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Ana Paula Garcia Mendes

Nasci em Lisboa e desde muito cedo percorri os caminhos do Alentejo.


Sempre me encantaram as ondulações da paisagem, os sobreiros solitários e
o mar como horizonte. Gosto de viver perto da água. No final dos anos 80
entrei na Universidade dos Açores para uma licenciatura em biologia, que
não concluí. Anos mais tarde, licenciei-me em design de interiores.
Desde 2006, no Alentejo litoral, procurei complementar um projecto de
agricultura biológica e de permacultura, a que dei o nome de “Trumbuctu”,
com uma unidade produtiva artesanal de saboaria, produtos de higiene e
cosmética naturais - a “Grão da Terra” [Aditamento: a Ana Paula Mendes, co-
autora deste livro, faleceu em 21 de Julho de 2017].

Rogério Ferreira de Andrade


Doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova
de Lisboa, professor. Aprendiz nos projectos ligados à terra desenvolvidos
pela Ana Paula Mendes.
QuimioRadiolândia
Viagem sem regresso a uma fortaleza chamada oncologia

Rogério Ferreira de Andrade


Ana Paula Garcia Mendes
QuimioRadiolândia.
Viagem sem regresso a uma fortaleza chamada oncologia

© 2018, Rogério Ferreira de Andrade e Ana Paula Garcia Mendes

Capa (ilustração): Maria Mateus

Publicação: Maio de 2018

E-mail para oferta gratuita do livro em versão digital: quimioradiolandia@gmail.com

Por decisão dos autores, o presente livro segue a ortografia antiga.

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ÍNDICE

Nota prévia
pág. 4

Cronologia de um tumor
pág. 8

Uma névoa de loucura paira sobre o monte


pág. 10

cT3N2bM1
pág. 20

A fortaleza de palhavã
pág. 35

Uma caravana quartel-general contra o cancro


pág. 42

QuimioRadiolândia
pág. 52

Terapias complementares e alternativas


pág. 68

Um invulgar e súbito decair


pág. 93

Partir para o Universo


pág. 104

Fontes e inspirações
pág. 109

Léxico e siglas
pág. 112

3
NOTA PRÉVIA

As palavras deste livro foram, na sua maioria, escolhidas por mim, só eu


respondo por elas e pelo uso narrativo que delas faço, bem como pelas
inevitáveis omissões, inexactidões e mesmo parcialidade na apreciação de
factos. À minha amiga Paula coube a parte mais difícil, aprender a morrer de
cancro muito avançado na hipofaringe, aos quarenta e oito anos, como
autodidacta, depois de tantas vezes perguntar a oncologistas surdos-mudos
como se morre realmente de cancro.
Entre um cancro já metastizado e tratamentos agressivos, a Paula
procurou todas as opções terapêuticas da medicina convencional,
complementar e alternativa, mesmo as mais controversas, por isso quem lhe
queira atirar a primeira pedra comece por ocupar o seu lugar de desmesurada
solidão. A minha amiga fraterna e ex-companheira de muitos anos tem o nome
na capa deste livro, é co-autora de pleno direito, está presente nas nossas longas
conversas, nas leituras partilhadas de revistas científicas sobre o cancro, nas
viagens meio alucinadas através do país ao mundo dos hospitais, das
enfermarias e dos profissionais de saúde com uniformes de todas as cores. Ela
está ainda presente com o olhar muito vivo e as observações perspicazes com
que procurava exprimir a sua incompreensão e revolta pelo que lhe acontecera,
e que ouvi e registei.
A breve cronologia que abre o livro, “A vida prega-nos destas…”,
apareceu pela primeira vez no seu blogue onde, durante anos, a Paula explicou
pacientemente, a quem a queria ler, os mistérios de uma horta biológica e da
permacultura, os seus habitantes quase microscópicos que incansavelmente
fotografava com amor, enfim, onde celebrava a alegria dos trabalhos e dos dias.
Quanto ao título do livro, e numa versão mais expressiva, bem poderia ter sido
“Fujam daqui enquanto podem”, frase que ouvimos da boca de uma enfermeira
sénior do IPO, em Lisboa, após a primeira biopsia e antes de conhecido o
veredicto definitivo. Aliás, o conselho desta enfermeira é a única nota digna de
apreço que recordamos daquela primeira fortaleza oncológica por onde
passámos, com exames e consultas a conta-gotas, num Agosto quente do ano de
2016. Escreveu a Paula: “Querem saber o que senti no IPO? Esta está quase a
morrer não vale a pena gastar muito com ela”. Seguir-se-iam outras fortalezas –
e também anti-fortalezas alternativas nem sempre sérias – até tudo terminar,
mais a sul, num vinte e um de Julho igualmente quente de 2017. A Paula tinha
“partido para o Universo”1 no qual se sentia um pequeno grão com alma.
Muitos dos nomes mencionados neste livro, embora não todos, são
fictícios, incluindo nomes de pessoas, instituições e sítios. Em alguns casos
recorremos a perífrases, como “o oncologista do sul”, o “hospital do sul” ou o
“boss do hospital do norte”. Porquê? A descrição de circunstâncias e a avaliação

1
A expressão “quero partir para o universo repetiu-a insistentemente no período final da vida quando a
esperança quase se ausentara de todo.

4
de acções e de atitudes deverão ter precedência sobre a identificação dos seus
protagonistas, os quais são, afinal, meros agentes iguais a tantos outros que se
movem no interior de fortalezas oncológicas. Todos eles, consciente ou
inconscientemente, são replicadores do “efeito fortaleza oncológica”, da sua
vocação quantas vezes dogmática, autoritária e retaliadora, embora mais
raramente de humanidade genuína.
Em Agosto de 2016, os embates com a fortaleza da oncologia estavam a
começar e nós não sabíamos. Ou antes, a Paula intuiu-o primeiro, pois começou
a decidir cedo, lucidamente, o que não queria, por exemplo cirurgia em zonas
sensíveis da cabeça e do pescoço; traqueostomia; laringectomia parcial ou total;
sonda nasogástrica; quimioterapia se o tumor regressasse mais agressivo após
os primeiros ciclos; radioterapia uma vez comprovada a metastização; radio-
quimioterapia paliativa, etc.
Condensar um tão vasto conjunto de memórias num livro talvez possa,
no plano pessoal, ajudar-me a superar o síndrome asfixiante do sobrevivente
inconformado (“hoje está um dia azul, azul, azul e tu, minha amiga, não estás
cá para o ver, só eu, eu, eu”). Antevia, ao decidir-me a escrever este livro, que
iria sofrer duas vezes, e, por isso, procurei concluí-lo num período
relativamente breve (manter fresca a memória de acontecimentos era outra
razão de peso). Sofrer pela segunda vez significava que cada recordação teria de
ser por mim doridamente reavivada e traduzida em palavras. E, na escrita, cada
palavra sopesada e escolhida, irrompendo assim mais e mais recordações
mordentes. A redacção dos últimos capítulos foi, por essa razão,
particularmente penosa.
Atropelavam-se também dúvidas e hesitações quanto à relevância do
que iria contar e até onde deveria descer nos detalhes. É que, co-autora
póstuma, a Paula já não poderia tomar estas difíceis decisões nem rever comigo
o texto final. Provavelmente, ela daria muitíssimo ênfase à “questão familiar”,
em particular à morte do pai que permaneceu longos meses semi-abandonado
numa enfermaria de hospital apesar dos esforços incansáveis que, sozinha, não
regateou para encontrar vaga em serviços de cuidados continuados de saúde,
sendo sua convicção que tudo isto lhe fez muito mal – enquanto factor
emocional de forte impacto – e poderá ter desencadeado a meteórica progressão
do cancro; ou, ainda, não pouparia nos juízos e sentimentos face a certos
médicos que, no início, a “agarraram”, como ela chegou a escrever, mas que,
com o tempo, foram revelando outros comportamentos nas suas inóspitas
fortalezas oncológicas.
Uma outra dúvida me sobressaltou até ao último capítulo: seria
eticamente aceitável divulgar informação clínica sobre a doença e o estado de
saúde da Paula – exames, análises, tratamentos, internamentos ou conversas
com médicos – mesmo que parcialmente? Poria em causa a reserva da sua vida
privada? A sofreguidão com que a Paula pesquisava informação e experiências
contadas por pessoas com cancro, sempre atenta a todas as sugestões
terapêuticas; a persistência com que também procurava sinais que poderiam
antecipar aquilo que os médicos resistiam a dizer-lhe, leva-me a acreditar que a
minha amiga não hesitaria em quebrar a confidencialidade em nome da

5
legítima e urgente vontade de saber de algumas pessoas – doentes mais
empenhados no seu problema, cuidadores formais e informais atentos – que
passam no presente, ou virão a passar, por idênticas experiências-limite de
saúde. Enfim, dúvidas e hesitações que procurei resolver o melhor que soube,
mais habituado que estou a textos académicos do que às regras e estilo de livros
de memórias ou biográficos. Pretensão a obra literária não existe no que fica
escrito. Que fique, isso sim, o nosso testemunho pessoal e directo, pois é o mais
importante.
Também a ausência de formação específica em matérias de medicina
levou-me a redobrar cautelas, estando consciente de que inexactidões e lacunas
– esperando que menores – poderão ter sido involuntariamente cometidas. Para
contornar essa dificuldade e, simultaneamente, proporcionar ao leitor
informação útil sobre termos técnicos menos familiares, apresentamos no final
uma secção que intitulámos “Léxico e siglas”, o que tem também a vantagem de
evitar a multiplicação exagerada de notas de rodapé.
De qualquer modo, este é um livro de experiências vividas, envolvendo
pessoas, instituições e serviços de saúde, sobretudo oncológicos, reivindicando
nós a liberdade e o direito à subjectividade informada e crítica na avaliação dos
procedimentos e das relações que mantivemos com essas instituições e os seus
profissionais.
Um sábio aforismo talvez contribua para suavizar a contundência de
certas observações que têm lugar ao longo do livro, as quais, para alguns
leitores, pecarão por excessivas ou até injustas, mas só assim será para quem
não fez a viagem sem regresso – pelos menos para a minha amiga – como a
fizemos nós, para quem não viu e ouviu o que nós vimos e ouvimos. Eis o
aforismo: “Não perguntem ao rio porque é tão tumultuoso, perguntem antes às
margens que o apertam”.

6
“(...) When the responsibility for anOther speaks,
the calculating reason keeps respectful silence.
It has nothing to say; being reason it also knows that it would not be heard (...).
The care for the Other lives as long as the Other lives
and, as [Walter] Benjamin insisted, the dead are not safe either:
they also need protection (...)”. 2

“(...) Quando a responsabilidade pelo Outro se faz ouvir,


a razão calculadora mantém um silêncio respeitador.
Nada tem a dizer; sendo razão, sabe que não será escutada (...).
O cuidado com o Outro vive enquanto o Outro viver
e, como insistia [Walter] Benjamin, nem mesmo os mortos estão a salvo:
também eles precisam de protecção (...)”.

2Zygmunt Bauman (1992), Mortality, immortality and other life strategies, Cambridge: Polity Press, págs. 207-
208 (tradução nossa).

7
CRONOLOGIA DE UM TUMOR

(Última publicação da Ana Paula Garcia Mendes, em 7 de Fevereiro de 2017,


no seu blogue Trumbuctu e intitulada “A vida prega-nos destas...”)3

Outubro de 2015
Estava a meio de um período emocionalmente muito conturbado, devido a
questões familiares. E, pessoalmente, vinha duma luta de quase dez anos, dez
anos a lutar para manter a cabeça à tona da água. Dois caroços no pescoço, já de
tamanho considerável e duros. A médica do centro de saúde ignorou. Perante o
meu ar preocupado até pareceu ficar ofendida como se eu estivesse a pôr em
causa os seus doutos conhecimentos. O tempo passou, Novembro, Dezembro …
e eu com situações tão complicadas a resolver, também o deixei passar.

Janeiro de 2016
O desenlace do período emocional. Tudo termina. Passa Fevereiro e em Março
começo com umas dores de cabeça lancinantes, tensão alta. Não estava bem
mas continuava a ter de resolver situações de outras pessoas. Exames, mais
exames e nada se descobria.

Abril de 2016
Faço uma ecografia ao pescoço em final de Abril. Presença de adenopatias, mas
às quais o médico não achou relevância. Disse-me para ir fazendo o controle.

Maio de 2016
A médica do centro de saúde envia-me para medicina interna. Um mês depois
tenho consulta. TAC ao pescoço com contraste. Perguntei à técnica se sabia logo
se era maligno ou não. Disse-me que sim, que sabia. No fim do exame
perguntei-lhe e vi no rosto dela que era maligno, embora ela me tenha dito que
não via nada.

Junho de 2016
Entre consultas adiadas pela falta do médico, greves, no final de Julho tinha
uma consulta marcada que não se realizou por ser dia de greve. Fui à urgência e
só sai de lá com a TAC na mão e uma conversa com o chefe das urgências para
me explicar o que tinha. Era maligno, foi só o que soube ou consegui ouvir.

Agosto de 2016
Referenciada para o IPO, tive a primeira consulta dia 3 de Agosto, mas aí já
sabia muito da minha doença – cancro na hipofaringe, metastizado para os

3 O endereço do blogue “Trumbuctu”, que permanece activo, é: http://trumbuctu.blogspot.pt/

8
gânglios, traqueia, esófago e mediastino –, não pelo que os médicos me
explicaram mas pelo que procurei de informação. Agosto arrastou-se, lento e
longo, todos de férias e eu de cancro. Exames às pinguinhas, todas as semanas.
Nunca houve uma resposta, uma explicação, um apoio. Só, completamente só,
com a angústia de ter um cancro e, ao que eu adivinhava, em estado já muito
avançado. No final do mês aconteceu a suposta consulta de grupo, onde me
disseram que não podiam propor tratamento porque ainda precisavam de uma
TAC ao tórax e uma PET. Esses exames paguei-os eu porque seriam semanas de
espera. Querem saber o que senti no IPO? Esta está quase a morrer não vale a
pena gastar muito com ela.

Setembro de 2016
Proposta terapêutica: cuidados paliativos, diminuir ou retardar o aparecimento
de sintomas. Talvez nem um ano de vida. A minha vida acabou ali, uma
desesperança sem nome. Uma solidão sem tamanho.

Outubro de 2016
Através de uma enfermeira amiga soube de um oncologista, aqui no Alentejo, e
ela consegue-me uma consulta. Ele 'agarrou-me', disse-me que eu estava a
morrer e que tínhamos de tratar de mim. Não tem cura, disse (e eu sabia que
não, sei que não), mas poderá viver com o cancro não se sabe quanto tempo, é
possível. Passada a primeira semana do primeiro ciclo de quimio voltei a ter um
pouco de mim outra vez. Voltei a ser eu novamente. Nada será como dantes.
Vivo todos os dias com a sombra da minha morte, o meu cancro não tem cura,
estadio IVc. Mas também acredito em milagres, e no amor. Muitos amigos e
familiares desapareceram, outros surgiram ou reapareceram. Tenho alguns
anjos da guarda que comigo tentam que eu possa continuar a viver. E eu quero
é viver!!!!

Neste momento terminei quatro ciclos de quimio e aguardo fazer nova PET
para vermos como respondeu o tumor. Mas pelo que passei, completamente
intoxicada, tenho sérias dúvidas em voltar a fazer quimio, muito menos
radioterapia. Se não tivesse feito os ciclos de quimioterapia talvez não estivesse
aqui, agora. Mas viver assim, ou melhor, estar viva, só, hum... há ainda muito a
reflectir. Já muita coisa mudou desde que escrevi este texto (sete meses depois),
principalmente a forma como vejo a vida e que espero vir a partilhar com
vocês. Paula”.

9
UMA NÉVOA DE LOUCURA PAIRA SOBRE O MONTE

O cancro aterroriza, desestrutura e traz o caos para dentro das nossas


vidas, é uma ameaça à nossa teia de relações, contagia os sítios e os ambientes
onde vivemos. A proximidade compassiva com o cancro marca-nos, consome-
nos, apetece fugir para longe, engolir ar às golfadas, a cabeça a explodir de
impotência e absurdo, eu próprio o senti na pele durante o ano que vivi,
próximo da minha amiga, no monte das Sete Amendoeiras.

Todos de férias e eu de cancro

A cadela roda como louca para apanhar a sua própria cauda.


Obsessivamente. Levanta nuvens de poeira. Põe-se de pé apoiada nas patas de
trás e fareja as moitas. Depois volta a rodar frenética, a latir, uma, duas, dezenas
de vezes, sem conseguir filar a extremidade da cauda. O gato Tobias, com o
olho arrombado nas lutas nocturnas, observa-a à distância desconfiado do ritual
da cadela.
A Luna, é o nome dela, foi adoptada, trazida do canil não por ser bonita,
brincalhona ou nos provocar qualquer estremeção emocional, mas por ser já
idosa, abandonada e com fracas possibilidades de se tornar uma primeira
escolha de adoptantes ocasionais. “Não se compram lulus expostos em centros
comerciais quando os canis estão cheios de animais para adopção”, sentenciava
a Paula.
Estamos no alpendre da casa pequena do monte alentejano e assistimos
ao habitual momento de desvario da cadela. Mais acima fica a casa grande da
mãe, de traça antiga e recentemente remodelada. A casa da Paula está pintada
da cor da terra para se confundir com a terra, rodeada de ervas silvestres e
aromáticas, com a horta a desdobrar-se à frente. Na traseira, oposta ao
alpendre, uma figueira de copa larga e figos pingo de mel abraça a casa. O
alpendre foi a última conquista da Paula e pouco tempo gozou da sua sombra
amena. Para o suportar, escolheu grossos troncos de árvore, em tosco, o que nos
dava uma sensação de coisa robusta, de aconchego. Por vezes, em dias de brisa,
deixávamo-nos dormitar ao som dos espanta-espíritos e da música que vinha
do interior da casa.
Durante algum tempo, o tempo da esperança combativa, a canção-
talismã da Paula era o Quero é viver, dos Humanos: “Vou viver / até quando eu
não sei / que me importa o que serei / quero é viver / Amanhã, espero sempre
um amanhã”. Um frio fino percorria-me a espinha quando a via repetir vezes
sem conta o refrão, cantando por cima da voz de Camané, que por sua vez
cantava por cima da voz de António Variações, todos cantando por cima da
desesperança. Ao escurecer, em silêncio, gostávamos de ouvir o piar de corujas
das torres ou de mochos galegos em plena caçada. E ainda o mar revolto, mais
ao longe.

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— Sinto-me dentro do corpo daquela cadela, diz a Paula. Procuro
obsessivamente o porquê do meu cancro, morder a extremidade da minha
própria cauda mental para conhecer o que me devora, sim, porque este cancro é
meu, foram células do meu corpo que enlouqueceram, puseram-se a crescer
desordenadamente, inflamadas, gulosas de açúcar, de energia e dispostas a
matar-me sabendo que também morrerão. Insano, não achas?
— Sim, insano, mas estranhamente racional, respondo-lhe. O cancro
adora fazer crescer vasos sanguíneos novinhos em folha, a formarem uma rede
capilar densa que irriga sempre mais células que perderam o norte e a
compostura biológica, seja lá o que isso for. Angiogénese4 parece ser o nome
deste processo de crescimento de novos e frágeis vasos sanguíneos que, no caso
dos tumores, aceleram a sua progressão. As células desprogramaram-se,
entraram em mutação, deviam reproduzir a vida, mas matam-te e morrem
contigo.
— Eu sei, até consigo ter alguma ternura por elas, são parte de mim,
nascem do meu corpo, meditava a Paula. E continuava:
— Preferia combater vírus ou bactérias, declarar-lhes guerra, já que os
imagino como inimigos externos, indesejáveis, embora saiba que o não são
necessariamente. Então, faria sentido dizer, como oiço tantas vezes às raparigas
do “Careca Power”5, que o cancro é um filho da puta, um invasor demoníaco e
que aquilo que escrevi no meu blogue sobre o cancro pregar-nos uma partida
torna-me guerreira, corajosa e outros atributos épicos desalinhados do que se
passa e do que sinto no mais fundo de mim.
— Olham-te de fora como se vivesses uma epopeia e esquecem o drama
que se mantém em cena na tua cabeça as vinte e quatro horas de cada dia.
— Heroína, eu? Ou muito me engano ou vou é combater a quimioterapia
e, aí sim, terei de arranjar coragem e ser guerreira, não achas? Olha, sinto-me
mesmo como aquela cadela, a cabeça sempre a rodar, a rodar em círculo para
apanhar o sentido disto que veio ter comigo e que não pedi. Um tic-tac cá
dentro em contagem vertiginosa. Como vou viver com o tic-tac essas vinte e
quatro horas, mil quatrocentos e quarenta minutos, oitenta e seis mil e
quatrocentos segundos todos os dias? Quantos meses, talvez anos com muita
sorte, diz-me, quantos mais? Não vou chegar a ver-me velhinha, como a D.
Albina, e continuar, como ela, a colher plantas silvestres, sentir os aromas
destes campos à volta nos dias quentes.
E as lágrimas a jorrar, não a cair mansamente mas impulsionadas para a
frente, em catadupa, até conseguir serenar.
— Logo verás o que fazer com a quimioterapia, comentei, mas sabemos
que essas células malignas vão invadir tudo o que encontrarem pelo caminho se
não houver alguma forma de oposição – laringe, traqueia, gânglios, mediastino,
pulmões, fígado, intestinos, ossos. Tudo.

4 Como assinalámos na “Nota prévia”, apresentamos no final do livro uma secção que intitulámos “Léxico
e siglas”, com a dupla intenção de proporcionar ao leitor informação útil sobre termos médicos menos
familiares e evitar a proliferação exagerada de notas de rodapé.
5 “Careca Power” é um grupo não-terapêutico de entreajuda para pessoas com cancro.

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— Pois é, tenho andado a matutar nessas clínicas ou associações, sei lá,
na Bélgica e na Suíça que oferecem condições para morrermos em ambiente
tranquilo, sem dor, sobretudo sem dor, percebes? Aqui isso ainda não é
legalmente possível e não quero deixar-te uma carga de trabalhos. Ajudas-me a
saber mais? Li algures o seguinte sobre como procedem na Associação Dignitas,
na Suíça, para o suicídio assistido: “Proporciona-se uma solução com 10
gramas de pentobarbital de sódio misturada com um sumo que o paciente
deve, necessariamente, ser capaz de ingerir com suas próprias forças. Se não
fosse assim, tratar-se-ia de eutanásia e não de suicídio assistido”. Parece que
não há dor nem consciência quando os pulmões começam a ficar paralisados e o
coração a parar.
— Já não é a primeira vez que falamos dessas mortes em ambiente
asséptico, discreto, lá longe. Lês o folheto, preenches os formulários, talvez te
entrevistem via Skype, enviam-te o orçamento e no dia combinado apresentas-
te para a injecção anónima. Estás a ver-te fazer a viagem comigo, ou com a tua
mãe? Também sei que já pediste ajuda à Marina para localizar uma dessas
clínicas. Sabes o que ela me perguntou? Aqui vai, assim de supetão, desculpa-
me: “Porque não ponderavas o suicídio? Porquê o suicídio assistido ou mesmo
a eutanásia?”.
A Paula ficou durante uns segundos a olhar intensamente para mim.
Tocara-lhe num ponto sensível, pois tomara há muito uma decisão.
— O tumor fez-se convidado, não o convidei. Apareceu, cresceu,
espalhou-se e tornou-se um cancro invasivo e agressivo, como vem
escarrapachado nos relatórios médicos. Suicidar-me? Porque o faria? Não o
farei. Quero viver, não quero morrer às minhas próprias mãos. Nunca me
suicidarei. E agora mudemos de assunto, está bem?
Habitamos ambos uma cápsula temporal de que se auto-excluíram ou
foram excluídos muitos amigos e mesmo familiares que lamentavam não poder
fazer tudo o que gostariam para cooperar, mas não é possível, pois temos a
nossa própria família, o trabalho, as viagens, a vida tão complicada lá longe,
pois vamos telefonando para saber, pois tchauzinho e as melhoras. Silêncio
duradouro. A Paula não se deixava comover por estas explicações frouxas e
dificilmente perdoava, até porque as raízes da animosidade para com alguns
amigos e membros da sua família próxima tinham atingido a fundura máxima.
Refira-se, no entanto, que a Paula comunicava intensamente através da rede
social facebook, certamente também com alguns amigos e amigas mais
próximos – mesmo que a não visitassem ou visitassem muito raramente –, o que
terá contribuído para o seu equilíbrio. Dessa comunicação privada eu apenas
conhecia, naturalmente, o que ela me contava.
Em 2015, sentindo-se impotente, enviara um lancinante SOS à família
para a ajudarem a retirar o pai da enfermaria hospitalar em Lisboa onde
permanecia meio abandonado há seis meses. Queria levá-lo para perto de si, no
Alentejo, depois de esforços infrutíferos – que desenvolveu sozinha – para
encontrar vaga em serviços de cuidados continuados de saúde na zona de
residência do pai. Acabou por fazê-lo, por sua conta e risco, mas o pai faleceu
cinco ou seis meses antes de a Paula saber que tinha cancro. É a isto, e aos

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antecedentes próximos, que ela se refere quando escreveu: “Estava a meio de
um período emocionalmente muito conturbado, devido a questões familiares.
E, pessoalmente, vinha duma luta de quase dez anos, dez anos a lutar para
manter a cabeça à tona da água”.
David Servan-Schreiber, no seu livro Anticancro6, afirma: “Para alguns, a
ideia de que o psíquico possa ter influência no cancro assemelha-se a uma
esperança, uma fantasia ou até mesmo uma mística” (p. 237). E, mais à frente:
“A maioria dos pacientes que conheci recorda um período de tensão particular
nos meses ou anos que antecederam o diagnóstico do seu cancro. Por norma,
tratou-se de uma experiência penosa que criou uma terrível sensação de
impotência. Muitos de nós foram confrontados com um conflito crónico que
parece não ter solução, ou com obrigações esmagadoras que criam uma
sensação de asfixia. Estas situações, repito, não desencadeiam o cancro, mas
como observa um artigo publicado em 2006 na revista Nature Reviews Cancer,
actualmente sabemos que podem dar-lhe oportunidade de se desenvolver mais
rapidamente” (p. 239). Conclusão: “para prevenir o cancro é essencial combater
a psicologia da impotência” (p. 278).
Ironizava a Paula em Agosto de 2016: “Todos de férias e eu de cancro”.
Quase um ano depois, já nos cuidados paliativos, empapada de morfina e a dias
de morrer, encontraria ainda forças para dizer “não” quando a directora do
serviço lhe perguntou se aceitava a visita de dois familiares. Uma tal coerência
de princípios, que poderia erroneamente confundir-se com obstinação, mostra o
carácter resoluto, a dignidade e a força moral da Paula até ao esgotar da sua
vida.
Por ora, continuamos no alpendre a beber chá, numa tranquilidade
inquieta, a falar da vida, da vivida e da que está agora aí, virtual e imprevisível,
e faz medo. Diante de nós, a Luna volta ao seu ritual obsessivo. Mas, como
veremos, não será a única tocada pela névoa de loucura que paira sobre o
monte das Sete Amendoeiras.

Um galo que se finge de morto

“Vou-te ajudar, Paula, conta comigo”, disse a Élia ao telefone.


“Entendemo-nos bem quando conversamos as duas, temos convicções em
comum, poderei apoiar-te se estiver próxima. As coisas também não andam
bem onde vivo e com quem vivo”. E foi assim que a Élia, um dia, chegou ao
monte com parca bagagem e um séquito de dois cães e três gatas nas suas
caixas gateiras. Um amigo trouxera-a e depositara tudo debaixo de uma das
figueiras junto à entrada do monte, onde a Élia descansava agora.
Subitamente, ainda nem quinze minutos volvidos, o caos iria instalar-se.
Soltos pela Élia, os seus cães – que não estavam habituados a conviver com os
outros animais do monte – começaram em correrias desenfreadas atrás de tudo

6David Servan-Schreiber (2016-11ª Edição / 2008-1ª Edição), “Anticancro. Um nova maneira de viver”,
Lisboa: Lua de Papel (capítulo 9, intitulado “Mente anticancro”)

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o que mexesse e não tivesse tempo de se pôr a salvo. Um deles, o Palito, galgo
longilíneo e elegante, lançou-se à desfilada atrás do galo Apolo, que fazia jus ao
nome. A Paula observava tudo à distância e rompeu em lágrimas: “O galo está
morto. O galito morreu. Como é possível entrar-se num monte que não se
conhece com os cães soltos? Como é possível desbaratar assim, estupidamente,
uma vida?”. E a vida, todo o embrião de vida, era cada vez mais um bem
precioso para ela, que a perdia um pouco em cada dia, fosse pelo cancro, fosse
pelos fármacos muito tóxicos que tomava para se tratar.
De início não percebi o que tinha acontecido. Procurei consolá-la. A
Paula era assim com todos os animais e com pessoas desprotegidas ou em
sofrimento. Em seguida, subi a ladeira e fui falar com a Élia. “Preciso de
descansar, baixar o stress”, disse-me com o olhar ausente, meio apática. “Sim, é
também o que precisa a Paula, com quem já deverias ter ido falar e pedido
desculpa. O que aconteceu?”, perguntei-lhe de cara franzida. “O galo não
morreu, os meus cães não matam, nunca sucedeu”, ripostou convicta. “Por
favor, Élia, és tratadora de animais, tens clientes que te confiam cães e
subestimas o instinto ou o efeito de matilha?”, ocorreu-me questionar.
Conversa acabada, dei uma volta larga e comecei a ver um rasto de
penas castanhas e verdes, numa razoável extensão de terreno. De quem seriam
senão do Apolo? Quando lhe contei, a Élia replicou que o galo se tinha fingido
de morto, estava escondido e ia aparecer. Regressei para junto da Paula, que
teve dificuldade em aceitar esta versão. “Um galo a fazer-se de morto ou a Élia
a fazer-nos de parvos?”, rematou.
Era difícil de acreditar, mas assim sucedera. Ao fim do dia, avistámos o
Apolo. Renascido das cinzas, perdera as garbosas penas do rabo e mais
algumas avulsas. Sobrevivera. Talvez tudo ficasse por aí, já que a Élia
apresentara um relutante pedido de desculpas. Mas não ficou, ela continuava a
entrar pelo portão do monte com os cães soltos: “Eles têm de andar livres, não
os quero condicionados”, insistia. No dia seguinte, o Heinrich, um alemão que
entrançava canas para reconstruir uma parte da vedação do monte, garantia ter
visto passar um cão com um galo pendurado na boca como se fosse um boneco
de borracha. O Apolo escapou à primeira, mas já não resistiu à segunda
investida do galgo. Para a Paula, agora sem o Apolo de quem há muito cuidava,
o universo emocional estreitou-se, empobreceu.
Parecem algo pueris, talvez mesmo ingénuas aos olhos do leitor, estas
histórias de cães-livres-e-não-condicionados e de galos-que-se-fingem-de-
mortos? Poderiam parecê-lo, se o cancro não ameaçasse, também ele,
abocanhar, transformar numa sombra a sua hospedeira que não queria fingir-se
de morta e, por fim, matá-la. Tal como lhe acontecia quando observava os
rituais obsessivos da cadela Luna, a Paula sofria também por empatia com o
destino do seu galito. A atribulada chegada da Élia e a sua súbita partida não
lhe trouxeram consolo algum.

14
O Frutuoso e a trupe das obras

A casa grande do monte fora restaurada no início dos anos 1990 pela
mãe, que trocara Lisboa pelo Alentejo, tal como a Paula o faria, com júbilo,
bastantes anos mais tarde. Na restauração, conservaram-se as paredes grossas e
bem caiadas, com frisos pintados de azul como é comum por aqueles lados, e
sobretudo a escala baixa. Lembro-me que, já depois dessa primeira renovação,
tínhamos de nos inclinar para entrar nos vários compartimentos, e não foram
poucas as ocasiões em que bati com a cabeça na moldura das portas. No
interior, tudo estava irreconhecível – aqui fora a salgadeira, ali o forno, mais ao
lado o lagar de vinho, e por aí adiante.
Nos tempos áureos, em que a idade e a saúde da mãe o permitiam, o
monte era bem amanhado, nele despontando tudo o que a terra pudesse dar –
árvores frondosas de grande porte, laranjeiras, amendoeiras, ameixeiras,
figueiras, limoeiros, milho, couves e tantas outras culturas. O modo de rega era
ainda o de influência árabe, com os regos bem torneados pelo senhor José – ou,
como ele dizia, a terra queria-se “bem penteada”, abre rego, fecha rego, a água a
correr ou a ser desviada consoante a necessidade das plantas. A neta da mãe da
Paula e os amigos brincavam nos regos com barquinhos de papel quando o
senhor José chegava na sua bicicleta dos lados de S. Francisco e iniciava os
trabalhos agrícolas.
A Paula iria consumar o seu amor à terra e à natureza na horta biológica
que começou, no monte, em 2006, criando um diário online onde partilhava as
experiências e a muita pesquisa por conta própria que desenvolvia,
arduamente, em leituras e acompanhamento de práticas ecológicas exemplares
em várias partes do mundo. Por isso ficava tão irritada quando era interpelada
rudemente por email ou nas redes sociais: “Boa tarde, quer fazer o favor de me
disponibilizar informação sobre como produzir chorume de urtigas?”. “Bolas”,
dizia ela, “tantos anos a queimar pestanas, a levar com o sol no lombo e agora
estes querem informação pronta a consumir, como fruta madura caída da
árvore. Mostrem-me primeiro o que já tentaram e depois falamos. Partilhem,
mas partilhem a sério, já que é palavra com que gostam de encher a boca”,
afirmava peremptória. Generosa, era-o e muito. Exigente, também, pois
conhecia o preço do esforço persistente e do autodidatismo. Por isso se ria de
empreendedores incubados, com jargão modernaço e convictos que pensavam
“fora da caixa”, mas que acabavam por servir de pasto a aves de rapina sabidas
na arte dos negócios.
Agora, em 2016, a casa ia ser alteada e aumentar ligeiramente de volume,
com uma nova remodelação de fundo, no interior, embora mantendo o exterior
quase inalterado. Adaptava-se à idade mais avançada e à comodidade de quem
a continuava a habitar. Depois de várias falsas partidas, o arranque das obras
ficou acertado para o mês de Setembro. De muitas maneiras, como veremos
adiante, estas obras vão intrometer-se na vida da Paula que, nessa altura, já se
encontrava assombrada pelo cancro. Como ela dizia, tocada por um humor
negro e profetizando: “é quase seguro, a cancerosa vai ter de fazer de fiscal de
obra durante muito tempo”. Em boa verdade, nos muitos meses que se

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seguiram ninguém da família próxima apareceria para apoiar a mãe no
acompanhamento dos trabalhos ou nas decisões a tomar. A nossa cancerosa
teria de manter-se firme no seu posto, mesmo quando prostrada pela violência
da quimio e dos seus efeitos secundários.
A trupe das obras, capitaneada pelo empreiteiro, chegou num dia
soalheiro de Setembro, não muito cedo, pois vinha de Lisboa e tomara o ferry de
Setúbal para Tróia, fazendo-se em seguida à estrada mais para sul. O senhor
Frutuoso, empreiteiro há longos anos, era conhecido pelas obras de pequena
envergadura que realizava numa outra casa da mãe da Paula, em Lisboa. Como
se iria comportar num monte alentejano? À medida que o tempo passava e as
obras se arrastavam, tornou-se evidente que nem ele nem a sua trupe estavam
preparados para fazer trabalho escorreito, competente e sobretudo organizado
na empreitada rural que lhes fora adjudicada.
O Frutuoso conduzia as operações de tronco nu, dando ordens aos
quatro ou cinco operários que iam esventrando o miolo da casa. As garrafas
vazias acumulavam-se pelos cantos do estaleiro mal amanhado em que o monte
se tinha convertido. O entulho crescia a esmo e não era escoado com
regularidade. A direcção da empreitada continuava sinuosa e tudo se agravava
com as ausências cada vez mais frequentes del capitán, preso noutra obras que
aceitara em simultâneo.
Um cordão umbilical ligava a casa da Paula à casa grande da mãe e era
atentamente vigiado: a ligação à internet. Fio telefónico e modem eram
sagrados. A Paula vociferava, por entre entulho e o pasmo da trupe, avisava
solenemente que tinham de ser protegidos a todo o custo, admoestando os
prevaricadores. O que seria da Paula sem internet para escavar mais informação
sobre o seu tumor, as terapias convencionais ou alternativas que, por milagre, a
poderiam salvar? O que seria da Paula sem internet para estar próxima dos
amigos e também dos seus clientes de sabonetes naturais e óleos essenciais que
oferecia no “Grão da Terra”, a sua unidade de produção artesanal certificada
que iniciara arduamente anos atrás7? Aquele fio telefónico e aquele modem
eram intensificadores de vida anticancro, traziam-lhe amanhã, calor humano,
estímulos que também lhe preenchiam o tempo.
Frequentemente, investia ladeira acima, a praguejar, em direcção à casa
da mãe para verificar se o cordão umbilical se mantinha intocado. Umas vezes,
receando o pior, pendurava o modem em recantos protegidos no interior da
casa, outras vezes punha-o do lado de fora, envolvido em plástico ao abrigo da
chuva e de mãos descuidadas. Depois, ladeira abaixo, quase corria para se
estender, exausta, na cama, agora já mais calma, a dar descanso ao cancro.
Assim iam as obras, por ora era só esventrar o miolo. A casa mudava de escala e
mudava de aura, descaracterizava-se, pensava para comigo mesmo. Perdia
graciosidade, autenticidade, embora ganhasse em conforto, o que era
importante para a mãe já com oitenta anos. Mas como fazer melhor naquelas
condições tão adversas e com aquela trupe de improvisadores?

7 O endereço do “Grão da Terra”, que permanece activo, é: https://pt-pt.facebook.com/graodaterra.pt/

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De vez em quando, a Paula entrincheirava-se junto à grande vidraça da
cozinha da sua casa para manter sob a mira o que ia acontecendo no estaleiro,
mais acima. Um dia, vi-lhe crescer desmesuradamente a indignação. “O que foi,
Paula?”, perguntei-lhe. “Preparam-se para fazer merda, sempre mais merda”,
disse-me. Vestiu o fato cinza de Pierrot com bolas pretas estampadas que ficará
sempre para mim como o seu uniforme dos tempos do cancro, e que ainda hoje
conservo religiosamente, cobriu a careca com o capuz e voou, mais uma vez,
ladeira acima para enfrentar a trupe.
Não toda a trupe, mas o Antero em particular pois era o mais qualificado
e responsável na ausência do empreiteiro. Já trabalhara no estrangeiro,
evidenciava algum profissionalismo, embora de fôlego curto. “Ó Antero, o que
é que estão a fazer”?, indagava a Paula disfarçando mal a irritação. O
escaqueirar de paredes parou por momentos, o rádio seboso entupiu e fez-se
silêncio. A trupe escutava. Falou o Antero: “Estamos a alargar as janelas como
nos mandaram fazer”, mostrando um ar de espanto sincero. “Diga-me lá, a casa
não foi alteada em uns bons dois tijolos? E então, as janelas não têm de subir
para mantermos a proporção? Estavam baixas, talvez até demasiado baixas,
porque a casa era baixa, não é?”.
O Antero olhava para as paredes, olhava para a Paula, passou a mão
pelo pescoço e disse: “Pois, parece que sim”. E a Paula por lá continuou a dar as
instruções que faltavam para repor a obra nos gonzos. No dia seguinte já se
viam resultados. Os rasgões nas paredes subiram como deviam e as janelas
começaram a ganhar uma forma mais equilibrada. No meio de todo o
sofrimento e desta loucura mansa, a Paula mantinha a sua reserva de
inteligência e a sensibilidade estética intactas. Só a paciência ia ficando mais
fanada, o que se aceita.
Outros personagens da trupe comportavam-se de forma pantomineira,
como o Cantarolas. Postado no topo da casa, comandava a tarefa de colocar as
telhas, despejando asnidades e cantoria a torto e a direito. O reportório não era
muito variado, mas o recital arrastava-se durante tempo demasiado. No final
do dia, não só o entulho aumentava, como pelos nossos ouvidos tinham
passado demasiada música pimba e brejeirices. A Paula compensava os
estragos psicológicos ouvindo música dos Himalaias. Quanto a mim, apontava
para o Crispim, o café da terra, para beber a cerveja gelada a que julgava ter
direito pela paciência de buda.
Quando havia necessidade de reforçar efectivos, a dona da obra
procurava alojamento semanal para os homens num parque de bungalows
próximo. Ficavam bem acomodados e assim poderiam continuar se não
entrassem em desvarios, como temíamos. Fosse pelo trabalho duro e longe das
famílias, fosse porque a vontade de entornar mais uns copos apertava, o certo é
que rapidamente foram expulsos do bungalow porque certa vez tinham farrado
a noite toda e tudo vomitado. No dia seguinte, pelo menos dois não apareceram
no monte.
A trupe sabia do cancro e até realizou, como extras à empreitada
principal, algumas pequenas obras urgentes para tornar mais confortável a
casa, e a vida, da Paula. Agradeceu-se a compreensão, procurou-se esquecer os

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excessos. Quando saíamos do monte, a Paula de turbante ou com um capuz na
cabeça, havia como que um silêncio respeitoso em alguns cumprimentos
matinais. Mas a desolação à volta e as obras a passo de caracol não melhoravam
o estado de espírito de quem, à tardinha, regressava das sessões de
quimioterapia ou de longas viagens para realizar exames em hospitais. As obras
arrastar-se-iam por mais um ror de tempo, o cancro não dava tréguas e o monte
mudava visivelmente de atmosfera.

Desespero

Dia de Ikea. A Paula queria comprar e instalar um exaustor novo, manter


as coisas a funcionar numa aparência de normalidade, e fomos a Lisboa. Lá
percorremos a via aparentada à do ratinho de Skinner, sequestrado numa
célebre caixa de experiências desenhada por aquele psicólogo americano. Entra-
se na loja azul e amarela por uma ponta giratória, palmilha-se um longo
percurso labiríntico assinalado por setas no chão, guinadas à direita e à
esquerda por falsos caminhos que desembocam em recantos expositivos e que
nos obrigam a voltar atrás, por vezes com alguma frustração. A saída faz-se
atravessando o grande armazém das prateleiras empinadas como zigurates de
Alfragide. No final, deve exibir-se satisfação pela recompensa proporcionada
pelo experimento. Pegar, pagar e andar. Para o monte, montar o exaustor.
Manhã cedo, no dia seguinte, a Paula abriu a caixa de cartão que
continha o aparelho, retirou a esferovite, alinhou as peças no chão e começou a
decifrar as instruções. Deu voltas ao folheto, leu e releu, impacientou-se e
começou a barafustar contra o Ikea que imagina sempre um cliente ideal,
dotado, para fazer o trabalho que antes fora do marceneiro ou do canalizador. E
ela até já dera provas, noutras ocasiões, de que era especialmente hábil para os
trabalhos manuais, o seu armário de ferramentas impressionava qualquer um.
Desta vez, a dificuldade não era apenas montar o aparelho, era incrustá-lo
milimetricamente no armário de parede da cozinha, por cima do fogão,
compatibilizar níveis, ligações, tubagens.
A Paula mantinha-se em estado de ebulição mental acentuado, a
explosão emocional fazia-se anunciar. Solícitos, eu e a mãe, procurávamos
contribuir com alguma sugestão útil, um relance inesperado que abrisse portas
ao entendimento do puzzle e que pusesse o exaustor a funcionar. De repente, a
Paula deu um berro de exasperação e disse que a cancerosa o faria sozinha, sem
ajuda de ninguém, nem que para isso tivesse de se fechar em casa um dia
inteiro ou mesmo uma semana. Pôs-nos literalmente na rua, sem finezas. De
narizes e ouvidos espetados na porta, esperámos durante algum tempo por um
sinal de acalmia. Nada. Trancou porta e janelas, imagino que com a cabeça a
martelar o cancro e o cancro a martelar-lhe a cabeça, certamente numa angústia
indizível que só ela conheceria.
De vez em quando, ouvíamo-la praguejar. O Ikea ainda não tinha ido ao
tapete, e por KO, para nosso alívio. A meio do dia aproximei-me, com as
cautelas de quem pisa erva seca. “Isso vai?”. Nada. Ao escurecer voltámos,

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sempre de mansinho: “A coisa vai?”. Nada, nem um pio. Noite dentro,
subitamente, uma luz forte irradiava através da porta da rua, entretanto aberta.
“Habemus exaustor”, disse para comigo. Ousámos aproximar-nos, entrámos
timidamente e lá estava ele, pacífico, no lugar onde deveria ter nascido inteiro
para bem de todos nós. A Paula, mais tranquila, quase afável, pergunta-nos:
“Querem jantar?”. A corda apertada que se lhe enrolava ao pescoço afrouxara,
por agora já não a sufocava.
Imagino mal o que lhe terá passado pela cabeça, o que terá sofrido
naquela embate com o cancro por interposto exaustor, aparelho irrisório que,
para ela, talvez já de pouco servisse dentro de um ano, que era o prazo de vida
decretado por uma oncologista do IPO de Lisboa. Como acontecia, aliás, com
quase tudo o que desejara com amor e de que, compungidamente, era agora
obrigada a abdicar – a sua horta biológica, a saboaria e cosmética artesanais, as
feiras onde fazia clientes e amigos, as viagens que esperava ainda realizar, as
auroras que queria ver nascer. A Paula sabia que tudo o que fazia trazia o selo
de quase-póstumo, mas fazia-o, senão restava-lhe a depressão e a submissão
antecipada ao halo negro da morte.
A névoa de loucura que continuava a pairar sobre o monte adensava-se.
Ficávamos os três – a Paula, eu e a mãe – cada vez mais isolados, entregues a
nós mesmos, e ao cancro. Só a Teresa, com a sua amizade sincera, viria, uns
meses mais tarde, adoçar o quotidiano de invernia da Paula.

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cT3N2bM1

O que poderá ser este “cT3N2bM1”? Uma fórmula química? Um vírus?


Um asteróide? Um novo míssil de Pyongyang? Não, apenas um dos vários
estadiamentos – o último, aliás – por que passou o cancro desde que foi
referenciado em Julho de 2016. E há ainda a classificação própria da Paula,
muito mais severa para a altura (“o meu cancro não tem cura, estadio IVc, sou
uma doente terminal”), que ela estabelecia em função dos sintomas que
sobrevinham, das muitas leituras científicas sérias que ia fazendo e, sobretudo,
da sua fina intuição.

Um hepatologista crispado

Para me meter com ela e soprar momentaneamente para longe a negrura


galopante, atirava-lhe com a “Karnofsky Perfomance Scale Index”, uma escala
internacional que permite classificar os pacientes de acordo com o grau de
desempenho funcional. Quanto mais baixa é a percentagem de desempenho,
pior o prognóstico de sobrevivência nas doenças mais graves. Em Abril de
2017, três meses antes de morrer, quando fomos ao instituto CUF–Porto em
busca de acolhimento para um ensaio clínico, a Paula estava seguramente
perto dos 80%, pois, segundo a tal tabela de Karnofsky, “era capaz de levar
uma vida normal e trabalhar, e também não tinha necessidade de cuidados
especiais”. Nada mau, para quem vira recentemente uma Junta Médica emitir
um atestado de incapacidade multiuso de 95%, a ser reavaliado em 2026; isso
mesmo, no absurdo ano de dois mil e vinte seis. As queixas da Paula
advinham, sobretudo, dos efeitos persistentes que a quimioterapia lhe
trouxera, como por exemplo a neuropatia periférica que a fez perder
sensibilidade nas mãos e atrapalhava a sua vida diária (um simples abotoar os
botões de um casaco era uma tarefa difícil e demorada de realizar).
Tudo tem um começo, a dificuldade maior está em situá-lo com precisão.
Como e quando nasce um tumor, sobretudo aqueles que não dão sinais
perceptíveis senão já tardiamente? Falar em causa única é enviesado, ou mesmo
em causas, no plural. Há factores convergentes, com pesos certamente desiguais
no despontar de um cancro. A Paula era fumadora, desde os catorze anos,
embora, nos últimos tempos, tenha reduzido muito o consumo, sem que isso
tivesse algo a ver com suspeitas de cancro. Passou a consumir tabaco de enrolar
e fumava parcimoniosamente, porque queria viver melhor, menos fatigada,
com mais energia para a vida.
A Paula tinha também hepatite C e fazia o acompanhamento regular da
evolução da carga viral e da extensão e progressão da fibrose hepática. O
resultado da última elastografia hepática realizada em Janeiro de 2016, no
hospital S. Bernardo, em Setúbal, e que lhe atribuía um grau F2 numa escala
que vai de F0 (sem fibrose) a F4 (cirrose), não era alarmante (embora

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recomendasse o início de tratamento), como poderia acontecer em estadios mais
avançados e se o espectro da cirrose assomasse. Recordo o que me contava ela
sobre as duras conversas que manteve no hospital de Lisboa com um conhecido
hepatologista. Quanta pressão foi exercida para que tomasse um medicamento
chamado Interferon, substância antiviral que actuava contra o vírus da hepatite
C, mas de modestos resultados e pesadas consequências na saúde geral de
pessoas infectadas.
Recusou sempre, mesmo sob a ameaça velada de que, recusando-se a
seguir o parecer do médico e o protocolo terapêutico, faria pouco sentido o
seguimento em hospital. Por outras palavras, ou levava aquilo a sério, tal como
ele lhe propunha, ou não o fazia perder tempo pois havia doentes cooperantes a
tratar. Ponto final. Evidentemente, esta era a mensagem subliminar, não o que
se fazia ouvir, se bem que, para o espírito intuitivo que era a Paula, a linguagem
facial dissesse outra coisa. O dogmatismo e a retaliação não são apenas típicos
de fortalezas oncológicas, estão inscritos no habitus profissional de parte
substancial da classe médica e na cultura dos seus departamentos. Imagino este
hepatologista passeando-se, hoje, com uma pasta carregada de lustrosos e
totalmente eficazes fármacos de novíssima geração, responder a alguém que o
lembrasse do outrora por si incensado Interferon: “Isso é já arqueologia
farmacológica, meu caro, mudámos definitivamente de paradigma”.
A Paula pensava pela sua cabeça, avaliava o que lhe podia fazer melhor,
adepta que era da alimentação saudável e da combinação sensata de regimes
alimentares, incluindo o crudívero. Envenenar o corpo, mesmo que por uma
hipotética boa causa terapêutica, deixava-a céptica. Pagara já, e continuaria a
pagar, um preço muito alto. Desde muito jovem, radiosamente jovem, tinha
experimentado vários venenos sociais para acudir ao seu mal de vivre. Agora,
incólume a recaídas durante mais de vinte anos, resistia a fazê-lo, mesmo com o
álibi da cura. Por essa razão, a Paula decidiu que não tomaria Interferon, iria
monitorizar a evolução da hepatite C e aguardar por novas moléculas mais
eficazes e com menos efeitos negativos que fizessem valer a pena, mesmo que a
contragosto, revisitar o mundo dos químicos.
Neste relacionamento sempre crispado com o hepatologista, o que
acabou por nunca lhe ser explicado – e deveria, se autêntico diálogo houvesse –
era o mais importante: o seu sistema imunitário encontrava-se diminuído por
anos de luta contra o vírus da hepatite C e isso era uma vulnerabilidade real
que, por si ou em combinação com outros factores, abriria a porta a problemas
tão graves como um cancro. Mas o risco em que a Paula incorria sem
tratamento, mesmo se com a carga viral controlada, nunca lhe foi exposto
cristalinamente, nunca tal entrou como variável de peso que talvez a fizesse –
sim, deixemos a dúvida pairar, porque com a determinação da Paula nunca se
sabia – repensar a sua opção de recusa da terapêutica disponível à época.
Desafortunadamente, prevaleceu o patético braço de ferro em detrimento
daquela informação vital, e a ampulheta não parou, com a Paula interessada
sobretudo em ganhar tempo e medir com regularidade a sua carga viral, agora
no hospital S. Bernardo, em Setúbal.

21
Muitos anos mais tarde, em Setembro de 2016, logo na primeira consulta
com o oncologista no hospital do Sul ficaria razoavelmente evidente que a
vulnerabilização do sistema imunitário por via do vírus da hepatite C, e não
tanto o tabagismo, seria a causa mais provável para o tumor, o qual terá
hibernado durante anos até chegar ao grau de virulência agora exibido.

Clínicos de banda estreita

O relato que a Paula faz sobre o laxismo médico nas unidades locais de
saúde por onde passou antes de saber que tinha cancro é, para dizer o mínimo,
agoniante. Reportando-se a Outubro de 2015, quase um ano antes do
diagnóstico preliminar de cancro, detectava ela “dois caroços no pescoço, já de
tamanho considerável e duros”. E indignava-se: “A médica do centro de saúde
ignorou. Perante o meu ar preocupado até pareceu ficar ofendida como se eu a
estivesse a pôr em causa”. Na opinião desta médica, tudo apontava para um
problema de tiróide e o seu olhar clínico de banda estreita ficava-se
exclusivamente por aí, sem adiantar cenários alternativos para despiste.
Se os médicos não valorizam e interpretam competentemente sintomas,
porque o farão os doentes, como acontecia com a Paula, imersos muitas vezes
em complicados problemas familiares e profissionais? E a Paula prossegue o
seu relato: “O tempo passou, Novembro, Dezembro...”. Morre-lhe o pai em
Janeiro de 2016, agravaram-se-lhe os sintomas, começando a sentir “dores de
cabeça lancinantes, tensão alta”. Os exames prosseguem sempre sem nada de
conclusivo. Em Abril de 2016 é a vez de outro médico alinhar pela mesma bitola
de negligência e desvalorizar as adenopatias reveladas numa ecografia ao
pescoço. O relatório merece ser parcialmente transcrito e apreciado. Diz o
seguinte: “Em localização submentoniana laterocervical anterior e posterior
esquerda observam-se múltiplas adenopatias (cerca de dez, entre os 18 mm e os 7
mm) (…)”. Quanto à tiróide, são identificados “nódulos nos lobos esquerdo (11
mm) e direito (7,7 mm)” (itálicos nossos).
Tudo aponta para que, mais uma vez, tenha sido a tiróide a merecer o
foco da atenção, permanecendo as “múltiplas adenopatias” suspeitas numa
espécie de penumbra, desvalorizadas. “Disse-me para ir fazendo o controlo”,
fosse lá o que isso queria dizer. No mês seguinte, pouco satisfeita com a
indiferença deste médico, consegue finalmente uma TAC ao pescoço, com
contraste. O resultado só o conhece em Junho de 2016 “entre consultas adiadas
por falta do médico ou dias de greve”. Mas já o tinha adivinhado no rosto da
técnica que fez o exame: “Perguntei-lhe se sabia logo se era maligno ou não.
Disse-me que sim, que sabia. No fim do exame perguntei-lhe e vi no rosto dela
que era maligno, embora ela me tenha dito que não via nada”.
Como insiste a Paula no seu relato, ficou a conhecer o que se passava
“não pelo que os médicos me explicaram mas pelo que procurei de
informação”, partindo do zero, ou antes, dos crípticos relatórios de exames
entretanto realizados. Ironia das ironias, a sua tiróide, objecto de tanto desvelo

22
por parte da primeira médica, continuava de boa saúde, recomendava-se, e não
a incomodou até ao dia em que morreu de cancro na hipofaringe.
Queixava-se a Paula de que durante todo este tempo o seu pescoço tinha
sido apalpado uma única vez, e mesmo assim com alguma relutância. Com
tantos doentes por médico nos centros de saúde, faltando portanto tempo e, às
vezes, vontade para um maior envolvimento pessoal, os diagnósticos perdem
qualidade, acuidade, o corpo vivo do doente é apenas traduzido para imagens
que, também elas, se equivocamente interpretadas, nos encaminham para o
abismo evitável das notícias que não gostaríamos de ouvir tão demasiado tarde.

Almas gémeas

No meio de toda esta compreensível perturbação e tumulto mentais


faltavam-lhe almas gémeas, pessoas com o mesmo tipo de tumor, que viviam o
que a Paula vivia e a quem ela pudesse perguntar, com frontalidade, o que lhes
tinha acontecido e quais os antecedentes, como se tratavam e que sintomas as
perturbavam, por que instituições tinham passado e que memórias guardavam,
como viviam o pesadelo dia a dia, que repercussões registavam nas suas vidas e
na vida dos seus próximos, e o que esperavam ainda.
A Paula apresentou o seu caso no sítio do “Careca Power”, que seguia
regularmente. “Careca Power” é o nome de um grupo de entreajuda criado na
rede social facebook, que proporciona a partilha de experiências e aproxima
pessoas no seu combate ao cancro. O grupo nasceu da vontade de ostentar “sem
vergonhas, nem complexos, uma cabeça careca fruto de um tratamento de
quimioterapia”8, oferecendo também um ponto de encontro para quem vive os
efeitos secundários da quimioterapia e da radioterapia. “Careca Power”
inspirou-se num movimento lançado em 2013 por Marine Antunes, criadora do
blogue e da associação Cancro com Humor. A Paula chegou a ir a um almoço
de convívio deste grupo, mas admitia que a esmagadora maioria das pessoas
que o integravam tinha cancro na mama, por isso, se o grupo lhe permitia
conhecer pessoas despertas para a realidade oncológica, dificilmente
encontraria aí a sua alma gémea.
Como ela repetia muitas vezes, o cancro nos seios piriformes da
hipofaringe atingia sobretudo pessoas de idade e homens – se bem que a
percentagem de mulheres e de jovens esteja a aumentar, em boa parte devido a
hábitos de vida actuais. Para a Paula, aparecer-lhe um cancro destes, a ela,
mulher e ainda na casa dos quarenta anos, só podia ser um erro de casting ou
mais uma das sortes aziagas de que a história da sua vida era fértil.
À míngua de almas gémeas em carne e osso com quem pudesse conviver
ou simplesmente dialogar numa base de lúcido enfrentamento do cancro, sem
subjugação a especialistas, terapêuticas ou instituições, a Paula levava em boa
conta dois sítios online que seguia com regularidade. Um, “The website about

8 http://visao.sapo.pt/actualidade/sociedade/capa-da-visao-inspira-criacao-de-grupo-de-apoio-careca-
power-no-facebook=f825970

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Kevin's cancer experience”, de Kevin Watkins9, que sofria de um tumor no seio
piriforme exactamente como a Paula; o outro, “My voice”, de Itzhak Brook10,
igualmente a braços com um cancro da cabeça/pescoço. E ainda conhecia bem a
experiência pessoal de cancro da cabeça/pescoço contada por um escritor
português, Paulo Varela Gomes, com muita vivacidade e sem opacidades, num
artigo intitulado “Morrer é mais difícil do que parece”, publicado na revista
Granta11. Naturalmente, a Paula colheu e organizou com minúcia muitos outros
relatos ou diários online, e respectivos casos clínicos, sobre pessoas com cancro
da cabeça e do pescoço. Se apenas referenciamos aqui estes três é porque são
exemplares de várias maneiras.
Comecemos pelo primeiro dos sítios que frequentava. Tal como lhe
acontecera a ela, também Kevin Watkins descobriu acidentalmente um caroço
no pescoço. Em Setembro de 2007 fora-lhe diagnosticado um cancro no seio
piriforme, uma cavidade na parte inferior da faringe, já no grau IVa. Watkins
realizou várias cirurgias, uma laringectomia parcial em que, nas suas palavras,
“lhe foi retirada metade da laringe [caixa vocal], incluindo a corda vocal direita
e tecido de suporte”, bem como efectuada uma dissecação em que todos os
gânglios linfáticos da parte direita do pescoço, desde o ouvido até ao queixo,
foram igualmente removidos. E acrescenta: “Fiz seis ciclos de quimioterapia e
trinta sessões de radioterapia. Após meses de cansativos e humilhantes
tratamentos, fico feliz em saber que já não tenho cancro”, embora devesse
continuar a ser seguido regularmente durante os cinco anos seguintes até ser
considerado curado.
Ao criar “The website about Kevin's cancer experience” procurou manter
actualizados os seus leitores sobre diagnósticos, tratamentos cirúrgicos e de
radioterapia, bem como outras questões relevantes. A sua nota final de 21 de
Abril de 2016 é: “It's Over, and we WON!” [“Acabou, e VENCEMOS!”]. E faz a
resenha da odisseia até esse dia: “Depois de 5 cirurgias, 36 tratamentos de
radioterapia, 6 semanas de quimio e 9 anos de consultas para seguimento da
evolução do cancro, saí hoje do consultório do Dr. Weinstein pela última vez
(…)”. Ouviu da boca daquele médico: “Não há razão alguma para voltar mais
aqui, está curado”. Júbilo de quem tivera, à partida, uma esperança de
sobrevida a cinco anos de apenas 21%, júbilo que partilhámos, eu e a Paula,
mesmo sabendo que, como cantava Neil Young, “rust never sleeps” [a ferrugem
nunca dorme].
Itzhak Brook, médico e professor na universidade de Georgestown, nos
EUA, também ele laringectomizado, criou o seu blogue com o tristemente
apropriado nome de “My voice” para disponibilizar informação sobre o cancro
da cabeça/pescoço, detalhes sobre a vida de um laringectomizado e ainda
livros e vídeos relativos à sua experiência pessoal. Recuperaremos em seguida
extensos, mas úteis, excertos do que Brook escreveu sobre dois tópicos que
desenvolve quer no seu blogue, quer nos livros “My voice: A physician's

9 http://www.kevinhascancer.com/index.html
10 http://dribrook.blogspot.pt/
11 Revista Granta nº 5, Maio de 2015, dedicada ao tema “Falhar melhor”
(http://www.comunidadeculturaearte.com/morrer-e-mais-dificil-do-que-parece/).

24
personal experience with throat cancer” e “The laryngectomee guide expanded
edition”. Por um lado, a sua condição de médico e, simultaneamente, de
paciente com cancro no pescoço; por outro lado, a enumeração contundente dos
erros – uns menores outros de consequências mais graves – que viu serem
cometidos por médicos e enfermeiros nos períodos de internamento.
Conta Brook, referindo-se à sua provação como médico e
laringectomizado: “Estas são algumas das minhas experiências pessoais quando
passei por diversos procedimentos cirúrgicos, incluindo uma cirurgia cervical
radical para a remoção de um carcinoma de células escamosas do seio piriforme
(...). Como profissional de doenças infecciosas - com interesse especial em
infecções da cabeça e do pescoço - eu tinha uma vasta experiência em doenças
otorrinolaringológicas. No entanto, quando fui exposto a situações novas,
diferentes e desafiadoras como paciente com cancro no pescoço, tive que lidar
com elas como paciente e não como médico”.
Quanto às negligências e erros médicos e de enfermagem que observou,
retemos alguns que, quer a Paula quer eu próprio, não deixámos também de
notar nas enfermarias das vários unidades de saúde por onde passámos e de
que daremos conta nos capítulos “QuimioRadiolândia” e “Um invulgar e súbito
decair”. Penso serem ilustrativos e de interesse justificado para quem venha a
passar por situações idênticas. Diz Brook:

–“O primeiro erro ocorreu quando os meus cirurgiões – utilizando laser –


removeram erradamente tecido da cicatriz em vez da lesão cancerosa.
Levou uma semana antes que o erro fosse descoberto por exames
patológicos e obrigou-me a passar por uma cirurgia a laser adicional dez
dias depois para remover o tumor;
–Alguns cirurgiões eram impacientes e sempre apressados para terminar
as visitas aos doentes, especialmente quando tinham cirurgias
programadas. Obtinha a atenção dos cirurgiões seniores por apenas
alguns minutos por dia e raramente examinavam qualquer parte do meu
corpo para além das zonas abrangidas pela cirurgia. Auscultavam os
pulmões e o coração apenas se lhes pedia;
–As enfermeiras também foram inconsistentes nos exames. Comecei a
preparar uma lista de perguntas antes das visitas dos médicos, mas
raramente tive a oportunidade de escrever uma pergunta de follow up ou
solicitar um esclarecimento. Isso foi muito frustrante porque esperava
ansiosamente pelos cirurgiões e sentia-me ignorado pelas muitas
perguntas sem resposta;
–Também encontrei médicos com má vontade e rudes. Em uma ocasião,
pedi a um residente sénior para limpar meu tubo de traqueostomia
obstruído. Relutantemente, fê-lo (...), mas disse: ‘Nós é que damos as
ordens aqui’, e saiu do meu quarto. Senti-me humilhado, impotente e
com raiva (...)”.

Fazendo uma espécie de balanço conciliador, diz ainda: “Apesar destas


apreensões estou muito grato a todos os enfermeiros e médicos que cuidaram

25
de mim e mobilizaram o melhor das suas capacidades. A maioria dos meus
cuidadores foi muito compadecida, e eu pude sentir carinho genuíno. Não
obstante os erros de alguns, estou profundamente grato a todos”. Quanto a
outros erros da enfermagem, Brook enumera alguns:

–Não lavar as mãos ou usar luvas quando indicado;


–Medir a temperatura oral sem colocar o termómetro numa capa
plástica;
–Tentativa de administrar medicamentos por via oral e não pela sonda
nasogástrica;
–Administrar uma dose incorrecta da medicação;
–Não ligar o botão de chamada e não registar uma ordem verbal;
–O erro mais grave foi terem-me alimentando prematuramente por via
oral com uma semana de antecedência face ao tempo recomendável. Isto
continuou por 16 horas e só o meu persistente questionamento chamou a
atenção de um cirurgião sénior. Tudo ocorreu devido à falta de
comunicação de ordens verbais.

A conclusão final que Brook retira: “Todos estes acontecimentos fizeram-


me pensar no que acontece com pacientes que não têm formação médica e que
não sabem como evitar um erro. Felizmente, apesar desses erros, não sofri
qualquer consequência a longo prazo. No entanto, tive que ficar
constantemente em guarda e vigilante, o que era exaustivo”.
O que liga os dois casos atrás relatados à Paula? Porque seguiria ela com
tanta atenção os sítios criados por Watkins e Brook? Talvez pelo facto de se
referirem a pessoas com cancro da cabeça/pescoço e, ponto intrigante, ambos
laringectomizados – o que a Paula sempre disse que não deixaria que lhe
fizessem. Sobrava-lhe curiosidade e compaixão genuína pelos actos de
mutilação por via cirúrgica – não há maneira menos crua de o dizermos – e o
cortejo de incapacidades futuras que lhes está associado. Ao permanecer atenta
a estes dois testemunhos de mutilação talvez ela quisesse repisar,
incessantemente, que estava certa quando afirmou, desde muito cedo, que
nunca sofreria uma tal agressão, mesmo que o seu cancro fosse considerado
operável. Acredito que nunca aceitaria a mutilação, parcial ou total, tal como
não aceitou prolongar a quimioterapia para além dos quatro ciclos ou iniciar
sequer tratamentos de radioterapia.
Terminaremos este ponto sobre almas gémeas com Paulo Varela Gomes
(1952-2016), professor, autor de artigos e livros na área de que era especialista –
a História da Arquitectura e da Arte, cronista em diversos jornais e revistas,
como o jornal Público, e ainda autor de documentários de televisão. Escreveu
vários romances, sendo o último, “A guerra de Samuel” (que é na verdade um
livro de contos), publicado após a sua morte. João Pedro Vala, numa recensão
crítica12, assinala que “neste livro póstumo, a descoberta da morte e do

12A recensão pode ser lida em: http://observador.pt/2017/04/29/paulo-varela-gomes-contra-o-anjo-do-


senhor/

26
cristianismo leva a que Paulo Varela Gomes esteja constantemente a remoer as
mesmas perguntas através de histórias em que é a sua própria vida (ou melhor,
a sua própria morte) que está em causa, aparecendo o cancro por toda a parte (é
um cancro que vitima a professora ressuscitada, em “A Ressurreição da
Senhora Professora” e Dulce, em “Apoptose”, é o cancro uma das principais
pragas enumeradas em “Até ao Fim” e “O Jardim do Éden” e tem um papel
central em “A Baleia”)”.
Um cancro no pescoço, inoperável, era o que atormentava Paulo Varela
Gomes. E também a Paula. Eis um ponto em comum. Outro, era a inteireza de
carácter com que enfrentavam a doença, a não submissão à lógica dogmática e
autoritária das fortalezas oncológicas (“os campos de morte da oncologia”, diz
ele sem sombra de metáfora). Igualmente comum era a recusa da parafernália
de soluções quimio-radioterápicas oferecidas pela medicina convencional, o que
aconteceu desde o início com Paulo Varela Gomes, e logo após as primeiras
duas sessões de quimioterapia com a Paula (as outras duas restantes sessões já
só as suportaria deitada numa maca e, julgo, fazia-o mais por mim e pela mãe
com quem tinha acordado – após duras conversas nas Termas de Monchique –
realizar essa tentativa).
Incoincidência flagrante entre os dois é a conversão religiosa de Paulo
Varela Gomes. Mas voltavam a coincidir na meditação profunda e na
espiritualidade que acompanham quem vive, como ambos viveram, estados de
perplexidade interior face à doença e aos alicerces ontológicos que sustentam as
nossas passadas no mundo. A Paula insistia que queria “partir para o
Universo”, deixando vir ao de cima uma consciência desperta para um certo
panteísmo e para alguns princípios e ensinamentos do budismo tibetano, mas
não havia da sua parte nenhuma ligação a uma religião instituída nem ao que
poderemos chamar uma crença. Amor às pessoas, aos animais e à natureza
davam sentido à sua aventura humana que o cancro brutalmente encurtou.
Para mim, a Paula era uma sensível franciscana laica.
Em “Morrer é mais difícil do que parece” encontrou a Paula as pegadas
mentais, psicológicas e o sofrimento que em breve seriam igualmente os seus.
Paulo Varela Gomes morre cerca de um ano antes de o cancro da Paula ser
diagnosticado. Ler com atenção o seu artigo permite-nos perceber muito do
que, embora não verbalizado pela Paula, adivinhávamos fazer parte do filme
mais íntimo que se desenrolava na sua consciência acossada de dia e de noite. A
este artigo de Paulo Varela Gomes regressava a Paula frequentemente,
descobrindo, à medida que o seu próprio cancro progredia, novos detalhes, às
vezes mínimos – inquietações, dúvidas, humores ou sintomas – que lhe tinham
escapado em anteriores leituras. Reproduzimos, em seguida alguns excertos:

“Tenho um cancro de grau IV. Tudo começou quando acordei


uma manhã com um inchaço do tamanho de uma amêndoa no lado
esquerdo do pescoço (...). Quarenta e oito horas depois fiz a obrigatória
TAC cervical (...). Quando o radiologista veio falar connosco, acabou
nesse preciso instante a vida que levávamos juntos há mais de duas
décadas. O radiologista tinha a expressão macambúzia de quem

27
apresenta os pêsames a uma família enlutada: cancro na orofaringe com
tumor na cadeia linfática cervical posterior e metástases no pulmão. Não
operável. Tratamentos em doses muito altas de quimio e radioterapia
para, daí a dois a quatro meses, deixar de poder comer ou respirar.
Decidimos que nunca me submeteria aos tratamentos da medicina
oncológica, às suas armas: as clássicas (cirurgia), as químicas (drogas) e as
nucleares (radioterapia). Estas armas destroem as defesas próprias do
organismo e aceleram frequentemente a sua degradação. Já vi suficientes
doentes de cancro entregues nas mãos da oncologia para tremer de horror ao
pensar que poderia suceder-me o mesmo (...). Mais tarde, algumas instituições
com nomes que tilintam como lingotes de ouro vieram dizer-nos o
mesmo: não havia nada que valesse a pena fazer (...). A Patrícia jurou que
não me impediria de morrer, e até me ajudaria se fosse necessário. Como
disse Plotia ao poeta em A Morte de Virgílio, de Hermann Broch: ‘A
morte fecha-se a quem está só, o conhecimento da morte apenas se
desvenda à união de dois seres’ (...).
Tenho recorrido a muitas medidas práticas para evitar a sorte
ditada pelos oncologistas. A primeira foi fazer-me acompanhar, desde
algumas semanas depois da TAC, por um médico homeopático (os
médicos encartados não acham graça nenhuma a que se chame médico a
um homeopata, mas tenham santa paciência). Sob sua orientação
comecei por mudar radicalmente de regime alimentar (...). Além disso, o
médico foi prescrevendo suplementos alimentares e medicamentos
homeopáticos. Devo à homeopatia a qualidade dos mais de mil dias de
vida que levo de vantagem sobre os médicos oncologistas (...). As minhas
análises foram durante muito tempo boas, e o meu aspecto muito
diferente da maioria dos desgraçados que frequenta os campos de morte da
oncologia (...).
Todavia, não houve um único dia em que não tenha pensado na morte.
Nem um. (...). A vida é muito menos cheia de prosápia do que a morte. É
uma espécie de maré pacífica, um grande e largo rio. Na vida é sempre
manhã e está um tempo esplêndido. Ao contrário da morte, o amor, que
é o outro nome da vida, não me deixa morrer às primeiras: obriga-me a
pensar nas pessoas, nos animais e nas plantas de quem gosto e que vou
abandonar. Quando a vida manda mais em mim do que a morte, amo os
que me amam, e cresce de repente no meu coração a maré da vida. Cada
lágrima que me escorre por vezes pela cara ao adormecer, cada aperto de
angústia na garganta que sinto quando acordo de manhã e me lembro de
que tenho cancro (...).
O médico homeopata nunca me prometeu um milagre, e a minha
saúde começou a piorar em Janeiro de 2014, cerca de um ano e meio
depois do diagnóstico oncológico. Pouca coisa, ao princípio: algumas
dores no pescoço, na cabeça e na garganta, mais cansaço, problemas
intestinais (...). Houve semanas piores, outras melhores, mas o tumor do
meu pescoço foi crescendo, rebentou como um pequeno vulcão de pus
(...). E, de repente, ia morrendo: uma grande hemorragia despertou-me a

28
meio de uma noite de Julho de 2014, encharcado no sangue que brotava
de uma veia que o tumor do meu pescoço pôs a descoberto e
enfraqueceu. Desmaiei imediatamente (...). Eu e a Patrícia tínhamos
jurado que morrerei aqui, em minha casa, e que nada me fará embarcar
no carnaval de luzes da ambulância para ir morrer a um hospital. Esse
juramento mantém-se (...).

Nota: Artigo de Paulo Varela Gomes (2015), “Morrer é mais difícil do que
parece”, Revista Granta nº 5 dedicada ao tema “Falhar melhor”. A
sequência de excertos e os itálicos são da nossa responsabilidade.
(http://www.comunidadeculturaearte.com/morrer-e-mais-dificil-do-
que-parece/).

A vida imprevisível dos tumores

Voltemos uma vez mais à cronologia dos acontecimentos que a Paula


alinhou no seu post “A vida prega-nos destas...” para referir que os episódios
constantes nesse alinhamento são uma gota de água na infinidade de conversas,
emails e mensagens por telemóvel que trocávamos diariamente sobre a sua vida
de doente oncológica, ou de doente terminal com um cancro na hipofaringe,
metastizado, como ela preferia dizer quando subestimavam quer a gravidade
do seu estado, quer a dor psíquica. Alguns exemplos de emails trocados com
ela e com amigos, e onde, com angústia, tacteávamos ainda o desconhecido:

29.7.16
De Paula para Rogério
Este é o resultado da primeira TAC. A indicação de uma nova TAC, agora ao
tórax, não augura nada de bom. Tenho medo.

29.7.16
De Rogério para Marina
A Paula preparava-se para, finalmente, remodelar a casa lá no Alentejo,
construir uma oficina para os seus produtos artesanais e... zás... tudo parece
indicar que tem cancro na hipofaringe (os sintomas há meses que eram
evidentes, mas a médica desvalorizava, associando caroços e rigidez na
garganta a problemas de tiróide). Mas uma TAC detectou-o (um T2N3Mx),
agora vai fazer TAC ao tórax e uma biopsia no IPO.

31.7.16
De Rogério para Marina
Como sabes, a cabeça da Paula não pára e ela consultou a “tabela de
estadiamento” de cancro na hipofaringe da Sociedade Americana de Cancro
para ver a gravidade. O resultado deixa-nos de cabelos em pé: o estadio actual
seria IV, o mais elevado. Pediu, por outro lado, através de uma amiga que
trabalha no Centro da Fundação Champalimaud, a opinião de dois patologistas

29
e estes disseram que a tabela não é para aplicar linearmente e, após análise da
TAC, consideram que o grau é “apenas” II. Enfim, terá de ser um bom e
experimentado especialista de cancro do pescoço a pronunciar-se na presença
de todos os exames.

3.8.16
De Paula para Rogério
Acordo sempre por volta das 5h da manhã...

3.8.16
De Rogério para Paula
Dou-te três breves exemplos das confusões que pode provocar ouvir opiniões
tão diversas: a) Lembras-te, quando perguntaste ao otorrino do IPO porque não
pedia uma ressonância magnética ele respondeu que “com um RX já devemos
ver”? Ora, o que leio na norma de procedimentos da direcção geral de saúde
para os tumores malignos na cabeça/pescoço é: “[Pedir] radiografia simples do
tórax nos estadios precoces, privilegiando-se a TC torácica para os estádios III e
IV. Em casos seleccionados e nestes estadios pode ser pedida uma tomografia
por emissão de positrões (PET)”. O que devemos concluir? Que estamos num
estadio precoce ou que não querem gastar dinheiro com exames mais caros? É
claro que preferimos a primeira hipótese e poderíamos ver aqui um bom sinal!;
b) E quanto à localização do tumor: glote, supra-glote, hipofaringe? Onde está
ele alojado exactamente? Sabemos? Ainda não. E cada um destas localizações
tem procedimentos normalizados e até estadiamentos diferentes; c) Qual o
estadio e o grau? Apenas temos o “palpite” do técnico que elaborou o relatório
da TAC. Mas estará o otorrino do IPO de acordo, é compatível com o que viu na
laringescopia? Nada sabemos, não é? Portanto, estadios e graus são – no
momento presente – literatura genérica, abstracta. Aguardemos, Paula.

4.8.16
De Paula para Rogério
Se soubesses o que sinto, às vezes, quando estou sentada num café a ouvir
banalidades. É inimaginável. Neste momento caminho com a sombra da minha
morte ao lado, e se for confirmada a malignidade tudo mudará radicalmente
daqui para a frente. Nada será como dantes, nada. Tenho andado relativamente
calma e às vezes dou por mim a chorar de felicidade por poder olhar o sol,
sentir as ondas. O planeta terra é algo de maravilhoso, mas isso eu já sabia
antes. Agora é só mais intenso. Sinto-me com força para lutar mas há muita
coisa que terei de ir varrendo neste caminho menos percorrido. Ontem li uma
coisa no facebook, daquelas parvoíces tentadoras de ler. Dizia para pegarmos
no livro mais próximo que tivéssemos de nós e ler a última frase da p. 85. Sabes
o que dizia? “Em redor do pescoço usava um pedaço de cabedal entrançado por
entre grandes garras, pertencentes, talvez, a um lobo, se bem que aquele deva
ter sido o maior que muitos homens alguma vez viram, ou teriam gostado de
ver”.

30
A Paula refere-se aqui à sua cadeia ganglionar cervical invadida pelo
cancro (“em redor do pescoço usava um pedaço de cabedal entrançado por
entre grandes garras”) e que, aumentando de volume, lhe dava a medida da
progressão da doença. Os “caroços no pescoço” eram o barómetro do estado do
cancro e também dos altos e baixos dos seus medos e humores.
O que é um cancro na hipofaringe, e mais precisamente no seio piriforme
esquerdo, como era o caso da Paula? A hipofaringe é a parte superior do
esófago que envolve a laringe. O cancro na hipofaringe é um tipo de cancro
pouco comum e atinge sobretudo homens e mulheres com idades superiores a
60 anos, com maior incidência nos homens do que nas mulheres e sendo muito
raro nas crianças. A hipofaringe compõe-se de três partes (não incluindo a
laringe): a) os seios piriformes direito e esquerdo: b) a zona pós-cricóide (junção
faríngeo-esofagiana); c) e a parede posterior da faringe. Na América do Norte,
entre 65% e 85% dos carcinomas (cancros) localizam-se nos seios piriformes,
sendo em geral muito frequente o aparecimento aqui de múltiplos tumores
primários.
Os cancros na hipofaringe tendem a espalhar-se na mucosa e aparecer
em localizações distantes do sítio primário. Por essa razão, e também pela densa
rede linfática na zona, um tumor apenas localizado na hipofaringe constitui
uma excepção. Os cancros da hipofaringe são geralmente agressivos e com uma
relativamente elevada percentagem de metástases quase sempre precoces. Mais
de 50% de pessoas com cancro na hipofaringe têm nódulos cervicais (caroços)
na altura em que o cancro é detectado e uma boa parte apresenta como sintoma
uma massa no pescoço. Também se verifica, embora como sintoma mais tardio,
uma mudança de voz (rouquidão, por exemplo) em resultado de lesões no seio
piriforme ou na zona pós-cricóide, o que habitualmente quer indicar invasão da
laringe. Um amplo estudo realizado com doentes com cancro da laringe e
hipofaringe revelou que 87% dos doentes com o tumor localizado nos seios
piriformes encontravam-se nos estadios III ou IV.13
A pensar no leitor menos familiarizado com a vida imprevisível dos
tumores, vamos sumariar alguns aspectos relacionados com o sistema de
estadiamento para o cancro da hipofaringe da “American Joint Committee on
Cancer”14: T(umor) / N(ódulos) / M(etástases). Tomaremos como exemplo o já
nosso conhecido “cT3N2bM1” (estadio do cancro da Paula e também título
deste capítulo):

–T(umor) indica o tamanho do tumor primário e se este se disseminou


dentro da hipofaringe e para os tecidos adjacentes. O “T” é acompanhado de
um número (0 a 4) para descrever o seu tamanho. Pode também ser-lhe
atribuída uma letra minúscula “a” ou “b” com base na ulceração e na taxa
mitótica, ou seja, a velocidade a que se reproduzem as células do tumor.
–N(ódulos) indica se o tumor se disseminou pelos gânglios linfáticos
regionais. O “N” é também acompanhado de um número (0 a 3) e também de

13 Seguimos de muito perto o site do National Cancer Institute (https://www.cancer.gov/types/head-and-


neck/hp/hypopharyngeal-treatment-pdq)
14 https://cancerstaging.org

31
letras minúsculas “a”, “b” ou “c” consoante o tumor atinge um único, dois ou
mais nódulos; para que lado do pescoço progride (o mesmo lado em que se
localiza o tumor ou o oposto); e ainda o seu diâmetro.
–M(etástases) indica se as células malignas se espalharam para outras
partes do corpo distantes da sua origem.

No caso da Paula, o “cT3” significa que o tumor cresceu para o


mediastino e esófago, tinha um diâmetro superior a 4 cm e afectava o
movimento das cordas vocais (rouquidão). Quanto ao “N2b”, significa que o
tumor se disseminou para dois ou mais gânglios do mesmo lado do pescoço
onde se localiza o tumor e nenhum dos gânglios tinha um diâmetro maior do
que 6 cm. O “M1” indicia que o tumor chegara a partes distantes do corpo como
sejam o fígado, os intestinos e mesmo aos ossos. Da combinação destes três
grupos – T, N, M – resulta a atribuição de um estadiamento global da doença
que, no caso da Paula, começou por ser um IVa (T3N2M0) e, posteriormente,
evoluiu para um mais avançado IVc (Qualquer T, Qualquer N, M1).15

Identificação de um tumor

Esbocemos agora uma concisa identificação do tumor da Paula com base


nos exames de TAC, biopsia, exame broncoscópico e PET realizados em 201616.

–A primeira TAC, de Julho de 2016, pedida ainda no centro de saúde,


revelou um tumor com o perfil “T2N3Mx”, ressalvando-se no relatório que este
diagnóstico teria de ser validado histologicamente, ou seja, através de biopsia.
O “Mx” indica que não era possível concluir pela existência de metástases.
–A biopsia ao seio piriforme esquerdo, em Agosto de 2016, revelaria um
“carcinoma pavimento-celular invasor, G2, com invasão linfovascular.
Puncionadas as adenopatias, obtiveram-se, em todas, esfregaços constituídos
quase exclusivamente por células pavimentosas atípicas. Diagnóstico:
metástases de carcinoma celular em todos os gânglios linfáticos avaliados”. A
Paula tinha pela frente um cancro já mestastizado.
–O exame broncoscópico, conhecido em Outubro de 2016, identificou,
por sua vez, “volumosas adenopatias, nomeadamente na carina e na árvore
brônquica à direita do brônquio principal”. Quer dizer, os pulmões foram
também afectados.
–Quanto à primeira PET, concluía, em Setembro de 2016, pela fixação
anómala de células tumorais “no cordão cervical; em ambos os lados do
mediastino; no espaço laringofaríngico à esquerda (passível de corresponder a
lesão primária); e ainda a presença de pequenos nódulos em ambos os campos

15 Para a elaboração deste ponto, recorremos à American Cancer Society (https://www.cancer.org) e à


ONG - Instituto Oncoguia/Portal Oncoguia (http://www.oncoguia.org.br).
16 Neste e noutros casos em que a terminologia técnica se adensa, remetemos de novo o leitor para a secção

“Léxico e siglas” no final do livro.

32
pulmonares”. Esta primeira PET confirmava os resultados dos restantes
exames.
–Para tornar ainda mais perceptível a gravidade da situação oncológica
da Paula, vamos dar um salto no tempo e apresentar, desde, já o resultado da
terceira e última PET, fazendo ao longo dos capítulos seguintes, e quando for
oportuno, menção a exames intermédios que dão conta de uma “resposta
parcial” após quatro ciclos de quimioterapia. Esta última PET, realizada em
Junho de 2017, cerca de um mês antes da morte da Paula, veio comprovar a
extrema agressividade do cancro e a sua muito rápida progressão. Transcreve-
se um excerto do relatório, talvez algo extenso, mas necessário para se
compreender a verdadeira dimensão do plano inclinado pelo qual, então,
resvalávamos (itálicos nossos):

“(...) Doença metastática ganglionar nas seguintes topografias: a) cervical


esquerda, com maior volume e extensão; b) progressão da doença ganglionar
mediastínica; c) observam-se focos lesionais novos em sede visceral,
nomeadamente duas lesões em relação com ansas intestinais do intestino
delgado projectadas no flanco esquerdo (causa da hemorragia
intestinal?)17; d) inúmeras lesões hepáticas, traduzindo doença M1 hepática
extensa; e) pequenas lesões indicativas de doença M1 osteomedular sem
risco de fractura patológica; f) actualmente com progressão de doença,
anemia (...). Conclusão: Face ao exame anterior, em Fevereiro de 2017,
observa-se progressão de doença M1, ganglionar e visceral (hepática e
osteomedular)”.

Este relatório foi como um murro imenso no estômago da Paula, a braços


já com níveis recorrentes de hemoglobina na ordem dos 7 ou 8 (quando o valor
de referência para mulheres adultas se situa entre 12 e 16), anemia e melenas
(sangue escuro nas fezes) que obrigariam a sucessivas transfusões de sangue e a
exames invasivos, incluindo enteroscopia por videocápsula no intestino
delgado, de que falaremos noutro capítulo.

A identificação do tumor à data dessa terceira e última PET é, então, a


seguinte:

–Carcinoma pavimento-celular do seio piriforme esquerdo da


hipofaringe;
–cT3N2bM1;
–G2 invasivo18;
–Estadio IVc;

17 Observação muito importante e a que voltaremos quando circunstanciarmos o internamento da Paula


no hospital de Lisboa, fazendo exames endoscópicos sucessivos, mas infelizmente inconclusivos, para
explicar as perdas de sangue e a anemia persistente, seguidas de transfusões sanguíneas compensatórias.
18 “G” descreve o grau do tumor e estabelece se as células são normais ou diferenciadas quando

observadas ao microscópio. Células malignas com um maior grau de diferenciação tendem a crescer e
disseminar-se mais rapidamente. Neste caso, “G2” significa células moderadamente diferenciadas.

33
–Metastizado para as cadeias ganglionares, traqueia, esófago,
mediastino, fígado, intestino delgado e ossos.

Feita a identificação do tumor, recuemos uns largos meses na máquina


do tempo. Em Agosto de 2016 estamos ainda às portas da fortaleza de Palhavã,
em Lisboa. Vamos entrar nessa fortaleza oncológica já no próximo capítulo.

34
A FORTALEZA DE PALHAVÃ

O IPO, em Lisboa, fica no sítio de Palhavã19. Consultado um dicionário


de toponímia portuguesa, palhavã quer dizer “casa coberta de palha sem
forro”. Uma falsa fortaleza, portanto, roída por terrores, pesadelos e
sofrimentos indizíveis, mas ainda assim uma verdadeira fortaleza oncológica.
Foi aqui, na fortaleza-mãe de todas as fortalezas oncológicas do país, que a
Paula teve a primeira observação por um otorrinolaringologista, os primeiros
exames e consultas de oncologia, a consulta multidisciplinar de decisão
terapêutica e, por fim, uma proposta de tratamento.

Um anjo azul

Entramos pela primeira vez no edifício principal da fortaleza de Palhavã.


A recepção é morna, um segurança mais ou menos indiferente a pedir
identificação e uma senhora da LPCC a sugerir acessos e atalhos para
chegarmos mais rapidamente ao serviço pretendido naquele dédalo de
direcções.
Viramos à direita e encontramo-nos num corredor longo e estreito com
cadeiras encostadas à parede, de ambos os lados. A meio, uma guarita
minúscula – chamemos-lhe assim pois rima com fortaleza e, em boa verdade,
assemelha-se – que dificilmente diríamos ser o guiché de atendimento. Um
punhado de gente procura informações e aglomera-se à volta da guarita.
Deambulam por ali vários doentes internados, em pijama, uns com gazes a
envolver a cabeça ou o pescoço – as partes mais visíveis do corpo –,
confundindo-se com os que, vindos de fora, aguardam ser chamados. Um
homem jovem com o pescoço oculto por gaze tenta, com dificuldade, chegar à
guarita. A Paula diz-lhe para passar à frente, ele agradece e entabula conversa.
Procurou percebê-lo, simplesmente, humanamente, sem sombra de faz-de-
conta, a Paula era assim. Conversa olhos nos olhos com o jovem, que se exprime
por monossílabos e mímica, e muita dificuldade: “Estou a aprender a falar
depois da operação”. O diálogo prossegue aos solavancos, por mais algum
tempo, junto da guarita e à medida que ia avançando a fila que, entretanto, se
tinha formado. Quando ficámos sós, ela comentou: “A mim não me mutilarão,
nunca!”.
Nas cadeiras do corredor as pessoas mantinham-se mais ou menos
ensimesmadas, silenciosas. De vez em quando alguém rompia o silêncio e
iniciava uma conversa com o vizinho do lado. A mãe da Paula, que nos
acompanhou, procurava ganhar a atenção de um sujeito grande, já entradote,

19O IPO-Instituto Português de Oncologia foi fundado em 1923 pelo médico Francisco Gentil e outros
colegas. Para mais informação, ver o artigo “Gentil Martins, uma luta apaixonada”, jornal Público, 23 de
Abril de 2001 (https://www.publico.pt/2001/04/23/jornal/francisco-gentil-uma-luta-apaixonada-
157028).

35
para lhe recomendar a leitura de um livro sobre o cancro, explicando
apologeticamente o conteúdo e como seria importante lê-lo. O sujeito acenava
com a cabeça, com ar meio ausente, dando a entender que já o conhecia, mas
ficaram-me dúvidas se saberia sequer ler ou se o garrote do seu cancro lhe
consentiria pensar em livros. E preferiu desviar o rumo da conversa: “Vai ver, a
sua filha não tem nada de grave, daqui a pouco sai da consulta e estão lá fora” .
O meu olhar procurava distracções, romper aquele horizonte opressivo.
De repente, vinda do fundo do corredor, inteiramente vestida de azul,
contrastando com o cinzentismo do vestuário predominante, uma jovem
aproximava-se, parecia deslizar pela laje em movimentos lentos, muito magra e
pálida, alheia ao que a rodeava, olhar virado para dentro, dir-se-ia aterrada.
Passou por mim e seguiu em frente, para outros corredores distantes. Por duas
ou três vezes mais vimo-la a vaguear pelos serviços a que também íamos. Uma
imagem perturbadora que guardamos, ambos, para sempre, dos poucos dias
que passámos pelo IPO. Nunca chegámos à fala com ela. Chamámos-lhe o Anjo
Azul, encarnava na perfeição a fragilidade humana naquela fortaleza
oncológica.
Quando, num outro dia, nos deslocámos também pela primeira vez ao
edifício de medicina, seguindo as instruções de atalho de uma prestável
senhora da LPCC, almas atormentadas fumavam coladas à porta do serviço.
Lançam valentes baforadas para o ar e impregnam o interior do cheiro forte a
tabaco. Como aquelas almas inquietas se deslocam continuamente de um lado
para o outro, as portas automáticas estão sempre a abrir e fechar, mas ninguém
protesta, timidamente ou com azedume. Médicos e enfermeiros igualmente
adictos do esfumaçar são mais discretos, não ficam de plantão à entrada. Vi-os
passearem-se para cá e para lá no arremedo de jardim fronteiro à fachada
principal do hospital, pirisca nos lábios, falando animadamente ao telemóvel.
As enfermeiras e auxiliares preferiam sentar-se em grupinhos nos bancos de
madeira e viam-se, então, fumarolas a subir no ar. O cancro é para os outros.
Uma passagem de Franz Kafka, em “O Castelo”, bailava na minha
cabeça como possível chave de acesso à compreensão daquela fortaleza
oncológica repleta de contradições e que intimida, mesmo à distância, só de
pronunciar o nome.

“— Está a olhar o castelo?, perguntou, mais brando do que K. havia


esperado, mas num tom de quem não aprovava o que K. estava a fazer.
— Sim, disse K., sou de fora, estou aqui só desde ontem à noite.
— Não gosta do castelo?, perguntou rápido o professor.
— Como?, replicou K. um pouco desconcertado e repetiu a pergunta
numa forma mais suave: Se gosto do castelo? Por que acha que não gosto?
— Nenhum forasteiro gosta, disse o professor”.

36
A conta-gotas

De novo no corredor do edifício principal, colados à guarita de


atendimento. “Primeira vez?”, perguntou a empregada. Que sim. Papel para
aqui, indicações para ali, e uma informação: “O doutor já a chama”. Ouvido o
nome, entrámos num gabinete minúsculo com finas divisórias amovíveis,
daquelas que deixam escutar as conversas nos gabinetes contíguos. Os médicos
nem sempre se davam ao trabalho de fechar as portas. Nesse dia, encontrava-se
um casal no gabinete do lado, ouvíamos distintamente através do tabique –
podia ser de palhavã? – o que conversavam com o médico. Calhou-nos uma boa
notícia de cancro em remissão. As vozes ganhavam outro colorido à medida
que o médico falava, desenvolto, provavelmente também ele aliviado pelo
desenlace. A sorte esteve connosco, o que pusemos na conta de um bom
prenúncio.
Um seco “bom dia” acordou-nos para a realidade do gabinete do lado de
cá. O otorrino sénior chegara e pôs-se a examinar fixamente a TAC no ecrã do
computador. A Paula, empoleirada numa cadeira alta, olhava-o na diagonal.
Segundos, ou foram minutos, de espera que pareciam nunca mais acabar. A
Paula, a quem nada escapava, viu-o fazer “Tssst” entre dentes e um quase
imperceptível esgar no rosto que procurava ocultar com a mão esquerda, e
adivinhou o que ele estava a ver. Quis confirmar. “Qual a sua opinião,
doutor?”, perguntou-lhe. Ele hesitou, a ganhar tempo e acabou por falar sem se
comprometer, discurso redondo: “Na sua laringe está algo que não deveria lá
estar”. Não lhe arrancámos mais nada e apenas o voltámos a ver para pedir
cópia da autorização dos exames que a Paula tinha assinado quando da
primeira consulta. Escreveu a Paula: “Ele não gostou, mas permitiu-me ver o
documento. No entanto, recusou-se a dar-me a cópia e disse-me que a receberia
em casa – o que nunca veio a acontecer”.
O que se seguiu naquele mês de Agosto, e por algum Setembro adentro,
foram correrias afogueadas entre o Alentejo, onde a Paula vivia, e Lisboa, ao
ritmo de marcações erráticas e descoordenadas de exames e consultas. Parecia,
e tivemos depois a certeza, que ninguém olhava para o processo como um todo,
ponderava as consequências da descoordenação, se preocupava em
acompanhar a pessoa fragilizada na labiríntica fortaleza, deixando-a entregue à
angústia da doença e à lógica das marcações aleatórias em serviços que não
pareciam fazer esforço algum para intercomunicarem. Silêncio a partir daí, só
interrompido por vozes apressadas a notificar telefonicamente para consultas e
exames, debitando secamente dias e horas.
Em boa verdade, deve-se dizer que estas insuficiências organizacionais, e
também de comunicação, não são um exclusivo da área da saúde. O diagnóstico
de Hugh Heclo20, pela sua transversalidade, aplica-se às sociedades ocidentais
contemporâneas e não pode deixar de nos interpelar. Escreve Heclo: “Sem
pessoas capazes de pensar e agir institucionalmente de modo a torná-las reais, as

20 Hugh Heclo (2008), On thinking institutionally, London: Paradigm Publishers, pág. 129 (tradução e
itálicos nossos).

37
instituições são verdadeiramente pouco mais do que formalidades inabitadas, vazias (...).
Ninguém, realmente, aí vive (...). Tais instituições tornam-se meros espaços para
transacções fugazes e auto-centradas sem qualquer sentido mais profundo e
duradouro”. A fortaleza de Palhavã, como o serviço nacional de saúde
globalmente considerado, “optimiza recursos na óptica do sistema”, reduz
complexidades à mínima expressão, coloca as pessoas e os seus problemas no
lugar conveniente da cadeia de prioridades. E nada garante que esse lugar seja
um dos primeiros. Enfim, no caso da fortaleza de Palhavã, uma “formalidade
vazia” remediada pela dedicação pessoal de alguns médicos, enfermeiras e
auxiliares, e certamente também pela generosidade de voluntárias e voluntários
da LPCC. Alguns exemplos, já a seguir.

–Acabáramos de sair de uma consulta marcada para a manhã desse dia,


cedo, e para a qual viéramos, na véspera, mais uma vez do Alentejo, pagando
viagem e alojamento. Ainda mal nos sentáramos num dos restaurantes frente ao
hospital, e toca o telemóvel: “Srª D. Ana Paula, tem exame-de-qualquer-coisa-a-
que-não-pode-faltar depois de amanhã”. A Paula reclinou-se na cadeira,
incrédula e pronta a zurzir na fortaleza: “Mas o que se passa? Ninguém integra
a informação sobre o doente, procura concentrar exames, acham que o tempo é
inesgotável e o dinheiro para torrar? Nomeiem um tutor, um seguidor do
doente, chamem-lhe o que quiserem. Parem de despachar guias de marcha
avulsas, ignorantes do que se passa no serviço ao lado. Apresentem-nos uma
cara, um nome, uma pessoa que olhe para mim, por mim, que se preocupe
comigo, me diga que está a fazer tudo para me poupar sofrimento, tentar
salvar-me a vida”. A Paula acalmou-se, lentamente, pediu sumos de fruta,
coisas saudáveis. O empregado, atencioso, confidenciava que já trabalhava ali
há mais de dez anos. A princípio fazia-lhe impressão a vizinhança, sabia o que
ia acontecer a tantos clientes que atendia e alguns com quem até convivia, mas
agora já aceitava com naturalidade.

–A Paula teve também uma consulta com um médico já idoso, via-se que
fora colocado naquele serviço para se ocupar antes da reforma. Conversa de
surdos, para encher mais uma ficha e produzir um simulacro de ligação ao
doente. Nada de autêntico, de verdadeiro interesse pela situação da pessoa
(perdendo-se a oportunidade quer de ver finalmente surgir a figura do médico
de rosto humanizado e acompanhante do doente no período inicial, quantas
vezes traumático, na instituição, quer a oportunidade para recolher informação
com verdadeiro valor clínico mobilizável no futuro, sobretudo em emergências).
“A senhora tem que doenças, toma que medicamentos, é alérgica a quê, há
familiares com cancro...”, tudo isto ostentando no rosto o maior enfado. Inútil,
três vezes inútil, aquele arremedo de interesse pelo doente que se esgotaria
quando fechássemos a porta atrás de nós. Ouvia-se a risada sarcástica do cancro
a ecoar pelos corredores da fortaleza.

–A convocatória para uma consulta de hepatologia alimentou-nos a ilusão


de que tinham finalmente lido o dossier clínico, antecipavam-se. Iríamos

38
discutir algo que nos preocupava desde o início: como conciliar tratamentos
quimoterápicos com o tratamento da hepatite C, avaliar incompatibilidades.
Mas esperava-nos uma nova conversa de surdos com uma especialista em
infecciologia. O quê? Hepatite C, cancro da cabeça/pescoço, incompatibilidade
de tratamentos, que não, não sabia de nada, nem sequer percebia porque nos
tinham mandado para ali. A conversa decorreu amena mas de novo inútil. No
entanto, por linhas tortas alguma coisa se escreveria direito nessa consulta:
ouvimos pela primeira vez os nomes de medicamentos mais recentes para curar
a hepatite C – Daclatasvir, Sofosbuvir, etc – e não apenas aqueles que se
prescreviam porque ficavam mais baratos e havia que esgotar stocks das
multinacionais farmacêuticas, o que foi bem útil quando discutimos, mais tarde,
o tipo de tratamento da hepatite C no hospital S. Bernardo, em Setúbal. A Paula
combatia em duas frentes, cancro e hepatite C, e com aliados destes na fortaleza
de Palhavã o futuro enegrecia.

–Para realizar uma biopsia, a Paula teve de ficar internada, pois como lhe
explicaram, o tumor estava numa posição de acesso difícil. Quando acordou da
anestesia e a pudemos visitar, tive tempo para observar que as janelas da
enfermaria daquele 5º piso não podiam ser abertas. A constatação levou-me a
levantar hipóteses: os mais desesperados tenderiam a fugir, como os reclusos,
descendo as paredes da fortaleza com cordas improvisadas feitas com lençóis?
Atirar-se-iam da janela no zénite do seu desespero à procura de um suicídio
apaziguador? Como a Paula não conseguia falar, comunicávamos por papel e
lápis. No dia da alta, quando nos despedíamos da enfermeira sénior que tão
bem tratou a Paula (a fortaleza também tem gente boa, é isso que a vai
mantendo funcional e vagamente humanizada), ouvimo-la proferir o mais
extraordinário dos conselhos: “Fujam, fujam daqui enquanto podem”.
Saímos e fomos ao Frutalmeidas, em Alvalade, comer algo macio que
não ofendesse a sua garganta dorida. A Paula pediu queijo fresco e abacate.
Que não, disse o empregado, essa combinação não estava prevista na carta, ou
era uma coisa ou outra. Apeteceu-me esganá-lo ou mandá-lo para a fortaleza de
Palhavã sentir na pele o que era uma impossibilidade a valer. Entretanto, a
Paula veio para casa sem medicamentos. “Vim para casa sem medicação,
esqueceram-se de os mencionar na papelada que me entregaram. Tive de ligar
para o IPO e uma enfermeira mencionou-os, então, por telefone”. Um dia
perfeito.

–Consulta multidisciplinar de decisão terapêutica, prevista no protocolo de


procedimentos para cancros da cabeça e do pescoço. Nova viagem vindos do
Alentejo, custos de deslocação, alojamento, alimentação e outras despesas para
três pessoas. A cara de espanto da Paula quando lhe disseram que não podiam
propor tratamento algum porque precisavam ainda de uma TAC ao tórax e de
uma PET. A Paula não aceitava que lhe fossem infligidas, uma e outra vez, estas
displicências. Escreveria ela mais tarde: “Esses dois exames paguei-os eu
porque seriam semanas de espera. Querem saber o que senti no IPO? Esta está
quase a morrer não vale a pena gastar muito com ela”. Nunca fez nenhuma PET

39
no IPO. No final desta falhada-consulta-para-decisão-terapêutica, quando a
Paula se queixou a um otorrino que integrava o grupo, dizendo-lhe que
continuava com uma impressão na garganta, a qual se agravara após a biopsia,
este disse-lhe: “Então, a senhora com um cancro desta gravidade está
preocupada com isso?”. Mundos paralelos, só comunicantes se as posições de
cada um se invertessem, digamo-lo com alguma ponta de perversidade.

Para o Sul

A Paula pedira à Marina, enfermeira durante vinte anos, que a


acompanhasse à consulta com a oncologista porque assim sentia-se mais segura
naquele dia D em que a cólera dos deuses, pressentia-o, se iria abater sobre ela.
Apenas por duas ou três vezes, durante todo o seu tempo de doente oncológica,
eu não estive com a Paula em tratamentos ou consultas médicas onde quer que
se realizassem. Esta seria uma dessas vezes. A breve conversa com a médica foi-
me descrita por ambas, mais tarde.
— “Conte-me a sua história clínica. Vive em Lisboa?”, perguntou a
oncologista, ainda nova, na casa dos trinta anos, ar sério, contrariada, como se
pensasse para si própria que lhe calhara mais um caso que não sabia por onde
pegar.
— “Não vivo em Lisboa, vivo no Alentejo”, disse-lhe a Paula. E contou
alguns pormenores do surgimento do tumor.
— “Olhe que a quimioterapia implica ciclos, o ideal é estar por Lisboa”,
comentou a médica.
— “Mas como, se tenho a minha vida lá em baixo. Não posso ficar no
Alentejo?”, replicou-lhe a Paula.
— “Não gosto nada de ter em tratamento doentes que não vivam em
Lisboa porque depois aparecem-me aqui deitados abaixo pelas longas viagens.
E também não gostaria nada ter de lhe fazer uma traqueostomia urgente porque
está com falta de ar”, ouviu-a desabafar sem sombra de tacto.
Entretanto, a Paula fizera uma ou outra observação sobre exames a
conta-gotas nesta fase inicial e o sentimento de andar perdida pelos corredores
do IPO, sem informação clara e o acompanhamento e coordenação próximos de
pelo menos um médico com rosto visível. A voz da oncologista tornou-se,
então, ainda mais seca: “Se não está satisfeita com a forma como tratamos os
doentes aqui, porque é que não continua lá por baixo, no Alentejo”? A fortaleza
de Palhavã falara uma vez mais pela boca daquela médica.
A proposta terapêutica com que saiu do IPO resume-a a Paula em três
linhas: “Cuidados paliativos, diminuir ou retardar o aparecimento de sintomas,
talvez nem um ano de vida. A minha vida acabou ali, uma desesperança sem
nome. Uma solidão sem tamanho”, escreveu ela.
A propósito deste episódio, cabe aqui uma nota final sobre os recorrentes
e sentidos agradecimentos – por parte de doentes ou dos seus familiares – a
serviços de oncologia, médicos, enfermeiros ou auxiliares, que vemos quer em
anúncios publicados nos jornais, quer em textos emotivos nas redes sociais ou

40
ainda nas páginas electrónicas das próprias instituições de saúde. Como este,
por exemplo: “(…) O dia de hoje é de enorme felicidade. Recebi a notícia que
mais esperava. O meu filho concluiu com sucesso dois anos de quimioterapia
(…). O J. é um dos DUROS (Doentes que Ultrapassam a Realidade Oncológica
com Sucesso). Quero agradecer (…) a todos os profissionais do IPO de Lisboa
pelo carinho e empenho profissional”. Ou ainda este: “(…) Adormeci a rir e
acordei com dores, náuseas, mas logo as minhas dores foram aliviadas por estes
Anjos brancos tão humanos (…), fantásticos (…), os Anjos do IPO (…), desde os
médicos aos auxiliares”.
Quem assim agradece, constatámo-lo amiúde na pesquisa que
efectuámos, são quase sempre sobreviventes do cancro e fazem-no também
quase invariavelmente referindo-se sobretudo aos serviços internos da fortaleza
oncológica que lhes coube em sorte e onde são regularmente seguidos, isto é,
serviços de oncologia de hospitais gerais ou de hospitais diferenciados como é o
caso dos IPO’s. Também aqui a história é escrita pelos vencedores, entenda-se,
pelos sobreviventes. Raramente, mas mesmo muito raramente, se ouvem
agradecimentos ou elogios na fase preliminar – diria no calvário inicial – do
embate com fortalezas oncológicas.
Podemos afirmar que o que vimos e ouvimos no período que passámos
pela fortaleza de Palhavã não corresponde aos anúncios públicos de famílias
agradecidas ao corpo médico e enfermeiras, ou aos panfletos e às práticas bem
intencionados da Liga Portuguesa contra o Cancro. Estar optimisticamente
incluído na taxa de sobrevida, isto é, vir a curar-se ou tornar o cancro uma
doença crónica mas tratável, nada tem a ver com “estás condenada e és um
custo”. Da massa anónima de não-sobreviventes resta uma voz quase
inaudível, apenas fragmentos dispersos de que este livro faz parte. Quem fala
por eles, do modo como foram acolhidos, acompanhados (aliás,
desacompanhados), muito em particular no início da sua caminhada sem
regresso? Merecem ser repisadas e objecto de meditação as palavras da Paula
anteriormente transcritas e que correspondem ao que eu próprio também
observei e senti: “Referenciada para o IPO, tive a primeira consulta dia 3 de
Agosto de 2016, mas aí já sabia muito da minha doença. Agosto arrastou-se,
lento e longo. Exames às pinguinhas, todas as semanas. Nunca houve uma
resposta, uma explicação, um apoio. Só, completamente só, com a angústia de
ter um cancro e, ao que eu adivinhava, em estado já muito avançado”.
E fugimos enquanto podíamos, e voámos para o Alentejo, seguindo o
conselho daquela enfermeira do IPO, mal sabíamos nós que para outra fortaleza
oncológica, embora não fosse isso que nos pareceu de início.

41
UMA CARAVANA QUARTEL-GENERAL CONTRA O CANCRO

Em Setembro de 2016 comprámos uma caravana com o apropriado nome


de “Südwind” (Vento do Sul) e fui viver para o monte da Sete Amendoeiras,
perto da casa da minha amiga. Montámos na caravana, eu e a Paula, um
quartel-general para enfrentar um cancro já metastizado e a angústia branca dos
dias que viriam. Aí planeámos e organizámos as deslocações a instituições de
saúde por todo o país, e mesmo ao estrangeiro, para consultas e tratamentos. Aí
líamos e discutíamos artigos científicos, ensaiávamos incursões na medicina
convencional, complementar e alternativa. Tentava-se tudo, em todo o lado. A
geografia das deslocações foi absolutamente esgotante, mas a caravana
continuaria um lugar só nosso e para a nossa luta.

Monchique

Depois dos dias de névoa de loucura no monte e dos primeiros embates


com a fortaleza oncológica, a Paula achou que merecíamos um tempo de
descanso, bem longe, ainda mais para Sul, talvez numas termas, em
Monchique. Descansar e meditar sobre os tempos que aí vinham. Na última
quinzena do mês de Setembro partimos, levando na bagagem um programa de
banhos e tratamentos para cinco dias.
A viagem foi longa, escolhemos propositadamente estradas que não
largavam as serranias, cume acima e cume abaixo, com as narinas dilatadas
para receber os aromas fortes que tanto euforizavam a Paula. Já próximos de
Monchique, fizemos uma aposta: quem avistasse primeiro a Fóia tinha o direito
de reclamar dos outros um belo jantar. O dia estava quente e o sol fazia cintilar
pinheiros e eucaliptos. Chegados, instalámo-nos na unidade hoteleira.
Estávamos em final de época, já não eram muitos os termalistas. Mas respirava-
se sem esforço e o ar era bom.
Logo na primeira noite, num restaurante das termas, conhecemos uma
figura rara, já idosa, que jantava com o marido na mesa ao lado da nossa. Fiz
nova aposta com a Paula: é uma professora primária. E acrescentei que a voz
pausada, a conversa ciciada mas incisiva, insistente, teclando nos pontos certos,
não enganava ninguém. Afinal, enganei-me, embora ficando próximo. Era
católica, catequista e tinha uma agenda de conversão para quem dela se
aproximasse. Afável, voz meiga e capaz de ouvir, encontrava-se de férias – e
talvez no local certo – para encontros com almas infelizes a quem trazer consolo
espiritual.
Nestes lugares o tempo corre devagar, vai-se fazendo noite, vai-se
jantando, há disponibilidade. A Paula gostava de falar com as pessoas, era
muito sociável quando pressentia naturezas humanas estimulantes. Mais
reservado, eu ia ouvindo a conversa com a professora-primária-catequista.
Como a Paula lhe tinha contado, por alto, a sua situação de saúde, interessou-se

42
por ela, diria antes, pela alma da Paula. Era uma reencaminhadora de almas
sofredoras ou à procura de um sentido para a vida. Naquela noite amena que
coava tranquila, num ápice a conversa já se focava no cancro. Aliás, nos
desígnios de deus para os que têm cancro. Por várias vezes reencontrámos o
casal, por fim deixaram os contactos e o convite para a Paula ir a Fátima
participar num retiro com um certo padre tocado por dom divino. Esta não
seria a única vez que salteadores de almas em sofrimento se aproximaram da
Paula, bem pelo contrário.
Na manhã do dia seguinte, decidimos ir ao alto da Fóia. No caminho até
ao pico, novecentos metros acima, a Paula teria gostado de parar e, como
costumava fazer, cheirar, tocar plantas silvestres como medronheiros,
adelfeiras, urzes e rododendros que por ali crescem. Nunca mais esquecerei
esse dia, no topo da serra, com Portimão e o mar ao longe. A Paula não queria
sair do carro, chorava abismada no cancro. A luz intensa que banhava o alto da
Fóia tornava tudo mais irreal. Não, eu não estava ali, a minha amiga não tinha
cancro e a vida iria prosseguir como a conhecíamos antes. Eu, um tal de
Andrade, sem cancro, e, tanto quanto me parecia, com vista desafogada para o
futuro, que poderia dizer a alguém que, no ponto mais alto da geografia da
nossa viagem, mas não da sua vida, sabia que ia morrer em breve e soluçava
sem consolo? O que dizer, o que lhe dizer? Não trocámos uma palavra durante
todo o tempo que permanecemos no cume e o regresso fez-se também num
mutismo absoluto, envoltos numa paisagem que nem conseguíamos
contemplar.
Nesse dia, à tarde, a Paula, eu e a mãe tivemos uma conversa que ainda
hoje me magoa evocar. O assunto era se ela deveria iniciar, ou não, tratamentos
convencionais, pois, insistia a Paula, as regras estavam viciadas por um tumor
de grau IV e as probabilidades estatísticas de sobrevida, que conhecia bem,
eram quase nulas ou à mercê de um acaso milagreiro. A Paula resistia à
quimioterapia e enumerava argumentos e casos de insucesso, a que se
somavam os muitos efeitos secundários que conhecia de sobra. Ao argumento
respondíamos com contra-argumentos, sempre a apontar para um suposto
“ponto cego” na cabeça da Paula – a dúvida, por mínima que fosse e por onde a
esperança pudesse entrar. A Paula captava essa nossa habilidade e recusava-
nos o direito a usar a palavra esperança. Percebemos. Tinha de ser ela a
pronunciá-la, vinda de nós não a aceitaria. Começáramos a conversa na zona
superior das termas, num sítio tranquilo que rapidamente se encheu de ecos
das nossas vozes cruzadas, desesperadas. A Paula não falava, gritava as suas
razões, derramava a sua ira. Sugeri que fôssemos para um outro local, mais
abaixo, junto à entrada das termas e rodeado de árvores altas. Sossegou um
pouco, mais por exaustão do que por anuência aos nossos argumentos.
Lendo um qualquer manual, como por exemplo o clássico de Kübler-
Ross , que ensina a lidar com pessoas com cancro, aprenderíamos,
21

21
Elisabeth Kübler-Ross (1969/1ª edição), On death and dying. W hat the dying have to teach doctors, nurses,
clergy and their own families, Taylor & Francis. Tradução em português do Brasil ( “Sobre a morte e o morrer”),
editora Martins Fontes, 2017, 10ª edição. Kübler-Ross é uma psiquiatra suíça conhecida por ter estudado o

43
diligentemente, que a Paula superara a fase da negação e encontrava-se algures
na transição da fase da ira para a da depressão, o que, imagina-se, nos
transmitia um imenso consolo – agora, era só esperar pela aceitação e
poderíamos finalmente descansar. Bom senso feito pseudo-ciência, estas
molduras mentais não se aplicavam à Paula – e provavelmente a nenhum ser
vivo complexo. Ela ziguezagueava, fazia inversões ou acelerações inesperadas
na sua velocidade mental, deixava em cacos tais sequências ortodoxas da
normalização e submissão social. A Paula podia viver num só dia todas as fases,
deixando-nos sem bússola com que nos orientarmos face ao cancro.
Depois deste fim de tarde convulsivo, jantámos na vila e ficou decidido o
regresso antecipado ao Alentejo. A Paula precisava das suas coisas, do seu
lugar no monte, das rotinas tecidas para enredar o cancro e torná-lo menos
predador de energia e emoções como acontecia em sítios demasiado longe ou
que, de tão belos, magoavam pela sensação de perda antecipada. Na serra, ela
ficava mais vulnerável à angústia.
Sempre nos intrigaram aquelas pessoas que, com tumores de
malignidade elevada, proclamam o seu carpe diem e decidem levar o gozo da
vida ao extremo, fazer o que nunca antes fizeram, visitar lugares longínquos,
paradisíacos. Exultar. E o cancro? Provavelmente deixam-no com uma baby
sitter ou fazem como a mãe da Paula quando viajava por vários dias – os cães
aboletavam num hotel próprio para animais até ao seu regresso. Mas o cancro é
difícil de acomodar e a instituição que mais se aparentaria a um hotel para
cancros seria a fortaleza de Palhavã, embora lhe possamos também chamar,
como Paulo Varela Gomes, “campo de morte da oncologia”. Estaria certamente
sobrelotada, porque o cancro sitia a fortaleza e despeja mais e mais seres
desafortunados, combativos a princípio, mas desenganados com o tempo,
vergados ao peso dos sintomas e das terapias ultratóxicas capazes de
acrescentar mais tumores ao tumor primitivo.

Uma caravana quartel-general

Durante o ano que vivi na caravana Vento do Sul sempre tive um


pensamento de Zygmunt Bauman rabiscado num papel e pendurado no salão
daquele nosso quartel-general. “Quando a responsabilidade pelo Outro se faz ouvir,
a razão calculadora mantém um silêncio respeitador. Nada tem a dizer; sendo razão,
sabe que não será escutada”. Um guia moral para todas as estações. Estaria com a
Paula até onde o cancro ou a salvação nos levassem, era uma certeza firme. A
razão egoísta não seria escutada. A minha amiga fraterna contaria sempre
comigo como eu contara sempre com ela. Ambos o prometêramos há muito
tempo. E, se invertidas as posições, tenho a certeza que ela cumpriria.
Trazida de Setúbal, a caravana acabou por chegar uns dias após o nosso
regresso de Monchique. A sua entrada no monte revelou-se um episódio
burlesco e memorável. O terreno onde a queríamos não ajudava pois era

comportamento de pessoas com cancros avançados e identificado cinco fases ou estados emocionais no
“ processo de morrer”: negação, ira/raiva, negociação, depressão e aceitação.

44
irregular e rasgado por swales, técnica que a Paula, nos seus muitos
experimentos, importara da permacultura e da agricultura biológica e que
consiste em desenhar valas que acompanham a topografia do solo, facilitando
quer a retenção quer a infiltração da água. Manobrar uma caravana com seis
metros de comprimento e instalá-la naquelas condições era obra.
Felizmente, a trupe das obras ainda andava pelo monte a finalizar a casa
da mãe e, espontaneamente, colaborou. Mais braços para mover a caravana e
cada cabeça a dar ordens, tudo aos solavancos, pontes precárias sobre os swales
para a caravana rolar até alcançar o lugar escolhido, um grande pinheiro de
copa larga que nos ofereceria sombra e frescura. Mas, soubemo-lo de imediato,
que também acolhia ninhos da lagarta do pinheiro, conhecida por
processionária. Os ninhos, envoltos numa rede finíssima de fios brancos
sedosos e quase parecendo pedaços de algodão nos ramos expostos ao sol,
albergavam aquelas hóspedes que desfolhavam sem contemplação a árvore e,
depois, em procissão, se moviam pelo terreno entre Janeiro e Abril de cada ano.
Ao fim de algum tempo acabámos por esquecer a companhia inamistosa, os
milhares de pêlos urticantes que as lagartas libertam e que se espalham pelo ar,
e nenhuma reacção alérgica grave foi registada.
A caravana tinha duas grandes janelas nos topos e outras cinco laterais
que proporcionavam uma visão panorâmica do terreno à volta. Um janelão no
tecto, que abríamos durante o dia e também à noite, deixava entrar brisa e
aromas. Uma noite, o gato Tobias, visita irregular da caravana, como também
da casa da Paula que não apreciava o seu espírito interesseiro, resolveu trepar
pelo pinheiro e aterrar na caravana. Para nosso espanto, vimos a cabeça de um
gato a espreitar lá de cima, curioso. Convidá-lo a entrar pela porta foi a parte
mais difícil já que não sabia como descer das alturas.
Leve, leve e luminoso, era o interior da nossa caravana. Madeiras claras,
sofás e cortinas de xadrez em tons de azul e amarelo torrado transmitiam essa
sensação de leveza e luminosidade. Muitas vezes nos sentámos nos sofás,
diante de uma mesa, a discutir planos de acção contra o cancro e a sondar
caminhos, envoltos pelos sons da natureza. As nossas cabeças pensavam
melhor naquele ambiente não opressivo e desconectado quanto bastava do
resto do monte, como desejávamos.
A Paula combinava dentro de si estados de zanga mas também de
sensibilidade e atenção aos outros. Gostava de brincar. Por isso, às vezes,
anunciava por telemóvel que ia chegar um prato vegetariano à caravana,
preparado já com alguma dificuldade na sua própria cozinha (a mãe
encarregava-se normalmente da alimentação, sobretudo na fase mais adiantada
do cancro); ou que, na casa dela, a que chamava Pensão Estrela, em homenagem
à sua gata dilecta, ia ser servido um café para os hóspedes do monte das Sete
Amendoeiras – para mim, é claro. Colocou mesmo uma sineta na traseira da
caravana com que se fazia anunciar. Ela tinha um sentido apurado de respeito
pela privacidade. Antes de se aproximar da porta, tocava a sineta e aguardava
pelo convite para entrar.
Naquele monte em que pairava a ameaça do cancro, a caravana era um
oásis de tranquilidade, sobretudo à noite, mesmo se as noites eram

45
desassossegadas, à escuta de um qualquer sinal de apreensão vindo de casa da
Paula. A Vento do Sul estava alinhada com a casa, a uns bons cinquenta metros.
Esse alinhamento permitia-me ver a luz na janela do quarto da minha amiga
acesa habitualmente até altas horas da madrugada. E que reconforto isso me
dava. Tanto quanto a ela reconfortava ter a luz da caravana sempre presente, ao
alcance do olhar.
Confidenciou-me um dia que, tendo chegado com a mãe ao monte, já
noite escura, no seu “manchinha vermelha” – assim chamávamos à carrinha de
cor vermelho escuro que comprara recentemente e que viria a conduzir não
mais do que uns escassos milhares de quilómetros – disse-lhe, apontando para a
caravana: “Aquela luzinha quente conforta-me, dá-me confiança. É bom”.
Gostei de saber que com aquela luzinha, afinal, eu lhe sinalizava “Estou aqui,
para ti”. Luz calorosa, símbolo de amizade profunda, mas que também
queríamos farol que iluminasse os dias futuros e mantivesse, tanto tempo
quanto possível, os escolhos da doença visíveis e à distância.
O nome “manchinha vermelha”, com que baptizáramos a sua carrinha
nova, fora inspirado pelo personagem de BD “Mancha Negra” (“Phantom
Blot”), um vilão temível e de aspecto misterioso do universo de personagens de
Walt Disney, conhecido por usar um capuz negro que lhe cobria o corpo todo.
A ideia de lhe chamarmos "manchinha vermelha" tinha também a ver com um
desejo de aventura, partir em viagem de surpresa, ir a todo o lado, sabendo-nos
perseguidos não por detectives de banda desenhada mas por dois personagens
anti-Disneynianos: o tempo e o cancro.
No dia em que a luz na janela do seu quarto se apagou para sempre
acrescentei uma segunda parte àquele pensamento de Zygmunt Bauman
rabiscado no papel pendurado no salão da caravana: “(...) O cuidado com o Outro
vive enquanto o Outro viver e, como insistia [Walter] Benjamin, nem mesmo os mortos
estão a salvo: também eles precisam de protecção (...)”. E é para isso que este livro
também servirá.
Mas encontramo-nos ainda distantes do triste desenlace. Por ora,
saiamos da caravana, pois era tempo de encruzilhadas e decisões inadiáveis.
Estávamos em Outubro de 2016.

Encruzilhada

Para quem nos segue até aqui faltará alguma informação para
compreender a encruzilhada principal, as decisões que era preciso tomar e a
espada de Dâmocles que pendia sobre cada uma delas.
Recordo-me de estarmos sentados na caravana a ler um artigo que
ilustrava bem uma dessas encruzilhadas. Intitulava-se “Challenges in managing
hepatitis C virus infection in cancer patients” [Desafios no tratamento do vírus
da hepatite C em pacientes com cancro]. Pela sua importância, e pela clareza
como colocava em termos precisos o dilema com que nos defrontávamos,
apresentamos em seguida alguns excertos. A leitura e discussão deste e de
outros artigos científicos preparavam-nos para as conversações que

46
mantínhamos com oncologistas e infecciologistas sobre quais as prioridades na
abordagem terapêutica do cancro e da hepatite C. Eram tempos para agir,
mesmo se pelas leituras, não para polir molemente armas:

–Tratar em simultâneo o cancro e a infecção por VHC?

“A infecção pelo vírus da hepatite C (VHC) vem acrescentar uma maior


complexidade ao tratamento de pacientes com cancro (...). A infecção
por VHC pode originar não apenas cancros hepáticos e linfomas não-
Hodgkin (...), mas também afectar o tratamento de tumores malignos por
meio de quimioterapias antineoplásicas (...), sendo por vezes necessário
adiar o tratamento da infecção por VHC até à conclusão da quimioterapia e
remissão do cancro de modo a diminuir o potencial de interacções
negativas entre fármacos (...). No universo dos pacientes em tratamento
da infecção por VHC, os pacientes com cancro obtêm uma resposta mais pobre
do que aqueles que não têm cancro (...).

–Há um padrão de tratamento nestes casos?

Não existe nenhum padrão de tratamento para pacientes com cancro e infecção
por VHC. O tratamento desta infecção pode mitigar riscos específicos em
certos pacientes com cancro. Infelizmente, falta conhecimento baseado
em provas empíricas sobre os efeitos do tratamento da infecção por VHC
em pacientes com cancro (...).

Em alguns casos, a infecção por VHC pode ser erradicada antes do início da
terapia imunossupressora para o cancro. Isto é de particular interesse para os
oncologistas porque a reactivação do vírus da hepatite C pode ocorrer após a
quimioterapia e levar à descontinuação ou à redução da dose de
quimioterapia que potencialmente salvaria vidas (...).

–Que conclusão?

Dada a nossa compreensão clínica limitada sobre potenciais interacções


medicamentosas entre terapêuticas de VHC e quimioterapêuticas, bem
como a tolerabilidade à quimioterapia em pacientes com cancro
infectados por VHC, o tratamento simultâneo do cancro (por exemplo, com
quimioterapia, radioterapia) e da infecção por VHC deve ser evitado (...)”.

Nota: Artigo de Roy A. Borchardt e Harrys A. Torres (2014), “Challenges


in managing Hepatitis C virus infection in cancer patients”, World Journal
of Gastroenterology, 20(11): 2771-2776. A sequência de excertos do artigo,
bem como a tradução e os itálicos são da nossa responsabilidade
(https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3961965).

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O artigo, tacteante nas suas observações, reflectia as incertezas – ou
melhor, o muito desconhecimento na comunidade científica e médica – sobre as
interacções entre as duas doenças, parecendo ora clarificar ora esbater os
contornos da encruzilhada que equacionávamos e onde antecipávamos riscos e
benefícios. Por outras palavras, deixava-nos com as mesmas dúvidas que já
tínhamos antes, as quais não diferiam muito das dúvidas dos médicos, como
veremos já a seguir. O alerta mais perturbador do artigo encontra-se nas suas
linhas finais: “O tratamento simultâneo do cancro (por exemplo, com quimioterapia,
radioterapia) e da infecção por VHC deve ser evitado”. Que opção tinha mais peso?
A opção pela simultaneidade ou pela não-simultaneidade dos tratamentos da
hepatite C e do cancro? Que caminho seguir, seja apoiando-nos nas opiniões da
medicina, seja guiando-nos pela nossa própria intuição?
O relato desta encruzilhada vai implicar três protagonistas centrais,
todos médicos, e o Infarmed, cada um com olhares e pesos institucionais
diferentes: Qual a prioridade de tratamento face ao estado avançado do cancro
da Paula?. O que dizia cada um deles? Vamos por partes e comecemos pela
hepatite C, afinal o problema mais antigo e com maior probabilidade de ter
originado o tumor na hipofaringe.
Estamos em Setembro de 2016, Hospital S. Bernardo, em Setúbal,
consulta de infecciologia. Uma médica sugere à Paula tratar a hepatite C com
recurso a fármacos que não eram os mais recentes e inovadores e, por outro
lado, prolongariam em muito o período de tratamento, com mais baixa
probabilidade de sucesso. A Paula estava informada e recusou, tinha um cancro
impaciente. Só aceitaríamos fármacos recentes, inovadores. “É o previsto no
protocolo”, insistia a médica. Que não, recusou uma vez mais a Paula. Que
fosse pedida uma Autorização Especial (AE) ao Infarmed pois era a forma
comummente aceite de, em situações clínica e humanamente atendíveis, ir além
do protocolo. Hesitações e evasivas, que se compreendiam, por parte da
médica. Que viesse o director, queríamos falar com ele.
Conhecemos então o Dr. José Poças. Ele foi o primeiro elemento de uma
triangulação de médicos e instituições onde, no que seria humanamente
possível, se jogava o destino da Paula. Um dos raros médicos que nunca a
abandonou, mesmo em situações graves nas últimas semanas de vida e que não
eram sequer da sua especialidade. Compreendeu o quadro clínico complexo
que lhe relatámos, documentado com exames, contactou telefonicamente o
oncologista do sul para saber o que estava previsto como tratamento
quimioterápico e concluiu que, para se iniciar o pedido de Autorização Especial
ao Infarmed para tratamento com Daclatasvir e Sofosbuvir, teríamos de reunir
os pareceres positivos do serviço de infecciologia, de que era o director, da
farmácia e também do conselho de administração do hospital.
Ficou marcada nova consulta para breve, já com análises mais
actualizadas, e então submeter-se-ia online o pedido de Autorização Especial ao
Infarmed. A Paula, e eu próprio, continuávamos com dúvidas quanto a
prioridades e aproveitámos para lhe dar conta das nossas apreensões. Com
frontalidade, ouvimo-lo dizer: “O que é que a pode matar mais depressa? O seu
problema número um é o cancro. Avance”. Resposta da Paula: “E o meu fígado

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aguenta os fármacos tóxicos da quimioterapia?”. Recebeu, em troca, um semi-
mutismo, como que a dizer: “E tem plano B?”.
No dia combinado voltámos a Setúbal. Assistimos então, no seu
gabinete, a uma cena inédita mas, ao mesmo tempo, reveladora do carácter do
médico que ainda mal conhecíamos. De costas para nós, frente ao computador,
aquele médico e director do serviço, algo sisudo e de trato ríspido à primeira
impressão – mesmo interrompido por colegas que batiam à porta e com a sala
de espera com doentes, mas bem consciente da gravidade do estado da Paula –
não arredou pé do gabinete. Afinal, essas Autorizações Especiais obrigavam ao
preenchimento de dois formulários no portal do Infarmed, o que era
empreitada de fôlego. Por detrás dele, silenciosos mas comunicativos entre nós,
víamo-lo à beira de explodir, exasperado pelas dificuldades que o sistema
informático lhe apresentava, obrigando-o a penosas repetições a cada novo
passo no preenchimento dos formulários. Umas boas duas horas depois, farto
daquela prova burocrática, mas sem nunca manifestar menor atenção pela
Paula, deu por cumprida a missão. Voltou-se para ela e disse-lhe: “Sabe que
tem três dos quatro nomes da minha mulher?”. Não sabíamos, vimo-lo depois
no Google, e surpreendeu-nos a coincidência.
A Paula estava, enfim, inscrita, mas a resposta do Infarmed iria demorar
uma eternidade. Meses depois, em Janeiro de 2017, o Dr. Poças dava-lhe a
conhecer um email que enviara ao Infarmed e onde solicitava uma informação
mais precisa acerca dos motivos de tal demora. Mas a Paula também não estava
parada. Em 16 de Janeiro de 2017 interpelava ela própria, e pela segunda vez, o
Infarmed após uma primeira resposta insatisfatória: “(...) Esclareçam-me, então,
o porquê da demora, dado que o Infarmed está obrigado a responder no prazo
de dez dias e o pedido entrou em Setembro passado, logo, há mais de quatro
meses”. A nova resposta, vinda dos moinhos da burocracia administrativa e
sobejamente conhecedora dos bastidores da negociação político-comercial que
então decorria, foi esta: “(…) Informo que o pedido de AUE do medicamento
Daclatasvir para o doente MNDN [código para preservar o anonimato do
doente] encontra-se em avaliação pelo perito da CNFT [Comissão Nacional de
Farmácia e Terapêutica]”. Assinava, com os melhores cumprimentos, a Direcção
de Avaliação de Tecnologias de Saúde (DATS) do Infarmed. Uma tal missiva,
como se imaginará, inundou a Paula de esperança e confiança.
Entretanto, tinham estalado polémicas públicas sobre a acção do
Infarmed na disponibilização de medicamentos inovadores e a demorada
negociação do Ministério da Saúde com as multinacionais que os produziam. A
Paula pediu, então, ajuda ao Grupo de Activistas em Tratamentos (GAT). Os
emails recebidos daquela associação revelaram sempre uma enorme
cordialidade e interesse pelo seu caso. O último, assinado pelo presidente da
direcção do GAT, Luís Mendão, dizia o seguinte: “Cara Paula, julgo saber que
todos os pedidos de AUE Daclatasvir vão ser desbloqueados esta semana.
Estivemos no Infarmed, reclamámos e foi-nos garantido. Um grande abraço e
bom tratamento. Tenho a certeza que será”. Resposta pronta, eficaz. Calou
fundo no íntimo da Paula.

49
Por tudo isto, só em Fevereiro de 2017 a Paula iniciaria o tratamento,
após ter concluído quatro ciclos de quimioterapia no final do mês de Janeiro.
Aparentemente, o seu fígado portou-se bem durante o tratamento da hepatite
C, os efeitos secundários foram mínimos. Mas para ser considerada totalmente
curada teriam de decorrer ainda três meses, com validação através de exames
feitos por diversas vezes. Isto era importante para a Paula, pois sabia que, com
o vírus da hepatite C ainda activo, não entraria nunca em qualquer ensaio
clínico oncológico inovador a decorrer ou a iniciar. A data “oficial” para ser
considerada curada era 27 de Julho de 2017. A Paula já não chegou a saber que
estava “oficialmente” curada após anos de coabitação com o vírus da hepatite
C, pois morreria no dia 21 desse mesmo mês. Mas o seu fígado sabia há muito
que o cancro já lá tinha chegado. Acredito que ela diria, com a verrina de que
também era capaz, o que hoje me apetece dizer: “Merda, tanto trabalho, um
fígado renovado e livre de vírus, e a porra do cancro veio estragar tudo!”.
Curada da hepatite C, abalroada pelo cancro.
Quanto ao segundo elemento desta triangulação em que a Paula ocupava
o centro, o oncologista do hospital do Sul, de que falaremos mais em pormenor
no capítulo seguinte (“QuimioRadiolândia”), dizia logo na primeira consulta:
“Avançamos com a quimioterapia mas você compromete-se a iniciar – e a
concluir – o tratamento da hepatite C”. E deu-lhe três exemplos de outros
pacientes seus que tinham cancro e hepatite C, e continuavam a responder bem,
a fazer a sua vida. Os oncologistas sabem que qualquer bago de esperança serve
para alimentar consciências feridas. Mas não a da Paula. Portanto, também do
lado da oncologia a história era bem mais complexa do que estes três exemplos
edificantes deixavam transparecer. O mix de químicos prescrito como
tratamento de choque, que revelaremos no capítulo seguinte, prenunciava um
risco elevado, palpável.
O terceiro elemento da triangulação é um oncologista sénior do hospital
de Lisboa. Aparece nesta história porque quisemos, desde o início, conhecer
uma segunda opinião. A Marina, nossa amiga e conhecida deste oncologista,
era peremptória: “Por mim, ia ouvir o oncologista de Lisboa e tratava-me lá. É
lá que estão os bons médicos. Eu ficava em Lisboa”. Como sabemos, a Paula
não seguiu o seu conselho, mas logo em Outubro de 2016 marcou consulta para
o consultório deste oncologista sénior. Ele vai permanecer sempre na
retaguarda, como conselheiro, seja em consultas no seu consultório particular
seja no hospital de Lisboa, mas sem interferir na condução do tratamento, que
era da responsabilidade do oncologista do sul. É claro que nada disto constituía
segredo e também nada fizemos para que o fosse. Rapidamente, num
congresso, o oncologista do sul e o oncologista de Lisboa falaram sobre o caso
da Paula. Poderia haver problemas, susceptibilidades? Para nós nenhuns.
Acedermos a opiniões clínicas válidas era um direito adquirido. O cancro era
maior que qualquer ego e não se compadecia com prerrogativas e estatutos.
Em Outubro de 2016, a triangulação dos protagonistas e os impasses a
ela associados desfizeram-se. A Paula iria começar a quimioterapia no dia 25
desse mês, no hospital do Sul. Esta foi a primeira grande encruzilhada a que
tivemos de responder a partir da caravana, o nosso quartel-general no monte

50
das Sete Amendoeiras. Voltemo-nos agora para o tratamento do cancro no
admirável mundo da QuimioRadiolândia.

51
QUIMIORADIOLÂNDIA

Este novo capítulo percorre todo o período que vai desde a primeira
consulta no hospital do Sul, após uma breve passagem pela fortaleza de
Palhavã, prolonga-se pelos quatro ciclos de quimioterapia e termina na recusa
da Paula em realizar sessões de radioterapia em Évora. Vários meses, portanto,
de Outubro de 2016 a Março de 2017.

Uma viagem a Évora

Desfeita, como vimos, a encruzilhada cancro/hepatite C e tendo-se


“optado” pelo tratamento prioritário do cancro, era tempo de conhecer melhor
o oncologista do sul, ouvir a sua proposta terapêutica. Sobre este oncologista,
que a iria acompanhar nos meses que se seguiriam, escreveu a Paula: “Através
de uma enfermeira amiga soube de um oncologista, aqui no Alentejo, e ela
consegue-me uma consulta. Ele 'agarrou-me', disse-me que eu estava a morrer e
que tínhamos de tratar de mim. Não tem cura, disse (e eu sabia que não, sei que
não), mas poderá viver com o cancro não se sabe quanto tempo, é possível”.
Na primeira consulta, em Setembro de 2016, o oncologista do sul
perguntou-lhe: “Pode estar amanhã cedo em Évora? Quero que a minha colega
otorrinolaringologista a observe”. Confirmada a nossa presença, no dia seguinte
acordei com as galinhas e fiz de despertador da Paula pois nunca sabíamos
como passava as noites, perturbada pela estranheza e angústia daquela sua
nova condição. Partimos cedo, por volta das 6h da manhã, optando pelo
itinerário mais curto e que mal tivéramos tempo de traçar na véspera. Àquela
hora matinal, a Paula era como uma avezita ferida, ansiosa, mesmo que se
mostrasse forte para enfrentar uma nova fortaleza oncológica. O que lhe estava
a acontecer parecia-lhe irreal, ainda não o ajustara ao seu corpo e ao seu
pensamento.
A estrada em que nos lançámos ainda de noite era como um grande
túnel escuro à nossa frente. Aqui e ali as copas das árvores aproximavam-se e
reforçavam essa sensação. Os faróis iluminavam o túnel e, espaçadamente,
íamos reparando nas placas que sinalizavam as aldeias que atravessávamos,
como um desfile de nomes bizarros. Com o tempo passámos a conhecer melhor
aquelas estradas e a toponímia. Aldeia da Justa era a primeira povoação,
seguindo-se talvez o nome mais improvável – Água Derramada. E, logo a
seguir, Monte de Batão. Entretanto, os primeiros alvores, ainda tímidos,
permitiam-nos ver a planície à nossa volta. Um nevoeiro cerrado surgiu do
nada por alturas de S. Romão, talvez por estarmos em zona baixa, junto ao
Sado, no Vale do Xarrama, entre canais que percorrem e irrigam os campos de
arroz.

52
Mais adiante, a luz crua da manhã já se fazia sentir. E foi com um céu
azul que chegámos a Alcáçovas. Faltavam cerca de trinta quilómetros de
estrada alentejana feita a régua e esquadro, a perder de vista, até ao centro de
Évora. O parque de estacionamento onde deixámos o carro estava numa espécie
de autogestão. Alguns arrumadores orientavam as manobras, controlavam a
máquina dispensadora de títulos e entregavam-nos profissionalmente aos
condutores a troco de uma moeda. Depois, sempre delicadamente, pediam a
devolução desse título para o reutilizarem já que, segundo diziam, a máquina
não estava a funcionar em boas condições. Serviço bem concessionado pela
Câmara Municipal, passe a ironia, e impecável. Empreendedorismo social em
estado puro. Por isso, tudo fluía.
Muito antes das nove horas entrávamos no hospital. Se até aí nos
mantivéramos silenciosos, rapidamente os demónios da inquietação vieram
rondar quando nos ouvimos perguntar ao segurança: “Onde fica o serviço de
oncologia?”. Aguardámos na sala já bem composta do hospital de Évora. Era a
primeira vez que a Paula ia ser observada após o IPO e, na sua cabeça, pelas
impressões que dizia sentir, era já certo que o cancro começava a obstruir a
garganta e em breve iria impedi-la de respirar. Morreria sufocada, não tinha
sombra de dúvida.
Nesta inquietação, apareceu o oncologista do sul. Cumprimentos breves,
cordiais, subida de elevador. Aceleração. Literalmente, acelerávamos os três em
passadas largas pelos corredores e salas de espera – como se o cancro viesse
atrás de nós. Não havia tempo a perder. Em breve haveríamos também de
correr do Alentejo até Torres Vedras, a quarenta quilómetros de Lisboa, para a
Paula fazer uma endoscopia muito urgente num hospital particular com um
especialista conhecido da Marina. Tinha dificuldades em engolir, queixava-se
de uma impressão na garganta (mantinha-se o problema do IPO, talvez causado
pela biopsia). Andaria o cancro já pelo esófago? Falso alarme, nessa altura a
Paula estava ainda com imensa vitalidade e qualquer sintoma a inquietava.
No consultório da otorrino, em Évora, a Paula ficou, mais uma vez,
empoleirada numa cadeira alta com o laringoscópio enfiado na garganta
enquanto as primeiras imagens apareciam num monitor. A otorrino,
serenamente e com voz tranquilizadora, ia comentando o que víamos. Aliás, o
que eu via, pois a Paula não podia, estava em posição paralela ao monitor. E,
então, pela primeira vez olhei um tumor, ou mais propriamente, as células
malignas de um cancro. Surpreendeu-me a forma mal definida, irregular, um
aglomerado de micro-vasos sanguíneos que lhe permite crescer, espalhar-se
impunemente. O relatório da consulta registaria que uma corda vocal tinha sido
atingida, explicando assim a rouquidão de que a Paula se queixava. Mas os
piores temores não se verificavam. O tumor estava a evoluir “para fora”, era
visível na cadeia ganglionar cervical, e não “para dentro” o que poderia levar à
asfixia ou a dificuldades na ingestão de alimentos. Salva, por agora, ma non
troppo. Ele estava lá, o tumor, no seio piriforme.
Numa outra consulta, meses mais tarde, em Março de 2017, a mesma
otorrinolaringologista, Drª Dulce Nunes, já veria um cenário totalmente
diferente, benigno, e relatava: “(...) Sem evidência de lesão na hipofaringe e

53
laringe, com remissão completa do tumor. Mobilidade mantida das cordas
vocais”. Uma vitória de Pirro, pois o cancro apenas saíra da toca e viajava agora
pelo seu corpo. A Paula perguntou-lhe: “Vou sofrer antes de morrer? Como vou
morrer?”. Respondeu-lhe, de novo serenamente, a médica: “Ulceração, é uma
possibilidade, mas há medicamentos para controlar as dores”. E acrescentou ser
raro falar com doentes como o fazia com a Paula, pois “costumam atirar a
responsabilidade das suas vidas para cima do médico”. A próxima consulta
com a otorrino ficaria agendada para o dia 15 de Julho de 2017. A Paula já não
compareceu pois não teve forças para uma nova, e talvez derradeira, viagem a
Évora, a uma semana de partir para o Universo.
Após o exame com a otorrino voltámos ao gabinete do oncologista do
sul, o qual, após avaliar os resultados, nos disse: “Podem estar mais logo, ao fim
do dia, no hospital do Sul”? Depois do que víramos no monitor – e revimos
mais tarde já na posse das imagens entregues pela médica – a resposta só podia
ser ansiosamente positiva. E assim foi, refizemos a mesma estrada que, manhã
cedo, nos conduzira a Évora. E as terras de nomes bizarros sucediam-se, agora
em sentido inverso, como iria acontecer muitas mais vezes – Alcáçovas, S.
Romão, Monte de Batão, Água Derramada, até ao nosso monte das Sete
Amendoeiras. A Paula estava fatigada, mas às 19h lá estávamos para a consulta,
no ambulatório do hospital do Sul.
As viagens que fazíamos eram certamente replicadas pelo oncologista,
seguindo as mesmas ou outras estradas, talvez mesmo a autoestrada. Mas ele
tinha de rodar muito, mas mesmo muito mais do que nós, repartindo-se entre a
sua actividade normal em Évora e as longas, cansativas deslocações aos
hospitais de dia das várias unidades de saúde que cobria na região. Como o
conseguia, com que esforço pessoal e repercussões na sua vida profissional e
também na qualidade do seguimento dos doentes, era a questão que nos
pusemos por várias vezes. Numa das consultas seguintes, a Paula arranjou
coragem para lhe perguntar com toda a naturalidade do mundo se tinha
motorista ou conduzia ele próprio. Afinal, era ele o condutor. Na ocasião,
aquilo pareceu-nos de uma enorme violência: como aguentava horas e horas de
viagem e, depois, horas de consultas nos hospitais de dia de toda a região?
Estas dúvidas levaram a que nos interessássemos pelo estado da oncologia no
Alentejo.
Vínhamos do IPO em Lisboa e ignorávamos quase tudo sobre a realidade
oncológica nesta região do sul. No entanto, fora já radiografada no Plano
Regional de Oncologia do Alentejo (PROA, 2013), aí se apontando várias
medidas para a melhorar. Parte da informação constante nesse documento é
factual (demografia, epidemiologia, recursos, etc), outra parte é projectual, isto
é, propostas para um melhor funcionamento actual e futuro da rede oncológica.
A simples leitura de uma dessas propostas poderia, no tempo certo, ter feito
soar campainhas de alarme na nossa cabeça. Transcrevo-a: “(...) O serviço de
Oncologia do HESE [Hospital do Espírito Santo de Évora] deverá ter os
oncologistas suficientes para colaborar nas outras Unidades” (itálico nosso). Uma
insuficiência de monta, preocupante. Apesar de o tentarmos, não foi conclusiva
a nossa pesquisa para este livro sobre o estado actual da aplicação do “PROA,

54
2013” – se chegou realmente a ser aplicado – ou de um outro plano oncológico
regional seu eventual sucessor.
Em Maio de 2015, a equipa de oncologia que servia várias unidades
hospitalares do Alentejo volatilizara-se. O então director clínico do Serviço de
Oncologia do HESE demitiu-se e, dois meses depois, acompanharam-no mais
dois oncologistas da sua equipa. Especulava-se que o Estado pretenderia acabar
com a especialidade no sul do país – Alentejo e Algarve. Os meios de
comunicação titulavam: “Médicos oncologistas abandonam Hospital de Évora
por propostas mais elevadas no privado” ou, ainda, “Évora e Beja seguram
oncologia”, preferindo-se neste último caso valorizar o depoimento do
presidente da Administração Regional de Saúde do Alentejo que “garantia mais
cinco especialistas para o serviço no hospital de Évora, a partir de 1 de Julho de
2015” e, ainda, “o cumprimento dos protocolos estabelecidos com hospitais da
região – Beja e Santiago do Cacém”.
O Bastonário da Ordem do Médicos em exercício entendeu também
pronunciar-se. Numa entrevista, referia ele que “a situação vai deixar o Alentejo
quase completamente desprotegido na área da oncologia, o que é tremendo
num hospital onde havia vários internos e que agrava a nossa preocupação”.
Afirmava ainda ter conhecimento de que “iam ser contratados médicos
tarefeiros”, alertando para a evidência de que “tarefeiros não permitem um
tratamento adequado dos doentes; um doente oncológico não pode ser tratado
hoje por um oncologista, amanhã por outro, sem qualquer tipo de seguimento”.
Decorrido mais de um ano, em Agosto de 2016, um artigo do jornal “DN”
parecia dar razão às apreensões do Bastonário. Aí se dizia que “os hospitais do
Serviço Nacional de Saúde (SNS) do Alentejo só têm três oncologistas e os do
Algarve seis. As duas regiões no conjunto têm uma população residente a rondar
um milhão de pessoas” (itálicos nossos).
Estávamos, pois, num período político e numa conjuntura do sistema de
saúde oncológica claramente anti-PROA. Constataríamos isso muito em breve,
no hospital do Sul.

Psis e oncos

A Paula cedo reagiu mal à quimioterapia, defendendo que em cancros


avançados como o seu esta abordagem terapêutica podia, afinal, muito pouco.
Perguntámo-nos, inúmeras vezes, o que era realmente um cocktail
quimioterápico; a cientificidade do cálculo das dosagens; a avaliação de
toxicidades; as interacções com outras doenças e outros fármacos; e, acima de
tudo, se o “feiticeiro” de bata branca dominava o seu “feitiço” químico.
Rapidamente nos demos conta de que o uso de fármacos químicos
doseados num regime de tentativa e erro (tudo se agravando em situações de
co-morbilidade, isto é, quando há tratamentos em simultâneo de outras
doenças, como era o caso da Paula) tinha semelhanças e originava efeitos não
muito diferentes do tratamento por electrochoques na psiquiatria desde os anos
vinte do século passado até à actualidade, mesmo se hoje esta “terapia” sofreu

55
um rebaptismo politicamente correcto. Passou a chamar-se
electroconvulsoterapia ou terapia electroconvulsiva (ECT). Que alterações na
actividade do cérebro são induzidas por via da administração de pequenos
choques eléctricos nas têmporas, sobretudo sobre a memória humana (e não apenas
sobre a memória humana)? Que alterações provocam os fármacos da
quimioterapia nas nossas células, nomeadamente mutações celulares e a indução de
novos cancros? Analisar os primeiros discursos legitimadores da introdução e
prática dos electrochoques em psiquiatria (para tratar depressões, bipolaridade,
esquizofrenia, epilepsia, catatonia, etc) e realizar um idêntico exercício com a
quimioterapia de células tumorais é profundamente perturbador. O mesmo
jogo de roleta russa, ora com a corrente eléctrica, ora com moléculas químicas.
Num extenso artigo do “Expresso Online” de 29 de Janeiro de 2016,
intitulado “O regresso dos electrochoques”, podemos ler o seguinte: “O
primeiro tratamento recorrendo à ideia de choque ocorreu em 1917 quando o
médico austríaco Julius Wagner von Jauregg desenvolveu o que ficou
conhecido como malárioterapia: contaminou seis doentes com o sangue de um
soldado que sofria de malária, provando que a violenta febre que entretanto
atingia os pacientes diminuía os sintomas de loucura. Por esta descoberta,
ganhou o Prémio Nobel da Medicina, em 1927.
Pouco depois surgiu um novo avanço no tratamento das psicoses,
através de injecções de insulina. Isto depois de o neuropsiquiatra Manfred J.
Sakel ter verificado que causar convulsões com uma dose excessiva de insulina
era eficaz para doentes mentais. Apareceu, entretanto, o choque com cardiazol,
um medicamento que causava crises convulsivas. ‘Era muito forte e partia os
ossos aos doente’, diz o psiquiatra Luís Gamito, antigo director do Hospital
Júlio do Matos, lembrando que ainda hoje existem no museu dessa unidade
hospitalar mosquiteiros adquiridos para criar mosquitos e contaminar os
doentes portugueses com malária. ‘Mas não se chegou a usar’. Quando, em
1971, Luís Gamito entrou como voluntário no hospital que mais tarde viria a
dirigir, ainda se faziam choques sem anestesia e com equipamentos arcaicos:
‘Até se colocava na boca dos doentes uma protecção de plástico para não
morderem a língua”.
Ugo Cerletti, neurologista italiano e especialista em epilepsia, realizou
múltiplas experiências com animais para estudar os efeitos neuropatológicos
provocados pelos electrochoques. Criou dispositivos para desencadear crises
epilépticas em cães, fazendo variar a potência eléctrica até atingir valores
“optimizados”. A ideia de usar o choque electroconvulsivo em seres humanos,
confessa ele, ocorreu-lhe pela primeira vez ao observar porcos anestesiados com
um método semelhante, antes de serem abatidos nos matadouros de Roma. Os
animais ficavam submissos. Cerletti passou a trabalhar com um colega italiano,
Lucio Bini, e o alemão, L.B. Kalinowski, no sentido de desenvolver novos
equipamentos para provocar breves choques eléctricos, desta vez em seres
humanos22 (itálico nosso).

22Seguimos aqui o artigo “A história da terapia por choque em psiquiatria”, do neurofisiologista brasileiro
Renato Sabbatini (http://www.cerebromente.org.br/n04/historia/shock_i.htm).

56
O movimento antipsiquiátrico dos anos sessenta e setenta do século XX
viria, em termos médicos, éticos e políticos, pôr em questão muitas destas
práticas através da contestação da instituição asilar, do saber psiquiátrico e do
estatuto do internado. Uniformidade era algo que não se registava nesse
movimento, antes uma grande diversidade de perspectivas teóricas e
terapêuticas. Desde a negação quase absoluta da realidade patológica, e mesmo
orgânica, da esquizofrenia, em David Cooper; passando pela concepção
relativamente próxima de Thomas Szasz, que considerava a loucura a
resultante de uma avaliação moral e política por parte do psiquiatra; até às
posições mais moderadas de Franco Basaglia e do Movimento da Psiquiatria
Democrática, desenvolvidas a partir do hospital psiquiátrico de Trieste, em
Itália, as diferenças eram enormes.
Comum ao movimento antipsiquiátrico desses anos 60 e 70 era aquilo a
que Robert Castel, outro dos protagonistas desse movimento, entendia como
uma lógica paradoxal que se desenvolvia nos asilos e levava ao “esterilizar de
rebeliões”. Robert Castel, na introdução a um extraordinário livro de Erving
Goffman23 sobre asilos e outras instituições totalitárias, conclui que quanto mais
o asilado se integra e busca a cura (o reconhecimento da cura pelo psiquiatra),
mais interioriza a repressão e se torna doente crónico. Portanto, uma maior
confiança no terapeuta e na terapia, única esperança de cura, redunda na perda
da liberdade e de toda a esperança de cura. O doente “roda sempre no círculo
definido pelo regulamento”, sublinha Castel, que é, em última instância, o
instrumento de poder de enfermeiros e psiquiatras. A pertinência de muitas
destas observações parece-nos ainda hoje evidente, e não apenas no domínio da
psiquiatria. Quando raspamos a superfície pseudo-democratizada das
fortalezas oncológicas, não constitui surpresa encontrarmos algumas práticas
dogmáticas e autoritárias que já estavam, décadas atrás, sob a mira de
movimentos de contestação social como a antipsiquiatria.
Retomando o mesmo jornal “Expresso Online” de 2016, podemos ainda ler
sobre a controversa terapia por electrochoques: “Os médicos portugueses estão
de novo a tratar as depressões e os doentes bipolares através de correntes
eléctricas que provocam convulsões e permitem fazer um reset ao cérebro. Os
psiquiatras garantem que estes métodos são seguros e eficazes. Apesar do
sucesso e da adesão ao tratamento, é uma realidade que parece escondida
dentro dos hospitais (…). E apesar de já terem sido aprovadas por pareceres do
colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, de constarem na Lei de Saúde
Mental e de serem recomendadas pelas directivas da Direcção-geral da Saúde, a
palavra choques eléctricos ainda assusta. ‘É melhor falar em neuromodelação’,
sugere um dos médicos entrevistados. Outro entrevistado costuma usar o termo
electroconvulsoterapia quando fala com os doentes para evitar chocar as
pessoas. Já Elsa Lara [especialista em ‘electroconvulsoterapia modificada’ num
hospital particular de Lisboa] tem outra opinião. ‘Eu explico as mudanças na
técnica mas prefiro dizer logo que estes tratamentos são electrochoques. Não há

23Erving Goffman (1961), Asylums: Essays on the social situation of mental patients and other inmates, Anchor
Books, Doubleday.

57
nada a esconder”. Mas não haverá mesmo nada a esconder, chamando-lhes nós
electrochoques, convulsoterapia, electroconvulsoterapia modificada ou
neuromodelação? Há, seguramente, e não é bonito de se ver.
Psiquiatras (psis) e oncologistas ou radio-oncologistas (oncos), a mesma fé
inabalável em tratamentos de resultado incerto a que chamaríamos do tipo
“caixa negra”: celebra-se a eficácia terapêutica – traduza-se ela em cura, em
doença tornada crónica ou simplesmente em manter o paciente calmo – mas
desvaloriza-se o que se passa no interior da caixa, os inúmeros sintomas que
sobrevêm a curto ou longo prazo e acompanham quer a aplicação de
electrochoques, quer a administração de químicos e de radiações contra o
cancro. O princípio de base é o mesmo: estatisticamente vale a pena. Mas o que
é o homem ou a mulher “estatísticos”? Uma abstracção conveniente que, no
entanto, explicará certas conversas com médicos, tingidas de algum
surrealismo, que relataremos mais adiante neste capítulo.
Por isso, nos diálogos com oncologistas e radio-oncologistas, apesar das
incertezas angustiantes que a assaltavam, a Paula evitava falar de vias
terapêuticas alternativas (também tinha as suas dúvidas, veremos como correu
mal a experiência com a homeopatia) ou, sequer, de simples cuidados com a
alimentação. Porque pressentia zero de abertura a terapias complementares
(por exemplo, nunca referiu que era sua intenção fazer hipertermia na CUF-
Porto ou numa clínica na Alemanha), zero de abertura a terapias alternativas
(por exemplo, nunca lhes disse que tomava o Iscador, que é administrado em
serviços de oncologia de hospitais públicos alemães)24, zero de abertura a dietas
alimentares, sendo remetida de imediato para nutricionistas de estrita formação
convencional, como se a alimentação fosse subsidiária num processo de
tratamento oncológico. Sugerir dietas que evitassem farinhas ou açúcares
refinados, e propor alimentos que retardassem a progressão do cancro, parecia
estar fora da ordem do dia em cada consulta de oncologia. Afinal, o que comem
os oncologistas ao pequeno almoço? E ao almoço? Quanto a suplementos, nem
queriam ouvir falar, vendo por todo o lado interacções nefastas que poderiam
comprometer o tratamento com medicação convencional. Entrincheirados no
juízo sumário de que tudo isso era charlatanismo, ou ineficaz, não cuidavam de
separar o trigo do joio. Só os citotóxicos funcionam.
David Servan-Schreiber propõe regras sensatas para evitar os charlatães
da medicina alternativa, entre elas a seguinte: “Evitar profissionais que se
recusam a trabalhar em colaboração com um oncologista e que recomendam a
interrupção dos tratamentos convencionais” (“Anticancro”, p. 173). Mas o
inverso também é verdade. No tratamento de tumores malignos, a ortodoxia
médica fabrica visões redutoras de problemas multifactoriais complexos.
Porque haveria alguém com um cancro in situ, ou mesmo já metastizado,
privar-se de substâncias naturais que contribuam para reforçar o seu sistema
imunitário? O que a Paula esperaria do seu oncologista era um diálogo aberto,

24A Paula mantinha contactos regulares com uma enfermeira alemã da especialidade de oncologia, a qual
trabalhava num hospital público, em Munique. Esta enfermeira respondia a muitas das necessidades
informativas e dúvidas que a Paula lhe colocava, tendo o cuidado de se aconselhar previamente com um
médico oncologista do mesmo hospital.

58
tão informado quanto possível, sobre o assunto. Mas não via os seus
interlocutores oncologistas medianamente interessados e, muito menos,
conhecedores destas outras vias holísticas e das potenciais vantagens
terapêuticas que poderiam trazer aos seus pacientes. Por isso, calava-se,
guardando esse conhecimento só para si, o que não significava submeter-se.
Muitos oncologistas convencionais escudam-se em estatísticas e
prognósticos invariavelmente pobres nos cancros muito avançados. Afinal, se
as probabilidades de sobrevida são reconhecidamente baixas, o que se pode
pedir mais à oncologia e às fortalezas oncológicas? Uma taxa de sobrevida de
3% a cinco anos em cancros muito avançados é pouco? O que poderiam fazer
melhor os oncologistas no actual “estado-de-arte” em oncologia? A expressão
sibilina que mais ouvíamos, em jeito de explicação da ineficácia ou da limitação
quimio-radioterápica, era “a progressão aguda da doença”. Isto quando
respondiam, pois muitas vezes limitavam-se a ostentar um rosto seráfico,
deixando o doente abandonado aos seus sintomas, sabendo que no fim da linha
os cuidados paliativos – se vagas houvesse, é claro – varreriam os estragos
provocados pelo cancro e pela “química cega” para debaixo do tapete.

Os dias da quimio

Regressemos ao hospital do Sul e à proposta de tratamento então


apresentada. Como vimos anteriormente, no início houve hesitação e mesmo
uma encruzilhada a desfazer: compatibilizar o tratamento da hepatite C com o
tratamento do cancro. Prevaleceu a prioridade do tratamento do cancro. Na
segunda consulta com o oncologista do sul, a conversa foi bem mais longa,
perguntas e mais perguntas por parte da Paula, incluindo se ele conhecia
clínicas na Bélgica ou Suíça onde os doentes terminais podiam pôr fim à vida de
modo indolor. A Paula não conseguia esconder o nervosismo, se bem que a sua
inquirição fosse incisiva. Olhos nos olhos do médico, a beber as suas palavras,
uma a uma. “Não, não conheço”, disse ele, dando por encerrado o assunto, mas
não sem antes vincar que também não era adepto da distanásia, ou seja, a
obstinação médica com vista a manter artificialmente a vida de doentes com
cancros muito avançados e em situações irreversíveis. Talvez aquele não fosse
ainda o momento nem o lugar para abordar um tal assunto.
A enfermeira permanecia de pé, discreta como sempre, tomando notas,
num total mutismo. Afinal, estava a fazer o trabalho invulgar de anotadora,
como no cinema, em que tinha de fixar a cena tal como terminara no take
anterior e deveria recomeçar daí a dias ou semanas, quando o médico voltasse a
ver o mesmo doente vindo dos confins da planície alentejana. De vez em
quando, percebendo o novelo de angústia em que a Paula se enredava, era a
minha vez de entrar na conversa pedindo um ou outro aclaramento, uma
síntese.
Durante todo o período de tratamento com quimioterapia, seria este o
padrão das consultas: uma Paula ávida de questionamento e um oncologista
que, olhando ora para ela ora para mim, a quase tudo respondia,

59
tranquilamente, mas sem responder às perguntas mais difíceis ou
irrespondíveis no perímetro da oncologia convencional, prolongando-se assim
o tempo de consulta. Imagino que a Paula precisava destas conversas alongadas
com o oncologista, sossegavam-na um pouco, sabendo que ao abandonar o
consultório tinha de encontrar em si mesma as forças para persistir na
resistência ao cancro.
Saímos com uma proposta de tratamento e a Paula tão apreensiva como
entrara. Iria iniciar quatro ciclos de quimioterapia com os fármacos Cisplatina e
Docetaxel, por perfusão (injectados), e ainda Capecitabina por via oral25. Na
caravana, consultávamos literatura sobre estes fármacos, os seus préstimos
terapêuticos e os sintomas indesejados. À noite e, por vezes, pela madrugada
adentro, já deitada, a Paula prosseguia as leituras que comentaríamos no dia
seguinte. Os nomes dos químicos passaram a ser familiares e objecto de chiste.
A Cisplatina, pela evocação do metal nobre e raro, e com direito a celebração de
bodas, era o mais intrigante; o Docetaxel, da família dos taxanos, facilmente
apropriável para marca de adoçante; quanto à Capecitabina, tomado em casa,
era o nome mais esdrúxulo, evocando, vagamente, uma qualquer particular
capacitação terapêutica. O doseamento inicial deste combinado de agentes
tóxicos foi, como já dissemos, muito agressivo, tendo de ser sucessivamente
reduzido face aos efeitos secundários que sobrevieram em cada um dos quatro
ciclos e ao estado de prostração crescente em que a Paula mergulhava.
Embora sempre hesitante sobre se deveria ou não prosseguir o
tratamento protocolizado, a Paula foi igual a ela-própria, determinada, e
preparou-se para fazer a sua experiência no reino da quimiolândia. Com
antecedência, começou por cortar o cabelo, curto, para se habituar à ideia de
que o iria ver desaparecer, mais tarde, às madeixas. Quando chegava a casa,
cabelo espetado, era, para mim, o ouricinho. Afagava-lhe então com ternura
aquele pêlo áspero. Logo que o cabelo começou a cair, por si, pediu-me a
carecada. Sentada diante do espelho, dava-me instruções. Pus creme de barbear
e rapei o crânio, que ficou liso, bonito, com contornos perfeitos, Quis fotografar-
se, publicou para os amigos a mostrar que era ainda ela a pessoa que víamos de
costas, apesar do cancro. Foi por essa altura que, tendo eu chegado de carro ao
fim do dia, ouvi uma voz ténue que me chamava. De onde provinha? Parecia
vir de longe, de muito longe. Afinal, aquele fio de voz era da Paula que
vagueava por entre os cedros da vedação do monte com o seu traje de Pierrot e
capuz a cobrir a carequinha. Pela primeira vez senti a morte rondar,
insidiosamente, à sua volta.
Entretanto, ela lera algures que se viesse algum dia a iniciar a
radioterapia deveria tratar dos dentes pois não o poderia fazer nos anos
seguintes devido ao efeito das radiações. Embora céptica, a Paula não fechava,
por agora, porta alguma. Pediu conselho a uma médico implantologista da sua
confiança que lhe confidenciou que tinha um tio, também com cancro, a quem
ele próprio tratara dos dentes. Arrancou alguns em pior estado, já não me
recordo quantos. Lembro-me, isso sim, que lhe dificultava a mastigação e a

25 No final do livro, secção “Léxico e siglas”, facultamos alguma informação sobre os três fármacos.

60
obrigou a rever uma vez mais a sua dieta optando por alimentos macios, o que
nunca a impediu de infringir, de tempos a tempos, esta regra e conceder uma
oferenda sacrificial a si mesma que consistia em devorar um bife com batatas
fritas, finalizando com uma sobremesa doce no Café Império, em Lisboa, ou
num restaurante em Vila Nova de Milfontes, onde fora uma vez com três
amigas de longa data – a Elsa, a Mariana e a Isabel –, e que muito elogiava. Era
a sua maneira de mandar o cancro às malvas e ter, enquanto lhe fosse possível,
a última palavra.
Regressemos uma vez mais à sala de espera de oncologia do hospital do
Sul. As consultas eram habitualmente às segundas feiras e, excepcionalmente,
às sextas-feiras, não sendo invulgar que consultas marcadas para as 18h
começassem pelas 21h ou 21h30m. O médico atendia toda a gente. O hospital de
dia de oncologia tinha dois espaços distintos, separados por uma murete – a
sala de espera propriamente dita e uma parte do corredor onde tinham sido
instaladas cadeiras. Preferíamos sentar-nos nas cadeiras do corredor pois o
ambiente na sala de espera era mais pesado, com gente silenciosa que por vezes
aliviava o freio na língua e apresentava publicamente os seus casos. Acenos de
cabeça evidenciavam, da parte dos ouvintes, um reconhecimento, seguindo-se a
partilha de mais detalhes.
Como a Paula era boa observadora e perspicaz, não só ouvia como
olhava com atenção as pessoas à sua volta. Havia-as de todas as idades, embora
predominando as mais idosas, vestidas modestamente. Percebia-se que era um
hospital que servia uma população rural. No início, quando começámos a ir às
consultas, a Paula chamava-me a atenção para uma senhora ainda nova, com
peruca – pormenor que sempre me escapava – ou para alguém em tratamento
que cobria a cabeça com um turbante, ou o pescoço com um lenço, como ela
própria começou a fazer quando o tumor se tornou proeminente. Os bombeiros
faziam o seu trabalho, entrando ou saindo com doentes em macas e cadeiras de
rodas, aguardando pacientemente que todos estivessem despachados para os
levar de volta às aldeias alentejanas de onde tinham saído muitas horas antes.
Nessa sala de espera, um episódio chamou-me particularmente a
atenção. A Paula tinha já concluído os quatro ciclos de quimioterapia e
realizado a sua segunda PET com resultados desanimadores, como vimos. Do
consultório do oncologista acabara de sair um sujeito dos seus cinquenta e
muitos anos que fora seu vizinho de cadeirão durante os tratamentos de
quimio. Rosto aberto e um largo sorriso, leve nos movimentos, abraçava os
familiares. Recebera a boa notícia que todos os que ali estavam também
desejavam para si. Nesse dia a Paula estava acompanhada pela mãe, mesmo ao
lado deste senhor, e ficou também feliz. Ele falava alto, contava pormenores que
todos ouviam. A Paula, em certo momento, disse-lhe que não tinha tido a
mesma sorte, o seu tumor regressara, voltava a ser visível. Aquela cordilheira
maldita de caroços duros e sobrepostos em volta do pescoço não augurava nada
de bom. O homem não a ouvia, embora a Paula tivesse repetido por duas ou
três vezes o que se passava com ela. Sentado um pouco mais longe, no corredor,
eu observava a cena com um nó na garganta, o interesse autêntico da Paula, a
vontade de partilhar, mas sem reciprocidade. O autocentramento dele era

61
compreensível, a última coisa do mundo que desejaria ouvir era uma história
de insucesso no instante, único, em que celebrava o sucesso terapêutico.
Naquela arrumada sala de espera a luta pela sobrevivência e o egoísmo
individual não tinham desaparecido, nem desapareceriam nunca, revelando-se
em episódios assim.
Quando chegou a vez da Paula, fomos conduzidos à porta do gabinete
do médico e aguardámos num corredor. A ideia era descongestionar a sala de
espera. Trocámos, então, algumas impressões sobre o que era prioritário falar e
como o diríamos. O oncologista recebeu-nos com cortesia, como de costume. A
Paula quase nem lhe deu tempo para observar os exames e análises,
inundando-o de pedidos de explicação que, por vezes, me desconcertavam, pois
não tínhamos previamente falado disso. De onde viria aquele fio de voz com
que ia articulando as suas inquietações?
Nos dias da quimio transportava no meu carro uma Paula apreensiva
que não se habituara nunca àquela sala de tratamentos. Realizadas as análises
ao sangue, obtida a confirmação de que havia condições para iniciar a sessão, a
Paula instalava-se no cadeirão azul da sala onde já se encontravam outras
pessoas, também elas a serem submetidas a perfusão de substâncias tóxicas,
consoante o cancro de que sofriam. Das oito horas da manhã às dezassete horas
da tarde, era esta a ocupação da Paula, ver descer lentamente o líquido nos
sacos transparentes com Cisplatina e Docetaxel, esperando que ficassem vazios.
Podia receber visitas, e quer eu quer a mãe nos revezávamos para estar com ela,
animando-a e, sobretudo, fazendo-a esquecer por momentos que era ela que se
encontrava mesmo ali, naquela fortaleza, mas que em breve voltaria para casa.
Os dias seguintes eram sempre temidos, difíceis de suportar devido aos
sintomas – prostração, cansaço, dores, náuseas e vómitos, inchaço nas pernas e
retenção de líquidos, fraqueza e perda de sensibilidade nas mãos, dificuldades
para pegar objectos ou abotoar a roupa, incómodo com o cheiro a comida,
impossibilidade de realizar esforços, de fazer as rotinas da sua vida,
permanecer na cama durante quase todo o dia. Em casa continuava a tomar
medicação oral, a Capecitabina, juntamente com outras drogas que trazia do
hospital em bolsas de plástico, acompanhadas de um minucioso esquema de
tomas para as três semanas seguintes, até ao próximo ciclo de quimioterapia em
que o carrossel tóxico recomeçava a sua marcha.
A dosagem inicial foi fortíssima, com elevada toxicidade, e teve de ser
reduzida nos ciclos seguintes pois a Paula sentia-se cada vez pior após um dia
inteiro no cadeirão azul. Aliás, o sofrimento por antecipação começava muito
tempo antes. Nem mesmo o Ipad que comprou e que a poderia distrair na sala
de quimioterapia impediu que se sentisse assim, arrancada a si mesma, um
corpo que lhe fugia. Na cabeça da Paula fermentava continuamente a
resistência ao próximo ciclo, ou melhor, a todos os ciclos a vir. Dizia ela que não
queria mais uma tal prostração física e psíquica. Lembrar-lhe que pessoas havia
que passavam por dezenas de ciclos, anos a fio, de nada servia, só lhe causava o
maior espanto, incredulidade em estado puro. “Porquê? Para quê? Que vida me
resta assim diminuída, a decair?”, quase gritava. O quarto e último ciclo, apesar
de nova redução da dosagem, já só o suportou deitada o dia todo numa maca

62
sem nenhuma vontade de comunicar connosco ou com as enfermeiras daquela
fortaleza oncológica.

Ei-lo que volta mais agressivo

Decidimos que era tempo de voltar ao consultório do oncologista de


Lisboa, para fazer um ponto de situação. “Então, sobreviveu?”, perguntou-lhe
ele, talvez com uma leve ironia, pois sabíamos que a sua proposta terapêutica
diferia da proposta do oncologista do sul. Quando disse que a ia examinar, a
Paula levantou-se como uma mola, enérgica. Olhámos espantados. Ele sorriu.
Depois, voltou de novo à sugestão do Cetuximab26, pois fora essa a sua ideia
desde o início, sempre desvalorizando os efeitos colaterais, ou, como dizia,
“talvez uma erupção cutânea (“rash”) mais ou menos extensa que poderia
afectar a cor, a aparência ou a textura da pele, nada de preocupante”. Diante da
testa franzida da Paula, o oncologista de Lisboa diz-lhe mais ou menos isto:
“Mas tem problemas em perder as unhas ou ficar com um pouco de rash depois
do tratamento?”. O Cetuximab era o químico mais repudiado pela Paula, vá-se
lá saber exactamente porquê, ou antes, talvez porque viu dezenas de imagens
de corpos avermelhados, quimicamente agredidos, estigmatizados. O
Cetuximab representaria, para ela, o símbolo mais visível da precariedade e
falência dos tratamentos disponíveis para a sua grave doença. Por essa altura,
lia ela num artigo científico que:

“O principal efeito secundário associado ao tratamento com Cetuximab é


a toxicidade da pele, incluindo erupção cutânea, pele seca, distúrbios no
crescimento do cabelo, prurido e alterações das unhas. A toxicidade
cutânea pode afectar gravemente o bem-estar físico, psicológico e social dos
pacientes, podendo levar à suspensão do tratamento e à redução da
dosagem (…). O uso alargado e crescente de Cetuximab no tratamento
de cancros, associado à insuficiência de ensaios clínicos, recomendam o
desenvolvimento da investigação médica no sentido de se conseguir uma
mais precisa avaliação/classificação dos efeitos e um tratamento da toxicidade
da pele baseado em evidências empíricas".

Nota: Artigo de Carmine Pinto et al (2011), “Management of skin toxicity


associated with Cetuximab treatment in combination with chemotherapy
or radiotherapy”, The Oncologist, 16: 228-238. A sequência de excertos do
artigo, bem como a tradução e os itálicos são da nossa responsabilidade
(https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3228080).

A Paula chegou a coleccionar imagens de pessoas com rash e entendia


que trocar sofrimento físico e psíquico por um bónus de meses de vida seria
uma troca digna de Mefistófeles, mas não era para ela. O rash assustava-a,

26 Sugerimos a leitura de uma apresentação deste tipo de imunoterapia na secção “Léxico e siglas”.

63
mesmo que os médicos lhe asseverassem que quanto mais exuberante a erupção
cutânea, tanto melhor a resposta do tumor ao tratamento e, em consequência,
também maior a probabilidade de eliminar células malignas.
Não era a primeira vez que ela ouvia serem-lhe veladamente atribuídas
razões de vaidade ou de futilidade para justificar a sua desconfiança e recusa da
quimioterapia. Uma estratégia de invalidação por parte de oncologistas que
reduzem as convicções de doentes mais informados e corajosos a meras
preocupações esteticistas, insistindo no argumento do “benefício maior”
(remissão total ou parcial do cancro) e deixando em letra de rodapé os efeitos
secundários, enfim, os “incómodos menores”. A lógica linear, pragmática,
destes oncologistas era diferente da que norteava a Paula. Para eles, se há
ganhos de sobrevida, mesmo que risíveis, o sofrimento, embora intenso,
passaria a fazer parte do programa de tratamento, não se discutia. Quem o
discute está a perder oportunidades, mas a Paula não queria migalhas de vida
conseguidas a qualquer custo.
No final da consulta, perguntou ao oncologista em jeito de confirmação:
“E que ganho eu em tempo de vida se tomar o Cetuximab?”. A resposta foi
oblíqua, como tantas que já ouvíramos de outros médicos. Mas na pesquisa que
tinha feito (ela conhecia o ensaio clínico europeu “EXTREME”27 onde foi testado
o benefício da combinação de quimioterapia à base de platina com o
Cetuximab) resultara evidente que o Cetuximab não lhe traria senão mais uns
meses de sobrevida. Era este o grão de informação que, para a Paula, fazia toda
a diferença e que viria a cimentar a sua decisão determinada a favor de um
“não” a quaisquer químicos. “Olhe que o cancro é maroto”, foi com esta frase
que o oncologista de Lisboa terminou a consulta. A Paula já o sabia.
Referindo-se a Outubro de 2016, escreveria ela: “Passada a primeira
semana do primeiro ciclo de quimio voltei a ter um pouco de mim outra vez
(…). Neste momento terminei quatro ciclos e aguardo fazer nova PET para
vermos como respondeu o tumor. Mas pelo que passei, completamente
intoxicada, tenho sérias dúvidas em voltar a fazer quimio, muito menos
radioterapia. Se não tivesse feito os ciclos de quimioterapia talvez não estivesse
aqui, agora. Mas viver assim, ou melhor, estar viva, só, hum... há ainda muito a
reflectir”.
Uma semana após o término da quimioterapia despontam pequenos
novos caroços no pescoço e na zona cervical, do lado esquerdo, que era possível
sentir à flor dos dedos. Isto foi sempre uma espécie de barómetro do estado do
seu cancro, bitola que dava à Paula a real medida da evolução da doença. A
partir desse momento já não aceitava que eu lhe tocasse nos caroços, era a sua
parte vulnerável, maldita, que um dia – fantasiava ela – explodiria em sangue e
pus. A angústia e a descrença voltaram a apoderar-se de si. Se a ressaca dos
quatro ciclos de quimio a deixava neste estado, imagine-se quando conheceu o
relatório da segunda PET: “Observa-se redução de focos de doença ganglionar,

27“EXTREME” = The ErbituX (ou Cetuximab) in first-line Treatment of REcurrent or MEtastatic head and
neck cancer [O Erbitux (ou Cetuximab) no tratamento de primeira linha do cancro da cabeça e pescoço
recorrente ou metastático].

64
considerando-se estar face a um perfil de resposta metabólica parcial (...). A lesão
cervical superior esquerda expressa maior intensidade metabólica, o que poderá
corresponder a doença nesta localização” (itálicos nossos). Ei-lo que voltava
ainda mais agressivo!
A Paula viveu, no seu próprio corpo, a evidência de que a quimioterapia
até pode conseguir “bons” resultados iniciais – embora a que custos, visíveis ou
invisíveis, traduzidos na destruição de células e órgãos sadios, bem como no
enfraquecimento das defesas imunitárias – sem que isso autorize, de modo
algum, a falar-se em regressão/remissão consistente do cancro e, muito menos,
em contributo significativo e indiscutível da quimio para o aumento da
esperança de vida a 5 anos (e porque não a 10 ou a 15 anos?), como pretende a
oncologia convencional.

Bombardeia-se isso tudo!

Em nova consulta com o oncologista do sul, para avaliação após os ciclos


de quimioterapia, a Paula estava muito pessimista. E, nesse dia, comigo e a mãe
presentes, a conversa no gabinete do médico decorreu tensa e durou ainda mais
tempo que o habitual. O oncologista tentava amenizar os resultados da PET,
insistindo na resposta parcial obtida, mas sem conseguir perfurar a carapaça
céptica da Paula. Disse-lhe ele que se a doença progredia, então também o
tratamento devia continuar, agora com radioterapia e dois novos ciclos de
quimioterapia. Não nos pareceu nada convicto nesta sua proposta, como
confirmaríamos em breve.
A Paula não estava, de todo, inclinada a aceitar nova provação na sala de
quimio da fortaleza oncológica do sul, e fê-lo saber. Foi confrontada com as
consequências de uma eventual recusa. Tudo equacionado e discutido, ficou
assente que deveria iniciar radioterapia em Évora. Nova encruzilhada na vida
da Paula. Ela, adepta da vida próxima da natureza, da alimentação saudável e
da luta pela erradicação dos químicos da sua vida, repartindo os dias entre a
horta biológica e a sua saboaria artesanal, estava agora na iminência de ficar
crónica dos químicos e das radiações, até ao dia – que, segundo ela, já não
estaria muito longe – da sua morte.
E partimos uma vez mais para Évora num dia ensolarado de Março. A
Paula de turbante, lábios pintados de vermelho vivo, bonita, frágil e firme ao
mesmo tempo. Quando chegou, informaram-na de que precisava de um cartão
de identificação para ficar inscrita e ser examinada no serviço de radioterapia.
Tirou uma foto, riu com a empregada pois ficara bem no retrato, o turbante
dava-lhe o ar de princesa das arábias. Sairia do hospital com um cartão nunca
utilizado e que hoje jaz algures na sua volumosa pasta de saúde. Na sala de
espera aguardavam a sua vez uma senhora e um jovem invisual com cancro,
segundo percebemos, que se mantinha sereno. O jovem pediu-me para ir buscar
um café à máquina, e ofereci-lho. “Duplo sofrimento o deste jovem”, segreda-
me a Paula.

65
Foi chamada logo a seguir. Entrámos para um gabinete amplo onde já
estava sentado o médico com ar bem disposto, mesmo jovial. Pediu à Paula
para falar do seu historial clínico, mas interrompeu-a passado pouco tempo.
“Temos de negociar”, lançou para o ar. Negociar? Li no rosto da Paula o
desconforto e a impaciência. Olhámo-lo fixamente, interrogativos, a pensar que
comédia era afinal aquela. Ele retomou a conversa: “Vamos negociar pois não
sei porque a mandou o meu colega”. E concluiu: “Vou ali ao lado falar com
ele”. Saiu por momentos do gabinete. Mas se o oncologista do sul estava de
serviço, se havia sérias dúvidas quanto ao que faríamos naquele gabinete,
porque não concertavam as coisas de modo a falarmos todos? Não, o
oncologista do sul permaneceu por detrás da cortina daquele teatro de comédia
sem arte.
O radio-oncologista regressou rápido, sempre com o sorriso jovial
pregado à cara. “Percebe o problema? Você tem focos metastáticos em várias
partes do corpo, como posso tratá-la com uma terapia de incidência local?”.
Apontando para si mesmo, insistia: “Está a ver, tem focos aqui, aqui e aqui”
(talvez estivesse a consultar a PET no monitor). Nós ouvíamo-lo, já
emocionalmente ausentes. “Podemos fazer incidir radiações nesta zona”, dizia
ele, continuando a servir de alvo de si próprio, “o problema é que tem também
lesões em muitos outros pontos do corpo”, rematava, com o dedo a descrever
uma órbita incerta. Comecei a ficar nauseado com a imagem que ele ia
desenhando da Paula, imaginando já a pele e a carne da minha amiga
esburacadas, primeiro pelas palavras e o dedo espetado do médico e, mais
tarde, por terríveis radiações.
Porque nos pressentisse perplexos, ou tendo talvez tomado súbita
consciência da cena algo caricata por que o colega de fortaleza o fazia passar,
acrescentou: “Vou pedir a opinião de um outro colega do hospital do Norte”.
Pior a emenda que o soneto, pensámos. Fez a ligação e esboçou um rápido
resumo do caso. Perguntou, então, ao boss do hospital do Norte – assim
chamámos ao novo protagonista a entrar em cena – se ele poderia falar
directamente com a Paula. Face à escusa, que se adivinhava, disse-lhe: “Então,
vou transmitir à senhora a tua opinião”. E serviu de amplificador do boss do
hospital do Norte. Foi então que ouvimos outra das expressões que não
pensávamos possível na boca de médicos oncologistas diante dos seus doentes,
pronunciada da maneira mais cruel, mas compatível com a cultura das
fortalezas oncológicas onde estes agentes pontificam quase sempre sem
contraditório: “Bombardeia-se isso tudo!”, sentenciou o boss. E o radio-
oncologista repetia na nossa direcção: “Bombardeia-se isso tudo!”. Agradeceu
ao colega e desligou, reconfortado.
Mas não haveria outra maneira de comunicar com pessoas que estão
num estado de imensa fragilidade, assustadas, pesadas de dúvidas, ainda à
espera de um soprozinho de esperança, como acontecia com a Paula? Onde se
ensina comunicação ou o exercício da compaixão nos currículos de cursos de
medicina? Onde se adquire esse “currículo silencioso que passa por osmose?”28

28 A expressão consta de uma entrevista publicada na Revista E do semanário “Expresso”, em 2015, a qual

66
Em lado algum, segundo as nossas pesquisas e as preciosas reflexões sobre o
assunto do, então, recentemente falecido Prof. João Lobo Antunes.
Um diálogo tão irreal como este nunca poderia correr bem com a Paula,
nunca a convenceria. Ela conhecia o que se praticava de mais inovador:
“Radioterapia convencional” (radioterapia com fotões) vs “Protonterapia”
(radioterapia com protões) vs “Tomoterapia” (radioterapia com protões de
grande precisão, não existente na altura em Portugal, embora havendo casos de
doentes enviados ao estrangeiro para a realizarem, sobretudo crianças e
pacientes com tumor no cérebro). Sofisticada a tecnologia, mas não a
comunicação médica.
Por fim, ainda acreditando que depois desta singular consulta a Paula
voltaria alguma vez a Évora, o radio-oncologista começou a explicar
pormenorizadamente os procedimentos protocolares. A sua grande
preocupação era agora com a máscara protectora das radiações que tinha de ser
fabricada à medida, ajustada a cada paciente, alertando para o custo de a
refazer caso esses doentes decidissem minguar no peso: “Não pode emagrecer
mesmo que as radiações interfiram com o paladar ou atinjam partes vitais para
a deglutição”, admoestava ele, como se a Paula não conhecesse a galeria de
potenciais horrores associados às radiações em zonas tão sensíveis. A consulta
terminou com a redacção de um bilhete dirigido ao seu colega oncologista do
hospital do Sul, o da porta ali mesmo ao lado. A Paula recolheu mecanicamente
o bilhete e nunca o entregou ao destinatário. Por outras palavras, não aceitou
nem o “negócio” nem o modo como lhe fora apresentado.
Em Évora tinha havido, desta vez, um corajoso, rotundo e duplo “não”.
A Paula recusou mais dois ciclos de quimioterapia para fazer regredir o cancro,
sabendo que, tal como acontecera antes, o veria voltar a galope. E recusou
também, em definitivo, a radioterapia. O que lhe restava? Tentar a via
complementar, por exemplo a hipertermia se a sua condição física e psíquica
lho permitisse. E prosseguir, como sempre o fizera desde o início, mas agora
com maior determinação, a via alternativa, eventualmente com uma deslocação
à Alemanha.

pode ser lida aqui: http://expresso.sapo.pt/sociedade/2016-10-27-Joao-Lobo-Antunes-O-pessimismo-e-


uma-profecia-que-se-cumpre

67
TERAPIAS COMPLEMENTARES E ALTERNATIVAS

A Paula, e somente ela, poderia levar a bom termo o empreendimento de


escrever de forma precisa e coerente este capítulo, não causando pois surpresa
que se apresente fragmentado, qual alinhamento algo simplista de terapias e de
actividades que eu não conheci em profundidade e não experimentei. Limito-
me a registar quer o que a Paula me foi contando das suas descobertas pessoais,
quer algumas experiências também por mim vividas sempre que a
acompanhava. Por isso, a abrir o capítulo justificam-se três notas explicativas,
sem as quais ficariam omissos aspectos importantes relativos às terapias e às
actividades físicas e espirituais de que iremos falar.

Três notas explicativas

Primeira nota. A fronteira entre opções terapêuticas convencionais,


complementares e alternativas na luta contra o cancro não é fácil de estabelecer.
Decidimos, por isso, seguir o traçado rígido que o próprio establishment
oncológico instituiu. Terapias convencionais serão a cirurgia, a quimioterapia
(com a crescente inclusão da imunoterapia, mesmo se esta representa já uma
mudança de paradigma) e a radioterapia. Tudo o resto é, digamo-lo com
alguma simplificação, complementar ou alternativo. E aqui, neste tão vasto
território, seremos nós a cartografá-lo e a povoá-lo com aquelas opções que a
Paula considerava viáveis e que, em alguns casos, chegou mesmo a
experimentar, as quais vão da hipertermia ao Iscador; da homeopatia à
biorressonância; das elevadas dosagens de vitamina C ao chá verde japonês de
primeira colheita; da acupunctura ao reiki; da desintoxicação às dietas
crudíveras.
Segunda nota. Nunca houve uma sequência linear entre estes três tipos de
opções terapêuticas, como se a Paula tivesse de recusar a primeira – a
convencional – para só depois iniciar as restantes. As coisas não se passaram
assim, talvez com excepção da homeopatia que aparece já tardiamente na
trajectória oncológica da Paula. Desde o início, o balanceamento entre as opções
convencional, complementar e alternativa fez-se de acordo com um programa
de “agenda oculta” que a Paula, desconfiada dos oncologistas, organizava, e
cuja combinatória era regularmente corrigida, procurando de forma sempre
consciente e informada, avaliar possíveis incompatibilidades com o tratamento
de quimioterapia.
Terceira nota. Alguns leitores poderão ficar desconcertados com a espécie
de “trabalho de Penélope” que levamos a cabo em alguns momentos deste
capítulo, isto é, não só fazemos a apresentação de terapias e outras actividades
anticancro como, logo em seguida, sugerimos argumentos e fontes de consulta
que as contestam total ou parcialmente. Preferimos que assim seja para uma
melhor informação de quem procura soluções úteis para a sua própria situação

68
oncológica. A Paula, naturalmente, nada tem a ver com este nosso modo de
proceder, mergulhada como se encontrava – embora sempre atenta às ilusões e
às fraudes – na procura de um caminho com sentido e esperança para o tempo
que lhe restava de vida.
Apresentemos, então, algumas iniciativas desenvolvidas pela Paula, mas
não sem antes repetir, ipsis verbis, o que dissemos na “Nota Prévia” deste livro,
ou seja, entre um cancro já muito avançado e tratamentos agressivos, a Paula
esquadrinhou todas as opções terapêuticas, mesmo as mais controversas, por
isso quem lhe queira atirar a primeira pedra comece por ocupar o seu lugar de
desmesurada solidão.

Ensaios clínicos inovadores

Curada da hepatite C e ainda com uma razoável saúde física e psíquica, a


Paula deixou-se intrigar pela possibilidade de ser aceite num ensaio clínico.
Como ela dizia, o que teria uma doente terminal a perder com mais uma
tentativa, desde que o medicamento fosse inovador e sem os efeitos secundários
da quimio convencional (enfim, haveria certamente outros efeitos tão ou mais
graves, mas não os incapacitantes que já conhecíamos).
A primeira vez que a hipótese de ensaios clínicos nos foi apresentada
encontrávamo-nos no consultório particular do oncologista de Lisboa. É certo
que a Paula já pesquisara na net e conhecia sítios onde os ensaios eram
divulgados a nível mundial com referência ao tipo de cancros e à fase, inicial ou
mais avançada, em que se encontravam. Um desses sítios, norte-americano, era
o “ClinicalTrials.gov”, uma base de dados de estudos clínicos realizados em
todo o mundo e financiados por entidades quer públicas quer privadas.29 Mas
frequentava igualmente um outro sítio com informação sobre ensaios europeus,
o “EU Clinical Trials Register”30.
Também o oncologista de Lisboa telefonava, em cada consulta, para uma
colega que concentrava a informação sobre ensaios e esta apurava, então, se
havia, já em curso ou a iniciar-se, algum ensaio que pudesse interessar à Paula.
Na janela temporal em que o seu cancro foi detectado e evoluiu, nenhum ensaio
esteve disponível, pelo menos nos círculos de influência destes dois médicos do
hospital de Lisboa. Por isso, colocou-se, então, a possibilidade da imunoterapia
com Nivolumab31 caso a saúde da Paula o permitisse, já que estaríamos a lidar
com o seu sistema imunitário submetido durante anos ao desgaste provocado
pela hepatite C (e cujo tratamento concluíra com sucesso havia pouco tempo).
Entretanto, tínhamos lido na imprensa nacional algumas notícias sobre
um ensaio patrocinado por investidores portugueses e que envolvia
investigadores universitários e médicos. Uma notícia datada de 4 de Junho de

29 https://clinicaltrials.gov/ct2/home
30 https://www.clinicaltrialsregister.eu/ctr-search/trial/2013-003133-14/PT
31 O nome comercial é “Opdivo” e indicado, em regime de monoterapia, para o tratamento de cancros da

cabeça e pescoço quando existe progressão da doença durante ou após terapêutica baseada em platina,
como era o caso da Paula.

69
2014, no jornal “Público”, titulava: “Primeiro medicamento português para o
cancro pode chegar ao mercado em cinco anos: Produto da farmacêutica Luzitin
começou os primeiros ensaios clínicos em doentes com cancro avançado da
cabeça e pescoço”. Outra notícia, no sítio “My Oncologia”, titulava em Abril de
2017: “Primeiro medicamento oncológico português eficaz no combate ao
cancro”.
Na nossa caravana quartel-general contra o cancro avaliávamos o
interesse desta nova possível opção, pesquisando informação e preparando
uma abordagem ao coordenador científico do projecto. Vamos por partes. O
que sabíamos sobre o ensaio? No “ClinicalTrials.gov” podia ler-se: “LUZ11 é
um novo fotossensibilizador para uso em terapia fotodinâmica (PDT, em inglês)
de tumores sólidos, como o cancro da cabeça e pescoço. A terapia fotodinâmica
com LUZ11 envolve a administração intravenosa do fármaco LUZ11 seguida de
irradiação do tumor alvo com luz laser de um comprimento de onda
apropriado. A luz faz com que o fármaco reaja com o oxigénio (...) induzindo a
morte das células tumorais e danificando os vasos sanguíneos do tumor,
impedindo-o de receber nutrientes”32. Em suma, a novidade consistia na
administração por via intravenosa de uma molécula, a Redaporfina, seguida de
irradiação de luz laser em doentes com cancro avançado da cabeça e pescoço. A
molécula foi inicialmente descoberta na Universidade de Coimbra e depois
desenvolvida pela farmacêutica Luzitin. Um aspecto interessou particularmente
a Paula: nas fases iniciais do ensaio resultou evidente que, face à quimio
convencional, os efeitos secundários eram muito menores, verificando-se ainda
que o procedimento destruía selectivamente as células tumorais na zona em
que a luz incidia, poupando os tecidos sadios.
Relativamente a estas notícias tomámos alguns cuidados, pois sabíamos
que o ciberespaço torna quase-eterno o que um dia é publicado, perdendo-se a
noção de diacronia, isto é, o que o tempo faz aos acontecimentos e às notícias
que os enquadram. E sabíamos igualmente que, muitas vezes, deixar uma
notícia a pairar na net constitui uma estratégia de visibilidade pública que
satisfaz interesses instalados. Mas, mesmo assim, queríamos acreditar que a
investigação séria, continuada, desenvolvida em instituições credíveis,
neutralizaria alguns desses efeitos enviesados.
Decidimos, então, escrever um email ao médico-investigador que
coordenava o ensaio e conseguir uma entrevista. O email dizia mais ou menos
isto: “Tomei conhecimento de que se encontra em fase de recrutamento um
ensaio clínico dirigido a pacientes com tumores de cabeça/pescoço em estadio
avançado do qual o doutor é o investigador responsável (EudraCT 2013-003133-
14). Gostaria de saber se reúno as condições para participar no referido ensaio.
Exponho, de forma sucinta, a minha situação clínica (…), anexando as PET's
realizadas até ao momento. Efectuei quatro ciclos de quimioterapia com
Cisplatina, Docetaxel e Capecitabina, concluídos a 25 de Janeiro último.
Resposta parcial. Uma semana após o término do tratamento reaparece nova

32 Uma descrição detalhada do ensaio pode ser consultada aqui:


https://clinicaltrials.gov/ct2/show/NCT02070432?term=LUZ11&rank=1~

70
adenopatia na zona do tumor primário (lado esquerdo do pescoço). Não estou
indicada para Radioterapia pois existem várias lesões dispersas. Com vista a
uma eventual participação no ensaio clínico, caso nele seja enquadrável,
gostaria que tivesse a amabilidade de me receber em dia e local a indicar (…)”.
A resposta, só recebida após uma segunda tentativa, foi desconcertante.
Num registo nonchalant, que reconheço dos ambientes descontraídos da
investigação científica, respondeu qualquer coisa telegráfica como “Tudo bem,
apareça” (infelizmente não conservo o email recebido, apenas cito de cor o que
a Paula me contou). Mas aparecer onde, com um cancro na mochila, envoltos
numa imensa angústia, realizando à volta de 800 km de comboio, ida-e-volta,
mais hotel, refeições (as da Paula eram complicadas de assegurar, pelas
restrições alimentares que se auto-impunha) e outras despesas? Apesar do mau
prenúncio, como o médico exercia clínica num hospital privado marcou-se uma
consulta formal e fizemo-nos ao caminho. “Porto, Porto”, acompanhava-nos o
Sérgio Godinho numa canção antiga. Na véspera da consulta, lá estávamos nós
na estação da CP de Grândola, apontando a Lisboa e depois ao Porto.
O coordenador do projecto recebeu-nos ao fim da tarde. A conversa
decorreu com amenidade, mas confirmámos as piores suspeitas. O ensaio tinha
actualmente a espessura de um espectro, vagueava ainda pela internet para
autosatisfação dos seus progenitores financeiros e tutores científicos. Ficámos a
saber que se encontrava suspenso, na ausência de investimento financeiro por
parte da entidade patrocinadora (a empresa portuguesa Luzitin, sediada em
Coimbra, de que eram accionistas a farmacêutica Bluepharma e a Portugal
Ventures), a qual preferia muito provavelmente alocar recursos noutros
projectos mais promissores a prazo.
Quanto aos resultados do ensaio, soubemos que do grupo inicial de 20
participantes (todos em fase terminal da doença e que já não dispunham de
outras opções terapêuticas) apenas um deles permanecia vivo em Abril de 2017,
os restantes tinham sucumbido. Por fim, veio a informação mais surpreendente:
“Mas a senhora também não seria elegível pois não tem feridas oncológicas
expostas”. Feridas oncológicas? E a Paula preocupada com a hepatite C como
temido factor eliminatório, para além da sua condição física segundo a tabela de
Karnofsky, e outras variáveis que lêramos na ficha do ensaio! Posteriormente à
consulta, tomámos conhecimento, através da American Cancer Society (ACS), de
que esta terapia não era eficaz em cancros muito disseminados, o que poderia
ter sido desde logo esclarecido na resposta do médico ao nosso email em que a
Paula mencionava explicitamente a metastização do cancro. No site da ACS lê-
se: “Como a luz não pode chegar muito longe através dos tecidos do corpo, a
terapia fotodinâmica dificilmente será usada para tratar grandes cancros; ou
cancros que tenham penetrado profundamente na pele e outros órgãos (...); ou
que se tenham espalhado para outros lugares do organismo” (itálico nosso).
Consumado o desengano, a conversa enveredou em seguida,
sinuosamente, por divagações oncológicas avulsas que preferíamos não ter
escutado. Quando a Paula afirmou que não tencionava submeter-se a mais
ciclos de quimioterapia percebemos imediatamente que, por parte deste
cirurgião oncológico também pertencente aos quadros do IPO-Porto, fora

71
activada – concedamos que talvez de forma inconsciente – uma estratégia
persuasiva baseada no medo e dirigida a uma paciente desviante: “A senhora
recusa a quimio, mas já viu alguma ferida oncológica? Não tem bom aspecto,
não, cheira mal”. Cheiraria, concerteza. E também não seria mais agradável o
défice de clareza por não nos ter avisado logo no seu email inicial que o ensaio
já não passava afinal de um espectro de ensaio. Contivemo-nos e engolimos a
frustração, ou a raiva, ou lá o que fosse que nos cerrava a garganta. “Porto,
Porto”. Viagem apressada de regresso ao Alentejo, a mastigar num almoço
improvisado duas sandes generosas como só no norte as sabem fazer.
Depois desta falsa partida e de algumas leituras esclarecedoras sobre a
vida de cobaia do participante em ensaios, a Paula deixou de se interessar por
estudos clínicos inovadores, fossem reais ou espectrais. As opções iam caindo,
uma a uma, como frágeis castelos de cartas.

Hipertermia oncológica

Por circunstâncias fortuitas, a Paula nunca chegou a submeter-se a


sessões de hipertermia, uma terapia complementar tolerada com reservas pelo
complexo quimio-radioterapêutico dominante. Quando já se encontrava
próxima do fim da vida, lembro-me de ouvir o seu lamento por não ter
realizado as dez sessões previstas, mesmo se a hipertermia pouco mais pudesse
do que adiar, e por pouco tempo, o inevitável.
Em Portugal, e pelo que indagámos, a hipertermia só era praticada no
Instituto CUF-Porto. Enviou-se um email ao médico referenciado no sítio da
instituição: “Tomei conhecimento de que esse instituto oferece sessões de
hipertermia para pessoas com cancro, nomeadamente, como é o meu caso,
cancro da cabeça/pescoço (...). Marquei já consulta com o doutor para o dia 31
de Maio de 2017. Uma vez que resido no Alentejo e as deslocações ao Porto
obrigam a um esforço adicional, pretendia antecipadamente saber se reúno as
condições necessárias para iniciar o tratamento”. A resposta veio rápida e por
via telefónica: OK quanto ao tratamento de hipertermia e até poderia antecipar
a primeira consulta para o dia 24 de Maio de 2017.
O que é a hipertermia? A hipertermia oncológica é um método
terapêutico complementar dos tratamentos oncológicos convencionais como a
cirurgia e a quimio-radioterapia, embora possa ser utilizado isoladamente, em
monoterapia. Visa destruir as células cancerígenas de forma não invasiva
através do sobreaquecimento induzido da temperatura do corpo entre 39º e 45º,
simulando assim a febre, que é um mecanismo de defesa natural do organismo.
Como as células tumorais possuem uma membrana alterada, a hipertermia
provoca não só a morte celular programada por via do sobreaquecimento como
reduz também a velocidade a que as células tumorais se multiplicam, ou inibe
mesmo a sua multiplicação. Conforme o tipo de tumor, são administradas dez
sessões que podem durar entre 50 a 90 minutos e sem necessidade de
internamento.

72
De tudo o que líamos, resultava que a hipertermia destruía
selectivamente células cancerígenas sem causar toxicidade no organismo e
efeitos secundários, o que a Paula apreciava saber. O que se passou entretanto?
Apercebemo-nos que a clínica alemã onde a Paula queria deslocar-se – estamos
a falar do mesmo período temporal – incluía a hipertermia no pacote de
tratamentos que lhe foi formalmente proposto. A fazer sessões de hipertermia,
então que as fizesse de forma integrada, na Alemanha, conjuntamente com
outros tratamentos, pensava ela. E assim se desmarcou a consulta no Porto. No
final do capítulo falaremos desta clínica alemã e, uma vez mais, de hipertermia.

Iscador (viscum album)

Contrariamente ao que, por vezes, se pensa nos círculos da medicina


alternativa, o tratamento com visco branco não faz parte do prontuário da
homeopatia. O visco branco ou, na designação latina, viscum album, é uma
planta semi-parasita com propriedades medicinais que cresce em árvores como
o carvalho, o abeto ou a macieira e cujo extracto é usado como terapia
complementar no tratamento do cancro, particularmente na Alemanha e Suíça.
Rudolf Steiner, médico e fundador da “Society for Cancer Research” (medicina
antroposófica), foi o primeiro a propor, em 1920, o extracto de visco branco
para, segundo ele, estimular o sistema imunitário, matar células cancerígenas, e,
ainda, reduzir a dor e os efeitos secundários em pessoas submetidas a quimio e
a radioterapia. A substância é hoje comercializada sob várias marcas, uma delas
– e das mais conhecidas – é o Iscador.
Este medicamento é uma opção natural sem qualquer reforço químico.
As caixas com injecções chegavam de Estugarda, na Alemanha, eram caras e
compradas numa clínica inspirada na medicina antroposófica, em Lisboa, na
avenida Almirante Reis, onde a Paula era seguida por uma médica diplomada
por uma universidade portuguesa e experimentada no tratamento.
Aconselhada por esta médica e encorajada pela enfermeira oncológica alemã
que referimos atrás, tomou as injecções durante meses.
O tratamento do cancro com Iscador não está isento de controvérsia, bem
pelo contrário. Exemplifiquemos com duas posições claramente anti-Iscador,
uma fortemente céptica e outra que quase roça a caricatura, mas ambas se
inscrevendo numa estratégia de invalidação do Iscador pelo establishment
oncológico:

No “The Skeptic's Dictionary”33 pode ler-se: “(...) Steiner, o primeiro a


propor o viscum album como um tratamento anticancro, argumentava que
uma vez que a substância é um parasita botânico curaria o cancro – que
ele pensava também como um parasita dos tecidos e órgãos humanos.
No entanto, apesar desta analogia inteligente, o viscum album é listado
pela “American Cancer Society” como uma substância cuja eficácia não

33 http://skepdic.com/anthroposophicmedicine.html

73
foi comprovada. O Iscador também é frequentemente apresentado por
defensores de medicamentos alternativos e complementares como tendo
o poder de estimular o sistema imunológico, embora não haja evidências
claras de que o faça. No entanto, mesmo que o Iscador estimule o sistema
imunológico, nada garante que tenha necessariamente algum efeito sobre
o cancro, enquanto que a quimio e a radioterapia, ao destruírem células
malignas, podem ajudar a restaurar o sistema imunológico diminuído (itálico
nosso).

Num artigo datado de 2015 e intitulado “Terapias Questionáveis do


Cancro”34, um outro autor, ultraconservador, é ainda mais contundente (quanto
ao Iscador e a muitas outras terapias que passa em revista). Escreve ele:

“Iscador é um extracto de viscum album proposto por Rudolph Steiner,


pela primeira vez, em 1920, como tratamento do cancro. Steiner fundou a
“Society for Cancer Research” para promover o extracto de viscum album
e práticas baseadas no ocultismo a que chamou medicina antroposófica.
Um relatório daquela instituição, em 1962, alegava que o tempo de
colheita das plantas era importante porque elas reagem às influências do
sol, da lua e dos planetas. Várias preparações com extractos aquosos
desta substância foram estudadas com a esperança de encontrar um
agente eficaz anticancro. Contudo, em 1984, um grupo de trabalho
especializado da “Swiss Society for Oncology” concluiu pela inexistência
de provas de que o Iscador fosse efectivo contra os cancros humanos
(...)”.

Tais controvérsias eram do conhecimento da Paula, que as filtrava à sua


maneira, pois sabia do inegável valor medicinal de algumas plantas, tinha
outras fontes de informação e queria continuar a tomar o Iscador,
reconhecendo-lhe validade terapêutica.

Alimentos e suplementos

Quando leu o livro “Anticancro”, um modelo de abertura mental a


múltiplas influências, ela estava mais do que desperta para perceber a demanda
do autor – médico e investigador –, e sobretudo o interesse das muitas páginas
de informação útil que oferece sobre alimentação e o levaram a manter sob
controlo um cancro no cérebro durante vinte anos. A Paula acolheu no seu
coração essas palavras e fez delas também um programa de acção na mudança
de hábitos de vida: “[O meu livro, diz Servan-Schreiber] apresenta métodos
naturais para cuidar da saúde que podem contribuir para evitar o
desenvolvimento do cancro ou para ajudar durante o seu tratamento, como

34 https://www.quackwatch.org/01QuackeryRelatedTopics/cancer.html

74
complemento dos meios convencionais (cirurgia, radioterapia, quimioterapia).
Trata-se de eliminar as toxinas pro-inflamatórias do nosso ambiente, adoptar
uma alimentação anticancro, procurar o equilíbrio emocional e satisfazer a
necessidade que o corpo tem de actividade física (...). É muito pouco provável
que os nossos médicos sugiram estes métodos” (p. 92). E dá um exemplo:
“Após a cirurgia e a quimioterapia pedi conselho ao meu oncologista. O que
deveria fazer para levar uma vida saudável e que prevenção poderia tomar
para evitar uma recidiva?” A resposta, extraordinária: “Não há nada de especial
a fazer. Leve uma vida normal”. Servan-Schreiber insiste: “Mas não existe um
tipo de exercício que eu possa praticar? Um regime alimentar a seguir ou a
evitar? Não deveria cuidar também do aspecto mental? A resposta do meu
colega desnorteou-me: ‘Nesse campo, faça o que lhe apetecer” (p. 25).
A Paula não queria fazer o que lhe apetecia mas o que se impunha fazer.
Nesta secção dedicada à alimentação faremos uso de material muito diverso,
sejam listas de compras de alimentos em lojas biológicas; listas de suplementos
descobertos pela Paula ou recomendados por amigos bem informados;
reflexões e imagens belíssimas que ainda hoje podem ser lidas e apreciadas no
seu blogue “Trumbuctu” com sugestões de dietas saudáveis, receitas para a
preparação de pratos, modos de colher e utilizar plantas silvestres. Enfim, posts
que reflectem a consciência que foi ganhando, desde 2006, sobre a importância
da alimentação natural e também as experiências que foi realizando quer na
horta biológica quer na sua cozinha, onde a bancada estava sempre repleta de
germinações e culturas verdes, sem esquecer as filas muito aprumadas de
suplementos alimentares.
Julguei pertinente incluir toda esta informação a pensar nos benefícios
que dela outros poderão retirar. Mas nunca será demais insistir na necessidade
de aconselhamento com um médico da medicina convencional,
preferencialmente de mente aberta, ou com um especialista qualificado da
medicina alternativa, antes de iniciar qualquer regime com alimentos,
suplementos e outros produtos para a saúde.
Quando me deslocava a Lisboa, ela entregava-me uma lista de compras a
satisfazer numa loja biológica. Dou em seguida conhecimento de alguns itens
que constavam invariavelmente dessa lista, sem fazer quaisquer considerações
adicionais quanto às propriedades nutritivas e vocação curativa. Afinal, a sua
ideia era alimentar-se bem e sempre numa rota que contrariasse o apetite voraz
do cancro por certo tipo de alimentos, trocando-lhe as voltas. Alguns exemplos
de alimentos, entre muitos outros: Trinca de amêndoa; Avelã a granel; Bagas
goji; Pão de espelta integral; Arroz integral; Feijão azuki; Tofu e Seitan;
Brócolos; Alho francês; Cebolinho; Azeite extravirgem; Chá verde 1ª colheita
Bancha Yanagicha; Chá de cavalinha; Chocolate negro 99%; Cacau cru em grão;
Água de coco; Leite de coco; Pimenta negra; Gengibre; Kefir; Cogumelos
shiitake, pleurotus, maitake e outras variedades; Curcuma [açafrão-da-Índia];
Ameixas; Mirtilos; Framboesas; Amoras silvestres; Arandos; Abacate.
Amigos e amigas, atentos como ela à alimentação e suplementação
alimentar, faziam-lhe chegar novas sugestões compatíveis com o regime
anticancro que procurava seguir e que também investigava, melhorando-o.

75
Alguns exemplos de suplementos e produtos para a saúde: Bebidas e batidos
verdes [com verduras e legumes preferencialmente da agricultura biológica];
Selenium; Vitamina D complex; Vitamina C oral; Calcium Magnesium; Gentle
Iron 20 mg (cápsulas com ferro); P-A-L Plus Enzymes (suplemento de enzimas
para uma boa digestão dos alimentos); PrugX (elixir energizado que inibe a
libertação de peróxido de hidrogénio pelas células não sadias, contribuindo
assim para a sua eliminação); Spirulina bsf3 (uma micro alga extremamente rica
em proteínas que pode conter até dezoito tipos de aminoácidos, vitaminas A, B,
E e H, minerais e diversas enzimas).
Também no seu blogue “Trumbuctu” (http://trumbuctu.blogspot.pt/) a
Paula publicou, desde 2006, um rico manancial de posts, todos eles guiados pelo
amor imenso que a ligava à terra, às plantas e aos animais. Seguem-se também
alguns exemplos. Limitámo-nos a rearranjar graficamente esses textos, mas as
palavras são integralmente as suas; também não seguimos sempre a sequência
cronológica dos posts de modo a conferir uma maior unidade ao conjunto; por
fim, lamentamos não poder incluir as belíssimas fotografias, da autoria da
própria Paula, e que ilustravam cada uma das peças escritas, podendo, no
entanto, ser apreciadas numa visita ao blogue:

8 de Outubro de 2014
Ser
É na terra que encontro o inteiro do ser Ser.
A ela acabo sempre por voltar,
A ser Ser.

24 de Janeiro de 2016
Um desenrolar lento do corpo
Foi na horta que iniciei esta parte do meu percurso de vida, quase dez anos
passados [desde 2006]. Primeiro com hortícolas e ervas de cheiro comuns. Sem
esquecer, pelo meio, e porque sem uns não existem os outros, os habitantes da
horta, como o Trumbuctu (um gorgulho), que deu o nome a este blogue, e a
minha querida Estrela [a sua gata dilecta]. Só mais tarde alarguei horizontes e
comecei a pousar o olhar sobre outras ervas selvagens – aromáticas, medicinais
e, muitas delas, comestíveis. Foi tudo de dentro para fora, como um desenrolar
lento do corpo até me sentir mais ou menos de pé.

19 de Fevereiro de 2015
As pequeninas sementes
Sinto-me como as pequeninas sementes, Cravos da Índia anões (Tagetes patula),
à janela e em estufa, a emergir do solo, a romper a terra. Como é que algo
aparentemente tão frágil consegue vencer aquela barreira de solo na procura da
luz?
...
Este foi um bom ano de urtiga (Urtica dioica), húmido e chuvoso. Podemos fazer
tantas coisas com ela: comer crua, cozinhada ou em batidos com maçã; fazer
adubo; óleos; chá.

76
...
Morugem (Stellaria media). Sobre esta erva uma ficha completa aqui [trata-se de
um link]. O Camané [o seu galo preferido] adora, é a erva das galinhas.

23 de Agosto de 2014
Espécies de Tomilho
Tomilho das dunas (Thymus carnosus boiss), o meu preferido de todos os
tomilhos, um endemismo ibérico. O aroma é inconfundível e distingue-se bem,
acho eu, dos outros tomilhos que conheço. Maravilhoso. É das suas flores que
as abelhas do Sr. Francisco [um produtor local de mel] colhem o pólen de onde
nasce o meu mel preferido. E por causa desta publicação fiquei a conhecer mais
duas espécies de tomilho: o Thymus canphoratus e o Thymus capitellatus, que
nunca vi.

30 de Março de 2014
Receita de tarte crua, numa versão pessoal, com os ingredientes que tinha em casa
[inclui uma bela e apetitosa fotografia].

Miolo de amêndoa, castanha do Pará, 1 limão, arandos vermelhos, tâmaras e


mel. Tempo de confecção: 30 minutos. Sim, 30 minutos!!! Confesso que foi tudo
a olho, utilizei a quantidade de ingredientes que tinha disponível, por isso não
vos posso dar as quantidades, mas vou tentar explicar.

Primeiro faz-se a base da tarte, com a amêndoa ralada e as tâmaras. Como a


quantidade de tâmaras que tinha não era suficiente para ligar a "massa"
adicionei 2 colheres de sopa de sumo de limão*. Triturei tudo e adicionei o
sumo de limão para ligar. Moldei a massa e reservei. A base convém ficar mais
para o seco para não colar na forma e poder ser moldada. Para o creme de
cobertura utilizei as castanhas do Pará*, trituradas, com o sumo de 1 limão
(menos as 2 colheres de sopa usadas na base) e o mel* q.b. Deve fica uma massa
consistente, para se suster, mas suficientemente maleável para cobrir a base.
Decora-se com os arandos vermelhos e umas farripas de coco seco ralado.
Guarda-se no frigorífico.

Podem utilizar-se quaisquer frutos secos que se tenha em casa, mas para o
creme ser branco convém usar-se caju, amêndoa pelada, avelã pelada ou
castanha do Pará. Se utilizarmos noz, por exemplo, fica acastanhado. Também
para a base podemos utilizar passas em vez das tâmaras, e em lugar de mel o
agave. E é tudo!

* Nota: Para ser mesmo bem feito, de acordo com a cozinha crudívora, as
amêndoas devem ser inteiras e peladas, as tâmaras, as castanhas do Pará e os
arandos têm de ficar de molho de um dia para o outro (a hidratar). Depois
escorrem-se bem e deixam-se secar um pouco. O mel deve ser cru, mas não
tenho.

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16 de Abril de 2012
Morugem, uma erva comestível
Da horta: morangos, flores de salva e morugem (Stellaria media), uma erva para
a qual já tinha olhado e que me pareceu comestível. Lembro-me vagamente de
alguém um dia me ter chamado a atenção, aqui no monte, para uma planta que
acho ter sido esta. Identifiquei-a através do livro “Top 100 Plantas Medicinais”,
de Anne McIntyre, e fui confirmar no site “Plants for a Future”. Segundo esse
site, tem um valor razoável como planta comestível e também pode ser
cultivada como legume. Ainda de acordo com a mesma fonte, não convém
comer com muita frequência pois contém sapomina.

11 de Março de 2012
Da horta, em Março
Durante o Inverno o que mais me custou foi manter a minha alimentação, vi-me
condicionada a reduzir a quantidade de alimentos crus, tenho feito mais ou
menos 50% de cada. Por um lado, porque da horta pouco podia colher, por
outro tinha vontade de alimentos quentes; e, por último, o trabalho por aqui
tem sido tanto (com muitos acontecimentos pelo meio) que se tornou difícil de
gerir. Mas em dias de sol, quentes, com a Primavera a anunciar-se, torna-se
mais fácil. Eis o almoço de um desses dias, 100% cru: “queijo de amêndoa”
polvilhado com sementes de linhaça dourada, salada de alface, de cenoura com
nabo e coentros, a que juntei pedaços de maçã. Tempero com azeite e limão.

24 de Janeiro de 2012
Ir e vir
De regresso à horta, ainda parca em legumes para comer, só com favas e
ervilhas a crescer. Uma volta pelo monte trouxe-me saramago (Raphanus
raphanistrum), dente-de-leão (Taraxacum officinale) e catacuzes (Rumex crispus)
para fazer um batido de ervas.
...
Folha do dente-de-leão. A sua textura e os pelinhos ajudam a distingui-la de
outras muito parecidas.
...
Batido de ervas selvagens com banana e limão. Foi o meu jantar de ontem,
altamente nutritivo. Acompanhei com bagas goji e crackers barrados com pasta
de sementes de girassol germinadas. No fim, uma sopa de lentilhas e fiquei
cheia “:)

4 de Janeiro de 2012
Quando...
... quando a inspiração vem e nos presenteia com deliciosas empadinhas de
grão e sementes de girassol germinadas, recheadas com iogurte de amêndoa e
sementes de mungo [Infelizmente, não nos é possível reproduzir as fotos, mas
pode aceder-se ao blogue...].

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17 de Dezembro de 2011
Pura delícia!
O almoço de hoje: “tosta” de trigo sarraceno germinado barrada com iogurte
cru, de amêndoa, e rebentos de alfafa (luzerna). A acompanhar, feijão mungo
germinado sobre uma cama de rebentos, também de alfafa. Feijão mungo e
alfafa serão duas novas culturas que iremos experimentar na Primavera. 100%
cru, 100% nutritivo, 100% delicioso.

28 de Outubro de 2011
Flores
Ontem foram plantadas podas de flores, muitas, da generosidade dos outros.
Os primeiros tupinambos colhidos foram todos dados. Levei para a D. Aldina,
alguém que conheci através do trabalho e que ficou amiga. Em troca trouxe
batata doce e tomates de “dependurar”, como ela própria diz. Duram quase
todo o inverno pendurados em cachos. Na volta passei pela D. Eduarda, uma
amante de flores, deixei mais tupinambos e trouxe um jardim. Precisei de mais
de vinte vasos para tudo e muitos ficaram com várias podas: suculentas, cactos,
cravos, rosas, flores de várias espécies, arbustos... um jardim “:). Gosto do modo
como as pessoas aqui recebem, há quase sempre troca e a “contabilidade”
mesquinha não tem lugar.
...
Ao jantar, suflê de abóbora com grão germinado (amornado) e molho de
campanha, ambas as receitas retiradas da “Associação Terrapia”, do caderno de
receitas. Os legumes são todos da nossa horta, excepto o grão. Definitivamente,
um regime alimentar a explorar cada vez mais.

7 de Abril de 2014
Dias brilhantes
Dias que nos fazem andar muito mais por fora do que por dentro. Já estávamos
a precisar de dias assim! Novas experiências, novos processos, e as ervas
sempre presentes. Gerânios, folhas e flores, com um aroma quase de rosa. Está
no tempo de colher muitas das flores agora no seu auge. Um pouco antes de
florir ou no início da floração. O momento do despertar, das primeiras
espreguiçadelas da planta, é a melhor altura de colher algumas das suas partes.
...
Ontem, limpámos o lago. Tarde, muito tarde. Já havia ovos de rã e elas estão,
nesta altura, a acasalar. Arrependi-me. A melhor altura será Janeiro, Fevereiro;
ou melhor ainda, não limpar e encontrar processos naturais de limpeza.
Deparámo-nos com duas salamandras que por lá nadam, espero, e plantámos
um nenúfar e outra planta aquática da qual não me lembro o nome. Virei
depois actualizar. Um dia brilhante para todos vocês!

16 de Março de 2012
O escuro de Outubro
O escuro de Outubro, palavras ditas pela Ti Maria Arsénio – como pediu para
ser chamada – ao explicar-nos quando tinha semeado o cebolo. Estas palavras

79
ecoaram cá dentro, no escuro que há dentro de mim. O escuro de Outubro é a
passagem da lua nova para quarto crescente; enquanto explicava fazia gestos
largos, apontando o lado em que a lua nascia, cheia, e o outro, oposto, em que
no céu, negro, nada se via a não ser o escuro de Outubro. A sua linguagem era
tão expressiva que me transportou para outro tempo, para um tempo antigo em
que o homem lia nos astros, no vento, no escuro a melhor altura para as
sementeiras. E senti-me na noite apesar de ser dia. A conversa desenrolou-se ao
mesmo tempo que ela ia desbastando o cebolo para me dar alguns pés,
enquanto eu e a Zília, que me levou a conhecer esta senhora de quase oitenta e
um anos, íamos tirando alguma erva da pequena leira. Finalmente, percebi a
diferença entre cebolo e cebola. Dizia ela que o cebolo é o pai da cebola. O
cebolo nasce da semente de cebola e quando pronto é transplantado para
depois dar a cebola. Trouxe mais de cem pés, semeados no escuro de Outubro, e
agora transplantados quase no escuro de Março, que deverá ser lá para dia
vinte e três.

16 de Dezembro de 2010
Tupinambos 3ª geração (Helianthus tuberosus)
Tupinambos colhidos em Dezembro. São já a nossa 3ª geração. Óptimos crus,
fazem-me lembrar o sabor do coco, com uma textura muito agradável. Têm
como propriedades terapêuticas baixar o nível de glicemia no sangue, sendo
por isso particularmente indicados nos regimes alimentares dos diabéticos.
...
Tupinambos de novo, já na quarta geração. Estão enormes! Quase com três
metros de altura e repletos de flor, espero que signifique uma profusão de
tubérculos na terra. Mas com o tempo tão instável que tem feito este ano, muita
humidade e chuva, estão, pela primeira vez, com oídio nas folhas. Suspeito que
possa afectar a raiz e fazer baixar a produção.

Desintoxicação

A desintoxicação era um conceito familiar à Paula, praticava-a


espontaneamente há muitos anos, sem recorrer a especialistas, mas agora o
desafio era diferente e de uma outra grandeza. Os jejuns entrecortados por
sumos e batidos verdes matinais não satisfaziam já a percepção que ela tinha da
importância de libertar o seu organismo – e o sistema imunitário – de toxinas,
não só as que adquiria por via da ingestão de alimentos, mas também as
emocionais, associadas ao stress, a situações de conflitualidade ou a sentimentos
de impotência.
Lembro-me, por exemplo, dos enemas de café que fez regularmente
durante certos períodos, ou de a conduzir por mais de uma vez a Carcavelos, a
uma clínica de hidroterapia do cólon gerida por um terapeuta francês em quem
confiava e que oferecia, segundo se lê no site, um método de desintoxicação do
intestino grosso que consiste em irrigar a totalidade do cólon com água doce e

80
filtrada, descolando matéria fecal e velhos detritos que podem estar alojados
desde há muitos anos nas paredes do intestino.
Recordo, igualmente, o dia em que experimentou uma máquina de
electro-hidroterapia. Sentada entre pinheiros, com os pés mergulhados numa
bacia com água e cloreto de sódio (sal), tinha à sua frente, quase ao alcance da
mão, o maciço rochoso e perfumado da Serra da Estrela, perto de Seia, onde
fôramos visitar um amigo que tinha passado por uma experiência de cancro e
sobrevivido. Regressada a Lisboa, a Paula viria a adquirir uma dessas máquinas
modelo Hidrolinfa para seu uso pessoal, a qual vinha numa reluzente mala
preta e incluía um kit com um bacia e um par de eléctrodos. Resumidamente, a
máquina Hidrolinfa activa uma corrente de baixa amperagem, através de um
eléctrodo na água, corrente essa que é potenciada pelo cloreto de sódio. Ao
fenómeno resultante da passagem da corrente eléctrica pela água chama-se
electrólise, o qual é responsável pela alteração da cor da água na bacia. Essa
alteração deve-se à reacção química verificada entre a água, o cloreto de sódio e
a corrente eléctrica. A restante sujidade visível na bacia resulta da reacção das
toxinas do nosso organismo em contacto com a água ionizada. A hidroterapia
actua sobre o sistema linfático de modo a eliminar as toxinas e conseguir uma
desintoxicação do organismo.
Um post muito crítico da electro-hidroterapia foi publicado no já nosso
conhecido blogue “De Rerum Natura. O título provocador do post é “In rust we
trust” [Na ferrugem acreditamos] e dá o mote para o conteúdo do texto que
começa assim: “Um dos nossos leitores enviou-nos um email sobre algo que
suspeitava (com imensa razão) ser uma charlatanice e que consiste numa coisa
que dá pelo pomposo nome de hidrolinfa”35. Na caixa de comentários desse
post, uma generosa sequência de comentários de leitores exerce, em alguns
casos, e bem, o direito ao contraditório.
Nesses dois dias em Seia a conversa com o nosso amigo foi profícua. A
Paula obteve muita informação, embora alguma dela recebida com reserva,
como foi a indicação da “Navarro Medical Clinic”, nas Filipinas, para a
realização de um teste que supostamente detecta a presença de células
cancerosas muito antes do desenvolvimento de sinais ou sintomas, por exemplo
“29 meses de antecedência para um cancro no cérebro, 27 meses para um fibro
sarcoma do abdómen, 24 meses para um cancro da pele e 12 meses para um
cancro nos ossos” (informação retirada do site da clínica).
Avaliámos os dois esse site36 bem como a credibilidade do teste, que é
apresentado como “um teste de triagem do cancro, seguro, económico, não
invasivo e preciso”, e acabámos por divergir no veredicto e na decisão: a Paula
iria enviar para as Filipinas uma amostra em pó da sua urina para ser testada (o
que a obrigou a uma laboriosa preparação, que envolvia o uso de acetona e
álcool de modo a obter os sedimentos que seriam depois acondicionados numa
saqueta de plástico). Ela queria passar a receber regularmente relatórios dos
testes realizados nessa clínica para verificar se os tratamentos alternativos

35 O post pode ser consultado em http://dererummundi.blogspot.pt/2008/12/in-rust-we-trust.html


36 http://www.navarromedicalclinic.com/

81
estariam a produzir algum efeito na evolução do cancro. Nestes momentos,
mesmo que as nossas conversas decorressem com tranquilidade, o que nem
sempre acontecia, um cancro de grau IV interpunha-se entre nós. Devia, pois,
ouvi-la e respeitar a sua vontade.
Passado algum tempo, cerca de três semanas para a Europa, chegaram os
resultados. Apresento-os e, em seguida, referirei as observações que os mesmos
me mereceram numa conversa que mantive com a Paula. O relatório dizia o
seguinte:

Cara Paula, o resultado do seu teste de HCG, realizado em 27.5.2017 é


Índice + 4 (54,0 U.I. - Unidades Internacionais), o que significa que se
encontra no intervalo POSITIVO (“0” U.I. = negativo; “1 a 49” U.I. =
duvidoso [essencialmente negativo]; “50 U.I e superior” = positivo). Um
resultado POSITIVO indica a presença de gonadotropina coriónica
humana (HCG), uma hormona encontrada na urina de mulheres
grávidas. Numerosos relatórios médicos mostram que essa hormona
também está presente na urina de pacientes com cancro. No entanto, o
resultado deve ser correlacionado com informação médica (raio-X,
tomografias, ultra-som, ressonância magnética, etc). Uma biopsia poderá
também confirmar o diagnóstico de cancro. Um HCG elevado é
possivelmente devido a resíduos (microscópicos ou não) do carcinoma
de células escamosas da hipofaringe (...). O teste não pode determinar o
estadio do cancro, mas quando feito regularmente, digamos uma vez por mês,
permite acompanhar e monitorar o desenvolvimento da doença (...).
(itálicos nossos).

A minha primeira observação era óbvia: porquê contactar uma clínica a


milhares de quilómetros, que faz voar embalagens com sedimentos de urina
sobre zonas do mundo onde existiriam certamente clínicas e hospitais que
poderiam realizar esse mesmo teste – afinal um simples teste de gravidez?
Porquê só nas Filipinas? Se fosse um teste fiável e válido para avaliar a evolução
de um cancro não teria sido, há muito, adoptado em todo o lado, incluindo
unidades de saúde em Portugal?
A segunda observação: o custo de cada teste era de 55 dólares e, supõe-
se, deveria ser repetido inúmeras vezes (a periodicidade recomendada pela
clínica é mensal). Imagina-se facilmente a forte probabilidade de alguém com
cancro desenvolver um comportamento de tipo compulsivo que o leve a testar,
e a re-testar, de modo a apaziguar a ansiedade de responder à pergunta: “Será
que melhorei?”
A terceira observação decorre, intuitivamente, da segunda e prende-se
com a interpretação dos resultados. Por email, a Paula não só enviou a amostra
de urina como também alguma informação sobre o seu caso (talvez o não
devesse ter feito para ser realmente um “teste cego”, sem conhecimento de
antecedentes clínicos). Tínhamos reparado que nos exemplos apresentados no
site era recorrente o resultado “Índice +4 U.I. = 50 a 400 U.I. – Fracamente
Positivo” (“faintly positive”). Mesmo sabendo-se que o cancro da Paula, à

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altura do primeiro contacto com a clínica, era muito avançado e que este teste
recusa determinar o estadio de qualquer cancro, não deixa de ser intrigante a
coincidência deste resultado com os exemplos constantes no site, como se o
objectivo fosse duplo: não negar a evidência de cancro, mas também não
assustar demasiado o cliente (confrontando-o com resultados emocionalmente
arrasadores) de modo a que este sentisse que valeria a pena repetir o teste de
HCG. Porque não lhe apareceu um resultado compatível com o seu cancro
muito avançado, talvez um “Índice ++5 U.I. = 401 a 999 U.I. - Inequivocamente
Positivo” (“definitely positive”)? Diríamos que o resultado que chegou às mãos
da Paula deveria ser entendido como um “resultado promissor apesar de tudo”,
um compromisso entre, por um lado, o constrangimento de comunicar a
evidência de um cancro e, por outro, incentivar a repetição do teste, enfim, a
garantia de que o “business as usual” [negócios, como de costume]
prosseguiria37.

Biorressonância

A biorressonância e o reiki sempre apareceram associados na cabeça da


Paula e foram extremamente importantes nos seus últimos meses de vida. Sem
estas duas actividades com alcance terapêutico, o quotidiano da Paula e o seu
equilíbrio mental e emocional teriam ficado seriamente comprometidos.
Reiki significa “energia universal” e é uma terapia complementar
japonesa que trabalha em conjunto com todas as medicinas e terapias, nunca
invalidando ou substituindo qualquer uma delas. O reiki aplica um conjunto de
técnicas que permitem revitalizar, equilibrar e auxiliar a pessoa no seu processo
de cura. O reiki, por si, não cura. O efeito do reiki é aumentar a capacidade
autocurativa do paciente das seguintes formas: a) produzir um profundo estado
de relaxação que pode aliviar o stress; b) aliviar estados de depressão e de
cansaço; c) eliminar ou reduzir os efeitos secundários de fármacos, sobretudo
da quimioterapia. As técnicas de reiki podem ser aplicadas: a) estando o
paciente sentado ou deitado, sempre com a roupa vestida; b) o praticante passa
as suas mãos sobre o paciente em determinadas posições, sem exercer pressão
ou manipulação de algum tipo; c) o praticante pode pousar as suas mãos em
pontos que o paciente peça, caso tenha dores, mas seguindo um rigoroso código
de ética; d) as sessões podem durar entre 30 minutos e 1 hora e meia,
dependendo das necessidades do paciente (adaptado do site da Associação
Portuguesa de Reiki).
A biorressonância, por seu lado, obrigava-a também a sair de casa e
visitar a sua amiga Teresa que a iniciou nesta terapêutica. A mala com o
equipamento viajava quase diariamente entre a sua casa e a da amiga. A Paula
interessou-se seriamente pelos princípios da biorressonância, sobretudo pelos
módulos que respeitavam ao cancro, assimilando tudo sobre padrões de

37 Um artigo sobre esta clínica e o método HCG pode ser lido no site “Respectful Insolence”
(https://respectfulinsolence.com/2015/07/28/another-unnecessary-death-in-the-making-thanks-to-
cancer-quackery/).

83
frequência e o manuseamento da antena (Rayotensor) que tanto a espantava
com os seus movimentos ora oscilatórios ora lineares que identificavam estados
opostos de saúde.
Da janela do salão da caravana, no Monte da Sete Amendoeiras, via-a
chegar, quando já se encontrava muito debilitada, com a pesada mala, retirá-la
da carrinha e caminhar em direcção à casa da mãe para a cumprimentar. Mas
como o esforço era demasiado, pousava a mala a meio do caminho e sentava-se
nela para ganhar fôlego. Era tocante. À distância, e antes de a ir abraçar, não
podia deixar de me comover com a sua determinação e estoicismo, a força de
vontade de quem se sentia declinar e, mesmo assim, agarrava-se firmemente
àquela terapia e aos momentos de profunda empatia com a sua amiga Teresa. A
biorressonância e as visitas a casa da Teresa eram o primeiro segmento de um
tripé vital de sustentação anímica da Paula.
Quanto ao reiki, o segundo segmento do tripé, direi apenas umas breves
linhas, já que se tornou imprescindível durante os meses em que o praticava
com alguém que não cheguei a conhecer e que, tanto quanto percebi, não
mostrou um comportamento exemplar e respeitador do estado frágil da Paula.
Abstenho-me de dizer mais sobre assunto tão melindroso de que apenas
conheço os contornos pelas palavras magoadas da Paula, e a sua profunda
desilusão, quando deixou de frequentar o centro de reiki. A mãe, que tinha
conhecimentos de reiki, fazia algumas sessões em casa, mas já não era a mesma
coisa. O importante era aquela rotina estabelecida que trazia sentido e ânimo à
sua vida ameaçada: por um lado, a prática da biorressonância com a Teresa, na
casa da amiga, apreciando o convívio, o relacionamento fácil e reconfortante;
por outro, o reiki iniciado com alguém a quem começou por reconhecer
qualidades que contribuíram para o seu bem estar durante breves meses.
O terceiro segmento do tripé de sustentação anímica da Paula era a
natação em aulas colectivas com pessoas já de alguma idade, mas que lhe
permitiam dosear o esforço em função da sua condição física. Tudo o resto
estava-lhe vedado, sobretudo a vida profissional e os trabalhos na horta, porque
já não tinha energias para os realizar, e as que lhe restavam eram despendidas
na resistência não só ao cansaço provocado pelas dezenas de deslocações a
unidades de saúde, mas também à dor e ao desgaste psíquico que o cancro lhe
infligia.
Porque se interessava a Paula pela biorressonância? Por fazer todo o
sentido para ela a ideia de que no organismo humano e dos animais existem
padrões de frequências bioenergéticas que podemos identificar como estados de
equilíbrio, ou de saúde, dos órgãos e tecidos. Quando esses padrões de
frequências bioenergéticas se encontram alterados, e isso pode ser comprovado
por uma máquina de biorressonância, estamos perante tipos de desequilíbrio na
saúde que poderão ser identificados e compensados por esta terapia alternativa.
Sempre que uma antena (ou Rayotensor) ligada a uma máquina de
biorressonância produz um movimento rotativo estaremos na presença de
frequências bioenergéticas regulares e, portanto, de funções equilibradas de um
organismo. Pelo contrário, quando o movimento da antena é linear, podemos
suspeitar da existência de perturbações funcionais de um órgão ou tecido que

84
convém averiguar, eventualmente com o recurso também à medicina
convencional. A Paula levava muito a sério estes princípios e estas práticas,
mesmo sabendo que a biorressonância não se propõe diagnosticar ou tratar
cancros como o faz a oncologia.
Num livro38 que procura sistematizar o conhecimento sobre a
biorressonância e apresentar os aparelhos de que esta se serve, bem como os
modos da sua utilização, Dietmar Heimes – um continuador da obra de Paul
Schmidt, o fundador da biorressonância – assinala que a medicina oficial não
aceitou, até agora, reconhecer os princípios desta terapia que se inclui nas
abordagens médicas suaves, globais e alternativas.
A biorressonância de Paul Schmidt procura investigar e aplicar
frequências e espectros de frequências bioenergéticas com vista a obter
harmonizações no nosso organismo. Um exemplo simples é o de dois diapasões
idênticos que começam a vibrar em simultâneo apesar de só um deles ter sido
tocado. Podemos dizer, então, que estamos na presença de frequências idênticas
ou, mais simplesmente, que há correspondência (harmonização) entre as
frequências actuais de órgãos e tecidos de um corpo, e as frequências que foram
padronizadas em milhares de observações e se encontram armazenadas nos
aparelhos de biorressonância como o Rayocomp PS 10. Este aparelho,
transportável e relativamente fácil de usar por terapeutas ou pessoas
interessadas, permite harmonizações de centenas de valores de frequências.
Aprofundando a imagem dos dois diapasões, diríamos que na biorressonância
se procura a reactivação de “diapasões” que não oscilam – ou vibram – no
nosso organismo devido a perturbações internas ou ambientais.
A Paula também subscrevia, sem hesitar, a ideia de Heimes que para
reencontrar e manter a boa saúde do corpo é nossa responsabilidade suprimir
interferências nefastas, em particular a poluição electromagnética envolvente a
que ele chamava “electro-smog”. Por isso, ela passou a dormir com uma
pequena pirâmide no quarto – que era afinal um aparelho gerador de
biocampos – para neutralizar e compensar as frequências emitidas por antenas
retransmissoras ou torres de electricidade de alta tensão existentes nas
redondezas da sua casa.
Seja ou não comprovável o valor preditivo e terapêutico da
biorressonância, e mesmo que, para os mais cépticos, tudo não passe, afinal, de
um efeito-placebo, para a Paula os ganhos anímicos sobrepunham-se e
tornaram a biorressonância indispensável nos últimos meses de vida, só
deixando de a praticar quando a sua saúde se deteriorou subitamente. A
biorressonância e o reiki era ainda o que a fazia sair de casa, relacionar-se com
outras pessoas, adquirir alguma serenidade.

38Dietmar Heimes (2103), La biorésonance d’après Paul Schmidt. Introduction, appareils, utilisation (1ª edição
em língua francesa a partir da 4ª edição alemã), Éditions Spurbuch

85
A saga da homeopatia

O encontro da Paula com a naturopatia e a homeopatia, ou antes, com


alguns representantes destas duas disciplinas, não foi feliz. Quanto às razões do
insucesso, prefiro não me desdobrar em conjecturas, agora que tudo terminou
para a minha amiga, mas dever-se-á mais à qualidade humana e profissional
dos praticantes que lhe apareceram pela frente do que aos métodos
propriamente ditos – que, aliás, não dominava. As três ou quatro tentativas
para encontrar a clínica e o terapeuta certo falharam redondamente. E, no
entanto, as recomendações tiveram proveniências muito diversas e confiáveis.
O confronto da homeopatia com a medicina e a ciência convencionais é
antiga, embora permaneça plenamente actual. Referimos, atrás, o caso do
escritor Paulo Varela Gomes que optou pelo acompanhamento homeopático do
seu cancro em detrimento da medicina oncológica. Dizia ele num artigo da
revista Granta, por nós amplamente citado: “(...) Tenho recorrido a muitas
medidas práticas para evitar a sorte ditada pelos oncologistas. A primeira foi
fazer-me acompanhar, desde algumas semanas depois da TAC, por um médico
homeopático (os médicos encartados não acham graça nenhuma a que se chame
médico a um homeopata, mas tenham santa paciência). Sob sua orientação
comecei por mudar radicalmente de regime alimentar (...). Além disso, o
médico foi prescrevendo suplementos alimentares e medicamentos
homeopáticos. Devo à homeopatia a qualidade dos mais de mil dias de vida
que levo de vantagem sobre os médicos oncologistas (...)”. Acabou mesmo, a
certa altura, por esgrimir argumentos com adeptos do “cientismo estrito”, isto
é, os defensores de uma ciência purificada e purificadora (que por vezes se
assemelha a uma ideologia positivista em cruzada contra todos os
“charlatanismos alternativos”, naturalmente a-científicos), bem ilustrada em
alguns textos disponíveis quer no blogue “De Rerum Natura”, quer no jornal
“Público”39.
Pesem embora os muitos posts publicados e que contestam a validade da
homeopatia, aquele blogue, estranhamente, não oferece, de entre as dezenas de
categorias propostas, nenhuma categoria específica acerca da temática. Fizemos,
então, uma pesquisa na net com as palavras “de rerum natura + homeopatia” e
encontrámos inúmeras publicações nesse blogue com títulos reveladores de
uma absoluta intolerância face à homeopatia e de ausência de abertura ao
debate. Alguns exemplos: “Homeopatia é só água e açúcar”, “Sobre homeopatia
e efeito placebo”, “A fraude da água em que a homeopatia se afoga”, “Pulseiras,
homeopatia e dietas milagrosas? Não se deixe enganar”, “Grandes erros: a
fraude da homeopatia”, etc.

39 Paulo Varela Gomes e o físico Carlos Fiolhais, ambos professores na Universidade de Coimbra,
confrontaram argumentos respectivamente a favor e contra a homeopatia nas páginas do jornal Público. O
artigo de opinião inicial de Carlos Fiolhais pode ser lido em:
https://www.publico.pt/2014/11/05/ciencia/opiniao/ciencia-diluida-1675128. A resposta de Paulo
Varela Gomes, sob a forma de carta aberta, encontra-se em:
https://www.publico.pt/2014/11/08/sociedade/opiniao/carta-aberta-a-carlos-fiolhais-1675546 e a
réplica final de Carlos Fiolhais em: https://www.publico.pt/2014/11/11/ciencia/opiniao/ainda-a-
ciencia-diluida-1675748

86
Mas regressemos ao que verdadeiramente interessa, à procura insistente
que a Paula fez de um homeopata e de uma clínica homeopática que lhe
transmitissem confiança. A saga começou pela recomendação, vinda uma vez
mais de pessoa amiga, para visitarmos uma naturopata, foi assim que esta se
apresentou, em Oeiras, perto de Lisboa. Depois de ouvir a Paula e informar-se
sobre a sua doença, sentenciou: “Vamos matar o cancro à fome”. E, sem avaliar
cautelosamente o grau de conhecimentos e a experiência da sua cliente,
elaborou uma lista de alimentos e suplementos que deveria ingerir, a maioria já
consumidos pela Paula. Enfim, o cancro faria dieta, mas a senhora naturopata
não. Nem no preço da consulta, nem na lista avantajada de prescrições com que
a minha amiga saiu do consultório.
O homeopata de Lisboa, igualmente com boa recomendação, revelou-se
um novo insucesso. A Paula depositou nas mãos deste terapeuta a sua preciosa
Pasta de Saúde, com os exames médicos convencionais que foi fazendo durante
meses. Na primeira consulta, designada ”Bioenergética”, prescreveu-lhe outro
tipo de exames, a realizar na sua clínica, como por exemplo “Electro Dermo-
Biograma (Std.)”, “Quantificação Analítica dos Radicais Livres” ou, ainda, um
“Teste de Regulação do Terreno Biológico”. Na consulta seguinte, já na posse
destes novos exames, o homeopata expressou-se, segundo a Paula “num
discurso algo desconexo”. Lembro-me de a ouvir comentar que o senhor lhe
parecia estranho, perturbado. Receitou-lhe alguns suplementos que a Paula
conhecia e, muitos deles, há muito tomava. Será que passou os olhos pelos
relatórios médicos da sua Pasta de Saúde? Terá consultado os resultados dos
novos exames que prescrevera? Umas semanas depois, com a Paula relutante
em voltar àquele fortaleza alternativa, igualmente inóspita como uma fortaleza
oncológica, fui eu próprio resgatar a sua Pasta de Saúde. Confiava
absolutamente no apurado espírito intuitivo da Paula para ler, à distância,
sinais que indiciavam uma abordagem insuficiente ou displicente dos
problemas que colocava a médicos e terapeutas, mesmo os alternativos. O
homeopata, esse, nunca mais deu sinal de vida, apesar de ter assegurado que
estaria sempre com ela.
Entretanto, um velho amigo do pai, conhecedor do seu problema de
saúde, indicou à Paula um outro homeopata de renome, desta vez na costa de
Cascais, afiançando-lhe que os seus métodos eram fiáveis pois exercia a
actividade há muitos anos. “Porque não?”, pensámos. Feita a marcação, lá
estávamos nós de novo a caminho de Lisboa. Demos voltas e voltas ao
quarteirão até localizar a clínica da Linha, chamemos-lhe assim. O nome que
constava na placa identificativa não batia certo com a informação que nos
indicaram telefonicamente. Pedi à Paula para aguardar no exterior, enquanto
averiguava, antevendo mais uma desagradável surpresa.
Infelizmente, não me enganara. Mal franqueei a porta, encontrei-me num
hall espaçoso que se assemelhava a um bazar alternativo, com gente
aguardando a sua vez para o abastecimento de produtos naturais. Frascos,
garrafas, embalagens lustrosas de produtos naturais eram aviados por
empregadas em uniforme de cor clara, como convém a ambientes Eco-Bio.
Chamei a Paula e perguntei-lhe: “Isto parece-te uma clínica homeopática?”.

87
Silêncio eloquente. Veio ao nosso encontro uma empregada que,
diligentemente, lhe entregou uma ficha para preencher. Assim fez e esperámos,
aproveitando para observar a azáfama no bazar.
Passado pouco tempo, vimos sair de um gabinete um personagem já
avançado na idade, algo apressado, que se dirigiu a um grupo de três pessoas –
percebemos que se tratava de um caso de cancro – trazendo nas mãos uma
resma de fotocópias, que lhes mostrava, dizendo que deviam lê-las com toda a
atenção. Depois, voltava ao gabinete e regressava para junto daquele grupo,
com mais papel e novas explicações, bem audíveis na sala. Toda esta
coreografia era pública e sem aparente preocupação com o princípio do sigilo
médico. Achámos bizarro o vai-e-vem, mas continuámos a aguardar a nossa
vez, embora já menos tranquilos.
Aquele senhor era, afinal, o afamado homeopata. Convidou-nos a entrar
no seu gabinete, sempre apressado, como se quisesse avisar-nos que tinha o
tempo cronometrado. A Paula quase nem teve oportunidade para abrir a boca e
contar o seu caso, ouvindo um seco comentário: “A senhora tem um problema
muito grave”. “Pois tenho”, disse-lhe ela, “e é por isso que aqui estou”. O
homeopata da Linha puxou de um molho de fotocópias coloridas, percebemos
que eram de um powerpoint, e começou a dissertar sobre processos de
angiogénese, apoptose e outras banalidades de base oncológicas que eram já
elementares para a muita rodagem da Paula pela várias fortalezas oncológicas
convencionais. Impaciente, ela pediu-lhe uma opinião sobre o seu estado real de
saúde e o que recomendava. O homeopata insistia: “A senhora tem de perceber
o que lhe estou a explicar pois é cancerosa”, recomeçando a lenga-lenga com
que legendava, oralmente, mais folhas coloridas de powerpoint. A Paula
permanecia como que hipnotizada, incrédula. Esperava ajuda verdadeira, não
aquilo.
Resolvi intervir, dirigindo-me ao homeopata: “O que tem claramente a
dizer sobre o caso desta senhora? Pare de nos mostrar essas folhas de papel
morto”. Ignorando a questão que lhe fora colocada, o homeopata começou a
guardar as fotocópias na pasta, lançando em jeito de despedida: “Os senhores
vão falar com a minha mulher e ela fornece, na nossa farmácia, os
medicamentos que irei prescrever”. Replicámos: “Mas o senhor não é médico?
Então explique-nos primeiro o que receita e porque o receita. Depois talvez
falemos com a sua mulher”. O homeopata afamado não apreciou a réplica e
resolveu acabar logo ali a conversa: “Os senhores não confiam em mim, não
tenho mais nada a dizer”, e levantou-se. Levantámo-nos também e saímos
daquele gabinete e daquele bazar, para o ar fresco da rua. A Paula, com os seus
bons princípios, ficara para trás e ia dirigir-se ao balcão para pagar. “Pagar o
quê, Paula, nada há a pagar. Que mandem a conta para tua casa, juntando o
powerpoint”. Nunca o fizeram, até hoje.

88
Uma clínica na Alemanha

A Paula começava a ficar exausta e com a esperança a cair a pique.


Precisava de descanso terapeuticamente activo, quer dizer, encontrar um lugar
onde pudesse, ao mesmo tempo, repousar e entregar-se a um conjunto de
terapias suaves que lhe permitisse melhorar física e psicologicamente. O
tratamento do cancro, à medida que os sintomas se agravavam, começava, aos
poucos, a ficar em segundo plano, embora a ocorrência de um “milagre” nunca
deixasse de estar no seu subconsciente – e por isso não abandonava os
tratamentos que outros lhe proporcionavam e os seus próprios auto-
tratamentos.
Algum tempo depois da frustrada saga da homeopatia, diz-me ela: “O
Carlos [o nosso amigo da Serra da Estrela] enviou-me um email a sugerir que
eu contactasse a clínica de Málaga40 que faz o Budwig Protocol. Retirei do site
muita informação no que respeita a alimentação, mas basicamente já estou a
fazer o que têm para oferecer. Eles são anti-suplementos, o que me deixa um
pouco céptica. Enfim, agora tenho duas clínicas que quero consultar: uma, em
Espanha, e outra na Alemanha, esta última indicada pela Rute, que a referiu
como uma boa opção para o tratamento do cancro com terapias alternativas”.
Como sempre fazíamos nestas ocasiões, iniciámos de imediato a
avaliação da Arcadia-Praxis Klinik, na Alemanha, através de consultas ao seu
site oficial, de pesquisas de opiniões na internet, do visionamento de cinco
vídeos com várias horas de entrevistas com o director clínico, Dr. Henning
Saupe, para além de literatura científica e de notícias na imprensa. Em fundo,
tínhamos presente a explosão da procura, nos últimos anos, de clínicas
oncológicas alemãs por doentes portugueses. Um exemplo muito polémico,
noticiado amplamente por jornais e televisões, era o de uma clínica em Colónia
onde se seguia um modelo de tratamento experimental por imunoterapia com
células dendríticas, inspirado pelo médico Robert Gorter.
O estado de saúde da Paula já não era o mesmo de há algumas semanas
atrás. Como tínhamos lido que a admissão na clínica alemã implicava que
fossem os próprios pacientes a solicitá-la – e não familiares bem intencionados –
, e também que o estado de saúde do candidato devia revelar autonomia, como
seja andar pelo menos 100 metros ou fazer compras nas lojas de proximidade
sem esforço de maior, começámos a ficar preocupados. Estaria a Paula em
condições de viajar? Lêramos, ainda no site, que a própria clínica pensara num
pormenor dissuasor da candidatura de pessoas em estado muito debilitado,
alertando, por exemplo, para o facto de não haver elevadores nas instalações.
No site encontrámos também informação sobre a filosofia e a missão da
clínica, e os tratamentos propostos sob o conceito abrangente de “oncologia
integrativa”:

“(...) Oferecemos tratamentos do cancro de última geração, incluindo os


melhores e mais eficazes componentes da medicina oncológica em

40 http://www.budwigcenter.com/before-your-trip-to-spain/#.WRbcJ1Qo-hC

89
combinação com tratamentos naturopáticos complementares. Fármacos
anticancerígenos não tóxicos por infusão, em combinação com
hipertermia (terapia pelo calor), programas de desintoxicação
personalizados, dieta anticancro, ozonoterapia e oxigenoterapia,
imunoterapias (GcMaf, visco branco e outros) e terapia fotodinâmica
com laser estão entre os nossos tratamentos mais bem-sucedidos para
pacientes com cancro”.

Parecia corresponder ao que a Paula procurava no presente. Iniciou-se,


então, o contacto, enviando-se um primeiro email em 18 de Maio de 2017, a
expor a situação. Nele se dizia: “(...) Eu sei que o meu cancro não tem cura e sei
também que não pretendo realizar mais tratamentos convencionais. Gostaria
que o cancro entrasse em remissão e permanecesse, tanto quanto possível,
estável. O meu estado geral de saúde é bastante razoável, sem perda de peso ou
limitações físicas. Cuido da alimentação, tomo suplementos, para além de
desintoxicar regularmente o meu corpo”.
A resposta veio logo no dia seguinte e nela se sugeria uma consulta via
Skype com um médico da clínica para discutir possíveis tratamentos. Em 25 de
Maio de 2017, às 9h da manhã, teve lugar essa consulta online, aliás muito
breve, a que assisti. A Paula voltou a ouvir que o seu caso era grave, que
deveria ler, até à data de entrada na clínica, um certo livro cujo título já não
recordo e aguardar pela proposta terapêutica para uma estadia de duas
semanas nas termas de Bad Emstal, onde estava localizada a clínica.
Percebemos que fora considerada um caso prioritário e, nesse mesmo
dia, a proposta chegou-lhe às mãos. A mãe iria acompanhá-la, ficando também
alojada na clínica. Pelo interesse que poderá ter para outras pessoas em situação
idêntica à da Paula, vamos divulgar excertos dessa proposta, a qual se
desdobrava por um vasto leque de tratamentos anticancro e outras actividades
que visavam o bem estar físico, psíquico e espiritual. Hesitei, também aqui, se a
deveria divulgar publicamente, acabando por prevalecer o princípio de que um
tal documento teria um valor inestimável para outras pessoas com cancro e em
busca de informação que lhes permitisse tomar, conscientemente, decisões
vitais.
A clínica propunha vários tipos de testes e tratamentos para avaliar e
cuidar da saúde da Paula, em particular sintomas do cancro, mas realizava, ao
mesmo tempo, uma gestão prudente das expectativas, combinando na oferta
terapêutica “serviços destinados a pessoas com cancro e a pessoas que desejam
promover a sua saúde”. Enumeremos alguns desses testes e tratamentos
(tradução nossa):

–Teste inicial ao sangue: química do sangue, contagem de células,


marcadores tumorais, oligoelementos;
–Testes de sensibilidade alimentar, análise de fezes;
–Teste de stress (ECG e teste de variabilidade da frequência cardíaca
HRV);

90
–Exame médico, exame de ultra-som, termografia, função pulmonar,
análise de sangue vivo com um microscópio de campo escuro;
–Planeamento de uma terapia baseada nos resultados dos testes
anteriores e que inclui tratamentos por infusão (injecção intravenosa)
com uma ou duas das seguintes substâncias: vitamina C em doses
elevadas, artesunato, curcuma, DCA, amigdalina (B17), bicarbonato de
sódio, glutationa, oligoelementos, medicamentos homeopáticos, visco
branco e outros; ou tratamento ortomolecular com suplementação oral;
–Tratamentos de hipertermia local quatro dias por semana e hipertermia
ao corpo inteiro uma vez por semana;
–Oxigenoterapia e ozonoterapia;
–Terapia fotodinâmica (PDT) duas vezes por semana;
–Massagem clássica, massagem de drenagem linfática, massagem com
vibração de taça tibetana [Tibetan singing bowl];
–Coaching psico-oncológico individual. Sessões de grupo seguindo o
método Simonton de aconselhamento;
–Palestras e educação aprofundada sobre as causas do cancro,
desintoxicação e estilo de vida saudável;
–Dieta especial anticancro em regime de pensão completa;
–Acompanhamento por telefone ou consulta via Skype após o tratamento
na clínica (duas consultas via Skype de 15 minutos cada nas quatro
semanas seguintes)” (...).

Quanto às condições e custo destas duas semanas de retiro para


tratamento intensivo do cancro, entre os dias 11 e 24 de Junho de 2017,
transcrevemos de novo excertos da proposta:

“(...) No seu caso, o custo do tratamento intensivo de treze dias,


incluindo alojamento e pensão completa, refeições e medicamentos é de
13 000€ (...). A alimentação é biológica, com produtos cultivados
localmente, e adaptada ao metabolismo do tumor. Os alimentos são
isentos de glúten, não incluem leite de vaca, pouco alérgicos e anti-
inflamatórios (...). Se vier acompanhada por uma pessoa/parceiro para a
apoiar, acrescem 750€ por semana, incluindo alojamento em quarto
duplo, refeições em regime de pensão completa, participação em todas as
palestras e sessões de grupo (...). Em caso de cancelamento apenas com
uma semana de antecedência teremos de cobrar 1 000€ (com a
antecedência de duas a quatro semanas cobramos 500€) (...)”.

Mas a saúde da Paula decaía visivelmente, sobreveio a anemia e a


dificuldade em ingerir alimentos, juntando-se-lhes dores difusas, sobretudo no
abdómen. A sua deslocação planeada à Alemanha estava ameaçada. Como
realizar a viagem num estado de saúde tão enfraquecido? O que aconteceria se
tivesse de ser transferida de emergência para um hospital alemão? Uns dias
antes da data da partida, a fadiga extrema, as perdas de sangue visíveis nas
fezes e a consequente anemia faziam adivinhar que o cenário de cancelamento

91
teria de ser seriamente equacionado. E assim aconteceu. Em 3 de Junho de 2017,
a seu pedido e ainda com a sua colaboração, redigi um email para a clínica a
comunicar a impossibilidade de realizar a viagem, assumindo-se as despesas de
cancelamento. Nesse email, a Paula deixava ainda brilhar uma pequenina luz
de esperança: “(...) Quero tratar-me na vossa clínica numa outra data e de
acordo com a evolução do meu estado de saúde. Darei notícias logo que me for
possível. Muito obrigado (...)”.
No dia em que deveria ter chegado à clínica, na Alemanha, uma Paula
muito debilitada dava entrada de urgência no hospital de Lisboa e ficaria
internada nos cuidados intensivos.

92
UM INVULGAR E SÚBITO DECAIR

A Paula acreditava que, tendo recusado novos ciclos de quimio e


também a radioterapia, estava a roubar tempo a deuses cruéis. O seu cálculo era
o seguinte: “o tempo que subtraí aos tratamentos, esse tempo que voltou a ser
meu, quero agora aproveitá-lo para viver com alguma qualidade”. E dizia-me:
”Rogério, se eu não puder, conduzes tu o manchinha vermelha e vamos ao
Alqueva, a Mértola, à Ria Formosa, a Fonte Santa, que fica perto e é tão bonito,
vamos aonde me for possível”. O seu cálculo falhou, o declínio foi repentino.
Uma médica oncologista do hospital de Lisboa, já após a sua morte, informou-
me que tinha havido “uma evolução com um padrão de metastização invulgar
nestes casos”.

E aos sintomas o oncologista disse nada

A Paula sempre fora de uma vitalidade admirável, a que aliava um


carácter enérgico, decidido. Com facilidade carregava pesados carrinhos de
mão com cimento para restaurar a sua casa; idealizava e executava esquemas
para construir, em madeira, uma WC seca; era capaz de trabalhar de sol a sol –
e com gosto – na sua horta biológica; usava desenvoltamente uma motosserra
ou uma máquina de roçar para “cortar o cabelo” à erva numa boa extensão do
monte; desempenhava com gosto muitas e diversificadas tarefas na sua
saboaria artesanal, certificada, onde dava livre curso à inovação e a uma fina
sensibilidade estética.
A umas escassas semanas deste invulgar e súbito declinar da sua saúde,
tínhamos ido à feira local comprar “sementinhas e plantinhas”, como ela dizia,
a tempo de cuidar ainda das novas culturas. Também pouco tempo antes, tinha
ela-própria conduzido o manchinha vermelha por montes e vales em Seia,
Oliveira do Hospital, Góis, Arganil, Lousã, com dormida em Coja, junto ao rio
Alva, quando regressávamos da viagem à Serra da Estrela de que falámos atrás,
mostrando-se maravilhada com o manto de floresta a perder de vista que, já
depois da sua morte, iria arder em brutais incêndios, ceifando a vida a largas
dezenas de pessoas.
Por tudo isto, e embora soubéssemos que só um milagre a salvaria,
ficámos surpreendidos com os muitos sintomas que, subitamente, durante os
meses de Maio e Junho de 2017, começaram a manifestar-se e agravaram
severamente a sua saúde. Primeiro, vieram as fezes escuras, pensou-se que se
deviam aos enemas de café ou talvez a suplementos de ferro. Mas uma análise
ao sangue revelou níveis baixos de hemoglobina, provavelmente anemia – o
que se veio a confirmar. Afinal também tinha melenas, isto é, fezes de cor muito
escura, com aspecto pastoso e cheiro fétido, sintoma de uma possível
hemorragia no tracto gastrointestinal superior (estômago ou intestino delgado).
Tínhamos dificuldade em compreender que declinasse tão rápido, pois não

93
apresentara até aí sinais visíveis de colapso físico. Sim, é certo que conhecíamos
os caroços no pescoço cada vez mais volumosos, algum emagrecimento porque
resistia a comer, dores abdominais no lado esquerdo e, sobretudo, fadiga. Mas,
por enquanto, tudo parecia ainda sob controlo.
Procurámos entender – aliás, procurei, pois a Paula evidenciava já uma
diminuta capacidade de iniciativa – as razões da anemia de um modo mais
sistemático e que fosse além do vago e insatisfatório mantra da predilecção dos
oncologistas (“progressão aguda da doença”). Queríamos saber se a
quimoterapia (e em particular a que tem por base a platina) não seria, em boa
parte, responsável pela persistência da anemia. Culpar exclusivamente o cancro
era o mais fácil. Sabíamos que os fármacos quimioterápicos, por actuarem em
células de crescimento rápido, acabam por afectar negativamente a produção de
glóbulos vermelhos pela medula óssea, obrigando, em situações extremas, a
frequentes transfusões de sangue e a tratamento com injecções de
eritropoietina, que é uma hormona produzida nos rins, de modo a compensar o
défice de glóbulos vermelhos. Em suma, as pessoas com cancro e submetidas a
quimioterapia sofrem frequentemente de anemia porque os fármacos
citotóxicos atacam não só células tumorais mas também outras células sadias do
corpo, incluindo os glóbulos vermelhos.
A Paula tinha uma consulta marcada – seria aliás a última – com o
oncologista do sul. Expôs-lhe este quadro sintomático e ouviu-o dizer de rosto
inexpressivo: “A sua doença está a avançar, só podemos fazer alguma coisa
com tratamento sistémico”, entenda-se, com mais ciclos de quimioterapia, o
que, como sabemos, ela há muito recusara. Com a Paula deitada na marquesa,
apalpou-lhe o abdómen e não abriu a boca enquanto olhava para mim como
que a querer dizer “eu-não-vos-avisei?”. Vir-se-ia a saber que eram já
metástases no intestino delgado que provocavam estenose, ulceração e a
impossibilidade de se alimentar. Para ele, nada disto merecia ser falado.
O oncologista do sul mudara completamente de atitude. Marcara aquela
consulta, depois de cancelada a da semana anterior por ter havido um apagão
informático no hospital do Sul, e não pedira novas análises. Valeram as últimas
que a Paula realizara em Setúbal para controlar a hepatite C, se bem que já
desactualizadas, mas onde se evidenciava claramente o valor baixo de
hemoglobina (9.2) e o cálcio muito elevado (um sinal grave, como veremos
adiante). Quando, uns dias depois, ela teve de voltar ao Hospital de S.
Bernardo, em Setúbal, e realizar novas análises, o valor da hemoglobina andava
pela casa dos 7.
Neste quadro que se agravava, o que fez o oncologista do sul? Estendeu-
lhe a mão, já que estávamos a caminho do fim, e preocupou-se com os cuidados
possíveis que lhe trouxessem mais alívio de sintomas e a preparassem para
morrer, mesmo que não fosse ele a prestá-los? Alertou-a, por exemplo, para os
perigos de níveis tão baixos de hemoglobina e procurou explicar a causa ou
causas próximas, prescrevendo mais análises e exames? Avisou-a de que
poderia ter de fazer transfusões de sangue e aconselhou-a? Perguntou-lhe se
preferia morrer em casa ou no hospital? Referiu a existência de um serviço de
cuidados paliativos no hospital e se haveria vaga? Fez algo para evitar que

94
morresse numa enfermaria geral, provavelmente com enorme sofrimento?
Nada. No mínimo algum conforto, umas simples palavras de conforto para
mostrar que ele continuava ali, era ainda o seu oncologista. Mas também nada
disso aconteceu, a Paula ficou entregue ao evoluir imprevisível dos sintomas
como demónios à solta.
Perguntar-se-á, com toda a legitimidade, se um doente já em fase
terminal deixa de merecer a atenção do oncologista apenas porque recusa mais
tratamentos tóxicos e sofrimento desnecessário. Uma frase insistente, e só uma,
se fazia ouvir naquele gabinete médico: “É preciso mais tratamento sistémico”.
O médico continuava a olhar interrogativamente para mim, como se me
julgasse capaz de convencer a Paula a voltar à sala de quimio. Consciente ou
inconscientemente, tudo isto começava a soar a retaliação, o que é, como já
afirmámos, a par do dogmatismo e do autoritarismo, um traço enraizado na
cultura das fortalezas oncológicas e nas práticas profissionais de muitos dos
seus agentes. Terminada a consulta, nenhuma palavra se ouviu da sua boca,
nenhum gesto de empatia foi sequer esboçado. Recordo-o imóvel no meio do
gabinete, a despedir-se, como se tratasse de mais uma consulta de rotina.
Relembremos o que a Paula escrevera sobre este médico em Outubro de
2016: “Através de uma enfermeira amiga soube de um oncologista, aqui no
Alentejo, e ela consegue-me uma consulta. Ele 'agarrou-me', disse-me que eu
estava a morrer e que tínhamos de tratar de mim. Não tem cura, disse (e eu
sabia que não, sei que não), mas poderá viver com o cancro não se sabe quanto
tempo, é possível”. Pois em Junho de 2017 deixara de a “agarrar”. Aos
sintomas, o oncologista do sul disse nada.

A ronda das enfermarias

Fadiga permanente, melenas, dores no abdómen e outras mais difusas


intensificavam-se, obrigando a Paula a tomar vários tipos de analgésicos num
crescendo de potência. E a hemoglobina, como estaria? Não podíamos ficar
parados. Aonde ir? A Paula não queria voltar a ver o oncologista do sul, depois
da última e confrangedora consulta. Resolveu telefonar ao Dr. José Poças, que a
acompanhara no problema de hepatite C., e este ficou alarmado, dizendo-lhe
que deveria ser imediatamente observada. Que fosse a Setúbal, poderia ter de
fazer uma transfusão, ele daria as necessárias indicações no serviço de urgência.
Nesse mesmo dia seguimos para Setúbal, onde foi observada, fez uma
endoscopia e levou a primeira transfusão de sangue. A recomendação era para
ficar internada. A Paula não queria ouvir falar sequer em tal eventualidade e
concedeu a si mesma alta, responsabilizando-se pela deserção do hospital.
Regressar a casa, era a sua vontade. Impossível contrariá-la, tinha a
morte nos calcanhares e estava totalmente consciente disso. Noite já adiantada,
metemo-nos ao caminho. Lua cheia, com a luz branca a tornar a paisagem algo
espectral. A Paula, de olhos atentos, toda lançada para a frente no banco do
carro, vigiava os pinheiros junto à estrada, queria ver animais. Perto de
Pinheiro da Cruz, numa zona particularmente erma, gritou, excitada, que tinha

95
visto uma raposinha. E prosseguimos a viagem a alta velocidade até casa para,
finalmente, encontrar algum repouso.
No dia seguinte continuava a não se sentir bem. Quase não comia,
tomava mais e mais medicamentos para as dores. Ensaiava sair da cama e
sentar-se, bem agasalhada, no alpendre da sua casa, mas recolhia rapidamente
para se deitar. As dores e o cansaço deixavam-na exausta. Entretanto, chegaram
as análises que pedira no centro de saúde e a hemoglobina descera ainda mais.
Por isso, a 9 de Junho de 2017, viajámos a alta velocidade, com a mãe, a
caminho do hospital de Lisboa porque era aí que se encontrava o outro
oncologista que há meses a acompanhava informalmente no seu consultório. A
Paula ficou internada nos cuidados intensivos durante dois ou três dias e foi
depois enviada para uma enfermaria no edifício principal do hospital. Por
pouco tempo. Recambiaram-na, em seguida, para um pavilhão periférico,
isolado, que iria fechar portas no final daquele mês de Junho.
Nesse pavilhão saltava à vista que os idosos eram a população
dominante. Um pavilhão geriátrico, portanto, e também para pessoas em estado
muito crítico. Logo que se sentiu um pouco melhor, a Paula começou a cuidar
de uma senhora de noventa e muitos anos, a D. Inês, com quem simpatizou, e
que permanecia deitada todo o dia na cama mesmo frente à sua. Espontânea,
esta sua atenção sincera e desprendida que dedicava a outros doentes que ela
sabia vulneráveis – aliás, não era a primeira vez que o fazia em ambiente
hospitalar.
Aguardou dias a fio pelos resultados dos exames para saber a origem da
hemorragia interna, levando, entretanto, sucessivas transfusões de sangue.
Quando deu entrada no hospital de Lisboa avisara que tinha já feito, no dia
anterior, um exame de endoscopia alta no hospital de Setúbal, com resultado
negativo, o qual poderia ser consultado se acedessem aos seus dados clínicos
por via informática (como antes vira fazer a médica otorrino de Évora e,
portanto, sabia ser possível). Conhecíamos o resultado dessa endoscopia, mas,
infelizmente, com a pressa esquecemo-nos de trazer connosco o precioso papel.
Que não, dizia o médico do serviço de urgências, não sabiam o modo de
proceder como a Paula sugeria. E tudo teria sido tão mais simples se o tivessem
feito, poupando-se dias de internamento. O relatório da endoscopia alta
realizada no hospital de Setúbal dizia, afinal, não haver lesões que justificassem
a anemia e a perda de sangue, detectando-se apenas uma “antrite”, ou seja, uma
inflamação no antro do estômago, a tratar com omeprazol, enfim, nada de
muito relevante.
Para desespero da Paula, o médico prescreveu uma nova endoscopia alta
num período em que teríamos pela frente três feriados, dois fins de semana e as
sagradas pontes do mês de Junho. Resultado: mais atraso e dias de espera para
a realizar, sabendo nós que viria seguramente negativa. A hemoglobina
continuava baixa e, por isso, fez novas transfusões, elevando-se o valor em
apenas algumas décimas. Confirmado, como era previsível, o resultado
negativo da endoscopia alta, foi marcado outro exame, agora uma colonoscopia.
A Paula confrontava o médico: “Oiça, as fezes são escuras, tenho melenas, logo
é elevada a probabilidade de a causa da hemorragia estar no intestino delgado.

96
Então, para quê fazer ainda uma colonoscopia e não avançar já para uma
enteroscopia ao intestino delgado?”. Que não, o protocolo dizia coisa diferente.
E teve de aguardar mais alguns dias naquele pavilhão pelo exame de
colonoscopia e, depois, pelo resultado, igualmente negativo, como também
seria de esperar.
No meio desta protocolar rigidez médica, a Paula encontrava-se, quase
sempre, rodeada de amigos que, sabendo-a em Lisboa, aproveitavam para a
visitar e inteirar-se da sua saúde. Em frente do pavilhão geriátrico havia um
belo terreno arrelvado onde a Paula os recebia – era a sua sala de visitas. Levei-
lhe uma manta confortável para se estender e descansar, ouvindo os pássaros e
a folhagem das árvores agitando-se ao vento, como ela tanto gostava. Aí
permanecia longos períodos do dia sempre que não se sentia cansada e tinha,
então, de regressar ao quarto, à cama e ao ambiente depressivo da enfermaria.
Nos fins de tarde daquele mês de Junho, fugíamos, nós e as visitas, da água que
jorrava de aspersores de rega ocultos e que nos apanhava de surpresa. Havia
alegria na Paula e era uma festa – a festa possível, apesar do lúgubre pavilhão
logo ali ao lado para onde ela deveria voltar. Foi bem tratada pelas enfermeiras
e auxiliares, até teve direito a uma fatia de bolo no dia de aniversário de uma
das auxiliares. A Paula sentia-se bem de dia, acompanhada, mas mal consigo
imaginar como suportava as noites no seu quarto partilhado e a sós com o
cancro.
No pavilhão geriátrico reinava a indiferenciação das maleitas. Pessoas
em estado terminal, ligadas a máquinas, imóveis todo o dia, coabitavam com
outras que, por exemplo, sofrendo de cancro, não o sabiam. Os familiares tudo
faziam para as manter na ignorância. E havia ainda outros casos agudos. Um
dia chegou na maca um senhor que tivera um AVC e que passava o tempo todo
a ruminar, alto, frases ininteligíveis. A Paula procurava acalmá-lo, mas sem o
conseguir. A situação piorou quando um outro doente, no quarto em frente,
com um problema psiquiátrico, sempre muito agitado, e que nunca deveria
estar ali, começou a berrar “Ó Zé”, a que o companheiro de quarto da Paula
respondia com um “Que é?”, estabelecendo-se entre os dois quartos uma
corrente de sons berrados por vezes indecifráveis. Isto durante intermináveis
horas, apesar dos esforços das enfermeiras para os acalmar. Li, mais tarde, o
post que a Paula publicou na rede social facebook. Em fundo cor laranja, a letras
garrafais, escrevia ela: “Salvam-me os fones [auscultadores] desta total
loucura”. Conseguimos que a transferissem para um outro quarto, distanciado
daquele tormento, e onde só havia senhoras, quase todas prostradas, em estado
terminal. Aquele pavilhão, a dias do encerramento, era um albergue de casos
irremediáveis.
Decorridos, amargamente, mais alguns dias de internamento, veio
finalmente a indicação de que realizaria, em data incerta, uma enteroscopia com
videocápsula, o exame por onde se deveria ter começado se alguém olhasse
argutamente para a situação clínica em lugar de seguir cegamente o
alinhamento rígido de exames do protocolo. Mas a Paula estava já a atingir os
seus limites. Por isso, em finais de Junho, num dia em que estava rodeada de
vários amigos, decidiu que era tempo de dar alta a si própria, levantar a âncora.

97
O jovem médico de serviço, que não estaria habituado a estas liberdades
autonómicas dos doentes, falou alto, para ela e para os amigos, como a co-
responsabilizá-los, dando instruções a seguir em casa, não sem antes exigir um
termo de responsabilidade. Saídos do hospital, fomos directamente para casa
dos meus pais, em Lisboa, onde a Paula saboreou um coelho guisado que achou
divinal. Como o conseguiu comer, no estado em que se encontrava o seu
intestino delgado, é um mistério. Agradecida, enviou-nos, a mim e à minha
irmã, uma mensagem de telemóvel: “Coelhinho maravilhoso, Santa Irene e
Santo Rogério :)”. No dia seguinte, apesar de muito fraca e cambaleante, a Paula
exigiu que regressássemos ao Alentejo.
Em breve estaríamos de volta ao serviço de gastrenterologia do hospital
de Lisboa para realizar o exame com videocápsula. Na primeira consulta, a
médica, responsável por aquele serviço mostrou-se bem disposta, comunicativa.
A Paula saiu do hospital com um gravador à cintura onde seriam registadas
imagens do intestino delgado à medida que a videocápsula progredia. Passados
alguns dias, elaborado o relatório, a médica recebeu-nos após alguma
insistência da nossa parte e com uma cara que não augurava nada de bom. A
Paula já só se deslocava de cadeira de rodas. A médica veio à sala de espera,
sentou-se por instantes à nossa frente e, apressadamente, disse-nos que a
cápsula ficara retida no seu trajecto, mas que mesmo assim fora possível
recuperá-la. Examinada a gravação, diagnosticou-se uma estenose, ou seja, o
estreitamento do intestino delgado. No relatório lia-se: “Após D3, observa-se
lesão infiltrativa, ulcerada, estenosante inultrapassável e sem hemorragia
activa”. Prudentemente, e sempre circunspecta, remeteu-nos para a oncologista
– que trabalhava com o oncologista de Lisboa conhecido da Paula –, a qual iria
receber o resultado da biopsia. Esta, no entanto, estaria de férias nos quinze dias
seguintes. Parecia que nada encaixava, nem exames, nem informação, nem
prazos naquele intrincado puzzle em que se tornara a saúde da Paula.
O relatório da biopsia demorou uma eternidade, isto é, mais de um mês.
Só o vim a conhecer muito mais tarde, após a morte da Paula, já no mês de
Agosto, e por email enviado pela oncologista do hospital de Lisboa. Nesse
email apresentavam-se “sinceros sentimentos pelo falecimento da Srª Ana
Paula”, esperava-se que “os seus últimos dias não tivessem sido muito
dolorosos”, lamentava-se “não ter sido possível ajudar” e comunicava-se que
tinham sido detectadas no intestino “metástases de carcinoma
pavimentocelular, pelo que se confirma relação com o tumor primitivo já
conhecido”. O que fazer com esta informação absurdamente desfasada no
tempo, póstuma, em que se ficava a saber que a Paula não desenvolvera um
novo cancro e que o tumor primitivo fora-lhe fiel até ao fim, morrendo
solidariamente com ela? Para que nos servia esta informação, quando a minha
amiga já fora cremada?
Voltemos um pouco atrás, ainda ao hospital de Lisboa. Depois do exame
de enterologia com videocápsula, a Paula, já muito fraca e sempre em cadeira
de rodas, deslocou-se por várias vezes ao serviço de hematologia, vinda do
Alentejo, para ser sujeita a transfusões de sangue. Como já vimos, essas
transfusões não produziam nenhum efeito visível, apesar da expectativa dos

98
médicos que lhe diziam: “Com mais ferro e nova transfusão de sangue vai
sentir melhoras”. Palavras de puro efeito paliativo, ou nem isso. A Paula saía
exactamente como entrava, com uma fadiga persistente do tamanho do mundo
e que não abrandava. Quanto muito, o já baixíssimo nível de hemoglobina
crescia umas insignificantes décimas.
Estávamos no início de Julho de 2017, a Paula quase não comia. A
estenose intestinal e a ulceração a ela associada impossibilitavam a ingestão de
alimentos, só lhe conseguíamos dar algum suplemento nutricional líquido,
hipercalórico, a que, no entanto, resistia. Também não respondia quando
falávamos com ela (eu, a mãe ou a sua amiga Teresa, que a visitava
diariamente), permanecia sempre deitada na cama. Já nem ao seu tão
convidativo alpendre com vista para a horta biológica conseguia chegar. E tinha
dores cada vez mais frequentes a que íamos contrapondo, com a ajuda da
enfermeira oncológica sua conhecida, medicação analgésica progressivamente
mais potente, fosse ela não-opióide (no início, Paracetamol, depois Nolotil) ou
opióide (Tramadol, um opióide fraco, e depois Fentanil, já mais forte, que era
aplicado na pele – isto é, por via transdérmica – através de um adesivo especial
que libertava lentamente a substância).
Um dia, em sua casa, reuniu-se connosco a equipa do hospital do Sul que
fazia serviço externo de cuidados paliativos, composta por um médico e
enfermeiras. Procurávamos perceber como actuar à medida que a saúde
piorava. A preocupação e a ansiedade cresciam entre nós, pois sabíamos não ser
fácil reunir rapidamente todos os meios humanos e logísticos (médico,
enfermeiras, cuidados domiciliários, equipamentos, etc) que lhe
proporcionassem um fim digno, tranquilo e sem dor. Queríamos que
permanecesse na sua casa, rodeada das pessoas que a amavam e sempre a
tinham acompanhado, e, sobretudo, que não sofresse. Era a nossa intenção, mas
novos e mais angustiantes sintomas surgiram, perturbando o frágil mundo das
intenções.
A Paula começava a ter dificuldades em articular palavras, quase a não
compreendíamos nos momentos, cada vez mais raros, em que ficava desperta e
mostrava uma ténue vontade de interagir. Por outro lado, também proferia, a
custo, frases aparentemente falhas de relação com o contexto da conversa que
procurávamos manter com ela. Por exemplo, perguntava quando chegariam os
amigos de Vila Nova, sabendo nós que não tinha amigos em Vila Nova e que,
portanto, nada podia ter sido combinado. Episódios destes passaram a ser
frequentes e, por isso, realizou-se uma TAC muito urgente à cabeça, por
suspeita de que o cancro aí tivesse chegado, mas o exame não revelou nada de
anormal.
Em meados de Julho, à noite, a Paula levantou-se subitamente para ir à
casa de banho, cambaleava, expressava-se por monossílabos quase ininteligíveis
e num estado de grande perturbação. Com muita dificuldade, eu e a mãe
conseguimos ampará-la e reconduzi-la à cama. Olhei-a atentamente.
Preocupou-nos a cor da pele, a imobilidade estranha, a impossibilidade de
obtermos dela uma reacção. E foi nessa mesma noite que eu disse à mãe que –
não estando ainda reunidas as condições mínimas para a manter em casa com

99
os necessários apoios e desconhecendo também o seu grau de consciência e de
sofrimento – a Paula deveria ser observada urgentemente na unidade de saúde
mais próxima, o hospital do Sul.

Cuidados paliativos, se faz favor

Noite adentro, seguia eu atrás de uma ambulância que se deslocava em


marcha lenta para percorrer os cerca de dez quilómetros até ao hospital. Disse-
me a mãe que a Paula perguntava: “Onde está o Rogério?”. Respondeu-lhe a
assistente, apontando para os faróis do meu carro: “Vem aí atrás, pode ver as
luzes”. Parece que descansou um pouco. Angustiante, esta última viagem que
eu já antecipara por diversas vezes na minha cabeça. A Paula não mais sairia do
hospital, não voltaria à sua casa da cor da terra e que se confundia com a terra.
Pulseira laranja, espera demorada. Consulta nas urgências com um
médico atento, compreensivo, a que chamámos “doutor-anos-sessenta”, por
contraste com outros muito mais novos, os “millennials”, com quem tivéramos
de falar noutros hospitais e falaríamos também neste, voltando a escutar outra
expressão do reportório médico estereotipado: “Estão conscientes da gravidade
da situação do vosso familiar?”. Já não podíamos ouvir aquele frasear
engessado, defensivo ou mesmo agressivo, prenúncio de uma atitude de recusa
do diálogo. Já nem lhes respondia, apenas os fitava de olhar vazio.
Mas voltemos à conversa nas urgências com o “doutor-anos-sessenta”.
Deu-nos abertura para dialogar, reviu à nossa frente, connosco, as análises
muito recentes da Paula, à procura de algum detalhe que explicasse estes novos
sintomas, sem os remeter maquinalmente para muletas como a “progressão da
doença” ou a “consciência da gravidade da situação”, preocupando-se com o
seu estado real e actual – dores abdominais, hemorragia interna, prostração,
incapacidade de articular palavras, confusão mental. Sabíamos o destino
próximo da Paula, mas não aceitávamos baixar os braços ou deixar de fazer
tudo para lhe proporcionar o alívio de sintomas. Foi então que, debruçados
sobre as percentagens constantes nas análises, chamei a atenção do médico para
o nível elevadíssimo de cálcio no sangue. Olhou para mim, como se se tivesse
feito luz (sim, aceita-se que em ambiente de urgências a atenção
multidistribuída de um médico, mesmo que experiente, possa
momentaneamente ser desviada do foco) e decidiu: “Vamos fazer novas
análises para percebermos este agravamento, em particular o que me parece ser
uma hipercalcemia”.
Pela primeira vez ouvia esta palavra. Já em casa, de madrugada,
consultei alguma informação e percebi que poderia ser fatal. A hipercalcemia,
no caso da Paula, ter-se-ia agravado à medida que as metástases do cancro
rompiam os ossos, destruíam as células ósseas, libertando cálcio em excesso que
passava a circular na corrente sanguínea. Três sintomas frequentes da
hipercalcemia são as dores abdominais, a perda de apetite e, em situações mais
graves, a confusão mental que pode levar ao coma e à morte. Tudo sintomas de
que a Paula se queixava e que nós próprios observávamos.

100
Ficou durante longas horas no corredor da urgência, deitada numa maca,
com a vizinha do lado numa lamúria dorida e ininterrupta. Mais uma provação
para a Paula. Depois, na manhã do dia seguinte, fomos encontrá-la já num
quarto para duas pessoas, pedindo-nos água. À tarde, quando de novo a
visitámos, fora já encaminhada para uma enfermaria nos pisos superiores, com
melhores condições. Aproveitámos para falar a com a directora do serviço de
cuidados paliativos e com a assistente social do hospital de modo a
confirmarmos os apoios que nos podiam ser disponibilizados se a levássemos
para casa. A nosso pedido, a directora, acompanhada de uma enfermeira,
visitou a Paula para se inteirar do seu estado.
Quando regressámos à enfermaria, a Paula estava sentada na cama, com
um médico a seu lado, e perguntou-nos: “Onde estiveram, porque demoraram
tanto tempo?”. Percebemos, então, que ela estava totalmente lúcida. Quando
lhe disse que estivéramos a preparar as coisas para regressar a casa, escutei a
pergunta que menos esperava: “Mas como? Como vou para casa?”. A pergunta
mais óbvia teria sido “Quando vou para casa?”. Mas não, a Paula estava bem
consciente das dificuldades da situação, apesar de drogada e do seu estado
terminal. Ouvi-a então confidenciar, sentada na cama, com voz triste de menina
perdida num imenso labirinto: “Não quero morrer! Sabem, estive num
quartinho escuro”. Uma voz de criança, trémula, transfigurada talvez pelo
medo e seguramente pela dor, viera substituir a voz habitualmente firme e
determinada da Paula. Tenho gravada esta confidência, a sua voz de menina,
como um espinho no meu coração de sobrevivente inconformado. Impotência
era o que eu sentia, e sinto ainda hoje, por tão pouco poder fazer pela minha
amiga.
O médico, que se mantivera ligeiramente afastado, disse-nos: “Esta é a
janela de oportunidade para a levarem para casa”. Enquanto conversávamos
com o médico, começámos a ver alguma agitação, duas auxiliares e uma
enfermeira movimentavam a cama da Paula, preparando-se para sair da
enfermaria. “Para onde vai?”, perguntámos surpresos. Inesperadamente, a
Paula estava a caminho do serviço de cuidados paliativos. Através da directora,
soubemos que fora escolhida para ocupar um quarto individual, em detrimento
de outro candidato igualmente em estado muito precário41. Tivemos de
repensar rapidamente a nossa intenção de a levarmos, no imediato, dali para
fora. Estávamos exaustos. Talvez aquele tempo nos cuidados paliativos
permitisse uma pausa, organizar melhor o regresso da Paula à sua casa,
sabendo que, por agora, seria ali melhor assistida e com a prestação de todos os
cuidados para evitar, ou minimizar, a dor associada aos sintomas que não
paravam de se multiplicar.
Nos dias imediatos tivemos de avaliar decisões difíceis de tomar. A
primeira, se deveria ela ficar no hospital do Sul ou levá-la já para casa, sabendo-
se que as condições não estavam ainda todas reunidas, não dependíamos

41 Se considerarmos todas as pessoas com doenças muito avançadas e incuráveis que necessitam de
cuidados paliativos em Portugal, além dos oncológicos, a taxa de resposta do Serviço Nacional de Saúde
andará actualmente entre 7% e 10%. A existência de longas e demoradas listas de espera não se compadece
com doentes que terão cinco, ou menos, dias de vida.

101
apenas de nós, e algo poderia falhar, sujeitando-a a um insuportável
sofrimento. No seu estado cada vez mais crítico, numa semi-inconsciência, com
gritos de dor surgindo de repente, onde seria ela melhor tratada, onde sofreria
menos? A segunda decisão, envolveu mais uma vez a sua amiga Marina. A
oncologista de Lisboa, para quem o oncologista conhecido da Marina tinha
“endossado” o caso da Paula, dava também consultas num conhecido hospital
particular. Segundo nos informaram, a Paula encontraria aí melhores condições.
A Marina fez os necessários contactos e pôs-se a hipótese de a Paula seguir de
imediato para Lisboa, para os cuidados paliativos desse hospital particular. Mas
seria esta uma boa opção, teria garantidamente o ingresso e também o
acompanhamento dessa oncologista assegurados? As conversações envolviam
terceiras pessoas, não as conduzíamos nós directamente, portanto escapavam-
nos detalhes. Receávamos que pudessem ocorrer equívocos semelhantes aos
que se verificaram quando do seu recente internamento no “pavilhão
geriátrico” do hospital de Lisboa.
Entretanto, os bons cuidados que lhe prestavam e as conversas abertas
que mantínhamos com a directora, levaram-nos a decidir que a Paula ficaria,
por agora, nos cuidados paliativos do hospital do Sul. Todos os dias estávamos
com ela, no quarto individual, ou por perto. Assistimos aos sobressaltos e
mesmo a alguns gritos da Paula quando, subitamente, o efeito analgésico de
algum medicamento cessava ou sobrevinha uma dor mais forte, acorrendo
então as enfermeiras. Desde que deu entrada no serviço de cuidados paliativos
não mais consegui conversar com ela, pois mantinha-se num torpor
intransponível.
Compreendia mal o que se passava com a Paula, o que ia na sua cabeça,
o que sentia. Uma só vez tive plena consciência de que era sensível aos sons,
parece que a audição é a última faculdade a desaparecer, permanecendo intacta
em fases terminais da vida. Conta-se brevemente. Estava à porta do quarto,
nuns sofás que por lá havia, a conversar com a enfermeira sua conhecida que a
visitava antes de seguir para férias, e que me ia explicando a sua teoria sobre a
importância do desapego de familiares e amigos para permitir à Paula partir em
paz. De repente, ouço a Paula dizer bem distintamente, lá do fundo do quarto:
“Rogério, o que esse bzbzbzbzbz?” (entenda-se, a conversa meio murmurada
que eu mantinha com a enfermeira). Fiquei gelado, expliquei-me sem saber se
ela me entendia, e prometi a mim mesmo que não mais falaria com quem quer
que fosse, mesmo que em sussurro, à porta do seu quarto sempre de porta
aberta, como é regra naquele serviço. E assim fiz, e pedi aos outros que também
o respeitassem. Logo ao lado do quarto havia uma sala onde poderíamos
conversar.
O que mais me perturbava era a incerteza quanto ao modo certo de estar
com a Paula, apenas me restando a intuição. Olhava-a e parecia-me sempre
ausente, sob o efeito dos fortes medicamentos. Dizia a mim mesmo que deveria
tocá-la, dar-lhe a mão para que sentisse a minha presença, enfim, envolvê-la,
confortá-la. Mas ao mesmo tempo pensava que esses simples gestos poderiam
revelar-se de uma enorme violência, pois arrancariam a Paula do lugar interior

102
de aparente tranquilidade onde se encontraria, obrigando-a a tomar consciência
da realidade que era a sua.
Percebi que não era o único a viver este dilema quando, um dia, o
verbalizei naquela sala contígua ao seu quarto e onde se encontravam a mãe, a
amiga Teresa e o Paulo, ex-marido da Paula, que viera ao sul para ficar também
perto dela nos seus últimos dias. Por essa altura, lembrei-me das palavras de
Viktor Frankl, um discípulo – e depois dissidente – de Freud, que estivera
prisioneiro durante anos num campo de concentração nazi na segunda guerra
mundial. Conta ele: “Jamais esquecerei certa noite em que despertei com os
gemidos do companheiro que dormia agitado ao meu lado, obviamente tendo
um horrível pesadelo. Como sempre me senti tocado por pessoas torturadas
por angustiosos pesadelos ou delírios, pensei em acordar o pobre homem. Mas
nesse preciso momento retirei a minha mão, assustado com o que estivera
prestes a fazer. Ganhei a intensa consciência de que nenhum sonho poderá ser tão
mau, por horrível que seja, quanto a realidade do campo de concentração para a qual eu
ia trazê-lo de volta”42.
Estas palavras de Frankl espelhavam o meu próprio dilema, mas não me
davam certeza alguma quanto ao modo como me deveria comportar naquele
quarto de hospital onde a visita da morte era aguardada assim que o cancro
consumasse a sua missão suicida, o que veio a ocorrer em 21 de Julho de 2017.

42Viktor Frankl (1946/1ª edição, 2006), “Man's search for meaning” [O homem em busca de sentido],
Beacon Press (tradução e itálicos nossos). A versão portuguesa, de 2012, encontra-se referenciada na secção
“Fontes e inspirações” no final deste livro.

103
PARTIR PARA O UNIVERSO

“Um dia estarei ali a ver o que vocês fazem no monte das Sete
Amendoeiras. Serei como as cegonhas que vejo passar por cima da minha casa,
planarei sobre a vida”, disse-nos a Paula, rindo, junto ao portão do monte e
apontando para os cumes da Serra de Grândola. Alguns meses mais tarde,
cremado o seu corpo, deixámos na serra o que da Paula haveria de se misturar
com a terra, e é por isso que a minha cabeça se volta tantas vezes para aqueles
cumes, lá longe, mas sempre tão chegados a nós.

Um bilhete de despedida

Num pequeno caderno de papel reciclado que comprara na sua


encantada viagem à Noruega, a Paula tinha-nos deixado, bastante tempo antes
de morrer, um bilhete que recuperámos e onde escrevera estas palavras:
“Aos dois seres que me são mais queridos, a minha mãe e o meu grande
amigo Rogério. Se estiverem a ler estas palavras significa que parti, que não
habito mais o planeta Terra. Quero dizer-vos que vos levo no meu coração,
agora espiritual, e vou profundamente agradecida por vos ter conhecido, por as
vossas vidas se terem cruzado com a minha algures na linha do tempo.
Sinto-me tranquila e calma. Há aqui um silêncio a marcar uma espécie de
inexistência de tempo e isso é bom. Como se nada tivesse começado e por isso
nada vai acabar.
Gosto muito de vocês e quero muito que fiquem bem. Vivam o tempo
que vos resta, sabe-se lá quanto, saboreando o melhor que puderem o bem que
é estar vivo. Olhar o mar, sentir o fresco da água num belo mergulho, os grãos
de areia nos pés. O vento. Olhar a Serra de Grândola ao longe, do portão do
Monte das Sete Amendoeiras. Não há muito mais do que isso.
Gostei de ter vivido. Vou em paz. Um beijo do tamanho do Universo
para vocês, que são tão especiais. Obrigada. Paula”.

Os que ficam

“Olá, Rogério, obrigada por teres partilhado comigo a vossa experiência


antes de a publicarem em livro. A maneira como a história é contada… parece
que estamos lá com vocês. Houve muitas alturas em que tive de parar porque
não conseguia ler e chorar ao mesmo tempo. Gostava de ter estado com a Paula
mais um pouco, sempre achei, parvamente, que ela um dia voltaria ao jardim
da Estrela para falarmos e rirmos no banco do jardim. Ler o livro permitiu-me
estar com ela outra vez e partilhar a dor que não partilhei na altura. Enfrentar a
realidade que não quis enfrentar.

104
Achei que o fim do livro é demasiado rápido. As partes que mais me
comoveram são aquelas em que fazes comentários mais pessoais sobre a tua
amiga. E, desde cedo, percebi que não estava só a ler sobre o cancro da Paula,
paralelamente ao drama do cancro havia uma história de amor de um amigo
que largou tudo para estar com a sua melhor amiga, que arranjou uma
caravana, se instalou no seu jardim e velou por ela até ao fim. Também a mãe
da Paula me inquietou enquanto lia. Como é que ela conseguia lidar com o
sofrimento da filha?
Por isso é que, no final, me senti um pouco perdida. O livro acaba e vem
aquele sucessão de palavras difíceis e assustadoras! Senti mesmo necessidade
de saber o que é que tu e a mãe da Paula fizeram e sentiram. De repente,
percebi que nunca mais ia "ver" o monte, nem a caravana, nem os gatos, nem as
plantas e era angustiante. Agora pensando nisso, parece que a Paula vai para o
Universo e o leitor vai com ela. Mas, no fim, fiquei com vontade de voltar
convosco para o monte e ver pela última vez a natureza que vos rodeou, a
natureza da Paula. Fiquei com necessidade de saber o que aconteceu à
caravana. A maneira como a história foi escrita fez-me ver-vos ao mesmo tempo
como pessoas reais e personagens de um romance. Muito obrigada. M.”.
Olá, M., vim cá abaixo, ao Alentejo tratar de assuntos da Paula. Escrevo-
te da caravana, num dia tão ventoso que mais me parece estar num barco à vela
apesar dos seis metros robustos desta caravana que já foi quartel-general contra
um cancro. Os gatos Tobias e Tim-Tim estão vivos e brincalhões. Do janelão da
sala estou agora a ver a cadela Luna a rodar frenética sobre si mesma, latindo
vigorosamente, a tentar, como sempre, morder a extremidade da cauda. Na
horta crescem espontaneamente favas e ervilhas que por lá ficaram do ano
passado depois da colheita que ainda fiz com a Paula. Em fundo, a serra de
Grândola, mais sombria nestes primeiros dias chuvosos de Março. Como vês,
muita coisa permanece. A casa da Paula é que, à noite, deixa-me triste. A luz
continua apagada.
A mãe acabou de sair do monte para levar folhetos ao hospital do Sul,
onde a Paula morreu. Propôs-se organizar breves sessões musicais na sala de
quimioterapia para as pessoas que aí passam horas em tratamento. Na próxima
sessão haverá canto, com piano e saxofone, e, no mês seguinte, um concerto de
harpa. Escrever um livro ou oferecer música são formas de elaborar o luto e,
também, de trazer algo de consolador, espera-se, a quem enfrenta um cancro e a
química agressiva.
Uma primeira nota para entenderes o quão difícil foi escrever
“QuimioRadiolância”. No dia do funeral, a Elsa, uma amiga de longa data da
Paula, depois de me ouvir contar alguns episódios daquele ano, perguntou-me
porque é que eu não escrevia um livro. Até aí nunca pensara nisso, todas as
energias eram mobilizadas para, primeiro, tentar salvar a minha amiga e, por
fim, atenuar o seu sofrimento, confortá-la. E sabes o que respondi? "Nem
pensar, Elsa, escrever é sofrer duas vezes". E não me enganei; mas, por outro
lado, em boa hora me fiz ao caminho. Nem me perguntes como o consegui
finalizar passados tão poucos meses. Ocorreu algo que, para mim, constituía
uma improbabilidade: mesmo sofrendo duas vezes, foi a escrita que me ajudou

105
a suportar a dor, a dar forma à dor e à memória dos momentos difíceis por que
passámos, renovando o laço profundo que me ligava à Paula. E, maior que tudo
isto, curvar-me para sempre perante a sua coragem e determinação ao recusar
mais químicos em troca de meses de vida (embora compreenda aqueles que
optam pela via oposta, pois eu próprio sondei a Paula, subtilmente e por mais
de uma vez, para ver se apenas mantinha a recusa por inércia; mas não,
continuou sempre convicta de que a oncologia nada mais tinha para lhe
oferecer senão sofrimento).
Pelo que escrevi antes perceberás que, para mim, este livro deveria
terminar com a partida da Paula para o Universo – uma simples página de
texto. Daí a tua sensação de final abrupto. De facto, os dois últimos capítulos
são, afinal, falsos capítulos, talvez anexos, contendo a tal "sucessão de palavras
difíceis e assustadoras". Mas, sabes, essas páginas informativas, esse brevíssimo
dicionário de termos da medicina, prestam ainda homenagem a alguém que,
como a Paula, estudou obsessivamente o seu cancro, esforçou-se imenso por
compreender, com recurso às melhores revistas científicas, o tipo de cancro que
era o seu e como o combater (não falando já do combate, bem sucedido, com a
hepatite C).
A mensagem da Paula é uma, única: só se luta conscientemente contra o
cancro com conhecimento e informação (e com vontade de viver). Gostaríamos,
ambos, que o livro fosse lido por qualquer pessoa que viva no presente uma
situação oncológica – seja ela nascente ou terminal –, mas em particular por
pessoas com cancro na hipofaringe, como o da Paula. Acreditamos que o
conhecimento e a informação que oferecemos neste livro poderão vir a ser úteis
às pessoas lutadoras como ela o foi, embora possam aparecer áridos aos olhos
de outros leitores. Como satisfazer todos os leitores – os que vivem um cancro e
os que lêem uma história sobre o cancro?
Gostei muito quando, subitamente, dás conta de algo importante que te
estaria a escapar. Leio: "(…) Agora pensando nisto, parece que a Paula vai para o
Universo e o leitor vai com ela. Mas, no final, fiquei com vontade de voltar
convosco para o monte e ver pela última vez a natureza que vos rodeou, a
natureza da Paula. Fiquei com necessidade de saber o que aconteceu à caravana
(...)" (itálicos nossos). Tocas num ponto tão difícil e a que nunca conseguiria
responder satisfatoriamente mesmo escrevendo mais cem páginas. Como ficam
os vivos? A Paula morreu e, decerto, nenhum leitor parte com ela, mas entendo
que o digas, pois há de facto uma "separação" emocional na leitura que é o
equivalente da "separação" física de alguém que deixou o mundo dos vivos. Por
isso, prossegue lentamente o trabalho que procuro fazer dentro de mim, como
outros amigos que a amavam também farão, para que daqui a um, cinco ou
vinte anos o rosto da Paula, o seu carácter frontal, as gargalhadas francas, o
coração generoso, a sua obra no mundo não se esfumem na espiral incerta do
tempo.
As últimas palavras deste livro teriam de ser dela, estão publicadas no
seu blogue “Trumbuctu” e revelam um espírito atento aos ínfimos detalhes da
vida que a faziam tão feliz:

106
“Sinto-me como as pequeninas sementes de Cravos da Índia anões (Tagetes patula), a
emergir do solo, a romper a terra. Como é que algo aparentemente tão frágil consegue
vencer aquela barreira de solo na procura da luz?”.

107
FONTES E INSPIRAÇÕES

LÉXICO E SIGLAS

108
FONTES E INSPIRAÇÕES

Apresentamos, nesta secção, alguns exemplos de fontes e inspirações


pesquisadas pela Paula e, em menor número, também por mim, as quais foram
relevantes durante o período em que se procurou compreender e combater o
cancro e, posteriormente, na escrita deste livro. No que respeita ao cancro da
cabeça/pescoço e à hepatite C, a literatura referenciada constitui uma ínfima
amostra – a estritamente necessária em certos capítulos – da muita literatura
científica, estudos de caso e testemunhos a que se acedeu em suportes escritos
ou electrónicos, cobrindo as áreas da medicina oncológica convencional e da
medicina complementar e alternativa.

1 – Websites, blogues e redes sociais

Ana Paula Garcia Mendes, blogue “Trumbuctu: Diário de uma horta”


(http://trumbuctu.blogspot.pt/)

Ana Paula Garcia Mendes, facebook “Grão da Terra: Uma unidade certificada
de produção artesanal” (https://pt-pt.facebook.com/graodaterra.pt/)

Ithzak Brook, blogue “My voice” (http://dribrook.blogspot.pt/)

Kevin Watkins, website “Kevin’s cancer experience”


(http://www.kevinhascancer.com)

2 – Notas e apontamentos pessoais

Ana Paula Garcia Mendes, “Apontamentos pessoais para a concepção e


desenvolvimento de uma horta biológica” (não publicado)

Ana Paula Garcia Mendes, “Apontamentos pessoais sobre alimentação,


agricultura biológica e permacultura” (não publicado)

Ana Paula Garcia Mendes, “Experiências em saboaria e cosmética artesanais”


(não publicado)

3 – Artigos científicos sobre o cancro da cabeça/pescoço e hepatite C

Bann, Darrin V. et al. (2016), “Novel immunotherapeutic approaches for head


and neck squamous cell carcinoma”, Cancers, 8(10): 87
(https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5082377)

109
Borchardt, Roy A.; Torres, Harrys A. (2014), “Challenges in managing Hepatitis
C virus infection in cancer patients”, World Journal of Gastroenterology, 20(11):
2771-2776 (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3961965)

Direcção Geral de Saúde (2015), “Tratamento dos tumores malignos da laringe e


da hipofaringe”, Norma 016/2015 de 21 de Agosto, em discussão pública
(https://www.dgs.pt/directrizes-da-dgs/normas-e-circulares-
normativas.aspx)

Economopoulou, Panagiota et al. (2016), “The emerging role of immunotherapy


in head and neck squamous cell carcinoma (HNSCC). Anti-tumor immunity
and clinical applications”, Annals of Translational Medicine, 4(9)
(https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4876265)

Nataša Debeljak et al. (2014), “Erythropoietin and cancer: The unintended


consequences of anemia correction”, Journal Frontiers in Immunology, Vol. 5,
Article 563 (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4227521)

Peixoto, Conceição et al. (2015), “Carcinoma laríngeo/hipofaringe localmente


avançado. Protocolo de preservação de órgão”, Revista Portuguesa de
Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-Facial, 53(2)
(https://www.journalsporl.com/index.php/sporl/article/viewFile/582/468)

Pinto, Carmine et al. (2011), “Management of skin toxicity associated with


Cetuximab treatment in combination with chemotherapy or radiotherapy”, The
Oncologist, 16: 228-238
(https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3228080)

Qian, Xu et al. (2015), “Taxane-cisplatin-fluorouracil as induction chemotherapy


for advanced head and neck cancer. A meta-analysis of the 5-year efficacy and
safety”, SpringerPlus, 4: 208
(https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4422827)

Yazici, Ozan et al. (2014), “Hepatitis C virus reactivation in cancer patients in


the era of targeted therapies”, World Journal of Gastroenterology, 20(22): 6716-6724
(https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4051913)

4 – Livros e revistas

Bauman, Zygmunt (1992), “Mortality, immortality and other life strategies”,


Cambridge: Polity Press

Frankl, Viktor (2012), “O homem em busca de sentido”, Lisboa: Lua de Papel

110
Gomes, Paulo Varela (2015), “Morrer é mais difícil do que parece”, in Revista
Granta nº 5 (dedicada ao tema “Falhar melhor”)

Heclo, Hugh (2008), “On thinking institutionally”, London: Paradigm


Publishers

Mónica, Maria Filomena (2011), “Morte”, Lisboa: Fundação Francisco Manuel


dos Santos

Servan-Schreiber, David (2016-11ª Edição / 2008-1ª Edição), “Anticancro. Uma


nova maneira de viver”, Lisboa: Lua de Papel

Servan-Schreiber, David (2011), “Antes de dizer adeus”, Lisboa: Lua de Papel

111
LÉXICO E SIGLAS

Nesta secção disponibilizamos, sob a forma de “Entradas”, uma breve


descrição de termos técnicos e siglas menos familiares que são utilizados ao
longo do livro. Pretende-se proporcionar uma leitura apoiada dos vários
capítulos, deixando ao critério do leitor o eventual aprofundamento dessas
“Entradas” com recurso a textos especializados.

Adenopatia
O termo adenopatia é usado para designar o aumento do tamanho de algum
dos inúmeros gânglios linfáticos distribuídos pelo nosso corpo.

Angiogénese
Angiogénese, ou neovascularização, envolve a proliferação de novos vasos
sanguíneos. O processo transforma um grupo, pequeno e habitualmente
inofensivo, de células anormais, conhecidas por tumor in situ, numa massa de
grandes dimensões que pode alastrar a outros órgãos (in David Servan-
Schreiber, “Anticancro. Um nova maneira de viver”, pág. 96 – ver referência
bibliográfica na nossa secção “Fontes e inspirações”).

Ansas intestinais
Cada uma das grandes curvas em forma de “U” descritas pelo jejuno e pelo
íleo, que são os segmentos constituintes do intestino delgado.

Antineoplásico
Fármaco que inibe o desenvolvimento de células malignas. Existem diversos
grupos de fármacos antineoplásicos (quimioterápicos citostáticos e hormonais)
e de métodos de tratamento antineoplásico (radiações, crioterapia, laser). A
opção pela utilização de um determinado antineoplásico depende do tumor a
tratar.

Antrite gástrica
Inflamação da mucosa do antro gástrico que é a parte do estômago perto do
intestino delgado.

Apoptose
A apoptose é um processo biológico natural de auto-destruição das células
(“suicídio celular”) que permite regular o tamanho dos tecidos e órgãos, bem
como remover células envelhecidas. Nas células cancerosas a apoptose não
ocorre e assim estas podem proliferar livremente e formar tumores.

Atestado de Incapacidade Multiuso


O atestado médico de incapacidade multiuso é um documento emitido por
entidade oficial que comprova que a pessoa tem uma incapacidade, física ou de

112
outra natureza, determinando qual o seu grau. Associadas a este atestado
encontram-se alguns benefícios em serviços de saúde, segurança social, fiscais e
outros.

Biorressonância
No organismo humano existem padrões de frequências bioenergéticas que
podemos identificar como estados de equilíbrio ou de saúde dos nossos órgãos
e tecidos. Sempre que esses padrões de frequências bioenergéticos se encontram
alterados, e isso pode ser comprovado por uma máquina de biorressonância,
estamos perante tipos de desequilíbrio ou, pior ainda, de degenerescência
celular que podem ser identificados e compensados pela biorressonância. No
entanto, a biorressonância não se propõe diagnosticar ou tratar cancros como o
faz a oncologia.

Capecitabina
A Capecitabina pertence ao grupo de fármacos designados citostáticos, os quais
impedem o crescimento de células cancerígenas. A Capecitabina não é, em si,
um citostático, só depois de absorvida pelo organismo é que se transforma num
agente anticancro activo.

Carcinoma
Carcinomas são neoplasias malignas (ver mais à frente a entrada “Neoplasia”)
com origem no tecido epitelial (ver mais à frente a entrada “Tecido epitelial”)
que reveste a pele e diversas cavidades internas do organismo.

Carina
Bifurcação da traqueia que dá origem aos brônquios principais direito e
esquerdo.

Cetuximab
Cetuximab é um fármaco que pertence a um tipo de imunoterapia conhecido
por “anticorpos monoclonais” cuja finalidade é atacar uma parte muito
específica de células malignas (e não indiscriminadamente todas as células do
organismo, sobretudo as sadias e de crescimento rápido, como acontece na
quimioterapia convencional). Inibe a invasão dos tecidos normais pelas células
malignas e previne a disseminação de tumores. É indicado para o tratamento de
doentes com carcinoma pavimentocelular da cabeça e pescoço, em associação
com quimioterapia à base de compostos de platina, quando o tumor já se
encontra metastizado. Os principais sintomas adversos do Cetuximab
consistem em reacções cutâneas (“rash”) que podem ser graves, especialmente
em associação com quimioterapia. As reacções cutâneas são muito frequentes,
podendo ser necessária a interrupção ou mesmo descontinuação do tratamento.

113
Cirrose hepática
A cirrose hepática é uma doença que provoca a substituição do tecido normal
do fígado por nódulos e tecido fibroso, o que afecta o seu funcionamento.
Causas principais da cirrose são o excesso de álcool e o vírus da hepatite C.

Cisplatina
A cisplatina pertence a um grupo de fármacos chamados citostáticos utilizados
principalmente em cancros que já não podem ser tratados ou que não
respondem bem a outros medicamentos anticancro. Provoca a morte de células
cancerígenas danificando o seu ADN e impedindo-as de se dividirem. A
cisplatina contém o metal platina (cf. National Cancer Institute).

Citotóxicos (ou Citostáticos ou Antineoplásicos)


Medicamentos que actuam quimicamente sobre células malignas ou cancerosas,
parando o seu crescimento e proliferação, mas que podem também destruir
células saudáveis de crescimento rápido (é o caso dos conhecidos efeitos
secundários de queda do cabelo ou das unhas em doentes submetidos a
quimioterapia).

Docetaxel
O Docetaxel é uma substância derivada das agulhas das árvores do teixo que
pertence ao grupo de medicamentos contra o cancro chamados taxoides. O
Docetaxel mata as células cancerígenas, impedindo-as de se dividirem (cf.
National Cancer Institute).

Elastografia hepática (ou Fibroscan)


A elastografia hepática é um exame que permite avaliar a presença e o grau de
fibrose no fígado. Utiliza uma sonda que envia ondas de ultra-sons através do
fígado. Método não invasivo e indolor, ao contrário da biopsia.

Electrochoques, electroconvulsoterapia ou terapia electroconvulsiva


Terapêutica usada em psiquiatria e que visa induzir alterações na actividade do
cérebro por via da administração de pequenos choques eléctricos nas têmporas
dos pacientes.

Enema
Injecção de um fluído pelo reto de modo a estimular a evacuação de fezes. Na
medicina alternativa, é um meio de remover toxinas acumuladas no organismo.
Na conhecida “terapia de Gerson”, os enemas de café fazem parte de um
processo de desintoxicação em pessoas com cancro.

Enteroscopia por videocápsula


Método de diagnóstico que utiliza uma pequena cápsula com câmara de video
incorporada, a qual vai captando imagens do tubo digestivo até ser expelida
nas fezes. As imagens são transmitidas para um gravador que o doente traz à
cintura. A enteroscopia por videocápsula permite visualizar o intestino

114
delgado, normalmente de difícil acesso pelos métodos endoscópicos
convencionais.

Estadiamento de um cancro
O estadiamento do cancro permite avaliar – de grau I a grau IV – se o cancro
permanece no sítio de origem (in situ), se invadiu zonas adjacentes ou se já se
disseminou para tecidos e órgãos distantes (metástases).

Estenose intestinal
Uma obstrução total ou parcial do intestino delgado (estenose alta) ou grosso
(estenose baixa) que dificulta a passagem de alimentos ou de líquidos. A
estenose, ou estreitamento, pode ter causas diversas, como cancro, inflamação,
malformações intestinais ou lesões. Nas obstruções mais altas do intestino
delgado podem manifestar-se sintomas como vómitos, regurgitação de uma
secreção de cor clara e biliosa, e também dores abdominais.

Exame broncoscópico
A broncoscopia ou endoscopia respiratória é um exame para visualizar a árvore
brônquica (traqueia e brônquios) através de um aparelho com fibras ópticas que
leva na sua extremidade uma câmara e que permite também retirar amostras de
tecidos para efectuar biopsias.

FDG
Substância glicosada radioactiva designada por Fluorodesoxiglicose que é
usada nos exames de PET (“Tomografia por Emissão de Positrões” - ver mais à
frente a entrada “PET”).

Fibrose hepática
A fibrose hepática ocorre por morte de células do fígado e o aparecimento de
cicatrizes onde deveria estar tecido normal, podendo evoluir para o estado de
cirrose (ver atrás a entrada “Cirrose”). A classificação Metavir é uma das mais
utilizadas para avaliar esta evolução que pode ir do grau “F0 - sem fibrose” até
“F4 - cirrose”. O exame usado para determinar o grau chama-se elastografia
hepática (ver atrás a entrada “Elastografia hepática”). Os portadores do vírus
da hepatite C em grau Metavir ≥ F2 têm forte indicação para iniciar o
tratamento.

GAT
Grupo de activistas em tratamentos. Desenvolve o seu trabalho em conjunto
com os responsáveis pela saúde (reguladores, profissionais de saúde,
especialistas em saúde pública, epidemiologia), com a indústria farmacêutica e,
sobretudo, com as pessoas e comunidades atingidas pela hepatite C, tendo por
objectivo desbloquear o acesso rápido, e a preços comportáveis pelo Serviço
Nacional de Saúde, a novos medicamentos para a hepatite C.

115
HCG
Gonadotropina coriónica humana (HCG), uma hormona encontrada na urina
de mulheres grávidas e, em alguns casos, também na urina de pacientes com
cancro.

Hidrolinfa (electro-hidroterapia)
A máquina Hidrolinfa activa uma corrente de baixa amperagem, através de um
eléctrodo na água, corrente essa que é potenciada pelo cloreto de sódio (electro-
hidroterapia). Ao fenómeno resultante da passagem da corrente eléctrica pela
água chama-se electrólise, que é responsável pela alteração da cor da água na
bacia. Essa alteração deve-se à reacção química verificada entre a água, o cloreto
de sódio e a corrente eléctrica. A restante sujidade visível na bacia resulta da
reacção das toxinas do nosso organismo em contacto com a água ionizada. A
electro-hidroterapia actua sobre o sistema linfático de modo a eliminar essas
toxinas e conseguir uma desintoxicação do organismo.

Hipercalcemia
A hipercalcemia é a concentração elevada de cálcio no sangue resultante de
problemas com cancro ou de outros distúrbios que afectam os ossos. No caso do
cancro, o cálcio em excesso é libertado no sangue à medida que as metástases
rompem os ossos e destroem as células ósseas. Três sintomas frequentes da
hipercalcemia são as dores abdominais, a perda de apetite e, em situações mais
graves, a confusão mental que pode levar ao coma e à morte.

Hipertermia oncológica
Método terapêutico complementar dos tratamentos oncológicos convencionais
como a cirurgia e a quimio-radioterapia, embora possa ser utilizado
isoladamente. Visa destruir as células cancerígenas de forma não invasiva
através do sobreaquecimento induzido da temperatura do corpo entre 39º e 45º,
simulando assim a febre que é um mecanismo de defesa natural do organismo.

Hipofaringe
A hipofaringe é a parte superior do esófago que envolve a laringe. Compõe-se
de três partes (não incluindo a laringe): os seios piriformes direito e esquerdo; a
zona pós-cricóide (junção faríngeo-esofagiana); e a parede posterior da faringe.

Homeopatia
Uma terapia alternativa à medicina convencional que utiliza substâncias
naturais em pequenas doses, muito diluídas, com o objectivo de levar o
organismo a tratar de si próprio de uma forma global, repondo equilíbrios
físicos, mentais e emocionais comprometidos pela situação de doença. A prática
da homeopatia segue o princípio similia similibus curantur (“o semelhante pelo
semelhante se cura”), ou seja, as doenças curam-se com remédios que
produzem efeitos semelhantes aos da própria doença. Por exemplo, no
tratamento homeopático o veneno da abelha pode ser diluído para curar

116
doenças que apresentam sintomas semelhantes aos de uma picada de abelha
(inchaço, sensação de queimadura, etc).

INFARMED
Autoridade nacional do medicamento e produtos de saúde

Interferon
Medicamento convencional, até muito recentemente, para o tratamento da
hepatite C. Possuía uma eficácia limitada na erradicação do vírus (40% a 50%
de cura) e efeitos secundários graves nas pessoas infectadas. Com o
aparecimento de novos fármacos (Daclatasvir, Sofosbuvir, etc), que garantem
taxas de cura total na ordem dos 98%, o Interferon – pelo menos nas sociedades
mais desenvolvidas – deixou de ser administrado.

IPO
Instituro português de oncologia (Lisboa, Porto e Coimbra)

Iscador
Medicamento feito à base de visco branco (mistletoe, em inglês) ou, na
designação latina, viscum album. É uma planta semi-parasita com propriedades
medicinais que cresce em árvores como o carvalho e cujo extracto é usado como
terapia complementar no tratamento do cancro, particularmente na Alemanha e
Suíça. Rudolf Steiner, médico e fundador da “Society for Cancer Research”
(medicina antroposófica), foi o primeiro a propor, em 1920, o extracto de visco
branco para estimular o sistema imunitário, matar células cancerígenas, e,
ainda, reduzir a dor e os efeitos secundários em pessoas submetidas a quimio e
radioterapia. Pode ser comercializado sob várias marcas, uma delas – e das
mais conhecidas – é o Iscador.

Laringectomia
A laringectomia é uma cirurgia realizada com o objectivo de remover total ou
parcialmente a laringe e cordas vocais em cancros muito avançados. Para a
entrada e saída de ar dos pulmões é então necessário abrir um orifício
(traqueostoma) no pescoço (ver mais à frente a entrada “Traqueostomia”). As
pessoas laringectomizadas deixam de poder falar de forma normal (“voz
laríngea”), tendo de aprender a falar por via digestiva (“voz esofágica”) ou
através de próteses fonatórias.

LPCC
Liga portuguesa contra o cancro

Mediastino
O mediastino é o espaço existente entre os dois pulmões, no centro do tórax,
que contém o coração, o esófago, a traqueia e parte dos sistemas nervoso e
linfático. Divide-se em mediastino anterior, médio e posterior.

117
Melenas
Melenas são fezes de cor escura, com aspecto pastoso e cheiro fétido, sintoma
de uma possível hemorragia no trato gastrointestinal superior (estômago ou
intestino delgado). Refira-se que se a cor do sangue for vermelho vivo trata-se,
muito provavelmente, de hemorragia no trato gastrointestinal inferior (cólon,
reto, etc).

Metástases
Metástases são focos de células malignas que se encontram longe do tumor
original (sítio primário), tendo-se espalhado por várias partes do organismo
através da corrente sanguínea ou linfática. A metastização de um tumor
significa que estamos perante um cancro em grau avançado ou mesmo muito
avançado.

Neoplasia
Neoplasia, também designada por tumor, é uma forma de multiplicação celular
não controlada pelo organismo. As neoplasias classificam-se
em benignas ou malignas. A neoplasia maligna, ou cancro, apresenta um
crescimento acelerado e tem a capacidade de invadir os tecidos adjacentes,
podendo desenvolver metástases à distância.

Neuropatia periférica
Neuropatia periférica refere-se a danos na vasta rede de nervos que transmitem
informações do sistema nervoso central para o resto do corpo, sendo
frequentemente incapacitante e por vezes fatal. Os sintomas são variados e vão
desde a fraqueza e atrofia muscular até alterações na pele, pêlos e unhas. A
quimioterapia pode induzir situações de neuropatia periférica.

Orofaringe
A orofaringe é a área da garganta localizada atrás da boca e inclui a base da
língua, o palato mole, as amígdalas e a parte lateral e posterior da garganta.

Osteomedular
Inclui-se aqui o termo “osteomedular” porque ele é referenciado na terceira e
última PET realizada pela Paula (“pequenas lesões indicativas de doença M1
osteomedular”). Metástases do cancro tinham já invadido o esqueleto ósseo e,
eventualmente, também a medula.

PET
Exame de tomografia por emissão de positrões. Em oncologia é utilizado para
detectar e localizar tumores, permitindo distinguir entre tumores benignos e
malignos, precisar o seu grau de malignidade e mesmo o estadio actual. O
doente é injectado com uma pequena concentração de glicose radioactiva
(substância glicosada designada por Fluordesoxiglicose – Ver mais atrás a
entrada “FDG”). Como as células tumorais são grandes consumidoras de
glicose para assim obterem energia, nas imagens de uma PET podem ver-se

118
apreciáveis aglomerações de pontos luminosos em zonas do organismo com
maior actividade cancerígena.

PROA
Plano regional de oncologia do Alentejo (2013)

Resposta metabólica parcial


Uma resposta metabólica completa a um tratamento de quimioterapia significa
que o tumor já não é detectável – por exemplo, através de um exame com PET
(ver mais atrás a entrada “PET”) – nas quatro semanas seguintes ao tratamento.
Uma resposta metabólica parcial significa que houve apenas uma redução da
dimensão do tumor igual ou superior a 50% nas quatro semanas seguintes ao
tratamento.

Seios piriformes
Os seios piriformes direito e esquerdo fazem parte da hipofaringe, têm a forma
de cones invertidos e são cavidades por onde os alimentos passam antes de
entrarem no esófago. 70% a 80% dos cancros na garganta ocorrem nos seios
piriformes.

Sonda nasogástrica
Uma sonda nasogástrica é um tubo introduzido pelo nariz até ao estômago de
modo a permitir a ingestão de alimentos e a hidratação de doentes com
dificuldade em engolir por problemas de saúde, como é o caso de cirurgias à
faringe ou à laringe em cancros do pescoço.

TAC
Exame de tomografia axial computorizada. Utiliza-se um equipamento com
raio-X para obter várias imagens dos tecidos, visualizando-se o seu interior e
exterior como se estes fossem cortados em fatias horizontais. O exame permite
detectar tumores, fracturas ou alterações nos vários órgãos.

Tecido epitelial
Os tecidos epiteliais ou epitélios têm células perfeitamente justapostas, com
pouquíssimo espaço intercelular e revestem quer a superfície externa do corpo
(como a pele), quer a superfície de diversas cavidades internas (como os seios
piriformes).

Tecido pavimentoso
O tecido pavimentoso é um tipo de tecido epitelial constituído por células
justapostas e achatadas com a forma de tijolos ou ladrilhos bem encaixados. Os
restantes tecidos básicos do nosso organismo são o conjuntivo, o muscular e o
nervoso.

Terapia fotodinâmica (PDT, em língua inglesa)


A terapia fotodinâmica pode ser usada em pessoas com certos tipos de cancro

119
para as ajudar a viver mais tempo e melhorar a sua qualidade de vida (...). É um
tratamento que usa fármacos especiais chamados agentes fotossensibilizantes,
bem como a luz, para matar células cancerígenas (...). Dependendo da parte do
corpo a ser tratada, o agente fotossensibilizador é colocado na corrente
sanguínea através de uma veia ou, então, na pele. Durante algum tempo, o
fármaco é absorvido pelas células cancerígenas. Em seguida, aplica-se a luz na
área a ser tratada. A luz faz com que o medicamento reaja com o oxigénio, o
que origina um produto químico que mata essas células. A terapia fotodinâmica
também pode ser útil destruindo vasos sanguíneos que alimentam as células
cancerígenas e alertando o sistema imunológico para atacar o cancro (...). Como
a luz não pode chegar muito longe através dos tecidos do corpo, a terapia
fotodinâmica dificilmente será usada para tratar grandes cancros; cancros que
tenham penetrado profundamente na pele e outros órgãos (...); ou que se
tenham espalhado para muitos lugares (Adaptado do site da American Cancer
Society).

Traqueostomia
A traqueostomia é uma intervenção cirúrgica feita na traqueia e através da qual
se cria um orifício (traqueostoma) que permite a chegada de ar aos pulmões nos
casos em que há obstrução (por exemplo, se foi diagnosticado um tumor). Neste
local é introduzido um tubo de metal chamado cânula traqueal para facilitar a
entrada de ar. A traqueostomia pode ser temporária ou permanente.

VCH (ou HCV, em língua inglesa)


Vírus da hepatite C

120
“Temos de negociar”, lançou para o ar o radio-oncologista. Negociar?
Li no rosto da Paula o desconforto e a impaciência. “Você tem focos
metastáticos em várias partes do corpo”. Apontando para si mesmo,
insistia: “Está a ver, tem focos aqui, aqui e aqui”, rematava, com o dedo
a descrever uma órbita incerta. Comecei a ficar nauseado,
imaginando já a pele e a carne da minha amiga esburacadas,
primeiro pelas palavras e dedo espetado do médico e, mais tarde,
por terríveis radiações. “Mas vou pedir a opinião de um colega do
hospital do Norte”, disse o radio-oncologista. Perguntou, então, ao
boss do hospital do Norte – assim chamámos ao novo protagonista a
entrar em cena. “Bombardeia-se isso tudo!”, sentenciou o boss. E o
radio-oncologista repetia na nossa direcção: “Bombardeia-se isso
tudo!”. Agradeceu ao colega e desligou, reconfortado (p. 67).

QuimioRadiolândia é uma viagem sem regresso ao admirável mundo


da quimioterapia e da radioterapia. QuimioRadiolândia dá a conhecer
o percurso lúcido e corajoso de alguém com um cancro muito
avançado na hipofaringe e que tudo fez para se salvar, procurando
todas as opções terapêuticas da medicina convencional,
complementar e alternativa, mesmo as mais controversas.
QuimioRadiolândia é um testemunho de combate contra o cancro e
também de confronto com o establishment oncológico e a sua vocação
quantas vezes dogmática, autoritária e retaliadora, embora mais
raramente de humanidade genuína.

Se pretender uma cópia gratuita deste livro (formato PDF), peça-a através
do seguinte endereço: quimioradiolandia@gmail.com

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