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IBGE: flexibilização e precarização nos serviços públicos
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IBGE: flexibilização e precarização nos serviços públicos

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A flexibilização das relações de trabalho constrói um ambiente desfavorável aos trabalhadores e à resistência coletiva. No mercado de trabalho brasileiro, historicamente flexível, desorganizado, desigual e heterogêneo, a precarização não atingiu só o setor privado. Entre 1990-2002, a contrarreforma do Estado impôs maior flexibilidade e uma lógica privada no serviço público. Desde 2003, vê-se contradições: nova onda de ingressos de servidores e alguma recomposição salarial, enquanto seguiu-se com a retirada de direitos e o modelo gerencialista, intensificando a flexibilização nas formas de contratação no serviço público federal.

O livro aborda o caso do IBGE, órgão que apresenta redução dramática de pessoal efetivo e sua substituição com base na Lei nº 8.745/1993, que prevê a contratação temporária de excepcional interesse público. Os contratados representam metade do quadro efetivo do IBGE, estão em diversas etapas do processo de trabalho, em todas as pesquisas, e não somente nas temporárias; desempenham tarefas de caráter contínuo e não sazonal, descaracterizando a ideia de excepcionalidade. O estudo revela mudanças nas relações de trabalho na instituição, com a implementação de maiores controles, intensificação do uso do trabalho e flexibilização das tarefas sob responsabilidade dos trabalhadores, além da repressão e retaliação a movimentos e expressões coletivas. Discorre, ainda, sobre as possíveis consequência da precarização sobre os trabalhadores e os serviços públicos.
LanguagePortuguês
Release dateDec 13, 2023
ISBN9786525297828
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    IBGE - Ana Carla Magni

    1. Flexibilidade, instabilidade, insegurança: As transformações das últimas décadas na produção, na organização do trabalho e nas relações de trabalho

    Muito já se produziu acerca das mudanças operadas no capitalismo nas últimas décadas, com suas repercussões sobre a organização do trabalho, as relações de trabalho e a proteção social. Ao tratar-se de mudanças intensas, multifacetadas e ainda em fase de implementação, a cada novo momento surge um novo ângulo que passa a ser considerado na análise, ajudando a compreender o complexo processo no qual o mundo do trabalho está inserido.

    A etapa atual do desenvolvimento capitalista teve seu impulso inicial na forma como os Estados Unidos reagiram à sua perda de hegemonia na década de setenta (BELUZZO, 2004), que proporcionou um amplo processo de globalização assentado na liberalização e desregulamentação dos fluxos financeiros⁵. O capital passou a contestar a rigidez assumida sob o modelo fordista, impondo uma lógica mais flexível aos processos de trabalho, aos mercados de trabalho, aos produtos, aos padrões de consumo (HARVEY, 1996). Na nova ordem, as políticas de estímulo a emprego e renda que sustentavam o dinamismo da parte mais desenvolvida do globo cederam lugar às políticas restritivas, cuja meta principal seria o controle da inflação. Com o incremento das taxas de juros, surgiu um capitalismo menos dinâmico e mais instável, no qual a lógica da acumulação financeira (ou o capital proveniente da partilha do lucro das empresas que se valoriza sob a forma de aplicação financeira) acaba por dominar a lógica produtiva e comandar suas formas e ritmos de acumulação (CHESNAIS, 2002, p. 2).

    A exacerbação da concorrência mundial e a mobilidade desregulada dos capitais favorecem a submissão da gestão das empresas a uma lógica financeira. A Bolsa vira a obsessão número um, como lembra GAULEJAC (2007, p. 40). A postura empresarial da primazia do ganho de curto prazo especulativo, na esfera das finanças, tende a reduzir ainda mais o emprego e a precarizar as relações de trabalho (CHESNAIS, 1995 e BELLUZZO, 2013). Afinal, as empresas, estimuladas por seu desejo de acumulação de riqueza abstrata, redimensionam o que é produzido, onde produzir e a forma de produzir em busca de flexibilidade e compressão de custos, redefinindo então suas estratégias de concorrência e organizaçãoassentadas não somente no aumento da eficiência e da produtividade, mas, também, na deterioração das condições de contratação, uso e remuneração do trabalho (SANTOS e BIAVASCHI, 2014, p. 20). Essa dinâmica contribui para uma maior debilidade dos trabalhadores, de suas organizações e das normas do trabalho, dificultando ainda a aplicação de políticas sociais por parte do Estado. Tanto a adoção de novas tecnologias e de novas formas de produzir, como as mudanças no sentido de intensificar o uso do trabalho e flexibilizar os vínculos de emprego, permitiram ter áreas inteiras do planeta caracterizadas por baixos salários e pouca proteção social, pressionando as demais regiões a adotarem padrões semelhantes, visando maior competitividade.

    Necessário destacar que é a nova estrutura de valorização do capital, intrinsecamente instável, com maior insegurança das expectativas e associada a maior risco, e não as inovações tecnológicas (que mudam, mas não condicionam), o que instaura a adoção, pelos capitalistas, de um processo de acumulação mais flexível. Flexibilidade no que se refere às condições sociais de produção, aos dispositivos organizacionais e gerenciais com os quais se submete a classe trabalhadora. As inovações tecnológicas são aproveitadas pelo capital para dissolver obstáculos anteriormente colocados pelo trabalho organizado, impondo novas formas de controle e gestão e dispensando algum trabalho vivo em certas etapas da produção, ampliando, assim, as inseguranças.

    1.1. A imposição de uma lógica mais flexível e instável: e os trabalhadores, como ficam?

    Até meados dos anos 70, os países avançados vivenciaram o que ficou conhecido como anos gloriosos ou idade de ouro do capitalismo. Essa fase de crescimento estável, que durou cerca de três décadas, teve como bases fundamentais um sistema internacional sob hegemonia norte-americana e o estabelecimento de um padrão concorrencial relativamente mais regulado.

    O avanço da regulação pública - com o Estado interferindo sobre as condições de produção e de consumo, proporcionando maior oferta de crédito, regulamentando atividades econômicas ou intervindo diretamente na produção, bem como ampliando a proteção social e os direitos – construiu um ambiente favorável ao crescimento relativamente sustentado da economia, ao dinamismo do emprego e ao consumo de massas. Os ganhos de produtividade, ocrescimento do emprego e do salário real, a generalização do crédito para consumo, a ampliação dos direitos trabalhistas e sociais, constituíam elementos que expressavam uma nova relação salarial (MATTOSO, 1995), para a qual foi fundamental um processo de reconhecimento do estatuto social do trabalhador, das representações sindicais e de seu poder de negociar e interferir sobre as condições de trabalho e remuneração. Através da contratação coletiva, agente essencial da regulação no pós-guerra, instituíram-se mecanismos de redução das disparidades, contribuindo para um certo processo de homogeneização da classe trabalhadora, o que, no campo da produção, já era característico do chamado fordismo (COMIN, 1994).

    O salário deixava de ser visto meramente como um custo a ser comprimido e passava a ser reconhecido como parte essencial do incremento à demanda na economia. À medida que se desenvolviam sociedades de consumo de massas, os assalariados eram integrados à ordem capitalista, não somente como produtores, mas também como consumidores, o que em certo grau funcionava como uma espécie de colchão amortecedor e contribuía para construir um clima de relativa tranquilidade social e alguma colaboração entre empresas, representações sindicais e governos.

    A redução da insegurança dos trabalhadores, construindo maior estabilidade através de mecanismos como os maiores custos para a demissão e o seguro-desemprego; o controle do processo de formação dos salários, inibindo a redução dos salários nominais e assim mantendo a capacidade de consumo dos trabalhadores; o aumento dos gastos sociais; foram fatores que contribuíram para viabilizar um regime de acumulação baseado na produção e no consumo de massas, que proporcionou ao mesmo tempo maior organicidade coletiva aos trabalhadores. CASTEL (1998) aponta que boa parte das conquistas desses tempos deu-se por fora da esfera produtiva, referindo-se aos serviços públicos e à propriedade social. A construção de uma nova relação salarial, com acesso a mais direitos, permitiu aos trabalhadores a adoção de um novo modo de vida, institucionalizando a condição operária com uma participação social mais ampliada (através de condições diferenciadas de consumo, instrução, habitação, lazer, etc).

    Sob o ponto de vista das relações de trabalho e da luta de classes, não se pode avaliar que o histórico do pós-guerra nos países avançados do capitalismo revela um processo uniforme, sem contradições. O que é possível dizer é que se tratou de um período relativamente mais favorável à organização e resistência coletiva. Ao mesmo tempo em que esse regime de acumulação implicou intensa exploração (verificada nos elevados ganhos de produtividade doperíodo), também proporcionou maior segurança aos trabalhadores através da contratação coletiva, o que reforçou suas estruturas de organização. Se, por um lado, a racionalização científica da organização do processo de trabalho instituiu em maior grau o operário desqualificado, substituível, fragmentado, verifica-se também que com a relativa homogeneização da condição operária (CASTEL, 1998) apareciam maiores pontos comuns entre os trabalhadores, ajudando a reforçar sua consciência e organização coletiva. Por outra parte, de forma concomitante ao processo de fortalecimento dos trabalhadores e de suas representações, uma espécie de compromisso entre capital e trabalho provocou certo abandono de bandeiras históricas e o arrefecimento de processos de mobilização⁶.

    Para STREECK (2013), o que muitos teóricos não esperavam⁷era que fosse o capital e não o trabalho a retirar legitimidade ao capitalismo democrático (p. 59). Ao contrário do que poderia indicar o estudo da consciência política crescente de trabalhadores e estudantes de finais dos anos 60, não foram as massas que se recusaram a seguir o capitalismo do pós- guerra, acabando com ele, mas sim o capital na forma de suas organizações, organizadores e proprietários (p. 54). Assim, na visão do autor, quando o capital deixou de fingir-se brinquedo e passou a agir como jogador, [c]onsiderou o enquadramento institucional da ‘economia social de mercado’ após 1945 como uma jaula que se tinha tornado demasiado pequena e começou a convencer-se cada vez mais da urgência de se libertar dela (p. 58). Desde então, a fase recente do capitalismo, com suas sucessivas crises, seria para Streeck a história de evasão do capital à regulação social que lhe foi imposta após 1945, mas que ele próprio nunca desejou (p. 59).

    Alguns autores apontam que na década de 1960 já era possível visualizar sinais de esgotamento do padrão de acumulação do pós-guerra. CLARKE (1991, p. 148) afirma que:

    As pressões sobre a lucratividade vinham aumentando já desde meados da década de 1950, "embora no início as altíssimas taxas de lucro tivessem possibilitado que o capital absorvesse estas pressões, enquanto ainda comportava uma folga para atender àsreivindicações por maiores salários e gastos sociais e previdenciários como meio de garantir a paz social e a estabilidade política. Estas pressões, porém, se intensificaram na década de 1960 e início da de 1970, quando o boom contínuo levava a uma competição internacional cada vez maior e alimentava as demandas trabalhistas, canalizadas através dos sistemas institucionalizados de relações industriais e da representação política oferecida pelo welfare state keynesiano".

    BELLUZZO (2013, p. 164) também corrobora a ideia de que as condições econômicas manifestas a partir do final dos anos 60 teriam aberto as portas para a ressurgência dos liberais e para uma retomada exitosa de sua ofensiva ideológica:

    "Já nos anos 1950, tempo de esplendor e glória do ideário keynesiano, o libertarianismo de Frederich Hayek e, mais tarde, o monetarismo de Milton Friedman desataram a ofensiva contra ‘os inimigos da liberdade econômica’. Não eram ouvidos nem cheirados. Os libertários saíram da tumba, ressuscitados pelos miasmas da estagflação do final dos anos 1960 e início dos 1970. A partir de perspectivas teóricas distintas, os espectros do mercadismo passaram a rondar o chamado ‘consenso keynesiano’. Para eles, as proezas da ‘era dourada’ revelaram-se um doloroso engano. Engano que fez prosperar o famigerado populismo econômico, uma forma perversa de politização à outrance da economia. Parafraseando Eric Hobsbawm, a recomendação dos conservadores era dar ‘adeus a tudo aquilo’ e, com urgência, empreender as reformas necessárias para restabelecer o funcionamento dos verdadeiros mecanismos econômicos, os únicos aptos a garantir a liberdade do indivíduo e promover a estabilidade e o crescimento de longo prazo."

    A redução das taxas de crescimento da economia norte-americana e seu desequilíbrio comercial e financeiro foram argumentos que abriram caminho para a radical alteração da relação anteriormente constituída, tal como afirma MATTOSO (1995, p. 77):

    "Assim, paralelamente à emergência de um novo padrão industrial, em meio à desestruturação da ordem econômica internacional e à ruptura do compromisso keynesiano, verificou-se novamente um processo no qual o novo padrão entra em choque com as próprias bases materiais que deram sustento à relação salarial e às demais formas constitutivas do mundo do trabalho anteriores, sem que nova articulação tenha sido criada.

    Este processo assumiria a forma de uma crescente ampliação da insegurança do trabalho que, por sua vez, apontaria para uma maior desestruturação do mundo do trabalho constituído no pós-guerra.

    Esta expansão da insegurança do trabalho se daria em diferentes níveis: insegurança no mercado de trabalho, insegurança no emprego, insegurança na renda, insegurança na contratação e insegurança na representação do trabalho."

    Em comparação com a etapa anterior do capitalismo, em particular como se desenvolveu nos países avançados, nas últimas décadas acompanha-se uma perda de dinamismo no crescimento da produtividade; globalmente, em função da abertura comercial, as empresaspassam a travar uma disputa por mercados externos; o trabalhador volta a ser mais considerado como um custo a ser reduzido do que como um consumidor a ser preservado. Ao mesmo tempo, a cada vez maior satisfação na alienação, criticada por autores como Adorno e Horkheimer, mostra que o capital conseguiu uma lealdade crescente dos trabalhadores, das massas, como consumidores atentos a novas necessidades⁸, o que acabaria por legitimar algumas faces da selvageria do capitalismo atual, como a produção e o consumo desenfreados, bem como certo individualismo associado às tentativas de acesso. Para STREECK (2013, p. 54-55), no pós-70, teve início um período de consumismo e de comercialização nunca antes visto no mundo, que envolveu a monetização de áreas antes não dominadas pela lógica do lucro e no qual:

    As inovações cada vez mais rápidas dos processos e produtos, possibilitadas pela difusão rápida da microeletrônica, reduziram o ciclo de vida de um número crescente de bens de consumo, permitindo uma diferenciação dos produtos cada vez mais profunda, em resposta aos desejos de grupos de clientes cada vez mais especializados

    Quanto à forma de produzir, na etapa em curso do capitalismo, exclui-se uma parcela crescente de trabalhadores do processo produtivo, ao mesmo tempo em que outras levas são inseridas de maneira mais flexível e instável. A proliferação de formas contratuais flexíveis, como a terceirização, o trabalho temporário, o trabalho a tempo parcial, está necessariamente associada à maior precarização. Portanto, como estratégia de gestão, assume múltiplas funcionalidades para o capital. Este obtém produtividade espúria ao comprimir custos através da redução de direitos e salários e da facilidade de dispensa e contratação; estabelece uma condição de maior vulnerabilidade independente da dimensão contratual, posto que aqueles trabalhadores que quiserem manter um vínculo menos instável, com acesso a remunerações comparativamente maiores, em contrapartida precisarão intensificar o trabalho; e, ao mesmo tempo, por meio da construção de maior instabilidade e insegurança, contribui para fragmentar e desorganizar os trabalhadores e sua consciência de classe.

    Sob o ponto de vista social e ideológico, instaurou-se nas últimas décadas um crescente e seletivo questionamento à intervenção do Estado na economia. Em um retorno aos preceitos liberais, revestidos de nova roupagem, há, na retórica, uma pressão constante para que oEstado se torne mínimo, ainda que, tal como já ensinava Polanyi nos anos 40, o Estado seja absolutamente fundamental nesse processo (POLANYI, 2000), já que seu papel é o de avalizar a implementação e a legitimação de todas as medidas. Ainda que a ação do Estado seja no sentido de desconstruir direitos e que, a fim de abrir novos espaços de acumulação ao capital, se afaste da atuação em várias áreas, ele está interferindo. Para o capitalismo, sujeito às suas constantes crises, há inevitabilidade na regulação; o que muda é a sua forma, conforme as manifestações da crise e a relação de forças presente na sociedade. O Estado intervém, seja nos moldes keynesianos, em busca de restaurar a demanda efetiva, ou seguindo a lógica neoliberal, permitindo maior liberdade ao mercado; e para agir em qualquer um dos sentidos precisa ser forte, e não mínimo, mesmo que por vezes pareça retirar-se de cena.

    Como lembra BELLUZZO (2013, p. 168), [o] Estado não saiu da cena, apenas mudou de agenda. Essa também é a ideia presente em LAVAL e DARDOT (2016): o Estado não se apaga, o Estado não desaparece. Assume apenas um novo papel sob o neoliberalismo, o de promotor da ampliação da lógica concorrencial para esferas que fogem àquelas tradicionalmente sob o domínio do mercado. Como afirmam os autores (p. 17):

    Ao contrário do que se vê em uma percepção imediata e a partir da ideia, demasiado simplista, de que são os mercados que, de fora, conquistaram os Estados e lhes ditam as políticas a seguir, são certamente os Estados – começando pelos mais poderosos entre eles – que introduziram e universalizaram na economia, na sociedade e até em seu próprio seio, a lógica da concorrência e o modelo da empresa.

    Se, para o período anterior de acumulação capitalista, vigente até meados da década de 70, a forma de organizar a produção, a forma de pensar a sociedade, a forma como o Estado intervinha na regulação se davam no sentido de uma maior proteção social e de mais rígida regulamentação do uso do trabalho, as mudanças do período recente trouxeram, para a esfera econômica e política, a adoção de medidas de viés neoliberal, que envolvem o ataque a direitos sociais historicamente constituídos (ANTUNES, 2006, p. 15).

    Ainda que a retórica neoliberal associe uma crise do Estado às políticas de bem- estar social implementadas em larga medida na parte mais economicamente avançada do planeta⁹, o debate sobre a reforma do Estado emerge, em verdade, como parte do processo de redefinição estratégica de acumulação do capital. Reforma, no sentido de mudança do papel doEstado, com redirecionamento de gastos públicos, retirando-os das áreas sociais; mas também abrindo espaço para novas (e significativas) fontes de acumulação privada, já que a estratégia envolve o desestímulo constante à atuação do Estado em esferas da economia sob a cobiça da iniciativa privada. O capital lucra, assim, coordenando ou dominando processos antes impulsionados exclusivamente pelo Estado; construindo alternativas privadas a serviços públicos desmontados pela falta de recursos orçamentários ou de pessoal; ou até mesmo intermediando força de trabalho precária a partir de mudanças na regulação do uso do trabalho.

    Assim, na fase atual, instaurou-se uma tentativa estratégica (para o capital) de ampliar as formas de explorar o trabalho, no intuito de recuperar amplo domínio não só do ponto de vista econômico, mas também sob a ótica da dominação política e ideológica (VASAPOLLO, 2005). Nesse sentido, pode-se dizer que essa violenta estratégia do capital, em sua ofensiva destrutiva sobre o trabalho, foi muito bem-sucedida. Há muitos estudos que apontam como traço comum ao período em curso a intensificação da exploração do trabalho, que abre terreno fértil e propício a avanços do capital sobre outras esferas da vida.

    A nova forma de acumulação e de organização da economia capitalista trouxe fortes repercussões sobre o processo de trabalho (ANTUNES, 2001, p. 41), e carrega consigo uma combinação de desfechos, como a flexibilização na regulamentação das relações de trabalho, implicando o desmonte de direitos. Sob o ponto de vista da sociedade, vivencia-se um processo de degradação crescente dos recursos naturais, ampliação dos níveis de desemprego e de insegurança em todo o mundo, precarização do trabalho¹⁰e da vida humana.

    Assim como discorrem LAVAL e DARDOT (2016), a nova razão do mundo, essa nova racionalidade provocada pelo neoliberalismo, tem impactos em todos os campos da sociedade, e não somente na economia¹¹. Trata-se de uma composição de práticas, mecanismos e discursos, sob aparência democrática, mas tendo como elemento substantivo à sobrevivência dosistema a desigualdade social. MÉSZÁROS (2002 e 2003) também apontara as repercussões do atual modelo sobre as várias esferas da vida. O ataque aos trabalhadores processado no mundo inteiro não só torna o desemprego crônico para todas as áreas da economia - muitas vezes disfarçado sob formas de trabalho mais flexíveis e precárias, que facilitam a gestão e adaptação do capital – como também provoca uma redução do padrão de vida mesmo dos trabalhadores considerados mais formais ou tradicionais, ocupados em tempo integral, sem prazo pré- determinado, ou vinculados diretamente às estruturas empresariais.

    Assim, compreendendo a precarização também como esse processo de desestabilização dos estáveis (CASTEL, 1998), ou como um processo social de conteúdo histórico-político concreto, de natureza complexa, desigual e combinada, que atinge o mundo do trabalho, principalmente setores mais organizados da classe do proletariado (ALVES, 2007, p. 115), trata-se de uma forma sempre útil para que o capitalismo tente quebrar as resistências de quem é explorado. Para ANTUNES (1995), apesar da condição histórica de convivência do trabalho precário com o capitalismo, no período mais recente se assistiu a uma metamorfose na precariedade, que passou a assumir lugar estratégico para a dominação capitalista, institucionalizada no mundo inteiro, inclusive como forma de transferir responsabilidades antes atribuídas ao empregador para os trabalhadores.

    Todas essas alterações, ainda em curso nas diferentes sociedades, fundadas em uma lógica de maior flexibilidade e da consolidação de novas formas de precarização, constroem um ambiente muito desfavorável aos trabalhadores e à sua resistência. VASAPOLLO (2005) alerta que as modificações na maneira como se organiza a produção - e suas repercussões sobre os conflitos entre o capital e o trabalho - incidem sobre a forma de pensar e regular a vida como um todo, na esfera da política, da sociedade ou mesmo da cultura.

    Dessa forma, as mudanças nas organizações são combinadas a / abrem espaço para / são reforçadas por iniciativas adotadas também (e em grande medida) pelo Estado. Estas atuam, por um lado, possibilitando novas formas de regular, contratar, utilizar e controlar a força de trabalho para o conjunto do mercado de trabalho. Pode-se dizer que incidem ainda sobre a maneira como o Estado se comporta em seu papel como patrão ou gestor do trabalho, ou na relação do Estado com seus servidores, que também é impactada pelas mudanças gerais nas relações de trabalho.

    As políticas no sentido de maior flexibilização, ajustando as relações de trabalho à nova ordem mundial, despontam como uma tendência geral, mas não foram efetuadas ao mesmo tempo, sob a mesma configuração ou com a mesma intensidade nos diferentes mercados de trabalho. Cabe ver, então, quais as principais transformações operadas no mercado de trabalho brasileiro nas últimas décadas, para então compreender em que medida estas afetam, também, as relações de trabalho que se processam no âmbito do Estado.

    1.2. Evolução recente das relações de trabalho no Brasil

    O mercado de trabalho brasileiro tem suas peculiaridades históricas, então também a onda de mudanças, no sentido de lhe conferir maior flexibilidade, com repercussões sobre a maior precarização do trabalho, assumiu por aqui suas características específicas. Para ALVES (2007, p. 111):

    "... no caso do capitalismo brasileiro, o processo de precarização do trabalho assume dimensões complexas, articulando tanto dimensões histórico-genéticas (originárias da nossa formação colonial), quanto dimensões histórico-sociais vinculadas à nova ordem da mundialização do

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