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Discutindo a máquina acadêmica

Fabio Akcelrud Durão


Departamento de Teoria Literária, Unicamp
Tauan Fernandes Tinti
Pesquisador Independente

A cultura torna-se lesada quando é planejada e


administrada; ao ser deixada à própria conta, no entanto,
tudo que há de cultura corre o risco não somente de perder
sua possibilidade de eficácia, mas também de sua própria
existência. É igualmente impossível aceitar acriticamente o
conceito de cultural, há muito transpassado por ideias de
departametalização, nem continuar conservadoramente a
chacoalhar os ombros para o que está sendo infligido à
cultura na era de sua organização total. Adorno, “Culture
and Administration”.

I
Considerações Gerais

A oportunidade de escrever este texto deixou-nos particularmente felizes.


Uma das características mais determinantes da profissionalização das humanidades,
da constituição de um Betrieb acadêmico, é a rotineirização das práticas de pesquisa,
que parecem funcionar quase que autonomamente; uma vez escolhido o objeto, a
coisa como que vai por si só, como numa daquelas esteiras de aeroporto. Raramente
paramos a máquina para nos perguntarmos, a respeito do seu funcionamento, por
exemplo, se a velocidade está adequada, ou se as peças que a compõem são
apropriadas – no fundo, deveríamos ser capazes de questionar se realmente queremos
que nosso trabalho seja tão perfeitamente descrito com a metáfora (mas será que é
mesmo uma metáfora?) de uma máquina. Em suma, ao invés de simplesmente
alimentá-la valeria a pena tomar um pouco de distância para investigá-la criticamente.
Nossa aposta é que tal postura permitirá que se tornem visíveis aspectos importantes
do universo dos Estudos Literários no Brasil.
O primeiro passo para isso tem algo de brechtiano: desfamiliarizar o quanto
parece ser natural a inserção da literatura na máquina acadêmica. Que a universidade
possa acolhê-la não é um ponto pacífico, e não é necessária muita imaginação para
que se conceba argumentos contrários a tal acolhimento, seja do ponto de vista do
esteticismo (o sublime da arte não pode ser traduzido em palavras), seja do
utilitarismo filisteu (para que gastar dinheiro – seja dos impostos, seja de uma
mensalidade – em algo tão inútil). Em que pese todo o aparato institucional montado
em décadas de expansão do ensino superior, cujo ápice é a consolidação da pós-
graduação, a base ideológica dos estudos literários é bastante frágil e um desmonte, o
virtual desaparecimento da literatura como objeto do ensino posterior só careceria,
para acontecer, de mais uns dois mandatos de algum governo neoliberal. 1 Os
argumentos que tradicionalmente legitimaram o estudo da literatura – o seu caráter
moralmente positivo e o papel na construção de uma identidade nacional – foram
desacreditados, e com bastante razão, pelos próprios estudiosos.2 É preciso, porém,
resgatar o momento de verdade da inadequação da literatura à universidade. Esta só
abre suas portas sob a condição de que o literário produza conhecimento. A
necessidade de que romances e poemas gerem saber já foi tão internalizada por
professores e alunos3 que nos esquecemos daquilo que, quando visto de perto, fica de
fora – porque, a rigor, a demanda exclusiva de saber, como uma demanda de algo,
não deixa de ser utilitária em vista de uma concepção da experiência estética como
baseada na falta de interesse. Como são muito poucas pessoas que leem literatura e
desenvolvem esse tipo de postura antes de entrar no mundo acadêmico 4 , a
espontaneidade e o desinteresse têm que ser ensinados, o que gera uma aparente
contradição: como ensinar o despossuir, o livrar-se, ao invés do adquirir? Um tal
projeto choca-se frontalmente com a representação da universidade como local de
acúmulo. Seja como for, o importante aqui é perceber que existe uma ligação
possível, ainda que não necessária, entre ciência e interesse, seja ele entendido no
sentido da obtenção de algum prestígio, talvez atávico, ligado à cultura, seja no de sua

1
Cf. o exemplo do Japão, dificilmente considerado uma república de bananas. “Many social sciences
and humanities faculties in Japan are to close after universities were ordered to ‘serve areas that better
meet society’s needs’, it has been reported. Of the 60 national universities that offer courses in these
disciplines, 26 have confirmed that they will either close or scale back their relevant faculties at the
behest of Japan’s government, according to a survey of university presidents by the Yomiuri Shimbun”.
https://www.timeshighereducation.com/news/social-sciences-and-humanities-faculties-close-japan-
after-ministerial-intervention.
2
Cf. e.g. Alcir Pécora (2016). Outro de seus aspectos diz respeito às manifestações cada vez mais
comuns de aversão à literatura vista como cânone, que se voltam contra seu suposto caráter excludente,
seja por meio de uma crítica ideológica obtusa ou da defesa de alguma construção identitária.
3
Um exemplo é a prática corrente de alunos de pós-graduação referirem ao trabalho de fim de curso
como “artigo”.
4
Por exemplo: segundo pesquisa feita em 2016 pelo Ibope para o Instituto Pró-Livro, o brasileiro lê em
média 4,96 livros por ano, sendo que destes, 0,94 são indicados pela escola. Definir em que poderia
consistir algo como uma “vida literária” seria difícil, mas parece claro, de qualquer forma, que a leitura
de textos literários faria parte dela – mas não da vida da esmagadora maioria da população brasileira.
Ainda que 56% dos 5.012 entrevistados tenham lido algum livro nos 3 meses anteriores à pesquisa, a
lista de títulos e autores mais frequentemente citados pelos entrevistados é encabeçada pela Bíblia, e
seguida por diversos livros infanto-juvenis, espíritas, de autoajuda (religiosa ou não)... e de Gabriel
Garcia Márquez, o único autor (ao lado de Paulo Freire) não considerado como parte do que se chama
de “paraliteratura”. http://cultura.estadao.com.br/blogs/babel/44-da-populacao-brasileira-nao-le-e-30-
nunca-comprou-um-livro-aponta-pesquisa-retratos-da-leitura/

2
redução a fonte de conhecimento ou veículo de disputas de poder simbólico (ao estilo
dos epígonos de Bourdieu). À exceção dessas possibilidades, a pergunta sobre o que
levaria alguém a dedicar sua vida ao estudo da literatura vai assim ganhando
contornos de enigma.5
O veículo primordial de inserção da literatura na universidade, sua
engrenagem-mestra, é a disciplina. Associada à palavra está não somente a ideia de
um esforço organizado e dirigido (como em “disciplina de estudo”), mas também um
processo de fragmentação. Aquilo que entendemos hoje como uma disciplina é algo
bastante recente, pois existe há pouco mais de 100 anos, e possui como um de seus
traços centrais a perda de uma totalidade normativa do literário. Em outras palavras,
antes da consolidação do modelo atual de disciplina, a especialização dava-se sob o
pano de fundo de um horizonte bibliográfico em grossas linhas comum a todos os
estudiosos. De qualquer modo, há duas características do conceito de disciplina para
as quais gostaríamos de chamar a atenção. A primeira é mais óbvia, porém essencial:
o fato de que, por meio da pesquisa, as disciplinas movem-se. Esse deslocamento,
embora envolva progresso, pois o conhecimento presente deve por definição ser
considerado superior ao passado, não é teleológico: dificilmente algum crítico pode
pleitear ter dito a última palavra sobre um campo de investigação, ou mesmo sobre
um objeto; caso isso tenha de fato ocorrido, este morre como fonte de conhecimento:
não serve mais para a ciência. A esse traço impiedoso, que por sinal desloca muito do
debate sobre o cânone, corresponde um oposto, cheio de vida. Uma diferença possível
entre a escola e a universidade refere-se às posturas que projetam diante do saber. Se
na escola ele é transmitido como algo estanque, idêntico a si mesmo, ou que pertence
a um outro (três representações para dizer a mesma coisa), na universidade ele é
abordado como dinâmico, como algo que contém falhas ou buracos, algo do qual o
pesquisador deve ser capaz de se apropriar. A beleza de uma imagem enfática de
universidade vem da indissociabilidade entre o passar e o ir adiante, transferir e
aprofundar, ensinar questionando e aprender pesquisando. (Note-se que essa descrição
não tem nada a ver com uma ideia de dificuldade, pois é plenamente possível lidar
com os assuntos mais complexos e profundos de um modo escolar, sem intervir
neles.)

5
Vale lembrar, por outro lado, o caso da Colômbia, que aqui aparece quase como um universo
paralelo: seu primeiro curso de doutorado em literatura foi aberto há poucos anos, mas nem por isso
deixou de haver uma vida literária no país.

3
Já que o movimento é constitutivo das disciplinas, é possível refletir sobre a
sua velocidade, ou, talvez mais importante, sobre sua aceleração. A rapidez do debate
científico é derivada de sua densidade. Quanto mais pessoas estiverem participando,
quanto maiores forem os recursos disponíveis para a pesquisa, quanto mais
numerosos os veículos de circulação (revistas, congressos etc.), tanto maior será a
velocidade da progressão do saber. Nesse sentido, fica clara a ligação entre
investimento e progresso científico, e consequentemente, entre desenvolvimento
econômico e excelência acadêmica. Há que se perguntar, porém, se essa dinâmica não
funcionaria de modo diferente nas humanidades em geral e nos estudos literários em
particular. Porque aqui o passado desempenha um papel constitutivo: ele não é algo a
ser superado por uma nova descoberta, que zeraria o cronômetro da discussão, por
assim dizer; pelo contrário, na literatura a história das leituras faz parte do conteúdo
de uma obra, e o acúmulo de textos tende a aumentar a imaginação crítica. (Uma
definição de erudito: não aquele que simplesmente leu muito, mas alguém que
consegue inserir os problemas em horizontes extensos.) Isso dito, é interessante
perceber como as ciências humanas tem se aproximado desse ideal que acabamos de
mencionar como sendo estranho à sua natureza.6 A especialização está cada vez mais
precoce; o presentismo, cada vez mais forte (cf. HARTOG, 2003). Em sua versão
mais ingenuamente utópica, a pesquisa acadêmica em literatura congregaria um
grande número de pessoas pensando juntas um conjunto de questões em última
instância interrelacionadas, alcançando com isso formas de saber que permaneceriam
inacessíveis a pesquisadores isolados: descobertas individuais seriam incorporadas ao
movimento geral, e os inevitáveis becos sem saída serviriam como marcos,
sinalizando limites ou a necessidade de ferramentas mais adequadas a quem se visse a
eles levado. Por outro lado, esse ideal de compartilhamento, que é em última instância
o de compartilhamento do tempo, dependeria de uma base em comum talvez ampla
demais – de intenções e/ou de leituras, no mínimo –, ou então de espaços a partir dos
quais fosse possível fazer a série de mediações necessárias entre regiões por vezes
muito distantes do conhecimento, o que resulta da dinâmica da especialização. Uma
aceleração da produção que não esteja em fina sintonia com essa possibilidade,
contudo, acaba por torná-la inconcebível, mesmo naquilo que tem de evidentemente
problemática – e, em seu lugar, cresce a possibilidade de um movimento acelerado

6
Vale aqui ter em mente o surgimento da Teoria como novo campo discursivo. Cf. F.A. Durão. Teoria
(literária) americana. Campinas: Autores Associados, 2010.

4
que gira em falso, com um sentido definido apenas vagamente pela ideia de utilidade.
De tudo isso vale reter que, como qualquer máquina, a acadêmica tem o tempo como
condição de possibilidade: ela traz para si seu caráter contraditório de ser tanto uma
porta para o novo quanto o chão batido do mesmo, e o coloca em relação com o
objeto literário, que por sua vez possui a sua própria temporalidade complicada.
Já a segunda característica da noção de disciplina adequa-se mais a uma
imagem espacial. Trata-se da tensão entre uma força centrífuga e outra centrípeta em
seu funcionamento. Por um lado, há um vetor que aponta para dentro da dinâmica
disciplinar. As questões, os campos, as subáreas, os temas, as soluções – age aqui um
forte impulso interno, da progressão imanente ao debate com seus achados e
contestações, a formação de consensos e as polêmicas. É interessante notar que, no
contexto brasileiro, aquilo que seria o desenvolvimento imanente ao debate convive
com a importação de teorias, muitas vezes dando a impressão de eternos recomeços.7
Para dizer de outro modo, presente na própria dinâmica regida pela autonomia
acadêmica é possível identificar a questão da inserção brasileira no market place of
ideas internacional, que é um de tantos palcos de seu subdesenvolvimento. Há todavia
um impulso contrário, que puxa para fora de si, e aponta para a sociedade. Afinal, a
pesquisa não se encontra num vácuo, mas ocorre em situações concretas e específicas.
Isso é particularmente forte nas humanidades, uma vez que tratam de questões sociais,
culturais e mesmo psicológicas. Como abordá-las senão sob a perspectiva da melhoria
da sociedade, cultura e saúde mental das pessoas?8 Com efeito, quanto mais carente,
desigual e antagônica a sociedade, tanto maior será a cobrança para que a
universidade pública contribua na resolução de seus problemas. A prevalência
absoluta da força centrípeta pode levar a acusações de alienação e elitismo; quando a
centrífuga é potente demais, corre-se o risco de esfacelar o campo disciplinar, que

7
Cf. a conhecida observação de Roberto Schwarz (2001: 109): “Nos vinte anos em que tenho dado
aula de literatura assisti ao trânsito da crítica por impressionismo, historiografia positivista, new
criticism americano, estilística, marxismo, fenomenologia, estruturalismo, pós-estruturalismo e agora
teorias da recepção. A lista é impressionante e atesta o esforço de atualização e desprovincianização em
nossa universidade. Mas é fácil observar que só raramente a passagem de uma escola a outra
corresponde, como seria de esperar, ao esgotamento de um projeto; no geral ela se deve ao prestígio
americano ou europeu da doutrina seguinte. Resulta a impressão decepcionante da mudança sem
necessidade interna, e por isso mesmo sem proveito. O gosto pela novidade terminológica e doutrinária
prevalece sobre o trabalho de conhecimento, e constitui outro exemplo, agora no plano acadêmico, do
caráter imitativo de nossa vida cultural.”
8
Em uma cena no documentário Supersize me, que investiga o McDonald’s, uma psicóloga da empresa
explica como seu conhecimento científico é posto em uso para fazer a junk food dessa cadeia tornar-se
mais atraente para o público infantil. Em um mundo melhor, essa utilização do saber seria severamente
punida.

5
passa a não mais conseguir sedimentar o debate. O equilíbrio entre os dois vetores é
frágil e seu jogo pode ser historicamente mapeado. É somente a partir dele que é
possível falar em autonomia acadêmica em um país como o Brasil. Uma figura capaz
de realizar a sua conciliação seria a do intelectual público, aquele indivíduo que,
familiarizado com o estado da arte de sua disciplina, consegue levá-lo a um público
mais amplo e influenciá-lo. 9 Seria profícuo investigar o intelectual público, seu
processo de constituição, os diferentes veículos em que atua em períodos diversos,
sua relação com a espetacularização do saber, etc.; o objeto de análise, no entanto,
será outro.
Porque, até aqui, deixamos de mencionar um outro aspecto constitutivo das
disciplinas, que é a sua inserção institucional. Elas não existem sem departamentos,
associações, congressos, revistas etc.. Nosso contexto nacional, no entanto, é marcado
por uma peculiaridade de efeito profundo na organização do campo literário, a saber,
a Capes. Para o bem e para o mal, como veremos, ela representa uma instância
aglutinadora e cristalizadora, cujo impacto se dá simultaneamente em nível financeiro
e simbólico (o que sem dúvida mostra a proximidade dos dois). 10 Embora a agência
tenha como missão a formação de quadros de nível superior e seja responsável por um
sistema fundamental de concessão de bolsas, sua atuação mais marcante ocorre com o
processo de avaliação dos programas de pós-graduação do país. Nossa hipótese de
base aqui é a de que ele concentra em si valores opostos, mostrando-se tanto como
importante instância organizadora quanto como instrumento limitador. Isso pode ser
verificado em todos os itens da avaliação: proposta; corpo docente; corpo discente,
teses e dissertações; produção intelectual; inserção social. A Proposta de Programa
visa apresentar a estrutura subjacente à pós-graduação; ela deve articular Áreas de
Concentração, Linhas de Pesquisa, Projetos de Pesquisa e Disciplinas de uma Matriz
Curricular em um todo harmônico. Sua importância reside em mostrar que o
programa não é um apanhado aleatório de pesquisadores fazendo o que lhes der na
telha; seu risco, por outro lado, reside em tornar-se um ideal quase estético de
simetrias entre os diversos níveis. Desnecessário dizer o quanto isso tem de

9
Com efeito, há uma série de outros possíveis atores na relação entre progresso imanente à pesquisa e
demanda social. Como ramo do jornalismo, a divulgação científica coloca-se essa tarefa, talvez como
forma de minimizar a maldição do jornalista como especialista em generalidades; já o think tank age de
modo inverso, pois procura, a partir de si, influenciar tanto universidade quanto sociedade.
10
No plano estritamente individual, esse papel é desempenhado pela Plataforma Lattes.

6
imaginário e potencialmente cerceador, como se o verdadeiro saber não estivesse o
tempo todo indo para onde ele quer ir.
Uma lógica semelhante se aplica aos outros itens da avaliação. A medição da
produção discente é positiva como estímulo contra a atomização e o ensimesmamento
tão comuns aos pós-graduandos; quando colocada como imperativo a priori, leva a
uma enxurrada de artigos imaturos em revistas que ninguém lê. A questão da
produção docente não é diversa, a ressalva sendo a de que são maiores os recursos,
tanto financeiros quanto psicológicos, para a publicação de qualquer coisa. Em uma
espécie de mimetismo inconsciente do risco da simetria vazia na estruturação dos
programas, há também o perigo constante de uma dinâmica especialmente
problemática: disciplinas ligadas às áreas de interesse atuais dos docentes geram uma
casacata de trabalhos finais que serão desovados como artigos: no melhor dos casos,
ligados também aos interesses e à formação dos próprios pós-graduandos –
ressurgindo depois como capítulos de suas dissertações e teses; no pior, textos que
não passam de uma tentativa de converter qualquer forma de esforço em currículo, em
um movimento que não deixa de ser a contraparte acadêmica do empreendedorismo
como forma de subjetivação.11 Cresce com isso o número de páginas que precisam ser
lidas, mas esse acúmulo não necessariamente resulta em profundidade: o sistema de
publicações acadêmicas, que é também uma das formas de cristalizar os debates que
nele se dão, e com isso fazer avançar o movimento geral da área, vive sempre sob a
sombra de seu contrário – as revistas especializadas não como seu veículo, mas como
formação substitutiva, a angústia difusa daqueles que o integram alimentando a
máquina que é a da academia, mas pode ser também a da má consciência, travestida
de funcionamento regular em expansão constante (ou, vale notar, retração recente). E
isso para não falar de todas as teses que são publicadas inalteradas, mas que terão
como leitores, se muito, os membros da banca de defesa. Isso tudo não deixa de ser
um desvio para dizer que a reflexão – e a escrita, que é seu momento privilegiado –
segue uma lógica própria, que não só é no limite incompatível com a da
administração, como seu cruzamento com ela pode gerar formas híbridas que não
venham a servir para muita coisa – nem mesmo como crítica da tirania da utilidade, e

11
O empreendedorismo, calcado no ideal da flexibilidade no trânsito entre diferentes redes em busca
constante de oportunidades para o sucesso pessoal – ligado por sua vez à tendência à aniquilação das
garantias trabalhistas de outrora –, é um dos componentes da “cidade por projetos”, nome que recebeu
de Luc Boltanski e Ève Chiapello em O novo espírito do capitalismo (2007). Vale ressaltar que a
dinâmica da academia pode funcionar ora como resistência a esse modelo, ora como sua acentuação.

7
justo naquele que seria um de seus terrenos privilegiados, que é o do pensamento
animado por uma forma de arte cada vez mais marginal com relação à cultura como
um todo.
No final das contas, à vontade de garantir uma estrutura satisfatória e um
funcionamento adequado, corresponde a ameaça de um tipo de postura diante da
avaliação que reproduz, em um nível superior, a relação com o vestibular. Na mesma
linha, vale observar como a Capes pode atuar como agente superegoico, figurando
como consequência (e um pouco como causa) da debilidade do debate acadêmico. Se
aquilo que escrevo não é lido, que dirá criticado ou contestado por alguém, então a
insegurança absolutamente normal (e saudável) a respeito do que fiz é compensada
pelo número, pela aprovação quantificada de uma instância superior: o produtivismo
como uma espécie de resposta ao vazio.12 Em uma palavra, o risco aqui é o de uma
estrutura administrativa tornar-se uma visão de mundo.
É por isso que uma rápida comparação com outro contexto institucional pode
ser produtiva. Nos Estados Unidos, essa estrutura de Área-Linha-Projeto-Disciplina é
desconhecida. Ao invés de uma inserção em uma “área”, cada departamento procura,
na medida do possível, ser um microcosmo dos estudos literários como um todo;
assim, a tendência é a de sempre haver, digamos, um medievalista, um especialista em
romantismo, um estudioso do modernismo, etc.. A tensão lá situa-se na necessidade
de manutenção desse ideal de completude em conjunto com a incorporação de novos
campos, altamente voláteis, marcados pelo sufixo “-studies”. As possibilidades de
conciliação existem (e.g. queer studies do Renascimento), ainda que corram o risco de
submeter as disciplinas a uma lógica da moda; porém, o que nos importa aqui é
mostrar como a estrutura da Capes tende a separar a pós-graduação da graduação: o
professor da primeira estará sujeito à lógica de especialização da área-linha-projeto,
ao passo que o da última terá de ser um generalista para dar conta de estruturas
curriculares amplas. E esse mesmo problema se manifesta ainda de outras formas,
conforme veremos abaixo. Após essas considerações bastante amplas e gerais, que
servem antes de mais nada como um convite a uma reflexão que nos parece
necessária, passemos agora à discussão de uma característica mais específica da
maquinaria acadêmica.

12
Cf. Fabio A. Durão. “Perspectivas da crítica literária hoje”, Sibila, 23/03/2016.

8
II
Um Estudo de Caso

Segundo dados atualmente disponíveis na Plataforma Sucupira, o dispositivo


da Capes que armazena parte considerável dos dados relativos à pós-graduação no
Brasil, o número total de Programas de Pós-Graduação pertencentes à área de
avaliação “Linguística e Literatura” cresceu, desde a publicação online de seu
Documento de Área mais recente, de 138 para 155 entre 2013 e 2018.13 Contudo, ao
reduzirmos o escopo apenas à pesquisa na área de literatura, certas exclusões se fazem
necessárias: já de início, ficam assim de fora, tanto do raciocínio quanto do
levantamento de 2018, os 41 Programas cujas Áreas de Concentração contemplam
apenas os Estudos Linguísticos. Chegamos com isso a 116, um número que inclui
tanto os Programas voltados exclusivamente para a pesquisa em literatura quanto
aqueles de área mista – Estudos de Linguagem, Estudos Linguísticos e Literários, etc.
–, além de 3 Programas de Estudos de Tradução.14
A intenção nesse ponto é a de investigar certas variações no funcionamento
desses diferentes Programas a partir de uma ferramenta institucional peculiar: a Linha
de Pesquisa. Algo que se situa entre as Áreas de concentração e os Projetos dos
docentes vinculados ao Programa, a linha de pesquisa é diversas vezes mencionada no
Documento, mas seu sentido é sempre no máximo relacional: ela deve ter “relação”
com a(s) “Área(s) de Concentração” e a “composição da Matriz Curricular”
(Documento, p.6); esta última deve ser “bem articulada” especialmente às linhas
(Documento, p.9); deve manter “estreita relação” com os projetos dos docentes e com
a produção intelectual feita no contexto dos programas, resultando em um “todo
orgânico” (expressões volta e meia repetidas no Documento: e.g. p.10, p.12, p.13,

13
De acordo com a própria Capes, o Documento de área é uma ferramenta administrativa que visa a
apresentar informações relativas às diferentes “Áreas do Conhecimento”; estas, por sua vez, têm uma
“finalidade eminentemente prática, objetivando proporcionar às instituições de ensino, pesquisa e
inovação uma maneira ágil e funcional de sistematizar e prestar informações concernentes a projetos
de pesquisa e recursos humanos aos órgãos gestores da área de ciência e tecnologia.” Essas
informações, junto com o próprio Documento, podem ser encontradas em
http://www.capes.gov.br/avaliacao/instrumentos-de-apoio/tabela-de-areas-do-conhecimento-avaliacao.
Já a página da Plataforma Sucupira pode ser acessada em
https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/programa/quantitativos/quantitativoArea
Conhecimento.jsf?areaAvaliacao=41 .
14
A área de tradução, assim como a de estudos clássicos, tem a peculiaridade de poder inserir-se
facilmente tanto no campo dos estudos literários, quanto no dos linguísticos, embora o resultado do
trabalho realizado tenda a ser bastante diferente em cada caso.

9
p.15); e assim por diante. Porém, se ele é vago com relação às linhas, é específico
acerca das diretrizes relativas às áreas de concentração: é reiterada no Documento, por
exemplo, a quantidade mínima de docentes no núcleo permanente de Programas de
acordo com o número de áreas – 8 para os Mestrados, 12 para os Doutorados, no caso
de apenas uma; e a quantidade sobe para, respectivamente, 12 e 14, quando há duas
áreas. No outro polo, uma vez que os projetos e grupos de pesquisa são formações
muito mais específicas e mesmo efêmeras, sujeitas a variações nos corpos docente e
discente que dizem respeito a cada programa individual, não há muito que o
Documento tenha a dizer sobre elas, dada a distância a partir da qual se articula e a
função que visa a cumprir. Nesse sentido, uma caracterização inicial das linhas seria a
de que servem de instrumento de mediação entre aquilo que precisa ser especificado
do ponto de vista institucional-administrativo e aquilo que diz respeito ao
funcionamento cotidiano da atividade intelectual e da pesquisa. Entretanto, encarada
deste ponto de vista, a caracterização se inverte: sendo as áreas definidas no
Documento, em seu sentido não estritamente burocrático, apenas de modo bastante
abrangente – “Áreas distintas [são] aquelas que se referem a campos de saberes
específicos (Linguística, Literatura, Cultura, etc.)” (Documento, p.10) –, a linha seria
aquilo que fica a meio caminho entre os projetos específicos de pesquisa acadêmica e
as áreas genéricas, funcionando como um ponto problemático de articulação, que
congrega tanto lógicas divergentes (ou mesmo antagônicas) quanto formas distintas
de temporalidade.
Mas de volta aos 116 programas. Como o nosso foco está nas linhas de
pesquisa, esse número ainda não funciona: há na Plataforma 8 programas cujos dados
sobre elas não se encontram disponíveis online – e não deve causar surpresa que
tenham recebido notas 3 e 4 na última avaliação (5 e 3 deles, respectivamente), e que
este seja um problema inexistente nos programas mais bem avaliados. Tratemos,
então, dos 105 restantes, já descontados os de Estudos de Tradução, cujas linhas
seguem uma lógica própria. Alguns cortes finais são ainda necessários para que
possamos enfim lidar apenas com a pesquisa em literatura: deixaremos de lado, em
primeiro lugar, as áreas de concentração em Estudos Linguísticos de programas que
possuam mais de uma área, e também as linhas a elas subordinadas; e, em segundo, as
linhas exclusivamente ligadas aos Estudos Linguísticos em programas que

10
concentrem na mesma área tanto a linguística quanto a literatura. 15 A título de
exemplo, para que os termos fiquem claros: o Programa de Pós-Graduação em Letras
da Universidade Federal do Maranhão (Nota 3 na Capes) tem como Área de
Concentração de seu mestrado os Estudos da Linguagem, com as Linhas A) Descrição
e análise do português brasileiro e B) Discurso, literatura e memória; em nossa
contagem, fica excluída A), e o Programa é contabilizado como dotado de apenas uma
linha de pesquisa em literatura.
Como resultado final dessa série de recortes, organizado também de acordo
com as notas, chegamos à seguinte distribuição da quantidade de linhas de pesquisa
por programas:

s/ dados Trad. 1 linha 2 linhas 3 linhas 4+ linhas Total


Nota 3 5 1 11 16 3 1 37
Nota 4 3 1 8 20 10 5 47
Nota 5 - - 2 7 7 5 21
Nota 6 - 1 - 1 2 4 8
Nota 7 - - - - - 3 3
Total 8 3 21 44 22 18 116
Tabela 1 – Distribuição dos programas por nota e quantidade de linhas ligadas à pesquisa em
literatura.

O desenho geral da situação não parece, a princípio, ter nada de muito


surpreendente: no caso dos programas nota 3, a predominância de uma ou duas
Linhas de pesquisa chega a 85%, descontados aqueles sem dados; do outro lado, 90%
dos Programas notas 6 e 7 possuem 3 ou mais Linhas, sendo todos eles, à exceção da
Universidade Presbiteriana Mackenzie (nota 6), voltados exclusivamente para a
pesquisa em literatura. No caso destes últimos, seu funcionamento parece ser o
esperado: a quantidade de linhas tem, afinal, relação com o tamanho e a diversidade
dos quadros docentes dos Programas, que tende a ser maior nos mais consolidados e
de excelência reconhecida; a amplidão do escopo, ligada também a sua profundidade,
é neles algo como um pressuposto.
Mas o mesmo não pode ser dito sobre os programas que pertencem ao outro
extremo, e é no caso deles que os dados se mostram mais interessantes. 84 programas
de 116 foram avaliados com notas 3 e 4 – ou 72,40% do total. Os de nota 4 – 40% dos

15
Caso existisse alguma possibilidade de dúvida sobre uma linha poder dizer respeito também à
pesquisa em literatura, ela não foi excluída da contagem. Na falta de critério mais adequado – e para
evitar uma manipulação excessiva dos dados –, acabamos nesses casos por recorrer ao velho bom
senso.

11
programas brasileiros da área, por sinal – apresentam estruturas mais variadas, que
impedem qualquer afirmação fácil acerca da correlação direta entre quantidade de
linhas e nota, que salta aos olhos apenas nas extremidades da tabela (notas 3 e 7). Mas
há, mesmo assim, uma regularidade grande o suficiente para servir de dado
significativo: 61,9% dos Programas possuem uma ou duas Linhas, com altíssima
concentração destes nos 72,40% de notas 3 e 4. Cruzando essas duas informações,
chegamos ao seguinte: mais da metade (ou 52,38%) dos Programas de Pós-graduação
que contemplam a pesquisa em literatura no Brasil apresentam essa estrutura mais
simples (i.e. no máximo duas linhas) com notas comparativamente mais baixas. Isso
não quer dizer que a nota se deva à menor quantidade de linhas, já que elas não
levadas em conta como critério avaliativo: ela é apenas uma das formas de expressão
de certas limitações relativas desses Programas; e, talvez, do próprio movimento da
disciplina, ao ser organizada dessa forma: os programas em questão são, afinal, o
grosso da área no país, e o desenho formado por seu conjunto não só contrasta com o
dos programas mais bem avaliados, como é também em alguma medida por estes
determinado.
Isso ocorre porque, ao serem vistas mais de perto, a lógica geral das linhas não
é sempre a mesma. Podemos arriscar nesse ponto uma de suas características, que diz
respeito à quantidade de linhas de que um Programa é composto: seu aumento implica
variedade e profundidade nas formas de abordagem de objetos diversos. Porém, mais
do que isso, as linhas individuais mudam também de sentido e função de acordo com
as estruturas em que estão inseridas. Voltemos ao já mencionado Programa de
Mestrado da Universidade Federal do Maranhão, com sua única linha de pesquisa em
literatura: Discurso, literatura e memória... e mais nada. No outro extremo, pincemos
uma das sete linhas do Programa de Mestrado e Doutorado em Estudos Literários da
Universidade Federal de Minas Gerais (nota 7), que se interpenetram com notáveis
cinco áreas de concentração: Literatura, História e Memória Cultural. O que essas
Linhas de pesquisa têm em comum? Aliás, elas têm mesmo algo em comum? Ou não
poderiam ser, digamos, mais homólogas do que análogas?
A linha de pesquisa como mediação entre projetos específicos e área genérica
– foi essa a nossa hipótese inicial, em sua versão invertida. Na UFMG, ela parece se
sustentar sem grandes dificuldades; na UFMA, nem tanto: sem mais nada ao redor,
ela simplesmente parece específica demais, ainda que composta unicamente de termos
abrangentes. Na verdade, melhor seria dizer que o problema é que a linha fica assim

12
excessivamente restritiva: o termo menos abrangente arrasta consigo os outros,
deixando-os curiosamente subordinados a ele, com a literatura ligada ao discurso
da/sobre a memória como o único possível de ser abordado – algo contornado, no
caso da UFMG, tanto pelo fato de a linha estar em companhia de seis outras, o que
reverte sua especificidade em ganho potencial, quanto pelo adjetivo “cultural”, que
expande os sentidos possíveis da memória como objeto ou ponto de vista. Talvez a
mediação de uma linha como a da UFMA possa se dar com relação a alguma outra
coisa, então: por exemplo, a algo como a própria UFMG – isto é, com relação à
pesquisa desenvolvida nas universidades do centro, que não deixa de ser apenas o
centro brasileiro, marginal com relação ao sistema acadêmico como um todo. Talvez.
Franco Moretti (2003: 201), em um ensaio sobre as diferenças entre os acervos das
bibliotecas circulantes europeias do século XIX, pode ter algo a dizer sobre a questão:

Em um mercado [literário] integrado os atrasados não seguem a mesma


estrada de seus predecessores, embora mais tarde: seguem uma estrada
diferente e mais estreita. São limitados a ela pelo sucesso dos produtos
vindos do centro: um verdadeiro “desenvolvimento do
subdesenvolvimento” no campo literário.

Um horizonte mais estreito – sem dúvida, no caso da UFMA. Mas isso é culpa
de sua única linha de pesquisa, ou ela é expressão dessa restrição? Um pouco dos
dois, provavelmente. Revisitemos, nesse sentido, um argumento desenvolvido na
primeira parte do texto, agora pelo prisma das linhas: a disciplina como algo que se
move em função da concentração dos debates sobre os temas que lhe dão forma, em
uma espécie de progresso não-teleológico – contradição em termos que não deixa de
apontar, mais uma vez, para a possibilidade sempre presente de a área girar em falso.
Como tendência problemática e inerente ao avanço dessa lógica, há a especialização
excessivamente precoce de pesquisadores, ligada à fixação crescente ao presente, seja
no interesse cada vez mais predominante por objetos imediatamente contemporâneos,
seja pela obsolescência quase programada de certos debates, exigindo uma
atualização constante que não deixa muito tempo de sobra para a ampliação de
horizontes. E a linha solitária da UFMA, Discurso, literatura e memória: termos cuja
abrangência está a serviço da especificação, seja de objetos de estudo, seja das formas
de abordá-los, no sentido de torná-los mais nítidos. Mas é uma nitidez que dependeria
também do contraste: aquilo que se apresenta na UFMG como uma especialidade

13
corresponde, na UFMA, à totalidade do campo de possibilidades, o único terreno
disponível ali para que se desenvolva a pesquisa. A imagem do movimento da
disciplina como algo que lhe é inerente pode ser assim desdobrada: ela descreve não
apenas a possibilidade de avanço do conhecimento, mas também o de seu
espalhamento – ou de sua difusão, necessariamente diferenciada. E, nesse segundo
tipo de movimento, ocorre uma transformação qualitativa: a tendência geral à
especialização precoce dos pesquisadores, fenômeno característico de programas
mais desenvolvidos, alcança nos programas menores o estatuto semi-institucional das
linhas (ou da linha isolada) e, dado o ideal de imbricação entre ensino e pesquisa,
restringe já de partida a formação de alunos e de futuros pesquisadores. Com um
pouco de exagero, é possível sugerir que o deslocamento de especialistas formados
em centros comparativamente mais avançados rumo a programas menores acelera
essa tendência, que pode vir a se tornar nesses lugares o único horizonte possível,
deixando assim de ser visto como especialidade. E isso sem contar o risco de atraso
que é consequência de sua condição periférica, já que o avanço da disciplina é
também efeito da densidade dos debates que nela ocorrem, e o estado da arte de
outrora pode com facilidade acabar ultrapassado na falta de uma integração maior da
área.
Contudo, esse é só um lado da decalagem na difusão da pesquisa
especializada. Pois a linha Discurso, literatura e memória não é digna de nota apenas
por sua especificidade pseudoabrangente, mas também pela presença nela de um
termo que é índice de um movimento mais amplo, e que merece ser mais bem
compreendido: a memória, cuja frequência nas linhas é nada menos do que
impressionante. Vejamos: as cinco expressões mais recorrentes nos títulos das linhas
são, por ordem de quantidade de ocorrências: Literatura/Literário(as), presente em 88
dos 105 programas; Cultura/cultural(is), presente em 55 deles; História/Histórico(as),
em 31; Memória, em 28; e Crítica(s), em 24. 16 É claro, a constância da expressão
Literatura em suas variações é mais do que esperada; ao contrário, até surpreende que
não esteja presente em linhas de todos os programas. Com efeito, o termo se encontra
ausente apenas nos programas com duas ou menos linhas de pesquisa, e de acordo
com certo padrão: em seu lugar, aparecem recorrentemente Linguagem(ns),

16
O cálculo em questão leva em conta a presença do termo em suas variações apenas uma vez por
programa; sendo assim, a existência de “literatura” em duas das três linhas de um programa, por
exemplo, é registrada como uma única ocorrência.

14
Narrativa(s), Processos Culturais, e não muito mais do que isso. O mesmo se dá com
a frequência de Cultura, já que seu uso permite ampliar o escopo de modo a incluir
artefatos que não sejam estritamente literários, além de dar margem a estudos
interdisciplinares – o que é relevante para programas de área mista, por exemplo –, e
integrar expressões consolidadas como Processos e Estudos Culturais. Porém, há uma
queda abrupta de frequência na passagem à próxima expressão da lista, que se mostra
especialmente significativa em sua comparação com o termo seguinte: História e
Memória aparecem quase o mesmo número de vezes, algo que soa, com o perdão do
trocadilho, como uma novidade histórica. A presença da história em sentido amplo no
estudo de literatura acompanha a disciplina desde o seu surgimento como disciplina,
sendo a ideia de história literária apenas sua expressão mais óbvia. De outro lado, a
ênfase pronunciada em estudos ligados à memória é certamente muito mais recente,
mas sua frequência elevada nas linhas assinala que se trata, sem sombra de dúvida, de
uma tendência geral da área, e que já está abertamente consolidada – até em linhas de
pesquisa. Estudos sobre testemunho (de Primo Levi a, forçando um pouco a barra,
Carolina de Jesus), do trauma (da Shoah ou não), dos limites da representação da
memória – dentre os quais o gênero memorialista é curiosamente ausente, de Pedro
Nava a Vladimir Nabokov, o que merece explicação –, de sobreviventes de guerras,
de vítimas das ditaduras, da exploração colonial, da violência em geral: a
popularidade de objetos como esses entre os pesquisadores atuais pode ser
assombrosa, a despeito da relação mais do que problemática entre ficção e memória. 17
Mas a ponto de ultrapassar o vínculo tradicionalmente estabelecido entre literatura e
sociedade (23 ocorrências)? A soma de linhas voltadas à modernidade (11
ocorrências) e à contemporaneidade (13 ocorrências) – ou mesmo a área de Literatura
Comparada (16 ocorrências) como um todo? Tem que haver algo mais aí.
Pois a memória não costuma aparecer sozinha nas linhas – ao contrário, suas
companhias são regulares, e mais específicas do que a literatura e o discurso, que dão
sua roupagem maranhense. O mais das vezes (ou em 23 de 28 ocorrências, 82,15%
dos casos), ela surge ou ligada à história (6 vezes), ou à identidade (5 vezes), ou
ligada à cultura (ou qualificada como cultural) (11 vezes). Um cabo de guerra
peculiar, esse da memória, e que aparece nas linhas apenas em seus contornos mais

17
Isso será desenvolvido em um outro texto, no qual discutiremos o campo da memória como um
exemplo de moda acadêmica; porém, fica clara aqui a relação de dupla implicação entre esta última e
um aparato institucional subjacente.

15
gerais – algo que tem suas vantagens. Vista dessa distância, a moda da memória
concretiza-se como um campo de forças surpreendentemente nítido: ao lado da
história, fica claro que não são a mesma coisa, mas não que há entre elas tensão,
talvez ainda maior do que aquela existente entre a memória e a ficção (zero vezes!),
ou mesmo a narrativa (1 vez); ao lado da identidade, por outro lado, as duas formam
juntas algo como uma janela para o futuro, funcionando como uma solução de
compromisso que remonta ao famigerado diagnóstico de Lyotard (1986) sobre a
descrença nas grandes narrativas, e que inclui a história como um todo.18 A memória
serve, nesse sentido, de termo médio entre a história e a identidade: deste, toma
emprestada uma ideia de autoridade calcada na experiência imediata, talvez a única
possível hoje; daquele, extirpa qualquer possibilidade de teleologia por meio de sua
pulverização em um conjunto descontínuo de vivências individuais, com o risco de
escorrer ralo abaixo, junto com a água do banho de sua direção predeterminada, o
bebê de uma transformação que não seja apenas micrológica ou molecular, e que
talvez ainda dependa de certas formas de consciência e reflexão. À memória, quase
pode ser dito: diga-me quem és, e eu te direi com quem andas.
Se não chega com isso a ficar explicada a altíssima incidência da memória nas
linhas – a explicação, afinal, teria o formato circular de que ela aparece muito por ser
muito popular –, temos ao menos com isso subsídios para incrementar a hipótese de o
que é afinal uma linha de pesquisa: não só mediação semi-institucional entre área
genérica e atividade intelectual cotidiana, mas também figura – visível só à distância19
– da cristalização das modas, que são, para o bem e para o mal, um dos impulsos cujo
conjunto tem como resultante o movimento da área. Surpreende, nesse sentido, menos
que as linhas manifestem as modas do que a nitidez com que o fazem, além da
especificidade do que o seu conjunto expressa no presente mais imediato: nos
programas mais diversificados, o sentido da memória surge ainda em relativa disputa,
nem que seja por meio de outras linhas, que são também ligadas a outros modos de se
relacionar com a literatura; nos programas mais restritos – ou, melhor ainda, nos
52,38% que compõem aquilo que chamamos de grosso da área (notas 3 e 4 com no
máximo duas linhas), e que contam com nada desprezíveis 12 programas com linhas
voltadas para a memória (ou 21,81% deles, e 11,42% do total), dentre as quais apenas

18
Um argumento semelhante – mesmo que sem nenhuma relação com linhas de pesquisa acadêmica –
é desenvolvido por Beatriz Sarlo (2007) nos capítulos iniciais de Tempo passado.
19
A distância extrema, como argumenta Moretti (2003: 8; 2000: 57) em contextos diversos, configura
nesse caso uma “forma específica” ou “condição para o conhecimento”.

16
em uma figura o termo história: surge o cabo já praticamente rompido. E, se faz
sentido nossa hipótese sobre as linhas como sintoma da difusão da moda, que vai, no
geral, de universidades mais consolidadas rumo às periféricas, fica a dúvida sobre se
essa tendência apenas ilumina o futuro – ou se ajuda a determiná-lo.

III
À guisa de conclusão

Para terminar, gostaríamos de nos precaver a respeito de uma ideia


equivocada. Em momento algum pensamos a máquina acadêmica como simples
amarra, uma espécie de prisão a tolher os voos da livre imaginação. Essa perspectiva
exterior pode adequar-se ao diletante rico, para quem literatura e subsistência são
absolutamente independentes, mas não cai bem quando veiculada dentro do meio
universitário, pois no mínimo denota ingenuidade, ou cheira a ressentimento. E como
disse a sábia Lady Bracknell, em The Importance of Being Earnest, de Oscar Wilde:
“Never speak disrespectfully of Society, Algernon. Only people who can’t get into it
do that.” A máquina acadêmica é plástica o suficiente para acolher a crítica a si – caso
contrário este nosso texto incorreria na mais óbvia das contradições performativas.
Além disso, no Brasil ela ainda é em grande medida gerida por professores: os cargos
de reitor e pró-reitor, bem como os altos escalões das agências de fomento, são
preenchidos por pesquisadores, dotados de certa capacidade de definir as diretrizes da
universidade. De outro ângulo, seria mesmo possível argumentar que todo o aparato
institucional representaria um mecanismo de defesa, o preço a pagar pela
sobrevivência da literatura em um ambiente social bastante hostil. Trocando em
miúdos, existe (ainda) um razoável espaço para uma transformação da máquina
acadêmica, interna e autogerada, lá onde gera os piores efeitos. Como aponta Adorno
(2001: 127-128), no mundo administrado caberia a uma lúcida administração
universitária saber quando deve abdicar de si mesma. A pré-condição necessária para
que isso aconteça é a reflexão sobre o nosso estado das coisas: foi isso que tentamos
fazer, e é isso que convidamos o leitor a levar adiante.

17
Referências
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(trad. J. M. Bernstein). Abingdon: Routledge, 2001, p.107-131.
BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève . O novo espírito do capitalismo (trad. Ivone
Benedetti). São Paulo: Martins Fontes, 2009.
DURÃO, Fabio A.. Teoria (literária) americana. Campinas: Autores Associados,
2010.
_______. “Perspectivas da crítica literária hoje”, Sibila, 23/03/2016.
Documento de área – Letras e Linguística. Capes. Disponível em:
http://www.avaliacaotrienal2013.capes.gov.br/documento-de-area-e-comissao
HARTOG, François. Régimes d’historicité. Paris: Seuil, 2003.
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna (trad. Ricardo Corrêa Barbosa).
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https://www.timeshighereducation.com/news/social-sciences-and-humanities-
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