas, con-
cebe a continuidade engendrada pelo movimento:
Não considero as grandezas matemáticas formadas de partes tão pequenas quanto se queira, mas
descritas por um movimento contı́nuo. As linhas são descritas e engendradas, não pela justa-
posição de suas partes, mas pelo movimento contı́nuo de pontos; as superfı́cies, por movimentos
contı́nuos de linhas; os sólidos, pelo movimento contı́nuo de superfı́cies.
(I. Newton, Treatise of the Quadrature of Curves, p.1)
Neste perı́odo, o cálculo de áreas já está distante da tradição euclidiana e busca associar a área a um
número. O método utilizado era baseado, primordialmente, na manipulação de séries infinitas, como já
era o caso da técnica usada por Pascal e Fermat, que descrevemos no Capı́tulo anterior. A solução de
problemas envolvendo quadraturas e equações diferenciais faz proliferar o uso destas séries.
A questão de determinar a área do cı́rculo, por exemplo, que Leibniz deseja exprimir por um número,
efetua a junção entre o contexto de curvas e o universo dos números, introduzindo π. Arquimedes
já havia encontrado limites para a razão entre o perı́metro e o diâmetro da circunferência e outros
matemáticos já haviam aproximado o valor desta razão, mas no contexto do cálculo leibniziano irá se
colocar o problema de admitir π como um número.
1 1 1
Este movimento levou à afirmação de que a soma da série 1 − + − . . ., que designava a
3 5 7
área limitada por um cı́rculo de diâmetro 1, é um número. A soma total da área é compreendida como
192 CAPÍTULO 10. NÚMEROS REAIS: DE ONDE VÊM?
um valor exato, que pode ser designado pelo número transcendente π4 . A questão não era apenas lidar
com números irracionais que aparecem como raı́zes de equações algébricas, mas há outros números não
podem ser associados a raı́zes de equações.
Euler abordará este problema, procurando identificar as diferenças entre números algébricos e trans-
cendentes, os primeiros podendo ser obtidos como raı́zes de equações, e os segundos, não. Os irracionais
algébricos são as raı́zes de uma equação com coeficientes inteiros, os outros, dos quais se conhecia ape-
nas π e e, eram transcendentes. Euler investiga se é possı́vel escrever o número π usando radicais,
questão associada à resolução do antigo problema da quadratura do cı́rculo.
No século XVI, alguns matemáticos, como M. Stifel, já haviam aventado a hipótese da quadratura ser
impossı́vel. Para demonstrá-la, era necessário verificar que o perı́metro não está para o diâmetro assim
como um número inteiro está para outro. Em meados do século XVIII esta possibilidade não surpreende
mais os matemáticos, sobretudo devido à grande variedade de séries infinitas que se relacionam à
quadratura do cı́rculo. Se a soma destas séries é uma quantidade racional, ela será um número inteiro
ou uma fração; mas caso contrário, pode ser um número transcendente.
Desde o século XVII, eram fornecidas diversas aproximações para o valor da razão entre o diâmetro
e a circunferência do cı́rculo. Mas apenas em meados deste século os matemáticos perceberam que, ao
invés de buscar o verdadeiro valor de π, poderiam mostrar que não há “verdadeiro valor”, ou que este
valor é impossı́vel.
No contexto do cálculo infinitesimal, o problema de saber como as grandezas, ou o que Leibniz
designou como o “contı́nuo”, se associavam a números só aparecia em casos isolados, e não constituı́a
um problema epistemológico. Por exemplo, Leibniz tinha introduzido funções dadas por quocientes de
polinômios e, juntamente com Johann Bernoulli, questionava se este quociente podia ser decomposto
em elementos simples. Isto implica decompor o denominador em fatores de primeiro e segundo graus.
x2 + x + 1
Exemplo 10.1 Seja o polinômio fracionário . Queremos saber se podemos de-
x3 + 3 x2 − 2 x − 6
compor este quociente em duas parcelas nas quais, no denominador, haja somente fatores de primeiro e
segundo graus, o que possibilita a decomposição desta função em elementos simples, que sabemos inte-
grar, por exemplo. O polinômio de grau 3 do denominador pode ser decomposto como (x2 − 2) (x + 3)
e a observação desta igualdade permite escrever
x2 + x + 1 1 1
3 2
= 2 + .
x + 3x − 2x − 6 x −2 x+3
Esta reescritura pode facilitar bastante os cálculos com a função inicial. No entanto,√este caso
apresenta um inconveniente, pois o denominador não está definido para x2 = 2 (ou x = 2), o que
torna impossı́vel a decomposição desta fração racional em elementos simples.
Um bom exemplo está no estudo do número de raı́zes de uma equação, que no século XVIII
empregava o seguinte método. Observava-se, inicialmente, que toda equação algébrica de grau ı́mpar
admite ao menos uma raı́z real. Em seguida, dada uma equação qualquer, procurava-se reduzi-la,
por procedimentos algébricos, a uma equação de grau ı́mpar. No entanto, a justificativa de que toda
equação de grau ı́mpar possui ao menos uma raiz real não pode ser feita por procedimentos algébricos.
As primeiras argumentações sobre este fato eram de natureza geométrica e decorriam da observação
de que, para valores grandes de x, o polinômio xn + an−1 xn−1 + . . . + a1 x + a0 se comporta como o
seu termo de mais alto grau. Quando n é ı́mpar, sabemos que quando x → +∞, xn → +∞ e quando
x → −∞, xn → −∞. Dizia-se, portanto, a partir da evidência geométrica, que, pelo “princı́pio de
continuidade”, a curva que representa este polinômio deve interceptar o eixo x ao menos uma vez, pois
esta curva teria uma parte que tende para +∞ (acima do eixo x), e outra parte que tende para −∞
(abaixo do eixo x). Mas notem que esta conclusão se baseia sobre uma propriedade da reta, como
equivalente ao conjunto dos números reais, que ainda não estava bem estabelecida. A associação de
figuras geométricas a equações implica necessariamente a consideração desta equivalência. Podemos
√
pensar, por exemplo, no gráfico de y = 2 − x2 que deve interceptar o eixo x nos pontos x = ± 2.
Como, na maior parte do século XVIII, a admissão da completude da reta era satisfatória nos proble-
mas tratados, não se colocava o problema de investigar o estatuto dos números reais. As quantidades
eram divididas somente entre contı́nuas e discretas. As discretas podiam ser concretas ou abstratas, e
eram vistas como números puros (naturais ou racionais positivos), mas as contı́nuas eram números reais
entendidos geometricamente por meio de segmentos de reta. A designação de numero “real” começou
a ser empregada por volta de 1700, para distinguir estas quantidades das negativas e imaginárias, que
ainda não eram consideradas reais.
Ampliando a Reflexão
10.1 Considere os segmentos AB e CD da figura a seguir.
A B
C D
(a) Construa, com régua não graduada e compasso, um segmento cuja medida seja a soma de
AB e CD.
(b) Construa, com régua não graduada e compasso, um segmento cuja medida seja o produto
de AB e CD.
Você não deve ter tido maiores dificuldades para fazer o item 1a. Porém, talvez você tenha ficado
com a sensação de que, no item 1b, estejam “faltando dados”. De fato, para construir geometricamente
um segmento cuja medida é o produto de dois segmentos dados, precisamos também conhecer o
segmento unidade. A construção mais simples do segmento produto é uma aplicação do Teorema de
Tales (figura 10.3). Há outras construções possı́veis, mas em qualquer uma destas, necessariamente,
deve ser dado o segmento unidade. Para se convencer deste fato, basta observar o seguinte: se segmento
CD for maior que unidade, então o produto AB · CD será maior que AB; e se segmento CD for menor
que unidade, então o produto AB · CD será menor que AB.
B
B
A
u u
CD CD
Figura 10.3: Produto de grandezas geométricas.
Na verdade, no contexto das operações entre grandezas geométricas, pode-se somar duas gran-
dezas de mesma espécie, obtendo como resultado uma grandeza dessa mesma espécie.
Porém, não se pode multiplicar ou dividir duas grandezas de mesma espécie, e obter como
resultado uma grandeza dessa mesma espécie. Nesse contexto, pode-se:
* multiplicar uma grandeza por um número, obtendo como resultado uma grandeza de mesma
espécie da original;
* dividir uma grandeza por um número, obtendo como resultado uma grandeza de mesma espécie
da original;
* dividir duas grandezas de mesma espécie, obtendo como resultado um número.
10.3. A IDENTIFICAÇÃO ENTRE NÚMEROS E GRANDEZAS 195
Note que as duas possibilidades da divisão no contexto das grandezas geométricas podem ser
associadas às duas interpretações da operação – repartição e medida. De fato:
* Quando se divide uma grandeza por um número, obtendo uma grandeza de mesma espécie como
resultado, são dados a grandeza total e o número de partes e se pergunta o tamanho de cada
parte.
* Quando se divide duas grandezas de mesma espécie, obtendo um número como resultado, são
dados grandeza total e o tamanho de cada parte e se pergunta o número de partes.
Em nossa prática matemática atual, estamos tão acostumados a identificar números e grandezas,
que temos pouca reflexão sobre a segunda afirmação acima. Pensamos na multiplicação entre números e
na multiplicação de grandezas indistintamente, pois pensamos em números e grandezas indistintamente.
Entretanto, a identificação entre grandezas e números depende da fixação de uma unidade.
Como a escolha de uma unidade é sempre arbitrária, não há uma identificação “absoluta” entre grandeza
e número.
Na construção dos números reais que descrevemos, definimos um número real (positivo) como uma
classe de equivalência de pares de segmentos proporcionais, ou seja, uma propriedade comum que esses
pares de segmentos compartilham. Assim, um número real é um objeto matemático de natureza
distinta das grandezas que o geram por meio do processo de equivalência.
Um próximo passo desta construção é estabelecer a representação dos números reais na reta
numérica. Começamos fixando uma semi-reta e nesta um ponto O, que chamamos de origem (fi-
gura 10.4). Mas este ato por si só já nos permite dizer que a cada ponto P dessa semi-reta está
associado um e somente um número real positivo? Isto é, já podemos estabelecer a famosa corres-
pondência biunı́voca entre os pontos da reta e os números reais? Até agora o segmento OP nada mais
é que um segmento. Para associá-lo a um número real, precisamos estabelecer uma unidade na reta.
Assim, marcamos um ponto A na reta e estabelecemos o segmento OA como unidade (figura 10.5).
Vemos com isso que a correspondência biunı́voca entre os pontos da reta e os números reais
não é absoluta, pois a escolha da unidade é arbitrária, e para cada unidade escolhida um
ponto P na reta corresponderá a um número real diferente.
O P
Figura 10.4: Construindo a reta real.
O A P
u
Figura 10.5: Construindo a reta real.
Uma vez fixada a unidade, é possı́vel identificar so pontos na reta que correspondem aos números
naturais – isto é, incluı́mos o conjunto N na reta real (figura 10.6). A partir daı́, pode-se identificar
univocamente também os pontos que correspondem: aos números negativos (por simetria); aos números
racionais (por subdivisões da unidade e translações); e aos números irracionais (por um processo de
completamento). Isto é, a correspondência biunı́voca entre os pontos da reta e os números
reais fica bem definida. Por exemplo, na figura 10.7, pode-se associar o ponto P ao número real 52
porque subdividimos a unidade u em duas partes iguais, e a sub-unidade w assim obtida cabe 5 vezes
no segmento OP .
196 CAPÍTULO 10. NÚMEROS REAIS: DE ONDE VÊM?
0 1 2 3
O A
u
Figura 10.6: Construindo a reta real.
5
−3 −2 −1 0 1 2 2 3
O A P
w
u
Figura 10.7: Construindo a reta real.
Ampliando a Reflexão
10.2 Descreva cada passo e justifique a construção geométrica para o produto mostrada na figura 10.3.
10.3 (a) Explique e justifique uma construção geométrica para marcar na reta real os pontos corres-
pondentes às raı́zes quadradas dos números naturais.
(b) Que importância você vê neste exercı́cio para a aprendizagem do conceito de número irra-
cional no ensino médio? Justifique a sua resposta.
Capı́tulo 11
11.1 Introdução
Certamente a compreensão dos números reais por um aluno do ensino básico não é simples, e mais
complexa ainda é a abordagem do assunto no ensino básico.
A questão
Por que é necessário aumentar o universo numérico conhecido até então pelo aluno,
a saber, o conjunto dos números racionais?
obviamente contribui para estabelecer uma problematização que motive a introdução dos números reais
no ensino básico. Entretanto, a falta desta problematização nos livros didáticos não é o aspecto mais
delicado sobre o ensino dos números reais, pois ela é fácil de ser contornada.
Apesar de os números reais serem apresentados no ensino básico através de sua representação
decimal e muitas vezes ser dada excessiva ênfase ao chamado cálculo com radicais, poucas, dentre as
questões listadas anteriormente, são abordadas no ensino fundamental ou mesmo no ensino médio.
A matemática como ciência dispõe hoje de várias construções rigorosas do conjunto dos números
reais e que o fazem um corpo ordenado arquimediano e completo, tais como a construção via cortes de
197
198 CAPÍTULO 11. NÚMEROS REAIS: APROFUNDAMENTOS E DESDOBRAMENTOS
Dedekind e via sequências de Cauchy. Em outras palavras, para a matemática como ciência, o problema
de formalizar o conjunto dos números reais já foi resolvido. Infelizmente, tais construções se revelam
inadequadas para o ensino básico, por serem muito abstratas e distantes da realidade e da maturidade
dos alunos deste nı́vel. No entanto, em geral, são estas as únicas construções apresentadas nos cursos
de Licenciatura.
Temos neste tópico, a nosso ver, um legı́timo exemplo da dupla descontinuidade mencionada por
Klein. Por um lado, a construção dos reais já foi esclarecida matematicamente e é transmitida ao aluno
de Licenciatura sem que seja discutida com ele a conexão entre o número real que lhe foi apresentado
(de maneira precária) na Escola e um corte de Dedekind (ou uma classe de alguma sequência de
Cauchy). Por outro lado, uma vez licenciado, espera-se que este novo professor seja capaz de passar,
para um aluno do ensino básico, de uma forma que seja compreensı́vel, a definição de número real
bem como ajudá-lo a desenvolver uma destreza com a ordem e as operações aritméticas entre os
números reais. Esta falta de abordagem adequada nos cursos de Licenciatura faz com que professores e
autores de livros didáticos voltem a tentar driblar a situação com frases desastrosas (algumas delas são
mencionadas adiante, na seção Na Escola) e incluam nos livros didáticos e em suas aulas um capı́tulo
inteiro intitulado Cálculo com Radicais, ao final do qual os alunos ainda não sabem dizer, por exemplo:
√ √
• se, afinal, 2 + 7 3 é ou não irracional;
√ √
• qual é a parte inteira de 2 + 7 3;
√ √
• qual é o primeiro algarismo da expansão decimal de 2 + 7 3.
Definição 11.1 Um corte é um par (D, E) de subconjuntos não vazios de números racionais cuja
união é Q, satisfazendo ainda a propriedade que todo elemento de D é menor do que todo elemento
de E.
D = {x ∈ Q | x ! r} e E = {x ∈ Q | x > r}
D = {x ∈ Q | x < r} e E = {x ∈ Q | x " r}
Dedekind contudo observou que os cortes dados desta não esgotam todos os possı́veis cortes raci-
onais. Por exemplo,
D = {x ∈ Q | x2 < 2} e E = {x ∈ Q | x2 < 2}
11.3. O CONJUNTO R COMO COMPLETAMENTO DE Q VIA SEQUÊNCIAS DE CAUCHY 199
definem um corte. Aos cortes deste tipo, Dedekind também associou um novo número s, que não é
racional, chamado (como o racional r dos exemplos acima) de elemento de separação.
Os cortes de Dedekind nos permitem representar cada número real s por uma lista da forma
±m, a1 a2 a3 . . . com m ∈ N e ai ∈ {0, 1, 2, ..., 9} para todo i ∈ N$ .
Suponhamos que s é o elemento de separação do corte (E, D). Fazemos aqui o caso em que existe
em E algum número positivo, deixando o outro caso para o leitor.
Estendendo de forma natural a relação de ordem para o novo conjunto numérico de modo a s ser
maior do que qualquer elemento de D e menor do que qualquer elemento de E, tem-se que, como E e
D são constituı́dos por números racionais, é possı́vel se aproximar de s por elementos destes conjuntos,
cercando-o por falta e por excesso. Assim,
∀ r1 ∈ D, ∀ r2 ∈ E, r1 ! s ! r2 .
m ! s ! m + 1.
Do mesmo modo, é possı́vel se aproximar um pouco mais de s, procurando no conjunto E a maior
fração decimal de denominador 10 e em D a menor fração decimal de denominador 10. Encontra-se
assim um a1 ∈ {0, 1, 2, ..., 9} tal que
1
m, a1 ! s ! m, a1 + .
10
E assim, sucessivamente, para cada n ∈ N, existe an ∈ {0, 1, 2, ..., 9} tal que
1
m, a1 ...an ! s ! m, a1 ...an + .
10n
Assim, associa-se a este novo número s a lista infinita m, a1 a2 a3 ..., a qual tem o seguinte significado
numérico: para cada n ∈ N,
1
m, a1 ...an ! s ! m, a1 ...an + n .
10
Com este processo constrói-se uma representação para qualquer número real, que coincide com
a representação decimal de s quando s é um número racional. Por isso a chamamos também de
representação decimal do número irracional s quando s é um real que não é racional.
e de classes de equivalência, com uma complexidade muito maior do que a classe de equivalência de um
par de naturais que dá origem a um número inteiro ou a classe de equivalência de um par de inteiros
que dá origem a um número racional. Em poucas palavras, a construção de Cantor envolve as seguintes
etapas (maiores detalhes podem ser encontrados em [97]).
1. Definição 11.3 Uma sequência de números racionais (an )n∈N é dita sequência de Cauchy quando
seus termos vão ficando arbitrariamente próximos uns dos outros. Esta ideia é formalizada da
seguinte forma: para cada racional ε > 0 é possı́vel encontrar k ∈ N tal que, para m, n > k,
tem-se |am − an | < ε.
Toda sequência convergente de números racionais é uma sequência de Cauchy, mas a recı́proca
não é verdadeira (dentro do universo numérico Q).
2. As sequências de Cauchy podem ser somadas e multiplicadas termo a termo, formando assim um
anel C comutativo com unidade que tem para neutro aditivo a sequência só formada por zeros e
para neutro multiplicativo a sequência só formada por 1’s.
3. O subconjunto de C formado pelas sequências de racionais que convergem a zero é um ideal
maximal de C. Este ideal (como todo ideal em um anel comutativo) determina uma relação de
equivalência em C, e o respectivo conjunto quociente de C é dito anel quociente de C determinado
por este ideal. Assim, duas sequências de Cauchy de números racionais estão em uma mesma
classe se a diferença entre elas é uma sequência que converge a zero.
4. Os elementos do anel quociente de C por este ideal são chamados números reais.
5. O conjunto dos números reais, como conjunto quociente, herda as operações de adição e de
multiplicação de C, mas é até um corpo.
6. Identificando cada número racional r com a classe da sequência constante (r, r, r, ...), é possı́vel
identificar Q com um subcorpo de R.
7. Ao considerarmos em R sequências de números racionais, é possı́vel mostrar que toda sequência de
Cauchy de números racionais converge (para um número real). Reciprocamente, todo número real
pode ser aproximado arbitrariamente por números racionais, isto é, que formam uma sequência
de Cauchy.
203
204 CAPÍTULO 12. NÚMEROS REAIS: NA ESCOLA
Se o objetivo do ensino de reais no ensino básico é levar o aluno a ser capaz de:
então um tópico intitulado “Cálculo com Radicais’ deveria dar conta de questões como as seguintes:
√ √
* O número 2 + 7 3 é ou não irracional?
√ √
* Qual é a parte inteira de 2 + 7 3?
√ √
* Qual é o primeiro algarismo da expansão decimal de 2 + 7 3?
√ √
* 13 + 3 5 é maior ou menor do que 10?
√ √
* Construa uma reta numérica, nela localizando os números 1 e 13 + 3 5.
1
* Localize o número 30 na reta numérica abaixo, sendo tolerado apenas um erro menor do que .
10
A questão acima obviamente contribui para estabelecer uma problematização que motive a in-
trodução destes números reais no ensino básico. Ela pode ser abordada de várias formas, uma vez que
o anel ordenado dos números racionais apresenta insuficiências algébricas, aritméticas e geométricas.
Entretanto, a falta desta problematização nos livros didáticos não é o aspecto mais grave/delicado
sobre o ensino dos números reais, pois ela é fácil de ser contornada, como já evidenciado no final do
último Capı́tulo.
As afirmações listadas acima encerram obstáculos para o ensino e para a aprendizagem dos números
reais, e sugerem que este assunto pode não ter sido suficiente e/ou adequadamente discutido no curso
de Licenciatura do professor (ou, pelo menos, do autor do livro didático mencionado), a ponto de este
se sentir seguro em lidar com elas e em condições de esclarecê-las. Muitas destas frases são, de fato,
precursoras de vı́cios (relacionados a conteúdos de matemática) evidenciados em alunos calouros de
cursos de ciências exatas (entre eles, principalmente e mais gravemente, de matemática). Por exemplo,
a combinação das “mal ditas” frases “fração é um quociente” e “O conjunto dos números racionais é
o conjunto de todas as frações”, dá margem ao seguinte raciocı́nio dedutivo (lı́cito!):
Se é verdade que:
2. fração é um quociente;
3. π é o quociente entre o comprimento da circunferência e o diâmetro do cı́rculo.
A matemática atual dispõe de várias construções rigorosas do conjunto dos números reais que o
tornam um corpo ordenado arquimediano e completo, tais como cortes de Dedekind e sequências de
Cauchy. Em outras palavras: para a matemática, o problema de construir o conjunto dos números reais
já foi resolvido. Infelizmente, tais construções se revelam inadequadas para o ensino básico, por serem
muito abstratas e distantes da realidade e da maturidade dos alunos deste nı́vel. No entanto, em geral,
estas são as únicas construções apresentadas nos cursos de Licenciatura.
Temos neste tópico, a nosso ver, um legı́timo exemplo da “dupla descontinuidade” mencionada por
Klein. Por um lado, a construção dos reais já foi esclarecida matematicamente e é transmitida ao aluno
de Licenciatura sem que seja discutida com ele a conexão entre um corte de Dedekind (ou uma classe
de alguma sequência de Cauchy) e aquele número real que lhe foi apresentado (de maneira precária)
na Escola. Por outro lado, uma vez licenciado, espera-se que este novo professor seja capaz de ensinar,
para um aluno da ensino básico, de uma forma que seja compreensı́vel, tanto a definição de número real
quanto a destreza com a ordem e com as operações aritméticas entre os números reais. Esta falta de
abordagem adequada nos cursos de Licenciatura faz com que professores e autores de livros didáticos
sigam tentando driblar a situação, por exemplo, com frases desastrosas como aquelas mencionadas na
nota Na Sala de Aula 4, e com a inclusão de um Capı́tulo inteiro intitulado “Cálculo com Radicais”, ao
final do qual os alunos ainda não sabem dizer:
√ √
* se afinal 2 + 7 3 é ou não irracional;
√ √
* qual é a parte inteira de 2 + 7 3;
√ √
* qual é o primeiro algarismo da expansão decimal de 2 + 7 3.
O conteúdo Números Reais deve ser desenvolvido no ensino básico de modo a levar o aluno a ser
capaz de:
1. reconhecer sua necessidade e relevância;
2. apresentar uma definição de número real em uma linguagem adequada ao seu nı́vel, sendo também
capaz de reconhecer diferentes representações para um mesmo número real, em particular, o aluno,
ao final do ensino básico, deve compreender, por exemplo, a igualdade 3, 999 . . . = 4, 000 . . . (que
neste texto escrevemos, de forma mais precisa, 3, 9 = 4, 0);
3. operar aritmeticamente, ordenar números reais quaisquer, bem como fazer estimativas.
É verdade que os números reais podem ser representados, por exemplo, por limites, por séries, por
frações contı́nuas (sobre frações contı́nuas, veja por exemplo [22, 91, 141]). No entanto, no contexto
do ensino básico, a representação decimal é a única representação universal apresentada, no sentido de
ser a única que dá conta de todos os números reais. Cabe ressaltar
√ que √ há números reais que têm uma
identificação própria, tais como π ,e, φ (o número de ouro), 2, 13. E eis aqui mais uma crı́tica
ao Capı́tulo “Cálculo com Radicais” constante de muitos livros didáticos: ao só tratarem de radicais,
passa-se ao aluno a ideia de que todos os irracionais podem ser representados por radicais, o que é
sabidamente falso.
Uma necessidade prática que se manifesta desde tempos remotos é a medida, algo tão importante
que se faz presente na sala de aula desde as séries iniciais. E, como instrumento consagrado para a
medida de segmentos de reta na Escola, é utilizada a régua (que aqui passamos a chamar régua escolar),
com o objetivo de tentar determinar quantas vezes a unidade cabe naquilo que se quer medir. A régua
escolar no entanto se revela insuficiente para o objetivo de se expressar a medida de qualquer segmento
de reta, e tal insuficiência pode ser aproveitada como ponto de partida para a construção dos reais:
depois de construı́dos os números reais positivos, tratamos da busca por uma representação para os
mesmos e da discussão sobre como ordenamos e operamos com números reais.
O leitor possivelmente notará que a abordagem deste Capı́tulo é um tanto diferente da dos anteriores,
pois neste apresentamos de forma mais direta uma proposta para a sala de aula, com muitas sugestões
de encaminhamentos para o professor, e muito mais conversas com o mesmo (em seções denominadas
Conversando com o Professor). Esta mudança de abordagem se justifica pelo fato de que os números
reais, além de serem o objetivo central deste livro, estão certamente entre os conceitos matemáticos
cuja abordagem no ensino básico envolve maiores dificuldades, além de serem pouco abordados nos
livros didáticos. Reforçamos ao leitor: atente para os tı́tulos das seções, pois muitas vezes estaremos
aqui apenas conversando com o professor, e não sugerindo que este leve a discussão que estamos
desenvolvendo naquele momento para dentro de sua sala de aula.
É um número da forma m, a1 a2 a3 . . ..
é inadequada e causadora de conflito futuro com relação à correta compreensão de número real. De fato,
ela se revela duvidosa e vaga para um aluno cujo universo numérico é até então os racionais, mesmo
que ele já esteja ciente da necessidade de outros números. De fato, a frase acima está a confundir
número com representação do número, como se a representação m, a1 a2 a3 . . . desse conta, de forma
1
Não estamos, com esta frase, nos posicionando quanto á introdução de limite no ensino básico, mas sim ressaltando
que, em termos de currı́culo atual e em termos de abordagem ainda no ensino fundamental, ela não é pertinente.
2
Conforme já anunciado ao final do Capı́tulo Números Inteiros, restringimo-nos a partir daquele momento, neste texto
a “positivo” com o objetivo apenas de encaminhar a discussão de forma mais direta, além de baseada na medida.
12.2. O COMPASSO, A CONSTRUÇÃO DA RÉGUA ESCOLAR E SUAS LIMITAÇÕES 209
evidente, do significado
√ √ numérico do número, isto é, explicitasse o (único!) número ali representado.
Note
√ que √ tanto 2 + 3 quanto π são √ ambos números da forma 3, 14 . . . – isto então significaria que
2 + 3 = π? Outra questão: se 2 é real, como se prova que é da forma 1, 414 . . .? Poderı́amos
aqui mencionar várias outras definições vagas como esta. De fato, algumas já foram mencionadas no
inı́cio deste Capı́tulo.
Enfatizando a linha que estamos seguindo neste texto (contagem e medida), propomos (em con-
sonância com [116]) que números reais positivos sejam tratados no ensino básico como aqueles que
expressam a medida (exata, isto é, no sentido matemático)3 de algum segmento de reta.
No entanto, a fim de bem trabalharmos nos reais, carecemos de uma representação para tais números.
Este passa a ser então o objetivo maior que segue o conceito de número real neste texto.
Ressaltamos que uma resposta afirmativa para a questão acima provavelmente viria acompanhada
de uma naturalidade e familiaridade para um aluno do ensino básico. A maior finalidade de um tal
encaminhamento não é uma construção alternativa aos cortes de Dedekind mas sim uma construção
muito mais próxima do ensino básico.
Mostraremos neste texto que, nestas ideias de medição e de representação da medida, estão não
só os rudimentos da noção de número real (positivo) e de uma sua representação como também
uma construção viável e matematicamente consistente o anel ordenado dos reais. Julgamos que tal
encaminhamento está mais próxima do ensino básico e pode iniciado desde os últimos anos do ensino
fundamental (8o. e 9o. anos). O que passamos aqui a desenvolver tem como base [116], de modo que
serão frequentemente feitas menções a ele no que diz respeito a demonstrações dos fatos aqui citados
e utilizados. Começamos então discutindo o compasso e o instrumento régua escolar.
12.2.1 O Compasso
O compasso, além de traçar cı́rculos, nos permite operacionalizar/realizar as seguintes ações:
1. Com ele podemos comparar dois segmentos de reta (digamos, AB e CD) por meio da ação de
superposição e estabelecer, entre todos os segmentos de reta, uma relação de ordem: fazendo as
pontas do compasso coincidirem com os extremos de um dos segmentos (digamos, AB), e man-
tendo esta abertura fixa, verificamos se, ao colocarmos uma das pontas do compasso sobre uma
das extremidades do segundo segmento (digamos, sobre C), a outra ponta do compasso, quando
colocada sobre a reta suporte do segundo segmento fica aquém, sobre ou além da extremidade D
deste. Quando as duas pontas do compasso coincidem com ambas as extremidades do segundo
segmento, dizemos que o primeiro e o segundo segmento são congruentes. Caso contrário, o
primeiro segmento será considerado menor ou maior do que o segundo segmento (figura 12.1).
C D C D
A
A
B
B
AB é menor que CD
Notação para AB congruente a CD, AB menor do que CD, AB maior do que CD: AB ≡ CD,
AB < CD, AB > CD (em [116], é utilizada a notação AB = CD para segmentos congruentes).
Figura 12.1: Comparação de segmentos com o compasso.
2. Com o compasso, podemos realizar a operação de justaposição (ou adição) de segmentos: sobre
a reta suporte de um dado segmento AB, podemos emendar uma cópia de um segmento CD,
isto é, com um segmento da forma BE com BE congruente a CD (figura 12.2, ver também
[116, p. 184]). Caso particular que muito vai nos interessar neste texto é emendar varias cópias
de AB, digamos, n cópias, obtendo um segmento que denotaremos por n AB (figura 12.3).
AB + CD
A B E
C D
3 AB
A B C D
Figura 12.3: Justaposição de segmentos com o compasso.
12.2. O COMPASSO, A CONSTRUÇÃO DA RÉGUA ESCOLAR E SUAS LIMITAÇÕES 211
Além de com ela podermos traçar em uma só etapa pequenos segmentos de reta, ela é graduada,
servindo também para medir tais segmentos de reta.
Medir um segmento de reta pressupõe pré-fixar em segmento (que aqui será denotado por OU ) que
servirá uma unidade de comprimento:
|OU | = 1.
Mais especificamente:
Etapa 1. Sobre um pedaço de reta (que vamos supor horizontal para facilitar a comunicação), esco-
lhemos um segmento não reduzido a um só ponto que vai servir de unidade de medida (figura 12.4).
Sugere-se que este segmento seja suficientemente grande para que ainda seja bem visı́vel sua décima
parte. Assim, denotando-o por OU estamos convencionando/estabelecendo que |OU | = 1. Em ge-
ral, as réguas escolares adotam o centı́metro como unidade de medida e utilizam a subgraduação em
milı́metros. Mas, para o que queremos aqui discutir, a unidade ser igual a 1 centı́metro não vai ser rele-
vante, mesmo porque estamos sugerindo ao professor construir uma cópia de régua escolar no quadro,
onde obviamente a unidade escolhida não terá 1 centı́metro de comprimento.
O U
|OU | = 1
Etapa 2. Com a ajuda do compasso podemos emendar varias cópias de OU . O princı́pio de medição
(v) nos garante que, se emendamos duas cópias de OU então o segmento 2 OU obtido (digamos, igual
ao segmento OB) mede
|2 OU | = |OU | + |U B|.
Mas, por construção, |U B| = |OU |, de modo que
|2 OU | = 2 × |OU | = 2 × 1 = 2.
Não é difı́cil generalizar para a justaposição sobre a reta de n cópias de OU :
|n OU | = n |OU | = n × 1 = n.
Nesta altura, é bastante conveniente introduzirmos uma notação especial para os pontos da reta
que vão sendo extremos dos segmentos obtidos pela justaposição de cópias de OU (figura 12.5):
|OU | = 1
Apesar da notação mais carregada, a grande vantagem que ela traz é o fato que todo ponto sobre
este pedaço de reta que foi nomeado P (s) tem a propriedade
|OP (s)| = s .
12.2. O COMPASSO, A CONSTRUÇÃO DA RÉGUA ESCOLAR E SUAS LIMITAÇÕES 213
Na régua escolar, os pontos deste pedaço de reta que vão sendo extremos dos segmentos obtidos pela
justaposição de cópias de OU são “etiquetados” com números. Mais precisamente, P (n) é nomeado
simplemente por n e O é nomeado zero (figura 12.6). Note que o significado da etiqueta continua
o mesmo: o segmento que começa em zero e termina em n mede n. Professor, esta questão – o
significado das etiquetas na régua escolar – é importantı́ssima de ser tratada, pois ela será a base
para a construção da ferramenta régua decimal infinita que será construı́do para, afinal, fornecer uma
representação para os números irracionais.
|OU | = 1
0 1 2 3 n n+1
Para facilitar a comunicação, vamos aqui continuar falando nos pontos P (n) para não confundir
ponto com número. Esta notação continuará sendo mantida adiante, quando considerarmos uma
generalização da régua escolar, denominada régua decimal infinita. O conjunto dos pontos da reta
denotados por P (n) é chamado rede de graduação unitária. Ao final desta etapa já é possı́vel discutir
como se utiliza a régua para medir (ou pelo menos tentar medir) um segmento.
Etapa 3. Medir um segmento de reta é expressar quantas vezes o segmento convencionado como
unitário (que aqui foi nomeado OU ou OP (1)) cabe dentro daquele segmento que se quer medir. Muitas
vezes esta atividade se resume a contar, e a régua escolar com sua graduação unitária já dá conta disto,
como ilustrado na figura 12.7, que apresenta um segmento cuja medida pode ser determinada neste
momento.
O U = P (1) P (2) P (3) P (n) P (n + 1)
A B
0 1 2 3 n n+1
Note que entre duas marcações quaisquer da régua até aqui construı́da (apenas com a graduação
unitária) existem apenas um número finito de marcações, o que a torna incapaz de medir (de maneira
exata) alguns segmentos de reta pequenos (figura 12.7).
Conclua com seus alunos que há segmentos cuja medida exata já é possı́vel expressar com a régua
até agora construı́da (só com a graduação unitária), mas sobram infinitos segmentos (mesmo pequenos)
cuja medida exata não pode ser determinada nesta etapa, isto é, com o instrumento até o momento
construı́do. Reiteramos: estamos tratando da medida no sentido ideal.
Fica assim motivada a introdução de uma nova graduação na régua escolar construı́da no quadro
pelo professor, em uma tentativa de se conseguir expressar a medida exata de qualquer segmento de
reta. De fato, na régua escolar existe uma segunda marcação de pontos, agora sem etiquetas. Estes
estão espaçados de um décimo da unidade escolhida. Uma vez dividido o segmento unitário em 10
1
partes iguais, repetimos o processo acima: abrimos o compasso numa abertura igual a do segmento
10
unitário e marcamos na régua novos pontos, sendo que agora espaçados entre eles de um décimo da
unidade de medida via justaposição. Para construı́-las, precisamos saber dividir um segmento em partes
iguais. Esta é uma das aplicações do Teorema de Tales.
Etapa 4. Subdivida o segmento OP (1) da régua escolar em 10 partes iguais (figura 12.8). Pelo
1
princı́pio de medição (v), não é difı́cil se convencer que cada uma destas subdivisões mede |OU | =
1 2 10
1 1
. Por isso é natural nomear o primeiro destes segmentos de OP .
10 10
1 2 3 4 5 6 7 8 9
! " ! " ! " ! " ! " ! " ! " ! " ! " ! 10 "
O P 10
P 10
P 10
P 10
P 10
P 10
P 10
P 10
P 10
U =P 10
Ampliando a Reflexão
5 3 s 45
12.1 Apoiado nos princı́pios de medição, prove que, para qualquer s natural, temos 5OP 10 5= s
10
.
Segmentos que podem ser medidos com a régua escolar têm suas medidas representadas por
números decimais que envolvem, no máximo, uma casa decimal.
Mesmo com esta nova graduação na régua escolar ou na régua construı́da pelo professor no quadro
negro – a de décimos da unidade, ainda existem segmentos cuja medida exata não pode ser determinada
com deste instrumento. Em outras palavras, entre duas marcações quaisquer desta régua continuam
existindo apenas um número finito de marcações, o que a torna incapaz de proprocionar a medida
(exata) de muitos segmentos de reta, como o ilustrado na figura abaixo 12.9.
1 2 3 4 5 6 7 8 9
! " ! " ! " ! " ! " ! " ! " ! " ! " ! 10 "
O P 10
P 10
P 10
P 10
P 10
P 10
P 10
P 10
P 10
U =P 10
A B
|AB| =?
O 1
1
A resposta para a questão acima é sim. Por exemplo, o segmento 100 AB não pode ser medido com
uma tal régua. Com o objetivo em mente de representar a medida de qualquer segmento de reta e tendo
desenvolvido uma discussão sobre a régua escolar, discussão esta que evidenciou a insuficiência de tal
instrumento para gerar tais representações procuradas, e motivados pela resposta acima, seguimos com a
construção de um objeto, agora ideal, mas que imita a régua escolar e trata de suprir suas deficiências,
e que chamamos régua decimal infinita. Afirmamos que, fazendo uso dela, vamos conseguir atingir
nosso objetivo, encontrando uma representação para a medida de qualquer segmento de reta. Antes de
seguirmos adiante ressaltamos ao leitor o fato de que na construção da régua escolar fazemos uso do
sistema decimal e que vamos continuar aproveitando esta ideia na régua decimal infinita, subdividindo
o segmento unitário em potências de 10.
P (0) P (1) P (2) P (3) P (4) P (5) P (6) P (7) P (8) P (9) P (10)
aumento
P (3, 0) P (3, 1) P (3, 2) P (3, 3) P (3, 4) P (3, 5) P (3, 6) P (3, 7) P (3, 8) P (3, 9) P (4, 0)
aumento
P (3, 10) P (3, 11) P (3, 12) P (3, 13) P (3, 14) P (3, 15) P (3, 16) P (3, 17) P (3, 18) P (3, 19) P (3, 20)
ad infinitum
A B
1
Figura 12.11: Segmentos que não podem ser medidos pela rede de graduação 10n
.
3 m
4
Note que cada ponto graduado P 10n
tem a propriedade:
5 - m .5 m
5 5
5OP 5 = .
10n 10n
Em particular:
3 m
4
A medida de OP 10n
é dada por uma fração decimal.
3 m
4
Assim como na régua escolar, vamos destacar na régua decimal infinita os pontos P 10n
, que são
os pontos graduados. Mais nenhum outro ponto será chamado “graduado”.
218 CAPÍTULO 12. NÚMEROS REAIS: NA ESCOLA
A fim de medirmos um segmento qualquer que já denotaremos por OQ4 , dividimos o processo de
medição via régua decimal infinita em três tipos: o método direto, .
Este método, apesar de produzir medidas exatas, tem o inconveniente de não poder ser aplicado a
qualquer segmento de reta, por dois motivos, sendo o primeiro deles o seguinte: é claro que segmentos
OQ cuja medida é um racional que não pode ser representado por uma fração decimal é tal que Q não
é um ponto graduado.
Ampliando a Reflexão
a
12.2 Dado um racional b
, como você construiria sobre a semirreta de origem O um segmento OQ
cuja medida é ab ?
12.3 Conclua de 2 que existem infinitos pontos não graduados na régua decimal infinita.
Os infinitos pontos não graduados apontados no Ampliando a Reflexão 3 não são os únicos pontos
não graduados na régua decimal infinita. De fato, uma vez fixado um segmento unitário, existem
segmentos cuja medida não pode ser expressa por um número racional.
4
Na verdade, estamos aqui rigorosamente falando de um segmento AB qualquer que é congruente a um segmento
da forma OQ. Note que a existência deste ponto Q está diretamente relacionada com a completude da reta: à reta não
faltam pontos, ou ainda, a reta “não tem buracos”. Deixamos para mais adiante enunciar com precisão esta propriedade
geométrica da reta.
12.3. A RÉGUA DECIMAL INFINITA: CONSTRUÇÃO E A REPRESENTAÇÃO DA MEDIDA DE UM SEGMENT
Teorema 12.3 Os números racionais são insuficientes para expressar a medida de qualquer segmento
de reta. Ou seja: seja qual for a unidade de medida de comprimento considerada, sempre é possı́vel
construir um segmento de reta cuja medida não pode ser expressa por um número racional.
O teorema 12.3 fica evidente a partir da proposição 12.1, cuja demonstração, que comprova geo-
metricamente a insuficiência dos racionais, afinal recai na prova de uma afirmação sobre a aritmética
dos racionais: não existe racional cujo quadrado é igual a 2. Esta, por sua vez, pode ser mostrada de
muitas maneiras, mas incluı́mos aqui a que consideramos a mais simples de todas: aquela que apenas
conta o número de fatores primos numa fatoração em primos e que chega a um absurdo confrontando
a fatoração obtida com a unicidade estabelecida no Teorema Fundamental da Aritmética.
d
1
1
Figura 12.12: O lado e a diagonal do quadrado.
c2
b2 b c
a
a2
Proposição 12.1 A medida da diagonal de um quadrado de lado unitário não é um número racional.
Ou seja: a diagonal de um quadrado é sempre incomensurável com o lado do mesmo.
Demonstração:
O Teorema de Pitágoras nos diz que a área do quadrado formado com a hipotenusa de um triângulo
retângulo é igual à soma das áreas dos quadrados formados com os catetos de tal triângulo.
220 CAPÍTULO 12. NÚMEROS REAIS: NA ESCOLA
Então, partindo do triângulo retângulo igual à metade do quadrado cujo lado tem medida 1, por exemplo, e
diagonal que vamos denotar por d, terı́amos que, se a medida |d| de d fosse racional, então a área do quadrado
de lado d (que vamos denotar por m Qd ) deveria ser igual a:
Afirmamos que isto é um absurdo, pois não existe racional cujo quadrado é 2. De fato, se existisse um
racional ab cujo quadrado é 2 (com a, b ∈ N e b &= 0), então poderı́amos escrever:
- a .2 a2
2= = ,
b b2
o que é o mesmo que afirmar que
a2 = 2b2 .
Ora, é claro que b não pode ser igual a 1 porque não existe natural cujo quadrado é 2 (veja , o mesmo
ocorrendo para o natural a. Assim, tanto a quanto b admitem fatoração em primos, e podemos então escrever:
Independente de quais são os primos envolvidos nas fatorações acima e de quantas vezes eles se repetem,
sabemos que as fatorações em primos de a2 e de b2 vão envolver um número par de fatores (pois fatoração
em primos de a2 =(fatoração em primos de a)2 ). Mas então, pela unicidade da fatoração em primos garantida
garantida pelo Teorema Fundamental da Aritmética, temos um absurdo gerado pelo número de fatores primos
envolvidos em cada lado da igualdade acima.
O que concluı́mos com a proposição 12.1? Na seção anterior afirmamos que, apesar de na ré-
gua decimal infinita estarmos considerando todas as redes de graduação da forma 101n , ainda sobram
muitos pontos desta régua que não são pontos graduados, por dois motivos. Lá apresentamos apenas o
primeiro deles: existem segmentos cuja medida é racional mas este racional não pode ser expresso por
uma fração decimal. Agora, com a proposição 12.1, temos o segundo motivo, estabelecido pelo 12.1.
Corolário 12.1 Existem também pontos Q na régua decimal infinita que não são graduados porque a
media |OQ| nem racional é.
12.3. A RÉGUA DECIMAL INFINITA: CONSTRUÇÃO E A REPRESENTAÇÃO DA MEDIDA DE UM SEGMENT
Ampliando a Reflexão
12.4 Mostre que existe uma infinidade de pontos Q à direita de O na régua decimal infinita tais que
OQ não tem medida racional.
Ficam assim motivadas não só a ampliação do universo numérico de um aluno como também a
definição de número real positivo, como sendo um número que expressa a medida de algum segmento
de reta. Dentre estes existem números que não são racionais positivos, que são por isso chamados
irracionais (positivos).
O método de aproximação da medida via régua decimal infinita: Quando um ponto Q à direita
de O na régua decimal infinita não é um ponto graduado, então, fazendo uso de uma fixada rede de
graduação, conseguimos apenas explicitar uma aproximação da medida do segmento OQ, mas com a
vantagem de ser possı́vel controlar o erro de tal aproximação.
De fato, ao escolhermos, por exemplo, a rede de graduação 101n para expressar uma aproximação
para a medida |OQ|, poderemos determinar dois pontos graduados consecutivos desta rede que servem
de extremos de um segmento que contém o ponto Q, digamos:
- m . 1m + 12
Q∈P P .
10n 10n
222 CAPÍTULO 12. NÚMEROS REAIS: NA ESCOLA
A partir daı́, é possı́vel determinar uma medida aproximada para o segmento OQ, tanto por falta
1
quanto por excesso,
3 m 4 e 3com um
4 erro menor ou igual a 10n . De fato, como Q pertence ao segmento de
m+1
extremos P 10n e P 10n , e como
5 1 25 5 1 25
5 5 5 5
5OP m + 1 5 = |OQ| + 5QP m + 1 5 ,
5 10n 5 5 10n 5
podemos dizer que
5 1 25
5 m + 1 5 m+1
|OQ| ∼ = 55OP 5= (aproximação por excesso);
10n 5 10n
analogamente, como
5 - m .5 5 - m . 5
5 5 5 5
|OQ| = 5OP n
5 + 5P n
Q5 ,
10 10
podemos dizer que
5 - m .5 m
∼ 5 5
|OQ| = 5OP n
5 = n (aproximação por falta),
10 10
Em qualquer uma destas aproximações, podemos estimar o valor do erro cometido: este é menor
ou igual a 101n , conforme ilustrado na figura 12.14.
tamanho do erro
(por falta)
cometido
! m " # $
O m+1 Q
P P
10n 10n
% ! " # $%
%P m P m + 1 % = 1
% %
% 10n 10n % 10n
1
Figura 12.14: O erro na rede de graduação 10n
.
Em outras palavras:
5 - m .5 5 1 25
m 5 5 5 m + 1 55 m + 1
= 5OP 5
5 ! |OQ| ≤ 5OP = ,
10n 10n 10n 5 10n
Isto nos permite estimar a medida |OQ| controlando o erro cometido:
* uma aproximação por falta da medida de OQ é
m 1
|OQ| ∼
= , com erro ! .
10n 10n
* uma aproximação por excesso da medida de OQ é
m+1 1
|OQ| ∼
= n
, com erro ! n .
10 10
Este método, apesar de poder ser aplicado a qualquer segmento de reta, tem o inconveniente de
não produzir, em geral, medidas exatas. No entanto, conforme já anunciado, é ele que vai embasar o
método seguinte.
12.3. A RÉGUA DECIMAL INFINITA: CONSTRUÇÃO E A REPRESENTAÇÃO DA MEDIDA DE UM SEGMENT
O método iterativo de medição via régua decimal infinita: faz uso iteradas vezes (mais precisa-
mente, infinitas vezes) do método aproximado, baseado na seguinte idéia. Quanto mais fina considerar-
mos a rede de graduação (isto é quanto maior o valor de n considerado na rede 101n ), menor será o erro
cometido nas aproximações por falta e por excesso. Assim, ao considerarmos todas as redes de gra-
duação e todas as aproximações por falta, estaremos gerando uma lista infinita que expressa/representa
a medida – agora exata – do segmento OQ , mesmo no caso em que, Q coincide com algum ponto
graduado. Ilustramos com a figura 12.15 um exemplo.
P (0) P (1) P (2) P (3) P (4) P (5) P (6) P (7) P (8) P (9) P (10)
P (3, 0) P (3, 1) P (3, 2) P (3, 3) P (3, 4) P (3, 5) P (3, 6) P (3, 7) P (3, 8) P (3, 9) P (4, 0)
P (3, 10) P (3, 11) P (3, 12) P (3, 13) P (3, 14) P (3, 15) P (3, 16) P (3, 17) P (3, 18) P (3, 19) P (3, 20)
|OQ| ∼
= 2, com erro ! 1,
Q ∈ P (2, 5)P (2, 6) ⇒ OP (2, 5) ⊆ OQ ⊆ OP (2, 6) ⇒ 2, 5 = |OP (2, 5)| ≤ |OQ| ≤ |OP (2, 6)| = 2, 6 .
Assim,
1
|OQ| ∼
= 2, 5 com erro ! ,
10
ou ainda,
|OQ| = 2, a1 . . .
com a1 = 5 ou 6, em que as reticências nos indicam que nada sabemos sobre as demais casas decimais
no momento.
224 CAPÍTULO 12. NÚMEROS REAIS: NA ESCOLA
1
|OQ| ∼
= 2, 51, com erro ! ,
100
m ≤ |AB| ! m + 1 ;
m, a1 ! |AB| ! m, a1 + 101
;
m, a1 a2 ≤ |AB| ! m, a1 a2 + 1
100
;
1
m, a1 a2 ...an ! |AB| ! m, a1 a2 . . . an + .
10n
3 ! π ! 4;
31 1 31 32
= 3, 1 ! π ! 3, 1 + = 3, 2, ou ainda, !π! ;
10 10 10 10
314 1 314 315
= 3, 14 ! π ! 3, 14 + = 3, 15, ou ainda, !π! ;
100 100 100 100
etc.
Note que:
* As listas utilizadas à esquerda de cada uma das desigualdades acima são truncamentos da lista que
representa |AB| e diferem desta por já terem um significado numérico conhecido. De fato, tais
truncamentos são números racionais que, quando representados na forma de fração, correspondem
a frações decimais.
* À medida que avançamos nas redes de graduação, a informação numérica dada sobre |AB| envolve
cada vez maior precisão. Por exemplo, para π temos o processo ilustrado na figura 12.16.
3 3.1 3.2 4
3.14 3.15
É neste momento que entra de forma contundente a completude da reta. Para provar que dois
segmentos OQ e OR distintos (isto é, com Q &= R) têm listas distintas representando |OQ| e |OR|
precisamos enunciar com rigor a propriedade que à reta não faltam pontos, ou ainda, a reta “não tem
buracos”. Este é um dos Princı́pios da Geometria, e para enunciá-los precisamos de duas definições, a
seguir.
Precisamos agora destacar, entre as sequências encaixantes, aquelas cujos segmentos têm compri-
mentos tendendo a zero. No entanto, ainda não podemos afirmar que sabemos calcular o comprimento
de qualquer segmento (por exemplo, se os extremos de um segmento for formado por pontos Qn não
graduados e ainda tais que |OQn | não é racional, para calcular o comprimento de Pn Qn terı́amos
que saber operar com irracionais). A definição a seguir dá conta desta ideia exclusivamente com a
geometria.
A figura 12.17 ilustra as ideias de sequências encaixantes, uma evanescente e outra não.
Estamos agora em condições de caracterizar a continuidade da reta, por meio do axioma a seguir.
Deixamos ao leitor o exercı́cio de se convencer que neste enunciado encontra-se a propriedade de que
à reta não faltam pontos, ou de que a reta é contı́nua (para maiores detalhes sobre o Postulado do
Contı́nuo, veja [116, seção 5.4]).
P1 Q1 P1 Q1
P2 Q2 P2 Q2
P3 Q3 P3 Q3
P4 Q4 P4 Q4
P5 Q5 P5 Q5
P
Figura 12.17: Sequências encaixantes.
Provemos agora que se dois segmentos da forma OQ e OR têm uma mesma lista representando os
números |OQ| e |OR| então P = Q. Suponhamos então
Por construção, dizer que a lista m, a1 a2 a3 . . . representa a medida destes segmentos significa, em
particular, que:
m ! |OQ|, |OR| ! m + 1;
m, a1 ! |OQ|, |OR| ! m, a1 + 101
;
m, a1 a2 ! |OQ|, |OR| ! m, a1 a2 + 1
100
;
3 1
4
Q e R pertencem ao segmento de extremos P (m, a1 a2 . . . an ) e P m, a1 a2 . . . an + 10n
.
Ora, os segmentos mencionados acima formam uma sequência encaixante e evanescente Se fato, os
comprimentos dos segmentos – aqui todos números racionais – são iguais a 101n que, à medida que n
cresce, tendem a zero. Mas então temos Q e R pertencentes a todos os segmentos de uma sequência
encaixante e evanescente, o que, pelo Postulado do Contı́nuo, nos garante que P = Q.
Tratemos agora da Questão 2 proposta na nota Conversando com professor 3. Será que qualquer
lista do tipo m, a1 a2 a3 . . . (com m ∈ N e an dı́gito, para todo n) expressa/representa a medida
exata de algum segmento? Esta questão também faz uso do Postulado do Contı́nuo: a partir da lista
m, a1 a2 a3 . . ., consideramos a sequência de segmentos de extremos:
12.3. A RÉGUA DECIMAL INFINITA: CONSTRUÇÃO E A REPRESENTAÇÃO DA MEDIDA DE UM SEGMENT
P (m) e P (m + 3 1); 4
1
P (m, a1 ) e P m, 3 a 1 + 10
; 4
1
P (m, a1 a2 ) e P m, a1 a2 + 100 ;
Não é difı́cil convencer-se que tal sequência é formada por segmentos encaixantes e evanescentes.
Portanto, pelo Postulado do Contı́nuo, existe apenas um ponto pertencente a todos estes segmentos.
Se Q denota tal ponto, então:
|OQ| = m, a1 a2 a3 . . .
Assim, a resposta à Questão 2 é sim.
Visualizemos o processo acima através de um exemplo (que, até o Capı́tulo anterior, era um dos casos
delicados). Vejamos qual segmento tem a medida representada pela lista 2, 39999 . . . (que continua
com todos os algarismos iguais a 9). Se |OQ| = 2, 3a2 a3 . . . com todos os ai iguais a 9 então o ponto
Q fica univocamente determinado pela seguinte sequência de segmentos mostrada na figura 12.18.
P (2) P (3)
P (2, 3) P (3, 4)
Não é difı́cil, a partir da figura 12.18, reconhecer que o processo e o Postulado do Contı́nuo vai nos
levar à conclusão
Q = P (2, 4) .
Mas então (usamos a seguir a notação de barra para indicar que a lista é periódica de perı́odo 9,
também a chamamos 9-terminante):
Em resumo, existem sim segmentos cuja medida pode ser expressa por listas distintas. Ou ainda,
falando de números, o que acabamos de concluir foi:
2, 39 = 2, 4 .
O mesmo argumento serve para mostrar que todas as listas 9-terminantes representam a
medida de um segmento que tem para extremos pontos graduados da régua decimal infini-
ta.
228 CAPÍTULO 12. NÚMEROS REAIS: NA ESCOLA
Agora sim qualquer lista do tipo m, a1 a2 a3 . . . pode ser identificada como representante de
um número real positivo. No entanto, existem listas distintas representando a medida de
um mesmo segmento, e que portanto representam o mesmo número. Isto ocorre com qualquer
segmento OP com P um ponto graduado diferente de O – e só com ele: neste caso, |OP | pode ser
representado por uma lista 9-terminante ou por uma lista 0-terminante.
Com isto, em particular, estamos comprovando que
0, 999 . . . = 1, 000 . . . = 1
Cabe salientar que toda lista não 9-terminante obtida pelo processo de medição via régua decimal
infinita nada mais é do que a expansão decimal do real absoluto que ela representa, no sentido em
que, se |OP | = m, a1 a2 a3 . . . (com m ∈ N e an dı́gito, para todo n) não é 9-terminante, então o
processo de geração desta lista contemplou precisamente o raciocı́nio de determinar quantas unidades
cabem em |OP |, quantas décimas partes da unidade cabem na parte restante (isto é, no segmento
P (m)P ), quantas centésimas partes da unidade cabem na parte restante |P (m, a1 )P |, etc. Em outras
palavras: a nomenclatura “expansão decimal de |OQ|” dada à lista que representa |OQ| está em
completa sintonia com a já apresentada no Capı́tulo sobre Números Racionais, desde que esta (a lista)
não seja 9-terminante.
Chamamos também a atenção do leitor para o fato de que a representação afinal obtida para os
números reais tem suas limitações, como envolver infinitos algarismos, mas afinal uma tal limitação já
foi aceita quando tratamos da representação decimal de muitos racionais. Encerramos esta parte com
algumas questões que confirmam este aspecto.
Deixamos ao leitor o convite a refletir sobre a proposta apresentada acima. Por exemplo:
Muitos textos didáticos costumam de fato introduzir números reais desta forma, mas, principalmente
no ensino fundamental, encontram dificuldade em argumentar sobre a igualdade
0, 9 = 1, 0 ,
Outros autores apelam para as listas formais, mas a dificuldade em mostrar igualdade entre as
diferentes listas é, naturalmente, maior ainda.
* Número real positivo é todo número que expressa a medida de algum segmento de reta. Ele
pode ser representado por uma lista do tipo m, a1 a2 a3 . . . (chamada expansão decimal de x), no
sentido em que x é uma quantidade tal que
m ! x ! m + 1;
m, a1 ! x ! m, a1 + 101
;
m, a1 a2 ! x ! m, a1 a2 + 1
100
;
1
m, a1 a2 ...an ! x ! m, a1 a2 . . . an + .
10n
Em particular, à medida que avançamos nos truncamentos da expansão decimal de x, temos uma
melhor noção da quantidade x, pois a partir da afirmação m, a1 a2 ...an ! x ! m, a1 a2 ...an + 101n
podemos deduzir que
1
x 8 m, a1 a2 ...an , com erro ! .
10n
* A definição acima nos permite explicitar a ordem no conjunto dos reais positivos (ordem esta que
amplia a ordem dos racionais). Esta ordem nos permite definir intervalo fechado da forma usual:
[a, b] = {x ∈ R | a ! x ! b} .
x = m, a1 a2 . . . e y = l, b1 b2 . . . ,
o fato de termos x &= y nos garante que existe n suficientemente grande tal que uma
das seguintes desigualdades envolvendo os truncamentos (números racionais!) de x e
y ocorre:
230 CAPÍTULO 12. NÚMEROS REAIS: NA ESCOLA
1 1
m, a1 a2 ...an + < l, b1 b2 ...bn ou l, b1 b2 ...bn + < m, a1 a2 ...an .
10n 10n
Assim, como
1 1
m, a1 a2 ...an ! x ! m, a1 a2 ...an + e l, b1 b2 ...bn ! y ! l, b1 b2 ...bn + ,
10n 10n
concluı́mos:
* Se m, a1 a2 ...an + 101n < l, b1 b2 ...bn então x < y;
* Se l, b1 b2 ...bn + 101n < m, a1 a2 ...an então y < x.
Maiores detalhes podem ser obtidos em [116, seção 7.4].
* Com a definição de número real e com a escolha de um segmento de reta como tendo medida
1, estabelece-se uma correspondência biunı́voca entre os pontos de uma semirreta de origem O
e os números reais positivos5 .
* A completude/continuidade da reta, sem fazer uso da noção de medida, se traduz pelo chamado
Postulado do Contı́nuo (Axioma 12.1).
Queremos agora operar com números reais, sem que para isto precisemos nos reportar à reta e às
suas propriedades. Para esta independência precisamos de mais algumas observações:
São a completude dos reais e a compatibilidade da ordem com as operações em Q que nos permitirão
definir as operações com reais, bem como encontrar a representação decimal para os resultados das
mesmas, com a precisão que quisermos.
5
E, com a definição de número real negativo, que não tratamos nesta Oficina, chega-se à correspondência biunı́voca
entre os pontos da reta e o conjunto R, que é o conteúdo do Teorema Fundamental da Geometria Analı́tica (para maiores
detalhes veja [116, cap. 7]).
12.4. OPERAÇÕES COM REAIS POSITIVOS 231
x = m, a1 a2 . . . e y = l, b1 b2 . . .,
1 1
m, a1 a2 . . . an ! x ! m, a1 a2 . . . an + e l, b1 b2 . . . bn ! y ! l, b1 b2 . . . bn + .
10n 10n
Ou ainda, chamando xn e yn os racionais obtidos pelos truncamentos de x e de y, respectivamente,
na n-ésima casa decimal, temos
1 1
xn ! x ! xn + e yn ! y ! yn + .
10n 10n
Observamos que se x e y são racionais, então, pela compatibilidade da ordem com as operações em
Q temos que, para cada natural n,
2
xn + yn ! x + y ! xn + yn + . (12.1)
10n
6 Ou seja, se x e y 2são7 racionais, então a soma x + y pertence a todos os intervalos da forma
7 independente de serem x e y racionais ou irracionais,
xn + yn , x6n + yn + 10n . Por sua vez,
2 6
os
intervalos xn + yn , xn + yn + 10n formam uma sequência encaixante e evanescente . Pelo
Teorema dos Intervalos Encaixantes, existe um único número real pertencente a todos estes
intervalos. Concluı́mos assim, que 6 se x e y são racionais, 7então a soma x + y é o único número real
2
pertencente a todos os intervalos xn + yn , xn + yn + 10n .
Se pensarmos em termos de quantidades, é claro que as desigualdades (12.1) deveriam ser satisfeitas
também no caso em que x e y não são necessariamente racionais. A propriedade salientada acima
em negrito nos permite definir a soma6 dos reais positivos como 7 sendo o único número real
2
pertencente a todos os intervalos xn + yn , xn + yn + 10n (para maiores detalhes, ver [116,
seção 7.6]).
As desigualdades (12.1) não só são suficientes para determinar univocamente a soma de x com y,
como também são suficientes para encontrar a representação decimal de x + y.
√ √
Exemplo 12.1 Qual
√ é o primeiro algarismo
√ da expansão decimal de 2+ 3?
Sabendo que 2 = 1, 414 . . . e que 3 = 1, 732 . . . , obtemos
√ √
1, 4 ! 2 ! 1, 5 1, 7 ! 3 ! 1, 8
o que nos permite afirmar que
√ √
3, 1 = 1, 4 + 1, 7 ! 2 + 3 ! 1, 5 + 1, 8 = 3, 3 .
√ √
assim, a parte inteira de 2 + 3 é certamente 3, mas ainda não temos exatidão na primeira casa √
decimal. Temos chances de obter tal exatidão recorrendo a melhores aproximações racionais para 2
6
Aqui, como se trata de intervalos de extremos racionais, a evanescência pode ser comprovada simplesmente via
comprimento dos intervalos, pois já sabemos subtrair
6 números racionais: se
7 a, b são racionais então o comprimento de
[a, b] é igual a b − a. No caso, o comprimento de xn + yn , xn + yn + 102n é 102n , que claramente tende a zero quando
n cresce a infinito
232 CAPÍTULO 12. NÚMEROS REAIS: NA ESCOLA
√
e 3 (por exemplo, recorrendo aos truncamentos na segunda ou terceira casa decimal). De fato, neste
caso temos êxito. Como
√ √
1, 41 ! 2 ! 1, 42 1, 73 ! 3 ! 1, 74
podemos afirmar que
√ √
3, 14 = 1, 41 + 1, 73 ! 3 ! 1, 42 + 1, 74 = 3, 16 ,
2+
√ √ √ √
ou seja: 2+ 3 ∈ [3, 14; 3, 16], o que nos permite concluir que 2 + 3 = 3, 1 . . ..
b + x = a;
x × b = a.
Por razões semelhantes às apontadas acima para a subtração e para a divisão, a raiz de um número
real pode ser determinada por meio da operação inversa, a potenciação, que, por sua vez, nada mais
é do que uma multiplicação. Escolhemos esta última operação para para exemplificar, respondendo a
questão acima. √
Por definição,
√ 2 é um√número real positivo cujo quadrado é 2. Para determinar a expansão
decimal de 2, escrevemos 2 = m, a1 a2 . . . e passamos a descobrir, um a um, o valor de m e dos
algarismos
√ com a exatidão que quisermos. Aqui, escolhemos uma casa decimal de exatidão. Dizer que
2 = m, a1 a2 . . . implica
√
m! 2 ! m + 1,
√
de modo que, fazendo uso da definição de multiplicação de reais positivos e da definição de 2,
234 CAPÍTULO 12. NÚMEROS REAIS: NA ESCOLA
√
m2 ! ( 2)2 ! (m + 1)2 .
Portanto, o natural m deve ser tal que seu quadrado é no máximo 2 e o quadrado do seu sucessor
deve ser no mı́nimo 2, o que determina univocamente o seu valor:
m=1
ou seja,
√
2 = 1, a1 a2 . . . .
√ Passamos agora, de modo análogo, a determinar o valor da algarismo das unidades. Dizer que
2 = 1, a1 a2 . . . implica
√ 1
1, a1 ! 2 ≤ 1, a1 + ,
10
√
de modo que, fazendo uso da definição de multiplicação de reais positivos e da definição de 2,
1 22
√ 2 1
(1, a1 ) ! ( 2) ! 1, a1 +
2
,
10
o que também nos permite determinar o único valor de a1 satisfazendo estas desiguladades:
a1 = 4 ,
√
o que nos permite concluir que 2 = 1, 4 . . .. √
Em [116, p. 236] pode ser encontrada uma maneira de determinar a expansão decimal de 2 (mais
precisamente, da medida da diagonal do quadrado de lado unitário), exclusivamente com argumentos
geométricos (isto é, antes de se abordar operações com reais).
12.4.4 A Exponenciação
Apesar de exponenciação não ser necessária para a construção do corpo ordenado e completo dos reais,
optamos por fazer uma breve incursão no assunto, tendo em vista ser conteúdo (dissimulado) do ensino
médio.
A motivação para nossa incursão sobre a exponenciação não consegue evitar a menção a funções
reais de variável real, pelo seguinte fato: é muito comum que os livros didáticos de ensino médio iniciem
o estudo de função exponencial relembrando potências de expoentes naturais, inteiros e racionais, e daı́
dão um salto para a definição da função exponencial de domı́nio todos os reais. Por exemplo, retiramos
de um livro didático a seguinte definição para a função exponencial de base a:
As propriedades de potências de mesma base, quando são discutidas, envolvem apenas expoentes
naturais e raramente são demonstradas. Além disso, nada é mencionado sobre a exigência “b > 0,
b &= 1”. De maneira completamente análoga ao que fizemos até agora para bem definir o resultado de
uma operação, podemos definir ax com x irracional (positivo), mas para isto é necessário que o aluno
tenha boa compreensão do significado de ar com r racional. Em particular, deve ser salientado que se
r1 , r2 são racionais positivos tais que
r1 ! r2
então
b r1 ! b r2 (12.3)
se b > 1 e
b r1 " b r2 (12.4)
se 0 < b < 1 .
No que segue vamos supor b > 1, sendo o raciocı́nio para 0 < b < 1 análogo (e que deixamos ao
leitor).
Se x = m, a1 a2 . . . então, para cada natural n,
1
m, a1 a2 . . . an ! x ! m, a1 a2 . . . an +
,
10n
ou ainda, denotando por xn os racionais obtidos pelos truncamentos de x na n-ésima casa decimal,
temos
1
xn ! x ! xn + .
10n
Daı́ observamos que, se x for racional, então, pela propriedade (12.4), temos que, para cada natural
n,
1
bm,a1 a2 ...an ! bx ! bm,a1 a2 ...an + 10n .
1
Ou seja, se x é racional, então bx pertence a todos os intervalos da forma [bm,a1 a2 ...an , bm,a1 a2 ...an + 10n ].
Por sua vez, independente de ser x racional ou irracional, os intervalos
: 1
;
bm,a1 a2 ...an ; bm,a1 a2 ...an + 10n
formam uma sequência encaixante e evanescente. Pelo Teorema dos Intervalos Encaixantes,
existe um único número real pertencente a todos estes intervalos.6 Concluı́mos assim, que se x7é
racional, então bx é o único número real pertencente a todos os intervalos bm,a1 a2 ...an ; bm,a1 a2 ...an + 101n .
Como nos casos anteriores, a propriedade salientada acima em negrito nos permite definir número
real bx mesmo
: para x irracional como ; sendo o único número real pertencente a todos os
m,a1 a2 ...an m,a1 a2 ...an + 101n
intervalos b ;b .
Assim, respondendo
6 x x a pergunta 7 O que é 2π ?, temos: 2π é o único número real pertencente a todo
sos intervalos 2 n ; 2 n + 101n , onde xn denota o truncamento da expansão decimal de π na n-ésima
casa decimal. Então, por exemplo, como π = 3, 14159 . . ., temos
6 7
2π ∈ 23 ; 24 = [8; 16] ,
236 CAPÍTULO 12. NÚMEROS REAIS: NA ESCOLA
π
6 3,1 3,2 7 : 10√ √ ; : 10
10
√ √
5
;
2 ∈ 2 ;2 = 31
2 ; 2 32 = 31
2 ; 2 16 ,
que requer, no entanto, maior trabalho de cálculo, mas cuja teoria já foi abordada na seção anterior.
Encerramos esta parte com a seguinte colocação.
Ampliando a Reflexão
12.5 Nossa Escola está organizando o evento “Feira das Nações”, e nossa turma ficou encarregada de
construir a bandeira do paı́s Alfa, que consiste de um retângulo vermelho de dimensões 2m × 3m
com uma diagonal amarela. Para tal diagonal, a professora precisa comprar fita amarela de 10cm
de largura, mas como o dinheiro arrecadado está escasso, ela diz: “Obviamente não quero que
falte fita para a diagonal, mas também não quero que sobrem 10cm de fita, nem obviamente
mais do que isto.”
Considerando esta exigência ao pé da letra, pergunta-se: que metragem de fita ela deve comprar?
√ -√ √ .√ 2
2 2
α = 2 = 2.
número racional.
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