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ATENÇÃO À SAÚDE DA PESSOA TRANSEXUAL: HORIZONTES DO PROCESSO

TRANSEXUALIZADORNO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Mably Jane Trindade Tenenblat1

Resumo: O presente trabalho é fruto de um projeto de pesquisa de mestrado, realizado no âmbito


do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). O interesse pelo tema datransexualidade foi reforçado a partir da experiência profissional
como coordenadora de um dos Centros de Referência e Promoção da Cidadania LGBT, órgão
vinculado à Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro
(SEASDH/RJ). Este trabalho acadêmico propõe uma reflexão sobre sexualidade e gênero na
experiência transexual, bem como apresenta uma descrição e uma análise histórica das respostas
públicas às demandas de saúde de pessoas transexuais no estado do Rio de Janeiro. Cabe ressaltar
que as trajetórias de vida de mulheres e homens transexuais resultam diretamente de suas inserções
de classe social, gênero e raça, além das características culturais, etárias, experiências sexuais, entre
outras.
Palavras-chave: Transexualidade, sexualidade, gênero e saúde.

I – Introdução:
O debate acerca da transexualidade atravessa um momento de particular crescimento,
especialmente por conta das transformações socioculturais relacionadas à visibilidade pública do
movimento LGBT e do protagonismo político de algumas pessoas trans, que inclusive tornaram
públicas suas narrativas de vida. Nas últimas décadas, diversos estudos acerca das relações de
gênero no Brasil têm sido produzidos por acadêmicos das Ciências Sociais, da Psicologia Social e
de outras áreas, inclusive do Serviço Social.
Mais recentemente, têm crescido as discussões que – ao contrário de grande parte dos
trabalhos pioneiros – não enfocam exclusivamente mulheres, mas incluem temas como estudos das
masculinidades e abordam as relações de gênero de forma mais ampla. Paralelamente, a internet

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Mestranda em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Coordenadora licenciada do
Centro de Referência e Promoção da Cidadania LGBT do Rio de Janeiro - órgão vinculado à Secretaria de Estado de
Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH/RJ), Conselheira do Conselho Regional de Serviço Social do Rio de
Janeiro (CRESS/RJ), professora convidada do curso de Pós-Graduação em Gestão Empresarial da Universidade Veiga
de Almeida (UVA) e Bolsista FAPERJ.

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potencializou o acesso a informações sobre transexualidade e ao relato de experiências trans,
difundidas, ainda, por meio de manifestações artísticas, livros, documentários, entre outros.
Contudo, falar de transexualidade é sempre muito arriscado. A tensão é obvia, pois se trata
de terreno movediço, com resultados que não convergem para nenhuma possibilidade de certeza.
Ademais, há enorme responsabilidade intelectual e ético-política diante da delicadeza do tema,
temperada pelo receio de não conseguir abordá-lo com sensibilidade, tato, lucidez e profundidade
necessários.
Não obstante os mencionados desafios, poucas temáticas são tão complexas quanto a
transexualidade, especialmente por se tratar de um processo no qual as pessoas “transcendem os
limites do binarismo fundado na assignação sexual pela aparência dos órgãos genitais que
acompanha (e, algumas vezes, precede) o nascimento” (Almeida, 2012b:03).
Cabe ressaltar que a escolha desta temática de pesquisa partiu da experiência profissional na
coordenação, atualmente afastada em razão do mestrado,de um dos Centros de Referência e
Promoção da Cidadania da população LGBT2 do Rio de Janeiro (CR LGBT/RJ3), órgão público
específico de atendimento à população discriminada em decorrência de homofobia e sexismo.
Os vínculos com este tema são, todavia, recentes, pois datam de janeiro de 2011, início de
meu trabalho no referido órgão, que integra a estrutura do Programa Estadual Rio Sem Homofobia4,
sob a gestão da Superintendência de Direitos Individuais, Coletivos e Difusos (SuperDir) da
Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro (SEASDH/ RJ).
A experiência profissional no Centro de Referência LGBT da Capital e a aproximação com
as pessoas transexuais evidenciaram a falta de conhecimento acerca das diferenças e semelhanças
entre as demandas de saúde de pessoas transexuais e travestis. Nos dois anos de trabalho na gestão
do CR Capital, algumas destas questões foram elucidadas. Por outro lado, tal aprendizado fez surgir
novas dúvidas e fomentou outros questionamentos. Com efeito, a rotina de trabalho e os relatórios
da equipe técnica revelaram inúmeras histórias de sofrimento de pessoas transexuais. As

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LGBT, sigla que significa Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais.
3
Existem atualmente quatro centros de referência (CR’s LGBT) em funcionamento no estado do Rio de Janeiro: CR
Capital (onde atuo como uma das coordenadoras), CR Nova Friburgo, CR Duque de Caxias e CR Niterói, com
expectativa de abertura de outros serviços semelhantes em Nova Iguaçu e em outras regiões do estado.
4
O Programa Rio sem Homofobia, coordenado pela Superintendência de Direitos Individuais, Coletivos e Difusos
(SuperDir), órgão vinculado à Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH/RJ), objetiva
combater a discriminação e a violência contra a população LGBT, promovendo sua cidadania e respeitando as suas
especificidades em todo território fluminense. Por meio da disseminação de informações e da defesa de direitos, o
programa atua no combate à homofobia, bem como na produção, implementação e monitoramento de políticas públicas
transversais, em todas as áreas de governo. O Programa Estadual Rio Sem Homofobia estabelece ações e metas,
monitorando e avaliando a implementação das diretrizes inspiradas no Brasil Sem Homofobia. Informações disponíveis
no site oficial do programa: http://www.riosemhomofobia.rj.gov. Último acesso em 09/05/2013.

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dificuldades – que se iniciam já na tenra idade, com a percepção das diferenças e a reação da
família – perpassam pelo enfrentamento do estigma e do preconceito, frequentemente culminando
em frustrações provocadas pela impossibilidade de acesso (ou pela longa espera) à realização da
cirurgia de transgenitalização e a outros procedimentos médicos desejados. Muitos desses relatos
expressavam os constantes problemas relacionados ao uso de hormônios e consequentes
modificações corporais, esfacelando sonhos de uma vida inteira.
A realidade de sofrimento, humilhações, repúdio familiar, segregação social e cotidiano de
situações vexatórias das pessoas transexuais, ao mesmo tempo em que despertava indignação e
tristeza na equipe multiprofissional de atendimento do Centro de Referência, acentuava sua
impotência diante deste quadro.
O trabalho no Centro de Referência incita questionamentos não apenas sobre a qualidade da
assistência à saúde, como também acerca da própria dinâmica social,com seu jogo ininterrupto de
forças em permanente ebulição e aparentemente incapaz de oferecer às pessoas transexuais
alternativas que não o alijamento, a exclusão e a violência transfóbica5. Além disso, depreende-se
da rotina de atendimento que, com raríssimas exceções, o senso comum ainda estigmatiza as
pessoas transexuais e travestis, atribuindo-lhes uma conotação excêntrica, exótica e, muitas vezes,
bizarra. Em suma, tais pessoas são destituídas de “categoria humana” (Zambrano, 2003).
De acordo com Elizabeth Zambrano:
O tratamento dado pela mídia escrita e televisiva aos transexuais sugere que há, na nossa
cultura, uma tentativa de situá-los em um lugar não-humano, em decorrência do
rompimento de uma ordem que se acredita ser da natureza (ser homem ou mulher) e à qual
o resto de nós, os “verdadeiros humanos”, pertencemos. Separando-os de nós,
tranquilizamo-nos e afastamos a possibilidade de contágio e desordem que eles representam
(Zambrano, 2003, p. 9).

Por seu turno, sobre a questão do preconceito e estigmatização, assegura Almeida:

Com frequência, viver como transexual, mesmo que tal identidade não seja publicamente
revelada, implica em trajetórias de vida marcadas por forte estigmatização que, se por um
lado faz vítimas mais ou menos constantes de discriminação, por outro obriga à construção
de estratégias criativas através das quais é elaborada a própria existência, trata-se, portanto,
de um processo de “conformismo e resistência”6. Por isso, as pessoas transexuais não são e
nem podem ser tomados como vítimas passivas dos acontecimentos, qualquer que seja a
abordagem técnica que demandem (Almeida, 2012, p. 9).

5
A transfobia pode ser compreendida como um grave quadro de hostilidade e violência contra pessoas transexuais e
travestis – submetidas ou não à cirurgia de transgenitalização–, independentemente de sua subjetividade masculina ou
feminina, seja essa mais ou menos inteligível. A transfobia desencadeia e realimenta processos discriminatórios,
representações estigmatizantes, processos de exclusão, dentre outros, voltados contra tudo aquilo que remeta, direta ou
indiretamente, às práticas sexuais e identidades de gênero discordantes do padrão heterossexual e dos papéis
estereotipados de gênero (Schramm, Barboza & Guimarães, 2010).
6
Cf. Chauí (1993).

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Não é possível pôr as pessoas em compartimentos hermeticamente fechados. Ao contrário,
deve-se partir do pressuposto de que qualquer classificação é arbitrária, violenta e produzida por
diferentes discursos, entre eles o biomédico. De fato, divisões e categorias são tributárias da
inserção de classe e da assignação de gênero e raça, assim como dos padrões e hábitos culturais da
sociedade e grupos sociais nos quais os indivíduos estão inseridos.
Assim como a sexualidade, a transexualidade também se relaciona com aspectos culturais,
sociais, psicológicos, emocionais, etc., e não apenas com o corpo biológico. Por outro lado, é
imprescindível compreender que a condição transexual não é uma experiência a-histórica, pois, ao
contrário, revela com toda dor e dramaticidade os limites de uma ordem de gênero que se
fundamenta na diferença sexual. Quando se retira o conteúdo histórico dessa experiência, apagam-
se as estratégias de poder articuladas para determinar que a verdade última dos sujeitos está em seu
sexo biológico (Bento, 2008).
É preciso, portanto, derruir as bases que assinalam, taxativa e irrevogavelmente, os sexos
dos indivíduos já no nascimento, colocando-os em compartimentos vedados meninos ou meninas,
masculino ou feminino. Afinal, parafraseando Ibrahim7, “o céu azul que nós admiramos, nem é céu
e muito menos azul”.
Ao humanizar as experiências e sofrimentos das pessoas transexuais – retirando-lhes a pecha
da vergonha e da culpa e reorientando a atenção para a compreensão desses fenômenos sob as lentes
da ética (e da bioética), da legislação e da saúde pública –, desloca-se o eixo de discussão da
responsabilização individual, do delito e da doença para o campo dos direitos humanos, ou melhor,
da saúde como um direito humano (Temporão, 2012:16).
Considerando o cenário de preconceito e transfobia, a pesquisa em questão não somente
propõe uma reflexão sobre o lugar social da transexualidade, mas (e principalmente) pretende
fomentar o exercício da tolerância.
Diante do quadro traçado, a investigação desse tema, na dissertação de mestrado, não apenas
poderá contribuir para o apaziguamento de minhas próprias inquietações enquanto assistente social
em contato com a mencionada realidade de discriminação, como, também, lançará luz sobre
determinados pontos obscuros, preenchendo algumas lacunas nos estudos acadêmicos relacionados
ao universo da transexualidade.

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Desembargador Titular da 27ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro foi o primeiro magistrado no
Brasil a julgar favorável uma sentença de retificação de nome e sexo de um homem transexual em 1989, quando era juiz
na Comarca de Mangaratiba (RJ).

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II – O Conceito de Transexualidade: de “transtorno” à “desdobramento de gênero
Sabe-se que para o senso comum, a transexualidade é um tema que envolve, ainda, muitos
tabus sedimentados. O assunto abrange um conjunto de temáticas que, em geral, são inferidas pela
sociedade de forma estereotipada, frequentemente preconceituosa e conservadora.
A medicina moderna se encarregou de definir o “verdadeiro transexual”, buscando fazer
um diagnóstico o mais preciso possível, diferenciando-o de outras “patologias”, a fim de assegurar a
correta indicação terapêutica. Por conseguinte, parte dos profissionais médicos passou oferecer a
quem era diagnosticado como verdadeiro transexual a possibilidade do uso de tecnologias
hormonais e cirúrgicas, para a realização da cirurgia de transgenitalização. Isto não ocorreu,
obviamente, sem conflitos e sem divergências teóricas e ideológicas, ainda não solucionadas dentro
do próprio sistema médico como, a título de exemplificação, as discussões em torno do possível
“caráter mutilador”, de “correção de um erro morfológico”, de “instância psíquica patológica”, de
“reconstrução”, entre outras8.
O discurso médico – com todas as suas dúvidas, incertezas e idiossincrasias – reverberou e
instruiu o discurso jurídico, oferecendo-lhe a suposta base biológica de reafirmação das definições
de gênero hegemônicas em nossa cultura. À medicina coube apresentar, por meio de laudos e
perícias técnicas, as características de um(a) transexual, a partir de conceitos unívocos do que
significa ser homem ou ser mulher e, da mesma forma, fornecer a definição de “transexualismo”,
que acabou embasando as decisões judiciárias, em sua maioria, ainda muito arbitrárias no que
concerne à transexualidade (Zambrano, 2003).
Assim, o diagnóstico médico-psiquiátrico e judicial tende a reproduzir um sistema
normativo de sexo e gênero que não condiz com os modos de subjetivação ou a diversidade das
formas de construção de gênero na transexualidade (Arán, Lionço e Murta, 2008).
Com efeito, a condição transexual não pode ser discutida a partir de uma perspectiva
simplista e/ou reducionista, uma vez que esta experiência encerra imensa complexidade de suas
várias determinações, especificidades e nuances.Ainda predominam os discursos, as análises e as
ideias acercado transexualismosob perspectivas mais tradicionais da sexologia,da psiquiatria e de
parte da psicanálise que fazemdessa experiência uma patologia e/ou um “transtornode identidade”.
Observa-se que o que definiu nestas perspectivaso diagnóstico de transexualismo9 foi uma

8
Para detalhamento destas discussões, cf. Bento, 2006; Lionço 2006; Murta, 2011; Zambrano, 2003; Almeida, 2008.
9
Será utilizado, ao longo deste projeto, ora o termo “transexualismo” para referir-se à forma como a literatura científica
tradicional compreendeu pessoas transexuais e que vem sendo menos utilizada em função das críticas ao seu caráter
estigmatizante associado ao sufixo “ismo”; e ora o termo “transexualidade” que é a forma escolhida para tratar de uma
identidade percebida como socialmente produzida.

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concepçãonormativa dos sistemas de sexo-gênero,fundamentados numa matriz binária
heterossexualque se converte em sistema regulador da sexualidade e da subjetividade.
O surgimento do que Bento (2006) denominou de dispositivo da transexualidade não se deu
a partir do debate sobre o diagnóstico de “transexualismo”, mas a partir da primeira intervenção
terapêutica tornada pública, qual seja: a cirurgia de um ex-soldado do exército americano, chamado
George Jorgensen, realizada em 1952 na Dinamarca pelo médico-cirurgião Christian Hamburger.
Harry Benjamin – considerado até hoje uma das principais referências na teorização sobre o
transexualismoe apoiado nos estudos biológicos do século XX, em especial os estudos genéticos–,
propôs que não havia uma divisão absoluta entre “masculino” e “feminino”, sendo inadequada a
determinação do sexo do indivíduo baseada puramente nas diferenças anatômicas. Para o referido
psiquiatra alemão, o sexo era composto por diversos componentes, de modo que a etiologia do
transexualismo e a origem do desejo de mudar o sexo ultrapassariam os aspectos psicológicos,
podendo estar associadas a uma causa biológica – genética ou endócrina (Murta, 2007).
Além da definição proposta por Benjamin, os estudos sobre transexualidade ganharam força
nos Estados Unidos, por intermédio de investigações socioantropológicas acerca dos fatores que
supostamente influenciavam na definição da identidade sexual. Tais estudos – retomando as
discussões entre natureza e cultura e entre inato e adquirido –, promoveram a separação conceitual
entre sexo (biológico) e gênero (social), apresentando uma nova possibilidade de se compreender
fenômenos nos quais se expressaria uma discordância entre eles, favorecendo a consolidação de um
campo assistencial e teórico diferenciado voltado para esses casos.
Benjamim (1966) contribuiu para que se consolidasse a concepção de que tais pessoas
acreditam, indubitavelmente, pertencer ao sexo contrário ao da sua anatomia e, por esta razão, se
transvestem, o que torna as modificações corporais uma verdadeira obstinação para elas. Muitas
vezes vivem, comportam-se ou agem como alguém que não se identifica com o seu sexo biológico.
Quando são obrigadas a fazê-lo, o estresse gerado pode conduzir a consequências neuróticas e
psicóticas, como a automutilação da própria genitália e até o suicídio. Em suma, haveria uma
incongruência cruel entre o corpo, a mente e o comportamento social.

III – O Processo Transexualizador no Rio de Janeiro


Em 1997, o Conselho Federal de Medicina (CFM), por meio da Resolução 1.482, aprovou a
realização de cirurgias de transgenitalização em pacientes transexuais no Brasil. Como a referida
Resolução partiu do pressuposto de que “o paciente transexual é portador de desvio psicológico

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permanente de identidade sexual com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação ou ao
autoextermínio”, o procedimento cirúrgico passou a ter um caráter terapêutico.
Por conseguinte, a cirurgia de transgenitalização em mulheres e homens transexuais passou
a ser realizada no Brasil em caráter experimental em hospitais universitários públicos. Quatro
unidades de atenção especializada no processo transexualizador no SUS foram habilitadas à
realização de tais procedimentos. São elas: Hospital das Clínicas da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul em Porto Alegre (RS), Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo (SP), Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (GO) e
Hospital Universitário Pedro Ernesto da Universidade de Estado do Rio de Janeiro (RJ)10. É
importante ressaltar que além das quatro unidades de atenção especializada, existem outros
hospitais universitários no país que também realizam cirurgias de transgenitalização, mas que não
se constituem como referências do Ministério da Saúde. Além disso, as unidades de atenção
especializadas recebem não apenas usuários(as) do estado da federação em que estão localizadas,
como, também, de outros estados.
Em seguida, a Portaria 1.707 do Ministério da Saúde estabeleceu em 2008, no âmbito do
Sistema Único de Saúde (SUS), os princípios de regulação do acesso de pessoas transexuais aos
programas para a realização da cirurgia de transgenitalização. Esta Portaria reconheceu que a
orientação sexual e a identidade de gênero eram determinantes da situação de saúde e que o mal-
estar e o sentimento de inadaptação da pessoa transexual com seu sexo anatômico deviam ser
abordados a partir do princípio da integralidade11 preconizado pelo SUS. Isto significou avanços
expressivos na legitimação da demanda de pessoas transexuais por redesignação sexual e facilitou o
seu acesso à assistência de saúde.
A referida Portaria de 2008, como dito, instituiu no âmbito do SUS o Processo
Transexualizador, reunindo os mais recentes avanços biotecno-científicos. Dentre as suas diretrizes,
figura aquela que reconhece que o desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto, com
as características constitutivas de sua subjetividade, é determinante no processo de sofrimento e
adoecimento, o que constitui uma questão de saúde pública.

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O credenciamento de tais hospitais foi divulgado pela Portaria SAS/457, publicada em 20 de agosto de 2002 no
Diário Oficial da União (DOU).
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O uso do termo integralidade embora venha sendo usado para designar um dos princípios do SUS, expressa uma das
bandeiras de luta do chamado movimento sanitário. Para Mattos (2004:21), de certo modo, “ele tem funcionado como
uma imagem-objetivo, ou seja, como uma forma de indicar (ainda que de modo sintético) características desejáveis do
sistema de saúde e das práticas que nele são exercidas, contrastando-as com características vigentes (ou
predominantes)”.

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Contudo, para sua realização, o(a) paciente deverá ser maior de 21 anos, não ter
características físicas inapropriadas para a realização da cirurgia e o tratamento passou a exigir a
sua inserção num programa rígido que inclui a avaliação de equipe multidisciplinar – urologia,
endocrinologia, cirurgia plástica, psiquiatria, psicologia e serviço social –, bem como
acompanhamento psiquiátrico por, no mínimo, dois anos para a confirmação do diagnóstico.
Não obstante, a inclusão do Processo Transexualizador no SUS representa o atendimento de
apenas parte das especificidades e demandas do segmento transexual: ao não ter reconhecido o seu
direito à requalificação civil – isto é, a retificação de seu nome e sexo em seus documentos –
permanece a sua invisibilidade para o poder público. Assim, constata-se uma espécie de paradoxo
na atitude do Estado brasileiro, constituído pela “existência e invisibilidade” da pessoa transexual
(Schramm, Barboza e Guimarães, 2010:01).
É importante deixar claro que “processo transexualizador” não é o mesmo que cirurgia de
transgenitalização e que, portanto, nem todos os hospitais estão credenciados para executarem o
processo em sua complexidade.De acordo com Berenice Bento (2008), entende-se por processo
transexualizador “o conjunto de alterações corporais e sociais que possibilitam a passagem do
gênero atribuído para o gênero identificado; mas, a cirurgia de “redesignação sexual” não é a única
etapa deste processo” (Bento, 2008: 146).
Por conseguinte, cabe ao sistema de saúde e demais segmentos das políticas públicas
(educação, assistência, previdência, justiça, entre outros) uma ampla e complexa teia de ações no
sentido de garantir o acesso e usufruto dos direitos humanos, princípios inalienáveis a serem
perseguidos incansavelmente por todos aqueles e aquelas que sonham com uma sociedade mais
justa e emancipada, na qual os direitos humanos mais básicos sejam respeitados e garantidos a todas
e todos.
Se, a primeira vista, pode parecer que todas as pessoas desejam realizar intervenções em
seus corpos para estabelecer a coerência socialmente exigida entre gênero e sexo, de acordo com
Bento o que essas pessoas buscam é o reconhecimento de seu pertencimento à humanidade. Para a
autora “é a busca por inserção na vida social o principal motivo para pleitear tais intervenções”
(Bento, 2006:182).

IV – Considerações Finais
É fato inconteste que a transexualidade ganhou relevo e visibilidade no Brasil nos últimos
anos. Neste sentido, como já mencionado anteriormente, o plano normativo veio a reboque deste
ganho: a Portaria nº 457/2002 do Ministério da Saúde que define as Diretrizes Nacionais para o

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Processo Transexualizador no SUS e a Portaria nº 1.707/2008 que instituiu, no âmbito do SUS, o
processo transexualizador. Todavia, as normas brasileiras se constituíram como normas oriundas do
Poder Executivo e sem força de lei, apenas por jurisprudência estabelecida caso a caso.
A política de saúde pública brasileira, ao construir um modelo de atendimento aos
transexuais no SUS, nos anos 2000, incorporou em grande parte o histórico determinismo
biomédico nesta discussão, firmando-se na distinção entre quem pode e quem não pode realizar
modificações corporais a partir de critérios psiquiátricos.
Tal política é ainda atrelada, na maioria absoluta das vezes, à possibilidade de alteração
legal de nome e sexo, isto é, condicionada pelos(as) juízes(as) e Ministério Público à realização de
modificações corporais. Este modelo prejudica o exercício do direito à saúde por todos os
indivíduos que desejosos de modificações corporais e/ou da alteração de nome e sexo, não possuam
todas as características esperadas de um “transexual verdadeiro”. Ademais, como dito, tal modelo
condiciona a aquisição de um novo nome e identidade civil à submissão ao poder da biomedicina na
forma de laudos que embasam a Justiça na tomada de decisões (Almeida, 2012).
No Brasil, a atenção à saúde de pessoas transexuais encontra-se condicionada ao diagnóstico
psiquiátrico que não obstante legitimar a demanda por cirurgia de redesignação sexual e viabilizar o
acesso a cuidados de saúde, é um agente da patologização e estigmatização que restringe o direito a
cuidados médicos, limitando a autonomia da população usuária (Murta, 2011).
No entanto, o grande desafio na regulação desta prática consiste em transitar entre a
importância da normatização do acesso à saúde e o reconhecimento do sofrimento psíquico –
implícitos no diagnóstico de transtorno de identidade de gênero – e a necessidade da
problematização da restrição da compreensão da experiência da transexualidade a partir deste
diagnóstico psiquiátrico – subjacentesà noção de saúde integral12 (Arán;Murta, 2008; Murta, 2007;
Arán, 2006; Lionço, 2006; Bento, 2006; Zambrano, 2003).
No enfrentamento deste desafio, é preciso resgatar os princípios que norteiam o SUS,
esquecidos muitas vezes, em face de interesses empresariais. Tais princípios são as raízes desse
sistema e deveriam guardar relação direta com as suas ações e programas: universalidade, equidade,
integralidade, descentralização e comando único, resolutividade, regionalização e hierarquização e
participação popular.
Embora o discurso técnico em saúde, de maneira geral, mantenha a tendência de tratar a
transexualidade como uma experiência padrão, caracterizada de maneira uniforme, há uma
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Para um debate sobre os mecanismos de poder e de normatização que atravessam a assistência à saúde de pessoas
travestis e transexuais, ver Lionço (2008).

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pluralidade de experiências e matizes muito diversas em pessoas que se afirmam transexuais ou que
têm na transexualidade uma vivência (Almeida, 2012). Do ponto de vista das ciências sociais e da
saúde coletiva, tal pluralidade já é amplamente reconhecida. Há pessoas transexuais que desejam
mudanças corporais que modifiquem seus caracteres sexuais secundários, bem como seus órgãos
sexuais, há outras, no entanto, que não desejam qualquer modificação corporal e encontram formas
razoavelmente satisfatórias de vida.
Há ainda aquelas que desejam realizar alguns, mas não todos os procedimentos atualmente
disponíveis nas ciências médicas. Há pessoas que vivenciam desconforto com o gênero com que
foram assignadas ao nascerem, mas que sequer conhecem a categoria “transexual” e outras que
conhecem, mas não se reconhecem como tal, preferindo ser reconhecidos como “gay”, “bicha”,
“lésbica”, “transgênero”, “travesti” ou tantas outras (Almeida, 2012; Murta, 2011 e Nery, 2011).
Em suma, a transexualidade é entendida neste trabalho como uma das múltiplas expressões
identitárias que emergiram como uma resposta inevitável a um sistema que organiza a vida social
fundamentada na produção de sujeitos “normais/anormais” e que localiza a verdade das identidades
em estruturas corporais. Afirmar que a transexualidade é uma experiência identitária – que está
relacionada à capacidade dos sujeitos construírem novos sentidos para os masculinos e os femininos
–, não significa esquecer a dor e angústia que marcam as subjetividades daqueles que sentem e
desejam viver experiências que lhes são interditas por não terem comportamentos apropriados para
seus sexos (Bento, 2006).
De acordo com Bento (2008:14), “o sistema binário –masculino versus feminino –produz e
reproduz a ideia de que o gênero reflete e espelha o sexo, e que todas as outras esferas constitutivas
dos sujeitos estão amarradas a essa determinação inicial: a natureza constrói a sexualidade e
posiciona os corpos de acordo com as supostas disposições naturais”.
Para autora, portanto, “definir a pessoa transexual como doente é aprisioná-la, fixá-la em
uma posição existencial que encontra no próprio individuo a fonte explicativa para seus conflitos,
perspectiva divergente daqueles que a interpretam como uma experiência identitária” (Bento, 2008:
15).

V – Referências

ALMEIDA, G. S.“Reflexões iniciais sobre o processo transexualizador no SUS a partir de uma


experiência de atendimento”. In: ARILHA, Margareth; LAPA, Thaís de Souza; PISANSESCHI,
Tatiane Crenn. Transexualidade, travestilidade e direito à saúde. São Paulo, Comissão de Cidadania
e Reprodução (CCR), 2010.

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_________.“Repercussões sociais da assistência à saúde do transexual”. In: SILVA, Eloísio
Alexsandro da. Transexualidade: princípios de atenção integral à saúde. São Paulo: Santos, 2012.
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Health care of the transexual people: horizons of the transsexualization process in the State of
Rio de Janeiro

Abstract: This paper is the result of a MSc research project, held under the Graduate Program in
Social Work from the State University of Rio de Janeiro (UERJ). Interest in the subject of
transsexuality was reinforced from professional experience as coordinator of the Centres for
Reference and Promoting LGBT Citizenship of Rio de Janeiro. This academic paper proposes a
reflection on sexuality and gender in transsexual experience and provides a description and a
historical analysis of the public responses to the demands of health of transgender people in the
state of Rio de Janeiro. It is important to stress that the trajectories of women and transgender men
arise directly from their insertions of social class, gender and race, as well as from their cultural
features, age and sexual experiences.
Keywords: Transsexuality, sexuality, gender and health.

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